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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES
HOMENS, MQUINAS E HOMENS-MQUINA: O SURGIMENTO DA MSICA ELETRNICA
JULIN JARAMILLO ARANGO
CAMPINAS-2005
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ARTES Mestrado em Multimeios
HOMENS, MQUINAS E HOMENS-MQUINA: O SURGIMENTO DA MSICA ELETRNICA
JULIN JARAMILLO ARANGO
Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado em Multimeios do Instituto de Artes da UNICAMP como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Multimeios sob a orientao do Prof. Dr Jos Eduardo Ribeiro de Paiva.
CAMPINAS-2005
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Dedico este trabalho a meus pais, Silvia Arango e Samuel Jaramillo, pelo apio irrestrito e a confiana depositada em mim.
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AGRADECIMENTOS Esta pesquisa foi financiada pelo programa de crditos reembolsveis em espcie Carolina Oramas do ICETEX (Reg. Bogot/Colmbia), a partir de Agosto do 2004 e durante um ano. A meu orientador, o Prof. Dr Jos Eduardo Ribeiro de Paiva, por indicar novos caminhos na minha profisso. Aos professores, Drs, Denise Garcia por me introduzir no pensamento schafferiano e Fernando Iazzetta pelas providncias. Aos amigos brasileiros, Llian, Giuliano, Valrio, Ana Rosa, Cynthia e Alexandre por me acolher como um irmo e acreditar em nossa gerao. Aos colegas, Nicolau e Debbora pelas discusses e colaboraes. Aos amigos colmbianos, Ananay, Toms e Maurcio pela pacincia, companhia e complicidade.
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RESUMO
A msica eletrnica de pista apresenta-se, no comeo da dcada de 2000, como um
fenmeno portador de novos paradigmas para a msica, no que respeita criao, difuso
e apreciao. Esta pesquisa examina o surgimento deste fenmeno, no comeo da dcada
de 1980, a partir do pensamento de Pierre Schaeffer, que fornece uma metodologia
apropriada para tal empreendimento. No primeiro e segundo captulos, estudam-se o
entorno tecnolgico da msica no sculo XX, o arsenal de ferramentas fabricadas de forma
industrializada e o processo social de incorporao destas tecnologias. No terceiro captulo,
disserta-se sobre os desafios estticos da msica eletrnica e as dinmicas de trabalho que
se desenvolvem. Promulga-se, aqui, a emergncia de uma nova experincia musical, a que
se denomina discurso da reproduo. Por ltimo, aprofunda-se no trabalho do grupo de
msica pop alemo Kraftwerk, como antecessor e elaborador da msica eletrnica, assim
como exemplo da incorporao da tecnologia ao trabalho em msica realizado no sculo
XX.
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SUMRIO INTRODUO ......................................................................................................
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Procedimentos da msica instrumental........................................................ 14 O instrumento de msica ......................................................................... 14 A partitura ................................................................................................. 16 O criador diante dos recursos ..................................................................... 18 I INVENES, INOVAES E ESPECULAES NAS PRIMEIRAS DCADAS DE INCORPORAO DOS RECURSOS ELETRNICOS ................................................
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Sobre a abordagem .................................................................................... 22 Os recursos de difuso .............................................................................. 24
A transduo .................................................................................... 26 A transmisso .................................................................................... 26
O telefone .......................................................................................... 26 O rdio .............................................................................................. 27
O registro .......................................................................................... 31 O fongrafo ....................................................................................... 31 A fita magntica e a gravao multipista .......................................... 34
Os recursos de gerao .............................................................................. 38 O construtor de instrumentos eletrnicos e o meio musical ............. 38 Metodologias de anlise dos instrumentos eletrnicos .................. 39 O audion ......................................................................................... 41 O Thelarmonium ............................................................................... 42 O Theremin ....................................................................................... 43 Outros instrumentos geradores ......................................................... 46
A repercusso indireta dos primeiros recursos .......................................... 50 II A INDSTRIA DE INSTRUMENTOS ELETRNICOS ..........................................
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O novo lugar de concepo: o estdio ...................................................... 54 Os estdios de msica eletroacstica ................................................ 55 O estdio da RTF .............................................................................. 58 Do estdio de gravao ao estdio de produo ................................ 60
Tecnologia versus indstria ..................................................................... 67 Os sintetizadores de controle de voltagem ....................................... 70 As limitaes dos sintetizadores ....................................................... 74 Os microprocessadores ..................................................................... 75
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Equipamentos digitais ....................................................................... 77 Fabricantes de sons ........................................................................... 81 Musical Instrument Digital Interface ................................................ 84 O computador ................................................................................... 87
O processo ................................................................................................ 92
III ESTTICA E DINMICA DA MSICA ELETRNICA ........................................
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Escutar .......................................................................................................... 96 A desconcentrao do indivduo ...................................................... 96 O culto reproduo e a msica Disco ....................................... 102 Da dana dana! ......................................................................... 109
Escutar/Fazer ............................................................................................ 110 A dualidade da reproduo, o dj e a msica do ready-made ............. 112 Hip-Hop ............................................................................................. 115
Fazer ......................................................................................................... 121 Outros espaos para o autor ............................................................. 122 House ................................................................................................ 126 Techno .............................................................................................. 130
IV KRAFTWERK E A INCORPORAO DOS RECURSOS ELETRNICOS NA MSICA POP .........................................................................................................
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O rock dos anos 1970 e o circuito anglo-americano ................................. 134 Krautrock e os primeiros lbuns de Kraftwerk ......................................... 136 O advento da sonoridade eletrnica na msica pop, mimese ................... 142 Uma msica universal ............................................................................... 147 Kraftwerk e o discurso da reproduo ...................................................... 151 Nostalgia ................................................................................................... 156 Simbiose de tradies .............................................................................. 157
CONCLUSES ......................................................................................................
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BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................
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INTRODUO
Entre o final dos anos 1970 e comeo dos 1980 emerge, nos Estados Unidos, um
fenmeno musical que prescinde dos instrumentos tradicionais e incorpora recursos
eletrnicos como ferramentas de trabalho. Este fenmeno apresenta-se em nossos dias
como uma das maiores expresses musicais contemporneas e rene pblicos que antes se
aproximavam de outros repertrios. Nos centros urbanos, uma grande poro do pblico
jovem desenvolve uma nova relao com esta msica, uma nova forma de escuta: encontra-
se, a cada final de semana, para danar durante a noite inteira, ao som de um repertrio que
desconhece, rendendo culto reproduo eletrnica. Ao mesmo tempo, as produes
apresentam caractersticas musicais qualitativamente inditas em termos de concepo,
construo e execuo. Esta dissertao pretende aprofundar-se nas determinantes tcnicas
e musicais desse fenmeno, doravante aqui denominado msica eletrnica.
O termo msica eletrnica foi utilizado pelos compositores alemes Werner Meyer-
Eppler e Herbert Eimert, durante os anos 1950, para definir os experimentos realizados por
ele e alguns de seus colegas, no estdio da NWDR (Nordwestdeutscher Rundfunk). Porm o
termo vem sendo utilizado, a partir dos anos 1980, por crticos, produtores, disc jockeys
(DJs) e, mais recentemente, por pesquisadores acadmicos, para referir-se ao fenmeno
mencionado no pargrafo anterior. O consenso da sociedade convida-nos a reafirmar este
novo significado, sem que isto represente ilegitimibilidade, desaprovao ou provocao
aos ideais estticos de Mayer-Eppler e Eimert. O trabalho desses compositores ser
aprofundado no segundo captulo.
Este trabalho apia-se em duas intuies, uma de carter musical e outra de carter
sociocultural. A primeira dessas intuies revela-se com base no pensamento de Pierre
Schaeffer, quem nos fornece um modelo de estruturao para pensar atividade musical com
os recursos eletrnicos. No primeiro captulo do Trait des objets musicaux (1988),
publicado pela primeira vez em 1966, em O prolegmeno instrumental, Schaeffer
assinala que a msica surge na interao com os recursos disponveis. Esta afirmao
parece ingnua diante do enorme repertrio de msica instrumental j analisado e
compreendido a partir de consideraes que repousam na teoria musical (tonalidade,
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morfologia, estilo). Apesar de tais consideraes permitirem um rigoroso exame das obras,
torna-se necessrio conhecer os cdigos musicais (o solfejo) para aceder a estas anlises.
As aproximaes tericas msica esto mediadas por um conhecimento prvio,
preservado em seus ofcios por compositores, intrpretes e analistas ao longo de sculos
de atividade instrumental. A apario dos recursos eletrnicos instaurou, do ponto de vista
de Schaeffer, novas circunstncias para a msica. A diferena constitutiva entre
instrumentos e recursos eletrnicos reformula as determinantes da atividade musical. A
teoria tradicional apresenta-se como uma ferramenta inadequada para explorar a msica
que se elabora com os recursos eletrnicos, pois esta teoria est fortemente ligada s
condies prprias do instrumento acstico. Por isso, faz-se necessrio refletir, de novo, na
gnese do fenmeno musical. Schaeffer prope que, na interao com os recursos
disponveis crie-se um repertrio (obras musicais); a anlise desse repertrio nos permitir
tirar concluses sobre a linguagem:
Afirmaramos inclusive que a obra precede ao que postula: uma
linguagem, e quilo do que est feita: objetos. Se existirem as regras do jogo
instrumental, os registros e as noes, ser tarefa dos milnios e da longa
aprendizagem das civilizaes elaborar e formular (Schaeffer,1988: 35).
Esta reflexo no est relacionada exclusivamente msica que estudamos, mas a
todas as msicas, e prope um modelo de anlise para diversas culturas. Nesta dissertao,
utilizamos este raciocnio para empreender um estudo sobre a msica eletrnica.
A segunda intuio que perseguimos funda-se numa preocupao especfica do
criador musical de nossos dias. A partir de certo momento, na segunda metade do sculo
XX, as diferenas entre arte e entretenimento, entre msica erudita e popular, tornaram-se
difceis de traar. A msica popular participou do processo de incorporao dos recursos
eletrnicos de uma maneira qualitativamente diferente da msica erudita. As experincias
musicais da chamada msica pop, com os equipamentos eletrnicos, distanciam-se, em
muitos sentidos, dos empreendimentos acadmicos. Na segunda metade do sculo XX,
abre-se um campo para outros atores na criao musical, no enorme espao entre a msica
pop e a msica erudita. A msica eletrnica no se vincula diretamente a nenhum destes
dois processos, mas a uma srie de circunstncias sociais, culturais e tecnolgicas. O acesso
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a ferramentas de produo e difuso, por parte de msicos amadores e outros, que criam,
alheios aos contextos de composio musical, a verdadeira causa do fenmeno que
estudamos. Deste ponto de vista, encaramos, como pesquisadores, um certo vcuo
bibliogrfico. Os textos que abordam diretamente o tema da msica eletrnica provm do
domnio das cincias humanas. Os questionamentos propriamente musicais dissolvem-se,
ento, na discusso a respeito dos processos culturais. No presente texto, pretendemos
esboar algumas contribuies que a msica eletrnica apresenta dentro de um projeto
esttico de maior abrangncia: a arte musical. Para isso, recorremos a textos de outras
reas, os quais analisam a dialtica entre a msica e a tecnologia do ponto de vista artstico:
msica pop e msica eletroacstica. Assim, estabelecemos um vnculo entre a msica
eletrnica e estas outras duas expresses que incorporaram os recursos eletrnicos no
sculo XX. Assumimos, no entanto, que nosso objeto de estudo coloca-se de forma
independente.
A partir destas duas intuies, elaboramos, nos dois primeiros captulos, um estudo
dos recursos eletrnicos surgidos durante o sculo XX, assinalando sua repercusso na
atividade musical. Verificamos que, ao longo do processo de incorporao dos recursos
eletrnicos, aparece uma srie de fatores, prprios de nossa civilizao, que intervm
diretamente na economia, na cincia, na indstria, na organizao social e nos hbitos de
produo. Na convergncia destes fatores, formulam-se os recursos, e a tecnologia
encontra-se com algo a que podemos chamar de significado musical. A anlise que
empreendemos, ento, no s pretende encontrar o contexto em que atuam os msicos
eletrnicos, mas tambm compreender a natureza e a procedncia dos artefatos sonoros
utilizados. O exame da interao entre o homem e os recursos desvela aquilo a que
Schaeffer denomina jogo instrumental, conceito este necessrio para que se
compreendam as questes estticas aqui colocadas.
No terceiro captulo, abordamos diretamente os desafios da msica eletrnica como
manifestao artstica. O mtodo de Pierre Schaeffer fundamental para esse propsito. A
reflexo sobre o registro sonoro, realizada por este autor, permite-nos estabelecer uma
dualidade (entre fazer e escutar) que nos leva a dividi-lo em trs partes: o escutar, em que
nos concentramos nas estratgias de apreciao da msica eletrnica; o fazer/escutar, em
que analisamos o trabalho hbrido do DJ; e o fazer, em que nos aproximamos do produtor
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desta msica. `A medida que discutimos as caractersticas prprias da atividade musical,
neste contexto, identificaremos um novo tipo de criatividade, chamada, neste trabalho, de
discurso da reproduo. Nossa pesquisa centrou-se nos movimentos que deram origem
msica eletrnica em Nova York, Chicago e Detroit.
No quarto captulo, realizamos uma breve anlise do grupo Kraftwerk, como o
grande vnculo entre a msica pop e as expresses estudadas no terceiro captulo.
Detivemo-nos neste grupo porque, ao longo de suas produes, o instrumento musical
gradualmente subvertido como meio de expresso. O Kraftwerk um dos casos mais
interessantes no processo de incorporao da tecnologia no sculo XX e participa das
discusses empreendidas nos contextos acadmicos. Alm disso, a enorme influncia que o
grupo teve nos prprios gestores dos movimentos de msica eletrnica solicita uma
especial ateno. A trajetria do Kraftwerk ajuda a compreender o jogo instrumental e as
circunstncias em que se debateram a msica e a tecnologia, na segunda metade do sculo
XX.
Finalmente, reunimos e organizamos as idias elaboradas ao longo da dissertao.
Esboamos uma breve concluso a respeito do processo de incorporao dos recursos
eletrnicos e as contribuies estticas reveladas pelo discurso da reproduo.
No primeiro captulo do Trait, Schaeffer transporta-nos era pr-histrica e analisa
o processo por meio do qual o som foi, pela primeira vez, identificado como entidade
isolada. A imagem evocada a de um homem primitivo que, levado por seus instintos,
combate o estrondo do trovo, bate em objetos, sem descanso, e se diverte gritando sem
motivo. Observando tudo a sua volta, ele descobre uma realidade ligada aos objetos
materiais que envolve um novo vnculo com sua percepo: o som.
Imaginemos aquele homem selvagem, batendo nos objetos, repetidamente. Num
primeiro momento, o primitivo observar a relao de causa-efeito que acompanha sua
ao e descobrir uma das faculdades da matria: soar. Aps algumas batidas, aparecer um
outro ponto de concentrao; o som solicitar sua ateno. O sujeito poder, assim,
reorganizar estes efeitos e at criar uma seqncia com o repertrio das diversas variveis
que resultam de sua ao de bater nos objetos.
Segundo Schaeffer, na repetio ou na variao que o sinal que remetia ao
utenslio, em forma de pleonasmo, se anula [...]. O homem exposto aos sons, separados
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de sua causa material, que, embora presente, j no predomina em sua relao com o
mundo: [...] s ficam os objetos sonoros, percebidos desinteressadamente, que saltam a
seu ouvido, como algo totalmente intil, cuja existncia, no entanto, se impe [...].
Schaeffer atribui grande importncia a este exerccio, pois no se trata seno da
descoberta da msica:
Acaba de descobrir duas coisas ligadas a sua prpria atividade e ao
corpo sonoro, mas, paradoxalmente, independentes deles: a msica (pois j
se trata dela) e a possibilidade de tocar o que mais tarde ser chamado de
instrumento. (1988: 34)
O jogo instrumental nosso ponto de partida para explorar a incorporao dos
recursos eletrnicos no sculo XX. A metodologia que estabelecemos possibilita uma
aproximao que prescinde da teoria tradicional; por outro lado, permite uma anlise que d
conta das diferenas culturais. Isto se torna necessrio diante do enorme e diverso
repertrio elaborado com base nos recursos eletrnicos.
No texto de Schaeffer (1988: 33-45), identificamos uma direo na cadeia de
acontecimentos alis um ciclo entre os diferentes estgios do processo musical.
1. Atividade musical: interao com os recursos disponveis e criao de obras
musicais.
2. Teoria: depois de criadas as obras, tiram-se concluses a respeito da linguagem; j
estas se acumulam como convenes.
3. Recursos: a partir das convenes, elaboram-se novos recursos de interao.
Esta ordem, na cadeia do processo logstico, assegura uma estabilidade disciplinar e
delimita as fronteiras dos procedimentos musicais. Como veremos ao final desta
dissertao, a incorporao dos recursos eletrnicos enquadra-se neste modelo. Os critrios
de fabricao dos artefatos sonoros esto diretamente associados ao repertrio existente.
Com isto, estabelece-se uma tradio de trabalho, que, embora esteja em constante
evoluo, acumula os frutos do passado para usufru-los no presente. A msica eletrnica
apresenta-se, no final do sculo XX, como a concluso desse processo de incorporao dos
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recursos eletrnicos, estabelecendo repertrios e hbitos de produo que repercutem
diretamente na fabricao de novos equipamentos.
Porm a msica eletrnica rompe com uma srie de paradigmas do ofcio
instrumental. Os recursos eletrnicos, ao mesmo tempo em que substituem o espectro de
materiais, ampliam os procedimentos do criador. Certas entidades fundamentais da
atividade instrumental. como o artefato sonoro, a partitura e a execuo, so totalmente
reformulados. Discutamos, brevemente, o processo de trabalho com base em instrumentos
tradicionais em relao quele empreendido com recursos eletrnicos.
Procedimentos da msica instrumental
No contexto instrumental, o processo musical percorre esta trajetria: um
compositor elabora uma partitura cuja interpretao repousa no instrumentista. J este se
ocupa da realizao musical, executando a pea numa performance. Desta maneira, uma
idia musical, concebida e adaptada s condies de um determinado instrumento,
transmitida ao executante por meio da partitura. O ciclo comunicativo compositor-
intrprete-ouvinte elabora um fluxo linear da mensagem musical.
Nesse ciclo, identificamos a presena manifesta e efetiva de um conhecimento a
priori, em duas entidades fundamentais: o artefato sonoro (instrumento de msica) e a
escrita (a partitura). Esse conhecimento, que chamaremos de teoria, uma instncia
implcita do processo de produo musical. Como conseqncia, as idias do criador
restringem-se teoria.
O instrumento de msica
Primeiramente, estabeleamos o que seja um instrumento musical. Schaeffer
prope uma definio cannica: [...] qualquer dispositivo que permita uma coleo variada
de objetos sonoros ou de objetos sonoros variados, mantendo em esprito a presena de uma
causa (1988: 40). Embora o instrumento musical esteja em condies de produzir
diferentes sons, todos eles so relacionados a uma fonte sonora comum. Trata-se do caso ,
por exemplo, do piano que possui 88 teclas correspondentes a 88 notas diferentes. Cada
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uma dessas notas tem suas prprias variveis de articulao e so atribudas a uma nica
fonte sonora.
As alturas produzidas no piano correspondem quelas da escala temperada. As
variveis dinmicas destas alturas so associadas a parmetros de articulao configurados
ao longo de sculos de pensamento musical (sfz, staccato, marcatto etc.). O repertrio de
alturas e valores dinmicos que qualquer instrumento exibe elabora-se a partir de noes
anteriormente estabelecidas. O dispositivo sobre o qual descansa todo o processo musical, o
instrumento, portador de um conhecimento prvio, de algumas noes musicais
compartilhadas pelos atores do processo. Assim, o executante recebe um dispositivo j
adaptado ao contexto musical. Alm de conhecer a geografia do instrumento, o intrprete
precisa dominar a teoria para interagir com o dispositivo.
Da mesma forma, o fabricante de instrumentos musicais (luthier) tambm utiliza a
teoria musical para a fabricao e o desenho dos instrumentos. O estudo da ressonncia dos
materiais, do comportamento das componentes harmnicas parciais, do espectro e das
propriedades acsticas dos eventos que intervm na gerao do sinal sonoro, conformam,
com a teoria, os grandes pontos de apoio deste profissional. O luthier adapta os resultados
de sua pesquisa acstica s convenes da linguagem musical. Os dispositivos fabricados,
os instrumentos musicais, aparecem como produtos de duas disciplinas: teoria musical e
fsica (acstica).
A presencia implcita da teoria musical na construo e na operao dos dispositivos
sonoros uma circunstncia prpria do processo instrumental e contrasta com os
procedimentos atuais de produo e fabricao dos dispositivos eletrnicos. A grande
maioria de sons produzidos por estes artefatos no estudada pela teoria tradicional, que
foi configurada e estabelecida no contexto instrumental. A ausncia de um solfejo
especfico para o repertrio de sons produzidos pelos equipamentos eletrnicos1 tem dado
lugar implementao da teoria tradicional, no desenho das interfaces e na construo dos
1 O trabalho de Pierre Schaeffer, neste sentido, estabelece um ponto de partida para um projeto de solfejo
universal.
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dispositivos eletrnicos. Recursos tradicionais, como o teclado, tm sido adotados para
controlar a emisso de objetos sonoros que no possuem critrios musicais de uso.
A partitura
Esclareamos o que uma partitura: consiste numa codificao grfica de idias
musicais, de uma srie de ordens descontnuas sobre um instrumento. O som, fenmeno
posterior, aparecer na interpretao deste cdigo.
Para Emmerson (1986: 49), os smbolos da partitura possuem duas funes. Por um
lado, so portadores das determinantes necessrias para produzir uma pea musical; por
outro, significam as descries fundamentais para se explicar essa pea.
Para o autor, a partitura um organograma de operao do instrumento e, tambm,
um documento de anlise da msica. Observemos que, entre as idias musicais surgidas na
mente criativa e a sua notao numa folha de papel, encontramos algumas noes tericas
necessrias. Da mesma forma, entre as representaes grficas e sua decodificao na
realizao instrumental, deve haver um conhecimento prvio. A teoria musical necessria
para decifrar as partituras e para imprimir as idias num registro grfico. A partitura e a
teoria esto relacionadas estreitamente e estruturam o pensamento musical no contexto
instrumental.
J Boulez afirma que a partitura uma entidade unificadora: [...] a notao
representa um mnimo fator para que, ao menos, uma sociedade, por mais restrita que seja,
possa falar a mesma linguagem (apud Menezes, 1989: 74). No contexto instrumental, a
partitura passo obrigatrio entre as idias do compositor e a realizao musical.
O compositor no s imprime suas idias nos diversos smbolos da escrita, mas
tambm estrutura seu pensamento criativo na partitura. Ante a condio efmera do som, a
partitura serve de laboratrio de ensaio das idias, passvel de cristalizar-se num
documento. Menezes salienta a diferena entre idias musicais e sons no contexto da escrita
musical: A escritura [...] revela-se muito mais como representao do pensamento
composicional do que propriamente dos sons, que, uma vez decodificada pela interpretao,
ocasionar (Menezes, 1989: 55).
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No processo de trabalho com os instrumentos musicais, a partitura o veculo do
pensamento musical: um recurso portador de um conhecimento prvio e comum que
permite o trnsito das idias.
Com o advento dos recursos eletrnicos, a partitura tem sido utilizada com
propsitos diferentes. A tecnologia do registro sonoro foi substituindo gradualmente a
partitura como forma de escrita. O criador teve acesso impresso de suas intenes
diretamente sobre o suporte de registro. Com isso, a criao musical liberou-se da condio
efmera da matria sonora. A incorporao dos recursos eletrnicos retirou da partitura seu
lugar privilegiado no processo musical e passou a ser utilizada como um esboo da
realizao, sempre verificvel atravs do registro.
Por outro lado, os smbolos de notao foram constitudos a partir das leis do
instrumento musical e no abrangem o imenso espectro de sonoridades produzidas pelos
dispositivos eletrnicos. A ausncia de um solfejo especfico para estas sonoridades elimina
a possibilidade de uma notao simblica.
No entanto, em algumas ocasies o intrprete de instrumentos eletrnicos estabelece
o desenho de um organograma de ordens para realizar a execuo o caso de Kraftwerk.
A inexistncia de um embasamento terico compartilhado pelos atores do processo, de uma
linguagem comum que normatize os critrios de operao dos dispositivos, impede a
elaborao de uma notao universal. A constante reformulao no desenho das interfaces
alimenta esta dificuldade, pois cada equipamento apresenta funes diferentes e parmetros
particulares de operao.
Os recursos eletrnicos deram lugar a outro tipo de representaes grficas,
promovidas principalmente pelos softwares de msica. Essas representaes, que
correspondem s interfaces grficas dos programas, so esquemas de operao que
visualizam os parmetros particulares de cada ferramenta. Como forma de notao musical,
estes grficos revelam os vestgios do processo adotado, mas so decifrveis s por quem
conhece as propriedades de cada software, ou equipamento.
Existem alguns poucos exemplos de representaes grficas compartilhadas pela
maioria dos recursos eletrnicos, os quais, portanto, prefiguram um novo solfejo.
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Porm a msica eletrnica prescinde, sistematicamente, da partitura e da notao
tradicional. Os materiais so organizados diretamente no suporte de reproduo, como a fita
magntica ou a memria do computador.
No contexto instrumental, a teoria est embutida no cdigo escrito que, por sua vez,
permite a transmisso do conhecimento. Por outro lado, o cdigo determina os modos de
interao com os dispositivos e estrutura o pensamento do criador. A teoria permite
esclarecer os procedimentos e os resultados artsticos. J na msica que se vale dos
recursos eletrnicos, os modos de interao com os dispositivos revelam um alto grau de
indeterminao. O esclarecimento dos procedimentos e a anlise dos resultados apresentam
desafios complexos e passam, necessariamente, por reflexo terica sobre a msica.
O criador diante dos recursos
No contexto instrumental, o pensamento criativo restringe-se s condies da
partitura e dos instrumentos; em outras palavras, as idias de um criador so concebidas no
mbito de um vocabulrio instrumental. Para iluminar o deslocamento causado pela
apario de dispositivos eletrnicos no trabalho criativo em msica, necessrio esclarecer
o conceito de campo sonoro.
O campo sonoro o repertrio de sons que um compositor pode utilizar como
materiais dentro de uma pea de msica. Podemos acrescentar que, no contexto
instrumental, este campo sonoro constitudo fundamentalmente por notas. Outras
construes, entendidas como materiais (acordes, melodias, motivos, temas), podem ser,
em qualquer caso, reduzidas a notas.
Uma obra musical pode ser entendida como uma disposio particular do campo
sonoro. Levando-se em conta os limites do campo sonoro no contexto instrumental, esta
obra configura-se como uma organizao de notas. A funo da teoria consiste em estudar
o campo sonoro e suas nuanas.
preciso observar que a nota musical uma conquista do pensamento musical, um
produto cultural. A nota resume, numa entidade nica, os traos de altura perceptveis de
um evento sonoro. Segundo Denis Smalley, no artigo Spectro-morphology and
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structuring processes: A prpria nota abrange as percepes tradicionais da altura: alturas
absolutas, combinaes de intervalos e acordes (1986: 66).
A nota, a partitura e os instrumentos constituem um arsenal de recursos tecnolgicos
por meio dos quais o msico se relaciona com seu meio expressivo. Com estes dispositivos,
o msico instrumental compreende o som. A teoria, designadora do material e rbitra da
logstica instrumental, encontra-se implcita em cada um dos nveis do processo musical.
A mediao da teoria no processo instrumental est diretamente relacionada ao
exerccio da criao. Embora as idias de um compositor sejam abstratas ou surjam fora da
msica, elas devem ser necessariamente materializadas em notas, escritas numa partitura e
adaptadas s caractersticas prprias dos instrumentos. O compositor estrutura seu
pensamento (na partitura), expresso na disposio do material (as notas), encontrando sua
realizao sonora na interpretao (instrumento). No queremos empreender uma descrio
do ato criativo, apenas nos permitimos assinalar que a inspirao ou insight (Laurentiz,
1991: 31) elabora-se em determinadas circunstncias, condicionadas pela tecnologia
disponvel.
Com o surgimento de recursos eletrnicos como o microfone e a fita magntica, o
campo sonoro estendeu enormemente seu volume. Os materiais disponveis para utilizao
por parte de quem cria alcanaram um espectro imenso de sons, alm das notas. O campo
sonoro passou a ser constitudo pelo conjunto de sons que podem ser captados por um
microfone. Com uma paleta extraordinariamente ampla de materiais sonoros, a criao
musical encontrou novos atores.
Desta maneira, a incorporao dos recursos eletrnicos deu lugar a outros tipos de
preocupao, que solicitam estudos qualitativamente diferentes. O interesse pela natureza
dos equipamentos, pelos procedimentos adotados e pelas propriedades do material substitui
definitivamente a abordagem tradicional no exerccio de anlise musical, focalizado na
disposio do campo sonoro.
Esta pesquisa pretende colaborar com a compreenso do movimento de msica
eletrnica. Para isso, elaboramos um recorte no comeo dos anos 1980. Neste exame, a
teoria musical, cujas regras e noes foram estabelecidas a partir do instrumento musical,
ocupa um lugar acessrio. Esta pesquisa pretende contribuir tambm com ferramentas
metodolgicas para uma teoria musical das expresses eletrnicas. Identificamo-nos, a
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exemplo de Schaeffer, com o percurso dos indeterministas, ou, segundo este autor, com os
realistas. Pretendemos desenvolver algumas idias esboadas no Trait e invocar essa
hiptese sobre a msica, procurando, como pesquisadores, seguir seu exemplo: avanar
com prudncia.
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I
INVENES, INOVAES E ESPECULAES NAS PRIMEIRAS DCADAS DE INCORPORAO DOS
RECURSOS ELETRNICOS
O marco referencial dos recursos musicais no contexto instrumental proporciona um
ponto de partida para examinar o cenrio tecnolgico da msica no sculo XX. A anlise
dos recursos disponveis nos permitir compreender o processo de interao, o chamado
jogo instrumental (Schaeffer, 1988: 41). Tais ferramentas deram lugar a um extenso
repertrio, esta pesquisa concentrar-se- naquele surgido em meados da dcada de 1970.
Destacando os fatos relevantes nestas produes, empreendemos uma leitura do longo
processo de incorporao dos recursos eletrnicos ao trabalho musical.
No processo mais amplo, identificamos um momento culminante em que
convergem fatos substancialmente diferentes. Durante os anos 1960, adota-se a tecnologia
dos transistores na fabricao de aparelhos eletrnicos, lanado o LP estreo como
formato unificado de reproduo, a msica eletroacstica consolida-se como corpus para
doutrinas a respeito de composio erudita, nasce uma indstria de instrumentos eletrnicos
cujo consumidor no necessariamente msico. Todos esses fatos provocam
transformaes na natureza dos recursos, nos procedimentos de trabalho e nas expresses
musicais.
Este captulo trata do cenrio tecnolgico da primeira metade do sculo XX. Neste
perodo, incorporaram-se abruptamente as conquistas da cincia da eletricidade e da
acstica fabricao de recursos musicais. O primeiro estgio dessa incorporao
caracterizou-se pela natureza experimental e especulativa. Identificamos dois tipos de
preocupaes agenciadas pelos novos recursos: uma de carter miditico, chamada aqui de
difuso; outra de carter musical, aqui denominada gerao. Na segunda metade do
sculo, com a definio musical e social dos recursos, esta rgida diviso seria diluda.
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Esta pesquisa funda-se na idia de que a msica aparece na interao com os
recursos disponveis. Aps a apario de uma nova tecnologia, o que est por vir, a
experincia, em funo dos diversos comportamentos possveis [...] com o dispositivo.
(Schaeffer, 1988: 35). Na primeira metade do sculo, preparam-se as bases para uma nova
experincia musical. O comportamento que domine determinar uma classe de msica
[...], pois nosso primitivo [genericamente o homem], fora de tocar as abboras [os
artefatos sonoros], chega a uma forma de virtuosismo particular que condicionar sua
msica (idem, op. cit.: 35). Nosso intuito final, a msica eletrnica, desvenda-se ao
examinar-se o arsenal de recursos musicais que vem ao encontro do homem de nossa era.
Sobre a abordagem
O controle e a operao das novas ferramentas de trabalho configuraram, no incio
do sculo XX, um deslocamento disciplinar no trabalho sonoro. Os profissionais da msica
que empreenderam o uso dos novos recursos tiveram que reformular seu ofcio,
encontrando desafios nunca antes encarados e limitaes prprias de uma cincia jovem. O
compromisso com os equipamentos eletrnicos levou criadores e intrpretes a ingressar em
reas como a acstica e a eletrnica. A msica que estudamos est sujeita a uma condio
interdisciplinar. A compreenso dos resultados artsticos e dos processos criativos solicita
uma correspondncia entre conhecimentos de caractersticas diversas. A apropriao da
tecnologia est sujeita compreenso de fatos cientficos. A presente anlise recupera
alguns desses fatos, porque sobre eles desenvolvem-se tcnicas de trabalho em msica.
Por outro lado, durante as primeiras dcadas do sculo XX, a atividade musical foi
atingida por um processo de industrializao. Devemos esclarecer que existem dois tipos de
indstria musical. Por um lado, um enorme fluxo comercial agenciado pelo mercado de
discos, fenmeno que ser examinado neste captulo. Por outro, uma institucionalizao do
mercado de instrumentos musicais e aparelhos eletrnicos, a qual constituir objeto do
captulo 2. Os imperativos destes dois plos e as estratgias econmicas das grandes
companhias neles engajadas configuraram um cenrio de industrializao indito na
histria da msica. Aps a instituio deste novo sistema para os produtos artsticos e para
as ferramentas de trabalho, o ofcio musical passou a exigir uma dimenso comercial que
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condiciona sua essncia e atinge as buscas estticas. A convergncia entre inovaes
tecnolgicas e eventualidades, no sistema comercial, traa um importante critrio para esta
pesquisa. O estudo das determinantes do mercado revela as circunstncias sociais
vivenciadas pelos msicos eletrnicos e ajuda a compreender o posicionamento esttico dos
artistas diante da sociedade.
Ao mesmo tempo, os aparelhos eletrnicos causaram alteraes na relao
individual com o som. O processo gradual de adaptao s operaes possibilitadas
repercutiu em modificaes qualitativas nos modos de escuta. A violenta transformao do
entorno sonoro, a convivncia cotidiana com a transmisso e a reproduo eletrnica
propiciaram enormes mudanas na relao do indivduo com as entidades sonoras,
inaugurando as caractersticas de um novo regime perceptivo e de novos hbitos de
apreciao musical. A msica eletrnica uma conseqncia direta da reformulao do
lugar do som na vida humana; seu desafio esttico reside na adoo musical das
sonoridades provenientes dos equipamentos. Demos especial nfase a este tema porque, de
nosso ponto de vista, na msica eletrnica desenvolvem-se novos modos de escuta musical.
Por esses motivos, a anlise que elaboramos segue um curso interdisciplinar, pois o
estudo dos equipamentos exige aproximaes de diversa ordem: tcnica, social, cultural e
musical. Os questionamentos do presente estudo pretendem coincidir com as prprias
preocupaes dos msicos eletrnicos. Vemo-nos diante de uma atividade que rene
conhecimentos de diferentes reas. Acreditamos numa musicologia interdisciplinar, que
considera o fato musical (Molino, s.d.: 114) uma entidade multipolar compreensvel a
partir de diversos ngulos. No pretendemos traar um veredicto final sobre a tecnologia de
udio no sculo XX, valemo-nos de aproximaes dessemelhantes com essa tecnologia, a
fim de esboar as possveis contribuies de uma experincia musical contempornea.
Identificamos uma srie de circunstncias diversas: uma seqncia de fatos tcnicos
sujeitos obsolescncia (transduo, tubo trodo, transistor), um empreendimento esttico
por parte de compositores eruditos na busca de novos meios de expresso, um enorme
mercado de produtos culturais e, por ltimo, uma transformao dos hbitos de escuta.
Todas essas circunstncias, prprias da tecnologia musical da primeira metade do sculo
XX, ajudam-nos a elucidar a forma como, hoje, os msicos eletrnicos relacionam-se com
seus recursos.
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Apesar de nosso objeto de estudo constituir um conjunto de fenmenos
interligados, eles sero discutidos como uma seqncia de fatos, devido a questes de
natureza metodolgica. Na medida em que avanamos cronologicamente e nos
aproximamos das tecnologias atuais, encontramos menor unanimidade a respeito dos temas
abordados. As fontes consultadas desviam-se levemente da discusso a que nos referimos
aqui. Nosso foco a msica eletrnica. Na falta de uma bibliografia especfica a seu
respeito, valemo-nos de uma bibliografia concernente a temas que lhe so relacionados:
msica eletroacstica, msica popular, tecnologia, cultura eletrnica, mercado de discos,
mercado de instrumentos musicais. Em relao a estes textos, alguns apresentam temas
analisados sob pontos de vista que coincidem com os deste estudo; outros se explicam de
maneira diferente; outros, ainda, revelam-se irrelevantes.
Os recursos de difuso
No sculo XIX, foram encontradas diversas propriedades da eletricidade; a mais
importante para o trabalho em msica foi a transduo de ondas sonoras para energia
eltrica. Isto permitiu uma srie de operaes inditas com a matria sonora, captura,
registro e reproduo. A implementao da transduo sonora fundou, desde o incio, um
promissrio mercado de aparelhos e estimulou, da por diante, a fabricao de novos
recursos.
Os recursos de difuso no foram construdos com fins musicais, mas com
propsitos de controle sonoro; sua fabricao foi tarefa de inventores e cientistas. As
primeiras aplicaes foram totalmente especulativas, porm encaminharam-se para um
projeto miditico. Com o intuito de comunicar, o principal propsito foi veicular
informao atravs do som, cujo estudo subverteu as fronteiras da arte musical. O som
passou a ser abordado tambm como um veculo de informao essencialmente semntico.
Identificamos duas aplicaes especficas: de um lado, a transmisso do som distncia; de
outro, o registro, que, alis, implica dois procedimentos: gravao e reproduo.
O surgimento de aparelhos como o microfone, o fongrafo e a fita magntica, em
poucos anos, fundou novas perspectivas de trabalho com a matria sonora, voltadas
principalmente para o trabalho de gravao. A possibilidade de registro configurou uma
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nova realidade semntica para o som: a documentao. O trabalho de manipulao sonora
ocupou-se tambm da inteligibilidade da mensagem, no to-somente das caractersticas
formais. Apareceram novas reas de trabalho, cujo propsito consiste em transmitir
adequadamente o sinal sonoro atravs dos equipamentos. O documento sonoro adotou,
rapidamente, formas sociais e tornou-se um produto do mercado, fazendo da msica um
objeto de consumo.
A consolidao das aplicaes com intuito de comunicao (difuso) contrasta com
a etapa embrionria das funes propriamente musicais (gerao de sons). A apropriao
dos recursos eletrnicos como meios de expresso musical, em que os sons produzidos
pelos aparelhos so utilizados como materiais de uma obra, seria objeto de reflexo
posterior. A primeira tentativa sistemtica de elaborar leis musicais para os sons produzidos
com os novos recursos surgiu apenas em 1966.2
A reflexo sobre os recursos sonoros foi elaborada ,inicialmente, por intelectuais de
outras reas (filosofia, semitica, esttica, literatura, psicologia) que no a msica e
constituem um corpus que se enquadra nos estudos sobre a cultura. No entanto, muitas
destas idias desvelam os critrios e as circunstncias vividas pelos msicos diante dos
novos recursos. A anlise que elaboramos recorre a autores que no abordam diretamente o
tema da linguagem musical, mas as conseqncias sociais e culturais que propiciaram os
equipamentos de difuso sonora (Walter Benjamin e Marshall Mcluhan).
Aps um amadurecimento intelectual no que se refere reproduo eletrnica,
possvel esboar novas idias sobre tecnologias que nasceram no comeo do sculo, mas
que permanecem em nosso cotidiano sonoro. A reproduo eletrnica mudou o lugar do
som na vida humana e modificou as estratgias de apreciao musical.
Analisaremos os recursos de difuso musical como entidades tecnolgicas que
repercutem no trabalho musical.
2 Ver : Schaeffer, Pierre. Tratado de los objetos musicales, traduo ao espanhol, Araceli Cabezn de Diego, Madri (Alianza Msica), 1988.
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A transduo
A grande descoberta na pesquisa de controle sonoro, que permitiu a construo dos
dispositivos dos quais trataremos, foi a aplicao do princpio de transduo. Esta consiste
em transformar um tipo de energia em outro. No caso do som, o transdutor converte ondas
sonoras em impulsos eltricos. Lembremos que o som acusticamente entendido como
movimento ou presso de ar sob forma de vibraes. Por meio de um diafragma de ao,
Alexander Graham Bell conseguiu codificar as vibraes sonoras em impulsos de energia
eltrica. A informao sonora convertida em eletricidade torna-se, assim, passvel de ser
manipulada com grande liberdade. Pode ser, por exemplo, transmitida por meio de um cabo
a grandes distncias e de forma instantnea. Na outra direo, os impulsos eltricos, ao se
transformarem novamente em mudanas de presso de ar, produzem som.
O desenvolvimento do princpio de transduo, utilizado por Bell na construo do
telefone, permitiu, mais tarde, que se chegasse a um dispositivo especfico de captao: o
microfone.3 Todavia o dispositivo encarregado de interpretar o fluxo eltrico e produzir
som, o alto-falante,4 faz-se necessrio na construo de equipamentos eletrnicos.
O microfone e o alto-falante, cujas funes consistem em transformar o som em
eletricidade e a eletricidade em som, configuram a tecnologia da transduo. A
implementao dessa tecnologia permitiu a proliferao comercial de aparelhos sonoros
com diversas funes.
A transmisso
3 O primeiro modelo de microfone foi patenteado por Simmens em 1840, um prematuro desenho trabalhado a carvo. O desenvolvimento da tecnologia eltrica daria lugar a outros mecanismos na construo de microfones, como o microfone de condensador, que aparece em 1917, ou o dinmico, surgido em 1935. 4 Ernst Simens inventou o primeiro alto-falante no eletrificado em 1874. Com a apario do tubo trodo ou amplificador, em 1906, surgem diversos tipos de alto-falantes. J o desenho do alto-falante moderno data de 1925, e sua patente pertence a dois engenheiros da General Electric, Chester W. Rice e Edward Washburn Kellogg.
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O telefone
O telefone foi o primeiro equipamento sonoro a causar transformaes nos vnculos
que o homem mantm com o som. Alm das possibilidades de comunicao, o dispositivo
inaugura uma forma de escuta at o momento inexplorada: a presena de um som cuja fonte
emissora no visvel. Esta situao, que recebe os nomes de acusmtica (Schaeffer),
esquizofonia (Shafer), extenso do ouvido (Mcluhan), extrapola a noo de causa e
efeito no ato da escuta. A fonte emissora do som ausenta-se de sob a vista, deixando
imaginao o trabalho de completar a informao sobre esta causa. Esta relao prpria
da tecnologia que se abastece da eletricidade. Todos os equipamentos feitos para
comunicar, posteriores ao telefone, carregam, implicitamente, uma situao acusmtica.
O prprio telefone causou transformaes na fala e na vida cotidiana. O
pesquisador canadense Murray Schafer reflete sobre o impacto propiciada pelo aparelho,
neste sentido:
O telefone estendeu a audio ntima a grandes distncias; como no
basicamente natural ser ntimo a distncia, levou algum tempo para que os
humanos se acostumassem a esta idia [...] A capacidade do telefone de
interromper pensamentos mais importante porque ele, indubitavelmente,
contribuiu em grande parte para abreviar a prosa escrita na fala entrecortada
dos tempos atuais (Schafer, 2001: 132).
O rdio
No final do sculo XIX, apareceu um recurso que provocou a democratizao desta
situao acusmtica: o rdio. A descoberta da transmisso de ondas de rdio, ou
hertzianas,5configurou um importante cenrio de comunicao nas primeiras dcadas do
5 Por Gugliemo Marconi em 1895.
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sculo passado. A transmisso sonora sem fio s foi conseguida aps a inveno da
vlvula amplificadora6, tubo trodo ou audion, que amplifica e estabiliza o sinal no aparelho
receptor. A implementao dessa descoberta foi utilizada, primeiramente, como um
caminho de mo dupla, nas comunicaes radiotelegrfica e radiofnica, primordiais nas
estratgias blicas da Primeira Guerra Mundial.
Em 1916, um funcionrio da Marconi Telegraph and Signal Company7 (primeira
companhia a comercializar a radiotelegrafia), o russo David Sarnoff, intuiu as aplicaes de
entretenimento do rdio como meio de comunicao massiva dotado de uma via. No
comeo, as idias de Sarnoff foram rejeitadas e tiveram que esperar alguns anos para ser
tomadas a srio. As primeiras prticas de radiodifuso foram realizadas pelo americano
Frank Conrad, quem, de forma pioneira, transmitiu os primeiros programas de rdio, da
prpria casa. As transmisses de Conrad combinavam msica e narrao, o que lhe
angariou uma certa popularidade, embora os radioamadores tivessem que construir o
aparelho receptor. O americano foi contratado na primeira emissora comercial de rdio,
fundada em 1920, a KDKA.
Nos primeiros anos da dcada de 1920, apareceram emissoras comerciais e
sociedades de amadores de rdio no mundo inteiro. Durante esta poca, implantaram-se as
legislaes sobre o espao eletromagntico e investiram-se grandes capitais, que
impulsionaram, da em diante, as companhias e as redes nacionais de transmisso radial: a
NBC, em 1926, nos Estados Unidos; a BBC, em 1926, na Inglaterra; a RRG, em 1926, na
Alemanha; a RAI, em 1924, na Itlia; a Rdio Verde-Amarela, em 1932, e a Rdio
Nacional, em 1936, no Brasil; etc.
Com o intuito de utilizar adequadamente um recurso que no tinha precedentes,
vrios propsitos foram inicialmente adotados: polticos, educativos, jornalsticos,
publicitrios e de entretenimento. O rdio foi, por exemplo, o principal veculo de
6 Atribudo ao americano Lee de Forest em 1906. No entanto existem documentos que afirmam que, alguns anos antes, um brasileiro, o padre gacho Roberto Lendell de Moura, teria conseguido transmitir sons atravs de ondas radiais. Ver Almeida, B. Hamilton, O outro lado das telecomunicaes: a saga do padre Landell. Porto Alegre: Sulina, 1983. 7 Transformada depois na Radio Corporation of Amrica (RCA).
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propaganda do nacional-socialismo, na Alemanha de entreguerras,tendo exercido papel
indispensvel na ascenso de Hitler. Numa primeira etapa, interesses polticos e educativos
foram divulgados pelo rdio; no entanto, os vnculos com a indstria fonogrfica
estabeleceram um recurso indito de difuso musical e a linguagem radiofnica voltou-se
para o entretenimento.
Durante a primeira metade do sculo, o rdio foi alvo de diversas anlises crticas
por parte de intelectuais dos mais diversas pontos de vista (Walter Benjamin, Kurt Weil,
Bertold Brecht), pois revolucionou o pensamento miditico do momento. Concentremo-nos
nas idias que repercutem no mbito musical: [...] Antes do surgimento do rdio, quase
no se conheciam meios de divulgao que fossem propriamente populares ou que
correspondessem a finalidades educacionais (Benjamin, 1989: 85).
Segundo Benjamin, os novos meios de divulgao reformularam o conceito de
popularidade. A abrangncia universal e indita da difuso proporcionou as bases para o
surgimento de novas produes culturais, voltadas para um pblico massivo e divulgadas
por intermdio do rdio:
Em virtude da possibilidade tcnica inaugurada por ele, de dirigir-se na
mesma hora a massas ilimitadas de pessoas, a popularizao ultrapassou o
carter da inteno filantrpica e tornou-se uma tarefa com leis prprias de
essncia e de forma (Benjamin, op. cit.: 85).
A intuio de Benjamin tem uma profunda relevncia no processo de difuso
musical do perodo. A produo popular, que era entendida como a expresso sonora de
uma cultura especfica, passou a constituir uma entidade dotada de outros atributos. A
popularidade da msica dependeu mais de sua divulgao por meio do rdio e do disco, do
que de sua constituio social ou cultural, e as produes passaram a responder a leis
prprias de essncia e de forma, institudas pelos veculos miditicos.
Entende-se, assim, que, a partir da emergncia do rdio e do fongrafo, comeam a
aparecer produes musicais chamadas populares, as quais rompem os vnculos com as
tradies passadas e se acomodam-se aos veculos de divulgao (rdio, disco). Os msicos
encontraram pblicos em lugares remotos, e criaram-se grupos de radioamadorismo unidos
pelo culto a certas produes. Os limites da produo de cada cultura foram subvertidos e
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se diluram na densa trama da cultura de massa. Os radioamadores deram lugar a uma
especializao da programao e categorizao da msica popular em gneros. Surge,
desta forma, uma personagem essencial na difuso musical e na consolidao de minorias
reunidas em torno de uma srie de produes culturais: o DJ de rdio.
Esta tendncia natural do rdio em ligar intimamente os diferentes grupos
de uma comunidade manifesta-se claramente no culto aos disk-jockeys e no uso
que se faz do telefone, como forma glorificada da velha interceptao de notcias
na linha-tronco (McLuhan, op. cit.: 345).
Por outro lado, o rdio instituiu a universalizao da escuta acusmtica. Os meios de
divulgao acabaram com a necessidade da presena do ouvinte durante a performance
musical, e a programao radialstica atingiu todas as camadas da sociedade. A rpida
ascenso de emissoras comerciais, com programao musical, fez da audio de msica
uma experincia comum. O limite espao-temporal que envolvia a apreciao musical foi
eliminado, e a msica adquiriu uma condio de onipresena. Tudo isto foi modificando,
aos poucos, os paradigmas de contemplao da msica, inicialmente reservados ao ritual da
execuo instrumental num palco e, depois, subvertidos pela paulatina comercializao do
fongrafo. Com o rdio, tomou-se conscincia de que possvel perceber a msica de
outras formas (cf. Iazzetta, 1998: 37).
Para a pesquisadora mexicana do rdio, Maria Cristina Romo Gil, na comunicao
da mensagem radiofnica deve-se levar em conta a maneira como o receptor a escuta.
Romo Gil identifica algumas propriedades do som, enquanto fenmeno perceptivo:
O som no tem limites quanto a sua origem, nem quanto a sua difuso;
expande-se naturalmente e pode ser percebido tanto voluntria como
involuntariamente, em contraposio ao que ocorre com a viso, completamente
submissa vontade (1994: 18).
Aquilo que Romo Gil chama de escuta involuntria coincide com o que Pierre
Schaeffer chama de ouvir, com que Abraham Moles designa por modo de escuta
ambiental e com a noo de profundidade de Marshal Mcluhan. Por meio do rdio,
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possvel aceder aos mais variados repertrios sonoros sem empreender, necessariamente,
uma contemplao concentrada, a qual d conta do sentido, mas permite apreender os
contedos sob outras formas de percepo.
A instituio da escuta acusmtica atingiu os procedimentos de criao sonora. A
msica foi construda para ser realizada nos alto-falantes, encontrando novos espaos de
difuso. Desde o incio do sculo XX, observa-se o surgimento de produes musicais
feitas para ser escutadas involuntariamente. A chamada msica pano de fundo,
comercializada, nos Estados Unidos, pela companhia Muzak, um resultado direto da
escuta acusmtica. Esse tipo de msica responde a outros tipos de relao perceptiva com
as entidades sonoras. As modificaes no regime perceptivo, que agenciaram os recursos
eletrnicos, sero tratadas com mais profundidade no terceiro captulo.
Como resultado, os novos meios de divulgao sonora, conformados pelo rdio e
pela indstria fonogrfica, resultaram em importantes transformaes culturais.
Por um lado, redefiniu-se o conceito de popular, como forma de expresso
prpria dos veculos miditicos em detrimento das categorias tradicionais, que o definiam
como a expresso de uma cultura especfica. Por outro, estabeleceram-se novas formas de
escuta musical. A condio acusmtica da radiodifuso tornou evidente que a percepo
auditiva possui vrios aspectos. Instituem-se, assim, novos vnculos com a msica, a qual
comea a ser elaborada exclusivamente em funo da divulgao radialstica.
Contudo o rdio e recursos de registro como o fongrafo criaram, em conjunto, uma
nova condio, do ponto de vista social, para a msica e para o msico.
O registro
O fongrafo
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Sobre o princpio de transduo funda-se tambm o cilindro fonogrfico patenteado
por Thomas Alba Edison em 1877.8 Este dispositivo permitia fixar o som de forma
mecnica, cristalizando os experimentos realizados por Leon Scott de Martinville em 1856
(Cuttler, 2000: 93). Esta foi a primeira forma datada de registro sonoro.
Inicialmente, Edison construiu o aparelho com o propsito de captar e reproduzir a
voz humana, chamando-o de Dictaphone. Alis, as primeiras mquinas a ser
comercializadas foram aparelhos repetidores e brinquedos (bonecas) que escutavam e
falavam. Estes primeiros prottipos especulativos foram construdos sem que se tivesse
uma clara noo das possibilidades abertas pelo registro sonoro como veremos depois,
este ser objeto de diversas reformulaes.
Em 1887, Emil Berliner introduz um dispositivo mais bem acondicionado para a
reproduo de msica: o gramophone. O aparelho apresentou os seguintes benefcios:
registro em disco de zinco, coberto por uma camada de cera, velocidade padro de gravao
a 78 rpm e maior volume. Este equipamento permitiu que a elaborao industrializada de
discos de vinil partisse de um original feito em zinco, o que possibilitaria a emergncia do
disco de vinil como formato universal de difuso massiva para os trabalhos musicais.
O processo de popularizao comercial do fongrafo no foi imediato nem
uniforme. Nos primeiros anos de sua construo, o processo de transduo efetuava-se de
forma mecnica; no entanto, surgiram diversas patentes de mquinas similares e deram-se
as primeiras tentativas de comercializao massiva.
Em 1925, com a apario do alto-falante eltrico, a companhia americana Western
Electric patenteou e comeou a produzir o fongrafo a motor (chamado de Ortophone). A
partir daquele momento, o fongrafo tornou-se um aparelho relativamente cotidiano.
O suporte de registro, o disco, ofereceu um terreno fecundo para a instituio de um
mercado de gravaes musicais. Os primeiros trabalhos a ser comercializados, registrados 8 Charles Cross j tinha patenteado, no mesmo ano, um aparelho com as mesmas caractersticas, o Palophone, mas este nunca foi realizado. A disputa sobre quem teria sido o verdadeiro descobridor opta por Edison, que foi o primeiro a registrar e reproduzir sons. Em, Moraes, Amaro & Moraes e Silva, Jao Baptista. Odissia do Som. So Paulo (Musseu da imagem e som), 1987, aparece uma completa informao sobre a apario do primeiro gravador e reprodutor.
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em disco de zinco e cilindros de cobre, eram voltados para o registro dos clssicos do
repertrio erudito. Alguns cantores de pera da poca (como Enrico Caruso) foram
responsveis pelos primeiros sucessos comerciais da indstria fonogrfica. Assim, o
gramophone tornou-se o principal aparelho de comercializao massiva, depois do
fongrafo, e o disco, o formato de suporte universal. Aps alguns anos de recesso, ao
longo da Primeira Guerra Mundial e da apario do rdio, a poderosa indstria fonogrfica
muniu-se de outros repertrios. A msica popular norte-americana (swing, blues, jazz) foi
altamente favorecida e divulgada pelo mundo inteiro, influenciando a produo musical de
outros lugares atravs do disco.
Em 1948, a Columbia Phonograph Company9 (hoje Columbia Records) introduziu o
disco LP (long-play), de 12 polegadas e gravao a 33 e 1/3 rpm, o que permitiu registrar
30 minutos de som em cada lado. Com isso, a companhia conseguiu estabelecer um padro
de formato para produo e venda. Constituiu-se, assim, um promissor mercado de discos.
O impulso comercial que tiveram o fongrafo e o disco repercutiu na atividade
musical da poca, pois a unificao do suporte introduziu novas dimenses sociais para a
msica. O exerccio musical, at aquele momento restrito ao mbito artstico, foi alvo de
interesses comerciais. As expresses musicais, individuais e coletivas passaram a ser
tambm produtos de entretenimento. A criao musical incorporou as necessidades do
mercado, e uma enorme quantidade de msicos empreendeu a tarefa de produzir discos de
consumo massivo. A transformao dos procedimentos de criao musical vinculados ao
registro sonoro manifestou-se de maneira patente nos anos 1950 e 1960, com o surgimento
de produes elaboradas no interior dos estdios.
Ao mesmo tempo, a documentao sonora permitiu que se tomasse conhecimento
do repertrio musical de todas as tradies e culturas e, desta forma, o registro sonoro
representou uma ferramenta determinante para se compreender a msica do passado e de
outras localidades, a qual, at aquele momento, era analisada apenas por meio de partituras
9 Nos primeiros anos do sculo, esta companhia disputou, juntamente com a American Phonograph Company (na qual trabalhou Edison) e a Victor Talking Machine Company (produtora de Vitrolas), o incipiente mercado de aparelhos de som.
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ou audies ao vivo. A ttulo de exemplo, em 1920, a Biblioteca do Congresso, nos
Estados Unidos, inaugurou um significativo acervo das gravaes realizadas at aquele
momento. J a partir dos anos 1940, com a criao do laboratrio de gravaes, naquela
mesma instituio, organizou-se a maior coleo existente de documentao sonora.
McLuhan reconhece esta propriedade da documentao sonora:
Onde antes havia uma limitada seleo de perodos e compositores, passou
a haver com o gravador combinado ao LP um completo espectro musical, que
tornou acessveis tanto o sculo XVI como o XIX, a cano popular chinesa e a
hngara (op. cit., p. 327).
O fongrafo, a vitrola e o rdio foram abastecidos pela indstria fonogrfica e
retiraram a msica da sala de concerto, arrebatando ao executante instrumental a
exclusividade da difuso. O registro substituiu a partitura como forma de documentao do
conhecimento musical. Com isso, as produes encontraram um novo carter social e o
papel do artista foi progressivamente subvertido, passando-se a considerar outros valores
estticos na criao musical.
A fita magntica e a gravao multipista
Apesar de o gravador de fita magntica ter significado apenas uma mudana
tecnolgica no procedimento de registro, o surgimento deste recurso inaugurou novas
tcnicas e procedimentos no exerccio de produo sonora, os quais repercutiram nos meios
de divulgao existentes. O pesquisador francs Michel Chion explica que a conquista, de
fato, foi a gravao. As verdadeiras possibilidades desta descoberta seriam atingidas muitos
anos depois, com o advento da fita magntica.
Muitas vezes ocorre que as mquinas esperam anos, uma vez concebidas,
para encontrar seu emprego, e, inversamente, uma demanda artstica ou
econmica importante estimula a ecloso de novas tcnicas que, at aquele
momento, ningum havia considerado (Chion, 1996: 41).
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Durante as primeiras dcadas do sculo, experimentaram-se diversos procedimentos
de gravao alm do fonogrfico (tica, arame, papel). Desde 1920, desenvolveu-se, na
Alemanha, uma pesquisa de registro sonoro em fita magntica. Durante a Segunda Guerra
Mundial, dois engenheiros10 da politizada rdio alem, a Reichs-Rundfunk-Gesellschaft
(RRG), apresentaram, em 1935, um sistema de gravao em fita que superou as
expectativas em relao tecnologia do momento. O resultado, para a definio do material
fixado pelo primeiro novo gravador, era muito satisfatrio (a despeito dos outros
procedimentos). Esta pesquisa teve grande apoio do governo alemo, pois o gravador de
fita magntica colaborou enormemente na consolidao do rdio, primordial para o Reich.
Alm disso, Hitler pretendeu utilizar esta descoberta com fins de espionagem militar, por
isso o mundo ocidental teve que esperar o fim da guerra para conhecer essa tecnologia.
Terminada a guerra, a fita magntica foi implementada em outros lugares, e o
gravador comeou a ser construdo para fins comerciais.11
No comeo dos anos 50, aparecem os primeiros gravadores multipista, que recebem,
distintamente, 2 e 4 canais. O mtodo de registro multipista permite ao msico gravar um
determinado trecho enquanto escuta um outro sinal, j gravado. Assim, possvel elaborar
uma montagem sonora de trechos gravados separadamente. As primeiras tentativas de
gravao multicanal foram realizadas pelo guitarrista americano Les Paul, quem fez os
primeiros experimentos com gravadores fonogrficos. No entanto a gravao multipista foi
instituda universalmente em fins dos anos 1950, quando a RCA Victor lanou o LP
estreo. O mtodo de gravao multipista tornou-se o modelo de produo da msica
popular a partir dos anos 1960. O procedimento consiste em gravar vrios canais
separadamente, registrar sobre a fita e elaborar um disco, para ser reproduzido em dois
canais diferentes.
10 O procedimento adotado por Otto von Braurmuhl e Walter Weber consistiu em misturar um sinal de altssima freqncia durante o processo de gravao, em que a fita de plstico, na qual ficava registrado o som, era coberta por uma camada de ferro oxidado que a tornava magnetizvel 11 Inicialmente, pelas companhias alems AEG e Basf. Depois, a companhia americana 3M entraria no mercado de mquinas gravadoras e fitas magnticas. Em 1948, surge o primeiro modelo profissional, o Model 200, fabricado pela companhia americana Ampex.
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A importncia da fita magntica deve-se tambm s possibilidades que abriu na
manipulao do som. A versatilidade da fita, como suporte de gravao, deu lugar a que
fossem realizadas operaes que o disco no permitia, como cortar, colar, combinar e
reproduzir, em diferentes velocidades, um trecho especfico de som. Assim, a organizao
temporal dos eventos sonoros tornou-se um exerccio de laboratrio similar montagem
cinematogrfica.
O gravador de fita magntica s se imps na Frana um pouco depois
(1948), dando ao compositor, com a fita cassete magntica, a possibilidade de
cortar e recombinar os sons vontade, assim como o som tico o fizera, em
relao a Ruttman. A msica dos sons fixados adquiriu, desde ento, o conjunto
de meios tcnicos essenciais (Chion, 1996: 46).
Michel Chion compara o exerccio de edio sonora, possibilitado pela fita
magntica, ao experimento realizado, em 1930, pelo diretor de cinema alemo Walter
Ruttman. No registro tico (que no foi comercializado), o diretor rodou um filme sem
imagens, chamado Week-end, que relata, apenas por meio de sons, os acontecimentos de
um final de semana. Na poca, este filme, visionrio sob o ponto de vista da histria da
fixao sonora, no teve repercusses no mbito musical; isto s aconteceu, nos anos 1950
e 1960, com o espalhamento do gravador de fita magntica.
Como assinala Chion, o dispositivo tico j permitia o trabalho de edio; no
entanto, o magntico, em mos dos msicos, deu lugar a pesquisas em outros sentidos e
instituio de um lugar de trabalho para a manipulao sonora: o estdio de produo. O
estabelecimento do estdio como local de concepo criativa de grande importncia no
processo de incorporao dos recursos eletrnicos. No captulo seguinte, iremos nos
aprofundar no tema dos estdios; relacionamos, aqui, as conquistas que tiveram lugar no
final dos anos 1940, no estdio da RTF, (Radio-Diffusion-Tlvision Franaise), em Paris,
sob a direo de Pierre Schaeffer.
No interior do estdio, o gravador de fita magntica permitiu formular importantes
questionamentos musicais. Capturado e registrado na fita, o som , pela primeira vez,
analisado em profundidade. Schaeffer encontrou a possibilidade de isolar um trecho
(chamado de objeto) do efmero discurso sonoro:
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O gravador de fita permite fixar a ateno no som mesmo, em sua matria
e sua forma, devido a cortes e confrontaes muito semelhantes, tecnicamente,
aos trabalhos sobre materiais da linguagem. Se tomarmos s a linguagem no seu
contexto, muito difcil, se no impossvel, chegar a tal conhecimento. O fluxo
do sentido e as funes dos elementos so muito mais determinantes para
desvelar a estrutura (Schaeffer, 1988: 27).
A ateno sobre o som mesmo, isolado do contexto, configurou uma nova
perspectiva de anlise do discurso sonoro, elaborada tradicionalmente por intermdio da
partitura. Desta maneira, Schaeffer funda uma prtica indita, que aborda o tema do sentido
em msica sob outra perspectiva: o estudo dos objetos. Abandona-se a nota como elemento
irredutvel e gerador da estrutura, dando lugar ao objeto (registrado) como mnima entidade
do discurso. Redefine-se, com isto, o conceito de campo sonoro, que, entendido no contexto
instrumental como um conjunto de notas, passa a ser o conjunto de fenmenos sonoros que
podem ser captados pelo microfone.
Alm disso, com o gravador de fita, Schaeffer tirou importantes concluses a
respeito da percepo auditiva. A materializao do som na fita permitiu abandonar o
problema do contedo e orientar a pesquisa para outro tema, a escuta.
Ao ser gravado, o objeto se produz como idntico, atravs das distintas
percepes que terei em cada escuta. Ser produzido como ele mesmo,
transcendendo as experincias individuais (e tambm divergentes), que tero
dele mesmo os distintos observadores, especialistas diversos, reunidos em torno
de um reprodutor (Schaeffer, 1988: 164).
Schaeffer percebe que, embora o som emitido pelo reprodutor se produza como
idntico, aparece de formas diversas ao ser percebido por diferentes pessoas e aps vrias
audies. Esta abordagem, que leva em conta os fatores psicolgicos da escuta e aproxima-
se da msica como uma entidade de percepo, teria enormes repercusses no exerccio
criativo e iria iluminar os procedimentos de produo musical do sculo XX. As
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conquistas de Schaeffer, atingidas to-somente por meio do gravador de fita magntica,
fornecem-nos um instrumento efetivo de anlise.
Os recursos de gerao
O construtor de instrumentos eletrnicos e o meio musical
Durante a primeira metade do sculo, paralelamente ao advento dos recursos de
difuso, empreendeu-se a tarefa de construir instrumentos musicais, fornecidos com as
propriedades da eletricidade. O desafio consistiu em gerar o som por meio de osciladores
eltricos, no por meios mecnicos. As primeiras tentativas de construir instrumentos
musicais eletrnicos no tiveram o impulso comercial que sustentou a fabricao dos
aparelhos de registro e transmisso. O processo foi mais lento e menos uniforme. As
dificuldades financeiras que se apresentavam construo dos novos artefatos fizeram com
que se vinculasse esta pesquisa a grandes instituies financiadoras e impediram sua
incorporao nos processos musicais durante a primeira metade do sculo.
Nas ltimas dcadas do sculo XIX, deram-se importantes conquistas no estudo da
acstica. O desenvolvimento da teoria do espectro, a partir dos teoremas de Fourier, deu
origem a importantes aplicaes na conceituao fsica do som. O texto do fsico alemo
Herman Helmhotz, On the sensation of tone as a physiological basis for the Theory of
Music, (1954) publicado em 1877, possibilitou a pesquisa acerca das caractersticas
acsticas do som, em relao percepo e s categorias musicais. Os experimentos desse
pesquisador permitiram o desenvolvimento de uma cincia fundamental na compreenso
cientfica do som, a psicoacstica. O estudo das propriedades fsicas do som em relao s
realidades perceptivas, proposto por Helmholtz, um critrio fundamental do construtor de
instrumentos eletrnicos e orientou o pensamento tcnico voltado para a relao entre a
msica e a tecnologia durante grande parte do sculo XX.
Os fabricantes e inventores de instrumentos musicais tiveram de encarar o complexo
desafio de aliar vrios domnios do conhecimento: a cincia da eletricidade, a acstica (que
adota a preocupao pela percepo) e a teoria musical. Os instrumentos geradores
(Thelarmonium, Theremin, Ondes Martenot, Sackbut, entre outros) participaram de forma
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sumria no processo musical da primeira metade do sculo passado. Como veremos, o
nico instrumento utilizado sistematicamente, durante este perodo, foi o rgo Hammond,
por razes que discutiremos ao longo da anlise. No entanto, ao longo desta poca, foram
estabelecidas as bases para a instituio de uma nova cincia interdisciplinar que floresceria
na segunda metade do sculo, a luteria eletrnica.12
Aps a consolidao do ofcio de luteria eletrnica, nos anos 1960, aparecem novos
desenhos de instrumentos geradores. O caso especfico de Robert Moog, inventor do
primeiro sintetizador modular, um exemplo da comunho entre os recursos eletrnicos e
as necessidades musicais do momento. Esta ferramenta produz sons gerados, por meio de
osciladores eltricos, mas o controle desses sons realizado por intermdio de um teclado.
Apesar de o desenho se valer de conquistas tecnolgicas (osciladores eltricos, sistema
modular, transistor), sua interface carrega noes tradicionais (temperamento, notas
musicais) e acomoda-se ao conhecimento dos msicos instrumentais. Em detrimento da
grande maioria de aparelhos geradores construdos na primeira metade do sculo XX, o
moog foi utilizado com base em diferentes critrios, em produes de diversos contextos,
devido a sua adequao ao meio musical. O moog um dos primeiros equipamentos
eletrnicos a serem apropriados pelos msicos eletrnicos e representa a concluso de um
processo de experimentao na construo de aparelhos, que estudaremos neste captulo.
Metodologias de anlise dos instrumentos eletrnicos
Existem vrios textos que realizam um estudo sistemtico da tecnologia de udio no
sculo XX. Neles, encontramos diferentes abordagens. No artigo Instruments
lectroniques: classification et mcanismes (Davies, 1991), Hugh Davies empreende uma
classificao tcnica dos instrumentos segundo o funcionamento e os procedimentos de
fabricao. A metodologia desse autor oferece uma relao de continuidade com os
12 O termo luteria provm do francs, lutherie, ligado a luthier (ainda no transposto para a lngua portuguesa), o fabricante de instrumentos tradicionais. No tendo encontrado um termo mais apropriado, usamos a mesma expresso para referir-nos ao construtor de instrumentos eletrnicos.
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critrios tradicionais da musicologia. A taxonomia de Davies divide os instrumentos em
famlias e identifica os mecanismos de produo sonora. Embora o texto fornea um
importante esclarecimento tcnico sobre a construo dos aparelhos, neste estudo tambm
levaremos em conta abordagens que do conta de outros tipos de realidade que atingem o
processo tecnolgico.
Da perspectiva da msica eletroacstica, existe uma extensa bibliografia a respeito.
importante assinalar que o exame histrico dos equipamentos, empreendido a partir da
msica eletroacstica, busca compreender os processos criativos dos compositores deste
gnero. Alguns equipamentos cuja importncia foi fundamental em outros contextos so
sistematicamente ignorados; por outro lado, o tema do mercado de instrumentos no
apresenta, sob este ponto de vista, nenhuma relevncia. Os textos Introduction to electro-
acustic music (Schrader, 1982) e Electronic and Computer Music (Manning, 1994),
fornecem uma interessante aproximao com o repertrio eletroacstico atravs dos
instrumentos geradores. Apesar de as concluses elaboradas por esses autores restringirem-
se ao contexto da msica eletroacstica, os textos auxiliam-nos na reflexo sobre a dialtica
entre equipamentos e linguagem musical. O texto Electric sound: the past and promise of
electronic music (Chadabe, 1997) aborda a msica eletroacstica, mas se aprofunda no
contexto popular e oferece uma interessante perspectiva multidisciplinar da tecnologia.
Por outro lado, h textos que estudam a tecnologia musical do sculo XX do ponto
de vista da cultura. Aqui, leva-se em considerao outro tipo de circunstncias de ordem
econmica e social. Temas como mercado, inovao tecnolgica e o impacto causado pela
tecnologia conduzem a textos como Any sound you can imagine (Thberge, 1997), The
social construction of the early electronic music sintetizer (Pinch & Trocco, 2002). Tais
fontes alimentam a discusso sobre equipamentos geradores adotando uma perspectiva
sociocultural. A relao entre a tecnologia de produo musical e a sociedade de consumo
estabelece um importante critrio de discusso para esta pesquisa.
Os textos especficos sobre msica eletrnica dedicam-se, em sua maior parte, a
relatar o processo cultural. O tema dos equipamentos de udio objeto de textos
informativos sobre a operao de um ou outro aparelho especfico. Em Modulations
(Shapiro, 2000) e Electroshock (Rule, 1999), elabora-se um breve resumo a respeito do
surgimento dos dispositivos e do desenvolvimento da tecnologia musical durante o sculo
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XX. Porm estes textos informam, por meio de entrevistas e depoimentos, sobre a viso
que os msicos eletrnicos tm dos equipamentos.
A ausncia de um estudo sistemtico, que d conta das ferramentas tecnolgicas,
sob o enfoque da msica eletrnica, permite-nos elaborar uma aproximao metodolgica.
A abordagem que adotamos recorre aos estudos mencionados, mas se sustenta no
pensamento de Shaeffer. Partimos, assim, da idia de que a msica aparece na interao do
homem com o artefato sonoro, no jogo instrumental (Schaeffer, 1988:. 41). Esta idia
permite-nos estabelecer uma relao entre os equipamentos e o discurso musical que
emerge. Os dispositivos eletrnicos so os artefatos sonoros do homem contemporneo,
cuja interao se cristaliza em produes musicais.
O Audion
O surgimento de instrumentos que produzem som por meio de geradores eltricos
esteve sujeita chegada da amplificao. Como j assinalamos, este recurso estabeleceu-se
em 1906, com inveno do tubo trodo, dando lugar construo de uma vlvula que
permite a amplificao. O dispositivo, patenteado com o nome de Audion por Lee de
Forest, foi o divisor de guas na fabricao de aparelhos que usam alto-falantes (rdio,
equipamentos geradores, instrumentos tradicionais amplificados). O surgimento da vlvula
amplificadora, somado implementao do processo de transduo, traa um momento
culminante na tecnologia musical, pois marca o evoluo dos processos mecnicos para os
eltricos.
importante assinalar que o principal interesse que despertou o advento desse
recurso foi adaptar circuitos de amplificao a instrumentos musicais tradicionais. Aps a
Primeira Guerra Mundial, a maioria dos engenheiros eltricos que se aventurou no trabalho
de luteria eletrnica dedicou-se a desenhar microfones e sistemas de amplificao para as
caractersticas vibratrias especficas dos instrumentos da orquestra. Isto conforma, sob o
ponto de vista de Davies, um novo arsenal de instrumentos eletroacsticos. Assim, alguns
instrumentos tradicionais foram eletrificados e valeram-se, tambm, das conquistas de De
Forest. Instrumentos como as guitarras eltricas tiveram um grande impulso comercial, que
levou a seu aperfeioamento, durante a primeira metade do sculo. O processo de
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industrializao dos instrumentos amplificados antecedeu ao dos instrumentos geradores. A
guitarra eltrica difundiu-se rapidamente e participou, em vrios pases de Amrica, na
constituio de uma msica nacional: o jazz, o blues nos Estados Unidos; o reggae, na
Jamaica; o calypso, em outras ilhas do Caribe. Assim, a amplificao permitiu uma
continuidade da atividade instrumental e a incorporao das sonoridades eletroacsticas
(Davies, 1991: 54).
O Thelarmonium
Antes da inveno do tubo trodo, um inventor norte-americano, Taddeus Cahill,
havia esboado o projeto de um sistema de gerao de sons com base em fluxos de energia
eltrica. O Thelarmonium foi proposto a partir de um sistema mecnico de dnamos,
motores que, ao girar, produzem ondas senoidais. Segundo este esquema de funcionamento,
o Thelarmonium classifica-se como um instrumento eletromecnico (Davies, op. cit.: 55).
Os geradores eram controlados por um teclado e a sada era amplificada de forma mecnica
(similar ao fongrafo), que chegava a um receptor telefnico com uma membrana adaptada
especialmente para uma resposta satisfatria no registro baixo (Chadabe, 1997: 4).
Observemos que o propsito de Cahill era transmitir os sons do Thelarmonium
atravs do telefone. Embora, em termos tcnicos, o Thelarmonium seja o primeiro desenho
de um artefato gerador, em termos de emprego o equipamento foi destinado difuso. Este
descompasso entre possibilidades musicais e uso efetivo do aparelho ilustra o iderio
especulativo dos primrdios desta tecnologia. O Thelarmonium um instrumento hbrido,
gerador de sons eletrnicos, mas empregado na difuso.
O intuito empresarial de Cahill teve posteriores conseqncias no emprego dos
equipamentos como ferramentas de entretenimento musical, a Muzak. Durante as primeiras
dcadas do sculo XX, o servio de transmisso musical por intermdio do telefone
configurou um dos primeiros propsitos de emprego dos recursos eletrnicos.
O primeiro prottipo, de 1901, que pesava 7 toneladas e utilizava 35 dnamos
(apesar de, nos planos da patente de 1897, constar que a mquina utilizaria 408 dnamos),
permitiu que Cahill transmitisse o Largo de Handel de Washington para um hotel em
Baltimore. Assim, o inventor conseguiu oramento de dois investidores (Oscar T. Crosby e
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Frederick C. Todd) para construir outros Thelarmoniums. Com a fundao da sua prpria
companhia, a New York Electric Music Company, Cahill conseguiu os primeiros assinantes
do seu servio de Thelarmonia, que consistia na execuo de peas de Rossini, Puccini e
outros compositores por telefone. Seriam ainda construdos outros dois modelos, em 1906
e em 1910. O Thelarmonium foi apresentado em vrios concertos e espectculos de
exibio de tecnologia, como no Carnegie Hall de Nova York, em 1912.
A companhia de Cahill teve dificuldades legais, ao ser constatado que o aparelho
interferia nas transmisses telefnicas. Com o advento da primeira tecnologia de
transmisso sem fio, desenvolvida em 1907 por Lee de Forest, o servio prestado pelo
Thelarmonium foi afastado, por interferir na comunicao militar sem fio. Em 1914, a
companhia de Cahill fechou as portas.
Apesar das dificuldades apresentadas para a construo do equipamento, o
Thelarmonium representa um exemplo das alteraes ocorridas no trabalho do luthier. o
caso de um inventor que adapta recursos tradicionais da msica (notas, teclado), para
construir um dispositivo eltrico gerador de sons que prope aplicaes inditas de
entretenimento musical. Infelizmente no existem gravaes dos sons produzidos pelo
Thelarmonium. No entanto, a atitude visionria de Cahill, que foi o primeiro em falar em
sntese, incentivou a elaborao de uma dissertao, Sketch of a New Aesthetic of
Music, elaborada pelo compositor italiano Ferrucio Busoni em 1907, sobre a necessidade
de novos artefatos sonoros similares ao Thelarmonium.
O Theremin
Em 1919, o fsico