II JORNADA DISCENTE DO PPHPBC (CPDOC/FGV)
INTELECTUAIS E PODER
Simpósio 3 | Política e cidadania
Leituras brasileiras sobre a Nova Ordem Internacional (1989-1991)
Andrea Ribeiro
Resumo: Essa comunicação tem por objetivo apresentar meu projeto de dissertação, de mesmo título, que busca levantar e analisar as leituras produzidas pela comunidade de política externa brasileira sobre o contexto histórico do fim da Guerra Fria e da redemocratização brasileira, assim como sobre o lugar do Brasil na Nova Ordem Internacional com base no uso de fontes primárias. As várias mudanças históricas e sociais que tiveram lugar nos anos 90: fim da Guerra Fria; a reestruturação da economia global; a redemocratização dos países latino-americanos e a emergência de novos atores (estatais e não estatais) e de novos temas (meio-ambiente, terrorismo, narcotráfico) nas relações internacionais; tiveram impacto sobre as políticas externas dos países periféricos, que passaram por um processo de atualização. O que mudou (se mudou) na maneira como os personagens escolhidos entendiam o mundo e o Brasil? Essa é a questão que se pretende responder.
Palavras-chave: Comunidade de Política Externa, Ideias, Fim da Guerra Fria
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1) Introdução:
O objetivo deste trabalho é apresentar os resultados parciais do meu projeto de
dissertação sobre as principais leituras do sistema internacional produzidas pela comunidade
de política externa brasileira acerca do final da Guerra Fria. Trata-se de um estudo que recorre
a fontes primárias (documentos textuais e depoimentos de história oral) e secundárias de
modo a construir um quadro intelectual que possibilite caracterizar as principais visões Mestranda do PPHPBC/CPDOC/FGV
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brasileiras sobre as causas, conseqüências e mesmo as oportunidades que surgiram a partir das
transformações no sistema internacional e na sociedade brasileira que coincidem no tempo
com a queda do Muro de Berlim e o fim da bipolaridade. O exame das leituras desta
comunidade é fundamental para entendermos como os principais pensadores da inserção
internacional do Brasil perceberam as transformações globais e as relacionaram com os
processos de transformação internos que ocorreram no Brasil.
A década de 1990 foi um período marcado por grandes transformações na política
internacional. O fim da Guerra Fria e o reordenamento do sistema internacional; a
reestruturação da economia global; a redemocratização dos países latino-americanos e a
emergência de novos atores (estatais e não estatais) e novos temas (meio-ambiente,
terrorismo, narcotráfico) nas relações internacionais são algumas dessas mudanças. Nesse
contexto, as políticas externas dos países periféricos passaram por um processo de atualização
para dar conta dessas transformações. De fato, muitos autores (Cervo, 2001, 2005; Lima,
2005; Hurrell, 2001; Pinheiro, 2001; Spektor, 2010; dentre outros) destacam a maior
participação dos países periféricos, em especial a do Brasil, no cenário internacional existente
no limiar do século XXI.
O processo de redemocratização e a realização das primeiras eleições diretas depois de
20 anos de regime militar davam o tom dos debates, no Brasil, travados pelos atores
nacionais. Com a eleição, em 1989, de Fernando Collor de Mello, do Partido da Reconstrução
Nacional, que venceu o candidato Luis Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores,
foram colocadas em marcha reformas de caráter político-econômico cujo objetivo era tornar o
Estado eficiente e retomar o rumo do desenvolvimento econômico com o abandono do
tradicional modelo desenvolvimentista. Diante de uma crise inflacionária sem precedentes, as
metas propostas visavam garantir a transferência de tecnologias de ponta e o investimento de
capital estrangeiro para a modernização industrial, a partir da institucionalização de uma
política de comércio exterior e de uma política industrial voltada para a reformulação do
modelo de substituição de importações, que incluía a privatização de empresas estatais e a
renegociação da dívida externa com credores internacionais (Vieira, 2001). Além disso, o
programa de governo incluía a normalização das relações internacionais do Brasil, com a
adesão aos principais tratados internacionais, que envolviam os direitos humanos e a
transferência de tecnologias sensíveis.
Ao longo desses 20 anos, o debate sobre a conformação da ordem internacional e o
lugar do Brasil se tornou uma área fértil para pesquisa. Não apenas porque o Brasil hoje
ocupa um lugar de destaque, haja vista a discussão sobre que tipo de liderança regional pode
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ou deve ser exercida e como; mas também, por conta das fontes que começam a ser
disponibilizadas.
Nos últimos anos, novas abordagens como a de Odd Arne Westad (2005) e a de G.
John Ikenberry (2005, 2009), lançaram luzes sobre o tema da conformação da ordem. Westad
propôs que a Guerra Fria deveria ser entendida como um conflito ideológico entre dois
projetos de modernização: um liberal e outro comunista. Ele destaca um aspecto
freqüentemente esquecido ou escamoteado, o de que o próprio conceito de Terceiro Mundo
pode ser entendido como produto da Guerra Fria. Nos anos 70, a intensificação do conflito
bipolar global que se seguiu ao fim da deténte, de acordo com o autor, colocou o Terceiro
Mundo no centro dos acontecimentos históricos mundiais, e criou as condições para o fim da
Guerra Fria, com a última leva de guerras anticoloniais e a alteração irreversível da
distribuição de forças no mundo. É dessa forma que Westad explica não só as intervenções
das duas superpotências no Terceiro Mundo ao longo dos anos 70 e 80, mas também a
capacidade “adaptativa” dos países ‘terceiro-mundistas’ de construir programas de
desenvolvimento próprios nos termos dos programas, ou utilizando a linguagem, das
potências. O que é o mesmo que dizer que os países localizados fora do centro de poder do
sistema internacional atuaram e, em certa medida, construíram uma agenda internacional
própria, e não simplesmente determinada pela ingerência das superpotências. Ainda que
Westad não estenda sua análise aos países da América do Sul, pode-se pensar que também
para esses países havia um espaço de ação internacional que os permitiu desenvolver seus
projetos nacionais.
Para Ikenberry (2000) o que realmente acabou com o fim da Guerra Fria foi a
bipolaridade e a política do containment direcionada para a União Soviética e o seu projeto
comunista. Mais importante foi o que permaneceu: a ordem liberal calcada na
institucionalização das normas internacionais que nasce com o fim da Segunda Guerra
Mundial. Para o autor, o modo particular como os Estados Unidos exerceram sua hegemonia,
através do comprometimento próprio e da capacidade de comprometer outros Estados em
instituições compartilhadas - como a ONU, a OTAN, o GATT (que mais tarde se tornaria a
OMC), o FMI -, produziu tanto o fim pacífico da Guerra Fria quanto à ordem, profundamente
institucionalizada, do pós-Guerra Fria. A expansão do Ocidente e a manutenção da hegemonia
norte-americana dominaram as discussões sobre a conformação da Nova Ordem Internacional
empreendidas tanto por líderes políticos e seus assessores nos Estados Unidos quanto pelos
líderes políticos dos países periféricos, como o Brasil.
As transformações que se deram no período abarcado por esse trabalho (1989-1991)
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não se restringiram aos gabinetes, elas também se evidenciaram nas ruas, nas manifestações
populares por maior liberdade e melhores condições de vida ao redor do mundo, desde a
Praça da Paz Celestial, na China, passando pelos países do Leste Europeu, da América
Central, e os da América do Sul, até o Brasil. Aqui, por exemplo, em 1989, o debate
dominante girava em torno da continuidade do processo de democratização e da primeira
eleição presidencial direta, e não sobre o fim da Guerra Fria. As incertezas sobre a realização
das eleições, às críticas às políticas sociais e econômicas do governo José Sarney (além das
denúncias de corrupção) e às inúmeras greves e manifestações populares (de trabalhadores, de
sem-terra, de minorias indígenas) produziram um conturbado quadro histórico. As críticas e
crises se estenderiam pelos anos 1990 e 1991, com as medidas ortodoxas tomadas pelo
governo Collor para conter a inflação e enxugar os gastos públicos. A realização das eleições,
inclusive, não pode ser entendida como evento descolado desse contexto, pois esse "período"
histórico se concluiria apenas três anos depois com o impeachment do presidente sob intensa
pressão popular.
Não há ainda uma reflexão sistemática sobre esse período e sobre as suas implicações
para o Brasil no cenário internacional. De modo geral, e por conta das características
intrínsecas do desenvolvimento das ciências sociais (inclusive a história) no Brasil, há uma
resistência em pensar o país e sua trajetória como parte de uma narrativa histórica global. As
explicações produzidas tendem a focar no caráter específico do desenvolvimento político,
cultural e social brasileiro e nos constrangimentos externos sofridos, sem, contudo articular os
acontecimentos históricos internacionais aos nacionais. Os grandes intérpretes nacionais se
preocuparam em encontrar o que havia de específico no processo de desenvolvimento
brasileiro e identificaram as mazelas nacionais na mistura de raças (Freyre), na herança
colonial e escravista (Caio Prado, Buarque de Hollanda), no fraco sistema representativo
(Oliveira Viana) ou mesmo no processo imperfeito de formação do Estado brasileiro (Faoro).
As conexões existentes entre os problemas intrínsecos do Brasil em sua formação e outras
experiências nacionais, próximas ou distantes, serviam muito mais como exemplo do que
como componente explicativo.
2) Perguntas de Pesquisa:
A pergunta que orienta este projeto é "de que maneira a comunidade de política
externa brasileira (Ver Souza, 2009) pensou o sistema internacional entre 1989 e 1991"?
Como os indivíduos que a compõem perceberam as mudanças internas e externas e,
conseqüentemente, como as relacionaram com as oportunidades (ou falta de) surgidas para o
Brasil. O recorte de pesquisa corresponde ao período não somente das inflexões ocorridas no
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centro do poder mundial que resultaram no fim do conflito bipolar e no colapso da União
Soviética, mas também ao período em que, no Brasil, está em andamento o processo de
redemocratização (promulgação da Constituição de 1988, realização de eleições diretas,
instauração do primeiro governo democrático). O argumento principal é o de que houve não
apenas uma adaptação às injunções externas de modo a garantir a consecução de uma política
voltada ao exterior como meio de alcançar objetivos internos (como o desenvolvimento
econômico), mas que essa construção retórica muitas vezes se caracterizou como resistência
aos postulados liberais. O argumento subjacente é o de que há um conjunto de reflexões que
se ampliou no período em investigação, sobre o lugar do Brasil no mundo.
Ao compararmos as respostas de outros países de tipo médio, como o Brasil, ao
reordenamento internacional, é possível perceber as variedades de escolhas possíveis (desde o
alinhamento irrestrito argentino, até o isolamento cubano). Cervo (2005) argumenta que na
América Latina, a adoção de políticas neoliberais, nos anos 90, não encontrou paralelo em
qualquer lugar do mundo. O Chile, ainda nos anos 70, seria o país modelo para o continente.
Mais tarde, sob o impacto do período de crises econômicas, México, Venezuela, Argentina
empreenderiam reformas significativas para proceder à liberalização econômica. No Brasil,
Bresser Pereira (1992) chamou atenção para a resistência do empresariado nacional às
reformas e ao caráter restrito de aplicação dos projetos de privatização de empresas e de
abertura comercial. Se durante os anos da Guerra Fria, o Brasil pôde se industrializar e
urbanizar através de um modelo de desenvolvimento ancorado no Estado, os anos 90
representariam um empecilho à manutenção desse modelo. A reflexão sobre a centralidade do
Estado nos projetos de desenvolvimento, e a transmutação desse papel do “Estado-propulsor”
para o de “Estado-obstáculo” como entrave ao crescimento econômico, e os questionamentos
sobre a necessidade de um Estado “menor” produziram efeitos sobre o modo como se pensava
que o país “deveria estar” no mundo. O que sugere que a atual posição brasileira no sistema
internacional, seu maior ativismo nos foros multilaterais e sua aproximação com a América do
Sul não são dados naturais, determinados a priori. Mas sim frutos de opções feitas pelas elites
dirigentes baseadas em formas de pensar e entender o Brasil e o mundo que tem suas raízes
no pensamento social (político e econômico) desenvolvido ao longo da segunda metade do
século XX.
A literatura internacional de relações internacionais sugere que as ideias (entendidas
como crenças de princípio ou de causa) exercem influência sobre as ações políticas (1)
quando fornecem mapas de ação (road maps) que tornam claros os objetivos a serem
atingidos; (2) quando afetam os resultados de situações estratégicas; e (3) quando elas se
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tornam parte das instituições políticas (Goldstein e Keohane, 1993). Outra perspectiva destaca
as percepções ou leituras que fazem os tomadores de decisão sobre uma situação específica,
segundo a disponibilidade de informação e a capacidade de gerar respostas em momentos de
pressão, que podem gerar interpretações equivocadas ou imprecisas (Jervis, 1976 e 1985). As
percepções não necessariamente se traduzem em ação política, mas certamente informam essa
ação. No entanto, o trabalho com percepções sugere que estamos lidando com algo que muda
muito rapidamente no “calor dos acontecimentos” e que produz evidência nova e convincente
sobre o poder no cenário internacional (Wohlforth, 1993). Nesse sentido, as percepções estão
sempre “correndo atrás” do que parece ser a real distribuição de poder.
No Brasil, a reflexão sobre as questões internacionais era a princípio feita no interior
das agências estatais (MRE, Forças Armadas e ministérios econômicos). Antes da criação de
uma área de estudos acadêmica, os temas discutidos estavam intrinsecamente relacionados
com a construção da agenda de política externa. A partir dos anos 90, também como resultado
da institucionalização das relações internacionais no Brasil, desenvolveram-se estudos de
política externa amparados no arcabouço teórico da literatura racional-institucionalista, assim
como na sua crítica construtivista, para explicar as ações e motivações dos diplomatas
enquanto tomadores de decisão e o papel central exercido pelo Itamaraty na formulação e
execução de política externa (Silva, 1998). Busca-se relativizar essa posição, argumentando
que as reflexões sobre a inserção do Brasil no mundo se deram também em outras esferas,
inclusive não estatais, capitaneadas, principalmente pelos economistas. Como é possível
depreender dos depoimentos de alguns dos nossos personagens, o Itamaraty representou
muitas vezes um foco de resistência às mudanças, com setores nitidamente nacional-
protecionistas (Ver Moreira, 2000).
Além dessas considerações de cunho metodológico e teórico, o trabalho de pesquisa
envolve a organização temática das variáveis independentes, divididas em transformações
exógenas e endógenas. As transformações que não tiveram como motor a vontade do governo
constituído ou a de um grupo político nacional e que ocorreram fora das fronteiras do Estado
nacional brasileiro. Falamos da queda do Muro de Berlim, do colapso do Comunismo, do fim
da Guerra Fria e da "democratização" do sistema internacional. Busca-se formar o quadro no
qual se definiu a nova distribuição de poder mundial, com as mudanças políticas e
econômicas ocorridas na União Soviética e seus impactos, ou respingos, em outras partes do
mundo. Segundo Lafer (2005), num primeiro momento, a multiplicação dos atores políticos
internacionais foi percebida como algo positivo, que contribuiria para a construção de uma
"ordem mundial mais pacífica e cooperativa". Esse otimismo foi substituído por ceticismo
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diante da multiplicação de conflitos étnicos e religiosos que colocavam em risco a paz.
No que toca as transformações endógenas, o objetivo é identificar em que medida ou
de que maneiras as preocupações com os problemas políticos internos se relacionam com as
leituras brasileiras sobre a nova ordem internacional. Dedicamo-nos ao exame das leituras
sobre a redemocratização e seu impacto sobre a construção de um ideário de Novo Brasil, ao
papel da crise econômica e do desenvolvimento na construção de um projeto nacional. Como
dissemos anteriormente, os anos 80 se caracterizaram por crises intensas que desafiaram o
modo como era entendido o Estado brasileiro. Para tornar real o sistema político repaginado,
fundado na democracia e nas liberdades individuais, era necessário construir a crítica do
sistema anterior. Nesse sentido, coloca-se em perspectiva aquilo que Werneck Vianna (1996)
chamou de “revolução passiva”, isto é, que o ritmo das transformações políticas no Brasil não
é o dos movimentos abruptos, mas o dos movimentos suaves de recomposição das elites
dirigentes e de seus projetos de poder: as coisas mudam, mas mudam devagar. A transição do
sistema ditatorial repressivo, que vigorou formalmente entre 1964 e 1984, se deu de forma
“conservadora” e, portanto, algumas das resistências colocadas ao projeto liberalizante podem
ser localizadas naqueles setores freqüentemente identificados como representantes do
“entulho autoritário”. No entanto, a abertura política deu espaço para que setores antes
reprimidos pudessem se manifestar e era com essa efusão de vozes que o novo regime deveria
aprender a lidar. O diagnóstico de crise não se dava apenas no campo econômico – cujo
prognóstico indicava a falência do modelo nacional-desenvolvimentista -, mas atingia
também o campo político, por sua incapacidade de absorver as demandas sociais mais amplas
(melhores condições de emprego, salário, educação e saúde).
O objetivo é responder a pergunta: qual a influência ou em que medida esteve presente
a preocupação com o projeto nacional nas percepções da comunidade de política externa
brasileira? Segundo Maia (2009) o projeto nacional pode ser entendido como conceito nativo
empregado pelas elites intelectuais brasileiras que buscam formar ou modelar a identidade do
país e o senso de destino no mundo afora. Ele identifica repertórios e linguagens distintos na
modelagem do projeto nacional que contemplavam a ideia de periferia, o papel do Estado
como instrumento do desenvolvimento e conteúdos culturais da identidade brasileira. Esses
repertórios continuaram em operação mesmo depois que as condições externas haviam se
alterado. A ideia de projeto nacional está freqüentemente associada ao chamado
desenvolvimentismo nacional, programa político-econômico que se desenvolveu no Brasil a
partir dos anos 50 e que tem ligações com as teorias formuladas pela CEPAL (Comissão
Econômica para América Latina e Caribe da ONU). Nesse sentido, a resiliência do discurso
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do projeto nacional, diante da dissolução das condições materiais que deram lugar ao
desenvolvimentismo chama atenção. É essa aparente incongruência que gostaríamos de
contemplar nessa subseção.
No período analisado (1989-1991) o Brasil passou a fazer parte dos principais regimes
de direitos humanos. Em julho de 1989, ainda durante o governo Sarney, aderiu à Convenção
Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, e em setembro, à Convenção contra a Tortura
e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Em 1990, ratificou a Convenção
sobre os Direitos da Criança. Em 1992, ratificou o Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos, o Pacto Econômico dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e a Convenção
Americana de Direitos Humanos.
Na área do Meio-Ambiente, além de formatar um discurso ecologicamente correto –
após as seguidas críticas relativas ao ritmo acelerado do desmatamento das florestas tropicais
e às condições de trabalho dos “povos da floresta”, que culminariam com o assassinato do
líder seringueiro Chico Mendes, em 1987 – em que o Brasil demonstrava seu compromisso
com a preservação de suas reservas naturais, o país foi sede da Conferência das Nações
Unidas para o Meio-Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), ou simplesmente ECO-92,
que reuniu líderes políticos das mais variadas partes do mundo a fim de discutir o futuro do
planeta Terra e a possibilidade de conciliar o desenvolvimento econômico com a preservação
do planeta.
No que toca o tema da proliferação nuclear, ainda que o país só tenha ratificado o
Tratado de Não-Proliferação Nuclear em 1995, no governo Fernando Henrique Cardoso, o
presidente Collor, ao jogar uma pá de cal na entrada de um túnel supostamente utilizado para
testes com armas nucleares na Serra do Cachimbo (PA) em setembro de 1990 (Oliveira, 1998)
demonstrou a disposição de envidar esforços para inserir o Brasil no rol dos países pacíficos.
Nesse sentido, a criação da ABACC – Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e
Controle de Materiais Nucleares, também em 1991, como decorrência da assinatura de um
Acordo para o Uso Exclusivamente Pacífico da Energia Nuclear entre Brasil e Argentina que
criou o Sistema Comum de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (SCCC), cuja
administração está a cargo da ABACC, pode ser enquadrada como uma das iniciativas do
presidente Collor tomadas com o objetivo de remover o “entulho autoritário” dos anos de
ditadura e que havia sido motivo de atritos diplomáticos em anos anteriores (Ver, por
exemplo, “Renato Archer: energia atômica, soberania e desenvolvimento” (2006)).
Outro ponto em que houve nítida modificação de postura é o da dívida externa. Ainda
em 1987, o presidente Sarney havia declarado a moratória aos credores internacionais diante
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da impossibilidade prática de quitar débitos (as reservas brasileiras se aproximaram do zero).
Desde então, várias foram as reuniões (e os ocupantes do Ministério da Economia – Dílson
Funaro, Bresser-Pereira, Maílson da Nóbrega) entre os representantes brasileiros e os dos
bancos credores internacionais e vários foram os acordos assinados. Mesmo assim, diante das
duras exigências impostas pelo FMI para liquidação da dívida (do principal e dos juros), em
julho de 1989 os pagamentos foram novamente suspensos. Nos anos seguintes, sob o marco
do Plano Brady, que previa a bonificação de 30% a 35% da dívida global, e da subseqüente
negociação das dívidas mexicana e venezuelana, o Brasil continuou a negociar de forma a
obter um abatimento maior do principal da dívida, à época estimada em 115 bilhões de
dólares (dados do Banco Central). O acordo só foi fechado em 1992, depois que Marcílio
Marques Moreira assumiu o Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento, tendo ao seu
lado, como chefe da equipe negociadora brasileira, o economista Pedro Malan.
Outro ponto digno de nota é da política comercial brasileira, especialmente no que se
refere à política de informática brasileira e às negociações sobre patentes. Ainda durante o
governo Reagan, as relações do Brasil com os Estados Unidos foram marcadas por disputas
comerciais que envolviam o setor de informática e o de patentes farmacêuticas. Quanto ao
problema da informática, a disputa girava em torno da reserva de mercado brasileira. O
governo Reagan abriu, em 1985, investigações com base na Seção 301 da Lei de Comércio
norte-americana por conta da aplicação da Lei de Reserva de Mercado brasileira que estaria
prejudicando as indústrias de software americanas, ao não garantir o uso desses softwares com
base em um sistema apropriado de proteção ao copyright, além da existência de uma lista de
produtos cuja importação era restrita e da imposição de barreiras aos investimentos
americanos no setor de informática (ver Moreira, 2000). As investigações prolongaram-se por
quatro anos, sem contudo implicar na aplicação de sanções comerciais contra o Brasil.
Diferente foi o caso do contencioso farmacêutico que, em 1987, com base também na Seção
301, teve início, sob as alegações de que o Código de Propriedade Industrial brasileiro, por
não contemplar a concessão de patentes para fármacos e produtos de química fina,
representaria uma ameaça à indústria farmacêutica norte-americana. O resultado dessas
investigações foi a imposição, em 1988, de uma sobretaxa de 100% sobre as importações de
produtos norte-americanos (papel, eletrônicos e química fina). Em resposta, o Brasil recorreu
aos mecanismos de solução de controvérsias do GATT solicitando o estabelecimento de um
painel, através do representante brasileiro Rubens Ricupero, alegando que as sanções
superariam os prejuízos causados às exportações brasileiras e que o Código de Proteção
Industrial brasileiro estaria de acordo com a Convenção de Paris de 1883. Em junho de 1990,
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o governo brasileiro anunciou sua intenção de submeter ao Congresso projeto de lei sobre
propriedade intelectual. Mas o Código só seria aprovado em 1995, no governo Fernando
Henrique Cardoso.
3) Tipologia das Fontes de Pesquisa:
Para responder a essas perguntas, utilizar-se-á da análise de fontes primárias
(documentos textuais e depoimentos de história oral) e secundárias (artigos e discursos, assim
como bibliografia relacionada ao tema) disponíveis.
Nesse sentido, é necessário fazer referência à limitação das fontes disponíveis. Nos
arquivos do Itamaraty as fontes produzidas entre os anos 1989 e 1992 não estão acessíveis ao
pesquisador, uma vez que a legislação (Decreto nº4553, de 27 de dezembro de 2002) vigente
impõe um prazo máximo de 30 anos para liberação de documentos considerados sigilosos.
Uma tentativa de abertura da documentação relacionada à política externa brasileira
tem sido feita pelo CPDOC/FGV. Uma série de documentos textuais e de depoimentos de
história oral vem sendo, paulatinamente, disponibilizados nas bases Accessus e de História
Oral na página do referido centro. Destacam-se as entrevistas feitas no âmbito do Projeto Luiz
Felipe Lampreia (2008), com alguns dos principais formuladores políticos do governo
Fernando Henrique Cardoso (1995-2001), como Gelson Fonseca Junior, José Botafogo
Gonçalves, Sebastião do Rego Barros e o próprio Luiz Felipe Lampreia. Além desses
depoimentos, há também os de Celso Lafer (1993) e Celso Amorim (1997). E os documentos
textuais dos Arquivos Marcílio Marques, Luiz Felipe Lampreia, Rubens Barbosa e George
Maciel depositados na instituição.
Outras possibilidades podem se abrir para a pesquisa nos arquivos norte-americanos.
Na página virtual da Library of Congress, por exemplo, já se pode encontrar depoimentos de
diplomatas norte-americanos, inclusive alguns que serviram no Brasil como Richard Melton
(embaixador entre 1989 e 1993) e Harry Shlaudeman (embaixador entre 1983 e 1989), na The
Foreign Affairs Oral History Collection of the Association for Diplomatic Studies and
Training.
As fontes de tipo periódicos (revistas e jornais) abarcam entrevistas concedidas a
Revista Veja (páginas amarelas) e artigos publicados em jornais (Valor Econômico, O Globo,
Folha de São Paulo) ou em revistas especializadas (Contexto Internacional, Revista Brasileira
de Política Internacional e Lua Nova). Uma lista preliminar desse tipo de fontes foi gerada, no
entanto, a análise ainda está por ser feita.
O critério de seleção dos atores se pautou pela participação e o envolvimento em
debates de questões internacionais. Por isso, selecionamos aqueles pertencentes à comunidade
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de política externa brasileira. Nesse sentido, é importante ter em mente que os sujeitos
analisados são todos homens que pertenciam ao ou gravitavam em torno do Itamaraty e que,
de alguma forma travaram contato com a Política Externa Independente (PEI) dos governos
de Jânio Quadros e João Goulart, que tinha um cunho mais nacionalista e independentista. E,
mais importante, são esses os homens responsáveis pela condução da política externa nos
anos 90 - Celso Amorim, Celso Lafer, Fernando Henrique Cardoso, Francisco Rezek, José
Botafogo Gonçalves, Luiz Felipe Lampreia, Marcílio Marques Moreira, Marcos Castrioto
Azambuja, Paulo Tarso Flecha de Lima, Rubens Ricupero, Samuel Pinheiro Guimarães,
Sebastião do Rego Barros, etc. Mesmo assim, esses homens tinham interpretações distintas,
senão conflitantes dos eventos que se desenrolaram nos anos 90 e sobre como o Brasil deveria
reagir aos mesmos.
A análise desses textos leva em consideração a crítica de Skinner (1972, 1996) ao
método textualista, que ao tentar capturar a mentalité concentra sua atenção “naqueles que
debateram os problemas da vida política num nível de abstração e inteligência que nenhum de
seus contemporâneos terá alcançado” (p.12). Concentrar-se apenas nas informações contidas
no texto e ignorar as intenções e motivos por trás da escrita do texto, as informações
biográficas e históricas que envolvem a produção textual seria uma “falácia romântica”
(1972:397). Daí a importância de contextualizar, inserir esses textos no “contexto ideológico
adequado” (p.13) para construirmos uma imagem mais precisa de como o pensamento
político, em todas as suas formas, efetivamente procedeu no passado.
Dito isto, a próxima etapa do desenvolvimento deste projeto constituir-se-á da seleção
e análise das fontes levantadas e da análise da bibliografia secundária disponível.
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Referências:
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