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FAZENDO 95o boletim do que por cá se faz gratuito dezembro 2014

se cá não se fizesse fazia-se cá ski

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Sumário Ficha Técnica

CrónicaAntónio Dacostapor carlos bessa.9504

LiteraturaConjunto Homem, Jácome Armas por pedro lucas.9506

CiênciaCaça à Térmitapor orlando guerreiro.9508

ArquitecturaAuditório nas Lajes do Picopor rui pinto.9514

CinemaHistória dos Açorestiago rosas por fernando nunes.9518

HistóriaPatrimónio Baleeiropor francisco henriques.9522

DançaLeva de Cheiapor tiago valim.9528

ilustração: Phlegm

Directoresaurora ribeiro

tomás melo

Coordenadoresalbino de pinhofernando nunes

rita mendessilvia lino

Colaboradoresana calado

ana lúcia almeidacarlos bessa

eduardo isidrofrancisco henriques

gonçalo cabaçahelder marques da silva

joel netoluís andrade

miguel macheteorlando guerreiro

pedro lucasrui pinto

sara soaressean patontiago valimtiago rosas

vitor vargas

Revisãosara soares

Paginaçãotomás melo

Projecto GráficoilhasCook

p r o p r i e d a d e assoc cultural fazendos e d e rua conselheiro medeiros nº 19

9900 hortap e r i o d i c i d a d e mensal

t i r a g e m 500 exemplaresi m p r e s s ã o o telégrapho

registado na erc com o nº125988

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Editorial

ilustração: Happycentro

1995

As capas dos jornais tentam moldar a opinião pública?Então a capa do Fazendo é assim.

Tal como há diferentes tipos de filmes há também diferentes tipos de jornais, desde os documentais aos de ficção, passando pelos cómicos e pelos roman-ceados. Se a maioria da imprensa está mais dedicada em desviar as atenções do que realmente importa, no Fazendo procuramos o contrário, contabilizamos peças de teatro e não furtos de velocípe-des. O Jornal Fazendo procura escrever os Açores aqui e agora.

Os jornais sempre tentaram moldar o mundo e quase sempre com sucesso. O Fazendo assume-o e sem interesses económicos vai continuar a ser a voz e a escrita da comunidade e da cultura açoriana.

Após treze anos na reitoria da Universi-dade dos Açores, o Professor Doutor An-tónio Manuel Bettencourt Machado Pi-res publica nesse ano do século passado o livro: “O Homem Açoriano e a Açoria-nidade”, escrevendo parágrafos como este: “A ilha em que nascemos é um eixo do Cosmos, uma pequena-pátria, um mundo de referências matriciais [...], um ponto de regresso ideal, uma Ítaca em que cada um é o Ulisses da sua pró-pria e secreta mitologia”. A RTP Açores exibe o telefilme “O Feiti-ceiro do Vento” de José Medeiros. Pedro de Merelim, pseudónimo de Joaquim Gomes da Cunha (São Pedro de Mere-lim, 1913 – Angra do Heroísmo, 2002), historiador e etnógrafo dos Açores, re-edita “Os Hebraicos na ilha Terceira”, súmula anteriormente publicada na

Os jornais sempre tentaram moldar o mundo e quase sempre com sucesso.Tomás Melo

Fernando Nunes

FAZENDO 95Tal como nos anos anteriores, o jornal reinventa-se, mudando toda a sua ima-gem, alguma da sua estrutura, não mu-dando nada dos seus ideais.Nesta sétima temporada o Fazendo di-minui em tamanho mas aumenta em conteúdo. Talvez chame menos a aten-ção no balcão do café (por ser mais pe-queno) mas o leitor pode dedicar-lhe mais tempo, passar mais páginas, ler mais letras gordas ou mesmo ler o Fa-zendinho em voz alta. Tudo para que possamos dedicar-nos a aprofundá-lo, sem nos ficarmos pelas aparências.

Após um legado de vários extraordi-nários designers o Fazendo foi agora desenhado pelas ilhasCook que tentam aproximar o jornal do leitor e dos cola-boradores, criando espaços para todos. As ilhasCook são designers multidisci-plinares: filmam, desenham, projectam,

revista Atlântida (1968) e César Gabriel Barreira publica “Um Olhar sobre a Cidade da Horta”, editado pelo Núcleo Cultural da Horta.Esse é também o ano em que a Áustria, a Suécia e a Finlândia se juntam à União Europeia, desaparece o conhecido de-senhador Hugo Pratt, e o poeta irlandês, Seamus Heaney, vence o prémio Nobel da Literatura.

A ilha em que nascemos é um eixo do Cosmos [...] um ponto de regresso ideal, uma Ítaca em que cada um é o Ulisses da sua própria e secreta mitologia

escrevem, fotografam, educam. Têm de-senvolvido conceitos, estruturas, objec-tos, espectáculos e tudo o que promova a comunicação entre as gentes.A grande novidade é o suplemento, o Fazendinho, para os mais novos lerem, desenharem, interagirem.

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sair da ilha permitiu-lhe entrar em contacto com outras maneiras de pintar, particularmente com artistas que estavam mais ou menos a par de tendências e correntes novasCarlos Bessa

olhar, esquecer, esperarno centenário de

AntónioDacosta Os jornais enchem-se diaria-

mente de ressentimentos e malqueren-ças, de queixas e desastres. Mas também podem ser um repositório de alegrias, mesmo que breves. Hoje, gostaria de partilhar o meu agrado por dois eventos locais recentes, relacionados com Antó-nio Dacosta (1914-1990), figura maior da arte portuguesa: o lançamento do livro António Dacosta. A Clarividência da Saudade, de Assunção Melo e a inau-guração da exposição António Dacosta, um pintor do século XX, exemplarmen-te comissariada por Francisco Pedroso Lima, patente ao público no Museu de Angra do Heroísmo. E gostaria de o fa-zer parafraseando o pintor, quando, ao referir-se (1943) a Mário Eloy, diz “Nada de equívocos. É preciso olhar, esquecer e esperar”. Porque a expressão parece assentar a Dacosta que nem uma luva. Soube olhar, esquecer e esperar. E nes-se entretanto condensou uma força que transbordou em pintura e contaminou as últimas décadas do século passado, dando expressão a um universo pesso-al. Um universo criado, em parte, a par-tir de uma mundividência local, tercei-rense, que começaria a tomar forma aos

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Embora tenha pintado toda a vida, os quadros do período entre 1947 e 1975 são escassos, evidenciando uma necessidade interior de maturação

vinte e poucos anos, depois de ter saído da ilha (1935).

Partir deixa sempre em nós, portugue-ses, uma espécie de vazio a que chama-mos saudade. Uma saudade carregada de imagens, cheiros e emoções. Dacosta transfigurou-a, pintando a ilha sem re-curso a topos naturalistas, numa época em que eles eram, ainda, recorrentes no nosso país. Primeiro, com laivos sur--realizantes, depois com a força mítica da memória, numa leveza que se abeira do mundo encantado da infância. Anos mais tarde, poria em verso parte dessas mesmas inquietações: “Tudo verde até ao mar / (…) A redonda cúpula de vidro azul // De súbito / Estas flores o cheiro a pedra queimada / (…) e já lembrando ao longe / O que agora aqui é fresco e ver-de / E amargo como a baga de faia / Que menino meti na boca e trinquei.” (A Cal dos Muros, 1994).

Sair da ilha permitiu-lhe entrar em contacto com outras maneiras de pintar, particularmente com artistas que estavam mais ou menos a par de tendências e correntes novas. E va-mos encontrá-lo ligado ao surrealismo português, tendo sido pioneiro desse movimento em Portugal, juntamente com António Pedro, com quem expõe, em Lisboa (Ex Poem, 1940). Mau grado o incêndio (1944) que levou a maior parte desses quadros, salvaram-se alguns des-se período, que nos mostram o contágio entre os dois Antónios, o jovem Dacosta e o maduro Pedro. O bastante, mesmo assim, para deixar entre os que vieram a seguir uma aura, aumentada certa-mente pela sua ida, em 1947, para Paris.

O surrealismo que nos nossos dias é so-cialmente bem remunerado, em parte pelos (e)feitos dalinianos, era, no Portu-gal de então, uma corrente que entrava em conflito com a estética dominante. Porque nesse tempo ainda havia disso,

estética dominante. Imperava um gosto académico, fechado nos processos e mo-dos do século XIX, de pendor naturalis-ta, quando não cheio de laivos românti-cos. Que contaminava não só a pintura como a literatura.

Que sabia Portugal das vanguardas? Quase nada. De norte a sul, passando pelas ilhas, vivia-se um atraso econó-mico, social e cultural quase atávico, que Eça retratara e ironizara já no século XIX e que merecera de Antero um poderoso libelo. Mas, em tirando a geração do Orpheu, que explodira em Lisboa (1915) com força de escândalo, o país não tinha saído da I Guerra Mun-dial rumo ao desenvolvimento, apenas conseguira a censura, o medo, a fome, a polícia.

Dacosta atraca, em 1935, numa Lisboa em plena afirmação do Estado Novo, que quererá glorificar-se através de uma bem montada operação de propa-ganda chamada Exposição do Mundo Português (1940). Onde, aliás, lhe recu-sam colaboração. Felizmente, pôde sair e rumar à capital das artes. Não sem que, antes, o Secretariado de Propaganda Nacional o tivesse colocado na categoria de “esperança”, como diz ironicamente Mário Cesariny em A Intervenção Sur-realista (1966), ao atribuir-lhe, em 1943, o Prémio Amadeo de Souza-Cardoso.Paris vai, no entanto, exercer nele um efeito restritivo: “foi uma desilusão. Pela primeira vez senti-me desterrado. Vivia--se a ressaca da guerra em condições terríveis”. Aos poucos, substitui a pintu-ra pela escrita.

Embora tenha pintado toda a vida, os quadros do período entre 1947 e 1975 são escassos, evidenciando uma necessidade interior de maturação. A pintura e o desenho mantiveram-se apenas residualmente, fruto da relação com amigos e parentes. Colabora com

jornais e deambula pela capital pari-siense, convivendo com artistas e escri-tores, servindo muitas vezes de guia aos compatriotas recém-chegados. A escrita é um modo de se manter ligado à arte, refletindo quer sobre o que se expunha em Portugal e noutros lugares, quer so-bre as mais variadas manifestações ar-tísticas. Num registo que tem muito do baudelairiano flâneur, ou, como diz Mi-riam Dacosta, “Gostava da vida, de uma certa preguiça da vida…”

Depois, casa-se, divorcia-se, escreve, convive, secretaria, até que conhece Mi-riam e lhe nascem dois filhos. Aos pou-cos, a pintura regressa e com tal inten-sidade que Dacosta se torna um nome incontornável da história da arte portugue-sa do século XX. Com uma obra que passa do pesadelo e da ameaça iniciais para uma serenidade feliz, lumino-sa, de matriz matissiana. Uma obra que se mostra em Angra e em Lisboa, no ano do centenário do seu nas-cimento. E que me-receu a Assun-ção Melo um belo estudo, editado pela DRC.

crónica

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O que é que pequeno-almoçaste?Dois kiwis em casa e no café uma bola saloia com queijo e galão.

Se o Conde Drácula viesse cá às ilhas onde o levarias?Ui, O Conde Drácula... a lado nenhum, dava-lhe um mapa e o horário do cru-zeiro do canal.Talvez lhe indicasse um dentista e um cabeleireiro.

Qual é a semelhança entre o Pico e o Faial?Ilhas: em poucas horas voltas ao local de partida.

Se não gostas de chuva o que é que es-tás aqui a fazer?Neste momento não estou, mas gosto do facto de ser claramente sazonal, o verão para estar com os outros e o inverno re-colher e desenvolver projectos impossí-veis em dias de sol.

Na escola que outra “disciplina” de-veria ser obrigatória?Mais disciplinas? Acho que deviam ser menos e mais abrangentes. A escola de-via ser mais para resolução de proble-mas e os problemas não se separam em blocos de 45 minutos uma vez por se-mana. É muito fácil falar mas garantida-mente que não era mais uma disciplina que faria diferença. Os processos mais construtivos que assisti foram sempre resultado de entusiasmo de “profs”, de alunos, de juntar e não de separar.

NomeGonçalo Cabaça

Idade41

Profissão Artista de

Efeitos Visuais

Entrevista com o Morcego

Porque é que tens alguns projectos na gaveta?Porque uns são mais importantes do que outros. :)

O que é que odeias na internet?Twitter e Pinterest - dispersão

Que forma de arte é que te aguça os caninos?A que me faz ter vontade de parar de fazer o que estava a fazer para experi-mentar algo diferente. É muito eclético isto dos estímulos, ultimamente dança.

o verão para estar com os outros e o inverno recolher e desenvolver

projectos impossíveis em dias de sol

Tomás Melo

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o verão para estar com os outros e o inverno recolher e desenvolver

projectos impossíveis em dias de sol

Capítulos

Poderia começar por dizer que os Capí-tulos vão ser apenas mais uma compila-ção de poesia, mas o facto e de facto não é só nem apenas isso, ora vejamos; dez autores, dois poemas (originais) por au-tor, quatro publicações ao longo de um ano e trezentos exemplares por publi-cação. A tudo isto serão adicionados fi-cheiros áudio com as vozes dos próprios poetas. Este não é um qualquer projecto capitalista de uma editora na ânsia de engordar os seus capitais com a cultura de todos nós.

Os Capítulos são um conjunto de vonta-des e confluência de energias criativas ligadas à escrita e aos dizeres poéticos, onde as inspirações mais ou menos boé-mias se tornam realidade e a teia marí-tima que separa de forma tão cáustica o Arquipélago e se transforma numa au-to-via de palavras que no futuro serão recordadas e quem sabe também canta-roladas na brisa oceânica deste Atlânti-co imenso. O objectivo deste projecto é então a pura, simples e sincera divulga-ção dos escritores “sem nome” que habi-tam nestas ilhas arquipelágicas.Como nota de término, acrescento que estas publicações estão de páginas aber-tas a todos aqueles que queiram divul-gar as suas palavras, sentimentos... Os interessados poderão enviar as suas obras para o seguinte email: [email protected].

A divulgação da Poesiafeita nos Açores.Luís Andrade

intervenção

O que é que gostavas de ter nascido?Não sei como responder a isto, só me ocor-re “Zé Brasileiro, Português De Braga”.

Gostavas de ir morrer longe?Longe dos pensamentos dos outros? Muitos animais afastam-se para morrer, para não atrair predadores ao resto da manada, para não lhes interromper o movimento. A maior parte das vezes deve ser o grupo que os expulsa mas eu gosto da ideia de um indivíduo se afas-tar por si próprio, se apaziguar com o fim, dar sossego ao instinto de sobrevi-vência e meditar morte a dentro

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A recente edição pela Companhia das Ilhas, com as ilustrações do pintor Pedro Solá e uma “embalagem” mais jeitosa que as tais folhas agrafadasPedro Lucas

ConjuntoHomemjácome armas

Para abrir, isto não é um ar-tigo de crítica. Nem o Fazendo se dá a ares de espaço para resenhas, nem este escriba tem bagagem intelectual para uma análise crítica aprofundada a este livro, não obstante o facto de ter o seu autor em grande estima pessoal e condi-ções praticamente nulas para escrever sobre o seu trabalho com um mínimo razoável de objectividade.

A primeira vez que li Conjunto Homem, quando o Jácome o acabou de escrever há alguns anos, entusiasmou-me sobre-tudo o humor acutilante da sua escrita e a refnada crítica ao New Age que está subjacente, luta em que nos unimos passados alguns anos da puberdade. A minha reduzida capacidade de analisar o objecto que tinha em mãos na altura (na verdade eram só algumas folhas agrafadas) deixou-me ao lado de outras ideias bem mais interessantes que o livro contém. Felizmente a recente edi-ção pela Companhia das Ilhas, com as ilustrações do pintor Pedro Solá e uma “embalagem” mais jeitosa que as tais fo-lhas agrafadas, deu-me a oportunidade de o reler com uma perspectiva mais alargada (e conhecimentos que, embora muito superfciais, sempre me permi-tem identifcar melhor as referências às ideias dos “ilustres” a quem o livro é dedicado).

Esses ilustres são Gonçalo M. Tavares, António Damásio, Godel, Wittgenstein,

literatura

ilustração: Pedro Solá

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O bicho é difícil de enfiar em qualquer prateleira, e não perde coerência por isso

Russel, Oliver Sacks e Freud, e o Jácome garantiu-me que foi a eles a quem rou-bou as ideias. Apesar desse saque esta-mos perante algo muito diferente de uma mera colagem de ideias alheias. A reciclagem é total e, embora formalmen-te construído como uma demonstração matemática, está (felizmente) muito longe da tradição textual académica. Trata-se, na forma, de uma demonstra-ção lógica, constituída por proposições, axiomas, teoremas, etc, estilisticamen-te entra no plano poético (por vezes da parábola), e tematicamente no flosófico, mas na realidade todas estas regras são subvertidas. Essa é uma das valências, objecto híbrido por natureza o bicho é difícil de enfiar em qualquer prateleira, e não perde coerência por isso.

Conjunto Homem está dividido em três partes - Lógica, Percepção e Sentimen-to - e usa dois personagens principais como estereótipos - um matemático e um guru - que, pela sua visão redutora do mundo, vão sendo maltratados ao longo das páginas (com, diga-se de pas-sagem, excelente efeito no domínio da exemplifcação). Há um movimento que se vai criando durante o livro, parte da frieza racional no início e desemboca nos afetos. Os artifícios formais da de-

monstração e o encadeamento sequen-cial dos vários quadros que nos vão sendo apresentados cria, inicialmente, a ilusão de uma rigidez matemática, ilu-são essa que se desconstrói a si própria até que nos desembrulha um ideal pro-fundamente humanista. Uma apologia às relações humanas e do homem com a natureza, que se move entre os extre-mos do binómio razão/sentimento.

Neste sentido há um paralelo do livro do Jácome com a obra principal de Baruch Espinoza, Ética, que é inevitável (para lá das mais óbvias parecenças formais). O livro de Espinoza também se desen-volve como uma demonstração geomé-trica. Começa com conceitos “simples” sobre Deus e a natureza que se vão construíndo e complexifcando cada vez mais, chegando cada vez mais próximo duma descrição filosófica do que é o ser humano até que atinge aquilo que era a intenção inicial do autor: uma justifi-cação lógica do dever ético; um apelo racional à ética nas relações humanas. O do Jácome consegue ser mais poético. Esconde quase sempre toda a bagagem flosófica e ciêntífca da qual parte, e dis-solve-a por várias camadas de signifca-do. No fm chega a algo muito simples, e muito bonito.

ambiente

FalandodeAmbiente

Encontrar uma página de ambiente no que é na sua essência um jornal cultural pode parecer estranho a al-guns. O que é que arte e cultura têm a ver com ambiente? E porque ha-veríamos de nos preocupar com coi-sas como plástico no que parece ser uma ilha bastante orientada para a preservação dos seus ambientes quase pristinos?

É muitas vezes a pincelada do artis-ta, a caneta nas mãos do escritor ou as palavras do actor no palco que trazem à luz a hipocrisia das boas intenções humanas. A vasta e varia-da vida oceânica, os montes verdes e arredondados e os rudes restos da acção vulcânica que são o pano de fundo do Faial e dos Açores podiam dar-nos a falsa impressão de que tudo está bem neste pequeno peda-ço de paraíso.

Sendo ecologista há 30 anos, à mi-nha chegada ao Faial em Maio de 2013 depois de atravessar o Atlân-tico desde Bonaire, nas Caraíbas Holandesas, fiquei agradavelmente surpreendido por ver os contentores de triagem e as ruas limpas.

Andando ao longo da doca, no meio dos visitantes que vieram para ver baleias sinto um aperto no coração quando olho para baixo e vejo mi-lhares de pontas de cigarros e peda-ços de plástico que juncam o chão da marina. Não foi necessário muito tempo para perceber que não esta-va sozinho e com a Isabel Gallagher e muitas outras mãos desejosas de ajudar, criámos o “No more Plas-tic Bags for the Azores”. Sendo que se estima que 80% do lixo oceânico tem a sua origem em terra, limpar as costas não se mostrou suficiente. Por isso iniciámos a acção de limpar as ribeiras, em que estamos a trabalhar neste momento. Juntos podemos fa-zer a diferença.+ sobre a última limpeza na pg. 9519

environmentally speakingSean Paton

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A pesca é uma atividade coleto-ra, ou seja, uma atividade que se limita a colher ou a capturar os organismos vivos aquáticos selvagens. Em comple-mento, fala-se, hoje em dia, muito da aquicultura como forma alternativa de produção de pescado. Nos Açores, pou-cos se aperceberão que a aquicultura é uma atividade milenar, parente da agri-cultura, tendo surgido muito provavel-mente ao longo do processo de sedenta-rização e socialização da humanidade e da sua necessidade de se libertar da dependência de uma cadeia alimentar natural, que apresenta uma produção demasiado variável e dificilmente ca-paz de lhe garantir o alimento diário necessário em quantidade, diversidade e qualidade.

Os primeiros registos da atividade, en-volvendo a cultura de carpas, encon-traram-se na China e datam de cerca de 3500 a.C., e muitos outros registos foram encontrados em civilizações com histó-ria bem documentada: e.g. Japão, Índia, Egipto e Roma. E foram muito possivel-mente os Romanos que introduziram a aquicultura na Península Ibérica, culti-vando ostras e peixes, acrescentando, assim, valor à exploração de salinas e à atividade de extração do sal. Na Europa, sobretudo na Europa central e ao longo da idade média e da idade moderna, os fossos dos castelos, os reservatórios dos palácios e mosteiros, os rios e os lagos foram muito frequentemente utilizados para produzir peixe destinado à alimen-tação (usualmente carpas e trutas, mas não só). A Idade Moderna (1453 a 1789 d.C.), período em que se iniciou o pro-cesso de globalização que levou à fusão de conhecimentos adquiridos de uma forma independente por diferentes civi-

AquaLab, uma unidade experimental recentemente criada no IMAR-DOPEduardo Isidroinvestigador do IMAR-DOP/UAç

Outras Formas de Produçãode Pescado

lizações e culturas, e em que houve uma troca e introdução intensa de espécies vegetais e animais por todo o mundo, foi também um período de expansão da aquicultura.

Na idade contemporânea, a partir de 1700, começou-se progressivamente a dominar, para as espécies então tra-dicionais, as técnicas de controlo e in-dução de postura e de crescimento de larvas em cativeiro. No século XX, um século de avanços tecnológicos sem precedentes na história da humanida-de e em que se alterou profundamente a postura antropocêntrica que se vinha mantendo com o mundo, houve uma di-versificação enorme de espécies cultivá-

veis e uma industrialização e intensifi-cação enorme da produção. A produção intensiva, utilizando métodos cada vez mais tecnológicos de controlo e de sele-ção de espécies com procura de merca-do e com alto valor comercial, foi o mote forte do século XX. Contudo, à medida que o século XX se ia dissipando e se ia aproximando o século XXI, mais se iam integrando preocupações e conceitos ecológicos na produção.

No século XXI, estando a produção em aquicultura próxima dos 50% daquilo que nos é fornecido pela pesca, mas em

Nos Açores, poucos se aperceberão que

a aquicultura é uma atividade milenar,

parente da agricultura

ciência

que 90% da produção está localizada na Ásia e em que a Europa apresenta uma balança altamente deficitária que terá de corrigir de uma forma competitiva (a Europa produz cerca de 4% do total e importa muito do pescado que conso-me), o conceito que se está a estudar e a querer implementar é o de Aquicultura Multitrófica Integrada (IMTA). Este con-ceito baseia-se na produção inicial de peixes, moluscos ou crustáceos e no rea-proveitamento do excesso de nutrientes fornecidos para o cultivo de organismos extrativos (bivalves, algas e até vegetais em sistemas hidropónicos), criando-se uma cascata de nutrientes, matéria e energia e um sistema de bio remediação que se assemelha ao funcionamento na-tural dos ecossistemas e, logo, sem des-perdícios e impactos ambientais adver-sos. Os cenários possíveis dentro deste conceito, que está totalmente de acordo com os princípios da economia azul, são muito diversos e dependentes da com-binação de espécies que se pretendem cultivar, e não são difíceis de imaginar quer em terra quer no mar.

Nos Açores, em particular, consigo ima-ginar (e sem esgotar a imaginação), a produção de goraz ou de pargo, interli-gada ao cultivo de macroalgas e ao cul-tivo de lapa-burra. Ou seja, um sistema em que o excesso de alimento fornecido ao peixe, é utilizado pelas macroalgas, que serão, por sua vez, usadas para ali-mentar a lapa-burra. É um pouco neste sentido que se tem estado a trabalhar no AquaLab (uma unidade experimen-tal recentemente criada no IMAR-DOP), investigando-se aspetos do cultivo indi-vidual de espécies que posteriormen-te possam ser utilizados num sistema IMTA.

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AquaLab, uma unidade experimental recentemente criada no IMAR-DOPEduardo Isidroinvestigador do IMAR-DOP/UAç

Um cientista começa por fa-zer uma licenciatura, faz um mestrado, um doutoramento e depois... como é que trabalha como cientista? Esse, é o pro-blema em Portugal. A carreira existe em papel mas está congelada e não entram para os quadros das universidades, in-vestigadores há mais de 10 anos. Então, qual a alternativa para os cientistas mais jovens? O governo encontrou uma solução a curto prazo: “bolsas”. Não são contratos de trabalho, são “subsídios de manutenção” para que possam viver enquanto fazem ciência em exclusivo. E se por um lado têm objectivos a cumprir como qualquer trabalhador, não têm nenhuma das “regalias”. Quando aca-ba uma bolsa, sem direito a qualquer subsídio de desemprego, só lhes resta candidatarem-se rapidamente a outra. O que é que faz de um médico, um mé-dico? Um médico estuda durante 5 anos para tirar um curso de medicina geral e mais 4 a 6 anos para tirar uma especia-lidade. Quando termina o longo curso por uma universidade pública, inicia um estágio num hospital e começa a re-ceber como médico em início de carrei-ra. Para além disso, pode dar consultas num consultório privado.Um advogado? Um advogado estuda durante 4/5 anos, termina o seu curso e, reconhecido pela ordem, pode ser con-tratado por uma entidade pública, por uma entidade privada ou pode ainda abrir um consultório.E um cientista? Um cientista estuda a vida toda. Aliás, a vida dele é mesmo estudar. Se hoje temos vacinas que nos protegem contra doenças que chegaram

a ser responsáveis pela morte de 90% da população, como o sarampo e a varicela na América do Sul, foi porque cientistas estudaram durante vários anos sobre essas doenças e como travá-las. Tudo o que aprendemos sobre a vida na escola devemo-lo a eles, que se dedicaram a es-tudar para que possamos compreender um pouco melhor o mundo. A ciência é a constante procura por respostas, se-jam elas sobre estrelas, peixes, pedras, o que provoca uma doença, ou como curá-la. A ciência faz-nos progredir como sociedade. Mas hoje, não há muitas alternativas de trabalho na ciência. Quantas empresas querem cientistas nos quadros? Quan-tas fundações privadas ou públicas os contratam? A resposta é: poucas. O país e as regiões autónomas não reconhe-cem o valor humano de quem trabalha em ciência. Um cientista não é bolseiro porque quer. Ninguém, no seu perfeito juízo ambiciona esta vida instável, sem

A ciência é a constante procura por respostas, sejam elas sobre estrelas, peixes, pedras,o que provoca uma doença, ou como curá-la.Silvia Lino

“Essa coisa de bolseirosé só para gastarem o dinheiro

dos contribuintes...!”

qualquer perspectiva de progressão ou reconhecimento profissional. Um bolseiro é um “nim”: nem trabalhador, nem desempregado. O que faz um médico ou um advogado se ninguém reconhecer o valor da sua profissão? Desiste e vai fazer outra coi-sa...? Um bolseiro, não é um privilegia-do. É um remediado... resta saber quan-to tempo sobreviverá.

Um bolseiro, não é um privilegiado. É um remediado...resta saber quanto tempo sobreviverá

intervenção

ilustração: Bolseiros Precários www.precarios.net

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Já lhe aconteceu chegar de férias e ter pulgas em casa? E até pen-sa, mas como é possível se o meu cão ou gato estiveram noutro sítio?A pulga do cão e do gato (Ctenocepha-lides felis) tem algumas características muito curiosas. Desde logo, prefere alimentar-se do sangue destes animais do que picar as pessoas. Desenvolvem--se dentro de casa durante todo o ano e apenas vemos as pulgas adultas que são 10% da população total.Cada fêmea liberta, durante uma se-mana, 50 ovos por dia que caem nos tapetes, cobertores, sofás, etc. Esses ovos passam por fases intermédias de desenvolvimento, larvas e pupas. As larvas vivem no ambiente doméstico e alimentam-se de fezes das pulgas, de pe-dacinhos de pele humana e animal e de outras matérias orgânicas que encon-tram nos sofás, tapetes, etc.Tal como uma borboleta num casulo, a pulga adulta desenvolve-se na pupa e aí pode ficar durante muito tempo. A saída para o ambiente acontece quando sente uma vibração ou movimento e, portanto, “sente” que existe um animal por perto. Nessa altura salta para a pele

Ana Calado

Quem é este cientista?

Orlando Guerreiro, nasceu em Setúbal, em 1977. É li-cenciado em Engenharia do Ambiente e fez mestrado em Gestão e Conservação da Natureza. Chegou aos Açores em 1996 para fazer a licen-ciatura e mais tarde traba-lhou na recolha de dados em embarcações de pesca Aço-rianas. É agora aluno de dou-toramento no Departamento de Biologia da Universidade dos Açores, no campus de Angra do Heroísmo, onde faz o seu trabalho de investiga-ção acerca das térmitas no Grupo da Biodiversidade dos Açores - GBA.

Se fazes ciência nos Açores, sobre os

Açores ou nasceste nos Açores e estás

a fazer ciência fora, escreve um artigo

sobre o teu trabalho para o jornal [email protected]

uma década depois do: “que raio de bicho da madeira é este?”

Ciência que se faz por cá

“Caça à Térmita”

para picar e obter uma refeição de san-gue.Quando os animais estão em casa as pulgas desenvolvem-se continuamen-te, preferem o cão ou gato, e as pessoas nem se apercebem.Mas, e no regresso de férias? Qual o mo-tivo de abrir a porta de casa e estes irri-tantes parasitas saltarem para nós?Quando uma casa fica vazia, ou seja sem movimento, todas as pulgas ficam retidas na fase de pupa à espera de um movimento para a sua saída. Este movi-mento pode ser, simplesmente, a porta de casa a abrir. Ao mesmo tempo, as pulgas saltam, mas sem preferência de animal e então parasitam o cão, o gato e o Homem.Notas finais:- Se tiver animais em casa mantenha-os livres de pulgas com produtos que elimi-nem todas as fases do desenvolvimento larvar que são a maioria das já conheci-das pipetas.- Reduza a quantidade de tapetes.- Lave semanalmente as roupas e locais onde os animais descansam.- Se vir pulgas em casa ou nos animais consulte um médico-veterinário.

Apenas vemos as pulgas adultas que são 10% da população total

Pulgas em casadepois das férias

conteúdo disponibilizado pelo programa: ciência na imprensa regional

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ciência

A primeira referência às tér-mitas (e não térmicas como muitas pes-soas dizem) foi em 2004 quando um mo-rador de Angra do Heroísmo, que já não suportava mais viver com estes insectos que lhe destruíam a casa, levou alguns exemplares à universidade para saber “que raio de bicho da madeira era aque-le”. Desde então passou uma década e muito trabalho foi realizado pelo Grupo da Biodiversidade dos Açores.

Hoje sabe-se que no arquipélago não existe apenas uma, mas sim quatro es-pécies de térmitas - duas subterrâneas, uma de madeira seca e uma outra de madeira húmida (ver imagem). O pro-blema das térmitas não é apenas um problema da cidade de Angra do Heroís--mo mas sim de quase todo o arquipé-lago (apesar de não haverem registos na Graciosa, Corvo e Flores, é possível que venha a ocorrer). Para já, decorre um plano de controlo e tentativa de er-radicação para a térmita subterrânea, a espécie Reticulitermes flavipes, presente na Praia da Vitória. A térmita de madei-ra seca Cryptotermes brevis (a primeira a ser referenciada nos Açores e actual-mente pior praga urbana) está a ser mo-nitorizada desde 2010 em todas as ilhas e localidades afectadas. Com formações, oficinas e sessões de esclarecimento o objectivo é que a população esteja bem informada acerca das formas de comba-te e controlo da espécie C. brevis. Exis-te ainda um livro e o sítio na internet (http://sostermitas.angra.uac.pt/) onde os mais interessados podem consultar gratuitamente toda a informação sobre térmitas.

Ao longo do caminho percorrido na úl-tima década de investigação fizemos parcerias com universidades nacionais e internacionais, institutos nacionais, empresas privadas e com o governo regional. Com estas parcerias consegui-mos trazer o conhecimento de diversos

uma década depois do: “que raio de bicho da madeira é este?”

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Orlando Guerreiro

Ciência que se faz por cá

“Caça à Térmita”

Não é apenas um problema da cidade de Angra

do Heroísmomas sim de quase todo o arquipélago

dos Açores

investigadores tendo sido já produzidas um total de 6 publicações em revistas internacionais, 1 em revistas nacionais, 1 livro e cerca de 12 capítulos de livros. Apesar do trabalho produzido e de vá-rios projectos em curso sabemos que não sabemos tudo. Na realidade, temos a perfeita consciência que o caminho já percorrido é uma etapa de várias que se seguem na geração de mais conheci-mento, e com este, na formação de no-vas parcerias e obtenção de melhores e mais inovadoras soluções para este problema que afecta directa ou indirec-tamente a maioria dos Açorianos.

Com o meu trabalho de investigação no âmbito do doutoramento esperamos fazer mapas de risco para todas as es-pécies existentes no arquipélago e pes-quisar atrativos químicos para a espécie C. brevis.

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A pesca vem-se defrontando com enormes desafios ao longo das últi-mas décadas. Podemos resumir o cerne desses desafios com a palavra ‘sustenta-bilidade’. A história da pesca vem indicando que a grande maioria das pescarias são insus-tentáveis. O mesmo é dizer que os recur-sos já não suportam o efeito da pesca no longo prazo. A pesca acaba por reduzir os mananciais pesqueiros para níveis críticos o que implica impactos negati-vos, não só ao nível biológico, mas tam-bém nos planos económico e social. Não vale, por isso, a pena justificar económi-ca ou socialmente a necessidade de so-breexplorar um determinado recurso.O organismo das Nações Unidas respon-sável pela alimentação, a FAO, estima que o subsector da pesca artesanal em-pregue cerca de 37 milhões de pessoas (90% na Ásia) mais cerca de 100 milhões de pessoas em actividades conexas. A definição desta organização para a pes-ca artesanal é a seguinte: “Pescarias tra-dicionais de base individual ou familiar, que utilizam pouco capital e energia, com recurso a embarcações relativa-mente pequenas, realizando viagens de pesca curtas e orientando-se sobretudo para o abastecimento do mercado lo-cal.”

As pescarias dos Açores enquadram-se genericamente nesta categoria. Quer se trate da pesca de chicharro, covos, pei-xe-de-fundo ou mesmo atum com recur-so à arte de salto-e-vara estamos sempre perante pesca artesanal.Embora seja um pouco arriscado gene-ralizar conceitos é assumido que a pes-ca artesanal apresenta várias vantagens

por contra ponto com a pesca indus-trial. Entre estas vantagens, contam-se: menores custos de funcionamento e combustível; menor impacto ecológico; maiores oportunidades de emprego; maior versatilidade; e menores custos de construção e de aquisição de equipa-mentos.

Ao longo da última década temos des-coberto importantes comunidades de corais frios nos Açores. Estes corais e a sua preservação é considerada uma prioridade dada a sua relevância para o equilíbrio dos ecossistemas do mar pro-fundo. Isto é tão mais importante quan-

para aPescaTradicional

caminhosnovos

O futuro da pesca nos AçoresHelder Marques da SilvaDOP - UAç

to é certo que estas espécies apresentam uma elevada longevidade que pode atingir a bonita idade de 3000 anos. Num trabalho recentemente publica-do por diversos colegas sob a liderança de Telmo Morato demonstra-se que, no que respeita ao impacto da pesca sobre corais, o dano provocado pelas artes de pesca com linha e anzol, a que recorre-mos nos Açores para pesca de espécies de fundo, é muitos milhares de vezes in-ferior ao malefício induzido pela arte de pesca industrial mais utilizada a nível mundial, o arrasto.

Significa isto que, por via da pesca ar-tesanal que utilizamos nos Açores, não obstante algum impacto, directo e indi-recto que decorre da sua prática, preju-dicamos muito menos e de forma muito menos estrutural as comunidades de que estas espécies de peixes dependem para a sua sobrevivência e para o garan-te da sustentabilidade desta actividade económica.

O futuro da pesca nos Açores passa, por isso mesmo, pela artesanalidade da actividade, pela protecção dos habi-tats e comunidades fundamentais, pelo estabelecimento de regras adequadas, pela valorização dos produtos da pes-ca e pela monitorização dos recursos e do ambiente que os sustentam. Dessa monitorização depende a continuidade da nossa actividade, dado sermos a isso obrigados por legislação comunitária, incluindo a demonstração dos respecti-vos resultados. Em todos estes aspectos, o DOP situa-se como um elemento cen-tral à concretização desse desiderato e cá estaremos!

o dano provocado pelas artes de pesca

com linha e anzol é muitos milhares

de vezes inferior ao malefício induzido pela arte de pesca

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ciência

Nos últimos 30 anos, a ex-ploração pesqueira de diversas áreas e recursos marinhos a nível global tor-nou-se de tal forma intensiva, que já al-guém afirmou (Boris Worm, num artigo publicado em 2006 na revista Science) que, mantendo o nível de pesca actual, se esgotarão todos os recursos disponí-veis em meados deste século. Como fac-to, temos que actualmente cerca de um terço dos stocks marinhos mundiais es-tão sobreexplorados e que o esforço de pesca praticado continua a aumentar, nomeadamente em continentes como a Europa e a Ásia. Neste contexto é crucial ter informação robusta e pormenoriza-da sobre as operações de pesca, tecnolo-gias e capturas, incluindo capturas aces-sórias e acidentais de outras espécies, para além daquelas que são alvo da pes-caria. Também é fundamental conhecer o melhor possível o ciclo de vida das espécies comercialmente importantes, os tipos de ecossistema em que se inte-gram e quais os efeitos da acção do ho-mem na exploração destes recursos. Só com estratégias de recolha de informa-ção continuada, abrangente e de longo prazo, se conseguirão definir planos de gestão robustos que permitam a recu-peração e manutenção dos stocks a par do estabelecimento de pescarias susten-táveis. É importante sublinhar a frase: “Sem estas estratégias, não há futuro para as pescas”.

Perante este cenário, qual a melhor for-ma de obter o conhecimento, a informa-ção necessária? Com que métodos e em que lugares se podem recolher os dados científicos sobre a actividade da pesca e quem é que pode recolher esses dados? A resposta não tarda: programas de ob-servação de pescas com observadores embarcados.

Estas estruturas, espalhadas presente-mente um pouco por todo o globo, são responsáveis pelo recrutamento, for-mação e gestão de observadores. Isto é, pessoas que embarcam nos navios de pesca comercial e que têm como função registar diariamente, toda a informação

relativa à pesca que se pratica. Esses da-dos são depois corrigidos e integrados em bases gerais onde ficam armazena-dos até serem analisados, dando origem a resultados e conclusões sobre o esta-do da pescaria e recursos explorados. São bons exemplos os programas de observação da NMFS (National Marine Fisheries Service - costa Este e Oeste dos EUA), da NAFO (North Atlantic Fisheries Organization – costa Este do Canadá), do IFOP (Instituto de Fomento Pesqueiro – Chile), do PROBORDO (Programa Nacio-nal de Observadores de Bordo do Brasil) e do POPA (Programa de Observação das Pescas dos Açores – www.popaob-server.org). O POPA, o único programa de observação das pescas instituído e reconhecido como tal em Portugal, sur-giu em 1998 com o intuito de garantir a certificação Dolphin Safe para a pesca-ria de atum com salto e vara nos Açores, mas rapidamente assumiu uma abran-gência muito maior. Gerido pelo Centro do IMAR da Universidade dos Açores e actualmente financiado pelo Governo Regional, através da Secretaria Regio-nal dos Recursos Naturais, foi instituído por Portaria regional em 1999 e impôs-

Miguel Machetecoordenador do POPA

Pescasporquê acompanhá-las de perto?

-se como uma ferramenta crucial para a monitorização das pescas nos Açores. Ao longo dos últimos 16 anos produziu mais de 5 milhões de registos sobre a pescaria de atum nos Açores, passando a constituir a maior base de dados deste género em toda a Europa. A informação que produz é integrada nos relatórios de organizações intra-governamentais como a ICCAT (International Commis-sion for the Conservation of the Atlantic Tuna), o ICES (International Council for the Exploration of the Sea) ou em arti-gos científicos publicados nas mais di-versas revistas científicas, tendo sempre o objectivo de promover o conhecimen-to desta actividade de extração para a sua gestão efectiva. Programas como o POPA, no contexto actual da Política Co-mum de Pescas e perante as exigências comunitárias no que diz respeito à inte-gração de estruturas de monitorização em cada Estado Membro, terão tendên-cia a surgir mais amiúde. Neste cenário, o modelo que temos na Região poderá certamente servir de exemplo para os novos programas que se deverão imple-mentar.

conhecer o melhor possível o ciclo de vida das espécies comercialmente importantes

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Onde SãoPara Tios Açores

Que tipo de pessoas pensas que vivem nos Açores?Eu penso que devem ser tipo nativos, tu sabes como no Hawai, lá estão os nati-vos, as pessoas originais do sítio.

Como é que achas que as pessoas vi-vem nos Açores?Vivem da terra e cultivam muita comida porque é difícil transportar comida para aí. E o que pensas que as pessoas fazem nos Açores?Muita pesca!

Como será o clima nos Açores?Muito ventoso! Aqui temos ilhas onde as pessoas só vivem de um lado da ilha, por causa do vento, aí deve ser assim também.

Que animais imaginas que se podem ver nos Açores?Tipo cabras e ovelhas e pássaros, muitas

aves marinhas. Não deve haver cobras como aqui.

Que transportes se usam nos Açores?Eu penso que devem haver alguns car-ros, pelo menos alguns. Mas maiorita-riamente bicicletas.

O pensas que poderia ser feito nos Açores?Poderiam ser usados para monotori-zar outras partes do mundo. Podiam colocar-se estações de “tracking”, como estão aí no meio…

Qual achas que é a comida Açoriana mais estranha?Polvo. Em Trinidade, que eu saiba nin-guém come polvo. Provavelmente só os chineses, porque eles comem practica-mente tudo.

Que tipo de productos pensas que se exportam?Muito marisco e vegetais.

Poderias viver nos Açores?Não creio. Talvez se eu tivesse nascido aí. Teria que haver algo muito especial, provavelmente uma rapariga, de outra forma não.

assinala no mapa onde são os Açores

antes de responder às perguntas foi-lhe indicada a correcta localização dos Açores

algures no mundo alguém é convidado a fazer um retrato das nossas ilhas.

Anthony Penn Trinidade e Tobago

eu penso que devem haver

alguns carros, pelo menos

alguns

Sara Soares

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Uma baleia?Um barco?

Talvez um búzioAté meados do passado mês de Agosto, altura em que foi inaugurado o novo auditório do Museu dos Baleei-ros, parte das actividades culturais pro-movidas pelo Museu do Pico eram reali-zadas num espaço correspondente a um antigo tanque de óleo de baleia, situado numa cave da zona central deste museu. A exiguidade daquele espaço bem como problemas de salubridade criaram des-de sempre limitações técnicas de vária ordem, impossibilitando, muitas das ve-zes, a realização de eventos com o con-forto e a qualidade merecida. Um novo auditório com condições plenas tornou--se um imperativo e é nessa sequência que o Museu do Pico adquiriu um terre-no vizinho localizado nas traseiras e aí se iniciou o programa de edificação do novo auditório.

Foi com grande empenho que participei desde o início neste processo e foi com muita satisfação que aceitei em conjun-to com a minha equipa o convite que nos foi feito para o desenvolvimento do projecto deste novo auditório; afinal o conjunto de edifícios que formam o Museu dos Baleeiros localizam-se numa das mais sugestivas e delicadas áreas da vila das Lajes do Pico e são um íco-ne urbano de grande singularidade ar-quitectónica que fortemente retratam a ainda tão presente história da baleação açoriana.

Os edifícios primitivos que constituem este museu eram sede das antigas com-panhias baleeiras sedeadas nas Lajes. Foram, em duas fases, alvo de uma qua-lificada intervenção arquitectónica de recuperação e ampliação realizada pelo Arq. Paulo Gouveia que muito bem ge-

o retrato do novo auditório do museu dos baleeiros nas lajes do pico é feito pelo próprio arquitecto

Rui Pinto

riu as pré-existências com as adições de arquitectura nova e que, no fundo, são a marca deste Museu. É sobre esta rea-lidade, em forma de terceira ampliação, que o novo auditório surge e se constitui com cerca de 90 lugares concebido para a realização de pequenos concertos, simpósios ou projecção de cinema.

A nossa proposta assentou desde logo na construção de uma sala que além de servir plenamente as suas funções, se constituísse como uma adição assu-midamente cénica e evocativa das sen-sações marítimas, do universo do mar e das baleias, capaz de produzir sensa-ções e de proporcionar aos seus utentes uma espécie de viagem individual. Uma baleia? Um barco? Talvez um búzio, como referiu um jovem das Lajes.

Com madeira de criptoméria, utilizou-

-se a sabedoria local da construçãonaval e desenhou-se um auditório es-truturado por cavernas, forrado com tábuas corridas - tal como uma lancha – construção que teve um grande empe-nho e apoio desde a fase de concepção por uma série de carpinteiros da ilha do Pico até à conclusão, obra a cargo da empresa Nascimento Neves & Filho.

arquitectura

Sara Soares

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O cineasta Tiago Rosas realizou a “História dos Açores”, uma curta-metragem de animação. Trata-se de um filme de dezoito minutos e onde assistimos a uma visão histórica do arquipélago aço-riano através dos tempos e das diferentes épocas socioeconómicas. A narração é do músico/realiza-dor, Zeca Medeiros, que elenca a cultura, as lendas, os mitos e as transformações ocorridas nas ilhas açorianas desde o povoamento até aos nossos dias. A produção é da Anfíbios Filmes, a revisão dos tex-tos de Magda Furtado, contando com um leque alargado de colabo-radores, inclusive, a ajuda de Vic-tor Descalzo na realização. À altu-ra da estreia, em 2013, venceu o prémio do público do Panazorean, festival de cinema de Ponta Del-gada realizado pela AIPA. O filme será exibido dia 29 de Novembro, sábado, no Teatro Faialense. Aqui fica uma pequena conversa com o realizador do filme.

Em equipa que ganha, diz-se, não se mexe. Nós mexemos. E, se a meteorologia não se tivesse revelado espe-cialmente incerta, o mais provável é que tivéssemos atingido este Verão números inusitados.

No ano passado, o Ciclo Cinema de Verão, organizado pelo Cine-Clube da Ilha Terceira no Q.B.-Food Court, espaço pri-vado em São Carlos (Angra do Heroísmo), atingiu perto de um milhar de espectadores ao longo de sete filmes. Realizado ao ar livre, versou o cinema clássico, com exibições de Fellini, Orson Wells ou Vis-conti, e reuniu público de todas as idades, seduzido pela romântica ideia de ver os mesmos filmes que os seus antepassados haviam visto do mesmo modo como, em muitos casos, eles o tinham feito.

O sucesso não nos deixou conformados e, este ano, em vez do apoio do Meo, optámos por uma colaboração com as dis-tribuidoras Big Picture e Lusomundo, que nos permitiam, com um esforço financeiro ligeiramente superior, mostrar dois tipos de filmes diferentes: alguns dos princi-pais candidatos aos Óscares na última cerimónia anual da Academia das Artes e Ciências de Hollywood; e, em duas sessões especialíssimas a abrir e fechar Agosto, o supremo mês das férias grandes, duas películas para crianças.

O tempo não ajudou. Coincidências cósmi-cas colocavam repetidamente a pior me-

Tiago Rosas entrevistado por Fernando Nunes

Joel Netocine-clube da ilha terceira

CINEMA DE VERÃO NO Q.B.

Curta Metragem de Animação

História dos Açores

cinema

teorologia da semana na noite de quinta--feira, o dia a que tantos terceirenses já começam a intitular “o dia do cinema”, e ao longo de quase todo o ciclo debate-mo-nos com inesperadas dificuldades. Se em 2013 fôramos obrigados a adiar uma sessão, em 2014 tivemos de fazê-lo por duas vezes, e apenas porque não era téc-nica ou calendarialmente possível fazê-lo mais vezes ainda. Em várias outras fomos obrigados a passar os filmes à chuva ou parcialmente à chuva. E em oito das nove fomos de algum modo condicionados pelo tempo, que persistiu em forçar espectado-res a ficar em casa.

Mesmo assim, os nossos cálculos apontam para números semelhantes aos do ano pas-sado. Só “O Filme Lego”, para crianças, na verdade o único que não teve de lidar com nenhum tipo de precipitação, reuniu uma audiência bem para cima das duzen-tas pessoas, levando à lotação completa do jardim, das galerias, do relvado e do muro do parque de estacionamento do Q.B..

“A Rapariga Que Roubava Livros”, “Capitão Phillips”, “Gravidade”, “Um Quente Agosto”, “A Propósito de Llewin Davis”, “Philomena” e “All Is Lost” foram os filmes adultos. “Como Treinares o Teu Dragão” completou o cardápio para crianças.Para o ano há mais, com ou sem chuva. E havemos de continuar a evoluir. Em defesa (também) do cinema popular e do grande público.

O cinemaresistindo à chuva

a cultura, as lendas, os mitos e as transformações ocorridas nas ilhas açorianas

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Tiago Rosas entrevistado por Fernando Nunes

Sempre gostei da voz dele (Zeca Medeiros) e acho que dá uma ajuda

a que o filme não seja só para

crianças.

Curta Metragem de Animação

Quando é que surgiu esta ideia de realizar esta animação à volta da História dos Açores?Quando cheguei aos Açores (1991) de “arrasto” com os meus pais nada sabia sobre a história deste arquipélago. Aliás acho que o defeito não era só meu, a maioria dos meus amigos que moram no continente muito pouco sabe sobre as ilhas e os jovens de cá pouco conhecimento tinham também... como sempre fui fasci-nado por história procurei informação mas nada encontrei que um rapaz, com 16 anos acabados de fazer, tivesse paciência para ler... Quando mais tarde auto-aprendi a fazer animação (2005), juntei dois mais dois... levei cinco anos a conseguir juntar as condições...

Este filme é um trabalho de equipa, quais foram os elementos de que te rodeaste?O Victor Descalzo (Espanha), o Vincent Sallice (França), o Nuno Arruda, a Magda Furtado e o Sérgio Rezendes.(São Miguel).

Por que é que escolheste o Zeca Medeiros para narrar este filme?Sempre gostei da voz dele e acho que dá uma ajuda a que o filme não seja só para crianças.

Quanto tempo durou a realizar este filme?Dois anos.

Qual foi à altura da estreia a reacção do público?Muito boa, não esperava uma reacção tão boa de 700 almas no teatro, devem ter gostado bastante pois ganhei o prémio do público daquele festival de cinema...

Qual é o balanço que fazes após conclusão e este tempo passado sobre a exibição do filme?Gostei muito de o fazer, só tenho pena que um investimento tão grande ainda não tenha tido retorno financeiro e ainda não tenha existido abertura da parte das autori-dades para colocar o filme nas escolas...acho que valeria a pena...

História dos Açores

ambiente

Limparpara termos asribeiras quequeremos

No passado dia 11 de Outubro par-ticipei na limpeza de duas ribeiras dos Cedros. Esta acção foi organiza-da pelo grupo “NO MORE PLASTICS BAGS FOR THE AZORES” e contou com a colaboração da Junta de Fre-guesia dos Cedros e de voluntários quer dos Cedros quer do resto da ilha.

Fiquei muito surpreendido com a quantidade de lixo recolhido, e especialmente preocupado com a questão do plástico. Continuam a encontrar-se muitos plásticos aban-donados de silos e rolos de erva, pro-venientes de explorações agrícolas.

Não é fácil de compreender, tendo em conta que existem vários locais de recolha de lixo na Freguesia dos Cedros, porque continuam a depo-sitar lixo doméstico, electrodomésti-cos e entulho nas ribeiras.

É muito importante que a comu-nidade local saiba que este tipo de acções são um ataque ao ambiente, põem em risco o nosso futuro e que são inclusivamente puníveis por lei através de multas (nº 89/2009 de 31 de Agosto).

Como cidadão e Presidente da Junta dos Cedros continuarei a apoiar este tipo de acções de limpeza. Acho que todos devemos participar e passar a palavra. Quero deixar um grande agradecimento a todos os que ajuda-ram na limpeza do nosso Porto da Eira e das nossas ribeiras.

Muito obrigado a todos.

Vitor VargasPresidente da Juntade Freguesia dos Cedros

Acho que todos devemos participar e passar a palavra

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Nos últimos quinze anos houve um avanço notável na patrimonialização da baleação costeira nos Açores. A co-munidade apropriou-se de elementos que representam a caça ao cachalote e decidiu preservá-los em museus e noutros con-textos. Musealizaram-se Fábricas e Casas dos Botes, reconstruíram-se botes e lan-chas utilizadas na faina baleeira, activi-dade que foi substituída pela observação de cetáceos, símbolo maior do turismo ecológico da região. Patrimonialização e turismo ecológico cruzam-se numa onda de progresso que reforça a identidade re-gional e transforma a percepção cultural da Natureza.

Recentemente, o debate em torno do património baleeiro recebeu novos con-tributos. Há poucos meses foi proposta uma revisão do diploma que regulamenta o património baleeiro no sentido de ser possível utilizar o património classificado em actividades marítimo-turísticas e incen-tivar a formação na arte de velejar nos botes. Prática que já foi assumida, no que respeita à formação, pelo Clube Naval da Horta. Por outro lado, na ilha de S. Miguel, o Clube Naval de Vila Franca do Campo tem alertado para a especificidade do bote baleeiro micaelense, do qual ex-istem poucos exemplares, e para a falta de apoios que a ilha de S. Miguel sofre para a recuperação do património móvel e imóvel – botes e lanchas, mas também as infra-estruturas no porto baleeiro do Faial da Terra, e o famigerado exemplo da Fábrica dos Poços de São Vicente, a única fábrica moderna de processamento do cachalote no sec. XX que acabou por ser demolida, restando apenas uma chami-né. Há poucos dias, o Conselho de Ilha de S. Miguel deu eco às reivindicações feitas pelo Clube Naval de Vila Franca do Campo e um dos grupos parlamentares da Região avançou mesmo com uma proposta

O Património Baleeiro em debate

história

Francisco Henriques

integrado no projectoPort of Call: The Western Islands

a preservação do patrimóniobaleeiro não deve depender só de

uma estratégia comercial de sucesso

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de resolução que defende a necessidade de inventariar uma componente mais imaterial do património baleeiro, relacionada pre-cisamente com as técnicas de construção naval e as diferenças que poderão existir entre ilhas.

Não é nossa intenção discutir estes assun-tos importantes, mas queríamos acrescentar duas dimensões relevantes que não têm sido devidamente valorizadas. Em primeiro lugar, a diversidade da indústria baleeira açoriana. Em segundo, a pluralidade das memórias da baleação.

A ideia de diversidade parte de uma constatação fundamental: nos Açores não houve nenhuma revolução industrial ba-leeira, por assim dizer, ou seja, não houve uma substituição automática e definitiva dos sistemas artesanais de processamento do cachalote por uma indústria moderna concentrada em unidades fabris. Pelo con-trário, houve sempre uma grande diver-sidade de estratégias industriais e comer-ciais, o que resultou numa multiplicidade de estruturas em utilização simultânea. Tomemos como exemplo vários aconteci-mentos durante o ano de 1938: em São Miguel, uma empresa familiar procurava instalar uma fábrica para fazer o processa-mento integral do cachalote; mas a poucas milhas, em Santa Maria, a nova armação adquiria novos caldeiros de ferro artesanais para derreter as gorduras do cachalote a fogo nú no porto do Castelo; no norte do Pico, as armações de São Roque uniam-se em sociedade com o objectivo de construir uma nova fábrica, que veio a laborar a partir de 1946, mas no sul da ilha as ar-mações continuariam a utilizar os caldeiros até 1955; nas Flores, o industrial Francisco Marcelino dos Reis pedia autorização para instalar uma fábrica, a qual viria a cobrar 25% do produto de laboração às armações que dela se serviam, a partir de 1944, enquanto nas fábricas de outras ilhas a percentagem seria de 10%. Na Graciosa, na Terceira e em São Jorge, os siste-mas tradicionais de caldeiros junto aos portos continuavam a laborar, indiferentes

à introdução de novas tecnologias. Havia baleeiros de todas as ilhas em vários por-tos, em especial os picarotos das Lajes do Pico que se haviam especializado na baleação nas décadas anteriores. Aqueles que promoviam a industrialização eram os mesmos que mandavam construir novas canoas de madeira para caçar os cacha-lotes com arpões e lanças, relíquia que crescia em paralelo com a introdução dos maquinismos a vapor. Mais tarde, ao longo dos anos cinquenta e sessenta, encontra-mos as mesmas diversidades e assimetrias insulares na indústria baleeira. Apesar de por vezes existir concertação de interesses, de tecnologias e de vivências inter-ilhas, o elo regional da baleação não significa que ela tenha sido homogénea. Pelo contrário, foi a sua dispersão por nove ilhas que ditou uma diversidade típica.

A ideia da pluralidade das memórias da Baleação parte de outra constatação fundamental: é insuficiente considerar o património imaterial como uma mera ex-pressão das condições envolventes à cons-trução de botes baleeiros. Como dissemos, as memórias são muito plurais e difusas, e já muito se fez por elas. Há registos em primeira pessoa publicados em livro, houve alguns trabalhos de campo de reco-lha de memórias e há, sinal dos tempos, várias biografias de actores da baleação na blogosfera e nas redes sociais. Falta, no entanto, uma recuperação sistemática das

Nos Açores não houve nenhuma

Revolução Industrial Baleeira

memórias que restam em todo o arquipéla-go. Na realidade, uma recolha que seja sis-temática não tem que partir de objectivos pré definidos demasiado rígidos – como a descoberta de métodos de construção naval – mas de uma planificação rigorosa do trabalho de campo que contemple a complexidade das memórias dos actores da baleação. É importante também estar atento a outras experiências de recolha de patrimónios marítimos portugueses e internacionais. No fundo, trata-se de reco-lher percepções individuais e plurais que revelam relações com o Mar e a Natureza diferentes dos discursos das organizações de carácter ambiental ou patrimonial, ou das instituições políticas regionais e inter-nacionais. As memórias da baleação repor-tam inevitavelmente a um mundo que já não existe e ganham significado perante as transformações actuais.

De que forma se pode concretizar esta proposta? Quando entrevistamos um an-tigo baleeiro podemos procurar saber a embarcação, a armação ou fábrica a que pertenceu, a mobilidade social que teve (se foi só remador, se chegou a oficial, se foi operário, construtor ou maquinista); perce-ber quantos familiares teve na baleação, se partilhou com eles a embarcação ou a vaga na armação, na fábrica ou no estaleiro; a tipologia das embarcações em que navegavam, a tecnologia empregue na fábrica ou nos caldeiros, as relações entre o pessoal de terra e o pessoal de mar, além dos portos e as técnicas de nave-gação nas áreas de baleação e junto aos varadouros. Podemos tentar saber a relação que tinham com os agentes de comércio da primeira venda de óleos e farinhas para exportação, a variação das soldadas, os valores e as formas de pagamento, os investimentos que fizeram com o dinheiro da Baleia, os contratos colectivos e a as-sistência social do Estado e dos privados. Importa registar quem emigrou, sobretudo após 1957, com ou sem familiares, os destinos de emigração, mas também outros episódios colectivos, como os naufrágios e as mortes a que assistiram, os cultos no mar, as promessas e as dádivas. Fi-nalmente, podemos querer saber as re-cordações afectivas da baleação, a opinião sobre os patrimónios baleeiros e as actuais representações do passado, e aquilo que acham do whale-watching.

Para concluir, é importante notar que, ao contrário do tempo em que se caça-vam cachalotes, a actual preservação do património baleeiro não deve depender só de uma estratégia comercial de sucesso, mas de políticas públicas responsáveis por assegurar a diversidade do património móvel e imóvel, bem como a pluralidade das memórias

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música

Pode o Museu ser entendido como “um espaço de provocação de pen-samento, envolvendo os públicos no de-bate de questões relevantes da sociedade contemporânea? Terá esse debate uma dimensão educativa? Como se pode pôr em prática essa dimensão?”

As interrogações acima citadas integram o descritivo promocional da conferência “Que lugares para a Educação?” que terá lugar na Fundação Calouste Gulbenkian, a 16 de Dezembro, e em que partici-parão várias personalidades ligadas a mu-seus nacionais e internacionais. O facto da terceira interrogação apontar precisamente para a forma de viabilizar a dimensão dos museus que promove o debate do contem-porâneo comprova o valor marcadamente retórico das questões equacionadas, que mais não são do que um sublinhar de uma visão de Museu, que, não sendo nova, tende a afirmar-se cada vez mais.

Não deixando de ser a “casa das musas” e como tal norteados para a preservação das memórias coletivas, os mu-seus dos nossos dias assumem-se também como um espaço de cru-zamento e de confluência de expressões culturais, quer sejam antigas, tradicionais ou contemporâneas. Vai-se ao museu para recordar, para usufruir de legados, mas também para confrontar, questionar e in-quirir os caminhos do futuro e da novi-dade.

A obrigação de fazer a comunidade relem-brar dados do seu passado recente e a res-ponsabilidade de lhe fornecer informação fidedigna que lhe permita posicionar-se face a novas realidades decorrentes da emergência de novas tecnologias estão, por isso, na origem do encontro “Do Zeppelin ao Drone”, que teve lugar no mês de Outubro no Museu de Angra do Heroísmo e com o qual se assinalou o 90º aniversário da passagem do primeiro objeto voador sobre Angra do Heroísmo.

Ana Lúcia Gonçalves Almeida

Do Zepellin ao Drone

Era expectável que uma conferência ilus-trativa das circunstâncias que rodearam a passagem do ZR-3 USS “Los Angeles” por Angra, aquando do seu voo inaugu-ral de travessia do Atlântico, a caminho dos Estados Unidos, em outubro de 1924, fizesse convergir ao auditório do MAH uma vertente de público que cultiva com apreço eventos e personalidades ligadas à memória da cidade. Por outro lado, fazer uma exposição e demonstração de drones atrairia, su- postamente,

um outro grupo de frequentadores mais virados para as inovações tecnológicas e, porventura, mais esclarecidos sobre as po-tencialidades e funcionalidades dos multi-rotores.A aparentemente insólita associação dos dois eventos nasce, pois, da tentativa cons-ciente de chegar em simultâneo a dois perfis de público, com interesses e vivên-cias diferentes, de forma a gerar uma interação enriquecedora e também a pro-mover a consciência de que a novidade é,

uma provocação ao pensamento no MAH

Além de exemplificar o funcionamento dos drones,

apresentou exemplos credíveis da utilização desta nova tecnologia

geralmente, alvo de um “estranhamento” nem sempre justificável.Precisamente por isso, se contou com a inestimável participação de um profissional conceituado na área da imagem, Paulo Pereira, que além de exemplificar o fun-cionamento dos drones, apresentou exem-plos credíveis da utilização desta nova tecnologia em áreas tão variadas como o cinema, a proteção civil, a monitorização marítima e ambiental, o mapeamento de terrenos, o apoio à agricultura de precisão entre outras, questionando, paralelamente, o vazio que existe em termos de legisla-tivo e a necessidade de se estabelecerem regras que salvaguardem a reserva de ima-

gem e a segurança das populações.

Pode pois um Museu ser um lu-gar de debate de questões relevantes na sociedade contemporânea?

Sem dúvida que sim… Como se pode pôr em prática essa dimensão? Uma das res-postas passa, parece-nos, por estar atento a fatores de interesse e discussão na própria comunidade, estabelecendo paralelos com outras questões semelhantes que tenham já sido vivenciadas pela mesma em outros momentos da sua história. Assim, o Mu-seu pode assumir-se naturalmente como voz da memória e, ao completar esse legado de anteriores vivências através do contributo de parceiros credenciados, for-necer informações sustentadas sobre mo-tivos atuais de preocupação, de modo a facilitar uma tomada de posição esclare-cida por parte dos seus frequentadores.

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dança

Amigos, vizinhos e tocadores juntam-se no fim do dia ou na folga de trabalho. É hora de convívio, partilha de histórias e chamarrita. A chamarrita açoreana é um baile tradicional man-dado, os participantes formam uma roda virados para o centro do círculo inter-calando senhoras e senhores. Um deles tem o papel de mandador e comanda a roda de chamarrita. As expressões dos mandos são comuns entre os man-dadores, no entanto existem variações de freguesia para freguesia e de ilha para ilha. Os “mandos” são expressos de forma única e espontânea por cada mandador que pode entrar até em brin-cadeiras e enganar os outros bailadores com os seus mandos.

Originalmente o baile da chamarrita ini-cia e termina com o mesmo par. Na ilha do Pico existe a tradição do mando, o “vamos á praia”, em que o mandador, com o seu par de braço dado, leva a senhora ao bar para brindar. Tradi-cionalmente o baile tem duas “pernas”, baila-se uma vez uma roda e depois mais uma. No mando “vamos á praia” volta-se a ir ao bar mas a chamarrita não termina, simplesmente faz-se uma pausa para brindar. Terminada a segun-da roda, entram novos bailadores e um novo mandador (caso haja) para que todos possam bailar.

O musical da chamarrita é constituído por uma viola da terra, violão, ban-dolim e viola baixo. Existem também os cantadores, homens ou mulheres que cantam versos, muitas vezes ao desafio. Por vezes são convidados para os bailes tocadores e mandadores, mas tradicionalmente o baile nunca começa sem o tocador da famosa viola da terra. Além do mandador, este tocador é uma das pessoas mais importantes no baile, porque uma chamarrita sem a viola da terra não é chamarrita.

Tiago ValimLeva de Cheiatudo certinhofora e dentrotá consolandochamarritatudo estalaassim mesmofecha a rodasaltatorna a saltarchamarritatudo estalaquebra prá esquerdaquebra maisquebra e tranceialeva de cheiatudo certinhofora e dentrotá consolandochamarrita

Homem da viola: Viola minha viola Viola minha mulher Quem tem uma mulher viola Toca nela quando quer

Um outro cantador: Oh mestre dessa viola Repenica-me esses dedos Se te faltar alguma corda Tens aqui os meus cabelos

Outros versos:O meu amor, mora longe Mora na ponta do Pico caia chuva, faça vento não há outro mais bonito O vinho que é bom vinhoé feito da cepa torta a uns dá o tino e a outros errar a porta. Rapariga não te casesgoza a tua boa vida conheço uma casada que chora de arrependida.

ilustração: Fátima Madruga

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FAZENDO 95o boletim do que por cá se faz dezembro 2014

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texto: Rita Mendes desenhos: Joseph Lewin

tirilha

rebus

Letras e imagens são usados para formar uma nova palavra ou frase. Deve ser lido da esquerda para a direita.Os algarismos entre parêntesis indicam quantas palavras compõem o enigma e o número de letras de cada uma.

As letras fornecidas devem ser compostas com o nome das imagens para formar novas palavras.Quando uma letra surge entre parêntesis deve ser subtraída da palavra da imagem correspondente.

(1 + 5 + 5 + 2 + 4 + 1 + 1 + 3 + 3 + 6)

solução no próximo número

escreve um diálogo para estes desenhose envia-nos para [email protected]


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