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#84 ABRIL ‘13 O BOLETIM DO QUE POR CÁ SE FAZMENSAL / DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

Crise? Há Festa na Lixeira

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Fazendo Editorial

2.

Editorial#84A RDP Açores inicia na Horta as suas emissões em FM Estéreo, um ano depois de Ponta Delgada. A Lagoa da Fajã de Santo Cristo é classificada como Reserva Natural, pelo Governo Regional dos Açores. Após a extinção das empresas públicas CTM (Compa-nhia de Transportes Marítimos) e CNN (Companhia Nacional de Navegação) nasce por iniciativa do governo por-tuguês a Transinsular. Na Praia da Vi-tória entra ao serviço uma draga de 12 polegadas, apta a dragar areia até 9 metros de profundidade. O selo Eu-ropa CEPT Açores tem várias pontes e custa cinquenta e um escudos. Das eleições para a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores de-corre o governo ao PPD/PSD, liderado por Mota Amaral. Jaime Cruz edita o livro “Filósofos da Rua” de Augusto Gomes, a impressão fica concluída nas Sanjoaninas, com uma tiragem de 1500 exemplares. Sai o segundo volu-me da “Antologia Poética dos Açores”, pela mão de Ruy Galvão de Carvalho, numa edição da colecção Gaivota, com

Não sei se é por viver no mato, lá no Norte da ilha, mas desde sempre que a lixeira da Praia do Norte é um lugar que vez a vez fui visitando. Procurava por coisas especificas, como peças de bicicletas.Hoje já não vou lá muitas vezes mas quando estou por perto dou uma vista de olhos no que por ali há.

o apoio da DRAC. O poeta terceirense Vasco Pereira da Costa publica o livro

“Plantador de Palavras Vendedor de Lérias”, e é primeiro prémio Miguel Torga. Em Portugal Continental, os Sé-tima Legião lançam “A Um Deus Des-conhecido” e os “Ronda dos Quatro Ca-minhos” o seu primeiro álbum de título homónimo. O filme “Paris, Texas”, de Wim Wenders, vence a Palma de Ouro da 37ª edição do Festival de Cannes e às salas de cinema chegam

“Depois do Ensaio” do sueco Ingmar Bergman e “Cróni-ca dos Bons Malandros” do português Fernan-

Um Lugar, a Lixeira

Felix KremerPedro Escobar

DirecçãoAurora RibeiroTomás Melo

CapaFelix Kremer

Colaboradores Alexandra Boga Carla DâmasoCarlos Alberto MachadoCristina LouridoDaniela SilveiraFernando NunesFilomena MaduroMiguel MacheteMoritz WeimannNuno SardinhaRuth BartenschlagerSilvia LinoTerry CostaVictor Rui Dores

Layout DesignMauro Santos Pereirawww.comunicaratitude.pt

PaginaçãoTomás Melo

RevisãoCarla Dâmaso

Propriedade Associação Cultural Fazendo

Sede Rua Conselheiro Medeirosnº 19 — 9900 Horta

Periodicidade Mensal

Tiragem 500 exemplares

Impressão Gráfica O Telégrapho

As opiniões expressas nesta edição são dos autores e não necessariamente da direcção do Fazendo

Capa

do Lopes. O músico americano Prince surge com Purple Rain e os U2 editam o seu quarto álbum de originais, “The Unforgettable Fire”, com a canção Pride (in the name of love). É o ano do nascimento em Ponta Delgada de Ân-gela da Ponte, compositora açoriana, de Aurora Ribeiro, cineasta e autora dos vídeos do agrupamento açoriano

“Experimentar Na M´Incomoda” bem como do fotógrafo Pepe Brix, natural

da Ilha de Santa Maria, no seio de uma família de fotógrafos.

FN

Neste dia encontramos caixotes cheios de cabides, pretos e azuis.

O Pedro Escobar é um colecionador de quase tudo, e também está sempre muito atento no que aparece nas vá-rias zonas de descarga de lixos diver-sos pela ilha.

“RETORNO DA PALETE CABIDES PARA RECICLAGEM | DESTINO: Karner Euro-pe | LOJA HORTA *** | PESO: 6H.5”*

Isto estava escrito nos caixotes re-cheado de cabides vindos de uma loja de roupa, suponho, da cidade da Horta.

Felix Kremer

FOTOGRAFIA

PERFORMANCE

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Fazendo Crónica

Finalmente chego ao cume mas o ca-minho termina a poucos metros de uma moita de canas. Quero abrir cami-nho através das canas que idilicamen-te abririam espaço à minha passagem mas fica cada vez mais difícil avançar através dos ramos cada vez mais den-sos: do lado direito o meu saco cama atrasa-me, da esquerda são os ramos que puxam a minha tenda e os galhos retorcidos que por um lado parecem estender a mão para mim, por outro puxam a minha roupa, agarram-se onde podem e impedem-me de ir mais longe. São agora cinco as contrarieda-des simultâneas- minhas pernas ficam presas no caos de canas e eu admito a impossibilidade, desistir e voltar para trás. Levanta-se vento, que faz as canas dançarem e chocalharem - os elementos riem-se de mim e aplaudem a minha presença de-samparada.Levo uma hora a chegar ao ponto de partida, uma clareira para onde saio do castigo das canas- vejo agora lá em baixo um guarda com aspeto de militar, cujo motorista me observa com binóculos. Estou numa reserva natural e acampar talvez não seja permitido. Decido voltar para o mato e montar a minha tenda entre os ar-bustos...mesmo na hora certa: o céu torna-se escuro e começa a chover.Finalmente estou na tenda, acon-chegado no meu saco-cama - mas em vez do esperado calor sinto a humidade fria do chão a entranhar-se na pele- não tenho um colchão isolante.A minha tenda está inquieta como uma bandeira ao ven-to e cada rajada de vento produz um baque sur-do. De repente, um grito agudo corta o ar - um Cagarro! E não está sozinho: rapidamente quatro outros

animais circulam à volta da tenda num furioso jogo de gritos. São ensurde-cedores e só sei que a última nota se extinguiu apenas ao amanhecer. Nos momentos de silêncio entre o jogo dos Cagárros, ouço outro amigo: um roedor que cava a sua cova mesmo por baixo da minha cabeça: uma toupeira ou talvez um rato?

Estou ansioso pelos dias contemplati-vas que tenho pela frente, perder-me nos próprios pensamentos e fazer no-vos planos para o futuro.Cinco dias para caminhar no Faial não são um desafio demasiado grande e há tempo para explorar um pouco os caminhos e a beleza escondida da ilha.Na tarde do meu primeiro dia, descobri uma pequena península - um enorme rochedo de altas muradas naturais, coroado por um planalto arborizado com intermináveis falésias a pique: o Morro de Castelo Branco!

Naturalmente decido que vou passar a primeira noite no meio desta român-tica natureza selvagem. Começo por explorar o trilho íngreme que liga este enorme bloco de pedra à ilha maior: um ato de equilíbrio - na parte mais íngreme, o abismo está perto em am-bos os lados - leve vertigem, alguma dúvida...?

À distância, ouço vozes. Talvez o guar-da tenha regressado? Se calhar voltou para me passar uma multa? Não...vejo agora que é afinal o pássaro novamen-te, cujo grito me acorda e me confun-diu no meio do meu sonho.O vento e a chuva tamborilam na ten-da, o mar ecoa constantemente como trovões, o saco-cama está húmido e ratos e pássaros chegam cada vez mais perto de mim: fico acordado nes-ta noite inebriante, a apreciar a dança e força da natureza e fico perplexo e animado com o vigor e dinâmica da vida - só não posso, infelizmente, é pensar em dormir hoje ...

Texto original (Alemão): Moritz Weimann

Tradução e Adaptação: Silvia Lino

Vou passar a primeira noite no

meio desta romântica natureza selvagem

A tenda está inquieta

como uma bandeira ao

vento

Uma noite no Morro de Castelo Branco

O abismo está perto

de ambos os lados - leve vertigem

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Azores Fringe Festival é o primeiro festival de artes em Portugal realizado no estilo da rede internacio-nal “fringe”. Fringe significa em português “franja” ou “margem”. Os conceitos dos festivais Fringe no mundo são inspirados no Festival Internacional de Edimburgo, uma mostra escocesa que surgiu em

1947. Hoje há mais de 250 festivais mundiais, uma rede com plataformas gigantescas de apoios a arte e artistas. Com raízes especialmente em performan-ce e artes plásticas, artistas apresentam espectácu-los e exposições, workshops/oficinas e outras ações que vão de salas à rua. Fringe é uma mostra de cor e emoção artística para dar a conhecer talentos a no-vas audiências. O Festival cria oportunidades para artistas investirem no desenvolvimento da sua arte, e para audiências aventurarem em novos territórios. O primeiro Azores Fringe Festival com Meca na vila da Madalena no Pico mas também com evento saté-lites em outras localidades como na Horta, Faial, vai acontecer de 19 a 30 de Junho 2013 e qualquer artis-ta tem a oportunidade de fazer uma proposta para com participação.

Azores Fringe Festival tem uma mascote que neste momento necessita de nome e de cor.

Porquê o cachalote como mascote de um festival de artes? Os cachalotes têm a capacidade de percorre-rem grandes distâncias, tal como terão que fazer al-guns dos participantes no festival. É possível que os artistas se identifiquem com o mesmo, já que, em si-

multâneo, o cachalote é um símbolo de persistência e de ousadia. Que cachalotes e artistas continuem a viajar e a presentear-nos com a sua presença singu-lar. Além do mais, embora o cachalote não seja fácil de avistar, a sua observação, pelas suas caracterís-ticas únicas, é bastante popular. É, pois, missão do festival garantir visibilidade às diversas artes par-ticipantes. À semelhança do cachalote, pois muitas vezes estão ocultas, estas são admiráveis e mágicas.

A associação miratecarts, organizadora do Azores Fringe Festival, quer sugestões para o nome da mascote assim como tem um concurso para qual-quer pessoa dar vida, dar cor, à mascote preenchen-do o seu corpo com próprio desenho, colagem, pin-tura, ou qualquer outra estratégia de decoração do mesmo. Visite a página www.azoresfringe.com para transferir o ficheiro da mascote, e mais informações sobre o Festival, e junte-se no facebook e participe www.facebook.com/MiratecaArts

Terry Costa

Azores FringeFazendo Artes

Extensão do Festival de Seia aos AçoresMaio e Junho de 2013 - Faial, Terceira e São Miguel

Neve em Silêncio

Fazendo Cinema

O Cine’Eco – Festival Internacional de Cinema Am-biental da Serra da Estrela, é o único festival de ci-nema, em Portugal, dedicado à temática ambiental, no seu sentido mais abrangente. Realiza-se em Seia anualmente, em Outubro, e de forma ininterruptadesde 1995, por iniciativa do Município de Seia.O Festival, à beira de completar 2 décadas de exis-tência, procura promover novas ideias e acções através do audiovisual, para fazer reflectir o público sobre as questões ambientais.

A INTOXICAÇÃO INVISIVEL DO ÁRTICORealização: Jan van den Berg & Pipaluk Knudsen-

-Ostermann; Género: Documentário; País: Holanda

Poucos sabem como sobreviver nesse nada infinito e nas grandes planícies brancasdo Ártico. Mas um assassino invisível está a destruir silenciosamente a comunidade Inuit na Groenlândia: resíduos químicos de todo o mundo vão-se acumulando invisivelmente e envenenando os indefesos habitantes.Pelas correntes oceânicas e junto com a neve, pesti-cidas como o DDT que são utilizados em vários países do mundo, causam doenças e mortes prematuras.O projeto NEVE EM SILÊNCIO tem como objetivo, através deste documentário, aumentar a conscien-cialização sobre a poluição causada por poluentes persistentes. Onde a ganância do lucro, mais uma vez se sobrepõe ao interesse dos povos.

Numa iniciativa conjunta do Observatório do Mar dos Açores (OMA) e do Festival Cine’Eco|Seia, arran-ca no dia 3 de Maio a extensão deste Festival nos Açores, com a exibição do filme vencedor da última edição - NEVE EM SILÊNCIO, A INTOXICAÇÃO INVI-SIVEL DO ÁRTICO (SILENT SNOW). A exibição deste filme estará enquadrada nos XXº Encontros Filosófi-cos da Escola Secundária Manuel de Arriaga (ESMA), e terá lugar no Auditório da ESMA, durante a manhã e no auditório do DOP/UAç à noite, contando com a presença de Mário Branquinho, Director do Festival.

Depois deste arranque estão agendadas sessões semanais, à quinta-feira, no auditório do DOP/UAÇ, até ao dia 13 de Junho. No fim-de-semana do Espírito Santo está agendada uma sessão especial dedicada ao tema, onde serão exibidos dois filmes de António Escudeiro no pequeno Auditório do Teatro Faialense.

Mas não é apenas no Faial que decorrerá a extensão do Cine’Eco|Seia. A programação será também apre-sentada em simultâneo na Terceira e em São Miguel, em colaboração com o Centro de Ciência de Angra do Heroísmo (Observatório do Ambiente dos Açores), o Cineclube da Ilha Terceira e o Expolab.Brevemente todo o programa em www.oma.pt

Carla Dâmaso

Festival Cine’ECO

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Fazendo Teatro

Num teatro de marionetas, o tambor do Homem acorda a humanidade onde menos esperaríamos encontrá-la: nos bonecos.A imensa solidão do Boneco irá encontrar fim no seu espelho de alma, a Boneca.Este encontro trará a libertação da única coisa que ainda os prende e será o início da descoberta dos seus universos, dentro e fora, antes de recomeçar.

Na preparação de mais uma produção do Teatro de Giz, no ano em que comemoramos 15 anos de activi-dade, deparámo-nos com o grande génio do Almada

Longa Vida para o Teatro de Giz

Resolveu, e bem, o Teatro de Giz associar-se às co-memorações dos 120 anos do nascimento de Alma-da Negreiros (1893-1970), levando à cena a peça

“Antes de começar”, escrita em 1919 por esta figura ímpar do modernismo português do século XX.As primeiras peças de Almada datam de 1912, e a úl-tima de 1965. Na totalidade da sua produção nesta área, o destaque vai para “Deseja-se Mulher” (1928) e “Pierrot e Arlequim” (1931), que marcam uma ru-tura com a narrativa teatral naturalista, através de uma escrita fragmentária e profundamente poética.

Essa poética está bem patente em “Antes de co-meçar” (cena única). Num teatro de marionetas, um boneco e uma boneca, fora do olhar do Homem (o manipulador, o bonecreiro), ganham vida própria, encontram-se, conhecem-se, brincam, descobrem o coração, crescem. Acima de tudo, libertam-se dos fios da solidão que os cerca. Agora que não estão manietados, falam da amizade, do amor, da vida, das relações humanas porque é precisamente esse o te-atro de Almada – o dos sentimentos, das emoções e estados de alma.Fui ver e gostei. Desde logo, o público é colocado na perspetiva de quem vê o teatro de dentro para fora, já que é convidado, antes do início do espetáculo, a uma “visita” pelos labirintos da teia do Teatro Faia-lense. E dos bastidores ninguém sai, pois a repre-sentação da peça ocorre dentro do palco, o qual é partilhado por atores e público.

O resultado é um espetáculo de grande beleza es-tética e plástica, montado, inteligentemente, pelas encenadoras, Flávia Carvalho e Lia Goulart. Interpre-tações avassaladoras de César Lima (boneco) e Ma-ria Miguel (boneca) que se transfiguram na composi-ção das suas personagens. Irrepreensível o trabalho de corpo e voz, bem como a relação com o espaço. Eiso ator como centro, sujeito e criador onde habita o texto, aquele que torna visível o invisível.Boa conjugação de trabalho de ator com a funcio-nalidade do dispositivo cenográfico, concebido por Tomás Melo, e com a eficácia do desenho de luz de Bruno Carvalho. É que, nos tempos que correm, a arte é já o domínio da técnica. (Sou do tempo em que se dizia que a arte começa onde a técnica acaba…).Não sei do que mais gostei. Se da fisicalidade e da movimentação cénica de César Lima, se da tocante e inocente ternura posta nas inflexões de voz de Maria Miguel. Do que tenho a certeza é que o teatro não é mais do que um jogo, uma brincadeira. Atuar é jogar, brincar e estar disponível. Em inglês, diz-se

“play”, em francês “jouer”, em alemão “spielen”. Só em português é que se diz representar (verbo que não contempla o conceito jogo/brincadeira). Nota po-sitiva para os figurinos (de Carolina Aguiar, Susana Valinhas e Joana Silva) a funcionarem na perfeição, sendo de realçar a réplica do icónico fato do Almada Negreiros “futurista” no corpo de César Lima. Longa vida para o Teatro de Giz, que, buscando novos para-digmas, continua a reinventar a esperança. Victor Rui Dores

“Só não entende o coraçãoquem não sabe escutá-lo”.

E estas viagens são tão válidas hoje como daqui a outros 120 anos. Por isso é que vale a pena celebrar esta data, para mergulharmos uma e outra vez na essência da humanidade.Foi sempre tão fácil para Almada falar das coisas com verdade e clareza! Não só no teatro, como na pintura, na literatura... “Almada não escolheu ne-nhuma arte, mas todas as artes escolheram Almada”.E o Teatro de Giz escolheu o Almada, para celebrar com ele o maravilhoso mundo do teatro!

Encenação de Flávia Carvalho e Lia Goulart.Com Cé-sar Lima e Maria Miguel.

Carla Dâmaso

Fazendo Teatro

Negreiros, cujo 120º aniversário do nascimento se assinala este ano. No entanto, a homenagem que hoje lhe prestamos pelos 120 anos do seu nasci-mento foi completamente acidental. Não vale a pena negar. Mas foi feliz a coincidência!Não queremos com isto menosprezar o seu valor artístico nem o texto que vos propomos apresentar, muito pelo contrário. A escolha de “Antes de Come-çar” em detrimento de outras propostas, prendeu-

-se apenas a uma coisa: era a melhor. A mais bonita na forma, nas cores, nas palavras... a que nos fez (e faz) viajar mais longe, até onde o espectro emocio-nal nos permitiu chegar.

Antes de ComeçarAlmada Negreirosteatro para almas dos 10 aos 100 anos de idade.

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Músicos D’AngraPaulo Cunha

Fazendo Música

Paulo Cunha nasceu em Angra do He-roísmo em Fevereiro de 1973 tendo iniciado os seus estudos musicais no Conservatório Regional de Angra do Heroísmo em 1987. Antes de rumar em 1991 para Lisboa e estudar Arqui-tectura participou em diversos grupos de folclore da ilha onde tocou inclusive com Luís Bettencourt no grupo musi-cal “Cantinho da Terceira” e participou em workshops de jazz ministrado pelo quarteto Mário Laginha e Moreiras Jazztet. No continente fundou como magister a TUCA - Tuna Universitária da Casa dos Açores e em 1998 tocou viola da terra no disco “Crónicas de um Homem Só” de Kit. Em 2000, reformu-la a banda angrense onde ingressara em 1994 (Chili Mozart) sob o nome de Enuma Elish (www.enumaelish.net), vencendo a primeira edição do con-curso Angra Rock, obtendo um honro-so segundo lugar em 2002. Em 2001 é um dos músicos a iniciar o projecto pedagógico da Orquestra AngraJazz, sob a tutela de Claus Nymark e Pedro Moreira e, em 2002, participa no quin-teto Victor Castro (Bossa Nova/Jazz). Em 2005, conjuntamente com Victor Castro, efectiva o “tributo a Carlos Pa-redes” (www.tributoacarlosparedes.net). Juntamente com Susana Coelho, fundou o Susana Coelho Trio (2009-2011), e é na mesma altura que inicia outros projectos como o Bossa Quin-tet, o sexteto BWF (Bruno Walter and Friends), e os “Wave Jazz Ensemble”. Recentemente acompanhou a exibi-ção dos slides da visita à Ilha Terceira em 1972, da artista plástica Tereza Ar-riaga, na Casa do Sal, apropriando-se assim de forma guitarrística dos te-mas tradicionais “Bravo” e do popular de José da Lata, “Sol”.

Quais são actualmente os projectos musicais em que estás envolvido?Integro a Orquestra do AngraJazz (OAjz) como guitarrista desde a sua formação, há cerca de doze anos, pro-jecto pedagógico que acabou por ori-ginar há 2/3 anos a génese de algumas bandas de relevante interesse no pa-norama terceirense. Desses projectos integro também com muito orgulho e satisfação: os Bossa Quintet (como baixista) - com reinterpretações do género bossa nova, MPB e samba, os BWF - Bruno Walter & Friends - (gui-tarra) com repertório original de Bruno Walter Ferreira de géneros variados, desde blues ao jazz, passando pela

bossa nova, alguma pop urbana e até rock, e os Wave Jazz Ensemble (baixo) géneros jazz com reinterpretações de standards com algum repertório origi-nal. Colaboro também na organização de eventos musicais e workshops, como por exemplo no + Jazz promo-vido pela Daniela Silveira, e chego a fazer “agendamento” (não confundir com agenciamento!) das bandas que integro e não só.

A partir de que idade é que começas a dedicar-te de pleno coração à música?Acho que desde que algumas per-sonalidades/bandas começaram a convidar-me ou a integrar alguns pro-jectos em que acreditava, foi sempre de forma espontânea que fui tocando ou participando em grupos. A minha aprendizagem na música deu-se so-bretudo através do auto-didatismo, impulsionado pelo ouvido...e hoje, confesso, que estou a tentar evoluir na leitura. Aprendi muito com Luís Gil Bettencourt a nível rítmico, dinâmicas e expressão. Depois, vivi numa resi-dência universitária com 58 pessoas, abriu-me forçosamente os olhos, os sentidos e o ouvido para outros gé-neros, e aos primeiros sons que ouvia de bossa nova, jazz ou até flamengo, lá estava eu a tentar sacar acordes. Aquando dos Enuma Elish, percebi que para apresentar algo novo ao público, temos que ser forçosamente muito autocríticos do nosso trabalho, e só permitir que ele seja exposto não após um processo democrático, mas sim por unanimidade. Aquando do projecto Tributo a Carlos Paredes, juntamente com o Victor Castro, o nível de exigência passou a ser mais abrangente, do ponto de vista cénico do concerto, onde para além de tocar

“violão” de acompanhamento, tivemos de pensar na orgânica da actuação. Nesta “mini-produção”, propus-me fazer a componente multimédia, com edição e montagem de vídeo/áudio. Com apenas 2 músicos, foi o projecto que abracei mais bem sucedido (im-pacto) e mais rentável até hoje! É difí-cil assumir quando se deu o processo em definitivo... embora de há 2/3 anos para cá com estes projectos todos, é como se ao fim do dia, a rotina passas-se a ser outra...virado exclusivamente para os ensaios/concertos! Costumo dizer que tenho tido sorte, e especial-mente muito orgulho por pensar que em todos os projectos por onde passo,

seja pelo grupo de músicos, seja pelo género musical, consigo vislumbrar um grau de aceitação do público bas-tante satisfatório...

Qual é normalmente o reportório que costumas interpretar?Considero-me um tipo que vem do rock, e tive a prova disso novamente em 2009/2010 quando ao lado do guitarrista Kit e com o baterista Tiago Lima (eu no baixo), conseguimos impor uma articulação rítmica muito forte ao acompanhar o cantautor Joel Moura no Festival AngraRock. Nunca fui um

“guitar virtuoso”, mas em ritmo e acor-des, sobretudo a mão direita, conside-ro-me minimamente capaz. Claro que com a OAjz e todos estes projectos

“satélite”, o repertório varia consoante a natureza dos seus géneros, mas eu diria que incide essencialmente no jazz contemporâneo.

Qual é a visão que tens da música e dos espaços musicais da Ilha Terceira?Acho que só com grandes manifes-tações culturais é que se estimula o público a enveredar por uma arte pró-pria. No caso da música, os grandes festivais internacionais como o Ramo Grande ou o Angrajazz vieram justa-mente potenciar o interesse das pes-soas nesse campo. Daí a criarem-se sinergias na partilha de conhecimen-tos/formação foi, como eu diria, inevi-tável! Penso que com esta nova vaga de projectos mais abrangentes em termos de género originados por uma maior formação musical, pela primeira vez o panorama musical na Terceira começa a tornar-se bem diversificado e de maior qualidade, permitindo que haja uma procura mais direccionada face ao estilo do projecto. Fadistas e guitarristas começam a aparecer mui-to mais. A qualidade da Filarmónicas melhorou substancialmente quando muitos dos regentes são músicos oriundos da OAjz. As parcerias em pro-duções musicais como a que se viu na Praia da Vitória, entre a Filarmónica União Praiense e músicos de rock en-cabeçados por Luis Gil Bettencourt, caso do tributo aos Beatles, num ver-dadeiro espectáculo para qualquer sala do país. As grandes jovens vozes como as do Coro Pactis que abraçam periodicamente produções musicais em géneros distintos. Os Contratem-po com excelentes músicos no ritmo frenético da salsa. As formações em

dueto e trio são muitos boas, só para mencionar alguns. Depois, o apa-recimento dos primeiros pequenos

“grandes” estúdios caseiros altamente equipados, juntamente com as insta-lações da Escola Tomaz Borba e Aca-demia da Juventude e das Artes, quer no ensino, divulgação ou mesmo no registo, fazem com que a ilha esteja a fervilhar de ideias, conceitos e parce-rias musicais dignas de serem ouvi-das. E a prova é a de projectos, como os October Flight, a saírem de portas e em tournés pelo país e estrangeiro. Quanto aos bares “contratantes”, pa-rece que ainda teimam em não perce-ber que muitos destes projectos que arrastam o seu público, e que no fun-do as bandas já não carecem de ter no currículo o nome do bar A ou B. A lógica para muitos deles deverá ser a contrá-ria, apostando no “culto” da música ao vivo em função do público seguidor da banda X ou Y.

Há dias tocaste em versão jazz de “O Sol “, do pastor do verbo José da

Lata. Acreditas na reinvenção da música tradicional açoriana? Transpus para a guitarra, a versão que os Wave Jazz Ensemble fizeram do “Sol”. Uma das coisas que adoro fa-zer é transpor, embora muito á minha maneira, e confesso que se tivesse maior conhecimento seria mais fácil e mais bem feito. A música açoriana tem grandes cantautores, que pes-soalmente considero o topo da cria-tividade musical genuína das ilhas. Já instiguei sobre “a receita” a alguns de-les como ao próprio Bruno Walter Fer-reira, mas lá está: fazes porque o sen-tes, não se explica, e nesse campo “ou tem-se ou não se tem” o dom de com-por originalmente. Também é preciso considerar paralelamente o processo das “(re)interpretações”, das versões, dos rearranjos, das transposições e nesse aspecto é um universo quase infinito, não merecendo contudo ser menosprezado face à composição original. O termo “reinvenção” pode implicar tratar a música tradicional açoriana com alguma delicadeza, mas acho que com “bom senso musical” in-dependentemente do género, haverá inúmeras linguagens que se podem aplicar e adaptar. E a tecnologia está aí, para nos auxiliar nesses processos de “experimentação musical”.

Entrevista de Fernando Nunes

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Poucos se lembram que Susana Coe-lho acompanhou Carlos Alberto Moniz e Maria do Amparo no Festival da Eu-rovisão de 1981 ou que o seu timbre e a sua voz esteve presente nas séries da RTP Açores (“Xailes Negros”, “O Barco e o Sonho”, “Balada do Atlântico” ou “A Viagem Possível”) com letras e a assinatura de Zeca Medeiros. Melhor, lembrar certamente que se lembram, o que nos parece é que foi há muito, muito tempo e que outras memórias se sobrepuseram e que, por isso, é bom agora evocar certas recordações. A memória mais recente que temos é o Susana Coelho Trio, a cantora acompa-

Susana Coelho Músicos D’Angra

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nhada por Paulo Cunha e Augusto Vi-laça, tendo sido entretanto homena-geada em 2010, pela Real Extudantina, para além de ter participado numa cerimónia simbólica dos 25 anos de Música original nos Açores, num con-vite de Rafael Fraga numa produção do Teatro Micaelense. Certo é que Susana Coelho se prepara para lançar o seu novo álbum de ori-ginais designado de “Agridoce”, após dois anos desde o seu último trabalho. Oriunda de uma família de músicos, maestros e instrumentistas (pela parte paterna, avó inclusive) redes-cobriu o dom familiar da composição

Tesouro encontrado pela Música Vadia está no Banco de (Portugal) Artistas!

Fazendo Música

Minha viola de luxoMinha enxada de cantar,Meu instrumento de fogo,Caixinha do meu chorar!(Vitorino Nemésio)

A arte depende muitas vezes de ob-jectos, ferramentas, de alfaias que semeiam os sonhos, e neste contexto, a Musia Vadia (associação Faialense que se dedica ao passado, presente e futuro da música popular e tradi-cional) quis saber mais sobre a reali-dade dos instrumentos tradicionais

na ilha do Faial. Fomos à procura das “enxadas de cantar” de Nemésio e dos

homens que as forjaram e depois da acção, descobrimos o tesouro – vários construtores Faialenses (alguns vivos apenas nas memórias) que se dedi-caram a trabalhar as madeiras que acostavam (uma mobília, uma caixa de transporte...) ou que por cá existiam, produzindo os cordofones que ainda hoje se podem encontrar em deze-nas de casas Faialenses e no seio dos agrupamentos folclóricos, espalhados por toda a ilha. No Banco de Artistas

(antigo Banco de Portugal) às terças, Sábados e Domingos, estão à espera de ser vistos quase duas dezenas de instrumentos musicais construídos ao longo do século passado e tam-bém lá, podemos cruzarmo-nos com as histórias dos homens que a eles se dedicaram. As várias formas, as partes de cada instrumento, as madeiras uti-lizadas, as afinações, a alegria e o gos-to de criar estes objectos tão neces-sários à vida quotidiana de outrora (e porque não de agora?), juntos com os sons que acompanham esse proces-

so, compõem o espaço e o conteúdo genuínos. Ou melhor, são uma parte de um todo que fica verdadeiramente completo quando o Sr. José da Silveira ou o Sr. Luís Medeiros, artesãos des-tas lides que muito nos ensinaram e deram, passam por lá, para deixar um sorriso e mais um pouco de uma expe-riência sem preço.

Miguel Machete

musical após longos anos de inter-pretação de canções e composições de outras pessoas. É com vontade de expandir o seu universo açoriano que Susana Coelho gostaria que este disco tocasse noutras áreas do canto e se apoiasse em diferentes sonoridades, porventura em busca de uma paleta sonora essencialmente açoriana e que raiasse o universal. Acerca dos temas de “Agridoce”, ainda em fase de mistura, estes foram escritos por João Lemos, com uma veia sentimental e poética bastante acentuada. Susana Coelho acrescenta que “são poemas muito sofridos” e que estes podem

ser considerados “a versão masculina da Florbela Espanca”. A propósito da actividade musical que se vive na Ilha Terceira, a cantora afirma que esta se encontra numa fase muito repetitiva, com pouco ou nada de inovador, aler-ta no entanto para a existência do songbook do cancioneiro açoriano da autoria de Rafael Fraga e de Augusto Macedo em todas as lojas do triângulo bem como uma aposta séria nas jam sessions para que assim se incentive o aparecimento de novos músicos e de novas criações. Quando estará pronto Agridoce? Talvez lá para o início do ve-rão…

Fernando Nunes

duas dezenas de instrumentos musicais construídos no século passado

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Entrevista +JazzFazendo Música

Claus Nymark é Dinamarquês, músico, maestro, compositor e professor.Aos 10 anos de idade inicia-se na músi-ca, aos 19 anos muda-se para Portugal.E desde então tem participado em projectos como Dixie Band, Big Band do Hot Clube de Portugal, Orquestra AngraJazz, European Movement Jazz Orchestra, Lisbon Swigers entre ou-tros.Integra desde o ano lectivo 2008/2009 o corpo docente do De-partamento de Música da Universida-de de Évora, onde actualmente lec-ciona as cadeiras de trombone de jazz, música & tecnologia, história do jazz, ensemble e big band.

Aos 15 anos começa a ter os seus primeiros contactos com o Jazz e rapidamente percebeu que era uma das suas paixões. O Jazz é uma música que se explica ou acontece? Primeiro acontece porque as pessoas apaixonam-se pela música e depois começam a estudá-la

Aos 10 anos começa a tocar trom-pete e 4 anos mais tarde inicia-se no trombone, porquê a escolha dos metais?Sinceramente eu escolhi tocar trom-pete porque interessei-me pela música e pelo trompete e depois sugeriram-me experimentar a tocar trombone por ter na altura acesso a um professor muito bom de trombone e agarrei essa oportunidade. Portanto

foi um bocadinho ao acaso não foi uma escolha completamente pensada.

Como se dá o seu primeiro contac-to com os Açores, nomeadamente com a ilha Terceira?Foi no 2º festival do AngraJazz,em 2000, convidaram para vir com o grupo

“Dixie Gang” tocar e dar um workshop. Depois voltei no ano seguinte com o grupo do Mário Delgado e a sua Or-questra e para dar outro workshop. As pessoas gostaram e foi uma experiên-cia gira. Em 2002 sugeri que se formasse uma Orquestra do AngraJazz. Nesse mes-mo ano vim tocar com a Big Band do Hot Clube de Portugal dirigida pelo Pe-dro Moreira e surge oportunidade de dirigirmos a Orquestra do AngraJazz.

Quais as suas referências musicais ?Gosto de muita música diferente, tal-vez me inclino mais para uma coisa que se chama Big Band Clássica, Duke Ellington, Count Bassie... Gosto de Jazz tradicional, mas também gosto de coi-sas mais modernas... O Jazz hoje em dia é uma junção muito vasta e é díficil dizer gosto só disto ou só daquilo. E

quanto mais conheço mais gosto.

Há algum jovem de momento no país que queira destacar?Há vários, mas não gostaria de desta-car ninguém em desprimor de outros. Neste momento vemos uma nova geração de músicos jazz muito bons, muito competentes com uma óptima formação ao nível de outros países. Foi uma coisa que mudou muito nos últimos 10 anos.

Na sua opinião qual a maior dificul-dade que encontra um músico de Jazz nos Açores?Claramente a maior dificuldade é ter com quem tocar. Um dos papeís que a Orquestra AngraJazz tem feito é juntar músicos com um mesmo interesse. De tal modo que hoje em dia existe pelo menos um grupo que são os Wave Jazz Ensemble, são músicos que tocam na Orquestra, que já tem conhecimento suficiente para se aventurarem a to-car sozinhos. Mas o problema é efecti-vamente encontrarem outros artistas com quem tocar, acabando por ser um elemento desmotivador.Já agora convido os músicos interessa-

dos em conhecer a vertente jazzística a assistirem aos ensaios da Orquestra AngraJazz.

O Claus ainda encontra dificulda-des para realizar concertos ou dar seguimento aos seus projetos?Eu acho que tendo em conta a crise, a cultura é a primeira a ser cortada. Eu tenho algumas ideias que gostaria de fazer mas sei que será difícil concreti-zá-las. Por outro lado os meus proje-tos com o AngraJazz têm corrido muito bem.

Que previsão faz a respeito do ce-nário Jazz português para os próxi-mos anos?Mais e melhor, a música e os músicos. Não sei se estou a dizer que o pano-rama vai melhorar, que os músicos te-nham mais oportunidades de trabalho, não me parece que isso vai recuperar tão bem quanto isso. Mas em termos da qualidade dos músicos e da música sem dúvida mais e melhor.Mais infohttp://www.clausnymark.com/

Daniela Silveira

“Por ser esta a vez primeiraQue neste auditório cantoEm nome de Deus começoPadre, Filho, Esp rito Santo”.

Cantiga de apresentação e saudação, a Charamba é a primeira moda do “ba-

Fazendo MúsicaCharamba

lho” da ilha Terceira a ser cantada e bailada. E terá sido a primeira canção nascida da convivência de terceiren-ses com castelhanos nos séculos XVI e XVII.Pelo menos é esta a opinião do musi-cólogo César das Neves, autor desse livro de referência que dá pelo nome de Cancioneiro de Músicas Populares.

Pelo mesmo diapasão afina o folclo-rista terceirense João Carlos Moniz. A provar esta perspetiva está este facto histórico: verificada a ocupação filipina, os espanhóis residiram na ilha Terceira durante 60 anos, de que resultou a natural fusão das suas can-ções com as terceirenses. Se escutar-mos os acordes da Charamba, verifica-mos uma nítida influência espanhola. O mesmo se diga em relação a outras

duas cantigas de raiz terceirense: o “Meu Bem” e “O sol”, sobretudo no que

diz respeito à chamada “cadência frí-gia”, ou seja, o movimento melódico-

-harmónico descendente da Tónica à Dominante, movimento esse que é exclusivo do modo menor.Na Terceira a Charamba abre o baile,fecha-o a Sapateia.

Victor Rui Dores

Claus Nymark

é a primeira moda do “bailho”

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Nuno Costa SantosEdição: Livramento, Ponta Delgada, 2005 (48 pági-nas). Distribuição da Companhia das Ilhas

Sobre as rochas, / acabados de chegar / os nossos passos / ainda estão tensos / e motorizados, / como se nunca / tivessem descolado / do estertor da cida-de. // Conservam / manchetes, buzinas, / o polvo do trânsito / e todo o calão de rotunda. // Escorregamos pois / para as águas do porto / ansiosos por repetir / a experiência. // Sabemos disso: / no mar das ilhas / o milagre é caminhar / sob as águas. (poema O milagre)Dividido em quatro partes temáticas (Para os quei-xumes; Para os outros; Para os afectos, memórias; Para os conselhos), onde o quotidiano é muito rele-vante, este livro de Nuno Costa Santos é um marco importante do percurso de um dos mais destacados poetas das novas gerações açorianas e nacionais.

Raul BrandãoEdição: Comunicação, Lisboa, 1988 (168 páginas). Prefácio de António M.B. Machado Pires

O livro de Raul Brandão possui a capacidade rara que têm alguns autores de nos fazer olhar para uma paisagem e descobrir o que a torna única – a sua «alma», como ele próprio diz, seja salientando um pormenor até aí despercebido, ou dotando-a de um sentido que a transfigura. A viagem em que o acompanhamos ocorreu entre 8 de Junho e 29 de Agosto de 1924, e permitiu-lhe visitar os Açores ilha por ilha. Raul Brandão chama-lhes “ilhas desco-nhecidas”, não só pelo seu isolamento (então muito flagrante), mas sobretudo por reconhecer nelas uma autenticidade já perdida ou desvirtuada em muitos outros pontos de Portugal. Domina estas «notas e paisagens» (subtítulo da obra) o deslumbramento do autor com o «espectáculo da luz», que «atinge talvez a perfeição». Brandão descreve nos mais ín-fimos cambiantes estas “ilhas desconhecidas”, res-peitando assim o mistério e a grandeza que nelas se abrigavam.

Carlos Alberto Machado/Companhia das Ilhas

Cristóvão de AguiarEdição: Calendário, 2008 (176 páginas)

«Os textos que compõem este livrinho, que ora vos apresento, foram extraídos, com ligeiras alterações, de vários livros meus [boa parte deles, por exemplo, d’A Tabuada do Tempo e de Ciclone de Setembro] onde essas histórias sobre cães e cadelas se encon-tram — os inseparáveis e afectuosos companheiros da minha infância e juventude.».Esta pequena declaração de Cristóvão de Aguiar pode servir-nos como guia de leitura de toda a sua obra. Em poucas palavras, direi que se trata do complexo entrelaçar, quase promiscuidade, entre a escrita dita diarística e a escrita de ficção. É sem-pre Cristóvão de Aguiar homem/escritor que nes-ses dois registos se encontra e desencontra. De tal maneira e tão radicalmente o faz que diria que, com essa atitude, é a própria fronteira de géneros que se esbate, ou, num certo sentido, se clarifica e aprofun-da aquela que para muitos é a mais forte possibilida-de (ou validade) da narrativa ficcional: a implicação autobiográfica como derradeira possibilidade. Esta perspectiva, sobreleva e arrasta outra questão, que é a da tendencial anulação de fronteiras entre o real e o ficcional, isto é, de fazer derivar a diferença para outro patamar, onde são bem distintos os valores em causa, como seja, por exemplo, a possibilidade de considerar igualmente o real sensível como algo que se constrói autoralmente, e, assim, ser possível modelar o experienciado e o imaginado com as mes-mas regras que a ficção utiliza.Isto que parece apenas teoria é absolutamente claro na prosa de Cristóvão de Aguiar. E acrescento ainda isto, que é claro e público: o primeiro Relação de Bor-do, livro em jeito de diário que relata os anos 1964-1988, foi pacientemente escrito nos finais da déca-da de 1990, com o auxílio da sua prodigiosa memória, de notas de época, cartas e, acrescento eu como óbvio corolário, do uso da mesma oficina em que se fabrica toda e qualquer ficção. «A minha escrita tem de ser coada pela memória afectiva.» «Tenho de facto facilidade em me transportar a outras épo-cas da minha vida e revivê-las quase com a mesma intensidade com que as vivi. Basta-me um incentivo que incendeie a memória.», diz-nos o autor com toda esta clareza. Os diários ou quase-diários Relação de Bordo I e II, Nova Relação de Bordo e A Tabuada do Tempo são exemplares e eloquentes. Tal como as ficções Passageiro em Trânsito, Trasfega e Ciclone em Setembro. Podemos talvez dizer isto: Cristóvão de Aguiar é tão verdadeiro nuns como noutros livros. E a literatura ficcional é tão excelente tanto nuns como noutros. Ele sabe que as suas razões são «(…) razões que, por serem imaginadas, correm o risco de se tornar verídicas…»Os contos de Cães Letrados são, como disse, extra-ídos de vários livros do autor: e não errarei muito se afirmar que mais de metade destas pequenas fic-ções pertencem… aos seus livros ditos não ficcionais

– os diários. Quem leu os livros anteriores só tem a ganhar em ler esta sequência – como nova. Aos leitores que

Cães Letrados Os Dias Não Estão Para Isso

As Ilhas Desconhecidas

Outros Nomes,Outras Guerras

Montra de LerFazendo Literatura

só agora chegam ao mundo de Cristóvão de Aguiar, Cães Letrados é um saboroso aperitivo, recheado de bons sabores e bem nutrientes! Os contos podem agrupar-se em dois latos conjun-tos: um, integra as estórias que o autor nos diz que vivenciou (mas só ele saberá a verdade – ou não…); outros, em que os cães são vestidos com um pêlo mais alegórico e por aí ironizam com figuras (supos-tamente não caninas) – cães polícias e polícias cães, cães universitários… – que todos podemos facil-mente reconhecer no nosso quotidiano. Para Cris-tóvão de Aguiar, os cães têm sido «(…) povoadores de solidões acumuladas.» Boa companhia, portanto.

Carlos Alberto Machado/Companhia das Ilhas

Urbano Bettencourt Edição: Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, 2013 (48 páginas). Prefácio de Vamberto Freitas

O presente volume contém uma selecção de poemas que vêm desde o seu primeiro livro, Raiz de Mágoa (1972) até ao recente África frente e verso, e inclui ainda uma breve sequência de inéditos. A poesia de Urbano Bettencourt requer o nosso reencontro de tempos a tempos, uma sucessão de olhares e pensamentos. Não se trata tanto aqui de uma poesia de conceitos ou ideias, mas sim de uma ideia ou conceito de poesia onde tudo cabe ou tudo poderá ser sugerido e insinuado, onde o melhor da nossa tradição literária converge para que possa-mos redefinir constantemente quem somos e donde vimos.

Vamberto Freitas (do Prefácio)

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Aos Fazedores nas Ilhas de Bruma

Fazendo Crónica

Na esplanada de Porto Pim (Faial), às dezassete horas e vinte e seis minu-tos de uma tarde morna de Setembro de 2008, a beber montes de café e a fumar quase nada, assentaram praça um grupo de “fazedores”. As nuvens cantavam, aquele algodão doce entre o céu e a terra, feito da refracção do sol e da condensação da chuva, do cio das marés e dos continentes.

- Que paisagem deslumbrante.- Paisagem deslumbrante é a que está

ao meu lado, respondera Gabriel.- Diz-me o que é Tanto?- Digo-te estamos Aqui.- O que andamos a fazer, explicas-me?

André explicou:- Um manifesto cultural de Artes, Le-

tras e Ideias.Os olhos sempre a brilhar e a boca sempre a sorrir. Conversávamos em modo lento, como a soletrar palavras compridas e aumentadas. A noite chegava. A conversa no muro aquecia, à toa, de riso e atrevimento. Um dia por outro sentávamo-nos perto da praia. Quan-do digo perto, estou a falar de dois ou três palmos entre a nail do dedo grande do pé e a borda de água. À es-pera que acontecesse alguma coisa. E acontecia mesmo: alguns mosquitos tipo convidados extra e um galo estri-lhando muito enganado nas horas.

Há espaços que são sempre nossos. E quem os habita, habita também em nós. Um caminho, apenas isso, que leva à ilha vizinha. O caminho das águas onde íamos mergulhar. No clube naval de S. Roque (Pico), escor-regava outro dia e ano so-bre distinto grupo de

“fazedores”. Ao fim da tarde, o sol esta-va muito bonito

de olhar assim todo amarelo quase bem torrado, o paraíso em aguarela. Cláudia entendia que a curta duração da vida era a razão pela qual as pesso-as deveriam ser autênticas. Entornou um licor de maracujá antes de excla-mar:

- Hoje interessa o que acontece em nós naquilo que vivemos.Nazaré não podia deixar de rir. Cláudia era um vendaval de energia e opiniões sem princípio nem fim.

- O meu problema é que tenho um cora-ção king size, confessava Sofia.

- Isso passa-te, vaticinou Paulo.- Tudo o que temos é Agora. As coisas

essenciais são simples – Catarina sol-tava ideias tão rapidamente quanto desaparecia de improviso.

- Esta associação tem barbatanas para nadar - Fernando era bom de dar abra-ços e isso, de certo modo, salvava-nos.

A vida às vezes é como um jogo brinca-do na rua, acontece de repente. O que distingue uma vida da outra é o mur-múrio do sonho, a distância a que cada um se coloca dele, o modo de fintar os

abismos. Nós vivíamos num tempo fora

do tempo, sem

nunca sabermos dos calendários de verdade, as datas eram isoladas: es-pectáculos de palco e de rua, grandes e pequenos, silenciosos ou delirantes, filmes e serões de conversa com vinho, petiscos e imaginação. Estávamos nessa distracção de risos e emoções. O vento voava devagar, as folhas das árvores faziam um som que era mais um segredo do que um baru-lho. O mar, que não se acaba nem se abre a não ser na ilusão das margens, desaguava serenamente na vila. No sítio dos voos pequeninos, as reu-niões fluíam por sabores bem diferen-tes, misturas que inventavam uma poesia crioula, sem ser muito picante na discussão, autênticos fóruns de reflexão, questionamento e prazer estético. Estreávamos gargalhadas, partilhando o momento e a tarde, os olhares e o silêncio, as ideias e o es-panto. Mais “fazedores” em criação, na Calheta (S. Jorge). Com uma certa ideia – alta – do ser humano e uma cer-ta ideia – larga – da arte. E confiança na nossa capacidade de juntar um pouco de sentido e de beleza à existência.

- Um risco bom, pensou Joana.No fim de uma actividade dupla – rega-ta e jam session, o céu estava à espera que as pessoas todas se recolhessem para poder ordenar às nuvens que co-meçassem a lançar uma grande chuva molhada. Vim a correr numa transpira-ção respirada. Contente. Ao entrar em casa a t-shirt estava tão alagada que voltei lá fora para deixá-la já pendura-da na corda, parei um pouco a receber a chuva sobre a cabeça, escutando o ruído que ela fazia cá fora no mundo e dentro de

mim também, queria ver quantos pen-samentos eu podia inventar – e pensar

– ao mesmo tempo que ouvia aquela música tipo filarmónica dessintoniza-da, ri. Caiu a carga de água que o céu tinha prometido pela cor e pelo vento soprado, como um embrulho gigante de redes de pesca que tivesse des-pencado da prateleira de um armador que estava lá muito em cima.

Porque casualmente dentro das pes-soas faz insularidade, felizmente tam-bém açoreanidade, seja o sonho um ponto cardeal eternamente possível. O futuro não é algo invisível que gos-ta de ficar muito à frente de nós mas antes um lugar amplo, uma varanda, talvez um bote baleeiro onde é preci-so enchermos cada pedaço de espaço com o riso do presente e todas, todas as aprendizagens do antigamente. O recomeço do movimento perpétuo.

- Uma casa está em muitos lugares. É uma coisa que se encontra.

Os Fazedores nas Ilhas de Bru-ma não são um conjunto

de pessoas mas uma multidão de

abraços, aber-tos à Vida.

Cristina

Lourido

O futuro não é algo invisível que gosta de ficar muito à frente de nósUm

manifesto cultural de Artes, Letras e Ideias

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Filósofos da Rua e do Mar encontro de homens que

gostam de contar estórias

é um tesouro acessível e disponível a todos os leitores

Fazendo Literatura

O opúsculo tem o título de “Filósofos da Rua”, de Au-gusto Gomes, foi requisitado na Biblioteca de Angra do Heroísmo, num destes dias tristes de inverno e de chuva grossa. A sua tiragem, à altura, foi de 1500 exemplares, tendo a impressão ficado concluída nas Sanjoaninas de 1984. Logo, pouco mais de um ano para completar trinta anos desde a sua edição. Este livro é assim feito de tantas histórias – com um pre-fácio de Emanuel Félix - e é um tesouro acessível e disponível a todos os leitores com a particularidade de que de cada vez que se puxa por uma linha des-tes “filósofos da rua” terceirenses, as suas estórias parecem não ter fim e, o que é mais curioso, podem os filósofos da terra desaguar no mar, como esta que vos que passo a contar. Por mero acaso, a atenção e o interesse concen-tram-se nas páginas 192/193, junto do “filósofo Cha-landra”. O velho marinheiro que usava boné, vestia camisola de lã grossa, calçava botas de cano e tra-zia sempre consigo um cachimbo na boca. Nascido a 2 de Abril de 1892, José Gonçalves de Sousa faria agora 121 anos, ficou conhecido por “Chalandra”, vi-veu na rua do armador, na freguesia do Corpo Santo, Angra do Heroísmo, e esteve emigrado na pesca da Lagosta em New Bedford, nos Estados Unidos. Re-gressado à sua terra natal, prestou-se ao transporte de passageiros dos navios que aportavam no cais de Angra. Os seus barcos (“Angra”, “Humberta”, “Vou-ga” e “Porto de Pipas”) ficaram conhecidos pelo seu

inexcedível asseio, sendo publicamente reconheci-do por ter efectuado inúmeros salvamentos de pes-cadores em perigo, como terá acontecido com o sal-vamento de 23 de Janeiro de 1929, com o seu barco

“Angra”, quando arriscou socorrer e posteriormente salvar os tripulantes do lugre “Amphitrite I”, enfren-tando a mais horrível das tempestades e a fúria do mar. Conhecido ainda pela sua abnegação e altruís-mo, Chalandra terá sido imprescindível na tarefa de recuperação da âncora do contratorpedeiro “Vou-ga”, bem como na ajuda que efectuou nas pesquisas marítimas no sítio onde se despenhou um avião da Base, tendo recebido dois louvores atribuídos pela Capitania do Porto de Angra, inclusivamente foi ga-lardoado pela “Medalha do Rei George VI”, aquando da presença inglesa na Base Aérea 4. O contista Augusto Gomes, mestre na arte de con-tar histórias, de as viver e de as dar a conhecer aos outros que gostavam de as ler, ficou surpreendido quando soube que um escritor dinamarquês Knud Andersen fez referências a Chalandra num dos seus livros, o mesmo acontecendo com Vitorino Nemésio em “Mau Tempo no Canal”. Maior surpre-sa teve quando, trinta e cinco anos depois e, num encontro acidental numa esplanada do Largo Prior do Crato, entabulou conversa com quatro iatistas dinamarqueses dos onze tripulantes do iate de re-

creio “Nana” fundeado na baía de Angra, tendo des-coberto então que o livro não só era uma referência para os velejadores como era à altura um raro e pre-cioso exemplar com indicações sobre o arquipélago açoriano disponível nas bibliotecas daquele país nórdico. Infelizmente, e, com muita pena nossa, não há nenhuma tradução para português desse livro editado em 1948, com o título “Med Sejlerin til Azo-rern” – “Com um Veleiro Até aos Açores”, pela editora dinamarquesa Gyldendal.

Augusto Gomes transporta-nos através dos “Filó-sofos de Rua” até Chalandra e Knud Andersen, dois homens que pautaram a sua vida pelo amor corajoso e devotado ao mar. Sem este seu entusiasmante re-lato nunca saberíamos que um escritor-velejador di-namarquês ofereceu um exemplar desta sua obra à família do Chalandra e que agradeceu em dedicató-ria “a proverbial hospitalidade terceirense”. Contudo, uma pergunta marinheira impõe-se: o que terá es-crito Knud Andersen em 1948 sobre a Ilha Terceira e…os Açores ?

Texto de Fernando Nunes

Ilustração de Paulo Branco

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Cartas do exílio VIIIir do Faial à China e voltar Fazendo Viagem

Tendo agora finalmente chegado ao outro lado do continente, após 15.000 km de vias férreas, está na altura de regressar (afinal era a viagem que impor-tava e não o destino), está na hora de voltar ao Faial. Seria aborrecido agora, apanhar o mesmo comboio para trás (para não falar num avião), optei então por uma passagem num barco saindo de Shanghai. O que não estava planeado era o barco sair quatro horas antes de eu chegar, sem mim. O próximo porto onde irá atracar é Yantian, 1500 km a sul, então para garantir que chegava a tempo de o apanhar e não atravessar meio mundo seguindo o barco, Singapu-ra, Malásia, Suez, Líbano, Malta... já me imaginava apanhando-o em Valência só para depois desembar-car em Algeciras, porto destino final… Enfim, para evitar tudo isto admito que apanhei um avião.

Aviões são mais velozes que comboios, mais velozes que barcos, e ao final do dia encontrava-me num ae-roporto. Os aeroportos têm, além de juntar pessoas que querem ir a algum sítio, nada em comum com as estações de comboios. Não existem as salas de espera cheias de pessoas mas sim salas espaçosas, os passageiros encontram-se vestidos com as suas

melhores roupas em vez de ser as mais confortáveis, em vez de carregarem sopas instantâneas andam com malas de escritório de cabedal. Mas mais signi-ficante que tudo isto, é que está TUDO escrito em Inglês. Mas os aeroportos parecem iguais no mundo inteiro, as estações de comboios não.Apenas quatro horas mais tarde cheguei a Shatou-jiou (nem vale a pena procurar no mapa que não vai encontrar, fica perto de Yantian, que também não irá encontrar, bem, fica na área de Hong Kong), uma ci-dade onde, pelas reações das pessoas na rua, nunca viram um rosto ocidental nem nunca ouviram uma palavra inglesa. Isto melhorou a minha capacidade de linguagem de gestos por um pouco. Sem poder conseguir ler uma “ementa sem foto” e recusando-

-me a comer cabeça de peixe, pés de pato ou pénis de cabra, eu confiei novamente nos vendedores de rua que cozinhavam mesmo à minha frente. Creio que um inspector de higiene da U.E. poderia des-maiar ou mesmo cair morto se visse o estado das panelas e frigideiras utilizadas, mas como toda a comida é muito picante e temperada, assumo que quaisquer possíveis bactérias são mortas após a digestão. O barco, chamado CC Cendrillon, registado em Lon-dres, é um porta-contentores, tem um comprimen-to de 334m LOA (Cumprimento Total), 8500 TEU (Peso), tem como EBT (estimado tempo de atracar) 21.00 horas e como EDT (estimado tempo de parti-da) 06.00 horas na manhã seguinte - mas primeiro tenho que encontrar o porto, difícil enquanto só se avista montanhas e não estando nem perto dum chinês fluente.

Uma rampa de 54 degraus subindo ao longo de uma grande parede de ferro azul escura; uma vez no con-vés dei por mim olhando para quase 20 rostos curio-sos, mirando-me tão ansiosos como eu a eles. Mãos foram estendidas para serem apertadas mas antes de chegar à terceira mão fui chamada para dentro. Ali, um homem com aspecto oficial (pelos menos tinha estrelas nos ombros e não estava usando um fato-macaco) apresentou-se como Oficial Chefe, desculpou-se que não tinha mais tempo e mandou o oficial de vigia para me levar até ao convés F. De elevador, claro. Uma vez lá em cima, outro oficial, apresentou-se como o oficial designado, apanhou a minha bagagem e levou-me até o meu camarote, indicou-me o interruptor de luz, o frigorífico, o tele-fone… e se necessita de alguma coisa, ligue. Fecha a porta e vai-se embora. Desde o momento em que meti o pé no primeiro degrau na rampa até ao mo-mento que a porta do meu camarote se fechou não tinham passado mais que dois minutos. Sentia a mi-nha cabeça a andar à roda com todos os diferentes títulos de oficiais e de todos os homens porque ob-viamente não era apenas a única passageira a bordo, mas também a única mulher.

Ruth Barthenschlager

não estava planeado era o barco sair quatro horas antes

um inspector de higiene da U.E. poderia desmaiar ou mesmo cair morto se visse o estado das panelas e frigideirasutilizadas

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Ser Dador de Medula Óssea

Fazendo Saúde

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Uma Opção Para Dar VidaO Centro Nacional de Dadores de Células de Medula Óssea, Estaminais ou Sangue do Cordão (CEDACE) encontra-se sediado no Centro de Histocompatibili-dade do Sul, tendo como uma das actividades coor-denar e organizar o recrutamento e aconselhamen-to de dadores de medula óssea (M.O). Em 2007 o Serviço do Imunohemoterapia do Hospi-tal da Horta estabeleceu uma parceria com o CEDA-CE com a finalidade de angariar novos Dadores pos-sibilitando assim aos residentes das ilhas do Faial e Pico contribuírem com a sua dádiva.

É saudável? Tem mais de 50kg?Tem entre 18 a 45 anos?Se reúne estas condições dirija-se ao Serviço de Imunohemoterapia para efectuar a sua inscrição e tornar-se Dador de M.O.

Cuidando da Saúde da comunidadeA discriminação é uma “epidemia de mentalidade” que facilmente se propaga através das atitudes, dasconversas, da opressão e da imposição de papéis e padrões sociais. É um vírus que tem grande poten-cial de desenvolvimento na mentalidade de cada um de nós, e todos nós já nos demos conta a ter reaçõesde discriminação em algum momento das nossas vidas. Todos nós já sofremos com a discriminação, tenhamos sido alvo dela ou tenhamos passado o

“vírus mental” para outras pessoas. É normal; viver em sociedade tem destas coisas. É preciso ter noção disso para poder combater este tipo de “epidemias de mentalidade” e fortalecer a nossa imunidade contra estes sentimentos retrógrados, opressores e destrutivos.

Existem vários tipos de discriminação contra vários tipos de características humanas, mas neste caso vou falar daquela que oprime a identidade e a orien-tação sexual de cada um de nós. Estou a falar da Homofobia, termo generalizado para a discrimina-ção contra homossexuais, e neste caso vou falar de toda a comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgéneros/Transexuais, etc).

A comunidade LGBT representa uma fatia muito considerável da sociedade açoriana, como em todo o mundo. Contra esta comunidade, existe ainda muita homofobia; os relacionamentos homossexu-

ais ainda não são vistos com a mesma naturalidade que os heterossexuais. Para que este desequilíbrio social comece a desvanecer-se, para que a socieda-de comece a tornar-se mais saudável, sem discrimi-nação e sem desigualdade de direitos entre os seus cidadãos, para que comecemos a erradicar efetiva-mente esta epidemia que prejudica a vida de muitas pessoas, é preciso que dentro da comunidade LGBT comece também a deixar de existir discriminação! Estou a falar de algo que sinto ainda existir muito na comunidade LGBT açoriana, uma comunidade que ainda não está suficientemente unida, a meu ver. É perfeitamente compreensível, pois está a dar os seus primeiros passos para fora do armário…

Dentro da comunidade LGBT açoriana ainda vejo existir muita discriminação, muito isolamento. É ainda uma comunidade muito separada dentro de si mesma. Isto não é bom; não é saudável. Uma co-munidade LGBT deve ser tolerante e reconfortan-te para todos. É preciso ter noção disto e começar a fortalecer a comunidade LGBT nas nossas ilhas; quando mais saudável ela for, mais tolerância terá dentro de si, mais unida será. A nossa comunida-de LGBT é ainda uma criança muito jovem. Por isso, protejam-na: sejam tolerantes uns com os outros e unam-se. É fundamental. Só assim se começa a for-talecer uma pessoa, uma família, uma comunidade e, por fim, uma sociedade.

Falem uns com os outros! É fundamental! Compre-endam cada diferença; por trás de cada diferença encontra-se um coração e um sentimento seme-lhante ao nosso! Não discriminem quem é um poucodiferente de vós só porque se veste de forma dife-rente, só por que vive de forma diferente ou porqueama de forma diferente. Cada um de nós é respon-sável por eliminar a discriminação, a desigualdade dedireitos e a solidão que se instalou na vida de muitas, mas muitas pessoas que vivem profundamente iso-ladas em si mesmas, aqui, nas nossas ilhas, nas nos-sas cidades, nas nossas famílias. E a solidão (quando nos sentimos sós no meio da multidão) não é, de todo, recomendável… para ninguém. Alexandra Boga

INCRIÇÃO – Consiste no preenchimento de um ques-tionário, que será avaliado por um médico que selec-ciona os dadores aptos para posterior colheita de análises.A colheita será enviada juntamente com o respecti-vo questionário para o Centro da Histocompatibili-dade do Sul onde se realizará a sua tipagem e conse-quentemente registo na base de dados de Dadores de M.O.ACTIVAÇÃO – ocorre quando um grupo de Dado-res com características tecidulares idênticas a um determinado doente é seleccionado para exames laboratoriais de compatibilidade. O Dador será con-tactado pelo CEDACE ao qual será efectuado um questionário telefonicamente e informado que de-verá dirigir-se ao Serviço de Imunohemoterapia para efectuar nova colheita. Se existir uma perfeita se-

melhança entre doente/ Dador, prossegue-se para a recolha de M.O.A recolha de células progenitoras poderá ser efectu-ada por dois processos diferentes:

•Colheita do interior dos ossos pélvicos; •Colheita de sangue periférico, sendo este o proces-so mais comum. O Dador tem o direito de decidir de que forma pre-tende efectuar a dádiva.Desde 2007 até ao momento o Serviço de Imuno-hemoterapia do Hospital da Horta angariou 1223 inscrições das quais 1047 encontram-se inscritos na base de dados de Dadores de M.O, 78 eliminados e 98 não compareceram para efectuarem a colheita. Dos potenciais Dadores o serviço registou 34 acti-vações das quais 3 foram efectivamente Dadores de Medula Óssea. Filomena Maduro

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Há uma Identidade Açoriana?No contexto actual, as Tecnologias de Informação desempenham um papel fundamental na divulga-ção dos usos e costumes dos povos. Hoje é possível conhecer o modus vivendi de culturas que distam milhares de quilómetros. Seria, por isso, expectá-vel que se verificasse uma mistura de culturas, em que cada povo adoptaria determinados hábitos ou formas de estar de outros, por se identificar com eles. Verificar-se-ia, assim, uma perda de identidade, primeiro a nível local, depois a nível regional e até a nível nacional.No entanto, verifica-se uma vontade das popula-ções preservarem aquilo que é genuíno e intrinseca-mente seu, apesar da aquisição do conhecimento de novas formas de estar e novas culturas.Os Açores são particularmente interessantes neste aspecto. Poderá dizer-se que, analisando o caso dos Açores, é possível extrapolar essa análise para uma dimensão macroscópica.Começando pela identidade açoriana em geral, ve-rifica-se que há claramente uma cultura que é co-mum a todo o Portugal. Um visitante dos Açores não terá dúvidas que está em Portugal. No entanto, há diferenças claras, motivadas por diversos factores, como a colonização diversificada, a insularidade e a própria evolução da cultura local. Há uma cultura comum aos insulares, caracterizada pela necessi-dade de entreajuda para compensar as vicissitudes originadas pelo isolamento. Obviamente que, apesar dessa característica, cada arquipélago tem caracte-rísticas intrínsecas que condicionam a cultura local,

como o clima ou a origem da colonização. Pode con-cluir-se que há então uma identidade nacional e uma identidade regional própria.A percepção da cultura Açoriana é entendida pelos Continentais geralmente como um todo. No entanto, é claramente notória uma diferença cultural entre cada ilha. Mais uma vez, os factores distintos que levaram ao povoamento de cada ilha, bem como as diferentes condições naturais, condicionaram o seu modus vivendi. Cada ilha tem, portanto, a sua pró-pria cultura e a sua própria personalidade. Podemos generalizar e apelidar os micaelenses de “desconfia-dos” e “frios”, os terceirenses de “festivos” e “desli-gados” ou os faialenses de “elitistas”. Pese embora o facto de que as generalizações estão sempre su-jeitas a erros por falta de uma análise ponderada e amostragem insuficiente, a verdade é que existem razões histórico-sociais para justificar estas dife-renças.A Terceira sempre foi um local de passagem, funcio-nando como um entreposto dos navios provenientes das Índias, África e Américas. Como tal, as relações de amizade eram rápidas, intensas, mas efémeras. Já em São Miguel, o convívio entre as gentes era por um período maior. Quem vinha, vinha para ficar. Dessa forma, isso obrigaria ao novo elemento pres-tar provas em como era merecedor da confiança dos locais. Por outro lado, é habitual dizer que a amizade com um micaelense dura para a vida toda.O Faial caracteriza-se por ser um porto de passagem mas mais vocacionado para embarcações recreati-vas, envolvendo um certo tipo de pessoas com um nível cultural elevado. É também notória a quantida-

Cada ilha tem, portanto, a sua própria cultura e a sua própria personalidadede de locais ilustres que são figuras importantes na nossa História, como o nosso primeiro Presidente da República.Obviamente que a globalização contribuiu para uma homogeneização da cultura e características sociais, mas a identidade local nunca deixa de estar presen-te.Há que notar que, mesmo dentro de cada ilha, há também diferenças a assinalar entre freguesias ou localidades. Estaríamos então a fazer um estudo em escala microscópica, o que seria certamente motivo para uma nova análise dedicada.

Nuno Sardinha

ilustração Carlos Carreiro

ilustração Inês Ribeiro

Fazendo Crónica

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Entrevista com o Morcego

Victor Rui Dores“Nome”

Victor Rui Dores

“Idade”54 anos

“Profissão”Professordo ensino

secundário

O que é que pequeno-almoçaste?O habitual: um sumo de laranja, uma tosta com doce de figo e um brioche.

Se o Conde Drácula viesse cá às ilhas onde o levarias?Ao restaurante “A árvore” comer um cozido à portuguesa. Qual é a semelhança entre o Pico e o Faial?São duas ilhas irmãs que se odeiam com ternura. Se não gostas de chuva o que é que estás aqui a fazer?Estou à espera do comboio na paragem do autocarro.

Na escola que outra “disciplina” deveria ser obrigatória?Poesia. Porque é que tens alguns projectos na gaveta?E quem é que te disse que os tenho?

O que é que mais odeias na internet?O facebook. Aquilo é uma coscuvilhice pegada. Que forma de arte é que te aguça os caninos?

Todas as artes de palco. O que é que gostavas de ter nascido?Gostava de ter nascido gnu. Gostavas de ir morrer longe?Sim, tenciono ir morrer a Katmandu daqui a 40 anos. Se não for antes.

Tomás MeloGatafunhos

Fazendo Entrevista

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Horários

Horta — Madalena 7h30 10h30 13h15 15h15 17h15

Madalena — Horta8h15 11h15 14h00 16h00 18h00

Cedros — Horta7h00; 12h45; 16h00;Sábados: 8h00

Piedade — S. Roque — Madalena6h15; 13h30;Domingos e feriados: 13h15

Piedade — Lajes — Madalena5h45; 12h55;Domingos e feriados: 12h55

Madalena — Lajes — Piedade10h00; 17h45;Domingos e feriados: 9h30

Horta — Cedros11h45; 15h20 (Hospital); 18h15;Sábados: 13h15

P. Norte — Horta7h00; 12h45;Sábados: 8h00

Madalena — S. Roque — Piedade10h00; 17h45;Domingos e feriados: 9h30

Horta — P. Norte11h45; 17h30;Sábados: 13h15

Índice

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Fazendo CrónicaUma Noite no Morro

Fazendo CinemaFestival Cine’ECO

Fazendo ArteAzores Fringe

Fazendo TeatroAlmada Negreiros

Fazendo TeatroTeatro de Giz

Fazendo MúsicaPaulo Cunha

Fazendo MúsicaTesouro

Fazendo MúsicaSusana Coelho

Fazendo MúsicaClaus Nymark

Fazendo MúsicaCharamba

Fazendo LiteraturaMontra de Ler

Fazendo CrónicaAos Fazedores

Fazendo LiteraturaDa Rua e do Mar

Fazendo ViagemCartas do Exílio VIII

Fazendo SocialCuidando da Saúde

Fazendo SaúdeSer Dador de Medula

Fazendo CrónicaIdentidade Açoriana

Fazendo EntrevistaCom o Morcego

Gatafunhos

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[email protected]


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