Feira de São Cristóvão, lugar de memória da migração nordestina na cidade do
Rio de Janeiro: considerações acerca de um filme de pesquisa produzido a partir
de fontes orais e visuais1
SYLVIA NEMER2
A presença nordestina no Rio de Janeiro está ligada, na “memória coletiva”
(HALBWACHS, 1990), a um espaço da cidade fortemente associado à experiência da
migração: a Feira de São Cristóvão cujos primórdios remontam ao pequeno comércio
de produtos do Nordeste que começou a se desenvolver, entre as décadas de 1940 e
1950, em torno do ponto de desembarque dos pau de araras. Ali, no espaço aberto do
Campo de São Cristóvão, a Feira funcionou por mais de cinco décadas até a sua
transferência para o Pavilhão de São Cristóvão onde funciona desde 2003 como
Centro Municipal Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas.
Concentrando, nos seus primeiros tempos, uma parcela expressiva dos recém
chegados, o local logo se transformou em espaço referencial da migração nordestina
na cidade. Naquele pedacinho de Nordeste no Rio de Janeiro os conterrâneos se
reuniam para comprar produtos típicos, encontrar familiares e conhecidos, estreitar
laços de sociabilidade e lembrar da terra natal. Embora situada em uma das regiões
mais centrais do Rio de Janeiro, a Feira de São Cristóvão, até sua incorporação em
2003 à esfera da administração municipal, foi sempre tratada como uma área marginal
em relação ao restante do território da cidade, inscrevendo-se em uma categoria de
espaços cujas trajetórias são marcadas pelo silêncio não só quanto a sua presença
física, mas, sobretudo, no que se refere a sua força simbólica.
O presente trabalho parte desses silêncios para refletir sobre o problema das
fontes disponíveis ao estudo da Feira de São Cristóvão e sobre a metodologia
utilizada no trabalho com as mesmas. A proposta é aprofundar determinados aspectos
de um projeto recentemente concluído, no qual a pesquisa sobre o espaço em pauta se
concentrou, de um lado, na sua representatividade como “lugar de memória” da
migração nordestina na cidade do Rio de Janeiro, e, de outro, na sua condição de
lugar ignorado pelas instituições de memória. Diante da especificidade do objeto
1 Este trabalho se baseia na minha tese de doutorado Feira de São Cristóvão: contando histórias,
tecendo memórias defendida em dezembro de 2012 no Programa de Pós Graduação em História Social
da Cultura da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 2 Professora visitante do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
2 estudado além da carência de fontes institucionais acerca do mesmo, a pesquisa
recorreu aos processos de memória, através dos quais buscou-se abrir caminhos ao
passado tal como vivido pela coletividade no espaço considerado.
Na relação entre espaço e coletividade de memória, o projeto colocou em
destaque a figura do cordelista, como representante e porta-voz da comunidade
frequentadora da Feira, habituada a se reunir em torno das bancas dos poetas para
escutar histórias que lhes traziam lembranças da terra natal. Impressas em folhetos de
cordel, essas histórias, eram contadas ou cantadas em voz alta pelos cordelistas que
misturavam ao repertório tradicional do romanceiro nordestino, narrativas sobre as
peripécias dos migrantes no Rio de Janeiro: suas lutas cotidianas para conviver com a
sociedade local, sobreviver na cidade grande e preservar sua cultura, ativa nos seus
espaços de trabalho e sociabilidade. “Homens memória” (LE GOFF, 2003) de uma
cultura de base fundamentalmente oral, foram eles, os cordelistas, que nos
conduziram pelos intrincados corredores das memórias da Feira de São Cristóvão.
As narrativas em circulação nos folhetos de cordel, os vídeos com os
depoimentos de seis dos principais representantes do cordel na Feira e os acervos
pessoais de dois deles, atuaram como fontes da pesquisa sobre o espaço em questão,
bem como do filme, posteriormente, montado para apresentar o objeto analisado,
inseparável das vozes, dos sons, dos gestos, em suma, da “performance”
(ZUMTHOR, p. 983) que constitui a base da cultura ali em circulação. Partindo do
pressuposto de que o filme é um recurso valioso para apresentação de pesquisas
históricas baseadas em fontes orais e visuais, pretende-se, agora, discutir – tomando
como referência o filme desenvolvido a partir da pesquisa realizada para a minha tese
de doutorado sobre a história da Feira de São Cristóvão (NEMER, 2012) – o potencial
do meio audiovisual de colocar em circulação conteúdos e conceitos dificilmente
trabalhados no texto escrito. A base da montagem do filme são os vídeos com os
depoimentos dos seis cordelistas participantes do projeto a partir dos quais levantou-
se a discussão sobre a noção de ”testemunho” que conduzirá, no presente trabalho, a
reflexão sobre o uso, na narrativa audiovisual, de fontes produzidas por coletividades
de memória.
3 A análise de Beatriz Sarlo em Tempo passado: Cultura da memória e guinada
subjetiva é central em relação a essa questão. O texto traz considerações importantes a
respeito da entrada de novos sujeitos no campo da investigação histórica que
experimentou, nos últimos tempos, uma grande valorização dos processos de
subjetividade; com essa “guinada subjetiva”, os “sujeitos marginais” entraram para o
terreno da história provocando um novo interesse em torno dos “discursos da
memória: diários, cartas, conselhos, orações” (SARLO, 2007, p 17). Os “discursos da
memória”, tal como considerados na análise de Sarlo, representam um meio de se
colocar em cena a pluralidade de vozes constitutivas dos processos analisados. A
memória, nesse caso, não atua como “documento”, mas, nas palavras de Jacques Le
Goff, como “monumento” (LE GOFF, op. cit., 2003), ou seja, como meio de
produção de significados referidos ao contexto sócio histórico no qual estão inseridos
os novos sujeitos da experiência e, consequentemente, da narração.
Longe da pretensão da história positivista, de trazer à tona a verdade sobre o
passado tal como efetivamente ocorrido, a memória, segundo a autora, não se dissocia
da noção de discurso, do processo de construção do “eu” através da narrativa. No que
se refere às memórias dos “sujeitos marginais”, Verena Alberti chama atenção,
baseada nas observações de Michael Pollack, para o risco do pesquisador cair nas
usuais polarizações, transformando-se em uma espécie de “missionário encarregado
de contrapor memórias ‘dominadas’ a memórias ‘dominantes’”. “É preciso ter em
mente”, lembra a autora, “que há uma multiplicidade de memórias em disputa.”
(ALBERTI, 2004, p. 33-43)
O filme sobre a Feira de São Cristóvão se apoia na noção de “memórias em
disputa” que leva em conta os postulados apresentados por Alberti a respeito da
história oral ao mesmo tempo em que chama atenção para o modus operandi da
cultura constitutiva de tais memórias, atravessada pela idéia de luta, como apontou
Ruth Terra em Memórias de lutas: literatura de folhetos do Nordeste, 1893-1930. A
autora considera que a luta, na cultura do cordel, se manifesta em uma dupla
perspectiva: de um lado, na luta cotidiana dos indivíduos contra as adversidades
características do ambiente sócio-histórico no qual o cordel está inserido; de outro, na
luta simbólica, tematizada nos folhetos e representada nos marcos e desafios poéticos.
4 Transitando do Nordeste para o Rio de Janeiro, o cordel será recriado no
ambiente da Feira de São Cristóvão onde a luta irá se manifestar contra os poderes
hegemônicos, da polícia, em suas habituais intervenções no funcionamento da Feira,
das autoridades municipais, em suas frequentes ameaças de extinção ou remoção da
Feira para outros locais, dos jornalistas, em suas constantes denúncias às
irregularidades verificadas no local. Mas, muito além do confronto entre setores
dominantes e dominados também é importante considerar que a luta, no espaço da
Feira, se manifesta, de diferentes formas, entre os próprios membros da coletividade,
em decorrência de disputas pelo poder interno controlado pelas associações ali
atuantes ou pela ocupação das melhores áreas para instalação das barracas. No
semento do cordel, é a palavra, seja impressa, seja falada, que dá sentido a essas lutas,
atuando como uma teatralização das disputas travadas entre os próprios poetas ou
entre estes e os poderes constituídos em defesa daquele espaço considerado, de
direito, da comunidade nordestina.
Voltando à pesquisa sobre a Feira de São Cristóvão, o que aí se pretendeu
colocar em destaque foi a questão da luta pela preservação da Feira no seu espaço de
funcionamento original, luta essa protagonizada pelos cordelistas cujos papéis,
constantemente confundidos, de artista popular e porta voz dos interesses da
comunidade, implicaram em inúmeras rivalidades, como ficou evidenciado nos
depoimentos dos poetas entrevistados para o projeto. Nos vídeos com as entrevistas
gravadas observa-se mais claramente a relação entre as disputas internas transcorridas
no passado e a sua recriação no presente através do trabalho da memória. Aqui o
conceito de “memórias em disputa” ganha corpo através das imagens que mostram
como os cordelistas desejam se apresentar perante o entrevistador, subentendendo-se
que este ocupa, na visão dos poetas, o papel de fixação dos seus respectivos perfis
para além dos seus círculos mais imediatos. Na construção da própria imagem os
poetas buscaram definir seus papéis, destacando suas singularidades e suas diferenças
em relação aos demais integrantes da cultura que representam.
As indumentárias e os ambientes por eles escolhidos para a gravação das
entrevistas são bastante reveladores do modo como cada um deles desejava
representar a si próprio e a sua atuação na Feira de São Cristóvão, como ficou claro,
5 principalmente, nos depoimentos dos cordelistas da primeira geração do cordel da
Feira, Raimundo Santa Helena, José João da Silva – o Azulão e Gonçalo Ferreira da
Silva. Tendo participado da Feira, praticamente, desde os seus primórdios, os três
cordelistas buscavam, como se percebe nos vídeos com os registros dos depoimentos,
marcar suas respectivas posições no interior daquele espaço, através de “discursos da
memória” nos quais sobressaem as rivalidades que mantem entre si.
O caso de Santa Helena é o mais curioso, pois, ao mesmo tempo em que seu
nome aparece vinculado ao marco de fundação da Feira de São Cristóvão, a sua
participação no ambiente da Feira só acontecerá, efetivamente, 3 décadas depois
quando, aposentado da Marinha, ele passa a atuar como cordelista naquele local. A
construção da sua imagem se dá a partir da articulação desses três “discursos da
memória”: o ato de fundação da Feira de São Cristóvão associado ao desembarque
dos pracinhas vindos da Segunda Guerra (entre os quais, o próprio Santa Helena); o
cordel, de sua autoria, celebrando o fim da guerra e o começo da Feira; a sua atuação
na Marinha inseparável, como diz ele, da sua condição de pensador. É, aliás, sob essa
legenda, que ele constrói a ligação entre as várias referências do seu passado: Santa
Helena, o marinheiro pensador é o slogan que sintetiza os três discursos da memória
– a Feira, o cordel e a Marinha – funcionando como uma espécie de marketing
pessoal gravado nos produtos utilizados para veicular a sua imagem. No vídeo com a
sua entrevista o vemos com um boné da Marinha e uma camiseta estampada com o
seu slogan. As referências presentes no figurino são reproduzidas no local onde se
desenrola a gravação, feita, a propósito, na própria residência do poeta no bairro de
Madureira. Capítulo à parte na sequência de surpresas reservadas por Santa Helena, a
casa funcionava como um cenário onde centenas de capas de folhetos de sua autoria
cobriam as paredes da varanda e da sala, destinadas à exposição do seu acervo
pessoal. As cenas inusitadas se repetiam nos fundos da casa onde, conduzida por
Santa Helena, me vi diante de várias caixas d’água repletas de documentos destruídos
pelas águas de uma enchente que atingiu a residência do poeta em 2007. Os papéis,
embora inutilizados, permaneciam, 3 anos após à enchente, expostos sob nossas vistas
nos lembrando, com sua incômoda presença, que o destino de algumas memórias só
poderia ser o inevitável desaparecimento no fundo de velhas latas de lixo.
6 O vídeo gravado na residência de Santa Helena falava por si só, indicando,
pela força das suas imagens, que nenhum recurso, além do audiovisual, poderia fazer
jus aos múltiplos sentidos ali reproduzidos. Diante dessa constatação veio a opção de
fazer um filme para apresentação dos resultados da pesquisa sobre a Feira de São
Cristóvão. Que outro meio me permitiria lidar com as inúmeras referências passadas,
primeiro, na entrevista de Santa Helena e, em seguida, na dos demais cordelistas? O
texto produzido como exigência do meio acadêmico, deixava de lado uma série de
informações que apenas o registro audiovisual poderia passar, como o tom de voz, os
gestos e os movimentos dos poetas, representativos da dinâmica de lutas travadas no
ambiente da Feira.
O encontro com Santa Helena foi o primeiro da sequência de seis entrevistas
realizadas para o projeto. Mas, nesse caso, talvez não possamos falar, propriamente,
em entrevista. Inquieto, ele se desviava, o tempo todo, do roteiro preestabelecido, não
respondia às perguntas, só falava o que queria e não parava de andar pela casa, me
mostrando os documentos que ele havia, durante anos, acumulado. O vídeo realizado
na sua residência pode ser considerado como a expressão figurada das teorias
contemporâneas sobre a memória como trabalho e como discurso. No encontro com
os demais poetas o processo se repete, ainda que de forma menos impactante.
Observa-se isso no vídeo com o registro da entrevista de Azulão; também
realizado na residência do poeta em Engenheiro Pedreira, o material gravado reproduz
o mesmo esquema, visível na gravação de Santa Helena, de representação de si,
através da composição do figurino e do cenário. Nesse caso, a imagem será construída
em torno da idéia de tradição, sendo o chapéu de couro típico do sertanejo um dos
elementos centrais na construção dessa mensagem. Outro elemento destaque é a viola,
que reforça o vínculo do poeta com a tradição da cantoria, diferenciando-o dos demais
cordelistas entrevistados que atuavam apenas como poetas de bancada. Também
relevante como elemento de composição da imagem foi o local escolhido para a
entrevista, realizada numa área externa da residência do poeta, com vista para muitas
árvores e bem em frente a uma grande pilha de tijolos. Ali, acompanhado da sua
inseparável viola, ele falou sobre a sua vida, sua chegada no Rio de Janeiro, seu
trabalho como ajudante na construção civil e sua atividade como cantador. As falas,
7 entremeadas com trechos de cantoria de viola, se associam às referências do campo
visual, compondo um pano de fundo a partir do qual o poeta construirá o seu vínculo
com a Feira de São Cristóvão onde, desde a sua chegada ao Rio de Janeiro, em 1949,
atuou vendendo cordéis e cantando romances. As imagens e os sons reforçam o
significado de uma experiência e trajetória singulares, diferenciando o poeta dos
demais cordelistas da Feira, principalmente, de Santa Helena, com quem ele tinha
uma antiga rixa.
Desavenças entre os cordelistas eram, aliás, muitos comuns no ambiente da
Feira. Com Santa Helena, os embates eram frequentes. O perfil polêmico e agitador
do poeta, que estava sempre à frente dos movimentos promovidos pelos feirantes, o
colocava, constantemente, em confronto com as associações dos feirantes, com os
próprios feirantes e, principalmente, com os demais cordelistas. Com Gonçalo a briga
girou em torno da criação da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC)
que, como faz questão de frisar o poeta, nasceu na Feira de São Cristóvão. Esse
vínculo ele busca reforçar em sua entrevista, realizada na sede da ABLC.
Funcionando, desde a sua fundação, em 1988, em um prédio antigo, em Santa Teresa,
a instituição foi idealizada por Umberto Pelegrino que também doou o imóvel para a
instalação da sua sede. A história da fundação da ABLC se liga à própria história de
Gonçalo cuja ligação com o meio intelectual remete ao início da sua vida profissional
na rádio MEC onde fez contatos que seriam importantes na sua futura carreira de
cordelista. Estas referências estarão no centro da entrevista de Gonçalo cuja
apresentação pessoal revela a preocupação de passar uma idéia de sobriedade. O
ambiente escolhido para conceder o depoimento reforça a intenção do poeta de
construir para si uma imagem de respeito e seriedade. Totalmente diferente da relação
personificada de Santa Helena e Azulão com Feira de São Cristóvão e com o cordel
ali praticado, a marca registrada de Gonçalo é a institucionalização do cordel em um
processo onde a Feira teria atuado como ponte para a criação da ABLC.
As entrevistas de Santa Helena, Azulão e Gonçalo revelam, de diferentes
formas, as relações estreitas dos cordelistas mais velhos com a Feira de São Cristóvão
cujas manifestações iniciais coincidem com a chegada em massa de migrantes
nordestinos no Rio de Janeiro. Nessa época, os três poetas, recém chegados à cidade,
8 começaram a frequentar a Feira, então funcionando no Campo de São Cristóvão. É ali
que eles vão se afirmar como artistas e construir suas identidades como porta-vozes
da comunidade nordestina no Rio de Janeiro.
As três primeiras entrevistas deixam claro a condição de pertencimento dos
cordelistas da primeira geração, à Feira de São Cristóvão. Diferente é a relação
estabelecida pelos três cordelistas da segunda geração que, chegados ao Rio de
Janeiro entre as décadas de 1960 e 1970, começaram a frequentar a Feira em um
momento em que o seu funcionamento já estava consolidado, o fluxo migratório
começava a cair, o público frequentador não era mais compactamente nordestino e o
som eletrônico começava a concorrer com a cantoria de viola. Nesse contexto, vai
despontar uma nova geração do cordel na Feira, com destaque para Sepalo Campelo,
Chico Salles e Marcus Lucenna cujas entrevistas revelam a nova relação do artista
popular com aquele espaço, nessas alturas, oferecendo maior espaço à música
eletrônica do que ao cordel e à cantoria. É essa geração de artistas que participará
mais ativamente do processo de transferência da Feira do seu local de funcionamento
original para o interior do Pavilhão de São Cristóvão onde passará para à esfera da
administração municipal.
No processo de incorporação da Feira ao poder público, têm destaque a figura
de Marcus Lucenna que, na época da entrevista, atuava como gestor daquele espaço,
ocupação que conciliava com várias outras atividades, como o radialismo, a literatura
de cordel, a música e a política, representativas da sua trajetória na Feira de São
Cristóvão entre as décadas de 1990 e 2000, período que corresponde ao acervo de
documentos que acumulou sobre o espaço em questão. Esse acervo, além do
disponibilizado por Santa Helena, compõe o corpus de fontes impressas trabalhadas
na pesquisa, do qual constam, folhetos, cartas, bilhetes, fotografias e, principalmente,
recortes de jornais e revistas.
Das fontes impressas recolhidas em outros acervos, destacam-se: 1) folhetos
de cordel sobre a Feira do acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa; 2) reportagens
sobre a Feira do acervo do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular; 3)
fotografias, pertencentes aos acervos dos jornais O Globo, O Dia e Jornal do Brasil,
com imagens da Feira nos primeiros tempos do seu funcionamento no Campo de São
9 Cristóvão; 4) fotografias pertencentes ao acervo particular do fotógrafo Cesar Duarte
que cedeu o direito de uso de sua coleção de fotos retratando a Feira em 1982.
Além do conjunto documental impresso (textual e fotográfico), que constitui o
corpus de fontes preexistentes à pesquisa, destaca-se um outro conjunto de fontes
produzidas, especificamente, para a pesquisa. Trata-se dos vídeos com os
depoimentos dos cordelistas, representativos de um processo de produção de
significados no qual não só o entrevistado participa, mas também o entrevistador.
Nesse caso, dois problemas básicos costumam ser levantados: o primeiro relacionado
às perguntas feitas, que previamente podem conduzir as respostas dadas pelos
entrevistados; o segundo, relacionado à seleção dos trechos dos depoimentos,
eventualmente, escolhidos para enquadrar a análise à determinados pressupostos.
A metodologia da história oral alerta para esses dilemas, chamando atenção
para o tratamento das narrativas sobre o passado, como observou Verena Alberti:
“[...] contar uma história é operar por exclusão, é selecionar e ordenar os
acontecimentos de acordo com o sentido que se lhes quer conferir e se quer
conferir à própria história. Mas isso não quer dizer que o resultado da
exclusão e da seleção não tenha relação com a realidade. Ao contrário, é
preciso tomar cuidado para não incorrermos no extremo oposto, passando
a sustentar que tudo não passa de versões do passado, ou ainda que toda
construção narrativa é ‘ficção’” (ALBERTI, op. cit., p. 69)
Citando o teórico de literatura Lutz Niethammer, Alberti levanta a questão das
histórias que existem dentro das entrevistas de história oral:
“Entrevistas de história oral são fontes que documentam o passado –
experiências pessoais, acontecimentos, conjunturas – e as concepções
sobre passado através de sequências narrativas, isto é, pequenas histórias
cujo sentido está atrelado à forma com que são narradas, sendo impossível
dar conta do primeiro (o sentido) sem considerar o segundo (a forma)
(Ibid. p. 73)
A relação entre sentido e forma, tal como mencionada por Alberti a propósito
da história oral, nos reconduz à questão das disputas verbais na cultura do cordel as
quais chegam mesmo a substituir a ação, como observou Jerusa Pires Ferreira em A
palavra, ocupação de rivais.
“[...] a fala constrói toda uma retórica do combate, sustenta os lances do
desenvolvimento guerreiro, cavalheiresco, chegando mesmo a substituir a
ação. [...] Pode-se dizer, no caso desta literatura ‘popular’ que a
teatralização se adapta ao gosto pelas bravuras e peripécias, e aí quando a
participação do poeta se faz mais incisivamente rítmica em sua narrativa, e
mais enfática e estimulante para o leitor ouvinte espectador, quando se
10 desenrola, com ímpeto, a linguagem imperativa e autoritária, tão de acordo
com os referenciais nordestinos.” (FERREIRA, In: BATISTA et al., 2004,
p. 353)
O comentário deixa claro a estreita ligação entre a temática do combate na
literatura de cordel, as formas verbais e gestuais por meio das quais é produzido o
sentido das ações narradas e o referente sócio cultural em que as disputas verbais se
desenvolvem. Trata-se, como sinalizou Ferreira, de uma “teatralização do mundo,
muito importante para uma sociedade com a que produz os folhetos nordestinos, onde
a função dramática atua como uma espécie de garantia de equilíbrio” (IBID)
No que se refere às disputas entre os três poetas da primeira geração do cordel
da Feira, estas seriam a reprodução, à nível discursivo, de um tipo específico de
relação social hierárquica e autoritária, intensamente experimentada por eles durante a
infância e adolescência, passadas, entre as décadas de 1920 e 1940, no sertão
nordestino, na época ainda bastante isolado em relação às áreas urbanas e alheio aos
processos de modernização do campo que começam a se manifestar nas décadas
seguintes (MELLO e NOVAIS In: SCHWARCZ, 1998). Em tal ambiente, a força da
tradição mantinha-se viva, agindo, para além das representações, sobre as ações.
“Destaca-se a força do simulacro, neste conjunto de atividades lúdicas,
neste mundo ritual onde a forma acaba por agir sobre o conteúdo, passando
a linguagem a ser o próprio rito. Sugere-se então a constatação de como se
fundem nestas situações as antinomias viver e representar, ser e parecer.”
(FERREIRA, op. cit., p. 354)
Em relação a Gonçalo, a sua forma de representação verbal, muito mais
cuidadosa do que a de Santa Helena e de Azulão, possivelmente fruto dos seus
contatos com o meio intelectual carioca após a sua admissão na rádio MEC, não
significa o pertencimento do poeta a um universo social e cultural distinto daquele em
que se situam as experiências dos outros dois. Ao contrário, o que a sua retórica
elabora revela é que, embora em posição diferente, as suas referências se localizam no
mesmo campo conjuntural em que estão situadas as falas dos demais cordelistas da
sua geração. Trata-se, como observou Ferreira,
“da divisão de um só universo, as duas partes fazendo parte de um todo.
Assim Oliveiros e Ferrabraz são uma parte (cristã) e outra (moura) mas são
uníssono de uma mentalidade de mundo e de guerra. [...] parece-me que
estou a escutar os discursos que tantas vezes presenciei entre ‘coronéis’
vizinhos, em minha região natal. É então que cresce a ética cavalheiresca,
a ponto de substituir até a própria retórica da disputa.” (IBID, p. 354-355)
11
A Batalha de Oliveiros e Ferrabraz, que serve como referência às
observações da autora, é um famoso folheto escrito, no início do século XX, por
Leandro Gomes de Barros, considerado o pai da literatura de cordel. Com inúmeras
variações, essa narrativa circulou amplamente pelo sertão nordestino, formando várias
gerações de narradores e ouvintes na ética do combate. Em meados do século
passado, o universo sócio cultural no qual se afirmava o quadro ético e estético do
combate começa a se modificar. É no interior deste universo em rápida transformação
que se enquadram as primeiras experiências dos cordelistas da segunda geração os
quais, como veremos nos vídeos dos depoimentos, procuram demonstrar uma atitude
de neutralidade em relação às rivalidades travadas entre os seus colegas mais velhos.
Percebe-se, com eles, a intensificação dos esquemas de despersonificação das práticas
e saberes populares tradicionais e um processo crescente de institucionalização e
racionalização do funcionamento da Feira de São Cristóvão. Nesse contexto, a
memória já não se refere às experiências vividas, caracterizando-se, ao contrário,
como uma “pós memória” (SARLO, op. cit.), ou seja, uma memória a posteriori,
constituída a partir das histórias acerca das experiências passadas, registradas em
folhetos de cordel e transmitidas dos antigos para os novos frequentadores pela
tradição oral, ainda muito presente no cotidiano da Feira.
As formas de uso da memória verificadas entre as duas gerações de cordelistas
se reproduzem na composição do ambiente da Feira em seus dois espaços, tempos e
formas de funcionamento. No primeiro quadro, a Feira se encontra no espaço aberto
do Campo de São Cristóvão onde, entre meados dos anos 1940 e o início da década de
2000, funcionou como feira livre, sob o controle e a responsabilidade das associações
dos feirantes. Aqui predominavam os processos espontâneos de transmissão de
memórias, processos estes desaparecidos com o desaparecimento do seu local original
de circulação (NORA, 1984). No segundo conjunto de referências, temos como marco
o ano de 2003 quando a Feira foi transferida para o interior do Pavilhão de São
Cristóvão e passou a funcionar sob a administração do poder público municipal.
Nesse caso, começam a se constituir os “lugares de memória” (NORA, op. cit.). A
nova Feira será um deles. O outro, que terá lugar na residência de Santa Helena,
12 expressa o desejo do poeta salvar do esquecimento as experiências vividas, no espaço
da antiga Feira, pelos migrantes nordestinos chegados ao Rio de Janeiro a partir dos
anos 1940.
O filme produzido a partir das fontes coletadas (fotografias com imagens da
antiga Feira e reproduções de material impresso como capas de folhetos e matérias
publicadas pela imprensa) e das produzidas para a pesquisa (os vídeos com os
depoimentos dos poetas e os vídeos com registros da nova Feira) visa traduzir
visualmente os processos de construção da identidade nordestina vividos pela
coletividade participante da Feira de São Cristóvão e as disputas pelas memórias das
suas duas experiências de funcionamento.
A narrativa audiovisual nos permitiu colocar em destaque o papel do discurso
na produção de significados da pesquisa, oferecendo, por meio de sons e imagens,
uma reflexão não apenas sobre o discurso da memória presente nas fontes analisadas,
mas também sobre o discurso produzido a partir do trabalho com essas fontes:
trabalho de análise e interpretação reproduzido através de uma fala em off sobreposta
ao campo visual. Atuando como comentário, a narração em off teve como base um
texto cujo tamanho deveria ser compatível com o tempo disponível a uma
apresentação de trabalho acadêmico, ou seja, em torno de 20 minutos. Com isso, era
necessário calibrar o comentário para fazê-lo encontrar um ritmo correspondente à
cada sequência visando o equilíbrio geral do filme.
Começava, assim, um esforço de adaptação da edição do vídeo aos
pressupostos da pesquisa que deveria colocar em evidência, através de comentários,
imagens, música e montagem, determinada perspectiva sobre a história da Feira de
São Cristóvão, trabalhada originalmente em uma tese de doutorado de quase 300
páginas. A questão era destacar o ponto focal da pesquisa, sintetizando seus
argumentos principais e retrabalhando-os a partir da linguagem audiovisual. Nesse
caso, a busca de solução para as dificuldades próprias à fabricação de um filme de
montagem se confrontavam às exigências da análise histórica tal qual os historiadores
a concebem: descrição e crítica das fontes – no caso do filme, as imagens dos
materiais exibidos articuladas aos comentários; confronto com outros documentos, em
13 especial, fontes escritas coletadas em arquivos; montagem obedecendo a uma lógica
intelectual e científica respaldada nas discussões historiográficas mais recentes.
Com base nessas discussões, o filme se propôs mostrar a dimensão política e
simbólica das lutas pela memória travadas na Feira de São Cristóvão cuja
interpretação e abordagem nos permitiu oferecer uma alternativa às narrativas
produzidas acerca do espaço em pauta, normalmente, permeadas por lugares comuns
e julgamentos preconceituosos. Considerando o impacto dessas narrativas na
construção de uma memória sobre o espaço em pauta, o filme, na medida em que
levanta outras possibilidades de interpretação, se inscreve em uma perspectiva
bastante atual de reflexão sobre a história pública.
Fruto também dos debates historiográficos mais recentes, é a discussão em
torno da adoção de uma metodologia de pesquisa adequada ao trabalho com fontes
iconográficas e videográficas. Entendemos que a utilização do audiovisual como
suporte para apresentação de resultados de pesquisa histórica, embora ainda pouco
adotada no meio acadêmico, pode ser uma opção metodologicamente válida para o
historiador lidar com fontes imagísticas, “em última análise, para discutir a história
em imagens, pela imagem” (DELAGE e GUIGUENO, 2004, p. 130).
Bibliografia
ALBERTI, Verena. Ouvir contar: textos em história oral. Rio de Janeiro, Editora
FGV, 2004.
DELAGE, Christian e GUIGUENO, Vincent. L’historien et le film. Paris, Éditions
Gallimard, 2004.
FERREIRA, Jerusa Pires. “A palavra, ocupação de rivais” In: BATISTA, Maria de
Fátima et. al. (Orgs.). Estudos em Literatura Popular. João Pessoa, Editora
Universitária, UFPB, 2004.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo, Vértice, 1990.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, Ed. Unicamp, 2003.
MELLO, João Manuel Cardoso e NOVAIS, Fernando A. “Capitalismo tardio e
sociabilidade moderna” In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História da vida
privada no Brasil, vol. 4. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.
NEMER, Sylvia. Feira de São Cristóvão: contando histórias, tecendo memórias.
Doutorado em História Social da Cultura, Rio de Janeiro, Pontifícia Universidade
Católica, 2012 (tese)
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14 SARLO, Beatriz. Tempo passado: Cultura da memória e guinada subjetiva. São
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TERRA, Ruth Brito Lemos. Memória de lutas: Literatura de folhetos do Nordeste
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