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SUMÁRIO A
CAPÍTULO UM – INVESTIGAÇÕES .................................................................................................................... 16
1.1 SENTIDO E NÃO-SENSO ..................................................................................................................................... 17
1.2 DESEJO ............................................................................................................................................................ 29
1.3 LIVRO-OBJETO .................................................................................................................................................. 37
1.4 OBJETO-DE-DESEJO .......................................................................................................................................... 44
1.5 OBJETO-QUE-DESEJA ........................................................................................................................................ 50
CAPÍTULO DOIS – CONEXÕES ......................................................................................................................... 55
2.1 NÃO-SENSO E DESEJO ....................................................................................................................................... 56
2.2 LIVRO-OBJETO E DESIGN DE PRODUTO ............................................................................................................... 59
2.3 LIVRO-OBJETO-QUE-DESEJA E RIZOMA ............................................................................................................... 65
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CAPÍTULO TRÊS – PRODUÇÃO ........................................................................................................................ 79
3.1 CONSTRUÇÃO ................................................................................................................................................... 80
3.2 PROCESSO EDITORIAL ....................................................................................................................................... 87
3.3 MANUFATURA ................................................................................................................................................... 92
3.3.1 Pré-produção ........................................................................................................................................... 92
3.3.2 Impressão ............................................................................................................................................... 97
3.3.3 Acabamento .......................................................................................................................................... 101
3.4 EDITORA PARÊNTESIS ...................................................................................................................................... 106
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CAPÍTULO UM – INVESTIGAÇÕES
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1.1 Sentido e Não-senso
Para entender a negação de sentido, o não-senso, é indispensável o entendimento da definição
do próprio sentido. Deleuze (2007, p. 23) afirma que “o sentido é o exprimível ou o expresso da
proposição e o atributo do estado das coisas”, ele está entre a proposição e as coisas, ou seja, é um
“acontecimento”. Por isso, continua o autor, não se pergunta qual o sentido de um acontecimento,
pois o acontecimento é o próprio sentido.
Deleuze propõe três relações diferentes na proposição/sentença: a designação ou indicação, a
manifestação e o significado. Segundo o autor, a designação ou indicação, diferente do não-senso, é a
relação da proposição a um estado de coisas exteriores, é o que aponta a proposição verdadeira ou
falsa, aponta o objeto físico ou o estado das coisas. Já, a manifestação trata da relação da proposição
ao sujeito que fala, sendo de domínio pessoal; não implica mais o verdadeiro e o falso, mas a
veracidade e o engano. É o psicológico ou a atividade mental do indivíduo que se expressa na
proposição. E o significado trata das relações da palavra com conceitos universais, a proposição não se
interfere senão como elemento de uma “demonstração”, no sentido de premissa ou conclusão.
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Deleuze (2007, p. 18), então, questiona sobre as relações presentes nas
proposições/sentenças: “o círculo da proposição é formado pela designação, manifestação e
significação. Mas, onde pode ser encontrado o sentido de uma proposição?”. O filósofo sublinha que o
sentido se diferencia tanto do objeto físico (designação), como do vivido psicológico e das
representações mentais (manifestação) e dos conceitos lógicos (significação): o sentido é a quarta
dimensão da proposição. Segundo os Estóicos (apud DELEUZE, 2007, p. 20), denomina-se
“acontecimento”; o sentido é o expresso da proposição, como já foi dito, acontecimento puro que
insiste ou subsiste na proposição.
O sentido seria, talvez, “neutro”, indiferente por completo tanto ao particular como ao geral, ao singular como ao universal, ao pessoal e ao impessoal. Ele seria de outra natureza. [...] Consideremos o estatuto complexo do sentido ou do expresso. De um lado, não existe fora da proposição que o exprime. O expresso não existe fora de sua expressão. Daí por que o sentido não pode ser dito existir, mas somente insistir ou subsistir. [...] Inseparavelmente o sentido é o exprimível ou o expresso da proposição e o atributo do estado de coisas. Ele volta uma face para as coisas, uma para as proposições. Mas não se confunde nem com a proposição que o exprime nem com o estado de coisas ou a qualidade que a proposição designa. É, exatamente, a fronteira entre as proposições e as coisas. (DELEUZE, 2007, p. 20-22-23)
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Deleuze explica que se o sentido é a fronteira entre as coisas e as proposições, os substantivos
e os verbos, as designações e as expressões, ele é o corte ou a articulação da diferença entre as duas
coisas, já que, segundo o teórico, dispõe de uma impenetrabilidade que lhe é própria e na qual se
reflete; por isso ele deve se desenvolver por meio de paradoxos.
“O paradoxo é, em primeiro lugar, o que destrói o bom senso como sentido único; mas, em
seguida, o que destrói o senso comum como designação de identidades fixas” (DELEUZE, 2007, p. 3).
Duas coisas, portanto, tendem a ser desconstruídas para o desenvolvimento deste projeto: o bom
senso e o senso comum.
- Pois bem, - explicou o Gato - um cachorro rosna quando está com raiva e balança a cauda quando está contente, compreende? Enquanto eu rosno quando estou satisfeito e balanço a cauda quando estou com raiva, está entendendo? Portanto, eu sou louco. - Não chamo isso rosnar, mas ronronar. - Chame como quiser. - disse o Gato [...] (CARROLL, apud BASTOS, 2001, p. 25)
Notam-se, nessa relação entre o que uma coisa é e a maneira como é chamada, entre “rosnar”
e “ronronar”, os paradoxos do sentido, expostos por Deleuze, os quais têm por característica
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percorrer dois sentidos ao mesmo tempo, isto é, ao mesmo tempo em que rosnar demonstra raiva,
ronronar demonstra satisfação. A ação é a demonstração de raiva e de satisfação ao mesmo tempo,
sendo que a diferença está em como a ação é chamada.
Deleuze apresenta alguns trechos de Alice, de Lewis Carroll, como exemplos dos paradoxos do
sentido: o paradoxo da regressão ou da proliferação indefinida, o paradoxo do desdobramento estéril
ou da reiteração seca, o paradoxo da neutralidade ou do terceiro estado da essência e o paradoxo do
absurdo ou dos objetos impossíveis. Segue o primeiro deles:
O cavaleiro anuncia o título da canção que vai cantar - O nome da canção é chamado Olhos esbugalhados - Oh, é o nome da canção? - diz Alice. - Não, você não compreendeu, diz o cavaleiro. É como o nome é chamado. O verdadeiro nome é: o Velho, o velho homem. - Então eu deveria ter dito: é assim que a canção é chamada? - corrigiu Alice. - Não, não deveria: trata-se de coisa bem diferente. A canção é chamada Vias e meios; mas isso é somente como ela é chamada, compreendeu? - Mas então, o que é que ela é? - Já chego aí, - diz o cavaleiro, - a canção é na realidade Sentado sobre uma barreira. (CARROLL, apud DELEUZE, 2007, p. 32)
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O sentido, na medida em que se combina com o não-senso, relaciona-se com uma proliferação
infinita das entidades verbais – para cada sentido, existe outro, o que desencadeia uma regressão
indefinida: o excesso que remete à própria falta. Segundo Deleuze, ao mesmo tempo em que não se
diz o sentido do que é dito, paradoxalmente se pode assumir o sentido do que foi dito como objeto de
uma segunda proposição, da qual também não se diz o sentido. Então se entra nessa regressão
infinita do pressuposto, o que em análise é testemunha de uma impotência em dizer ao mesmo
tempo alguma coisa e seu sentido, assim como do poder infinito de falar sobre as palavras.
Quanto ao paradoxo do desdobramento estéril ou da reiteração seca, Deleuze sublinha que o
sentido opera a suspensão da afirmação assim como da negação. Como dito anteriormente, o sentido
não existe, é um “extra-ser”, ele insiste ou subsiste na proposição. No entanto, “a camada da
expressão – e aí está sua originalidade – a não ser, precisamente, que confira uma expressão a todas
as outras intencionalidades, não é produtiva” (HUSSERL, apud DELEUZE, 2007, p. 34), isto é, o
sentido é independente da expressão, suspende dela a afirmação e a negação, dissipa-se duplamente,
como o sorriso sem gato de Carroll, cita Deleuze, ou a chama sem vela.
Em resumo, Deleuze explica que se o paradoxo da regressão indefinida é a conjugação no mais
alto poder e na maior potência, o paradoxo do desdobramento estéril conjuga a esterilidade do sentido
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com relação à proposição de onde ele foi extraído, da expressão, com sua potência de origem quanto
às dimensões da proposição.
O paradoxo da neutralidade ou do terceiro-estado da essência lida com a mesma indiferença do
paradoxo do desdobramento estéril, porque, segundo o autor, “se o sentido como duplo da proposição
é indiferente tanto à afirmação como à negação, se não é nem passivo e nem ativo, nenhum modo da
proposição é capaz de afetá-lo” (DELEUZE, 2007, p. 35). Seguem alguns exemplos de relação
disseminados na obra de Carroll: “os gatos comem os morcegos e os morcegos comem os gatos,
digo o que penso e penso o que digo, amo o que me dão e dão-me o que eu amo, respiro quando
durmo e durmo quando respiro – tem um só e mesmo sentido” (DELEUZE, 2007, p. 36).
A essência se distingue em três estados: a essência como significada pela proposição, na
ordem do conceito e das implicações de conceito; a essência enquanto designada pela proposição,
nas coisas particulares em que se empenha, e a essência como sentido, indiferente a todos os
opostos. Pois todos os opostos, sintetiza Deleuze (2007, p. 37), “são somente modos da proposição
considerada nas suas relações de designação e de significação e não característica do sentindo que ela
exprime”.
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Este paradoxo explica o sentido não ser afetado pelos modos da proposição, seja do ponto de
vista da qualidade, da quantidade, da relação ou da modalidade. Sendo que as oposições sempre
ocorrem ao mesmo tempo, na medida em que “são duas faces simultâneas de uma mesma superfície
da qual o interior e o exterior, a insistência e o ‘extra-ser’, o passado e o futuro, acham-se em
continuidade sempre reversível”, esclarece Deleuze (2007, p. 37).
O paradoxo do absurdo ou dos objetos impossíveis assinala que a designação, ao contrário dos
paradoxos descritos anteriormente, não pode em caso algum ser efetuada, não tendo também
significação, a qual definiria uma possibilidade de efetuação, mas nem por isso deixa de ter sentido.
Entretanto, as noções de absurdo e de não-senso não devem ser confundidas. O princípio de
contradição se aplica ao real e ao possível, mas não ao impossível. Explica o filósofo:
É que os objetos impossíveis - quadrado redondo, matéria inextensa, perpetuum mobile, montanha sem vale etc. - são objetos “sem pátria”, no exterior do ser, mas que têm uma posição precisa e distinta no exterior: eles são “extra-ser”, puros acontecimentos ideais inefetuáveis em um estado de coisas. (DELEUZE, 2007, p. 38)
Holquist (apud CARROLL, 1977, p. 21), em relações abstratas da lógica e da matemática,
esclarece a diferença entre o absurdo e o não-senso: o absurdo “lida com valores humanos, enquanto
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o nonsense lida com valores puramente lógicos. [...] O nonsense é um processo em si mesmo, sem
qualquer outra finalidade”. Leite (apud CARROLL, 1977) observa que o valor do não-senso nas obras
de Carroll é o de chamar atenção para a linguagem, para o fato de que ela não é só algo que
conhecemos, mas algo vivo, em processo, “algo a ser descoberto”. O autor acrescenta sobre a visão
de Holquist que o não-senso “é pura superfície [...] é uma violência contra a semântica, mas, desde
que é sistemático, o sentido do nonsense pode ser apreendido” (LEITE, apud CARROLL, 1977, p. 21).
Deleuze resume o não-senso, afirmando que “ele tem por função percorrer as séries
heterogêneas e, de um lado, coordená-las, fazê-las ressoar e convergir e, de outro, ramificá-las,
introduzir em cada uma delas disjunções múltiplas. Ele é ao mesmo tempo palavra e coisa”
(DELEUZE, 2007, p. 69). Ele pertence simultaneamente a duas séries que estão sempre em
desequilíbrio, nunca se emparelham, pois são opostas. Deleuze (2007, p. 69) exemplifica essa
correlação do não-senso com pares variáveis: “ele é ao mesmo tempo excesso e falta, casa vazia e
objeto supranumerário, lugar sem ocupante e ocupante sem lugar, “significante flutuante” e
significado flutuando, palavra esotérica e coisa esotérica, palavra branca e objeto negro”.
Negar é do que trata o não-senso. Para Bastos (2001), Edward Lear e Lewis Carroll são os
maiores expoentes nonsense na literatura. E para estes, o não-senso é declaradamente “uma espécie
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de dialeto da inocência, uma linguagem associada à infância, mas, de algum modo, livre de carga do
sentido” (HAUGHTON, apud BASTOS, 2001, p. 20).
Lear declara que o objetivo de seus limericks1
Maffei (2003, p. 105) aponta Lear por ter um “peculiar senso de humor, no qual cabia uma
aguda percepção do ridículo, uma mania de brincar com as palavras”. A seguir, dois limericks de
Edward Lear, na tradução de Paes e Maffei:
era o não-senso, “puro e absoluto”, livre de
qualquer “significado simbólico”. E Carroll, a respeito de suas intenções, ao escrever The Hunting of
the Snark, declarou: “Sinto, mas não quis dizer nada, além do nonsense!” (embora tenha admitido que
“as palavras dizem mais do que pretendemos quando as usamos”) (BASTOS, 2001, p. 20).
Certa moça tinha o nariz tão comprido, que lhe chegava até abaixo do umbigo.
Era preciso o ombro forte de uma velha no transporte
De nariz assim tão destemido. (LEAR, 2003, s/p)
1 Resumidamente, são poemas de cinco versos rimados em AABBA com lógica nonsense, sendo o terceiro e o quarto versos mais curtos que o restante.
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Havia um velho senhor cuja febre o induziu a comprar uma lebre;
sendo a tarde tão bela, saiu a andar nela,
o que em parte amainou-lhe a febre. (LEAR, 2003, p. 88)
Sobre Alice, Bastos (2001, p. 20-21) afirma ser “um ser ameaçado e atacado pela linguagem”.
Uma vez que o que se percebe nos textos de Lewis Carroll não é a morte do sentido, mas sim uma
reativação do processo do sentido em um nível intuitivo, imaginário e aleatório. No entanto, o não-
senso não é um “caos textual”, ele abandona formalmente a regra, o gramatical, mas ainda está na
língua, conforme o discurso a seguir:
O não-senso instala-se nas fronteiras da língua, onde o gramatical e o agramatical se encontram, onde a ordem (sempre parcial) da língua encontra a desordem (nunca total) do que está além dela. Objeto curioso e paradoxal, uma fronteira ou um limite. [...] Há sempre alguma coisa além do ponto último, barreira ou espaço. (LECERCLE, apud BASTOS, 2001, p. 21)
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Bastos coloca que essas considerações de Lecercle, a respeito de ultrapassar limites e de
transgredir, são fundamentais à definição do texto nonsense e esclarecedoras para uma possível
diferenciação entre o que é não-senso e o que é apenas errado, desordenado, caótico. Segundo a
autora, o não-senso não apenas ultrapassa um limite, mas também o atravessa, incorpora-o.
Rompe-se com a expectativa, palavras novas e mesmo outros mundos são criados. [...] Se, por um lado, o nonsense se dá exatamente porque buscamos sempre interpretações plausíveis para tudo, porque esperamos sempre encontrar, na linguagem, um sentido, por outro, ir contra o sentido é uma tentação vertiginosa. Assim como o sentido o é, o nonsense também é constitutivo da linguagem. (BASTOS, 2001, p. 31-32)
O que esclarece o fato de o não-senso estar dentro da linguagem é o motivo de o sentido
estar. Bastos explica que o não-senso não se resume a uma falta ou ausência de sentido, mas trata-se
de uma negação. Como uma negação remete a uma afirmação, o não-senso prova a existência do
sentido paradoxalmente. A ausência de sentido colabora por ser o oposto do que é o não-senso,
revigorando-o por ser multiplicador de sentidos. Pode-se dizer que o não-senso é a expressão livre que
aceita qualquer sentido que possa ser gerado.
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Quando supomos que o não-senso diz seu próprio sentido, queremos dizer, ao contrário, que o sentido e o sem-sentido têm uma relação específica que não pode ser decalcada da relação entre o verdadeiro e o falso, isto é, não pode ser concebida simplesmente como uma relação de exclusão. É exatamente este o problema mais geral da lógica do sentido: de que serviria elevarmo-nos da esfera do verdadeiro à do sentido, se fosse para encontrar entre o sentido e não-senso uma relação análoga do verdadeiro e do falso? (DELEUZE, 2007, p. 71)
O que se deve entender por não-senso é o oposto da ausência de sentido ao mesmo tempo
em que não agrega nenhum sentido particular. Afirma Deleuze: “fazer circular a casa vazia e fazer falar
as singularidades pré-individuais e não pessoais, em suma, produzir o sentido, é a tarefa de hoje”
(DELEUZE, 2007, p. 76).
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1.2 Desejo
Giorgi (1990) enfoca o latim e o grego para convergir finalmente para a língua portuguesa,
investigando, além do significado das palavras desejo, paixão e amor, todo o sistema mais amplo que
a língua, o conjunto de sistemas simbólicos inseridos na cultura da época de sua origem.
Ao iniciar a conversa com a palavra “desejo”, Giorgi (1990, p. 131) coloca que os romanos
tinham o verbo desejar na sua forma mais comum como sendo cupio. Continua o autor: “Cupio é o
desejo, isso quer dizer ‘eu desejo’, cupio. É o verbo cupere, ‘desejar’, que dá o substantivo cupiditas,
que dá o português cobiça, dá o português cupido, o adjetivo cupidus em latim que vem da mesma
raiz.” Contudo, a palavra cupio, dentro da cultura latina, é empregada como “gulodice”, pois provém
do verbo cupeo, que significa gulodice nos dois sentidos, abstrato e concreto, como a própria gula,
que é quando se come por gulodice, e também sendo a própria coisa que se come. Giorgi (1990, p.
131) assinala ainda a palavra cupeo com a idéia de ferver/soltar fumaça, quer dizer que quando um
indivíduo deseja é como se ele estivesse soltando fumaça/soltando vapor.
Ainda em latim, depois da era clássica, foi o verbo desiderare que deu origem ao verbo desejar.
Segundo o autor, desiderare vem da palavra sidus, sideris, que significa “astro”, “estrela”. Isso surgiu
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da linguagem dos adivinhos e arúspices, dos homens que tentavam adivinhar o futuro em Roma. O ato
de contemplar os astros era denominado considerare, que gerou “considerar” em português. Mas, ao
contrário disso, desiderare era “desistir dos astros”, era quando não havia mais esperanças a
considerar. Ou seja, “desejar é ter certeza da ausência”, continua o autor, “não tenho o que quero e
por isso eu desejo” (GIORGI, 1990, p. 133).
Ao estudar a origem grega da palavra, o “desejo” é originado com o verbo orégo, que, segundo
o autor, pode ser traduzido como “disposição, apetite, abertura corporal para obter o que você quer,
do que propriamente por desejo, tanto que anorexia quer dizer inapetência” (GIORGI, 1990, p. 134).
Basicamente orégo significa achar agradável, contudo, vinculada à palavra orégo está a palavra orgué,
que quer dizer “pulsão”, “impulso”, “energia”. E pode também ser cólera em grego, pode ser desejo
sexual intenso ou pode ser uma animação excepcional para qualquer coisa. A conexão com a “cólera”
é algo que significa “uma espalhação muito grande de algo pelo corpo” (GIORGI, 1990, p. 134).
Portanto, para “desejo” em latim, tem-se cupio e tem-se desiderare, com a idéia de
ferver/soltar fumaça e com a idéia de desejar algo porque lhe é ausente, respectivamente. E, para
“desejo” em grego, tem-se orgué, de orégo, com a sensação de achar agradável, com sintomas
impulsivos por ter algo espalhado pelo corpo.
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Na sequência das investigações que envolvem “desejo”, encontrou-se no Abecedário de
Deleuze (1988), no qual o filósofo expõe seu parecer sobre uma palavra para cada letra do alfabeto, a
letra D, que é correspondente à palavra “desejo”, no sentido de “construção de um agenciamento”. O
autor exemplifica:
Quando uma mulher diz: desejo um vestido, desejo tal vestido, tal chemisier, é evidente que não deseja tal vestido em abstrato. Ela o deseja em um contexto de vida dela, que ela vai organizar o desejo em relação não apenas com uma paisagem, mas com pessoas que são suas amigas, ou que não são suas amigas, com sua profissão, etc. (DELEUZE, 1988, s/p)
Deleuze prossegue apresentando que o agenciamento remete a um estado de coisas, em uma
primeira abordagem, pois cada dimensão de agenciamento comporta um estado de coisas diferente,
afins ou não ao ideal de cada indivíduo “desejante”. Ao que prossegue ao estado de coisas
encontrado, estão os estilos de enunciação, ou seja, há sempre certo modo de lidar com as coisas, e
este modo é o estilo da enunciação. Todo agenciamento também implica territórios, esclarece o autor,
“mesmo numa sala, escolhemos um território”. E por fim, existem os processos de
desterritorialização, o que envolve a maneira em que se sai do território. Portanto, conclui Deleuze:
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“Um agenciamento tem quatro dimensões: estados de coisas, enunciações, territórios, movimentos
de desterritorialização. E é aí que o desejo corre...”.
Deleuze afirma: “desejar é delirar”. Propõe ainda que “Delira-se sobre o mundo inteiro”
(DELEUZE, 1988, s/p). Ao contrário da visão psicanalítica, o inconsciente não é um teatro, mas sim
uma fábrica, é produção. O inconsciente produz, não representa. O delírio não possui ligação com
representações, o delírio não remete a algo vivido. Deleuze coloca ainda que “não se delira sobre seu
pai e sua mãe, delira-se sobre algo bem diferente, é aí que está o segredo do delírio”.
Não se deseja, portanto, somente o que remete, seja ao passado, seja à família, etc., “delira-se
o mundo inteiro”, deseja-se o distante, o impalpável, a construção produzida pelo inconsciente, o que
não foi vivenciado ainda. O desejo parece percorrer transformações de ideais, indicando novas
produções a serem descobertas.
O desejo pode ser tomado ao mesmo tempo como um precursor e um sucessor da paixão
e/ou do amor. Trata-se de se desejar algo, um agenciamento de que este algo faz parte, sendo este
agenciamento apaixonante e apaixonado. Por isso, este algo se torna seu objeto-paixão ao mesmo
tempo em que é seu objeto-de-delírio, ou antes, ou depois. Deste modo, surge um encadeamento de
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relações que torna coerente, no contexto deste trabalho, abordar os três conceitos em conjunto:
desejo-paixão-amor.
Nunes (1987) descreve a paixão como íntima de uma sensibilidade conflitiva, estando por trás
da paixão a aspiração do infinito, o sentimento do sentimento e o desejo do desejo. Por isso
consegue-se tomar o partido de que desejar o desejo seria desejar algo que também deseja, desejar
um agenciamento que deseja outro e assim por diante.
Nesse contexto poético se encontra o Livro-Objeto-que-Deseja, pois, segundo Leminski (1987),
o amor e a paixão são coisas que devem ser procuradas nos artistas, no cinema e, principalmente, na
poesia. Lispector (1978, p. 98) torna essa relação de escrita-paixão clara em sua obra literária “Um
Sopro de Vida”:
Senhoras e senhores: temo que o meu assunto seja apaixonante. E como não gosto da paixão vou abordá-lo com cautela timidamente e com muitos rodeios. – Max Beerbohm Mas eu amo a paixão. – Ângela Pralini Só me interessa o que não se pode pensar – o que se pode pensar é pouco demais para mim – Ângela Pralini
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Leminski defende que “o amor é uma anomalia engraçada”, ressaltando que não é estudado
nem pela psiquiatria, nem pela psicanálise, nem pela psicologia social. O autor ainda supõe:
Se a espécie humana desaparecesse, e seres intergalácticos descobrissem a Terra, um dia, e dissessem: esquisito, viveram seres aqui, estranhos e tal, e eles pareciam ser afetados por uma coisa gozada chamada amor. E se esses seres extraterrenos quisessem reconstruir um quadro do que seja o amor eles teriam que recorrer aos poetas. Saber como o amor nasce, a primeira paixão, o amor à primeira vista, a continuação da paixão, o auge da paixão, a loucura da paixão, o fim da paixão, o fim do amor, isso eles teriam que ir buscar nos poetas, porque não existe nenhuma ciência, com toda a sua ambição totalitária, aquela ciência ocidental que nasceu do Órganon de Aristóteles, ela englobou todos os territórios, todo o real, ele é um objeto do saber que cabe dentro de uma coisa que a gente chama de ciência, né? O quadro das ciências. Ora, o amor não cabe dentro desse quadro. Não conheço nenhuma ciência que tenha o amor como objeto. (LEMINSKI, 1987, p. 293)
O amor-paixão-desejo (dito em qualquer ordem) não se fecha dentro de um quadro, ele
percorre, vive em constante movimento, construção. Leminski discorre sobre a relação poeta-
linguagem, explica que quando o indivíduo nasce, já nasce como falante de uma língua específica.
Ninguém pergunta, pois, qual língua o indivíduo deseja falar. Quando se tem maturidade, nota-se que
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se é passivo em relação aquela língua, sobre a qual, continua o autor, não se tem poder algum. O
poeta exemplifica:
Você já chegou numa língua na qual você diz, por exemplo, no indicativo: eu estou, tu estás, ele está. Você não pode dizer: eu estejeto, tu estejermes, eles estejerando. Isso você não pode fazer. Não há Guimarães Rosa que tenha poderes, o próprio Rosa que leva isso a extremo limite, e os concretos, aquelas tentativas de romper com isso. (LEMINSKI, 1987, p. 287)
Leminski (1987, p. 287) acrescenta que o artista, portanto, é limitado por uma língua, um
estoque de formas, “qualquer coisa que você faça fora ou contra isso é por tua conta e risco”. O poeta
coloca que o artista sofre essa pressão da língua, mas que foi tomada uma atitude para devolver esses
golpes, a qual estaria vinculada à ideia de experimental, de invenção ou de vanguarda, como já
codificado no século XX. Posterior às décadas de 1950 e de 1960, que foi quando houve no Brasil
poesia concreta, práxis, poema processo, vanguardas que mexeram com o tecido das coisas, tudo se
tornou lícito, expõe o autor (1987, p. 289): “Pega a palavra fragmento, joga fora a parte mento e dá
nome prum livro de Frag. Esse livro seria impensável há quarenta anos”.
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O artista, por fim, passa a ser executor, não mais remetendo a uma paixão passional, que sofre
uma determinada ação, mas uma paixão que move ativamente a linguagem. Por isso Leminski (1987,
p. 289) supõe um amor entre o poeta e a língua, já que as línguas amam os seus poetas porque neles
se realizam os seus possíveis: “Então, as línguas amam seus poetas como se fossem seus filhos mais
atrevidos, e os poetas devolvem, evidentemente, aquele amor de filho pela mãe, dá vontade de
estrangular, não é mesmo?”
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1.3 Livro-Objeto
Silveira (2001) inicia seu livro “A Página Violada” com definições e imprecisões sobre o livro de
artista, e referencia a “Grande Enciclopédia Larousse Cultural”, a qual permaneceu com a mesma
definição para o termo de 1988 até 2007, sem alterações:
Livro de artista, obra em forma de livro, inteiramente concebida pelo artista e que não se limita a um trabalho de ilustração. (Sob sua forma mais livre, o livro de artista torna-se livro-objeto). [...] objeto tipográfico e/ou plástico formado por elementos de natureza e arranjos variados. (LAROUSSE, apud SILVEIRA, 2001, p. 25)
O livro-objeto, segunda definição da citação apresentada, é exemplificado pela enciclopédia por
La Prose Du Transsibérien2
, 1913, de Blaise Cendrars, por Sonia Delaunay. Silveira julgou esse
conceito apurado, o qual deve demonstrar que:
2 Perloff (1993) indica que La Prose Du Transsibérien foi uma obra da colaboração entre o poeta Blaise Cendrars e a pintora Sonia Delaunay. A autora acrescenta que a particular versão da modernidade que se acha nos textos do livro faz dele um emblema do momento futurista.
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(1) livro de artista pode mesmo designar tanto a obra como a categoria artística; (2) o conceito é ainda muito problemático, pondo em xeque pesquisadores com pesquisadores, artistas com artistas, e pesquisadores com artistas, além de envolver outras especialidades, como estética, literatura, biblioteconomia e comunicação; (3) que a concepção e execução pode ser apenas parcialmente executada pelo artista, com colaboração interdisciplinar; (4) que não precisa ser um livro, bastando ser a ele referente, mesmo que remotamente; e (5) que os limites envolvem questões do afeto expressadas através das propostas gráficas, plásticas ou de leitura. (SILVEIRA, 2001, p. 25-26)
O item três começa a colocar em dúvida a percepção do livro-objeto com a “colaboração
interdisciplinar”, ou seja, a fabricação desse livro em diferentes contextos, pressupondo sua
reprodução industrial, contornando a área do design no que diz respeito a tornar o objeto um produto
de consumo de massa.
Mesmo que o item quatro não seja a principal referência para este projeto, é interessante
tomar como ponto explorável para a área do design de produto a perspectiva de um livro “menos livro
e mais objeto”, pois tangencia com maior clareza as propostas estudadas para atingir certo público
e/ou situação observada na sociedade.
39
Prosseguindo com a idéia de industrialização, sublinhando o projeto na área do design para a
reprodução em série, continua-se com Silveira, no subtítulo “Até pode ser que isso não seja um livro
de artista. Mas e se for?”, no qual o autor expõe de maneira crítica, mas exemplifica com
“representantes autênticos indiscutíveis”, como ele mesmo menciona. Silveira (2001, p. 130), então,
realça a porosidade entre a arte, a indústria e o comércio, e a imprecisão de fronteiras no que envolve
o consumo cultural.
O autor ainda apresenta esses “representantes indiscutíveis” como “produtos” (entre aspas,
ressaltando suas duvidosas posições). Acrescenta que assimilam conceitos artísticos livros-referentes
e que na sua maior parte não são livros de artistas, mas poderiam ser. Esse aspecto, e até mesmo o
ato de assumir tal relação, compreende o livro-objeto deste projeto, que está inserido na área do
design de produtos, essencialmente.
Sousa (2008, p. 1877) inicia as discussões de seu artigo “Folheando espaços ao redor:
Experiência, tatilidade, espaço e tempo em livros de artista” com a recorrente pergunta “o que é um
livro de artista?” A autora pontua que “o campo do livro de artista tem fronteiras fluidas e indefinidas”
e que há uma extensa quantidade de objetos poéticos que podem ser chamados de livros de artista:
“desde livros únicos com características fortemente escultóricas, passando por materiais com
40
pequenas tiragens, por múltiplos publicados de forma artesanal ou industrial, até livros totalmente
industriais construídos visualmente com o conceito de livro de artista”. Cita, então, a colocação de
Silveira (2001, p. 16): “Ele abarca desde o livro até o não-livro”.
A ideia do livro de artista é adotada por Sousa com uma das concepções de Moeglin-Delcroix
em entrevista a Silveira, que é a de que o artista é responsável por todas as etapas de concepção e
produção do livro, mesmo que não seja com as próprias mãos,
justamente porque o livro é uma obra no sentido pleno do termo, ou seja, é concebido de tal maneira que todos os aspectos do livro participam da significação. O livro não é aí um simples continente ou suporte para uma mensagem que seria independente dele, como é o caso dos livros de literatura ou dos livros em geral. (SILVEIRA, apud SOUSA, 2008, p. 1877)
A função como objeto de registro do conhecimento do livro se submete, portanto, a um
processo de abstração, transformando-se em um objeto de linguagem artística. Moeglin-Delcroix (apud
PANEK, 2003, p. 11) acrescenta a esse discurso que é pelo livro que a relação de conveniência
recíproca se estabelece, que essa reciprocidade está na dependência da estrutura ao motivo do livro.
41
Panek (2003, p. 17), ao citar publicações em forma de livro, expõe maneiras de explorar esse
meio, por meio de sua estrutura, sua “fisicalidade”: o papel, a encadernação, a página, a tipografia, a
tinta, a forma, os elementos de escritura como a letra, a palavra ou a narrativa – que em muitos casos
é transformada em narrativa plástica.
A autora investiga também as possibilidades com a materialidade do livro, como: as sensações
provocadas pela estrutura do livro, por meio do movimento da sucessão de páginas; a temporalidade e
a visão da dupla página, quando essa visão dupla esconde a página precedente e também a seguinte,
ocasionando efeitos de mistério, de simples curiosidade ou mesmo de entretenimento.
Panek (2003, p. 17) ainda discorre sobre a visualidade e a tatilidade, “relação do ver e do
pegar”, exploradas por meio da qualidade dos papéis, dos materiais e do movimento das páginas,
sublinhando que “o livro nas mãos do espectador se encontra em movimento, como algo vivo, que se
relaciona com o lado físico e mental do observador”.
Sousa (2008, p. 1878) complementa essa discussão:
42
No folhear uma obra poética em forma de livro, então, cria-se um fluxo espaço-temporal: no deslocamento através das páginas, no olhar e no tato que concentram num mesmo objeto, e que se unem aos outros sentidos do fruidor, como o olfato e a audição. O folhear, então, seria um jogo sutil entre espaço e tempo.
Em seguida, a autora questiona sobre o espaço e o tempo: seriam eles “dimensões gêmeas?
Opõem-se ou complementam-se?”. Cita então Silveira (apud SOUSA, 2008, p. 1879), em suas
concepções nas quais espaço e tempo se identificam em dualidade:
par e ímpar, frente e verso, abrir e fechar, mostrar e esconder, corte e dobra, maleabilidade e rigidez, textura e lisura, peso e leveza... Na seqüencialidade das páginas, o artista pode optar pela continuidade ou pela fragmentação. Diálogos, narrativas, quebras, novos inícios. A cada página, um novo espaço e um novo tempo...
Abrindo parênteses, percebem-se, nas últimas colocações, algumas contribuições conceituais
para o processo de desenvolvimento do Livro-Objeto-que-Deseja, o qual, por meio do não-senso, deve
percorrer essas dualidades de aspectos físicos do livro.
Retomando a discussão do livro como objeto, vale abordar que no Brasil o conceito foi
apresentado sob forte influência da poesia concreta, e também na forma de colaboração entre artistas
43
e poetas concretos e neoconcretos entre as décadas de 1950 e 1960. Continua Panek (2003, p. 96),
que essa colaboração prossegue em publicações alternativas também na década de 70.
... agora estamos começando a lidar com a “intermédia” nas artes, e já não temos somente pintura, música e teatro, mas um gênero de teatro a que chamamos de “happening”, que saiu da música ou da pintura, ou temos o trabalho de um Augusto de Campos, que está entre a poesia e o objeto, e que pode ser um objeto, ou um poema, ou uma filosofia, etc. E nós não podemos insistir em que as coisas fiquem num lugar só. (CAGE, apud PANEK, 2003, p. 105)
Assim como o que acontece no design, artistas e poetas notaram que as coisas estão entre
uma área e outra, como colocou John Cage na citação acima, trecho de uma entrevista cedida a
Regina Vater, em Nova York, publicada na revista “Código 3”, em 1978, na Bahia.
44
1.4 Objeto-de-Desejo
Partindo do desejo como um delírio sobre o universo de cada coisa, como a construção de um
agenciamento, como uma paixão que envolve todo um contexto, convém investigar perspectivas de
Baudrillard (2006) em sua obra “Sistema dos Objetos”.
Um dos significados do objeto, propõe o autor, é de ele ser causa, ser alvo de uma paixão, isto
é, na medida em que o objeto amado é o alvo para a construção de um agenciamento, de um desejo
ou de uma paixão, ele poderia ser considerado um processo a caminho de um acontecimento, algo
que fará sentido somente ao indivíduo que deseja ou que é estimulado a perceber o desejo, pois o
objeto, nessa ocasião, deixa de ser somente um corpo material por envolver o desejo de alguém.
Baudrillard (2006, p. 94) coloca que todo objeto possui pelo menos duas funções: a de ser
utilizado e a de ser possuído. “A posse jamais é a de um utensílio, pois este me devolve ao mundo, é
sempre a de um objeto abstraído de sua função e relacionado ao indivíduo”. A partir dessa afirmação
se constitui um sistema no qual o indivíduo tenta reconstituir um mundo privado, acrescenta ainda.
O teórico explica que o objeto utilizado funciona com a participação do mundo, “depende do
campo de totalização prática do mundo pelo indivíduo”, já o objeto possuído funciona sem a
45
participação do mundo, sendo um “empreendimento de totalização abstrata realizada pelo indivíduo”
(BAUDRILLARD, 2006, p. 94). Sublinha-se que um objeto com somente uma das funções, portanto,
percorre situações pontuais: o objeto estritamente prático é a máquina, e o objeto puramente
abstraído de seu uso torna-se artigo de coleção.
Baudrillard expõe que o colecionador não é sublime pelos objetos que coleciona, mas sim por
seu fanatismo. O que distingue o amador do colecionador (“amador em série”), no entanto, não é uma
questão decisiva.
O prazer, tanto em um como no outro, vem do fato de a posse jogar, de um lado com a singularidade absoluta de cada elemento, que nela representa o equivalente de um ser e no fundo do próprio indivíduo – de outro, com a possibilidade da série e, portanto, da substituição indefinida e do jogo. (BAUDRILLARD, 2006, p. 96)
O objeto-de-desejo, acrescenta Baudrillard, não lida com imagens reais, mas sim com imagens
desejadas, ou seja, o objeto não é em essência o que deve ser, mas pode ser qualquer coisa que o
indivíduo quer que ele seja por meio de como é percebido. “O objeto é o animal doméstico perfeito”
(BAUDRILLARD, 2006, p. 97), pois, como indica o autor, são os únicos existentes cuja coexistência é
46
possível de qualquer maneira, sendo que não há diferenças que os coloquem uns contra os outros,
como acontece com os seres vivos.
Se à medida que um objeto é adorado o indivíduo passa a fazer parte de sua configuração e, ao
depositar a sua personalidade e seus sentimentos nele, o objeto passa de algo a alguém, talvez essa
mistura de ser vivo com objeto configure um “objeto-que-deseja”, não mais um “objeto-de-desejo”,
como expressado até o momento.
Ao mesmo tempo em que o objeto é desejado por um indivíduo, o objeto pode ser desejado
por ele mesmo e inclusive desejar o indivíduo. Da mesma maneira como Baudrillard coloca, sobre o
indivíduo desejar o objeto, propõe-se, neste projeto, o objeto desejar o objeto e o objeto desejar o
indivíduo, em uma metalinguagem do próprio processo de desejar, no qual o objeto emprega o desejo
que lhe é depositado pelo indivíduo no desejo do outro objeto que, por sua vez, pode desejar
novamente o indivíduo. Talvez seja isso que possibilita o jogo de não-senso entre o que está sendo
desejado, tornando o desejo livre de algum sentido particular para ser desvinculado e atirado ao delírio
do mundo (que pode ou não envolver o objeto).
Partindo, então, da conclusão de que o objeto passa de algo a alguém, ou seja, o próprio
indivíduo que o deseja, que pode ser o próprio objeto neste caso, desdobra-se o pensamento até o
47
“objeto único”, passando da quantidade à qualidade desse objeto. Baudrillard (2006, p. 99) esclarece
que este objeto único é o termo final de toda a espécie, um termo privilegiado de um paradigma,
sendo um emblema de sua série. Segundo o teórico, o objeto, portanto, torna-se um símbolo, tanto da
série completa da qual se originou, quanto do indivíduo amador.
Neste momento ocorre uma série de intersecções com os demais estudos, pois, segundo
Baudrillard (2006, p. 100): “o objeto somente se reveste de valor excepcional na ausência”. Um livro
que possui ausências, portanto, deseja.
Cabe lembrar que o não-senso não é um “sem sentido”, mas um excesso, pois é uma
negação, como explicado a partir da página 17, no entanto, essa ausência do objeto que o faz ser
desejado não pressupõe uma ausência de sentido, somente sugere sua ausência substancial que, por
sua vez, afirma a possibilidade de sua presença. É disto que se trata este projeto: possibilidades.
Baudrillard acrescenta que esse sistema discursivo dos objetos é correspondente ao dos
hábitos, uma vez que o objeto se torna suporte para rotinas do comportamento. Ao contrário do que
possa parecer, o teórico afirma que o hábito é descontinuidade e repetição, não é continuidade, pois é
pela ação descontínua das séries que são possuídos os objetos, envolvendo o desejo.
48
Os objetos não nos auxiliam apenas a dominar o mundo por sua inserção nas séries instrumentais – auxiliando-nos também por sua inserção nas séries mentais, a dominar o tempo, tornando-o descontínuo, classificando-o do mesmo modo que os hábitos, submetendo-o as mesmas forças de associação que regem o arranjo no espaço. (BAUDRILLARD, 2006, 102)
Percorrendo, ainda que em conexão, o sentido e o não-senso das coisas, Baudrillard
exemplifica com um relógio de pulso essa função descontínua e “habitual”, pois, segundo o autor,
resume o duplo modo pelo qual vivemos os objetos (em uma idéia de que se é inserido junto ao
objeto, na medida em que se deseja, em que se denuncia uma troca intensa de proposições entre
objeto-indivíduo e vice-versa):
De uma parte nos informa sobre o tempo objetivo: ora, a exatidão cronométrica é a própria dimensão das pressões de ordem prática, da exterioridade social e da morte. Mas ao mesmo tempo que nos submete a uma temporalidade irredutível, o relógio de pulso enquanto objeto nos auxilia a nos apropriarmos do tempo. Assim como o veículo “devora” os quilômetros, o objeto relógio devora o tempo. (BAUDRILLARD, 2006, p. 102)
49
O fato de “possuir” as horas/de possuir o tempo é o que faz o objeto-relógio consumível,
beirando ao comestível, no sentido de o indivíduo poder deslocar o tempo junto a seu próprio corpo.
Segundo o teórico “através do relógio de pulso, o tempo destaca-se [...] o relógio de pulso pela sua
relação direta com o tempo vem a ser simplesmente o exemplo mais objetivo disso” (BAUDRILLARD,
2006, p. 102), já que, além de saber o tempo, o fato de possuí-lo continuamente faz dele substantivo,
“uma quantidade domesticada”.
Possuir, portanto, sugere uma relação de intimidade entre o objeto e o indivíduo, enquanto que
simplesmente “ter” um objeto, não passa de um contato com um ser desconhecido que não o vê,
que não sugere nada ao indivíduo além de sua função prática.
50
1.5 Objeto-que-Deseja
O objeto-que-deseja possui uma configuração poética (Figura 05), na qual, segundo Chalhub
(1990, p. 38), “a mensagem está voltada para si mesma: as características físicas do signo, seu
estatuto sonoro, visual, são privilegiadas, decorrendo um sentido não previsto numa mensagem de
teor puramente convencional”.
A função poética, portanto, fundamenta a essência da poesia, aponta um poema como um poema, através dos mecanismos de similaridade: – Que são as rimas senão eco do ritmo? – Que são anagramas senão figuras gráfico sonoras viajando pelo tecido textual? – Que são metáforas senão sentidos até então impossíveis de serem sentidos? – Que são aliterações senão insistência do significante? (CHALHUB, 1990, p. 39)
Figura 02 – Configuração Poética
51
– Que são objetos-que-desejam senão produtos insistentes neles mesmos por via de sujeitos que
complementam seus sentidos com outros possíveis sentidos?
Observa a autora que a função poética deixa exposto seu código, sua função metalinguística. A
relação do código e da mensagem vai resultar na metalinguagem das formas poéticas, ou seja, a
mensagem indica sua própria estrutura por meio das funções relacionais de seus elementos. Quando
é dito da metalinguagem ser uma equação, equação é entre “dizer = fazer” (CHALHUB, 1990, p. 40).
Em síntese: • A função metalingüística, no nível do discurso comunicacional, denotativo, opera com definições do código, usando para isso o próprio código. • A metalinguagem conotativa, no âmbito do objeto artístico, opera também com o código para chegar a um processo de definição. (CHALHUB, 1990, p. 41)
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“Chegar a um processo de definição” neste âmbito que envolve design, filosofia e literatura do
objeto-que-deseja, pressupõe o início de um alargamento entre áreas, pois é neste processo de
definição que percorre o desenvolvimento do produto deste trabalho. Chalhub (1990, p. 42) expõe
sobre a literatura na arte: “O poema que se pergunta sobre si mesmo [...] constrói-se contemplando
ativamente sua construção. Podemos dizer que é uma tentativa de conhecimento do seu ser”. A
metalinguagem indica o mito da criação dissolvido, ou seja, o processo de produção da obra é visível e
compreensível.
Segundo a autora, o mito da criação era pensado como “possuído por uma luz transcendente”,
em que o artista era “tocado pelo divino, instrumento para que o dom da criação se manifestasse”. É
nesse sentido que o público contemplava a obra de arte como algo inatingível. No entanto, o conceito
da arte tornou-se construção, não mais percebido como expressão, podendo seu público ser
incorporado na obra, ativamente, como colaborador/leitor dentro dela.
Encontra-se nesse contexto a reprodução, o que se pode ter como nota da relação arte-
design/design-arte tão discutida e transbordante de opiniões avessas. No entanto, onde estaria o
design senão hifenizado com outras áreas? É de esquecimento que se volta a examinar essa relação,
pois não se pretende chegar a nenhuma conclusão surpreendente sobre ela, nem mesmo provocar
53
explosões acerca do assunto, somente utilizar essa relação da melhor maneira possível, entre as
outras relações, para a construção deste produto-livro inserido no design.
Quanto ao objeto-que-deseja, design-nonsense deste livro-objeto-desejante, vale acrescentar
ainda sobre a metalinguagem, tratada por Chalhub, que o poema metalinguístico expõe uma
consciência da linguagem, sendo que o poeta pode dialogar com outros textos de sua própria
produção. Como o produto deste projeto é formado por mais de um produto, ainda que todos formem
um único exemplar, mas com a possibilidade de serem adquiridos separadamente (caderno B, p. 52),
torna-se visível esta colocação em que a produção dialoga entre si. Sobre esse processo, resume a
autora:
Quando o texto não apenas diz, mas opera metalinguisticamente, temos não só o tema, mas o tema estruturado na feitura do texto, de tal forma que fica impossível separar o procedimento daquilo que se diz. Na verdade, um sobrescrever, diferente de um sobre escrever. Este é um dizer sobre algo, sem mostrar como se faz, aquele é o mostrar o que está dizendo. (CHALHUB, 1990, p. 63)
54
“Mostrar o que está dizendo” deve estar na estrutura do Livro-Objeto-que-Deseja, que deve
ser conhecido na medida em que é conhecido o conteúdo do livro - os textos e os cortes -, uma vez
que as relações contidas nele podem ser de ordens variadas, coerentes entre si, mas sem estabelecer
definições. Interessa ressaltar, agora tomando como referência Deleuze (2000, p. 12), que “não há
diferença entre aquilo de que um livro fala e a maneira como é feito”.
55
CAPÍTULO DOIS – CONEXÕES
56
2.1 Não-senso e Desejo
Novaes (1990, p. 11) assinala que o que acontece com o desejo é o mesmo que acontece com
a liberdade: “prodigiosa desatenção, perda de intensidade, um estado de perturbação provocado pela
imaginação delirante”. Como se fosse uma explosão e um estado de choque, o delírio e o estado de
perturbação, podendo atrelar esse sentido com o conceito de não-senso, no qual diante de qualquer
opção, pode ser qualquer coisa: por isso, talvez, alguma perturbação.
A partir do momento em que se definiu de desejo como um agenciamento de coisas e de
acontecimentos e que supostamente um agenciamento seja algo que possa também acontecer em
superfície, assim como o sentido, acreditou-se na possibilidade de seu desdobramento em várias vias,
entre a coisa e a proposição, subsistindo-a, da mesma maneira que insiste o não-senso.
Além dessa suposição, ressalta-se o surgimento da palavra desejo como gulodice, percorrendo
os dois sentidos ao mesmo tempo, isto é, “a própria coisa que se come” por gula, e o acontecimento
da gula, o próprio impulso de comer. Sublinha-se, então, a gulodice enquanto gula como a
proposição/sentença e a coisa que se come como a própria coisa existente, investigação que permite
57
um acontecimento flutuar sobre as duas vias ao mesmo tempo. Por isso, assim como o sentido e o
não-senso, deve ser como sobrevive o desejo.
Outra conexão, ou ainda a mesma, percebida de outro modo, é que o Livro-Objeto-que-Deseja
foi projetado com espaços vazios, com recortes passantes nas estruturas dos livros, ideia que se
manteve desde o início do projeto, por remeter a uma falta que permite qualquer coisa, como excesso
de sentido, de não-senso e de nada, ao mesmo tempo, que também pode ser qualquer coisa. E o
desejo? Pois se o desejo é a certeza da ausência, e a ausência permite qualquer coisa, seria o desejo a
certeza de qualquer coisa, e qualquer coisa é nada, e, deste modo, pode ser excesso com relação ao
sentido.
Arrisca-se expor um exemplo cotidiano:
Precisa-se de um vestido para uma festa, pois o guarda-roupa está vazio de vestidos para a específica
festa. Portanto, caminha-se até uma loja de sapatos e compra-se o mais bonito deles. Resolvido o
problema: o guarda-roupa não está mais ausente de vestidos, uma vez que eles subsistem o sapato
que foi comprado.
Nesse contexto, os vestidos não são coisas, mas proposições que subsistem um determinado
sapato, os vestidos não fazem sentido sem o sapato, assim como o expresso, o sapato não sobrevive
58
sem a sua expressão. Sem a ausência de vestidos o sapato não seria comprado. Enfim, o que se
espera de um vazio é um preenchimento, seja o preenchimento com coisas exteriores ou com o
próprio vazio (enquanto preenchimento), como a decisão de não ir à festa por possuir vestidos
ausentes, por exemplo.
Como problema deste trabalho, apresentou-se a questão: “como fazer desejar o não-senso?”
Pois desejar o não-senso seria talvez redundante, já que o próprio desejo deve coexistir com a sua
possibilidade. Cabe colocar que é o livro que deseja que, desse modo, reflete a linguagem e o não-
senso para ele próprio, permanecendo entre a coisa/objeto-livro e o sujeito que propõe voluntária ou
involuntariamente seu desdobramento.
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2.2 Livro-Objeto e Design de Produto
Por mais clara que seja a relação de um livro com um projeto de produto, não é rara a negação
do livro como produto projetável em outros sentidos que não seja estritamente o de suporte para uma
mensagem, mas que participa efetivamente da mensagem (ou da “não-mensagem”).
Se o livro é percebido por outros sentidos, por que não poderia ser assim projetado? E “outros
sentidos” não se restringem somente aos sentidos concretos/palpáveis, mas que o livro possa, por
exemplo, tornar-se um serviço ou, então, que seja voltado não para o objeto, mas para a “ação de se
usar um livro” (que não implica necessariamente leitura). Afinal, um livro pode abranger aspectos
similares aos de qualquer produto.
Neste projeto, o que seria o acabamento do livro, deixa de ser algo a ser pensado como fim do
processo de produção, isto é, como finalização do projeto do livro, para se transformar no motivo dele,
para ser o projeto enquanto produto de design, englobando seus demais elementos simultaneamente.
Para esclarecer, faz-se uma breve comparação com um projeto de uma cadeira de madeira que, em
vez de pintura, são arranjadas palavras (no caso de um livro composto de palavras) e, em vez de tratar
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a madeira, trata-se o papel (no caso de um livro com páginas de papel, logicamente). Assim, com suas
diferenças, o livro pode ser um produto de design que percorre áreas distintas.
Portanto, assim como um móvel, um eletroeletrônico ou um utilitário, o livro trata de aspectos
espaço-temporais:
Um livro é uma sequência de espaços. Cada um desses espaços é percebido em um momento diferente – um livro é também uma sequência de momentos. [...] O livro é uma sequência espaço-temporal. [...] é um volume no espaço. [...] A manifestação objetiva da linguagem pode ser considerada em um momento e em um espaço isolados – a página; ou em uma sequência de espaços e de momentos – o livro. [...] Ler um livro é perceber sequencialmente sua estrutura. (CARRION, apud SOUSA, 2008, p. 1878)
Sousa (2008, p. 1878) sublinha que “muitas vezes aspectos do tempo tornam-se físicos,
enquanto que aspectos espaciais tomam feições temporais” e acrescenta a afirmação de Silveira
(2001, p. 18): “a percepção sucessiva intui o tempo [...]. A percepção simultânea intui o espaço”.
Complementa, então, com a idéia de Oliver Sacks (apud SOUSA, p. 1878): “a percepção sequencial se
dá por intermédio do tato, enquanto que a percepção simultânea se dá pela visão. Enquanto o mundo
da visão é o espaço, o mundo do tato é o tempo...”
61
Chalhub (1990, p. 69) coloca que adquirir um livro remete ao prazer de adquirir um objeto
recém saído da fábrica, pois assim como qualquer objeto, os livros também “conhecem essa beleza
diabólica que cessa [ou cresce, dependendo do fator emocional envolvido] quando sua capa
amarelece, quando a beirada se cobre de poeira, quando, no rápido outono das bibliotecas, a
encadernação desbota nos cantos”. O prazer de adquirir a novidade do livro é o mesmo ao adquirir a
novidade de outro objeto, assim como o desencanto/”reencanto” do objeto envelhecendo/deixando
de ser novidade é o mesmo.
Propõe-se um pensamento literário a partir de trechos do conto “Felicidade Clandestina” de
Clarice Lispector (1987, p. 7-10) e, por consequência, esbarra-se no “desconflito” entre um livro
enquanto suporte de uma mensagem e um livro enquanto livro, enquanto objeto integral de existência
em forma de livro (ou em forma-referente).
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. [...] Eu estava estonteada, e recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. [...] Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas
62
linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. [...] Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Todo objeto pode vivenciar tais sensações humanas. Um livro pode sugerir ao indivíduo como
ele deve ser cuidadosamente observado, assim como consegue sugerir uma poltrona de futon3 cor-
vinho acompanhada de almofadas pretas onde se deita um gato de rua após ter almoçado uma ração
vegan4
3 Futon é um colchão que utiliza uma tecnologia específica.
doada pelo restaurante da esquina. Ou como pode sugerir uma jóia rara de pedras da Amazônia
acumulando pó por ter sido varrida para baixo da poltrona no último domingo em que choveu. Ou ainda
como sugere uma vassoura alaranjada com o cabo fabricado com restos de madeira da indústria da
poltrona localizada a cinco cidades de distância, entre outros objetos.
4 Veganismo é um modo de vida motivado por convicções éticas em que não se utiliza nenhum produto de origem animal, seja na alimentação ou em quaisquer outras funções cotidianas (como em vestimentas, decoração, etc.)
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Lispector (1978, p. 101), em sua obra “Um Sopro de Vida”, coloca sobre o objeto, de maneira
geral e sobre as palavras concretizadas na fala:
Não posso ficar olhando demais um objeto senão ele me deflagra. Mais misteriosa do que a alma é a matéria. Mais enigmática que o pensamento é “a coisa”. A coisa que está às mãos milagrosamente concreta. Inclusive, a coisa é uma grande prova do espírito. Palavra também é coisa – coisa volátil que eu pego no ar com a boca enquanto falo. Eu a concretizo.
Se palavras são concretizadas, palavras podem ser produtos. Imagina-se uma disciplina da
graduação específica em “Design de Palavras” que propusesse a construção, a desconstrução, os
processos de fabricação, os materiais, os métodos, etc. Imagina-se uma “Indústria de Palavras”.
Percebem-se nas palavras pulsações que sobressaem-se de sua utilização escrita ou falada. A palavra
também pode ser sentença além de subsistência. (E o livro pode ser um porta-palavras.)
Lispector (1978, p. 111), ainda em “Um Sopro de Vida”, coloca: “Pego a palavra e faço dela
coisa. Peguei a alegria e fiz dela como cristal brilhantíssimo no ar. A alegria é um cristal. Nada precisa
ter forma. Mas a coisa precisa estritamente dela para existir”. Enquanto a palavra insiste na sua
existência entre estas linhas, o objeto insiste em sentir como a palavra sente, ainda neste sopro da
64
escritora: “Uma poltrona é muda, é gorda, é aconchegante. [...] Já a quina da mesa é arma fatídica. Se
você for jogado contra, você se dobra em dois de dor. Mesa redonda é sonsa. Mas não oferece perigo:
ela é meio misteriosa, ela sorri ligeiramente” (LISPECTOR, 1978, p. 117).
65
2.3 Livro-Objeto-que-Deseja e Rizoma
O que se pretende com um livro cujos textos são escritos para serem combinados com
quaisquer continuações, ou até mesmo permanecerem sem fim (ou sem meio, ou sem começo) para
que possam ser despreocupados e independentes, podendo ter sua formação se relacionando com
infinitas proposições (ou até mesmo permanecerem incógnitos dentro de si mesmos)?
Ao explicar este Livro-Objeto-que-Deseja, espera-se sobressaltar o processo de tentativa de
uma resposta, o que deve ser considerado a própria resposta, pois se sabe que sua existência como
produto de design está atrelada a inquietos assuntos de uma teia de proposições, dos quais se nota,
além dos conceitos de formação do produto (não-senso, livro-objeto e desejo), o conceito de rizoma,
de Deleuze e de Guattari (2000, p. 11-12):
Num livro, como em qualquer coisa, há linhas de articulação ou segmentaridade, estratos, territorialidades, mas também linhas de fuga, movimentos de desterritorialização e desestratificação. As velocidades comparadas de escoamento, conforme estas linhas, acarretam fenômenos de retardamento relativo, de viscosidade ou ao contrário, de precipitação e de ruptura.
66
A partir dessa colocação, Deleuze e Guattari afirmam que um livro é um agenciamento, mas
que não se sabe ainda o que o múltiplo implica quando é elevado ao estado de substantivo. Explica
que o “fazer rizoma” é não se perguntar o que um livro quer dizer, significado ou significante, mas sim
perguntar com o que ele funciona, quais suas conexões e em quais multiplicidades ele se introduz.
“Um livro existe apenas pelo fora e no fora” (DELEUZE, GUATTARI, 2000, p. 12).
“O rizoma nele mesmo tem formas muito diversas, desde sua extensão superficial ramificada
em todos os sentidos até suas concreções em bulbos e tubérculos”, afirmam Deleuze e Guattari
(2000, p. 15). Por isso, percebem a necessidade de enumerar algumas características do rizoma para
esclarecer o que ele implica.
A primeira e a segunda característica são os princípios de conexão e de heterogeneidade, em
que qualquer ponto de um rizoma deve ser conectado a qualquer outro. Explica: “um método de tipo
rizoma é obrigado a analisar a linguagem efetuando um descentramento sobre outras dimensões e
outros registros. Uma língua não se fecha sobre si mesma, senão em uma função de impotência”
(DELEUZE, GUATTARI, 2000, p. 16).
A terceira característica do rizoma é o princípio de multiplicidade. Os teóricos declaram que as
multiplicidades são rizomáticas e denunciam as pseudomultiplicidades arborescentes. Vale sublinhar
67
que “não existem pontos ou posições num rizoma como se encontra numa estrutura, numa árvore,
numa raiz. Existem somente linhas” (DELEUZE, GUATTARI, 2000, p. 17). Os autores continuam:
As multiplicidades se definem pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou de desterritorialização, segundo a qual elas mudam de natureza ao se conectarem às outras. O plano de consistência (grade) é o fora de todas as multiplicidades. A linha de fuga marca, ao mesmo tempo: a realidade de um número de dimensões finitas que a multiplicidade preenche efetivamente; a impossibilidade de toda dimensão suplementar, sem que a multiplicidade se transforme segundo esta linha; a possibilidade e a necessidade de achatar todas estas multiplicidades sobre um mesmo plano de consistência ou de exterioridade, sejam quais forem suas dimensões. (DELEUZE, GUATTARI, 2000, p. 17)
Ou seja, o que define as multiplicidades indica ao mesmo tempo: o preenchimento da realidade
finita, a impossibilidade de haver outra dimensão sem que a multiplicidade se transforme, e a
possibilidade/necessidade de juntar todas as multiplicidades em um mesmo plano (grade, plano de
consistência ou de exterioridade).
A quarta característica é o princípio de ruptura a-significante que aponta a segmentaridade das
linhas do rizoma, pois “ele é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído etc., mas
68
compreende também as linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem parar” (DELEUZE,
GUATTARI, 2000, p. 18).
Segundo Deleuze e Guattari, sempre que as linhas de segmentaridade explodem em uma linha
de fuga, acontece a ruptura no rizoma, mas as linhas de fuga fazem parte do rizoma, pois as linhas não
param de se remeter umas às outras, por exemplo:
A orquídea se desterritorializa, formando uma imagem, um decalque de vespa; mas a vespa se reterritorializa sobre esta imagem. A vespa se desterritorializa, no entanto, tornando-se ela mesma uma peça no aparelho de reprodução da orquídea; mas ela reterritorializa a orquídea, transportando o pólen. A vespa e orquídea fazem rizoma em sua heterogeneidade. (DELEUZE, GUATTARI, 2000, p.18)
Segundo os autores, não se trata de uma imitação, mas de uma captura de código, de um
verdadeiro devir: “devir-vespa da orquídea, devir-orquídea da vespa”. Deleuze e Guattari acrescentam
que cada um destes devires afirma a desterritorialização de um dos termos e a reterritorialização do
outro, os dois devires se encadeiam e se revezam empurrando a desterritorialização cada vez mais
longe.
69
Arrisca-se a tomar ainda como exemplo a presente situação em que é redigido um relatório de
TCC por um estudante, pois isto pressupõe um devir-acadêmico, a imagem da desterritorialização da
academia sobre o estudante e em paralelo a reterritorialização do estudante sobre sua própria imagem
de devir-acadêmico (a desterritorialização da academia). O estudante contribui na produção da
academia, pois ele a reterritorializa, ele a movimenta em outras direções enquanto está nesse devir.
Portanto, o estudante e a academia fazem rizoma.
Os teóricos exemplificam também com as viroses, sendo que as pessoas fazem rizoma com
seus vírus que, por sua vez, fazem as pessoas fazerem rizomas com outros animais. E acrescentam:
Comunicações transversais entre linhas diferenciadas embaralham as árvores genealógicas [...] Evoluímos e morremos devido a nossas gripes polimórficas e rizomáticas mais do que devido a nossas doenças de descendência ou que têm elas mesmas sua descendência. O rizoma é uma antigenealogia. (DELEUZE, GUATTARI, 2000, p. 20)
Segundo os autores, é a mesma situação que um livro e o mundo, pois o livro não é uma
imagem segundo as crenças do mundo, ele faz rizoma com o mundo, ele afirma a desterritorialização
70
do mundo; e este, contudo, age em uma reterritorialização do livro que, por sua vez, desterritorializa-se
em si mesmo no mundo.
Os teóricos explicam que “todos os devires são moleculares”, pois o devir se distingue de uma
imitação e muito menos se identifica com algo ou alguém. Também não proporciona relações formais,
acrescentam Deleuze e Guattari (2002, p. 64):
Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de nos tornarmos, e através das quais nos tornamos. É nesse sentido que o devir é o processo do desejo.
Os teóricos exemplificam: "Ninguém se torna cachorro molar latindo, mas, ao latir, se isso é
feito com bastante coração, necessidade e composição, emite-se um cachorro molecular" (DELEUZE,
GUATTARI, 2002, p. 67). E ainda declaram em outro exemplo: “Albertine pode imitar uma flor o
quanto quiser, mas é quando ela dorme, e compõe-se com as partículas do sono, que sua pinta e o
grão de sua pele entram numa relação de repouso e movimento que a coloca na zona de um vegetal
molecular: devir-planta de Albertine” (DELEUZE, GUATTARI, 2002, p. 67).
71
“Sabedoria das plantas: inclusive quando elas são de raízes, há sempre um fora5
A quinta e a sexta característica do rizoma englobam o princípio de cartografia e de
decalcomania: “um rizoma não pode ser justificado por nenhum modelo estrutural ou gerativo. Ele é
estranho a qualquer idéia de eixo genético ou de estrutura profunda” (DELEUZE, GUATTARI, 2000, p.
21). Os autores explicam que tanto o eixo genético quanto a estrutura profunda são princípios de
decalque, em uma lógica de reprodução ao infinito. Ressaltam, então, que o rizoma é mapa, não
decalque, isto é, não reproduz um inconsciente fechado sobre si mesmo, mas o constrói, colabora
onde elas
fazem rizoma com algo – com o vento, com um animal, com o homem” (DELEUZE, GUATTARI, 2000,
p. 20). É importante ressaltar “o fora” como multiplicador, assim como colocam Deleuze e Guattari
também sobre a música, porque claramente a música se permite fazer com suas linhas de fuga e com
as tantas “multiplicidades de transformação”, por isso, alegam os teóricos, que a forma musical é
comparável, por suas rupturas e proliferações, com a erva daninha, um rizoma.
5 Entende-se como “fora” o rizoma em ruptura, o que possibilita vários acontecimentos, entre eles: “alongar, prolongar, revezar a linha de fuga, fazê-la variar até produzir a linha mais abstrata e a mais tortuosa, com n dimensões, com direções rompidas” (DELEUZE, GUATTARI, 2000, p. 20).
72
com a conexão dos campos, para o desbloqueio dos corpos sem órgãos, para a abertura máxima
sobre um campo de consistência.
Segundo Deleuze e Guattari, o mapa faz parte do rizoma, pois é aberto, conectável em todas as
dimensões, desmontável, reversível, adaptável a montagens de qualquer natureza etc. Apontam em
seguida:
Uma das características mais importante do rizoma talvez seja a de ter sempre múltiplas entradas [...] contrariamente ao decalque que volta sempre ao mesmo. [...] Ao contrário da psicanálise [...] que achata cada desejo e enunciado sobre um eixo genético ou uma estrutura sobrecodificante e que produz ao infinito monótonos decalques dos estágios sobre este eixo ou dos constituintes nesta estrutura, a esquizoanálise recusa toda idéia de faltalidade decalcada, seja qual for o nome que se lhe dê, divina, analógica, histórica, econômica, estrutural, hereditária ou sintagmática. (DELEUZE, GUATTARI, 2000, p. 22)
No entanto, os teóricos (2000, p. 22-23) questionam se isso não restaura uma visão
maniqueísta que opõe o mapa ao decalque, tendo em vista as seguintes dúvidas-constatações: “Não é
próprio do mapa poder ser decalcado? Não é próprio de um rizoma cruzar as raízes, confundir-se às
vezes com elas?” Concluem, com isso, que é uma questão de método: “é preciso sempre projetar o
73
decalque sobre o mapa”. Apesar da constatação, Deleuze e Guattari afirmam que o decalque reproduz
somente “os impasses, os bloqueios, os germes de pivô ou os pontos de estruturação” do mapa ou
do rizoma.
Quando um rizoma é fechado, arborificado, acabou, do desejo nada mais passa; porque é sempre por desejo que o rizoma se move e produz. Toda vez que o desejo segue uma árvore, acontecem as quedas internas que o fazem declinar e o conduzem à morte; mas o rizoma opera sobre o desejo por impulsões exteriores e produtivas. (DELEUZE, GUATTARI, 2000, p. 23)
Por isso tudo que foi dito sobre o decalque, sobre a impossibilidade de evitar o decalque, é que
os autores conduzem a discussão para uma solução desse impasse, a de sempre ressituar o decalque
sobre o mapa e, com isso, voltar a trabalhar com as multiplicidades que percorrem as linhas de fuga.
Deleuze e Guattari inclusive fazem rizoma em seu próprio discurso sobre o rizoma, eles
colocam que “ser rizomorfo” é produzir hastes e filamentos que parecem raízes, mas que, por outro
lado, melhor seria produzir hastes e filamentos que se conectem com as raízes ao penetrar no tronco,
isto é, fazê-las servir a “estranhos e novos” usos. Os teóricos (2000, p. 25) sublinham: “Estamos
74
cansados da árvore. Não devemos mais acreditar em árvores, em raízes ou radículas, já sofremos
muito”
Muitas pessoas têm uma árvore plantada na cabeça, mas o próprio cérebro é muito mais uma erva do que uma árvore. “O axiônio e o dentrito enrolam-se um ao redor do outro como a campanulácia6 em torno de espinheiro com uma sinapse em cada espinho7
” É como no caso da memória... (DELEUZE, GUATTARI, 2000, p. 25)
Sobre a memória, Deleuze e Guattari alegam que a diferença da memória curta para a memória
longa não é somente em termos quantitativos, pois a memória curta é de tipo rizoma, enquanto que a
longa é arborescente e centralizada. Ela está sempre em condições de descontinuidade, de ruptura e
de multiplicidade, uma vez que ela pode acontecer a distância e vir e voltar muito tempo depois. Os
6 Segundo Michaelis on-line (2010): sf pl Bot Família (Campanulaceae) da ordem das Campanuladas, composta quase só de ervas, com poucas espécies subarbustivas, arbustivas, trepadeiras e arborescentes, em geral lactíferas, com vasos articulados, folhas alternantes, simples, inteiras ou, finalmente, serradas, fendidas até lobadas, nunca compostas, sem estípulas.
7 Referência dos autores: Steven Rose, Le cerveau conscient. Ed. Du Seuil, p. 97, e sobre a memória, pp. 250 sq.
75
autores assinalam que a memória curta compreende o esquecimento como processo, e a memória
longa decalca e traduz o que continua a agir nela a distância e a contratempo.
A árvore ou raiz, segundo Deleuze e Guattari (2000, p. 27), inspiram uma triste imagem do
pensamento que imita incessantemente o múltiplo partindo de uma unidade superior, de um centro ou
de um segmento. A estes sistemas centrados são propostos sistemas a-centrados, nos quais os
elementos envolvidos são todos intercambiáveis, isto é, “o resultado final global se sincroniza
independente de uma instância central”. Os teóricos salientam:
Para os enunciados como para os desejos, não é nunca reduzir o inconsciente, interpretá-lo ou fazê-lo significar segundo uma árvore. A questão é produzir inconsciente e, com ele, novos enunciados, outros desejos: o rizoma é esta produção de inconsciente mesmo. (DELEUZE, GUATTARI, 2000, p. 28)
O discurso chega novamente em um impasse, de que o rizoma possui sua própria hierarquia,
pois não existe, segundo os autores, esse dualismo do bom e do mau, nem mistura ou síntese. O que
existem são “nós de arborescência nos rizomas, empuxos rizomáticos nas raízes” (DELEUZE,
GUATTARI, 2000, p. 31).
76
O que conta é que a árvore-raiz e o rizoma canal não se opõem como dois modelos: um age como modelo e como decalque transcendentes, mesmo que engendre suas próprias fugas; o outro age como processo imanente que reverte um modelo e esboça um mapa, mesmo que constitua suas próprias hierarquias, e inclusive ele suscite um canal despótico. [...] Trata-se do modelo que não para de se erigir e se entranhar, e do processo que não para de se alongar, de romper-se e de retomar.
“Problema de escrita: são absolutamente necessárias expressões anexatas para designar algo
exatamente” (DELEUZE, GUATTARI, 2000, p. 32). Partindo dessa premissa, tentou-se sintetizar o
resumo conclusivo dos autores das principais características do rizoma e fazer um paralelo com este
projeto de produto que, de (in)certa forma, alcançou o conceito de rizoma por alguma ruptura
precedente, assim como foram acontecendo as demais linhas de fuga durante o projeto.
Segundo Deleuze e Guattari (2000, p. 32-33), o rizoma conecta pontos quaisquer e cada linha
não remete necessariamente a linhas de mesma natureza, uma vez que os desvios podem ser
maiores ou menores; ele é formado de dimensões ou direções movediças, não de unidades; “ele não
tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda”; ele é feito somente
de linhas (de segmentaridade, de estratificação, de fuga ou de desterritorialização); ele é
77
antigenealogia; “é uma memória curta ou uma antimemória”; “o rizoma procede por variação,
expansão, conquista, captura, picada”; ele é oposto ao decalque, pois “se refere a um mapa que deve
ser produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas
entradas e saídas, com suas linhas de fuga [...] são os decalques que é preciso referir aos mapas e não
o inverso”; o rizoma é um sistema a-centrado não-hierárquico e não significante; o rizoma permite todo
o tipo de devir.
Uma característica que deve estar presente no Livro-Objeto-que-Deseja são os platôs, Deleuze
e Guattari (2000, p. 33) sublinham que “um rizoma é feito de platôs”. Os platôs se diferenciam dos
capítulos, pois não possuem hierarquização dos apontamentos, nem mesmo possui pontos
culminantes ou de conclusão. Segundo os teóricos, os platôs se comunicam por microfendas, é “toda
multiplicidade conectável com outras hastes subterrâneas superficiais de maneira a formar e estender
um rizoma” (DELEUZE, GUATTARI, 2000, p. 33).
Apesar de o produto ter, novamente, uma “(in)certa” continuação, ela é diluída, muitas vezes
não contínua, pois pode ser vista como um meio, assim como o começo que pode ser visto como
outro meio e, no lugar de Livro dos Começos e Livro dos Meios, tem-se dois meios, sendo que ao ler
os textos e encaixar os livros, qualquer meio (começo) com qualquer outro meio (meio) possui uma
78
singularidade, cujas conexões podem ou não serem efetuadas (variando de acordo com a porosidade
particular do pensamento de cada leitor). O Livro-Objeto-que-Deseja é feito de pequenas e grandes
interrupções, fendas, nas quais se acredita acontecer a ruptura para a formação das linhas de fuga.
79
CAPÍTULO TRÊS – PRODUÇÃO
80
3.1 Construção
Julgou-se necessário um estudo que definisse concretamente o que é um livro em termos
tradicionais, como se dá o seu processo e, por fim, como se dá o encaminhamento para a produção,
lembrando que o livro-objeto pode ser tanto produzido como confeccionado pelo autor/artista, além da
possibilidade de ser apenas livro-referente, como explicado a partir da p. 38 deste caderno A.
Haslam (2007, p. 8) considera algumas possibilidades de definições do que venha a ser um
livro, apontando primeiramente o Concise Oxford Dictionary, o qual expõe sobre o produto: “1 Tratado
portátil manuscrito ou impresso que preenche uma série de folhas encadernadas, vinculadas umas às
outras; 2 Composição literária que preencha um conjunto de folhas”. Já o Dicionário Houaiss, continua
Haslam, define o livro como “coleção de folhas de papel impressos ou não, cortadas, dobradas e
reunidas em cadernos cujos dorsos são unidos por meio de cola, costura etc., formando um volume
que se recobre com capa resistente”. Pode-se, portanto, com as definições citadas, notar duas
características evidentes do livro: enquanto descrição física e enquanto referência à escrita e à
literatura.
81
A investigação é continuada pelo autor (2007, p. 8) acerca da definição do livro com a
Encyclopaedia Britannica, a qual sugere ser o livro: “1 ...uma mensagem escrita (ou impressa) de
tamanho considerável, destinada à circulação pública e registrada em materiais leves, porém duráveis
o bastante para oferecerem uma relativa portabilidade; 2 Instrumento de comunicação”. Desse modo,
Haslam (2007) introduz uma noção do público do livro de maneira geral, salientando o uso do produto
como objeto físico e como objeto de comunicação.
Haslam (2007, p. 9) ainda coloca o que propõe a Encyclopedia of the Book, a qual fornece
dados sobre o custo e a extensão do livro: “Para propósitos estatísticos, o mercado editorial britânico
já considerou que um livro era uma publicação que custava seis pences ou mais [...] uma conferência
da UNESCO em 1950 definiu um livro como: uma publicação literária não-periódica contendo mais de
48 páginas, sem contar as capas”. O autor acrescenta que essa definição surge de preocupações
legais e regulamentações tributárias sobre o livro, sendo que, junto com as demais definições, não
compreende todo o produto de modo a capturar sua influência na sociedade. Contudo, Haslam (2007,
p. 9) elaborou uma definição que pudesse estimular uma discussão ampliada sobre o livro: “Livro: um
suporte portátil que consiste de uma série de páginas impressas e encadernadas que preserva,
anuncia, expõe e transmite conhecimento ao público, ao longo do tempo e do espaço”.
82
E, por fim, seguem algumas imagens didáticas das partes que compõem a estrutura física do
livro (Figuras 05, 06, 07 e 08), encontradas no material organizado por Fontoura (2007):
Figura 05 – Componentes da Estrutura Física do Livro Fonte: FONTOURA, 2007
83
Figura 06 – Componentes da Estrutura Física do Livro Fonte: FONTOURA, 2007
84
Figura 07 – Componentes da Estrutura Física do Livro Fonte: FONTOURA, 2007
85
Figura 08 – Componentes da Estrutura Física do Livro Fonte: FONTOURA, 2007
86
Uma vez que este projeto se refere a um livro-objeto voltado para a área de Design de Produto,
as partes que compõem o Livro-Objeto-que-Deseja não necessariamente foram essas apresentadas
nas imagens. Contudo, sabendo das possibilidades da indústria editorial, pode-se trabalhar o produto
sobre os elementos tradicionais do livro de maneira a pensar sobre eles, voltando-os funcionalmente e
formalmente para a configuração e conceitos trabalhados (caderno B, cap. 2 e 3).
87
3.2 Processo Editorial
Haslam (2007) pontua os profissionais atuantes na sua produção, identificando a função de
cada um dentro da indústria editorial e os caminhos julgados básicos para a criação de livros em um
contexto geral, tendo em vista que as funções e o processo podem variar de acordo com cada editora,
sendo que o processo específico da Editora Parêntesis será abordado em tópico posterior.
Portanto, seguem, resumidamente, as funções gerais de uma indústria editorial, segundo
Haslam (2007, p. 13-19), uma vez que, dependendo do caso, algumas funções não são necessárias e
outras são trabalhadas ao mesmo tempo ou até pela mesma pessoa:
a) Autor: indivíduo que elabora de forma inédita uma obra literária;
b) Agentes literários e bancos de imagem: representantes do autor, sendo os agentes literários
administradores dos interesses relativos aos direitos da obra junto ao mercado editorial e os
bancos de imagem relacionados aos interesses de ilustradores e de fotógrafos;
c) Editor: é o responsável pela publicação da obra, podendo ser uma pessoa física ou jurídica;
d) Escritórios de produção editorial: prestadores dos serviços editoriais;
88
e) Editor de aquisições: responsável por selecionar os livros a serem produzidos a cada
temporada, por estabelecer uma rede de escritores, designers, ilustradores e fotógrafos e
também por estabelecer cronogramas e datas de lançamento;
f) Editor de textos: podendo ser freelancer ou contratado, o editor de textos trata com o autor
sobre a formatação do conteúdo da obra, identificando trechos dos textos que não parecem
claros e levantando possíveis questões a serem consideradas pelo autor;
g) Revisor de provas: os revisores esmiúçam a obra, geralmente após ter sido editada, procurando
erros conceituais, gramaticais e ortográficos;
h) Consultor técnico: o consultor oferece conhecimentos específicos de uma área, por exemplo,
caso a editora planeje lançar uma série sobre jardinagem pode contar com essa assistência,
que participaria das etapas de revisão ao longo do processo editorial;
i) Revisor técnico: o revisor, assim como o consultor técnico, oferece conhecimentos específicos
de uma determinada área, mas não trabalha diretamente no processo de criação da obra. O
revisor é contratado somente ao final do processo para uma leitura críticas, avaliando a
adequação da obra com o público-alvo e também a qualidade do texto, observações que são
avaliadas pela equipe que providencia as emendas ao texto original;
89
j) Diretor de arte: responsável por manter a qualidade estética e conceitual de toda produção da
editora, estabelecendo orientações a cada publicação;
k) Designer: responsável pelo projeto da natureza física do livro, seu visual e sua forma de
apresentação;
l) Pesquisador de imagens: responsável por localizar imagens e obter permissão dos direitos
autorais para a reprodução;
m) Gerente de licenciamento: trata do licenciamento junto a terceiros detentores de direitos
autorais para uso de trechos de textos e/ou imagens que a editora pretenda incluir em suas
futuras publicações;
n) Ilustradores, fotógrafos, cartógrafos: geralmente freelancers, são responsáveis pela criação de
imagens utilizadas nos livros;
o) Gerente de direitos autorais: responsável pela administração dos contratos de cessão de
direitos autorais;
p) Gerente de marketing: responsável por promover e vender o livro editado para os varejistas ao
mesmo tempo em que supervisiona a distribuição;
90
q) Gerente de produção editorial: responsável por supervisionar a produção do livro e por
administrar a qualidade e o custo das obras em andamento;
r) Impressor, acabamento gráfico e encadernação: quem imprime, faz o acabamento e encaderna
a obra é uma gráfica especializada;
s) Gerente de distribuição: responsável pelo controle do estoque e pela reposição dos livros.
t) Divulgadores: responsáveis por efetuar contatos com os distribuidores, grandes redes de
livrarias e canais de distribuição especializados.
De acordo com Fontoura (2007, p. 3), o processo de encaminhamento do livro percorre as
seguintes etapas:
a) Criação do conteúdo e geração do manuscrito: elaboração e redação do texto original pelo autor
da obra;
b) Busca de um editor para publicação da obra: o autor ou o agente oferecem ao editor os direitos
de reprodução do manuscrito, e o editor publica-o em forma de livro;
91
c) Edição do manuscrito: a editora coordena a publicação de obras e é composta normalmente
pelos profissionais citados anteriormente. Muitas editoras contam com a colaboração de
escritores, redatores e pessoal de texto que podem desenvolver a idéia original do autor;
d) Impressão: a fase de produção concreta do livro é composta pela impressão (posterior a
montagem do livro em cadernos), pelo alceamento (arranjo das folhas na ordem correta para
encadernação e arranjo dos cadernos para a formação do livro), pelo encapamento e pelo
acabamento (encadernação, plastificação, aplicação de relevos, pigmentação, etc.);
e) Distribuição e comercialização: a obra, então, é embalada e distribuída para os pontos de venda.
92
3.3 Manufatura
Segundo Haslam (2007), a produção industrial de um livro implica todos os procedimentos
realizados após a redação e o design terem sido finalizadas. Esse processo compreende a pré-
produção, a impressão e o acabamento do livro. De todo modo, o conhecimento do processo de
produção do produto subsidia todo o projeto, uma vez que proporciona oportunidades de desenho e
também evita futuros problemas.
3.3.1 Pré-produção
Pré-produção é o termo utilizado para indicar os procedimentos que antecedem a impressão,
nos quais é possível prever os resultados finais da produção. Basicamente, pontua o autor, são
avaliadas questões que envolvem: traço e tom, retículas, cor, efeitos na impressão, organização das
páginas e características do papel, além de cortes, vincos e encadernação.
O trabalho a traço é qualquer forma de impressão reproduzida com uma cor plana, onde há
uma uniformidade de toda a área impressa, sem variação de tom ou densidade. Pode ser, continua
Haslam, formado de áreas sólidas/chapadas, pontos ou linhas.
93
Tom é a quantidade de preto em uma imagem, uma vez que quanto mais denso é o tom, mais
tinta será utilizada na reprodução. Já o meio-tom contém tons além do branco-e-preto. As retículas
servem para reprodução de tons ou meio-tons em imagens e texto, sendo que a reticulagem digital
subdivide a imagem a ser reproduzida em milhares de pontos. Quanto mais finas as retículas, mais
suave será a gradação das cores, além disso, as retículas são inclinadas, de maneira que o leitor não
percebe a grade de pontos.
Haslam também ressalta que o sistema de cores que mais é utilizado na indústria gráfica é o
sistema Pantone (PMS). Esse sistema oferece centenas de cores compostas a partir de oito cores
mais o branco. O sistema também compreende cores pastéis reais, em vez de combinações de
retículas, assim como metálicas e envernizadas. As cores podem ser usadas em trabalhos
94
monocromáticos ou combinadas em bicromias8, sendo que podem ser igualadas com as cores de
escala (em porcentagem de CMYK9
Para a pré-produção, também são considerados os efeitos de impressão, que podem ser
trabalhados desde a impressão simples, até a sobreposição de cores CMYK chapadas ou de cores
especiais (metálica, verniz localizado ou impermeabilizante). Também pode ser trabalhada a
justaposição de cores planas, a mistura de cores e tons, o efeito vazado (onde o texto é em branco, ou
seja, não é impresso, e o fundo é a impressão de cor), entre outros efeitos.
).
Haslam (2007, p. 182) acrescenta ainda que:
8 Segundo Haslam (2007, p. 171) “as impressoras modernas podem imprimir dez ou mais cores em uma única passada. Os trabalhos em quadricromia impressos em máquinas monocolores ou bicolores obrigam o impressor a garantir que as cores sejam posicionadas em registro para não comprometer a qualidade final”.
9 Lupton (2008, p. 76) explica que o CMYK é o conjunto de cores utilizado por impressoras a jato de tinta e a laser, bem como pelo equipamento de impressão offset comercial, geralmente empregado na impressão de livros. O ciano, o magenta, o amarelo e o preto (CMYK) são conhecidos como process colors, e a impressão que utiliza as quatro cores é chamada de quadricromia. Lupton (2008, p. 77) ainda sublinha que “não importa o modelo de cor que seu programa esteja usando, se você vê a imagem na tela é RGB, se você a vê impressa é CMYK”. Vale acrescentar que RGB (vermelho, verde e azul) trabalha como um sistema aditivo de cores, já o CMYK é um sistema subtrativo.
95
Nossos olhos podem perceber cerca de 10 milhões de cores e isso é mais que qualquer dispositivo de separação de cores pode conseguir ou qualquer processo de impressão pode reproduzir. A gama de RGB é muito mais ampla que a gama de CMYK. O sistema Pantone sabendo das limitações do CMYK, introduziu duas cores a esse sistema, o laranja e o verde, e o chamou de Hexachrome. Ele expandiu significativamente o alcance do CMYK e é encontrado nos programas de editoração QuarkXPress e InDesign.
Ao concluir a avaliação de traço e tom, cores e efeitos de impressão, é realizada uma prova
para verificar se todos os elementos do trabalho estão posicionados corretamente, para então
encaminhar o projeto para impressão. Haslam (2007, p. 185) explica que os processos se encaixam
em dois grupos: “provas úmidas, nas quais são impressas as quatro cores da escala exatamente no
mesmo papel que será utilizado no processo final e provas secas, que produzem uma amostra precisa
em papel fotográfico ou em papel para reprodução digital”.
Segundo o autor, geralmente são usadas provas secas para a reprodução parcial do trabalho,
pois se for necessária uma reprodução completa, as provas úmidas provavelmente serão mais
econômicas. As provas secas permitem verificar o alinhamento, o registro, os bendays (aplicação de
96
retícula no fundo ou em partes de um trabalho gráfico) e os meios-tons, mas não indicam tão
precisamente as cores como as provas úmidas.
Quanto às características do papel, pode-se observar: o formato (dimensões), a gramatura
(peso), o corpo (espessura), o sentido da fibra, a opacidade (quantidade de luz que passa através da
folha), o acabamento (como o tipo de papel se comporta com cortes, vincos e impressão escolhida) e
a cor.
Enfim, após a revisão das provas, é confeccionado um boneco ou prova bruta, o qual se refere
ao agrupamento das páginas de modo que todo o conteúdo possa ser verificado em conjunto. O
boneco é refilado no formato final da obra, impresso no papel selecionado por fim, mas não
necessariamente segue a sequência de capítulos, geralmente não possui mais de 16 páginas. Serve
para visualizar a idéia geral do conteúdo do livro, do estilo de redação, do layout e da qualidade de
produção.
97
3.3.2 Impressão
Haslam (2007, p. 210) aponta os
processos de impressão agrupados em
quatro tipos (Figura 09):
Impressão em Relevo/origem da tipografia: a tinta é
depositada na superfície em alto-relevo de uma
fôrma ou de um clichê e é transferida para o papel
que é pressionado sobre ela (Figura 10).
Compreende a xilografia, a linoleografia e a
tipografia.
Figura 09 – Matrizes de impressão, respectivamente: relevografia (tipografia e flexografia), planografia (rotogravura e tampografia),
encavografia (offset e colotipia) e permeografia (serigrafia) Fonte: http://galolaranja.wordpress.com/producao-grafica/, 2010
Figura 10 – Impressão em relevo Fonte: HASLAM, 2007
98
Impressão Planográfica/origem do offset: a tinta é
depositada na superfície seca de uma chapa, onde se
localizam os grafismos, mas não nas áreas
umedecidas por um rolo, área de contragrafismos, e,
então, é pressionado o papel contra essa superfície
para receber a impressão (Figura 11). Compreende a
litografia, origem do offset (Figura 12).
Figura 11 – Impressão planográfica Fonte: HASLAM, 2007
Figura 12 – Impressora offset Fonte: HASLAM, 2007
99
Impressão de Entalho/origem da rotogravura: a
tinta preenche células abaixo da superfície da
matriz, a racle passa sobre essa superfície
deixando a tinta nas células e, então, o papel é
pressionado drenando a tinta (Figura 13).
Origem da rotogravura.
O processo da rotogravura (Figura 14) se dá da seguinte
maneira:
As impressoras rotogravura são geralmente alimentadas com bobinas. O papel é puxado e contata a superfície do cilindro. O cilindro gravado gira parcialmente imerso na tinta e passa sob a racle, que raspa o excesso de tinta da superfície. O rolo de contrapressão pressiona o papel contra a superfície dos cilindros, para realizar a impressão. (HASLAM, 2007, p. 216)
Figura 13 – Impressão de entalho Fonte: HASLAM, 2007
Figura 14 – Rotogravura Fonte: HASLAM, 2007
100
Impressão de Estêncil/serigrafia: a tinta é
forçada a passar através de uma tela para o
papel. A quantidade de tinta impressa é muito
maior que nos demais processos, por isso a
saturação e a vivacidade das cores têm grande
apelo (Figura 15). Compreende a serigrafia.
Este projeto propõe a utilização da serigrafia pela excelente qualidade de impressão. Contudo, a
impressão serigráfica é para o caso da produção em série; para o protótipo foi utilizada a impressão a
laser, feita por uma gráfica digital.
Figura 15 – Impressão de estêncil Fonte: HASLAM, 2007
101
3.3.3 Acabamento
Haslam (2007) comenta que alguns designers e editores têm
demonstrado interesse pela encadernação manual tradicional e, segundo
o autor, os processos mecânicos têm se desenvolvido para reproduzir o
acabamento manual.
O processo se dá basicamente da
seguinte maneira: posterior à impressão do
material, é realizada a dobra das folhas
(Figura 16), transformando-as em cadernos,
na sequência é feito o alceamento (Figura
17), cujos cadernos dobrados são reunidos
na ordem correta. As marcas de alceamento
formam uma pequena barra na lombada dos
cadernos, facilitando a verificação da ordem e
Figura 16 – Dobra Fonte: HASLAM, 2007
Figura 17 – Alceamento Fonte: HASLAM, 2007
102
da quantidade de cadernos. Os cadernos do livro são unidos, então, por
uma costura (Figura 18), sendo que a matriz de costura vertical passando
em torno dos fios horizontais evita o movimento das folhas em qualquer
direção. Vale ressaltar que devem ser feitos rebaixos na lombada do livro
para os fios ou cadarços que conectam os
cadernos.
Então, o livro é refilado (Figura 19)
com uma guilhotina na frente, no pé e na
cabeça, sendo que os cortes podem ser
decorados ou coloridos. Caso o livro seja
encadernado à mão, a colagem (Figura 20) é
feita anterior ao refile. O adesivo que reforça a encadernação é aplicado
na lombada do livro. O cartão mais utilizado na formação da capa dura é o
cartão cinza. O papelão tem a superfície lisa, mas é poroso, permitindo
uma boa fixação do adesivo à superfície. O autor sublinha a importância
Figura 18 – Costura Fonte: HASLAM, 2007
Figura 19 – Refilamento Fonte: HASLAM, 2007
103
de ele não ser à base d’água e de ser aplicado uniformemente para
evitar que o papelão empene. As guardas são coladas entre a capa dura
e o bloco do livro, fazendo sua integração. São geralmente em papel
mais pesado que o usado no miolo e preferencialmente de papel não-
revestido. Por fim, é realizada a montagem da capa (Figura 20) com um
material de revestimento (Figura 21). Se o
livro tiver nervuras, elas podem ser
desenhadas com prensas especiais ou
sulcadores. O livro é, então, colocado em
uma prensa para secar. Acrescenta Haslam
que quando essa etapa é executada por
máquinas é chamada de encapamento,
sendo que as máquinas são capazes de
encapar até 3000 livros por hora.
Figura 20 – Colagem Fonte: HASLAM, 2007
Figura 21 – Montagem da capa com material de
revestimento Fonte: HASLAM, 2007
104
Cabe acrescentar que o livro pode ser encadernado de diversas maneiras, como ilustrado na
Figura 22.
Figura 22 – Possibilidades de encadernação do livro
Fonte: FONTOURA, 2007
105
Para este projeto, optou-se por uma encadernação artesanal, formada de costuras e de
cadernos, similar à que foi abordada (detalhada no caderno B, p. 79-80), por possibilitar a estrutura do
produto final e por possuir a estética desejada.
106
3.4 Editora Parêntesis
A Parêntesis Design é uma microempresa situada em Curitiba que se divide em três grupos
distintos: Parêntesis Estúdio (ilustração, arte sequencial e animação); Parêntesis Design (web design,
identidade visual e design editorial) e Parêntesis Editora (editora voltada à literatura emergencial).
A parceria deste projeto é com a Parêntesis Editora, fundada em março de 2009 por Marcos
Beccari e atualmente administrada por Luendey Maciel. Segue um trecho do site da empresa:
O ato de ler transcende a percepção visual, sendo uma solidão compartilhada com um outro (o livro). Quem lê pode estar isolado, mas nunca está sozinho. O produto da Editora Parêntesis é a sensação gerada por este outro, configurado em um objeto de conhecimento tácito. Tudo que pode ser dito deve ser dito claramente; aquilo que não se pode falar deve ser lido ou escrito. As palavras organizadas de maneira diversa compõem um sentido diverso, sendo o nosso princípio a composição dos sentidos de maneira diversa para se produzir sensações diferentes. (PARÊNTESIS, 2009, s/p)
Em “produzir sensações diferentes” por meio da composição de sentidos reside um dos
objetivos da empresa, que vai ao encontro deste trabalho, cujas principais referências de construção
são livros-de-artista/livros-objeto, acrescentados das investigações sobre não-senso, que declaram
107
incansavelmente a multiplicidade de sentidos, e das investigações sobre desejo-paixão-amor que, do
mesmo modo, contribuíram densamente para a construção do projeto.
É nítida a afinidade que este projeto possui com a editora, sendo esse fator sublinhado como
motivo de uma parceria agradável e naturalmente conduzida. Vale acrescentar que a editora se
manteve sempre à disposição, sendo realizadas inúmeras conversas por e-mail e por telefonema,
diálogos que compreendiam também os conceitos do projeto, além dos fatores técnicos que
envolveram a produção do livro.
Segundo Beccari (2010),
responsável da empresa pela parceria com
este TCC, “o funcionamento interno da
Parêntesis acontece como em um coletivo
de design, dando ênfase a serviços
editoriais, ilustração e produção
intelectual”.
Figura 22 – Peça Gráfica “Arte Emergencial” Fonte: PARÊNTESIS DESIGN
108
Beccari cita como os dois projetos mais reconhecidos do grupo Parêntesis o manifesto “Arte
Emergencial” (Figuras 22, 23 e 24), junho de 2009, e a Graphic Novel10
10 Uma Graphic Novel é, basicamente, uma história desenvolvida por meio de arte sequencial que possui diferenças subjetivas das histórias em quadrinho.
“DASEIN: o ser e a essência”
(Figuras 25, 26 e 27), também em 2009.
Figuras 23 e 24 – Produtos “Arte Emergencial” Fonte: PARÊNTESIS DESIGN
109
Ambos os projetos dão continuidade aos
trabalhos independentes dos integrantes da empresa
iniciados durante a faculdade (UFPR e UTFPR),
divulgados em eventos estudantis e congressos
Figura 26 – Graphic Novel1 “DASEIN: o ser e a essência” Fonte: PARÊNTESIS DESIGN
Figura 25 – Graphic Novel1 “DASEIN: o ser e a essência” Fonte: PARÊNTESIS DESIGN
110
acadêmicos. Beccari ainda coloca que o
grupo Parêntesis faz parte de uma “nova
geração de designers que preza por uma
expressividade autoral e pela pesquisa em
design”. Ele explica que pelo caráter
científico e por possuir alguns trabalhos
finalistas em concursos da área, o grupo
Parêntesis têm se focado em projetos
desenvolvidos em parcerias com
universidades e instituições de apoio à
pesquisa em Curitiba.
A proposta da Editora Parêntesis é
de “produzir, distribuir, fomentar e confeccionar livros de literatura, arte e design em edições semi-
industriais e de baixa tiragem, dando ênfase ao produto final enquanto um artefato de leitura”
(BECCARI, 2010). Ele acrescenta que há também um interesse de, esporadicamente, trabalhar com
Figura 27 – Graphic Novel1 “DASEIN: o ser e a essência” Fonte: PARÊNTESIS DESIGN
111
produção teórica alternativa, isto é, “à margem dos sistemas e do alarde do mercado”. Seguem
algumas questões sobre o funcionamento da Editora Parêntesis, por Beccari (2010):
O que eu tenho que fazer para publicar um livro pela Editora Parêntesis?
A Editora Parêntesis é apenas uma das atividades de um grupo de designers que apreciam o ramo editorial, sem pretensões comerciais. Assim, a maior parte de nossas publicações é de autoria do próprio grupo, embora estejamos abertos para propostas que sigam nossa linha editorial. Quando um original nos é enviado, o colegiado avalia o projeto e, em caso de aceite, elabora-se um orçamento contendo todas as etapas necessárias para a publicação.
Como é o processo de produção de um livro na Editora Parêntesis? Uma vez negociadas as formas de pagamento pela prestação de serviço, a primeira etapa do processo envolve o próprio autor do livro, um designer responsável pelo projeto gráfico e um revisor contratado pela editora. Através do diálogo e de um movimento contínuo de revisões e correções, o objetivo é produzir os arquivos finais para impressão. Feito isso, o processo é deixado nas mãos da editora que, por sua vez, registra a obra (publicação em si) e inicia a produção dos livros, desde a aquisição dos materiais até a impressão e acabamento dos exemplares, geralmente em serigrafia e costura artesanal. Por fim, a etapa final abrange a divulgação e distribuição da tiragem produzida, geralmente promovendo um lançamento ou pré-venda em alguns eventos selecionados.
112
Qual a linha editorial da Editora Parêntesis? Como temos preferência por tiragens baixas e semi-artesanais, prezamos pela qualidade do conteúdo aliada a um seleto projeto gráfico. Os temas não são, a princípio, restritos: embora haja uma preferência pela literatura “emergencial”, isto é, de autores até então desconhecidos que não possuem grandes pretensões com suas obras, qualquer temática pode ser contemplada desde que promova algum tipo de reflexão sobre, pelo menos, o próprio livro.
A Editora Parêntesis também publica e-books? Sim, passando pelo mesmo processo de avaliação, com a única diferença de custos reduzidos para a produção. Estamos ainda estudando o meio virtual, através de experimentos e pesquisas, com o intuito de identificar as possibilidades de subversão e metalinguagem dessa mídia emergente. A princípio, porém, não temos uma plataforma para a divulgação e venda de obras digitais contando apenas com o Clube de Autores (www.clubedeautores.com.br) e com o Issuu (www.issuu.com/editoraparentesis) para sistematizar temporariamente nossa produção virtual.
Como o autor ganha dinheiro com sua obra? Durante o processo de publicação, naturalmente, teremos em mãos todos os custos envolvidos na impressão e na mão-de-obra editorial. Mas o valor dos direitos autorais é concedido restritamente ao autor do livro, sem participação da Editora nos lucros. É nesta etapa que o autor deverá estipular por conta própria a sua margem de ganho por venda. Evidentemente, a Editora retém uma parte dos direitos autorais para fins catalográficos, mas não trabalha com nenhum tipo de exclusividade comercial. No caso de pseudônimos, a Editora se responsabiliza pelo sigilo de identidade, mas exige o contato com o autor original. Somente assim podemos evitar qualquer empecilho aos
113
direitos autorais. O pagamento das vendas é efetuado sempre no quinto dia útil do mês subsequente ao que registrar o acúmulo do montante mínimo de R$ 100,00 a receber, sendo efetuado via transferência bancária.
Como a Editora Parêntesis divulga e distribui os livros publicados? A divulgação oferecida é restrita ao alcance do profissional de design, área de atuação de todos os membros do conselho editorial, auxiliando assim, na medida do possível, o próprio autor a divulgar os seus livros. Do mesmo modo, nossa distribuição é local (Curitiba/PR), contando com alguns parceiros como Livrarias Curitiba, loja Itiban Comics, Livraria Joaquim e Livraria do Chain, além da distribuição via internet sob o processo de encomenda.
Como o livro é “oficialmente” publicado? O caminho mais seguro e tradicional é por meio de um ISBN: “o International Standard Book Number é um sistema internacional padronizado que identifica numericamente os livros segundo o título, o autor, o país, a editora, individualizando-os inclusive por edição. Utilizado também para identificar software, seu sistema numérico é convertido em código de barras, o que elimina barreiras linguísticas e facilita a sua circulação e comercialização.11
11 Referência do autor: Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: <http://www.bn.br/>.
”. Trata-se, portanto, de uma forma de catalogar livros – mas não acreditamos que isso define o que é e o que não é uma obra literária, mas sim o próprio conteúdo da mesma. Por mais que não seja obrigatório ter um ISBN, é aconselhado: o processo de registro não é cobrado pela editora e a principal
114
importância é facilitar que uma obra seja encontrada e distribuída (alguns pontos de venda só aceitam livros com ISBN). Da mesma forma, aconselha-se também a confecção de uma ficha-catalográfica, sendo este serviço feito pela Câmara Brasileira do Livro (no caso dos livros da Editora Parêntesis). Um dos meios alternativos de publicação é através do Cretive Commons, sendo que é possível registrar qualquer obra gratuitamente e de modo independente pelo próprio autor através do site <http://creativecommons. org/choose/>. Neste caso, porém, não há propriedade financeira sobre os direitos autorais (qualquer um pode reproduzir o conteúdo da obra), mas a autoria ainda é mantida. Contra a aplicação clássica das normas de Propriedade Intelectual, também há o recurso do Copyleft, uma forma de usar a legislação de proteção dos direitos autorais com o objetivo de retirar barreiras à utilização, difusão e modificação de uma obra. Na prática, trata-se do registro de um domínio público, mantendo ainda os créditos da autoria.
Por fim, apresentam-se mais alguns de seus produtos (Figuras 28-38), tanto para contextualizar
o leitor no âmbito de produção da editora quanto para registrar como referencial de qualidade
estrutural e gráfica para o projeto.
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Figuras 28 e 29 – “Ser é aquilo que se perde”, de Marcos Beccari Fonte: PARÊNTESIS DESIGN, 2010
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Figura 30 – “O livro dos seres imaginários”, de Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero Fonte: PARÊNTESIS DESIGN, 2010
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Figuras 31, 32, 33 e 34 – “Aquilo que se vê” e “Palavras Verbicobisuais Cafonicistas”, de Marcos Beccari Fonte: PARÊNTESIS DESIGN, 2010
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Figura 30 – Banda “Wandula” Fonte: PARÊNTESIS DESIGN, 2010