Download - good at providing close-grained analyses of apparently ... · Alfred Gell) ∗ A antropologia
Anthropology is, to put it bluntly, considered good at providing close-grained analyses of
apparently irrational behavior, performances, utterances, etc.∗
(Art and agency: an anthropological theory, Alfred Gell)
∗ A antropologia é, para ser franco, considerada boa em fornecer análises detalhadas sobre comportamentos, performances, discursos aparentemente irracionais etc.
2 A etnografia por uma outsider à antropologia
“No sapatinho eu vou, pra chega, conquista respeito! Eles querem que você disista, mas jamais se de
por vencido! (...) envolvidão até o pescoço, não fosse assim
aí de mim só tava o osso!”∗ (No sapatinho, Criolo)∗
Este capítulo esclarece as escolhas adotadas que guiaram o
trajeto1 percorrido e experimentado para aproximação dos sujeitos
que ajudam a construir o cenário da body modification, em São
Paulo, a partir da relações estabelecidas com seus integrantes
autodenominados body mods. Escolhe-se como epígrafe as rimas do
rapper Criolo. Os versos trazem à tona os dilemas e possibilidades
envolvidos na decisão em realizar um trabalho etnográfico, quando
se é um outsider à antropologia.
Diante deste solo arenoso, cheio de obstáculos e de difícil
locomoção, o caminho foi “chegar no sapatinho2”, não apenas para
se apropriar do método etnográfico, mas também como forma de
se aproximar dos sujeitos envolvidos na cena da body modification
paulista. Houve vários tropeços, tombos e tomadas de direções
equivocadas que simplesmente não levavam a lugar nenhum,
perdendo-se um tempo inenarrável. Muitas vezes, a sensação era de
se estar perdida mesmo, sem saber qual rumo tomar nem tampouco
1 Uma licença poética para se fazer referência à fundamentação do método adotado, cuja descrição se encontra apresentada ao longo do texto. 2 Gíria urbana que significa agir de maneira cautelosa, sem induzir qualquer precipitação.
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onde se ia chegar. Como o toc toc do martelo em suas batidas
frequentes e ininterruptas, uma pergunta martelava a cabeça:
aonde vai se chegar com isso?
Neste terreno estranho no qual se desconhecia onde se
estava pisando, havia algumas poucas certezas. Era necessário
indagar: quem são estes sujeitos, o que fazem da vida, quais são
suas brigas políticas, por onde circulam, onde e como fazem as
modificações, o que pretendem com isso e qual o sentido que
atribuem a elas.
De acordo com a perspectiva antropológica, era preciso
escutar o discurso dos body mods paulistas do ponto de vista deles
como sujeito “local”. Era essencial privilegiar o aspecto relativizador
propiciado pela experiência de um contato estreito com a diferença
– alteridade – que aqui se dá através da presença dos body mods na
condição de "outro".
Esta postura se refere, na realidade, a um “jogo de espelhos
no qual a imagem do observador aparece refletida no ‘outro’, de
modo a conduzir a busca de significados onde, à primeira vista, a
visão desatenta ou preconceituosa só enxerga o exotismo, quando
não o perigo, ou a anormalidade” (MAGNANI, 1996:5).
Através desse olhar em direção à valorização da alteridade, o
que se pretende através da etnografia como uma escuta do sujeito
“local” é o alargamento do universo do discurso humano (GEERTZ,
2008:10). Aprender, acima de tudo, outras formas de olhar com
vistas a “multiplicar o próprio mundo do observador, povoando-o de
todos os exprimidos, que não existem fora de suas expressões”
(DELEUZE, 1992:132).
A pesquisa vai sendo paulatinamente construída junto com os
interlocutores, a partir de um diálogo aberto e franco entre as
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partes. Melhor ainda, a partir de um jogo interacional fortemente
embasado numa relação de confiança contínua e crescente. Um
procedimento que exige um caminhar a “passos de formiga”, uma
disposição, uma capacidade para ser “ser afetado” por outras
experiências, entendendo sempre que os afetos envolvidos não,
necessariamente, são os mesmos para o observador e para os
sujeitos alvos da observação (GOLDMAN, 2008:8).
Neste processo, entende-se os interlocutores como “dotados
de capacidade reflexiva própria”, enquanto especialistas do
ambiente onde residem, transitam, estabelecem vínculos e criam
afetos e desafetos. Construtores e conhecedores de seu próprio
espaço sociocultural, “são, não obstante, os sujeitos com quem se
deve dialogar para que se possa aprender” (GOLDMAN 2008:7)
outros pensamentos, outras possibilidades de ser e outras formas
de agir.
Aqui, não existem categorias a priori, imperativos
epistemológicos sendo utilizados como forma de adequar o
fenômeno (a ser) estudado a determinados arcabouços teóricos.
Em outras palavras, não há imposições conceituais; não há
aplicação de conceitos extrínsecos sobre a maneira como os
sujeitos constroem e veem seu mundo (VIVEIROS DE CASTRO,
2002:116).
Contudo, esta postura não pode ser interpretada como
negação, em absoluto, de qualquer fundamento conceitual, visto
que “estar treinado e atualizado teoricamente não significa estar
carregado de ideias preconcebidas” (MALINOWSKY, 1978: 23). “A
teoria e a prática são inseparáveis […], mas a afirmação de que o
campo é perpassado pela teoria não exprime a ideia que ele está
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submetido a ela. Por definição, a realidade sempre irá superar a
teoria” (URIARTE, 2012:2), pois:
Os discursos e práticas nativos devem servir, fundamentalmente, para desestabilizar nosso pensamento (e, eventualmente, também nossos sentimentos). Desestabilização que incide sobre nossas formas dominantes de pensar, permitindo, ao mesmo tempo, novas conexões com as forças minoritárias que pululam em nós mesmos (GOLDMAN, 2008:6).
Por fim, é preciso deixar claro que esta postura deve ser
entendida, de acordo com Marcio Goldman, como uma equiparação
conceitual entre formas distintas de percepção e entendimento. O
que, segundo autor, “permite, por um lado, clarear as questões –
sem pretender ‘esclarecer’ nada nem, sobretudo, ninguém. Por
outro, elucidar as transformações do pensamento do observador”.
Neste caso, os “conceitos são usados não como categorias dentro
das quais algumas coisas entrariam e outras não, mas como modos
de organização e formas de criação” (GOLDMAN, 2008:8). 2.1 Alguns conceitos em revista
Se o pressuposto aqui adotado é de que a teoria tem de se
adaptar ao campo e não o contrário, então voilà. Na literatura
antropológica, não raro o termo “nativo” urbano é empregado para
se referir a sujeitos enquanto integrantes de grupos/ grupamentos
ou associações que se conformam no contexto de uma grande
cidade. No domínio da relação observado/observador, Viveiros de
Castro (2002:113), por exemplo, estabelece que o “nativo” não
precisa ser especialmente selvagem, ou tradicionalista, tampouco
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natural do lugar onde o antropólogo o encontra. Trata-se, em suma,
de uma terminologia muito ampla.
Segue-se, desse modo, o rastro deixado por Magnani (1992)
ao criticar o uso da expressão “tribos urbanas”. O autor evidencia
que este termo deve ser empregado no sentido mais metafórico
que conceitual, em função de suas limitações para retratar as
formas de associação que se estabelecem nos meios urbanos.
Como contraponto à terminologia nativo urbano, sugere-se,
então, a apropriação da gíria urbana “local” por ter um sentido mais
específico. Esta é empregada para se referir a sujeitos naturais,
pertencentes ou habitués de determinados espaços, áreas ou locais
urbanos, que a antropologia social urbana retrata como circuito,
“pedaço”, mancha ou trajeto3.
A segunda abordagem considerada insuficiente para
caracterização do fenômeno em questão, refere-se ao emprego do
termo grupo, em conformidade com a visão da sociologia e da
antropologia social tradicional. Além de retratar de modo
inapropriado o tipo de conformação peculiar à BM, julga-se que a
identificação de uma estrutura organizacional uniforme –
representada por um conjunto de sujeitos com interesses, valores e
ideais comuns, idade aproximada e pertencimento ao mesmo
estrato socioeconômico – muito precária.
Suscetível a grandes questionamentos dentro e fora do
campo destas respectivas áreas de saber, o termo não dá conta dos
tipos de conformações existentes nem caracteriza a grande
vitalidade peculiar às atuais formas de configuração socioculturais.
Os vínculos se alteram constantemente, na medida em que elos são 3 Para uma discussão mais ampla sobre os recortes espaciais – circuito, pedaço, mancha e trajeto – no interior da antropologia urbana paulistana, consultar, por exemplo, Magnani 2005.
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feitos e desfeitos com grande fugacidade. As relações são
efêmeras, muitas vezes, pontuais e momentâneas, como identificou
Maffesoli (2000).
Por fim, refuta-se o emprego do conceito movimento social
urbano para descrever a BM. Trata-se, em suma, de uma
inadequação conceitual, visto que, de acordo com Boudon; Besnard;
Cherkaoui e Lécuyer (1990), a ideia de movimento supõe uma ação
coletiva por meio da qual um grupo, pautado por valores comuns,
se mobiliza de maneira muito organizada para lutar por algum ideal
político ou para transformação de uma determinada realidade social.
No caso em particular, é preciso considerar que a BM não
pressupõe nenhum engajamento de caráter “permanente” através
do levantamento de alguma bandeira específica. Pode-se apenas
afirmar que há um emaranhado de interesses às vezes provisórios,
às vezes mais duradouros, mas jamais inabaláveis ou imutáveis. É
preciso ter em mente que o sujeito contemporâneo vive em estado
contínuo de metamorfose, “desdizendo, com frequência, aquilo
tudo que havia dito antes” 4.. 2.2 Afinal em que consiste o método etnográfico?
Em linhas gerais, o método etnográfico diz respeito ao estudo
das experiências humanas a partir de uma experiência pessoal, [...]
com vistas à sua transformação em um tema de pesquisa, que
assume a forma de um texto etnográfico [guiado pela honestidade
4 Certa homenagem, deferência ao roqueriro baiano Raul Seixas, carinhosamente conhecido como Raulzito.
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e pelo respeito à voz do interlocutor ] (GOLDMAN, 2006: 167,
acréscimo das autoras).
Além desta honestidade, outro aspecto essencial próprio ao
fazer etnográfico é o “ir fundo”, ou o “se jogar de cabeça”, que
compreende resumidamente três fases: ler, ouvir/anotar e escrever.
A primeira, descrita aqui como leitura, refere-se ao mergulho na
teoria, nas informações e nos comentários e explicações já feitos
sobre o tema a ser estudado.
A segunda consiste na imersão no campo propriamente dito.
Em termos concretos, abrange a coleta de informações sob a forma
de descrições minuciosas nas quais cada detalhe é pormenorizado.
Além de se anotar tudo, são feitas transcrições de depoimentos
conquistados por meio de “perseguições sutis às pessoas através
de perguntas, num primeiro momento, obtusas, visto que não se
sabe o que vai ser importante” (GEERTZ, 1973:20).
Cabe ainda ressaltar, que no caso das pesquisas
desenvolvidas no entorno da cidade, é possível utilizar as
tecnologias existentes bem como fazer, de forma comprometida,
várias visitas frequentes aos lugares.
Esta postura é descrita em termos de um estar perto e ao
mesmo tempo longe, segundo José Guilherme Cantor Magnani:
…Um olhar de perto e de dentro, mas a partir dos arranjos dos próprios atores sociais. Isto quer dizer estar atento às formas por meio das quais eles se avêm para transitar pela cidade, usufruir seus serviços, utilizar seus equipamentos, estabelecer encontros trocas nas mais diferentes esferas – religiosidade, trabalho, lazer, cultura, participação política ou associativa etc. (MAGNANI, 2002:18).
Por fim, o seu arcabouço constitui e abarca um “corpus” de
pesquisa sobre as maneiras através das quais os sujeitos interagem
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no meio urbano, de modo que o recorte não necessariamente “está
restrito a uma delimitação geográfica específica” (URIARTE,
2012:180).
A terceira e última fase corresponde à escrita. Mais
precisamente, à narrativa da experiência etnográfica. Esta fase
envolve, segundo Bronislaw Malinowski, uma descrição dos
procedimentos empregados no recolhimento do material
etnográfico. Nela, realiza-se “um dessecamento dos instrumentos
utilizados, da maneira como as observações foram conduzidas, do
seu número, da quantidade de tempo que lhe foi dedicado e do grau
de aproximação com o qual cada medida foi realizada”
(MALINOWSKY, 1978:18).
O intuito é, então, “fornecer ao leitor todas as condições em
que observações foram efetuadas”. Sua construção deve ser feita
de tal forma que, “num olhar rápido, seja possível avaliar com
precisão o grau de conhecimento pessoal do autor sobre os fatos
que descreve e formar uma ideia relativa às condições de obtenção
de informação junto aos “sujeitos locais” (MALINOVSKI, 1978:18-
19). Isso porque:
na etnografia, o autor é, simultaneamente, o seu próprio cronista e historiador; e embora as suas fontes sejam, sem dúvida, facilmente acessíveis, elas são também altamente dúbias e complexas; não estão materializadas em documentos fixos e concretos, mas sim no comportamento e na memória dos homens vivos (MALINOWSKI, 1978:19) Cada pesquisador busca uma solução muito particular para
lidar com este tipo de situação. A solução aqui adotada foi
envolver, o máximo possível, os mais próximos no processo. Desse
modo, os capítulos referentes aos conceitos que descrevem à BM,
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como a apresentação de seu panorama geral foram submetidos aos
entrevistados mais chegados e amplamente discutidos com o
grande interlocutor, e hoje amigo, Tiago Soares.
2.3
A cidade como campo
Num processo interacional, a cidade é percebida como um
lugar caracterizado pelo entrelaçamento da cultura objetiva e
subjetiva “que resulta da mudança acelerada e ininterrupta das
impressões interiores e exteriores” Simmel 5 (2005:578). Nesse
sentido, é o produto direto de um complexo sistema de práticas de
poder exercidas, no âmbito da política, economia e arquitetura, por
diferentes agentes (Estado e suas agências, partidos, corporações
financeiras, imobiliárias, redes viárias, ONGs, associações,
residentes, turistas, operários, funcionários, segmentos excluídos,
sujeitos “desviantes” etc.). Ao mesmo tempo, engendra um
universo imaginário sofisticado que aparece inscrito na sua
superfície em termos de linguagens, sensibilidades, construções
identitárias, lutas abraçadas, de modo a produzir sujeitos e
processos de subjetivação.
5 Embora o autor aborde esta questão nos termos de uma análise acerca dos impactos da vida moderna na cidade sobre o estado psíquico do sujeitos, ele percebe a cidade como produtora de subjetividade. Forjada, mais exatamente, a cada saída à rua, que se dá ao ritmo das diversidades econômica, profissional e social, a vida na metrópole se caracteriza por uma oposição profunda àquela na pequena cidade e no campo, cujo ritmo é mais lento, mais rotineiro e de fluxo mais uniforme em função de seu princípio mais sensível-espiritual. Lugar da economia monetária, a cidade é então guiada pelo espírito moderno da calculabilidade e exatidão que tende a transformar a vida prática ao ideal da ciência natural, convergindo assim para a criação de condições psicológicas que aparecem no comportamento blasé, na atitude de reserva comuns aos sujeitos das grandes cidades. Para uma análises mais detalhada, ver Simmel (2005).
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Em resumo, constitui um lugar por excelência em que se
desenvolve e se estabelece as relações sociais, político-econômicas,
cuja arquitetura pode ser vista, em última instância, como um
reflexo dessa dinâmica. Trata-se assim de um imbricamento, de um
entrelaçamento entre a carne e pedra por meio do qual essas
experiências corporais dão forma aos processos de materialização
de subjetividades, tanto em seu aspecto fisiológico quanto
psicossocial Sennett (2008).
Cosmopolita, plural e contrastante, a cidade “combina o
antigo e o moderno, o conhecido e a novidade, o tradicional e a
vanguarda, a periferia e o centro” (MAGNANI, 1996). Constitui-se,
portanto, num lugar de extrema complexidade, que emerge da
justaposição de uma multiplicidade de personagens na qual idade,
procedência, estrato social, interesses, comportamentos, hábitos,
crenças e valores diferentes se articulam. Solo fértil onde arranjos
são formados a partir de uma emaranhada rede de interações que
transcorrem de uma vida de grande circulação, cuja concretude se
materializa em conexões, trocas, conflitos, disputas espaciais e
políticas enfrentadas pelo sujeito “em prol da sua existência
corpórea” (SIMMEL, 2005:577).
Mais ainda, é o epicentro das manifestações contrárias a
estratégias e práticas abusivas que, segundo Michel Foucault, visam
conduzir e controlar o comportamento dos sujeitos. Ou seja, é o
lugar, por excelência, de onde são esboçadas e traçadas as mais
diversas táticas de enfrentamento às estratégias de controle
minucioso, nas quais o objetivo de seu exercício se dá sobre cada
aspecto da vida dos sujeitos através de relações específicas de
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poder 6 enquanto prática social, de modo que a cidade passa a
oferecer:
um olhar diferenciado sobre ela própria, os sujeitos que a ocupam e suas formas de expressão e luta; o imaginário, as apropriações simbólicas e as relações estéticas aí envolvidos apontam sujeitos ativos que atuam na cidade, ressignificam formas e conteúdos, expressando-se por meio de seus corpos, assim como das paredes, dos postes e muros urbanos (OLIVEIRA, 2007: 65).
Pulverizado pelo corpo da cidade e difundido para além de seus
muros e interior das suas instalações de concreto armado, este
gerir a conduta dos sujeitos e o corpo social é um jogo dinâmico. A
contrapartida se desenrola nas esquinas perigosas, pulsantes e
atraentes, que configuram o lugar de onde lutas são travadas num
continuum enfrentamento de forças entre as táticas de liberdade e
os estados de dominação dos jogos de poder. A regra é a
incorporação contínua das incansáveis invenções que lhe são
contrárias. Portanto, se resistir, já não é uma alternativa
realisticamente viável, nela – cidade – se esboçam manifestações de
contra-condutas através de possíveis erupções de subjetivação.
6 Para Foucault, não existe o poder em si, mas relações sociais de poder que, obviamente como toda relação, são móveis, mutantes e deflagradoras de posições desiguais e assimétricas, atravessando os sujeitos sem se fixar nada ou em ninguém. Em outras palavras, tais relações de poder compreendem práticas sociais dinâmicas exercidas em rede, de modo que só existe em ação e, acima de tudo, enquanto uma relação de força que circula entre os sujeitos. Nas suas malhas, os indivíduos estão sempre em posição de exercer o poder ou de sofrer sua ação. Para uma análise mais de talhada, ver, por exemplo Foucault (2002; 2011).
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2.4 O fazer antropológico na cidade de São Paulo
A body modification é um fenômeno peculiar às paisagens
urbanas, que floresce na capital paulista como uma subcultura
(HEBDIGE, 2002) própria do final dos anos de 1980. Ganha grande
visibilidade nacional na década seguinte enquanto formas de
expressão marginais/marginalizadas, inicialmente, de jovens
oriundos de camadas médias e médias altas, que residiram em
cidades europeias, como Londres, Berlim e em alguns estados
norte-americanos, a exemplo da Califórnia. A partir dos anos de
2000, a maior parte destes jovens abastados se afastam da BM,
enquanto ela se pulveriza entre os segmentos com menos acesso
aos bens de consumo, chegando finalmente a Grande São Paulo. Há
a partir daí há uma proliferação de estilos e de práticas
“underground” produzidos no interior desta subcultura, hoje,
autointitulada “comunidade”, que atualmente se caracteriza pela
extrema heterogeneidade no que concerne à idade, inserção
socioeconômica e, até mesmo, em relação às práticas.
Portanto, os body mods não podem ser tratados como
pertencendo a um movimento formalmente organizado e/ou
estruturado. Não se trata de um grupo ou grupamento em
específico. Tampouco a BM pode ser vista como uma aglutinadora
de correntes ou de vertentes, em conformidade com o sentido dado
a estas terminologias pela sociologia tradicional ou antropologia
social. Além da ausência de qualquer parâmetro que defina um
grupo, não há disputas7 entre eles, bem como não se trata de
7 Esta afirmativa de ausência de disputa não pode ser interpretada como uma postura naïve, acreditando que seja uma comunidade plenamente uniforme, sem ausência de conflitos internos. Um piercer muito popular de São Paulo, por
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antagonismos entre dissidentes, causados por fissuras internas e
rupturas ideológicas, segundo sugerem os termos correntes ou
vertentes.
Despontam pelas ruas de forma dispersa e deslizam entre
diversas direções em termos de práticas, interesses e valores. O
elemento comum, que não chega a si configurar um elo
propriamente dito, é o gosto pelas modificações corporais
consideradas extremas. Para descrever e retratar a complexidade
que envolve a forma como os body mods estão “conectados” entre
si, propõe-se defini-los como uma subcultura que se expressa
através do que está se chamando aqui de movimentação urbana.
Esta terminologia movimentação urbana engloba a dispersão
geográfica – no caso em questão, Centro antigo, Vila Madalena,
Tatuapé, Osasco, Campinas etc. – a heterogeneidade
socioeconômica e cultural, bem como o fato de nem sempre e
necessariamente ser reconhecida pelos sujeitos, como atestam os
enunciados que afirmam a singularidade do sujeito, negando
qualquer tipo de filiação: “não me defino, hahaha” ou não gosto de
exemplo, já chegou a denunciar o modificador corporal venezuelano Emilio Gonzalez por práticas ilegais, quando este esteve no Brasil para um evento idealizado por outro profissional igualmente conhecido na cena da BM paulista. Este mesmo piercer foi responsável por também denunciar o norte-americano Steve Haworth às autoridades paulistas, em um workshop realizado em dezembro de 2014, na cidade de São Paulo, que integrava o calendário das comemorações de 20 anos de carreira do artista. Considerado um dos nomes mais importantes da cena da modificação corporal contemporânea, Steve Haworth é visto como o responsável pela popularização dos implantes subdermal e transdermal, comumente conhecidos como 3D. É também considerado inventor do “Metal Mohawk” e dos chamados, numa tradução livre, elevadores dérmicos – instrumentos cirúrgicos próprios para estas modificações, de modo que foi um episódio deveras traumático e constrangedor para os organizadores do evento. Cabe igualmente ressaltar que a maior parte das denúncias contras os profissionais que fazem eye ball tattoing é feita por integrantes da própria comunidade.
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rótulos. O grande diferencial do termo movimentação urbana é a
não exigência de critérios mínimos de adesão.
Outro aspecto é que tem ainda a vantagem de desviar-se das
implicações carreadas pelo termo “movimento”, que denotaria uma
intencionalidade e uma organização que não se aplicam aos laços
que conectam os body mods. Além disso, a “movimentação”
exprime melhor a dimensão corpórea, descontínua e trajetual,
dessa maneira de ocupar e de tornar-se visível nos espaços
urbanos8.
No que concerne ao recorte espacial, à maneira pública e
visível como os body mods interagem e estão inseridos no espaço,
adota-se o conceito de circuito, enquanto produto direto de suas
escolhas e de seus valores, assim como fator determinante para o
desenvolvimento das práticas de modificação.
Identificado pelos frequentadores costumazes por seu
conjunto, a noção de circuito descreve “o exercício de uma prática
ou a oferta de determinado serviço por meio de estabelecimentos,
equipamentos e espaços que não mantêm entre si uma relação de
contiguidade espacial” (MAGNANI, 2005:177). Há, assim, o circuito
das galerias de arte, o circuito dos restaurantes vegetarianos, o
circuito das feiras orgânicas, o circuito das rodas de samba, o
circuito dos clubbers, o circuito dos body mods e assim por diante.
Por fim, as análises propostas nesta pesquisa dialogam com os
estudos sobre subculturas 9 e suas diferentes práticas enquanto
8 Este termo surgiu a partir de uma ampla discussão com a Denise Portinari, após percebemos que havia, entre os pesquisadores do tema, uma grande dificuldade para descrever o tipo de configuração social que poderia caracterizar a BM. 9 Gupta; Ferguson (1992) problematiza a ideia de subculturas no espaço pulverizado da pós-modernidade. Para eles, trata-se de uma tentativa pouco eficiente de se questionar a noção de cultura ancorada a locais definidos. Embora sejam receptivos à tentativa de preservar a ideia de diferentes “culturas” dentro de uma mesma zona geográfica e espaço territorial a partir de sua relação com
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formas de -condutas contra que se inscrevem na trama da cidade.
Retrata, desse modo, a complexa dinâmica urbana contemporânea,
com base numa discussão que envolve espaço, poder, corpo e
identidade sob uma perspectiva estética.
Nesse plano, dirige-se um olhar atento para a cidade no ensejo
das reflexões que permeiam o universo da antropologia social
urbana. Mais exatamente, circunscreve-se as questões referentes ao
fazer antropologia na cidade 10 . A unidade de análise não se
constitui, por conseguinte, a partir de um ponto de vista no qual a
cidade é percebida como uma totalidade ou uma forma específica
de assentamento (MAGNANI, 2002:25). Não se resume a um mero
palco onde a ação social se desenvolve.
As questões aqui tratadas pertinentes ao universo da BM
paulista não se inserem nas discussões que abordam os fenômenos
que emergem na dinâmica das grandes cidades como patologia
social. Isto é, como decorrente dos transtornos – desemprego,
violência, risco etc. – oriundos do crescimento rápido e
desorganizado da metrópoles, de uma administração pública
negligente e omissa que atua em proveito das grandes corporações
etc.
É inegável que mazelas e distorções socioeconômicas são, em
larga medida, decorrentes/reflexos de um sistema político uma cultura considerada dominante, não enxergam em tal pressuposto a possibilidade de se questionar/desconstruir a associação naturalizada de cultura com lugar de forma verdadeiramente fundamental, por julgar que a perspectiva inerente à visão das subculturas desconsidera o fato de que a cultura se situa no interior de espaços sempre interligados. 10 A escolha do termo antropologia na cidade reflete a tomada de decisão em analisar uma prática urbana em particular ao invés de a cidade em seu conjunto. O que remete a uma discussão bastante debatida no campo, que aparece no interior da disciplina, nos termos de uma antropologia na cidade ou da cidade: o estudo dos seus pedaços ou da cidade como um todo. Para uma análise mais detalhada, ver, por exemplo, Le Guirriec (2008).
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entrelaçado aos interesses econômicos de grandes conglomerados
nacionais e internacionais, bem como de instituições financeiras na
condição de produtores de determinados serviços, informações e
imagens.
Contudo, é preciso considerar que a cidade, como afirma José
Guilherme Cantor Magnani, não é um mero resultado de forças
econômicas, elites, lobbies políticos, interesse mobiliários e de
transporte etc., nem muito menos uma entidade à parte de seus
moradores. Vital, concentra sujeitos de diferentes origens, ações,
tensões, relações de força, atividades, pontos de encontro, redes
de sociabilidade. A própria dimensão de uma grande metrópole
necessariamente impõe e impulsiona uma transformação,
reconfiguração “na distribuição e na forma de seus espaços
públicos, nas suas relações com o espaço privado, no papel dos
espaços coletivos e nas diferentes maneiras por meio das quais os
agentes usam e se apropriam de cada uma dessas modalidades de
relações espaciais” (MAGNANI, 2002:15).
O trabalho igualmente não se insere nas análises urbanas que
versam sobre a atomização, a segregação, o narcisismo manifestos
em relações impessoais, despersonalizadas, utilitaristas,
secularizadas, particulares à banalização da vida na grande
metrópole que promove a desintegração dos laços tradicionais. Com
um teor fortemente relacionado ao que Max Weber chama de
desencantamento do mundo, cuja base de sustentação remete ao
“protestantismo ascético e suas máximas sobre a conduta
socioeconômica da vida cotidiana” (2001:113), este tipo de
discurso retrata uma fragmentação e desconexão radical do sujeito
frente ao ambiente no qual está inserido, desconsiderando qualquer
laço de sociabilidade, arranjos etc., em razão de seu isolamento em
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meio às massas, como o exemplo retratado pelo escritor e poeta
Edgar Allan Poe, em seu notável conto “O homem da multidão”.
Tampouco é identificado como parte das tendências pós-
modernas, as quais fluem pelos condutos que conformam o sistema
econômico mundialmente integrado, vulgarmente conhecido como
capitalismo global ou mundialização do capital. Sua atuação,
segundo Otília Arantes, se dá em dois eixos: uma uniformização, em
escala mundial, de base econômica, tecnológica, midiática que não
só gera descompassos, segregações, guetos multiculturais e
multirraciais, mas também promove desterritorializações anárquicas,
crescimentos anômalos e transgressivos. Num segundo plano,
promove o desmonte dos Estados nacionais e a transformação dos
valores locais em mercadorias a serem igualmente consumidas e
recicladas na mesma velocidade em que se move o capital
(ARANTES, 1998: 187-188).
As discussões aqui são de outra ordem. Obviamente, as
grandes cidades compõem e conformam o mercado de capital
mundial comum. Por este motivo, tornam-se determinantes no fluxo
e na destinação de bens e recursos multinacionalizados. Mas
também é igualmente inegável que oferecem uma rede enorme de
produtos e serviços, assim como geram oportunidades de trabalho,
produzem modos de vida e comportamentos, os quais podem ser
compatíveis com o que Magnani (2002:15) define como “circuito
dos usuários ‘solventes’ do grande capital internacional” ou
deliberadamente refratários ou excluídos destas formas de ser e
consumir.
Portanto, “toda essa diversidade leva a pensar não na
fragmentação de um multiculturalismo atomizado, mas na
possibilidade de sistemas de trocas de outra escala, com parceiros
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até então impensáveis, permitindo arranjos, iniciativas e
experiências de diferentes matizes” (MAGNANI, 2002: 15). 2.5 Para além da fragmentação urbana
Apesar desta multinacionalização cultural frequentemente
transcrita nos termos de um mercado de capital comum e de escala
global, é necessário reconhecer que estes mesmos fluxos globais se
diversificam em conformidade com as representações culturais
locais, à medida que os sujeitos incorporam o sistema mundial a
seus próprios valores e visão de mundo (SAHLINS, 1997:52).
“Agora passa, então, a existir uma cultura mundial marcada mais
por uma organização da diversidade que por uma replicação da
uniformidade” (HANNERZ, 1990:237). A este respeito Bruno Latour
afirma:
As culturas supostamente em desaparecimento estão, ao contrário, muito presentes. Ativas, vibrantes, inventivas, proliferam em todas as direções, reinventando seu passado, subvertendo seu próprio exotismo e voltando-se para o seu próprio bem. Transforma a antropologia tão repudiada pela crítica pós-moderna em algo favorável a ela, ‘reantropologizando’, se me permitem o termo, regiões inteiras da terra que se pensava fadadas à homogeneidade monótona de um Mercado global e de um capitalismo desterritorializado (LATOUR,1996:5)11.
11 The presumed vanishing cultures are very much present. They are active, vibrant, inventive, proliferating in all directions, reinventing their past, subverting their own exoticism and turning to their own good. The very anthropology so disavowed by postmodern criticism: “reanthropologizing” whole regions of the earth supposed to have faded into the monotonous homogeneity of a global market and deterritorialized capitalism.
55
Para o antropólogo Lévi-Strauss, por exemplo, “a diversidade
cultural não deve conduzir a uma observação fragmentária ou
fragmentadora, uma vez que esta heterogeneidade é menos
resultado do isolamento dos grupos humanos que das relações
estabelecidas por eles entre si”12, de modo que inúmeros hábitos e
comportamento proveem, “não de qualquer necessidade interna ou
acidente favorável, mas apenas da vontade de não permanecerem
atrasados em relação a um grupo vizinho que submetia a um uso
preciso um domínio em que nem sequer se havia sonhado
estabelecer leis” 13 (LÉVI-STRAUSS, 1952:17). Portanto, as
disposições para unificação cultural via a globalização econômica do
mercado não são um fenômeno recente. O tratamento dispensado
às grandes metrópoles como uma arena, na qual o sentido de
comunidade ou localidade é estritamente fechado, insere-se naquilo
que o antropólogo Marshall Sahlins chama de “novas versões da
nostalgia antropológica do ‘nativo evanescente’” (SAHLINS,
1997:50).
Em última instância, perceber a cidade como sendo uma
entidade fechada, independente e autônoma leva a uma associação
naturalizada de cultura com lugar. O desafio é romper com esta
concepção, a fim de entender a mudança social e a transformação
cultural como estando situadas dentro de espaços interligados, de
modo que se possa revelar as relações de poder em sua
capilaridades, ramificações e extremidades, linhas de força e
12 La diversité des cultures humaines ne doit pas nous inviter à une observation morcelant ou morcelée. Elle est moins fonction de l’isolement des groupes que des relations qui les unissent. 13 Non de quelque nécessité interne ou accident favorable, mais de la seule volonté de ne pas demeurer en reste par rapport à un groupe voisin qui soumettait à un usage précis un domaine où l’on n’avait pas songé soi-même à édicter des règles.
56
enfrentamentos. A hipótese da autonomia dos espaços apenas
“permite ao poder da topografia esconder com sucesso a topografia
do poder”14 (GUPTA; FERGUSON,1992: 8).
Desse modo, se entende que há múltiplas formas de
existências vividas localmente num mundo hierarquicamente
interligado ao invés de naturalmente desconectado. Tal premissa,
segundo Gupta e Ferguson (1992), torna as mudanças culturais e
sociais não uma questão de contato cultural e de articulação, mas
de repensar diferença através da conexão, pois:
...Tendo em mente que noções de localidade ou comunidade se referem tanto a um espaço físico demarcado quanto aglomerados de interação, podemos ver que a identidade de um lugar surge especificamente pela interseção de seu envolvimento com um sistema de espaços hierarquicamente organizados, a partir de sua construção cultural como comunidade ou localidade 15 (GUPTA; FERGUSON, 1992:9).
Nesta mesma linha de entendimento, Marshall Sahlins chama
atenção para os contrastes ofertados pela possibilidade transcultural.
Segundo o autor, emerge todo um novo campo para a comparação, não
apenas entre as configurações doméstica e ultramarina das comunidades
de uma mesma sociedade translocal, mas também entre diferentes tipos
de formações culturais translocais (SAHLLINS, 1997:111).
14 It has enabled the power of topography to conceal successfully the topography of power. 15 Foregrounding the spatial distribution of hierarchical power relations, we can better understand the process whereby a space achieves a distinctive identity as a place. Keeping in mind that notions of locality or community refer both to a demarcated physical space and to clusters of interaction, we can see that the identity of a place emerges by the intersection of its specific involvement in a system of hierarchically organized spaces with its cultural construction as a community or locality.
57
2.6 A etnografia como crítica
Ultrapassando as fronteiras da filosofia, a etnografia na
cidade é entendida aqui como um prolongamento daquilo que Michel
Foucault define como atitude crítica16. Isto é, um distanciamento de
seu passado evolucionista, etnocêntrico. Uma recusa desta “prática
histórico-filosófica [...] de fabricar como por ficção a história que
seria atravessada pela questão das relações entre as estruturas de
racionalidade, que articulam uma produção contínua de discurso de
verdade sobre o sujeito e os mecanismos de assujeitamento que a
eles são ligados” (FOUCAULT, 2000: 44).
O que requer, ou melhor, demanda estar em estado contínuo
de alerta para “as regularidades e variações de práticas e atitudes,
reconhecer as diversidades e singularidades dos fenômenos sociais
para além das suas formas institucionais e definições oficializadas
por discursos legitimados por estruturas de poder” (ECKERT;
ROCHA, 2008: 3). Para tanto, é preciso considerar as chamadas
ciências como um “jogo de verdade” muito particular, intimamente
relacionado a técnicas específicas utilizadas pelos seres humanos
para entender a si próprios17 (FOUCAULT, 1988:18).
Logo, a etnografia como postura crítica envolve o
mapeamento de discursos que circulam e funcionam como verdades
no interior do corpo social, ou que passam por tal, e que por este
motivo detêm poderes específicos sobre o sujeito (FOUCAULT,
16 Embora Foucault não seja antropólogo, a escolha deliberada em trabalhar a etnografia sob uma perspectiva foucoultiana diz respeito ao fato de sua grande influência em várias áreas do conhecimento, inclusive é bastante utilizados por autores dentro da própria antropologia. 17 To analyse these so-called sciences as very specific "truth games" related to specific techniques that human beings use to understand themselves.
58
2011:128). Isto é, compreende o esmiuçamento detalhado de
procedimentos de sujeição que possibilitam a gestão minuciosa da
conduta18 dos homens. É, por assim dizer, a atitude de suspeitar,
observar e identificar os processos e estratégias de governo dos
corpo físico e social, que no caso desta pesquisa em particular, se
caracteriza como “livre” adesão aos cânones estéticos. Mais ainda,
e sobretudo, é a atitude detectar as linhas de fuga, que escapam
aos discursos, técnicas e práticas de assujeitamento.
Para Michel Foucault, os mecanismos de assujeitamento
estão intrinsecamente articulados ao problema do governo. Por
governo, o autor entende, em sentido amplo, a expansão de um
conjunto de processos na sociedade, caracterizado pela
pulverização e multiplicação de tecnologias que visam a dirigir, guiar
e conduzir a conduta dos sujeitos, individual e coletivamente, em
domínios variados, tornando-se cada vez mais detalhadas e
meticulosas.
Tais mecanismos, por sua vez, conformam e ao mesmo
tempo constituem as rédeas daquilo que o autor define como arte
de governar: arte pedagógica, política, econômica, estética etc.
Invariavelmente, referem-se a “um difícil e versátil equilíbrio de
complementaridade e conflito entre técnicas que asseguram a
coerção e processos por meio dos quais o eu é construído e
modificado por si próprio” (FOUCAULT, 1993:209). Suas bases
remetem ao pastorado cristão, que, em última instância, diz
respeito à história do sujeito no Ocidente, na medida em que:
18 Buscando citações em Montaigne, Michel Foucault (2008a: 255) sugere que a palavra conduta se refere a duas coisas. É, de fato, a atividade que consiste em conduzir, a condução, mas é também a maneira como uma pessoa se conduz, a maneira como se deixa conduzir, a maneira como é conduzida e como, afinal de contas, ela se comporta sob o efeito de uma conduta que seria ato de conduta ou de condução.
59
o pastorado se configura como “campo de obediência generalizado, fortemente individualizado, em cada uma das suas manifestações. Instantâneo e limitado, mesmo os pontos de autodomínio nele presentes ainda são efeitos de obediência” (FOUCAULT, 2008a: 237).
Contudo, uma verdadeira explosão desta arte de governar
(FOUCAULT, 2000:37) insurge em meados do século XV, de modo
que seu teor se transforma profundamente. Portanto, “uma das
questões fundamentais passa então a ser: como governar os pobres
e os mendigos, como governar uma família, uma casa, como
governar os exércitos, como governar os diferentes grupos, as
cidades, os Estados, como governar seu próprio corpo, como
governar seu próprio espírito” (FOUCAULT, 2000: 37).
A partir daí, passa a existir, então, segundo Michel Foucault,
uma política de sofisticadas tecnologias, nas quais certos discurso e
técnicas se articulam com vistas ao exercício de dominação no
âmbito do governo do Estado, dos outros e de si mesmo, de
maneira efetivamente calculada e refletida. Isto é, dão origem ao
Estado moderno, ao mesmo tempo em que criam condições
favoráveis ao seu fortalecimento, como efeito direto de um
processo denominado pelo autor de governamentalização.
Por esse termo, entende-se um Estado guiado pela razão,
enquanto um conjunto de princípios, leis e finalidades. A ele
corresponde uma sociedade de regulamentos e de disciplinas
controlada pelos dispositivos de segurança frente ao “risco”. Tem
por objeto o sujeito individual e o corpo social como um todo, ao
mesmo tempo em que se utiliza da instrumentação de saberes
estatístico, econômico, bélico, médico etc. (FOUCAULT, 2008a).
O real alcance desta proliferação e disseminação de
tecnologias de controle das condutas através de técnicas de
60
sujeição, não pode ser pensada de forma dissociada das práticas de
contra-condutas e subjetivação. Nascem como recusa à
governamentalização sob o formato de riscos, traçados, esboços de
táticas que vão delinear quadros de lutas específicos contra os
valores apresentados pela sociedade e os postos procedimentos por
ela em prática para conduzir os outros e a si mesmo, e que neste
caso em particular, ganham a feição de um contra-ataque aos
ditames e proibições determinados pela estética através de seus
cânones quem regem o que ela mesmo define como bom gosto.
Configuram-se em formas de pequenas revoltas de caráter
individual ou coletivo, ou como se chama aqui, de movimentações
urbanas de insubordinação a partir de conformações de pequenas
comunidades mais ou menos organizadas, mais ou menos
clandestinas. As contra-condutas apresentam, assim, certa
consistência e alguma solidez, ao mesmo tempo que também lhe é
conferida certa produtividade ao gerar, seguramente, algumas
estranhezas à estrutura de poder, “que se atribui, por encargo, [...]
conduzir os homens em sua vida, em sua existência cotidiana”
(FOUCAULT, 2008: 264).
A ideia de contra-condutas, por sua vez, encontra-se em
estreita relação com a noção de subjetivação enquanto forma
política de sublevação e enfrentamento. Neste caso, “o sujeito já
não designa simplesmente o indivíduo sujeitado, mas a singularidade
que se afirma na resistência ao poder através das ‘revoltas de
conduta’, das manifestações de contra-condutas.” (FOUCAULT,
2008:511).
Parafraseando Foucault (2000a:3), trata-se de uma atitude
política incorporada por uma maneira de pensar, que aqui aparece
da seguinte forma: como se subtrair às estéticas dominantes, como
61
não se deixar ser governado pela estetização do poder? Não se
trata, contudo, de uma luta tête-à-tête, face to face, por meio da
qual o sujeito rejeita, em absoluto, qualquer forma de estetização
da aparência física. A questão central é: como não ser governado
pela estética, em nome de seus cânones do bom gosto, em vista de
seus objetivos de tendências “conformistas”, que se dá por meio de
uma ‘livre adesão’
Trata-se, em suma, de inventar outras possibilidades de
existência corpórea a partir de um vitalismo, que se dá sobre um
fundo estético “capaz de se contrapor ao poder bem como se
furtar ao saber, mesmo que o saber tente penetrá-las e o poder
apropriar-se delas”. Esses modos de existência ou possibilidades de
vida não cessam, portanto, de se recriar. Sempre surgem com
novas roupagens, “já que a todo momento o poder não para de
recuperá-los e de submetê-los a relação de forças.” (DELEUZE,
1992: 116 -123). 2.7
Chegando aos body mods
Esta é a fase na qual se descreve o trajeto percorrido ao
encontro dos body mods, procurando esclarecer como se deu a
seleção dos entrevistados finais, a configuração da abordagem e os
procedimentos adotados em cada etapa.
Formalmente, a pesquisa teve início com a entrada no
programa de doutorado do Departamento de Artes e Design da
PUC-Rio, em 2012 sob a orientação da professora Denise Portinari.
Contudo, a fase exploratória envolveu dois momentos: uma
pesquisa incipiente que fora feita para a produção de um pequeno
62
artigo para um simpósio realizado pelo próprio Departamento
através do Laboratório de Representação Sensível – LaRS, ainda no
período do mestrado em 2003 e uma mais abrangente aprofundada
realizada, em 2011, para criação do projeto de pesquisa.
Através da leitura de uma matéria intitulada “O barato da
dor” que havia saído na revista Época em 2003, surgiu a
curiosidade de entender melhor o que estava sendo retratado com
a esperança de encontrar algum tipo de esclarecimento para as
questões vivenciadas num momento de grande turbulência da vida.
Identificando-se com as questões abordadas, foi dado início
a uma vasta pesquisa na Internet, que levou ao site brasileiro
chamado Neoarte.net de propriedade do Filipe Júlio e ao
BMZine.com, do canadense Shannon Larrat, e a revista em formato
eletrônico Body Play, do Fakir Musafar. A partir daí, foi enviado um
e-mail ao Filipe Júlio, a Priscilla Davanzo, performer e então
estudante de arte, e um body piercer em Santos, além de ter
entrado em contato com Four Finger Joe, que retirou o dedo
mínimo da mão esquerda e relatava todo o procedimento no
BMZine.com.
Foi então marcado um encontro apenas com Filipe Júlio e o
body piercer de Campinas, já que Priscilla Davanzo não respondeu
aos e-mails. Em São Paulo, o dia na residência de Filipe foi muito
produtivo. Fotos e vídeos de intervenções cirúrgicas para inserção
dos implantes, de suspensões e performances foram vistos, além de
ter acesso material e instrumentos médicos utilizados na execução
dos procedimentos. No outro dia, foi feita uma viagem a Santos,
mas o interlocutor era apenas um body piercer convencional,
proprietário de um studio de tatuagem. A entrevista não se
estendeu muito, sendo o contato muito breve. Na mesma manhã,
63
seguiu-se para São Paulo, onde foram feitas visitas às Galerias Ouro
Fino e do Rock, que foram consideradas interessantes, mas não
geraram nenhum contato proveitoso.
Figura 1: Publicação Modern Primitives
Já o segundo momento, refere-se à elaboração da pesquisa
para o projeto de tese. A fase exploratória em questão envolveu
alguns dias na Internet para buscar dissertações, teses, bibliografia,
matérias em revistas e sites, afim de que se pudesse identificar o
panorama da BM no espaçamento de tempo de 8 anos. O cenário
apresentava grandes mudanças: o BMZine.com havia se tornado um
site fechado, de modo que para ter acesso a todo o seu conteúdo –
vídeos, imagens e depoimentos – era preciso pagar um plano de
inscrição. O Neoarte.net havia se tornado um portfólio dos
trabalhos do Filipe Júlio como fotógrafo de arte especializado em
museus e galerias.
Neste movimento, teve-se acesso às obras RE/Search #12:
Modern Primitives e In the Flesh da Vitória Pitts. Paralelamente, foi
encontrado o site Frrrkguys de propriedade do Thiago Soares.
64
Imediatamente, o contato se estabeleceu através do envio de um e-
mail por meio do qual a pesquisa era explicada e, assim, iniciaram-se as
primeiras conversas. Em seguida, foi agendada uma entrevista por
Skype e alguns contatos esporádicos vinham sendo mantidos.
Paulatinamente, ia se desenvolvendo uma relação por meio da qual
eram tiradas dúvidas, solicitadas imagens, vídeos etc.
Figura 2: Fakir Musafar, in Vale; Juno (1999)
2.7.1 Incertezas
2013 caracterizou-se por algumas tomadas de decisões
muito infelizes: a ida ao São Paulo Tattoo Week e ao Rio Tattoo
Week foi deveras desapontadora. Os referidos eventos não
ofereciam espaço para um contato mais estreito com os sujeitos,
ao mesmo tempo em que mostravam apenas a normatização dos
studios de piercings e tatuagens, trazendo alguns personagens da
BM como “modeletes freaks” e as notórias pin ups tattoos.
65
Figura 3: Maycoln Tarasevic, body piercer e modelo, Tattoo Week, São Paulo, 2014
Figura 4: Repórter registrando o Tattoo Week Rio 2016, foto Natasha
Configurando-se como um grande negócio empresarial no
formato de uma feira de convenção travestida de underground,
tatuadores e body piercers – internacionalmente renomados em
meio aos mais desconhecidos – ofereciam seus serviços a um valor
que oscilava entre R$250 a R$ 3500,00, stands vendiam roupas e
66
acessórios estilo low profile de butique, além de ter um grande
espaço destinado a vendas de máquinas de remoção de tatuagem,
um “sebo de rua” estilizado onde eram vendidos livros sobre
modificação corporal, premiações para diversos estilos de tattoos,
disputas de rap, pistas de skate e, por fim, o concurso de miss
tattoo.
Figura 5: Priscila Santos, miss Tatoo Week Rio.
Figura 6: Stand com linha de produtos “...Exclusiva Para Cuidado Da Tattoo”
Os frequentadores, padronizadamente travestidos de
underground, ostentavam seus piercings “transgressores”,
67
alargadores de orelha e tatuagens à mostra, no melhor estilo
rebelde sem causa ou de butique.
Figura 7: Modelo Tattoo Week Rio 2016, foto Natasha Ribas.
Figura 8: Público do Tattoo Week Rio vendo a criação de uma tatuagem, foto Natasha Ribas
A nova ida às galerias Ouro fino e do Rock foi igualmente
desapontadora. Ambos locais apresentavam um cenário muito
68
semelhante ao das convenções de tatuagem e piercing, à medida
que retratavam uma gentrificação da beleza freak, com modelos
freaks reproduzindo a mesma estética “mami sou rebelde”,
enquanto um claro fenômeno de apropriação de elementos da body
modification – piercings, alargadores e tatuagens – pelo
mainstream. Frequentemente, as atendentes, muitas delas no estilo
pin up tattoo, vinham até a porta do studio para oferecer piercings
e alargadores, cujos valores oscilavam entre R$ 25,00 e R$85,00,
assim como fazem as vendedoras de lojas de rua ou localizadas nos
grandes shopping centers.
Neste mesmo período, foram iniciados os cursos na UERJ no
Departamento de Comunicação e no Instituto de Medicina Social.
Travaram-se, assim, discussões extremamente importantes com a
Denise Siqueira e a Maria Luisa Heilborn, que depois se tornaria co-
orientadora desta pesquisa.
As frustrações pelas tomadas de decisões equivocadas eram
amplamente discutidas com colegas do IMS/UERJ e do Grupo
Barthes/Unicornios, de modo que pareceu ser algo comum entre os
pesquisadores das Ciências Sociais.
2.7.2 Novos rumos
Em meio a este cenário desalentador, foram tratadas
questões referentes ao fazer etnográfico com a Maria Luisa
Heilborn, David Le Breton e com colegas antropólogos durante o
período de doutorado sanduiche na Universidade Marc Bloch,
Estrasburgo - França.
69
Com relação à literatura sobre etnografia, havia a
necessidade de uma abordagem que retratasse a cultura
etnográfica paulista, em função da própria pesquisa. A partir daí, a
obra do antropólogo José Cantor Magnani passou a ser considerada
essencial para o desenvolvimento do trabalho de campo.
Outra medida igualmente importante diz respeito ao
redirecionamento da pesquisa. Havia uma visão equivocada em
retratar a BM sob a ótica de uma “antimoda” originária das ruas que
se configuraria como parte de movimentos que se posicionam
contrários às manifestações de moda do mainstream. Contudo, a
orientadora desta pesquisa considerava a adoção de tal perspectiva
equivocada, por julgar que não reproduzia de forma fidedigna o
universo estudado. Depois de muita resistência, chegou-se à
conclusão que, de fato, “antimoda, não retratava o universo da BM.
Parecia, ao contrario, uma imposição teórica à pesquisa, como bem
pontuou algumas vezes David Le Breton.
2.7.3 Estreitando os laços
Esta fase gira em torno do desenvolvimento de uma amizade
com Thiago Soares. No período em questão, foram feitos contatos
muito proveitosos com o body piercer e tatuador que assina pelo
nome Barriga Knup, além do casal de body piercer e artistas
performáticos Filipe Espindola e Sara Panamby, também conhecida
como Elton Panamby Djon.
O contato inicial com a dupla foi feito no Sesc Ipiranga, São
Paulo, quando o casal realizava uma performance artística intitulada
70
“Sagração do Urubutsin” 19 , que recriava no domínio das
modificações extremas – perfurações e suspensão – a imagem
mítica do urubu rei da tribo indígena Mamaiuran, localizada nas
margens do rio Xingu, Amazonas. A experiência poética se deu com
Sara Panamby tendo seu corpo nu perfurado por Filipe Espíndola
através de penas de urubu fixadas a agulhas, que eram
gradualmente aplicadas na sua testa, nas suas costas e nas suas
pernas. Ao final desta primeira parte, a cena prosseguia com Sara
retirando sozinha cada uma das penas que atravessavam sua carne.
Após a retirada de cada uma delas, o sangue que saia das regiões
perfuradas desenhava finas linhas vermelhas sobre a pele
penetrada. Num ambiente iluminado por chamas do fogo das velas
espalhadas no chão, sangue, gritos e urros dor quebravam o silêncio
da performance, inscrita no domínio daquilo que os dois artistas
chamam “teatro da crueldade”. Nesta encenação, diz Sara, o corpo
esburacado aparece como registro de um ato pictórico de
sobrevivência, sendo o urubu um elo entre morte e vida: vida fétida, 19 Urubutsin é o mito que relata a criação do mundo na visão dos Mamaiurans. Para os integrantes desta tribo, no início dos tempos reinava a escuridão porque as asas dos pássaros tapavam o céu. Com a impossibilidade da luz chegar até eles, todos viviam com o temor e a ameaça de serem atacados por animais selvagens. Os deuses Kuát e Laê, que eram irmãos gêmeos, decidiram forçar o rei dos pássaros, o abutre Urubutsin detentor de toda a luz, a compartilhá-la com a tribo. Os dois deuses tiveram a ideia de se esconderem em um cadáver em decomposição a espera dos pássaros que se aproximassem. No momento em que o rei Urubutsin aterrissou no cadáver para comer seus vermes, os irmãos lançaram uma rede negra sobre ele. Preso nas malhas da rede, Urubutsin lutou para tentar escapar. Cansado e abandonado pelos seus companheiros, Urubutsin concordou em partilhar com os irmãos deuses metade de sua lua luz, caso o saltassem. Libertado, entregou aos irmãos uma caixa onde a luz era guardada. Tão logo a pegaram, lançaram a luz no céu. Kuát, que ficou com a maior parte da luz, a chamou de sol enquanto Laê, cuja parte que ficara era menor, a chamou de lua. Ao dividir o poder entres eles, Kuát e Laê mantém o mundo iluminado dia e noite. Para maiores detalhes, ver Silva (2014).
71
que afronta o decoro, as regras de decência e higiene da estética
normatizante.
Esta experiência aparece atrelada ao que Sara define como
“corpolimite” – que pode ser qualquer um corpo , muitos, todos ou
nenhum Silva (2014). No contexto vigente, pode-se dizer que
“corpolimite” – um corpo erótico – traz consigo a ideia de uma
abjeção que reverbera, que gera incomodo através da pele
perfurada e dos fluidos e secreções que saem dos seus poros.
Outro ponto crucial dessa experiência foi o momento em que
fora estabelecido também o primeiro encontro com o adepto das
mods extremas e dançarino Guilherme Trioiano, especializado em
danças do ventre e exóticas. Gui, como é tratado pelos amigos e
conhecidos, fez um convite para vê-lo se apresentar no clube “A
Lôca”20, onde faz performances de dança do ventre estilizada.
Por volta das 2 horas da manhã, os DJs pararam de tocar o
mix de músicas pop, disco e flash house que invadia a pista. Com as
luzes apagadas e ao som de uma música árabe, uma porta foi
aberta e Guilherme Troiano caminhou em direção ao palco,
movimentando as mãos e a cintura de forma sinuosa. Com um
turbante negro e vestindo uma saia longa acompanhada de um
bolero espanhol da mesma cor grudado ao dorso e antebraços,
Guilherme usava um colar que era uma espécie camiseta. Dele,
saiam várias correntes que se prendiam a uma peça localizada nas
suas costas. Enquanto fazia movimentos com a cintura e barriga,
mostrando a maleabilidade do seu corpo, as correntes “tintilavam”
umas nas outras. Qualquer possibilidade de uma masculinidade mais
20 Casa noturna do circuito GLS da noite de São Paulo, que é referência no universo paulista underground há 20 anos
72
ortodoxa era colocada em cheque através de uma negação
insistente da heteronormatividade . UAL q
Posteriormente, foi feito um convite por Thiago para que
ficasse hospedada em sua casa, na cidade de Osasco. O propósito
era promover um maior interlocução com integrantes da BM, além
de viabilizar possibilidade de assistir a sessão de fotos e as
filmagens em comemoração dos 10 anos estúdio de tatuagem Paz,
de propriedade do André Cruz, que além de tatuador é adepto das
mods extremas.
Outro ponto crucial foi o ingresso, por sugestão do Thiago
Soares, no grupo de estudo sobre modificações corporais dirigido
por ele. Tal iniciativa propiciou uma aproximação ainda maior com
integrantes da comunidade. O envolvimento em discussões e em
palestras, a exemplo da que fora realizada por um dos pioneiros das
modificações corporais, André Fernandes, que acabara de chegar de
duas convenções internacionais de body piercing levaram a uma
participação mais ativa dentro comunidade.
Com Thiago Soares foi paulatinamente sendo construída uma
relação de confiança mútua. O sentimento de amizade foi se
desenvolvendo até que se chegou a um momento em que o Thiago
passou espontaneamente a sugerir nomes de possíveis sujeitos que
pudessem ser interessantes para os propósitos da pesquisa, tendo
em vista sua maior intimidade com o trabalho, bem como os novos
rumos que ele tomara.
Estes novos entrevistados passaram, por sua vez, a indicar
nomes que julgavam ser potencialmente interessantes para o
trabalho, sem que, necessariamente, houvesse sido feita uma
solicitação prévia. Logo, a heterogeneidade fora conquistada
através da rede de relações, cujo formato também é conhecido
73
como bola de neve Seidmen (2006:55). O procedimento nada mais
é que uma alusão explícita ao network. Não somente pressupõe
aglutinar pessoas dispersas em termos do espaço do meio urbano,
como se refere à forma típica de organização da sociabilidade nas
grandes cidades, de acordo com vários antropólogos e
pesquisadores das ciências sociais.
Trata-se de um modelo, segundo Velho (1989), que dá
ênfase ao chamado do código de aliança, que este se constitui o
principal operador de articulação, na tradição cultural brasileira.
Outro dado importante diz respeito ao fato de que “ao terem uma
relação, ainda que indireta, com o pesquisador, os sujeitos se
sentem à vontade para falar sobre questões relativamente íntimas”
(NICOLACI-DA-COSTA,1989:10).
2.7.4
Entrevistas
As entrevistas foram realizadas com o intuito de
compreender a experiência concreta dos body mods paulistas
dentro da subcultura da body modification e o sentido que
atribuíam às experiências por eles vividas. Esta proposta, tal qual
sugere Seidmen (2006:14), assevera a importância dos sujeitos
dentro do processo, privilegiando sua atuação como um grande
colaborador da pesquisa.
Foram conduzidas de diferentes formas: Skype, troca de
mensagem pelo Facebook por sugestão dos próprios entrevistados
e pessoalmente onde foram gravadas e posteriormente transcritas.
74
Sob a forma de um bate-papo informal, as entrevistas não
apresentavam uma estrutura rígida. Entretanto, procurou-se um
equilíbrio entre fornecer abertura suficiente para que os
entrevistados falassem espontaneamente de sua história, mantendo
o foco no esboço de um roteiro semiestruturado, a fim de não se
perder o controle da direção, já que existia uma lógica que orientava
a condução das entrevistas (SEIDMEN, 2006:19-20).
Para tanto, a entrevista foi dividida em três partes. Na
primeira, buscou-se, identificar o contexto no qual os body mods
promoviam as práticas radicais de modificações corporais no interior
da subcultura da body modification, pedindo-lhes que falem o
máximo possível sobre eles. Na segunda, foi aberto espaço para que
os sujeitos pudessem reconstruir os detalhes de sua experiência em
submeter-se às práticas de modificações corporais, a partir de
perguntas sobre como se deu o processo, com quem e onde foram
feitas as modificações, quanto custou cada uma delas etc.
Finalmente, o terceiro incentivava a refletir sobre o sentido que
atribuem a ter um corpo radicalmente modificado.
Com relação ao tempo de duração, cada entrevista levou
aproximadamente 90 minutos, “tendo em vista que qualquer coisa
menor que este tempo parece muito curto” (SEIDMEN, 2006: 20).
No entanto, não se trata de uma definição absoluta, pois o
importante é que as questões abordadas cubram o roteiro e os
objetivos da pesquisa, adequando-se à disponibilidade de tempo do
entrevistado.
Outro dado a considerar é que embora sejamos uma cultura
muito flexível no que concerne a horários, procurou-se não
prorrogar a entrevista ao final dos noventa minutos, mesmo
considerando o assunto discutido interessante. Tal procedimento
75
apoia-se na perspectiva, conforme alega Seidmen (2006: 20), de
que o desrespeito a qualquer item previamente combinado e
acordado entre as partes pode abalar a relação de confiança do
entrevistado, despertando o sentimento de que o entrevistador não
cumpre aquilo que se compromete a fazer.
Por fim, a determinação do número de participantes com o
qual se trabalhou foi resultado de um procedimento interativo que
envolveu a reflexão de cada passo do processo da entrevista, o que
difere para cada estudo e pesquisador (SEIDMEN, 2006:55).
Na fase de triagem, foram realizadas 50 entrevistas.
Contudo, isso não funcionou pois o cenário estava bastante confuso
e amplo demais. As perguntas muitas vezes eram ingênuas e o
roteiro – extenso demais e pouco objetivo – não fazia a coisa
funcionar.
Nesse momento, a expectativa era utilizar o critério da
saturação da informação por julgar ser o instrumento mais
adequado para determinar se a quantidade de entrevistas realizadas
já era satisfatória. Nesse sentido, SEIDMEN (2006:56) entende por
saturação da informação o fenômeno que ocorre quando, após um
certo número de entrevistas, o entrevistador começa a escutar, de
novos entrevistados, relatos muito semelhantes àqueles que já
ouviu, havendo uma rarefação de informações originais, de modo
que passa a não aprender nada de novo. Portanto, “essa é a hora de
dizer ‘basta’" (SEIDMEN, 2006:56).
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2.7.5 O campo se revela
Numa das idas a São Paulo, conversando com alguns
entrevistados houve uma importante reformulação de todo o
projeto. A partir daí, a pesquisa ganhou, de fato, concretude. Ficou
claro que era preciso buscar sujeitos que vivenciassem as
modificações e performances corporais como uma prática política,
nos moldes propostos por Foucault (In: Rabinow & Dreyfus
1995:216). Em termos objetivos, deveria concentrar a pesquisa
nos sujeitos, cujos discursos, aliados a práticas, se fixassem na
promoção de novas formas de subjetividades manifestas como uma
recusa deliberada em fazer parte de um processo social normativo
em termos sexuais, biométicos e estéticos.
Logo, decidiu-se selecionar sujeitos que encarassem as
práticas promovidas pela BM como parte das novas lutas que se
estabelecem contra os processos de submissão normalizadora de
subjetividades. Ou melhor, como práticas decorrentes de uma visão
política, social, ética e filosófica de teor contrário aos mecanismos
que impõem identidades aos sujeitos. Neste processo, o objetivo:
(…) não deve ser descobrir quem nós somos, mas recusar quem nós somos. Nós temos de imaginar e de construir o que nós poderíamos ser para nos livrar desta forma de “duplo vínculo” político que é a simultânea individualização e totalização das modernas estruturas de poder (FOUCAULT. In: Rabinow & Dreyfus 1995:239). Tal perspectiva, por sua vez, levou ao entendimento de que
a forma de abordar a comunidade dos body mods a partir da
seleção e catalogação de modificações extremas não retratava as
questões pertinentes ao universo que se pretendia investigar. Ficou
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evidente que buscar sujeitos pelo tipo e número de modificação que
carregavam em seus corpos era apenas mais uma forma de
reprodução de estereótipos, numa espécie de freak acadêmico.
Funcionaria apenas como mais um dispositivo de produção de
subjetividades diferenciadas em relação às normatizadas, a partir de
um possível levantamento, indexação e taxonomia de modificações
extremas.
Esta percepção foi confirmada em uma conversa informal
com um grande interlocutor que relatou as dificuldades iniciais de
fornecer entrevistas, seja para pesquisadores, seja para veículos de
comunicação. Com a conquista do respeito e reconhecimento dos
pares em função de sua trajetória na comunidade como sujeito
modificado, passou a se sentir mais confortável no papel de
entrevistado, embora continuasse extremamente criterioso sobre o
que, como e para quem falar. Disse, nas entrelinhas, que sua
postura ganhava respaldo, na medida em que havia dentro da
própria comunidade uma certa “resistência” à espetacularização dos
sujeitos que usam as modificações para autopromoção que aparece
em legendas midiáticas como “homem lagarto”, os “maiores
alargadores” etc. Isso nada mais era, segundo ele, que reafirmar o
discurso dos veículos de comunicação de massa, numa espécie de
reiteração do circo dos horrores, que embute a ideia de quem é
mais freak21
21 Recentemente, o programa Câmera Record, Rede Record de televisão, fez uma matéria sensacionalista com três adeptos das modificações corporais, em São Paulo, e sendo um deles Guilherme Troiano. Inicialmente, seriam dois dias de gravações. No primeiro, haveria uma reunião na qual os três integrantes, que eram do mesmo ciclo social e tinham um entendimento comum sobre as modificações, seriam entrevistados. No segundo, haveria uma gravação para acompanhar o dia a dia do Guilherme Troiano como professor e bailarino de dança do ventre. Depois da gravação do primeiro dia, Guilherme Troiano recebeu um Whatsapp dos profissionais da Record dizendo que não seria mais necessário
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Dentro do novo cenário em questão, a busca se concentrou
em sujeitos que encaravam as modificações como um meio que lhes
possibilitava um olhar mais abrangente sobre o mundo, cujo início
se desse no próprio corpo. Ou seja, sujeitos que encaravam as
modificações como parte de suas bandeiras políticas, a partir de um
projeto em defesa da autonomia do corpo, cujas motivações
seriam de ordem estética, sexual ou espiritual, por exemplo,
conforme sugere, a fala do Guilherme Troiano:
(…) o preconceito tá aí, sim, mas sofre quem quer. Eu particularmente não sofro mais por preconceito. E quando decidi estar como estou, foi porque eu quis, porque estava preparado psicologicamente para enfrentar todas as barreiras do mundo. Eu sou muito feliz da forma como estou, tá. Eles (profissionais da TV Record que fizeram uma matéria sensacionalista sobre as modificações corporais) fizeram uma colcha de retalhos das minhas respostas e isso é lamentável. É lamentável como a televisão brasileira coloca a modificação como uma ameaça (Vídeo de Guilherme Troiano em resposta à TV Record, em ago. 2016).
Acima de tudo, deveriam mostrar, como afirmou o body
piercer e adeptos das modificações corporais Alexandre Anami, que
os sujeitos não eram doentes mentais, e sim que podiam alterar
seus corpos de forma consciente e responsável, enfrentando as
esferas de poder.
Portanto, além das entrevistas que reproduziam a
normatividade 22 terem sido obviamente deixadas de lado, em
gravar o segundo dia, pois o material produzido fora suficiente. Tal atitude gerou indignação não só pelo desrespeito em relação ao acordo prévio e pelo tom sensacionalista dado às modificações corporais. Uma das chamadas afirmava que os integrantes eram motivo de chacota na rua, o que levou Guilherme Troiano a divulgar um vídeo de repudio à TV Rrcord. 22 É preciso esclarecer que como a BM se configura como um comunidade heterogenia e plural, existem integrantes com visões machistas, sexistas, misóginas, homofóbicas, gordofóbicas etc. Em 2015, houve um grave episódio envolvendo um conhecido membro da comunidade das modificações corporais, que fora denunciado por negligencia, assédio e abuso sexual. O caso foi
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função do objetivo geral da pesquisa, foram cortadas também todas
as pessoas que de imediato perguntavam onde a pesquisa ia ser
publicada, uma vez que tal postura ia contra ao interesse maior da
pesquisa. Outra decisão foi excluir os entrevistados cujo discurso,
em termos de motivação, se resumia única e exclusivamente à
“vontade de ser diferente”23. As respostas que se restringiam à
afirmação da singularidade não permitia maiores avanços na
discussão.
A partir daí, o universo que se mostrava bastante amplo
ficou consideravelmente restrito, chegando ao total de 16
entrevistados, selecionados segundo esse critério de engajamento
em um projeto político explícito em defesa da autonomia do corpo,
como sugere um dos motes utilizados contra a proibição do eyeball
tattoing meu olho, meu corpo, minha decisão.
Esta questão envolvendo os critérios de seleção/exclusão de
entrevistados expõe algumas dificuldades, uma vez que toda e
amplamente divulgados no grupo de estudo sobre modificações corporais. Foi discutida uma série de ações visando à coleta de depoimentos das vitimas do modificador, o que pode ser observado na fala de uma profissional, que tem uma participação ativa dentro da comunidade: gente não precisa expor os nomes das moças, eu posso me encarregar de receber depoimentos por e-mail ou algo assim. Por favor, vamos dar voz a essas pessoas. O mundo da bod mod precisa ser realmente seguro e acolhedor (...). É muito importante não deixar que esses casos passem batidos. Precisamos realmente fazer algo a este respeito. 23 A afirmação da singularidade é uma marca recorrente no discurso dos entrevistados, como sugere a fala do André Fernandes: eu nunca gostei de mulheres com o padrão normal, eu prefiro mulheres com atitudes e personalidade agora se ele é gorda, magra, branca ou negra não me importa. Claro uma mulher tatuada me chama muito atenção. E na nossa sociedade isso não é normal. A sociedade que vivemos da valor sempre para o que eles julgam normal. Mas nem sempre o que é normal pra uns é normal pra outros. Deixa-se claro, portanto, que estes discursos estão incorporados à pesquisa. Reitera-se apenas que foram descartadas as entrevistas com sujeitos, cujos discursos não propiciava qualquer outra reflexão, além da marca da diferença, a exemplo de enunciados como: a BM não tem nada disso não, cara. A BM é só uma questão de gosto pelo diferente. De boa, suas perguntas são estranhas. Você não saca nada de BM. Ah, não sei responder. Passo. Elas não eram proveitosas, à medida que não forneciam material sobre o qual se pudesse trabalhar.
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qualquer escolha é ideológica. O que remete sempre a uma
resolução cujo caráter tende a levar em conta uma ausência de
neutralidade por parte do pesquisador em relação à linha de
pensamento por ele privilegiada. Assim, como assinala Rocha
(1990), nela existe, de forma irredutível, uma margem, maior que a
desejada, de arbitrariedade.
Diante do exposto, no capítulo a seguir são apresentadas as
“ferramentas” que (con)formam o corpo ocidental: os ideais
individualistas, o saber médico que governa os corpos e a estética
que rege a aparência dos sujeitos. O que além de acabar por levar a
uma crítica aos discursos naturalizantes, sem se fixar em nenhum
autor em especial, fornece subsídios para entender as questões
tratadas no “projeto político” ligado ao corpo lançados pelos body
mods paulistas.