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HOMOFOBIA NA ESCOLA: REFLEXÕES A PARTIR DA HISTÓRIA

DE VIDA DE CIS-HOMENS GAYS DO MUNICÍPIO DE CASCAVEL-PR

Ronaldo Adriano Alves dos Santos, PUCPR/UNESP Fernando Silva Teixeira Filho, UNESP

e-mail: [email protected] Resumo O presente trabalho deriva das discussões desenvolvidas na pesquisa que estamos desenvolvendo no Mestrado. A referida pesquisa fundamenta-se nos estudos foucaultianos, feministas e interseccionais e adota a Narrativa de Histórias de Vida e a Cartografia como potentes pistas metodológicas na construção do trabalho. No trabalho aqui apresentado objetivamos discutir as experiências de homofobia vivenciadas por cis-homens gays na Escola. Propomos essa discussão a partir da consideração dos relatos dos participantes da pesquisa que apontam algumas pistas para pensarmos a experiência da homofobia na Escola e o papel desempenhado por essa instituição e seus agentes na (re)produção e (des)construção da homofobia. Palavras-chave: Homofobia; Narrativa de Histórias de Vida; Escola. Introdução

No presente trabalho pretendemos discutir as experiências de homofobia

vivenciadas por cis-homens gays na Escola. Nesse sentido, buscamos compartilhar

algumas inquietações preliminares que compõem nossa pesquisa de Mestrado em

fase de desenvolvimento. Nessa pesquisa partimos dos estudos foucaultianos,

feministas e interseccionais e por meio da Narrativa de Histórias de Vida e da

Cartografia objetivamos discutir como as relações de amizade podem atuar

enquanto mecanismo de luta e resistência à homofobia. Buscamos assim, por meio

da (re)construção das histórias de vida dos participantes da pesquisa, interseccionar

os marcadores sociais de diferença (raça, geração e classe social), as experiências

de homofobia e as relações de amizade de cinco (05) cis-homens gays residentes

no Município de Cascavel-PR. Sendo assim, discutiremos a seguir os modos por

meio dos quais a homofobia marcou a trajetória escolar destes participantes da

pesquisa.

Experiências homofóbicas na trajetória escolar de cis-homens gays

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É inegável que a Escola se constitui como um espaço privilegiado no

processo de formação humana e um potente mecanismo da e na luta em prol da

transformação social (MEIRA, 2000). Entretanto, é necessário reconhecermos que a

Escola também se configura como um território onde se (re)produzem relações de

preconceito, violência, agressão, marginalização e segregação (AQUINO, 1998).

Cônscios dessa relação contraditória que permeia o contexto e a instituição escolar

observamos que em suas trajetórias escolares os participantes relataram que,

durante a Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental 1ª fase, havia um

processo de diferenciação, tipificação e qualificação dos brinquedos, das

brincadeiras e do brincar entre aquilo que era considerado como “de meninas” (sic) e

aquilo que era “de meninos”(sic). Sem apresentar qualquer conotação referente a

orientação sexual os participantes relatam que por conta dessas relações sentiam-

se “[...] diferente das outras ‘criança’” (sic). Uma diferenciação traduzida numa maior

identificação e desejo de participação naquelas atividades tipificadas como “de

meninas” (sic). Porém, a expressão e fruição dessa identificação e desse desejo era

proibida e repreendida pelos adultos: “ué, mas por que que você está aqui?” (sic);

“Não, isso aqui é de menina” (sic) “você não pode brincar [...] porque [...] é coisa de

menina” (sic). Além disso, essa identificação os tornava alvo de sátiras,

“brincadeiras” (sic) e “gozações” (sic) por parte das demais crianças.

Essa relação contraditória (identificação/desejo x proibição/repreensão/sátira)

fez com que o brinquedo e o brincar aparecessem como as primeiras marcas de

diferenciação que começaram a ser percebidas pelos participantes da pesquisa e

também por aqueles que conviviam com eles. Nesse ponto é importante

considerarmos que a experiência lúdica se constitui como uma forma primordial de

comunicação, de expressão e subjetivação na infância (DELLABONA e MENDES,

2004). Portanto, ao se depararem com a proibição, repreensão e satirização,

relativas à participação ou fruição de determinados brinquedos e brincadeiras, os

participantes tiveram seus processos de expressão e subjetivação alijados pela

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adoção de mecanismos e práticas que intentaram cisheteronormatizar

(VERGUEIRO, 2015) e normalizar seus corpos, experiências e afetos.

Nessa mesma esteira e seguindo seu percurso Escolar os participantes

relataram que foi nos anos finais do Ensino Fundamental 1ª fase e iniciais da 2ª fase

que eles começaram a constituir uma maior consciência de si, de seus afetos e

desejos. Concomitante a esse processo houve um recrudescimento das expressões

da homofobia com o aumento das agressões verbais, psicológicas, morais e físicas.

Agressões que eles relatam terem marcado também toda a passagem pelo Ensino

Médio. Entretanto, como afirma um dos participantes, “a homofobia sempre vem

acompanhada de alguma coisa!” (sic) e no caso dos dois jovens, que participam da

pesquisa, há a clara intersecção de alguns marcadores sociais de diferença (raça,

classe social e compleição física) e a especificidade das expressões da homofobia

de que foram vítimas.

Essa intersecção aparece no discurso dos participantes quando um deles

relata: “eu tive muito mais facilidade de me aceitar enquanto gay, do que me aceitar

enquanto negro [...] você não pode esconder que é negro, isso... e se tem uma coisa

que eu queria, que eu tinha vontade era isso” (sic). Era recorrente que ele ouvisse

na escola expressões como: “além de preto é gay” (sic); “além do cara ser preto, o

cara é gay” (sic). Esse mesmo participante conta que: “Eu sabia que eu não era

muito aceito dentro da sala de aula porque eu era pobre, disso eu tinha certeza”

(sic). Já o outro jovem relatou que era alvo recorrente das agressões por ser

homossexual, “mas também pela questão física [...] Que eu era cheinho né?!” por

conta disso “tinha alguns que até se afastavam pra não... sei lá... não ter a imagem

associada aquilo ou alguma coisa assim” (sic). Esse último participante relata que as

agressões ocorriam de maneira coletiva e durante “a manhã inteira ou a tarde

inteira” (sic). Uma experiência cotidiana de agressões múltiplas que fez com que ele,

após sucessivas reprovações, abandonasse a Escola no 6 ano do Ensino

Fundamental. Ele toma essa decisão, pois “não queria mais passar por aquilo” (sic)

e, portanto, decide “fazer de tudo pra [...] não pisar em uma sala de aula” (sic).

Assim, sem retornar à Escola, esse participante recebeu a certificação de conclusão

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do Ensino Fundamental por meio do ENCEJA e do Ensino Médio por meio do ENEM

e reconhece: “são coisas que me atrapalham hoje, né?! [...] ‘mais’ [..] eu achei

melhor fazer isso do que passar pelo que eu passei todo esse tempo na escola”

(sic).

Ações como essa ocorrem, pois, segundo os participantes não havia ação

preventiva e/ou proativa por parte da Escola frente aos episódios de homofobia. Eles

relatam que nenhuma ação era tomada pela Escola, mesmo quando as agressões

eram testemunhadas pelos profissionais da instituição. A Escola só agia caso eles

próprios apresentassem queixas recorrentes e/ou nos casos de violência física.

Porém, nessas situações a ação tomada pela Escola restringia-se a convocação da

família dos participantes para uma reunião. Uma intervenção localizada e sem

efeitos práticos no contexto cotidiano de violência dos participantes. Nesse ponto é

importante destacarmos que a intervenção se direciona exclusivamente à vítima da

agressão. A intervenção ocorria de modo a deslegitimar ou minimizar o potencial

agressivo das ações homofóbicas considerando-as “coisa de criança” (sic) e/ou

identificando as vítimas como a causa das agressões. Além disso, alguns

participantes relatam que os próprios profissionais da educação se exprimiam de

forma homofóbicas em comentários, discussões ou mesmo repreendendo

comportamentos que não achavam “adequados”. Um dos exemplos é apresentado

por um participante que foi duramente repreendido por uma professora que o

questionou se ele achava “bonito um homem fazendo sexo com outro homem” (sic).

Outro aspecto relevante, que identificamos nos relatos dos participantes, é a

importância da educação sexual. Essa importância fica evidente nas histórias dos

três adultos que participam da pesquisa, nelas é possível perceber o impacto

negativo da ausência de informações e debates referentes a educação sexual. Isso

ocorre, pois segundo eles “o acesso a informação naquela época era muito restrito e

eu não tinha nenhuma referência [...] na verdade eu não sabia que isso existia, né?!”

(sic). As suas narrativas demonstram como esse vácuo de discussão retardou o

processo de reconhecimento dos afetos e desejos que constituíam suas

experiências (“eles descobriram essas coisas antes do que eu” (sic)). Situação que

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manteve e prolongou um estado de “confusão” (sic) identitária, favoreceu práticas

homofóbicas, retardou o processo de assunção da orientação sexual, limitou o

campo experiencial e a fruição dos afetos e desejos dos participantes.

Considerações finais Os depoimentos dos participantes, suas experiências e histórias tornam

perceptíveis o quanto o espaço escolar pode servir como (re)produtor da homofobia.

Por meio desses relatos e dessa discussão evidencia-se a necessidade de

(re)pensarmos e (re)construirmos uma Educação e uma Escola que seja capaz de

acolher o humano em sua multiplicidade de formas de existência. Acreditamos que a

Escola, enquanto uma das primeiras e principais instituições de socialização e

formação humana, deve engajar-se na luta pela superação da homofobia e de todas

as formas de violência. Reafirmamos assim nossa crença de que a Educação, as

instituições escolares e os profissionais da educação devem comprometer-se ética,

estética e politicamente com a transformação social, buscando, por meio de sua

práxis, a construção de uma sociedade justa e igualitária onde todos os corpos

possam ser vividos, todos os afetos e desejos protegidos e todas as formas de

agressão e negação da existência humana sejam combatidas.

Referências

AQUINO, Júlio Groppa. Diferenças e preconceito na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, 1998. DELLABONA, S.R.; MENDES, S.M.S. O lúdico na educação infantil: jogar brincar uma forma de educar. Revista de divulgação científica do ICPG. v. 01, n. 04, p. 107 – 112, Janeiro-Março/2004. MEIRA, Marisa Eugenia Melillo. Psicologia escolar: Pensamento crítico e práticas profissionais. IN TANAMACHI, Elenita de Rício; SOUZA, Marilene Proença Rebello de; ROCHA, Marisa Lopes da. Psicologia e educação: desafios teórico-práticos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000. p. 35-72. VERGUEIRO, Viviane Simakawa. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da

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cisgeneridade como normatividade. 2015. 224fs. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.


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