Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade
Associada ao programa de pós-graduação PROFLETRAS
da UPE-Garanhuns
N.° 15 - ESPECIAL - 2015 - ISSN: 2236-1499.
UPE/Garanhuns - PE – Brasil
D.O.I: 10.13115/2236-1499
ANAIS DO
VOLUME I
AUTORES DE A a E
11 a 14 de maio de 2015
Universidade de Pernambuco – UPE
Campus Garanhuns
Ficha catalográfica
REVISTA DIÁLOGOS, n.° Especial 15 - III Encontro Nacional e II Encontro Internacional de
Literatura e Lingüística da Universidade de Pernambuco (UPE), 3 vols, campus Garanhuns.
(2015, Garanhuns, PE). Vol. I
Anais (recurso eletrônico) / III Encontro Nacional e II Internacional de Literatura e
Lingüística da Universidade de Pernambuco (UPE), 11 a 14 de Maio de 2015 – Garanhuns,
PE, UPE.
Disponível em: www.revistadialogos.com.br/anais
1. Letras – eventos 2. Lingüística 3. Literatura 4. Teoria Literária
ISSN: 2236-1499
CDU 869.0(81)
CDD B869
UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO - UPE
Campus Garanhuns
REITOR
Prof. Dr. Pedro Henrique de Barros Falcão
VICE-REITORA
Profª. Drª. Maria do Socorro de Mendonça Cavalcante
DIRETOR
Prof. Dr. Cloves Gomes da Silva Junior
VICE-DIRETORA
Profª. Ms. Rosângela Falcão
COORDENADORA DO CURSO DE LETRAS
Profª. Drª. Jaciara Josefa Gomes
VICE-COORDENADORA DO CURSO DE LETRAS
Profª. Ms. Dirce Jaeger
COMITÊ DE ORGANIZAÇÃO
COORDENADORA
Profª. Drª. Silvania Núbia Chagas (UPE)
COMISSÃO ORGANIZADORA
Prof. Esp. Anderson de Souza Frasão (UFS)
Prof. Dr. Benedito Gomes Bezerra (UPE)
Profª. Ms. Dirce Jaeger (UPE)
Prof. Dr. Elcy Luiz da Cruz (UPE)
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Profª. Drª. Jaciara Josefa Gomes (UPE)
Prof. Dr. Jairo Nogueira Luna (UPE)
Prof. Esp. José Aldo Ribeiro da Silva (UEPB)
Profª. Drª. Maria das Graças Ferreira (UPE)
Profª. Drª. Silvania Núbia Chagas (UPE)
COMISSÃO CIENTÍFICA
Profª. Drª. Ana Mafalda Leite (Universidade de Lisboa)
Prof. Dr. Carlos Reis (Universidade de Coimbra)
Profª. Drª. Jeane de Cássia Nascimento Santos (UFS)
Prof. Dr. Júlio Araújo (UFC)
Prof. Dr. Luiz Costa Lima (UERJ)
Profª. Drª. Rosângela Sarteschi (USP)
COMISSÃO EDITORIAL
Prof. Dr. Benedito Gomes Bezerra (UPE)
Prof. Dr. Jairo Nogueira Luna (UPE)
Profª. Drª. Silvania Núbia Chagas (UPE)
APOIO
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível superior – CAPES
Fundação de Amparo à Ciência e atecnologia do Estado de Pernambuco – FACEPE
SUMÁRIO
VOLUME I
PRÁTICAS DE LETRAMENTO: A LEITURA DELEITE COMO PROCEDIMENTO
ESTRATÉGICO NA FORMAÇÃO DE LEITORES.........................................................
Abda Alves Vieira de Souza (UFAL)
Maria Auxiliadora da Silva Cavalcante (UFAL)
23
GÊNEROS DIGITAIS E ENSINO DE LITERATURA: UMA EXPERIÊNCIA DE
LETRAMENTO LITERÁRIO............................................................................................
Adriana Nunes de Souza (IFAL/UFAL)
30
ESTUDO DELEUZIANO DE LITERATURA CONTEMPORÂNEA: LITERATURA
MENOR E AGENCIAMENTO EM ANTÓNIO LOBO ANTUNES E
FERRÉZ..............................................................................................................................
Adriano Carlos Moura (IFF)
40
O FILME DENTRO DO FILME. TEATRO, TV E CINEMA: UM ESTUDO SOBRE A
METALINGUAGEM EM “LISBELA E O PRISIONEIRO”, DE OSMAN LINS............
Adriano Siqueira Ramalho Portela (UFPE)
50
MUXE MARAVILHA E MULHER DEPOIS: DA GRAPHIC NOVEL À POESIA,
IDENTIDADE DE GÊNERO EM ANGÉLICA FREITAS...............................................
Ágatha Costa Salcedo (UFAL)
59
DECORAR OU APRENDER NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM.................
Alaíde Marie Correia Barros (IFAL)
Nádia Mara da Silveira (IFAL)
67
OS GÊNEROS DIGITAIS NO ENSINO DE LÍNGUA DE MATERNA..........................
Albanyra dos Santos Souza (UFRN/CERES/DCSH)
74
ORALIDADE E ARGUMENTAÇÃO EM FOCO: UMA EXPERIÊNCIA DIDÁTICA
COM O GÊNERO TEXTUAL JÚRI SIMULADO............................................................
Alberto Felix da Hora (UPE)
86
POEMAS TIRADOS DE NOTÍCIAS, MAPAS, TABELAS... E OUTROS GÊNEROS
JORNALÍSTICOS: PROCEDIMENTOS LÚDICOS EM AULAS DE LITERATURA...
Alberto Roiphe (UFS)
98
INTERPRETANDO EM CONTEXTOS: UMA ANÁLISE DA PRESSUPOSIÇÃO
DISCURSIVA NO GÊNERO “FRASES”..........................................................................
Aleise Guimarães Carvalho (S.E.E.-PB)
108
Alessandra Magda de Miranda (S. E.E.- PB)
A ESCRITA DEMOCRÁTICA E RUMOREJANTE DE UMA NOVELA
NACIONAL, EM A BICICLETA QUE TINHA BIGODES: ESTÓRIAS SEM LUZ
ELÉTRICA..........................................................................................................................
Alice Botelho Peixoto (PUC Minas. CAPES)
119
A PRODUÇÃO DE TEXTOS EM SALA DE AULA: UM PROCESSO DE
RETEXTUALIZAÇÃO......................................................................................................
Aline Peixoto Bezerra (UERN)
131
A PALATALIZAÇÃO DAS OCLUSIVAS ALVEOLARES E A VARIÁVEL IDADE
EM MACEIÓ – AL.............................................................................................................
Almir Almeida de Oliveira (UFAL)
143
UTILIZANDO A MULTIMODALIDADE EM COMUNIDADE REMANESCENTE
QUILOMBOLA: NOVOS DESAFIOS?............................................................................
Aluizio Lendl-Bezerra (URCA/UERN)
Marcos Nonato de Oliveira (UERN/CAMEAM)
155
ESPELHAMENTOS IMPERFEITOS: OS REFLEXOS ENTRE OS
PERSONAGENS................................................................................................................
Amador Ribeiro Neto (UFPB)
Rafael Torres Correia Lima (UFPB)
164
CARPENTIER E A MÚSICA: ENTRE SONATAS, ROMANCES E ENSAIOS.............
Amanda Brandão Araújo Moreno (UFPE)
176
PRÁTICAS DE LETRAMENTO NOS ANOS INICIAIS: A FORMAÇÃO DE
LEITORES ATRAVÉS DO MOMENTO DA LEITURA DELEITE................................
Amara Rodrigues de Lima (SEEL – Recife)
184
METADE ROUBADA AO MAR, METADE À IMAGINAÇÃO:A CIDADE DO
RECIFE POR CARLOS PENA FILHO..............................................................................
Amarino Oliveira de Queiroz (UFRN)
189
DIALOGISMO INTERDISCURSIVO E INTERLOCUTIVO: COMENTÁRIOS
ONLINE NO FACEBOOK..................................................................................................
Ana Carolina A. de Barros (UFPE)
199
O CONCEITO DE GÊNEROS TEXTUAIS NO ENSINO MÉDIO: O QUE DIZEM OS
LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA?....................................................
Ana Cátia Silva de Lemos
Maria Margarete Fernandes de Sousa
211
O PAPEL DA TEORIA BAKHTINIANA NO CONCEITO DE LÍNGUA NA
CONTEMPORANEIDADE................................................................................................
Ana Cláudia Soares de Paiva (UNICAP)
222
QUESTÕES DE MULTIMODALIDADE EM CONTEXTO ESCOLAR: DESAFIOS
DO TRABALHO COM A IMAGEM.................................................................................
Ana Cláudia Soares Pinto (UFPB)
230
A PESQUISA EM METACOGNIÇÃO PARA UM ESTUDO DO GÊNERO
CRÔNICA NO ENSINO FUNDAMENTAL.....................................................................
Ana Lúcia Farias da Silva (UFRRJ)
239
LÍNGUA DISCURSIVA [E FORMAS DE VIDA] NOS MANUSCRITOS DE
SAUSSURE.........................................................................................................................
Ana Paula El-Jaick (UFJF)
250
DA LIBERDADE MASCULINA: REFLEXÕES SOBRE KAREN BLIXEN E ELENA
FERRANTE........................................................................................................................
Ana Paula Raposo (UFMG)
256
O USO DOS PROCESSOS EM TEXTOS LITERÁRIOS SOB A ÓTICA DA
LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL: UMA ANÁLISE DA VOZ DO
NARRADOR E DAS PERSONAGENS EM CONTOS MODERNISTAS.......................
Anderson de Santana Lins (CELLUPE -UPE)
Maria do Rosário B. da S. Albuquerque (CELLUPE -UPE)
266
GUERREIRO DO POVO BRASILEIRO? CONTRADIÇÕES,
DES/CONTRA/IDENTIFICAÇÃO, RESISTÊNCIA E MEMÓRIA NO DISCURSO
SOBRE EDUARDO CAMPOS..........................................................................................
André Cavalcante (UFPE)
277
POESIA E MITO EM LUCILA NOGUEIRA....................................................................
André Cervinskis (UFPE)
287
O ENUNCIADO COMO ZONA DE DIÁLOGO ENTRE VOZES E VALORES: UMA
ANÁLISE DA CONSTITUIÇÃO JORNALÍSTICAS DA IMAGEM DE EDUARDO
CAMPOS NO PERÍODO PRÉ E PÓS MORTE................................................................
Andre Cordeiro dos Santos (UFPE)
294
O LIVRO DE LITERATURA INFANTIL NA SALA DE AULA: UM OLHAR PARA
A ESCOLHA FEITA PELO PROFESSOR DA EDUCAÇÃO INFANTIL E DO 1º
ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL...............................................................................
Andressa Silvestre Teixeira (UFRPE/UAG)
Leila Nascimento da Silva (UFRPE/UAG)
305
PEDRAS SOBRE RIOS: O LUGAR DO CORPO EM RAKUSHISHA DE ADRIANA
LISBOA...............................................................................................................................
Anne Louise Dias (PósLit/TEL/UnB)
317
A VOZ QUE AGORA FAL(H)A, OU A MEMÓRIA DE PORTUGAL NO CORPO
DO LIVRO E DO VELHO: UM ESTUDO SOBRE A MÁQUINA DE FAZER
ESPANHÓIS, DE VALTER HUGO MÃE.........................................................................
Annie Tarsis Morais Figueiredo (UEPB/PPGLI)
327
O “ESPELHO BAÇO E ESCURECIDO”: REFLEXÕES SOBRE A OBRA A HORA
DA ESTRELA.......................................................................................................................
Antonia Gerlania Viana Medeiros (UERN)
Roniê Rodrigues da Silva (UERN)
336
O ENSINO DE PRODUÇÃO DE TEXTO À LUZ DA CONCEPÇÃO DE ESCRITA
INTERACIONAL...............................................................................................................
345
Antonia Maria de Freitas Oliveira (UFRN)
INCONSCIENTE E SIMBÓLICO EM PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM..................
Antonielle Menezes Souza (UFS)
Marcio Carvalho da Silva (UFS)
355
O USO DOS SINAIS DE PONTUAÇÃO COMO MARCAS DISCURSIVAS................
Antonio Cesar da Silva (UFAL/UNEAL)
Cleide Calheiros da Silva (UFAL/IFAL)
363
O HUMOR INTRANQUILO DE ANDRÉ SANT’ANNA................................................
Ari Denisson da Silva (UFAL/IFAL)
375
A CASA DOS BUDAS DITOSOS: OS LIMITES DA IRREVERÊNCIA...........................
Arturo Gouveia (UFPB)
383
A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO AUTORAL NAS OBRAS DE VIRGINIA
WOOLF: O ENSAIO COMO FORMA LITERÁRIA E ESTRATÉGIA DE
EMPODERAMENTO DA AUTORIA FEMININA...........................................................
Asenati Araújo de Melo (UNEB)
Juliana C. Salvadori (UNEB)
392
USOS DA LÍNGUA(GEM) NA INTERNET: O QUE ESTUDANTES DE
GRADUAÇÃO PENSAM SOBRE AS PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA NA
COMUNICAÇÃO VIA DISPOSITIVOS MÓVEIS?.........................................................
Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)
Amanda Cavalcante de Oliveira Ledo (UFPE)
401
O MEDO E A FÚRIA ― MOVIMENTOS DE UMA POÉTICA DA PARTICIPAÇÃO.
Bianca Campello Rodrigues Costa (UFPE)
Bruno Eduardo da Rocha Brito (UFPE)
413
ENSINO DE ANÁLISE LINGUÍSTICA: REFLEXÕES DE BASE
SOCIOINTERACIONISTA................................................................................................
Bruna Bandeira (UFPE)
423
AS VOZES DISCURSIVAS NO DEPOIMENTO DE PEDRO BARUSCO NA CPI DA
PETROBRAS......................................................................................................................
Brwnno Gabryel de Araújo Silva (UFPE)
Rosilene Felix Mamedes (UFPB)
435
A PERSONAGEM LIA DE MELO, DO ROMANCE AS MENINAS, DE LYGIA
FAGUNDES TELLES, COMO RESISTÊNCIA FEMININA À DITADURA MILITAR
Caio Victor Lima Cavalcanti Leite (UPE)
Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)
446
A INTEGRAÇÃO IBERO-AMERICANA: O DISCURSO A FAVOR DE UMA
IDENTIFICAÇÃO..............................................................................................................
Camila da Silva Lucena (PPGL/UFPE)
455
AS MISSIVAS DA IMPRENSA NORTISTA: RETRATOS LITERÁRIOS DA SECA..
Camila M. Burgardt (UFPB)
465
O REGRESSO AO PASSADO E AS RAÍZES MÍTICAS NA OBRA O SÉTIMO
JURAMENTO......................................................................................................................
Camilla Rodrigues Protetor (UPE)
Amara Cristina de Silva e Barros Botelho (UPE)
477
NARRATIVAS HOMOERÓTICAS NOS COMPÊNDIOS DE HISTÓRIA
LITERÁRIA BRASILEIRA...............................................................................................
Carlos Eduardo Albuquerque Fernandes (UFRPE/UFPB)
487
A METACOGNIÇÃO NA LEITURA E AS INFERÊNCIAS SOCIOCULTURAIS:
UMA EXPERIÊNCIA COM ACADÊMICOS DO CURSO DE TURISMO DA
UNEB..................................................................................................................................
César Costa Vitorino (UNEB/FVC)
498
SOBRE O SAGRADO E O PROFANO EM BALADA DE SANTA MARIA
EGIPCÍACA, DE MANUEL BANDEIRA.........................................................................
Cícero Émerson do Nascimento Cardoso (UFPB)
509
DE GÊNESIS A SHAKESPEARE: MISTICISMO E SIGNIFICAÇÃO DO NÚMERO
SETE....................................................................................................................................
Clara Mayara de Almeida Vasconcelos (UFPB)
Eveline Alvarez dos Santos (UEPB)
519
ENSINO, ESCRITA E AUTORIA: A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO-AUTOR NO
CONTEXTO ESCOLAR....................................................................................................
Cleide Calheiros da Silva (UFAL/IFAL)
Antonio Cesar da Silva (UFAL/UNEAL)
528
FERDINAND DE SAUSSURE E EUGÊNIO COSERIU: PROPOSIÇÕES SOBRE O
TEXTO................................................................................................................................
Clemilton Lopes Pinheiro (UFRN)
540
DISCURSO E IDENTIDADE: ASPECTOS DA CONSTRUÇÃO POÉTICA EM
PATATIVA DO ASSARÉ..................................................................................................
Dalva Patricia de Alencar (URCA)
Romão Alisson de Almeida Morais (URCA)
551
FORMA E SUBSTÂNCIA: REFLEXÕES SOBRE LÍNGUA, ORALIDADE E
ESCRITA A PARTIR DE SAUSSURE E DE HJELMSLEV............................................
Dayanne Teixeira Lima (UFAL)
560
A EXPERIÊNCIA DO ENFRENTAMENTO NO ESPAÇO DA INTIMIDADE: UMA
LEITURA DO ROMANCE A PAIXÃO SEGUNDO G.H..................................................
Daysa Rêgo de Lima (PPGL/UERN)
571
DISCURSO CRONÍSTICO; IDEOLOGIA E MARGINALIZAÇÃO ÉTNICO-
RACIAL. REPRESENTAÇÕES DISCURSIVAS EM ACD – VAN DIJK E
ALTHUSSER......................................................................................................................
Dayvison Bandeira de Moura (UA-PY)
Cacilda Rodolfo de Andrade ( UA-PY)
Edair Gonçalves (IFECT-SP)
578
OS SERTÕES DE EUCLIDES DA CUNHA: RETRATO SÓCIOANTROPÓLOGICO
DO SERTANEJO NORDESTINO E DA GÊNESE DE ANTÔNIO CONSELHEIRO
COMO LÍDER MESSIÂNICO...........................................................................................
Deividy Ferreira dos Santos (UPE)
593
PROCESSO DE RETEXTUALIZAÇÃO EM SALA DE AULA: UM CAMINHO DE
APROPRIAÇÃO NA ESCRITURA DE GÊNEROS TEXTUAIS.....................................
Dennys Dikson (UFRPE/UFAL)
Wanessa Gomes Teixeira Maciel (UPE)
605
ANÁLISE DE GÊNEROS DA ESFERA JORNALÍSTICA NO CURRÍCULO DE
PORTUGUÊS PARA O ENSINO FUNDAMENTAL DO ESTADO DE
PERNAMBUCO.................................................................................................................
Diana Pereira Costa Alves (UPE)
Ecia Mônica Leite de Lima Freitas (UPE)
616
ENSINO DE LITERATURA EM WEBQUEST: O IMAGINÁRIO E O CRIATIVO
EM ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS..........................................................................
Diego Paulo da Silva (IFAL)
Nádia Mara da Silveira (IFAL)
628
ENTRE AS ESTRADAS QUE (NÃO) SE ABREM: TERRA SONÂMBULA,
LITERATURA E CINEMA................................................................................................
Diogo dos Santos Souza (UFAL)
Victor Mata Verçosa(UFAL)
639
FORMAÇÕES DISCURSIVAS E IDENTIDADE DO SUJEITO PROFESSOR EM
“QUE RAIO DE PROFESSORA SOU EU?”, DE FANNY ABRAMOVICH..................
Djamara Virgínia Ferreira da Rocha Silva (UFCG)
Aloísio de Medeiros Dantas (UFCG)
648
DE SELFIE A MINICONTO MULTIMODAL: ENSINO DE GÊNERO DIGITAL EM
SALA DE AULA................................................................................................................
Dorinaldo dos Santos Nascimento (UFS)
Vanusia Maria dos Santos Oliveira (UFS)
659
LACUNAS E DISTORÇÕES DO LIVRO DIDÁTICO “OFICINA DE
ESCRITORES”...................................................................................................................
Edilaine P. de Sousa (UPE)
Magna Kelly Sales (UPE)
670
VARIAÇÃO LINGUÍSTICA EM PERNAMBUCO: OCORRÊNCIAS LEXICAIS
PARA CIGARRO DE PALHA E TOCO DE CIGARRO.....................................................
Edmilson José de Sá (CESA)
684
O RISO IRÔNICO NA POESIA DE ANGÉLICA FREITAS............................................
Eduarda Rocha Góis da Silva (UFAL)
695
HISTÓRIAS DE RESISTÊNCIA: MEMÓRIA E IDENTIDADE NA LITERATURA
INFANTO-JUVENIL DE GRAÇA GRAÚNA E INALDETE PINHEIRO......................
Eidson Miguel da Silva Marcos (UFRN)
Amarino Oliveira de Queiroz (UFRN)
704
O MICROCONTO: UM PRODUTO DA ROMANCIZAÇÃO.........................................
Elias Coelho da Silva (UFPB)
713
A DESAGREGAÇÃO HUMANA EM MAÇÃ AGRESTE, DE RAIMUNDO
CARRERO..........................................................................................................................
Eliene Medeiros da Costa (UEPB)
725
A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM FEMININA EM LAÇOS DE FAMÍLIA, DE
CLARICE LISPECTOR......................................................................................................
Elizabete Sampaio Vieira da Silva (PPGEL/UNEMAT)
Elisabeth Battista (UNEMAT)
736
ENTRE LENDAS E GUARANÁS: O IMAGINÁRIO SIMBÓLICO
BRASILEIRO......................................................................................................................
Eliziane Navarro (PPGEL/UNEMAT)
Olga Maria Castrillon-Mendes (PPGEL/UNEMAT)
746
MAINHA, VOU NO SHOPPING: UM ESTUDO DA VARIAÇÃO DA LÍNGUA
NUMA PERSPECTIVA LINGUÍSTICA E GRAMATICAL............................................
Eloir Geneci Castro da Silva (UNICAP)
Carla Moreira de Paula (UNICAP)
756
A TÉCNICA MODERNA NA VISÃO DE HEIDEGGER: NOVAS PERSPECTIVAS
DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA NO CAMPO DA
LINGUAGEM.....................................................................................................................
Emmanuella Farias de Almeida Barros (UFPE)
764
AS GRAMÁTICAS E DICIONÁRIOS RENASCENTISTAS E O SABER
LINGUÍSTICO OCIDENTAL............................................................................................
Enézia de Cássia de Jesus (UFAL)
776
AS DANÇAS DA LINGUAGEM, OS CAMINHOS DE UMA LEITURA POÉTICA....
Érica Thereza Farias Abreu (UFPE)
781
CIUMENTO DE CARTEIRINHA, DE MOACYR SCLIAR – UM JOGO FICTÍCIO E
INTERTEXTUAL...............................................................................................................
Everaldo Bezerra de Albuquerque (UFAL/PPGLL)
790
A LEITURA DE TEXTOS LITERÁRIOS: UMA ABORDAGEM PEIRCEANA...........
Expedito Ferraz Júnior (UFPB)
798
VOLUME II
O NEOLOGISMO EM CANÇÕES DE GILBERTO GIL.................................................
Fabiana Vieira Barbosa (UFRPE/UAST)
Adeilson Pinheiro Sedrins (UFRPE/UAST)
804
OS SENTIDOS DO DISCURSO DO ENSINO PROFISSIONAL COMO ACESSO AO
EMPREGO NO BRASIL....................................................................................................
Fabiano Duarte Machado (PPGLL-UFAL)
816
O SAGRADO NA POESIA FEMININA DE ADÉLIA PRADO E DIVA CUNHA.........
Felipe Assis Araujo (UFRN/CERES)
828
SOBRE CIMENTO E SANGUE: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS
ENTRE O NOVO BRUTALISMO E A LITERATURA BRUTALISTA.........................
840
Felipe Benicio de Lima (PPGLL/UFAL)
TRADUÇÃO MULTIMODAL: ASPECTOS ESTRUTURAIS DE ASSASSIN’S
CREED................................................................................................................................
Felipe Cezar Menezes (UNEB)
Juliana Cristina Salvadori (UNEB)
Adolfo Paiva de Andrade (UNEB)
852
CONSIDERAÇÕES SOBRE O HIPER-REALISMO DE ANDRÉ SANT’ANNA..........
Felipe de Castro Cruz (UFPB)
Jéssica Rodrigues Férrer (UFPB)
863
TENDÊNCIAS DA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA......................
Felipe Vigneron Azevedo (IFF)
871
LITERATURA E NATUREZA EM MANOEL DE BARROS..........................................
Fernanda Bezerra de Aragão Correia (UFS)
883
“XANDRILÁ” SOB UM VIÉS SEMIÓTICO....................................................................
Flávio Passos Santana (UFS)
894
A PRESENÇA DOS GÊNEROS TEXTUAIS NAS QUESTÕES DE MATEMÁTICA
NO ANTIGO ENEM...........................................................................................................
Francielle Santos Araújo (UFS)
Fabíola dos Santos Lima (UFS)
906
RECLUSÃO E LIBERDADE NA TRAJETÓRIA FICCIONAL DE MAYOMBE............
Francigelda Ribeiro (UFMG)
Lila Léa Cardoso Chaves Costa (UFPI)
916
ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS: UMA ABORDAGEM INTERTEXTUAL E
MULTIMODAL DO GÊNERO..........................................................................................
Francilene Leite Cavalcante (UNICAP/IFAL)
Roberta Caiado (UNICAP)
924
O LETRAMENTO ACADÊMICO E O TRABALHO DOCENTE: OS CONFLITOS
VIVENCIADOS NA ELABORAÇÃO DE UM MATERIAL DIDÁTICO IMPRESSO
DA EAD..............................................................................................................................
Francineide Ferreira de Morais (UFPB\PROLING\GELIT)
936
RODAS DE CONVERSA COMO EVENTO DE LETRAMENTO PARA A
PRODUÇÃO E REFACÇÃO TEXTUAL NA EJA...........................................................
Francisca Aldenora Moreno Fernandes (UFRN)
Ana Maria de Oliveira Paz (PPgEL/UFRN)
948
O GÊNERO ENTREVISTA: UMA PROPOSTA DE RETEXTUALIZAÇÃO DA
FALA PARA A ESCRITA.................................................................................................
Francisca Fabiana da Silva (UFRN)
960
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ALGUMAS REFLEXÕES...............................
Francisco Canindé de Assunção (SABERES)
971
DO CORDÃO À WEB: O CORDEL-NOTÍCIA NA INTERNET..................................... 981
Francisco Leandro de Assis Neto (UEPB)
AS TRANSPARÊNCIAS DO TERROR............................................................................
Gabriel D. M. Moura Freitas (GELISC/CNPq/UFPB)
993
A UTILIZAÇÃO DO CONTO E SUAS IMPLICAÇÕES NAS PRÁTICAS DE
ESCRITA E REESCRITA DE TEXTOS EM SALA DE AULA.......................................
Gabriela Ulisses Fernandes (UNEAL)
1.002
A PERFOMANCE NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA DE MARCELINO
FREIRE...............................................................................................................................
Gérsica Cássia Ferreira Leite (UFPE)
1.011
ETHOS DO COTIDIANO FEMININO DE TEXTOS LITERÁRIOS DAS AUTORAS
CONTEMPORÂNEAS BRASILEIRAS IVANA ARRUDA LEITE E MARTHA
MEDEIROS.........................................................................................................................
Giovanna de Araújo Leite (BARÃO EAD - Ribeirão Preto/SP)
1.024
VOCÊ VIU TU, SENHOR? COMPETIÇÃO DE TRATAMENTO EM CARTAS DO
SERIDÓ E CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO...........................................................
Gisonaldo Arcanjo de Sousa (UFRN)
1.037
ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DA ANÁLISE DIALÓGICA DO DISCURSO À
LEITURA DE POEMAS LÍRICOS....................................................................................
Helio Castelo Branco Ramos (IFPE)
1.048
INTENCIONALIDADE LINGUÍSTICA NAS CAMPANHAS PUBLICITÁRIAS EM
OUT-DOORS NAS CIDADES DE OLINDA E RECIFE..................................................
Heloisa Pedrosa de Araújo (UFPE)
1.061
RESUMO DE LEITURA: UMA ANÁLISE DO DOMÍNIO DO DISCURSO
TEÓRICO À LUZ DO ISD.................................................................................................
Hermano Aroldo Gois Oliveira (UFCG/PÓS-LE)
1.070
A VOZ DO SILÊNCIO INDÍGENA: O EXERCÍCIO DO PODER IDEOLÓGICO
SOBRE A REPRESENTAÇÃO DE ATORES SOCIAIS..................................................
Ilka da Graça Baía de Araújo (UEG)
Gláucia Cândido Vieira (UFG/UEG)
1.083
GÊNERO E RELAÇÕES INTERÉTNICAS NA CONSTRUÇÃO FAMILIAR
AFRICANA EM O ALEGRE CANTO DA PERDIZ, DE PAULINA CHIZIANE.............
Ilka Souza dos Santos (UPE)
Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)
1.096
A ABORDAGEM SEMIÓTICA COMO MÉTODO PARA ENSINO DE ANÁLISE
DO TEXTO LITERÁRIO...................................................................................................
Ingrid Cruz do Nascimento (UFPB)
Dalva Sales Carvalho Cunha (UFPB)
1.109
O CURRÍCULO DE LÍNGUA PORTUGUESA COMO UM GÊNERO INSERIDO NO
CONTÊINER DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS..............................................................
Isabela Bastos de Carvalho (IFF/CEFET-RJ)
1.113
PLANO PLURIANUAL DE ALFABETIZAÇÃO NO SISTEMA PRISIONAL NO
ESTADO DE SERGIPE: APLICAÇÃO NO PROCESSO DE FORMAÇÃO INICIAL
DE ALFABETIZADORES E COORDENADORES DE TURMAS.................................
Isis Mota Rodrigues Dantas (SEED – Secretaria de Estado da Educação)
1.126
A VIDA ÍNTIMA DA MORTE SUBVERTIDA NA POÉTICA CONTEMPORÂNEA
DE HILDA HILST..............................................................................................................
Ivon Rabêlo Rodrigues (FAFIRE)
Edigar dos Santos Carvalho (UFPE)
1.140
REPRESENTAÇÕES LITERÁRIAS DA MILITÂNCIA POLÍTICA: NOS, OS DO
MAKULUSU, DE JOSE LUANDINO VIEIRA E UN FUSIL DANS LA MAIN, UN
POEME DANS LA POCHE, DE EMMANUEL DONGALA............................................
Jacqueline Fernanda Kaczorowski Barboza (USP)
1.149
OS LETRAMENTOS NO CIRCO DO FUXIQUINHO E O PAPEL DO PROFESSOR..
Jaécia Bezerra de Brito (UFRN/PROFLETRAS)
1.159
O ÍCONE METAFÓRICO PEIRCIANO NO POEMA MORTE E VIDA SEVERINA.......
Janicreis Gomes de Souza (UFPB)
Expedito Ferraz Júnior (UFPB)
1.170
A CONCEPÇÃO DIALÓGICA DA LINGUAGEM E O DISCURSO PEDAGÓGICO
DO PROFESSOR: UMA AULA MAGNA DE ARIANO SUASSUNA...........................
Janielly Santos de Vasconcelos(UFPB)
1.180
PRODUÇÃO DE CHAMADAS TELEVISIVAS: O ENSINO DA ESCRITA NUMA
PERSPECTIVA PROCESSUAL........................................................................................
Jária Suéldes Alves de Lima (UFRN)
1.190
O JOGO ENTRE AS REMINISCÊNCIAS E O DESVELAMENTO NOS POEMAS
DE BANDEIRA DE TEMÁTICA ONÍRICA....................................................................
Jefferson Cleiton de Souza (UFPE)
1.203
COLONIALISMO E PÓS-COLONIALISMO EM O ALEGRE CANTO DA PERDIZ,
DE PAULINA CHIZIANE.................................................................................................
Jeferson Rodrigues dos Santos (UFS)
Anderson de Souza Frasão (UFS)
1.211
REPRESENTAÇÕES DA MULHER AMAZÔNICA NO ROMANCE DE MILTON
HATOUM............................................................................................................................
Joanna da Silva (UFAM)
1.218
INTERTEXTUALIDADE COMO METALITERATURA: ANÁLISE
COMPARATIVA DE VIDAS SECAS E “FAROESTE CABOCLO”................................
João Batista da Silva (UFRPE/UAG)
Nilson Pereira de Carvalho (UFRPE/UAG)
1.231
CHARGES SOBRE O CARNAVAL: UM RISO CARNAVALESCO?............................
Jociane da Silva Luciano (UFRN)
1.243
PRODUÇÕES TEXTUAIS DE ALUNOS GRADUANDOS INICIANTES EM
LETRAS..............................................................................................................................
Joelma da Silva Santos (UFPB)
1.255
GÊNEROS TEXTUAIS E ANÁLISE LINGUÍSTICA COMO PROCESSO DE
ORGANIZAÇÃO LINGUÍSTICA E IDENTIDADE SOCIAL.........................................
John Hélio Porangaba de Oliveira (UNICAP)
1.268
A ESTÉTICA NEOBARROCA NA CANÇÃO DE CHICO CÉSAR: UM LEITURA
DE A PROSA IMPÚRPURA DE CAICÓ..........................................................................
Jonathan Lucas Moreira Leite (UFPB-PPGL)
1.280
A AMBIVALÊNCIA DA CONFISSÃO NA ESCRITURA DE MIA COUTO................
José Aldo Ribeiro da Silva (UEPB)
1.287
ENSINO DE LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTOS NAS SÉRIES FINAIS:
PROCESSOS DE RETEXTUALIZAÇÃO COM O GÊNERO MEMÓRIAS...................
José Aurélio da Câmara (UFRN)
1.300
VIOLÊNCIA, REPRESSÃO E FORMA EM AVALOVARA..............................................
José Helber Tavares de Araújo (UFPB)
1.312
O JOGO DAS PALAVRAS NO POEMA “MY SWEET OLD ETCETERA”, DE E. E.
CUMMINGS.......................................................................................................................
José Vilian Mangueira (UERN)
1.325
ANALISANDO O DISCURSO E O HUMOR NAS CHARGES: DO MATERIAL
LINGUÍSTICO À MATERIALIDADE DISCURSIVA.....................................................
José Wellisten Abreu de Souza (PROLING-UFPB)
1.335
EQUÍVOCOS E CONTROVÉRSIAS DO LIVRO DIDÁTICO SOBRE O ENSINO DE
GÊNEROS PARA O ENSINO FUNDAMENTAL............................................................
Josefa Maria dos Santos (UPE)
Maria Alcione Gonçalves da Costa (UPE)
1.348
A TÉCNICA DO MONÓLOGO INTERIOR NA CONSTRUÇÃO DO SER DA
FICÇÃO EM ANGÚSTIA, DE GRACILIANO RAMOS...................................................
Josivaldo Silva Menezes (UPE)
1.361
A IMPORTÂNCIA DAS TIC NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE
INGLÊS...............................................................................................................................
Joyce Rodrigues da Silva Magalhães (IFAL/UFAL-PPGLL/ObservU)
Adriana Nunes de Souza (IFAL)
1.371
O IMAGINÁRIO FICCIONAL EM “A MORTE DE D.J. EM PARIS” DE ROBERTO
DRUMMOND.....................................................................................................................
Juceli da Cruz Carneiro (FAFICA)
1.382
O TRATAMENTO DADO ÀS VARIEDADES LINGUÍSTICAS NOS LIVROS
DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS DO ENSINO FUNDAMENTAL (ANOS FINAIS)
APROVADOS PELO PNLD-2014.....................................................................................
Juciano Santos Soares da Silva (UFPE/FACEPE)
1.393
A PERSONAGEM ILUMINATA COMO A MANIFESTAÇÃO DA VOZ FEMININA
NA FICÇÃO DE LUZILÁ GONÇALVES FERREIRA....................................................
Júlio César Martins de Sales (UPE)
Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)
1.406
IMAGENS DE NAÇÃO EM ODETE SEMEDO E CONCEIÇÃO EVARISTO..............
Karina de Almeida Calado (PUC-Minas)
1.417
NOVAS TECNOLOGIAS E FORMAÇÃO DOCENTE....................................................
Karina Kelly Amâncio (IFAL)
1.432
UMA ANÁLISE DA TEORIA ARGUMENTATIVA EM AVALIAÇÕES EM LARGA
ESCALA NO BRASIL – SAEB E PROVA BRASIL........................................................
Karine Alves David (UFRN)
1.438
VIOLÊNCIA E EXCLUSÃO SOCIAL EM MARCELINO FREIRE: UMA ANÁLISE
CRÍTICA.............................................................................................................................
Karla Karine Claudino Tenório (UPE)
1.450
A INTERVENÇÃO DIDÁTICA NO PROCESSO DE PRODUÇÃO TEXTUAL DE
ALUNOS PARTICIPANTES DA OLIMPÍADA DE LÍNGUA PORTUGUESA-OLP....
Karolynne Kaya Maria Amorim Moura (PPGE)
Adna de Almeida Lopes (UFAL)
1.463
CUTUCAR, CURTIR, COMENTAR, COMPARTILHAR: UMA ANÁLISE DOS
RELACIONAMENTOS AFETIVOS NA CONTEMPORANEIDADE NA REDE
SOCIAL FACEBOOK.........................................................................................................
Kassios Cley Costa de Araújo (UnP)
1.476
PRODUÇÃO DE TEXTO NA CONTEMPORANEIDADE –UMA VISÃO SOBRE O
ENSINO DE LINGUAS NA ERA DIGITAL………………….……………………...….
Kathia Maria Barros Leite (UFAL/IFAL)
Rita de Cássia Souto Maior (UFAL)
1.486
GÊNERO TEXTUAL COMO EIXO NORTEADOR DO ENSINO DE LÍNGUA
PORTUGUESA...................................................................................................................
Katiane Silva Santos (IFAL)
1.498
UMA ANÁLISE DE CONCEITOS E CONCEPÇÕES NOS REFERENCIAIS
CURRICULARES PARA O ENSINO MÉDIO DA PARAÍBA: A PRESENÇA DE
BAKHTIN...........................................................................................................................
Keila Gabryelle Leal Aragão (UFPB)
Ayanne Mayelle da Silva Ferreira (UFPB)
1.506
A LINGUAGEM DO PROBLEMA MATEMÁTICO.......................................................
Kelly Jane da Silva Tcham (PIBIC/IFAL)
Nádia Mara da Silveira (IFAL)
1.519
FACEBOOK E ENSINO DE GÊNEROS: UMA EXPERIÊNCIA MIDIÁTICA EM
REDE...................................................................................................................................
Laene Alves Pacheco Vaz (UPE)
Benedito Gomes Bezerra (UPE)
1.529
CRIADAS E MALVADAS: A IDENTIDADE VISUAL DAS LATINO-
AMERICANAS...................................................................................................................
Larissa de Pinho Cavalcanti (UFPE)
1.541
DESCONSTRUÇÃO E CONSTRUÇÃO DA REALIDADE EM “NOIVAS
PROIBIDAS DOS ESCRAVOS SEM ROSTO NA CASA SECRETA DA NOITE DO
TEMÍVEL DESEJO”..........................................................................................................
Laura Fernanda Vicente de Souza (FAFICA)
1.553
GÊNEROS DISCURSIVOS COMO FORMAS DE CONTEXTUALIZAÇÃO NO
ESPAÇO VIRTUAL: O CASO DO MOVIMENTO OCUPE ESTELITA........................
Laura Jorge Nogueira Cavalcanti (UFPE)
1.564
O USO DOS RECURSOS COESIVOS NA PRODUÇÃO DE TEXTOS DO
GÊNERO ARTIGO DE OPINIÃO EM INGLÊS: PROBLEMAS ENFRENTADOS
PELO APRENDIZ..............................................................................................................
Leane Mayara da Silva Santos (UNEAL)
Delma Cristina Lins Cabral de Melo (UNEAL)
1.575
MECANISMOS DE COESÃO REFERENCIAL EM PRODUÇÕES ESCRITAS: UMA
ABORDAGEM NO CONTEXTO ESCOLAR...................................................................
Leonildo Leal Gomes (UFRN)
1.587
GUIA DE LIVROS DIDÁTICOS E MANUAIS DO PROFESSOR: QUAL O
TRATAMENTO DADO ÀS QUESTÕES CONTEXTUAIS?...........................................
Lílian Noemia Torres de Melo Guimarães (UFPE)
1.596
BARROQUISMOS NA POESIA DE DRUMMMOND....................................................
Lindjane Pereira (UFPB)
Líllian Régis (UFPB)
1.608
A EXPERIÊNCIA DE LEITURA E O LEITOR EM FORMAÇÃO NO PRIMEIRO
CICLO DO ENSINO FUNDAMENTAL...........................................................................
Luana Machado (UFAL)
Léa Maria da Silva Borges (UFAL)
1.617
APOCALIPSES DA MODERNIDADE: O FIM DO MUNDO EM ENSAIO SOBRE A
CEGUEIRA E 2666.............................................................................................................
Lucas Antunes Oliveira (UFPE)
1.625
O CORVO DE EDGAR ALLAN POE – UMA ANÁLISE CONTRASTIVA DAS
TRADUÇÕES DE MACHADO DE ASSIS E FERNANDO PESSOA.............................
Lucélia Aparecida de Ávila Carvalho (IFTO)
1.637
UM CRIME DELICADO SOB A ÓTICA PÓS-MODERNA............................................
Luciana Bessa Silva (FALS)
1.648
A ÁFRICA QUE HÁ EM NÓS... IMPRESSÕES E EXPERIÊNCIAS
COMPARTILHADAS NO ENSINO FUNDAMENTAL..................................................
Luciana Maria Carvalho Medeiros dos Santos (UFRN)
Valdenides Cabral de Araújo Dias (UFRN)
1.659
UM ESTUDO SOBRE MARCADORES DISCURSIVOS NO GÊNERO
COMENTÁRIO DE BLOG FUTEBOLÍSTICO PERNAMBUCANO..............................
Lucineudo Machado Irineu (UNILAB)
Walison Paulino de Araújo Costa (UFRPE)
1.671
A REPRESENTAÇÃO DA MULHER EM O ESPELHO DIAMANTINO –
PERIÓDICO DE POLÍTICA, LITERATURA, BELAS ARTES, TEATRO, E MODAS
DEDICADO ÀS SENHORAS BRASILEIRAS.................................................................
1.679
Lucirley Alves de Oliveira (UFPE)
A REPRESENTAÇÃO FEMININA NA ESCRITA DE ANA MIRANDA......................
Luiz Renato de Souza Pinto (IFMT)
1.689
AS LITERATURAS AFRICANAS E AFRO-BRASILEIRAS NA SALA DE AULA –
UM NOVO FAZER PEDAGÓGICO.................................................................................
Lygia Maria Andrade Figueira dos Santos (UFRRJ)
Viviane de Araújo Nascimento (UFRRJ)
1.697
VOLUME III
CONTRIBUIÇÕES DO LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA
PARA O LETRAMENTO LITERÁRIO E A FORMAÇÃO DO LEITOR.......................
Mabel Cristina Azevedo dos Santos (PROFLETRAS – UPE)
Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)
1.707
O GÊNERO BLOG PEDAGÓGICO E O ENSINO DE LÍNGUA MATERNA: POR
UMA PRÁTICA EDUCOMUNICATIVA DE LEITURAS DIALÓGICAS DA MÍDIA
POLÍTICA...........................................................................................................................
Manassés Morais Xavier (UFCG)
Maria de Fátima Almeida (UFPB)
1.718
LITERATURA AFRICANA DE LÍNGUA PORTUGUESA: UMA POSSIBILIDADE
DE DIÁLOGO ENTRE BRASIL E ANGOLA..................................................................
Marcela de Melo Cordeiro Eulálio (POS-LE/ UFCG)
Josilene Pinheiro-Mariz (POS-LE/ UFCG)
1.729
A INFLUÊNCIA DA LÍNGUA MATERNA NA AULA DE LÍNGUA
ESTRANGEIRA: OS MARCADORES CONVERSACIONAIS E A ALTERNÂNCIA
DE LÍNGUA.......................................................................................................................
Marcelo Augusto Mesquita da Costa (UFPE)
Kazue Saito Monteiro de Barros (UFPE)
1.741
O TRABALHO COM O GÊNERO POESIA, O TEXTO E A ORALIDADE NO
ENSINO..............................................................................................................................
Márcia Nadja Oliveira de Medeiros Galvão (UFRN)
1.752
MR. POTTER E A VOICELESS DO SUJEITO COLONIAL: IDENTIDADE, RAÇA E
MARGINALIDADE EM JAMAICA KINCAID...............................................................
Márcia Oliveira (UFPE)
1.762
O ETHOS QUE QUEREMOS E O ETHOS QUE PODEMOS..........................................
Márcia Regina Curado Pereira Mariano (DLI – UFS)
1.772
CULTURA: VARIEDADES DA LÍNGUA NA CONCORDÂNCIA VERBAL E
INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA......................................................................................
Márcione Teles de Melo Barros (ULHT)
1.783
CAMINHADO POR TERRAS HABITADAS POR FANTASMAS: A
PEREGRINAÇÃO DO NARRADOR NA OBRA ‘OS ANÉIS DE SATURNO’.............
Marcos Eduardo de Sousa (UFOP)
1.794
OS NOVOS REALISMOS NOVOS EM PRODUÇÕES LITERÁRIAS DE LÍNGUA
INGLESA............................................................................................................................
Marcus V. Matias (UFAL)
1.800
O FEEDBACK COLABORATIVO NA PRODUÇÃO DO GÊNERO E-MAIL: UMA
EXPERIÊNCIA COM ALUNOS DO ENSINO FUNDAMENTAL II..............................
Maria Angela Lima Assunção (UFRN)
1.812
SEQUÊNCIA DIDÁTICA POR GÊNEROS TEXTUAIS: UMA PROPOSTA PARA O
LETRAMENTO..................................................................................................................
Maria Aparecida Barbosa da Silva (UFPE)
Erivaldo José da Silva (UFPE)
1.823
SOLIDÃO E DESAMPARO EM OS CUS DE JUDAS DE ANTÓNIO LOBO
ANTUNES..........................................................................................................................
Maria Aparecida da Costa (UERN)
José Juvêncio Neto de Souza (UERN)
1.833
DO PRETEXTO PLÁSTICO À VERDADE PLÁSTICA: ANÁLISE DIALÓGICA DO
DISCURSO ESTÉTICO – POESIA, PINTURA E OUTROS GÊNEROS – LIÇÕES DE
ESPANHA...........................................................................................................................
Maria Bernardete da Nóbrega (UFPB)
1.841
O GÊNERO TEXTUAL CONTO COMO FERRAMENTA ARTICULADORA NAS
PRÁTICAS DE ESCRITA E REESCRITA EM SALA DE AULA...................................
Maria Claudicélia Curvelo da Silva (UNEAL)
1.851
A BUSCA DA IDENTIDADE CULTURAL NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO
DAS PERSONAGENS EM MÁRIO DE ANDRADE.......................................................
Maria da Conceição José de Sousa (UNEMAT)
1.859
MUNDOS LENDÁRIOS: LENDAS NEGRAS E URBANAS NO CONTEXTO DA
SALA DE AULA................................................................................................................
Maria das Graças da Costa (UFCG)
Ana Rafaela Oliveira e Silva (UFRN)
1.866
EVENTOS DE LETRAMENTO: O USO SOCIAL DA LEITURA E DA ESCRITA
NA SALA DE AULA.........................................................................................................
Maria das Vitórias dos Santos Medeiros (UFRN)
Maria Marlene dos Santos (UFRN)
1.875
MOVIMENTOS DE CONSTRUCÃO DA IDENTIDADE FEMININA NO GÊNERO
PUBLICITÁRIO DA NATURA: PERSPECTIVAS DIÁLOGICAS.................................
Maria do Carmo R. da Silva (UFPB)
Julia Cristina de L. Costa (UFPB-PROLING)
1.887
A ESTETIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA NA LITERATURA BRASILEIRA
CONTEMPORÂNEA: UMA LEITURA DE O MATADOR DE PATRÍCIA MELO........
Maria Fernandes de Andrade Praxedes (UEPB)
1.897
MEMÓRIA E LITERATURA: TRAUMA, ESQUECIMENTO E PÓS-MEMÓRIA NA
REPRESENTAÇÃO DO MASSACRE DOS ÍNDIOS EM A LENDA DOS CEM, DE
GILVAN LEMOS...............................................................................................................
1.909
Mariá Gonçalves de Siqueira (UFPE)
ANÁFORAS ENCAPSULADORAS NA VOZ DO NARRADOR DE MENINO DE
ENGENHO..........................................................................................................................
Maria José Cavalcanti de Andrade (UNICAP)
1.920
MUDANÇAS GRAMATICAIS DOS ITENS “E”, “AÍ”, “AGORA” NA FALA E
CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO..............................................................................
Maria José de Oliveira (IFRN- Caicó/ UFPB-PROLING)
Camilo Rosa da Silva (UFPB-PROLING)
1.929
ANA CRISTINA CESAR: A CONSTRUÇÃO DE UMA DICÇÃO AUTORAL.............
Maria Lúcia Colombo (UNIR/IFRO)
Sônia Maria Gomes Sampaio (UNIR)
1.942
“A ESCRAVA ISAURA” E “ROSAURA, A ENJEITADA”: IMAGENS QUE SE
CONFUNDEM NA OBRA DE BERNARDO GUIMARÃES...........................................
Maria Rosane Alves da Costa (UPE)
1.952
ENCAPSULAMENTO ANAFÓRICO E CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NO
DISCURSO JORNALÍSTICO............................................................................................
Maria Sirleidy de Lima Cordeiro (UFPE)
1.963
LETRAMENTO DIGITAL: PARA TC DE VZ EM KNDO NA AULA DE
PORTUGUÊS......................................................................................................................
Maria Solange de Lima Silva (FCU/UNIFUTURO)
1.974
MAIS DO QUE “SENTIDO FIGURADO”: O EFEITO METAFÓRICO SEGUNDO
MICHEL PÊCHEUX..........................................................................................................
Mariana da Silva Gouveia (UFCG)
1.981
AQUILINO RIBEIRO E GUIMARÃES ROSA: PROPOSTAS LITERÁRIAS EM
DIÁLOGO...........................................................................................................................
Marília Angélica Braga do Nascimento (IFRN/UFC)
1.988
A VARIAÇÃO FONÉTICA DO [R] DO PORTUGUÊS BRASILEIRO NA FALA
DOS NATIVOS DE LÍNGUA INGLESA..........................................................................
Marília Gomes Teixeira (UFPE)
2.000
UMA PEDAGOGIA PARA UM PAÍS MULTILÍNGUE..................................................
Marinázia Cordeiro Pinto (UFRRJ)
Michele Cristine Silva de Sousa (UFRRJ)
2.010
O TRANSPOSITOR SEM: CRITÉRIOS PARA DETERMINAÇÃO DO VALOR
MODAL EM ORAÇÕES ADVERBIAIS REDUZIDAS...................................................
Marta Anaísa Bezerra Ramos (UEPB)
Camilo Rosa Silva (UFPB)
2.021
UMA BREVE ANÁLISE DISCURSIVA EM MÚSICAS CRISTÃS...............................
Max Silva da Rocha (UNEAL)
José Bezerra da Silva (FACESTA)
2.033
DICIONÁRIO ELETRÔNICO: UMA PROPOSTA PARA O ENSINO-
APRENDIZAGEM DE LÍNGUA.......................................................................................
2.044
Mayara Oliveira Feitosa (UFS)
Elaine Vieira Gois (UFS)
ANGÚSTIAS NO INFÉRTIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE “NOS HAN DADO LA
TIERRA” DE JUAN RULFO…………………………………………….…...………….
Mercia Paulino Nicolau da Silva (UFPE)
2.052
ANÁLISE DIALÓGICA DO FILME FAHREINHEIT 451...............................................
Micheline Barros Chaves (UEPB)
2.062
DISCURSOS SOBRE O TRABALHO DOCENTE: O QUE DIZEM OS
PROFESSORES EM FORMAÇÃO INICIAL A RESPEITO DA DOCÊNCIA...............
Mirelle da Silva Monteiro Araujo (UFPB)
2.075
A CRIAÇÃO DE ESTRATÉGIAS PERSUASIVAS NA CONSTRUÇÃO DE AULAS
ARGUMENTATIVAS........................................................................................................
Nádia Mara da Silveira (IFAL)
2.087
O PROCESSO DE SUMARIZAÇÃO EM POSTAGENS DO FACEBOOK: O CASO
DA SÉRIE “JEAN COMENTA”........................................................................................
Nadiana Lima da Silva (UFPE)
Monique Alves Vitorino (UFPE)
2.098
DISCUTINDO A LEITURA A PARTIR DAS INICIATIVAS NA CIDADE DE
SERROLÂNDIA/BA..........................................................................................................
Naylane Araújo Matos (UNEB)
Juliana C. Salvadori (UNEB)
2.114
RETRATOS DA DESCOLONIZAÇÃO: O RETORNO DE DULCE MARIA
CARDOSO..........................................................................................................................
Nefatalin Gonçalves Neto (UFRPE/USP)
2.126
ATRAVÉS DA LITERATURA: LITERATURA SHAKESPEARIANA..........................
Patrícia Gonzaga da Silva (UNEAL)
Rosangela Nunes de Lima (UNEAL)
2.138
LEITURAS DE TEMAS POLÊMICOS NA SALA DE AULA: POR QUE NÃO
FAZER?...............................................................................................................................
Patrícia Lira Guedes de Oliveira (UFPB)
2.146
A LÍNGUA EM INTERAÇÃO: UM ESTUDO DE CADEIA DE
GÊNEROS EM CONTEXTO DE CONCURSO PÚBLICO..............................................
Patrícia Silva Rosas de Araújo (PROLING/UFPB)
Manassés Morais Xavier (UFCG)
2.158
A MOBILIZAÇÃO DE LINKS EM MATERIAL DE FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSOR DO ENSINO BÁSICO..........................................................................
Patricio de Albuquerque Vieira (UEPB)
2.168
LETRAMENTO CRÍTICO E O ENSINO DE INGLÊS: REFLEXOS DENTRO E
FORA DA SALA DE AULA..............................................................................................
Paula Tenório dos Santos (IFAL)
2.179
A MECÂNICA, A POTÊNCIA E O ATO ENFÁTICO OU A PRODUÇÃO TEXTUAL
BARRETIANA...................................................................................................................
Paulo Alves (UFPB)
2.186
OLHARES SOBRE O FEMININO: A CONSTRUÇÃO DE UM DOCUMENTÁRIO
POR ALUNOS DO ENSINO MÉDIO DENTRO DE UMA EXPERIÊNCIA DE
ESTÁGIO SUPERVISIONADO........................................................................................
Pedro Felipe de Lima Henrique (UFPB)
Frederico de Lima Silva (UFPB)
2.198
ANÁLISE CRÍTICA DO CONTO “A CHINELA TURCA” SOB O VIÉS DA
ESTÉTICA DA RECEPÇÃO..............................................................................................
Pedro Santos da Silva (UFS)
2.210
POLÍTICAS LINGUÍSTICAS EDUCACIONAIS NO ESTADO DE PERNAMBUCO:
INTERPRETAÇÕES DOS PROFESSORES ACERCA DOS PARÂMETROS DO
ESTADO.............................................................................................................................
Rafaela Cristina Oliveira de Andrade (UFPB)
Terezinha de Jesus Gomes do Nascimento (UFPB)
2.216
“A PROSA DOS MEUS VERSOS”: SENTIDOS DO REAL NA POESIA LÍRICA
MODERNA.........................................................................................................................
Raquel Brandão do Sêrro (Universidade de Coimbra)
2.229
A MODALIDADE COMO ESTRATÉGIA DISCURSIVA: DO ENFOQUE
SISTÊMICO-FUNCIONAL AO DA ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA....................
Rebeca Sales Pereira (UFC)
2.240
A ABORDAGEM DOS GÊNEROS DISCURSIVOS EM SALA DE AULA...................
Renata Xavier Moreira (UFPB)
2.252
CARTÃO-POSTAL PUBLICITÁRIO: MARCAS TEXTUAIS E CONSIDERAÇÕES
SOBRE O GÊNERO...........................................................................................................
Renato Lira Pimentel (UFPE)
2.259
PERGUNTAS DO ALUNO AO PROFESSOR: FERRAMENTAS DE
APRENDIZAGEM E INTERAÇÃO..................................................................................
Renato Suellisom da Silva Medeiros (UFRN)
Marise Adriana Mamede Galvão (UFRN/DLC)
2.266
A NOÇÃO DE EXISTÊNCIA EM LA VIE EN CLOSE, DE PAULO LEMINSKI...........
Rodrigo Michell dos Santos Araujo (UFS)
2.277
CULTURA DIGITAL E ENSINO......................................................................................
Rosana Cardoso Gondim (UNEB)
2.286
REPRESENTAÇÃO DAS MINORIAS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA:
VIOLÊNCIA E (DES) ENCONTROS URBANOS............................................................
Rosana Meira Lima de Souza (UFPE)
2.297
TODA NUDEZ (NÃO MAIS) SERÁ CASTIGADA: O DESNUDAMENTO DO
FEMININO EM NELSON RODRIGUES..........................................................................
Rosana Trevisol Seibt (IFAL)
2.308
A PARTICULARIDADE ESTÉTICA NA OBRA UMA APRENDIZAGEM OU O
LIVRO DOS PRAZERES (1969), DE CLARICE LISPECTOR..........................................
Rosilene Pimentel Santos Rangel (UFAL/ESTÁCIO FASE)
2.320
PRÁTICAS DE ESCRITA NO LETRAMENTO ESCOLAR: OS TEXTOS DA
DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA EM LIVROS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS DO
ENSINO MÉDIO................................................................................................................
Rosivaldo Gomes (UNIFAP/UNICAMP)
Eloiny Ptra Brasil Lazamé (UNIFAP)
2.328
A MULHER, O TRABALHO E AS NOVAS CONFIGURAÇÕES FAMILIARES:
ASPECTOS TEÓRICOS MATERIALISTAS E DISCURSIVOS NO DISCURSO
MIDIÁTICO........................................................................................................................
Samuel Barbosa Silva (UFAL)
2.344
ESTUDO ARGUMENTAL DO VERBO ARRUMAR........................................................
Sandro Luis de Sousa (IFRN/UFPB)
2.354
A ESCRITA DE ANA CRISTINA CESAR: UMA POÉTICA NEOBARROCA.............
Sara de Miranda Marcos (UPE)
2.366
DEIXA IR MEU POVO: GÊNERO E CULTURA............................................................
Sarah da Silva Barretto (UPE)
Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)
2.379
ENSINO DE LÍNGUA MATERNA: A IMPORTÂNCIA DE FALAR, OUVIR, LER E
ESCREVER TEXTOS EM LÍNGUA PORTUGUESA NAS AULAS DE
PORTUGUÊS......................................................................................................................
Shania Jéssika Cavalcante Rodrigues (IFAL)
2.388
FRICÇÕES DAS VOZES LABIRÍNTICAS EM A DANÇA DOS CABELOS, DE
CARLOS HERCULANO LOPES......................................................................................
Shantynett Souza F. M. Alves (UNIMONTES)
2.400
O INTERDISCURSO COMO RELAÇÃO CONSTITUTIVA ENTRE FDS: O CASO
BOLSONARO E OS DIREITOS HUMANOS...................................................................
Sheila Alves de Oliveira (UFPE)
2.407
TEMPO, TRANSCENDÊNCIA, ENVELHECIMENTO: UMA LEITURA DA
CRÔNICA “NOS TRILHOS DO TEMPO” DE CAIO FERNANDO ABREU.................
Sidileide Batalha do Rêgo (UERN)
Antonia Marly Moura da Silva (UERN)
2.418
A RELAÇÃO SENSORIAL ENTRE O CORPO DO LEITOR E O TEXTO
LITERÁRIO: UMA ABORDAGEM REFLEXIVA ACERCA DO LETRAMENTO
LITERÁRIO NO CONTEXTO UNIVERSITÁRIO–
...........................................................
Silvio Nunes da Silva Júnior (UNEAL)
2.426
ESCRITA MULTIMODAL: UMA PROPOSTA DE MULTILETRAMENTO NO
ENSINO FUNDAMENTAL QUILOMBOLA...................................................................
Soraya Conceição Branco (URCA/UDCS)
Aluizio Lendl-Bezerra (URCA/ UDCS)
2.434
(RE) LENDO O ARQUIVO – A PROPÓSITO DAS BASES DOCUMENTAIS DO
DISCURSO “OFICIAL”.....................................................................................................
Sóstenes Ericson Vicente da Silva (UFAL)
Maria Virgínia Borges Amaral (UFAL)
2.442
TECENDO OS FIOS DA MEMÓRIA: PALAVRA E MEMÓRIA NOS ROMANCES
DE MIA COUTO................................................................................................................
Suelany C. Ribeiro Mascena(UFPE)
2.454
MÍNIMO, MÚLTIPLO E INCOMUM: O CONTO DE VERONICA STIGGER.............
Susana Souto Silva (UFAL)
2.464
ALFABETIZAÇÃO E/OU LETRAMENTO: COMO FUNCIONA A
APRENDIZAGEM DA LÍNGUA ESCRITA.....................................................................
Tamiris de Almeida Silva (IFAL)
Adriana Nunes de Souza (IFAL)
2.472
MODELO PARA DESARMAR: A ESCRITURA DE WALY SALOMÃO.....................
Tazio Zambi de Albuquerque (IFPB/USP)
2.481
SEMIOSES NÃO VERBAIS COMO TRAÇOS CONTEXTUALIZADORES DE
MICROCONTEXTO EM SALA DE AULA......................................................................
Thaís Ludmila da Silva Ranieri (UAST/UFRPE)
2.489
O RESSUSCITÓRIO DE ODORICO-PARAGUAÇU E SUAS OUTRAS GENTES,
UMA ESCRITA PALIMPSESTICA..................................................................................
Thais Rabelo de Souza (UFPE/CAPES)
2.501
UM OLHAR ATENTO SOBRE O COTIDIANO FRAGMENTADO E O FAZER
LITERÁRIO CONTEMPORÂNEO: MARIO LEVRERO, DO DISCURSO VACÍO A
NOVELA LUMINOSA.........................................................................................................
Thays Albuquerque (UEPB)
2.508
O PROCESSO DE FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO ATRAVÉS DO RELATO DE
FUNDO BIOGRÁFICO: UMA LEITURA DE AVÓDEZANOVE E O SEGREDO DO
SOVIÉTICO, DE ONDJAKI..............................................................................................
Thiago da Camara Figueredo (IFPE/UFPE)
2.516
LETRAMENTO BUROCRÁTICO: PRÁTICAS DISCURSIVAS E GÊNEROS
TEXTUAIS NA ESFERA ADMINISTRATIVA ESTATAL............................................
Valfrido da Silva Nunes (UFAL)
2.525
A SUBJETIVIDADE DO NARRADOR ORAL NA PÓS-MODERNIDADE..................
Vanessa de Santana Vila Flor (UNEB)
2.536
LUANDA: CENÁRIO AFETIVO DA DISTOPIA PÓS-COLONIAL: UMA LEITURA
DAS OBRAS DE AGUALUSA E ONDJAKI....................................................................
Vanessa Riambau Pinheiro (UFPB)
2.549
SMARTPHONE, GÊNEROS DIGITAIS E ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA:
INTERAÇÕES MIDIÁTICAS NO APLICATIVO WHATSAPP.....................................
Vera Lúcia de Siqueira Lira (UPE)
2.559
SOB A TRIDIMENSIONALIDADE DA ANÁLISE DO DISCURSO CRÍTICA, A
LEITURA DE MUNDO COM BASE NOS GÊNEROS JORNALÍSTICOS....................
2.570
Vera Lúcia Santos Alves (FASJ)
A ESCRITA PROCESSUAL E O FEEDBACK COLABORATIVO ENTRE PARES
NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA EM TURMA DO 6º ANO DO ENSINO
FUNDAMENTAL...............................................................................................................
Vilma Abdias de Lima Bezerra (UFRN)
2.581
SER EMPREGADO DOMÉSTICO NO BRASIL É SER ESCRAVO: UMA
METÁFORA SISTEMÁTICA DA SEGUNDA ABOLIÇÃO...........................................
Vinícius Nicéas do Nascimento (UFPE)
2.592
LITERATURA ERÓTICA: OU ISTO É ERÓTICO OU AQUILO É
PORNOGRÁFICO EM HILDA HILST.............................................................................
Wanderly Alves Ferreira (UPE)
José Laécio de Oliveira (UPE)
Jairo Nogueira Luna (UPE)
2.601
LÉXICO REGIONAL/POPULAR DE ZÉ VICENTE DA PARAÍBA: GLOSSÁRIO
DA CANÇÃO “DESTINO DE VAQUEIRO”....................................................................
Wellington Lopes dos Santos (UFPB)
2.612
CAMINHAR PARA DENTRO DE SI MESMO: A METALITERATURA EM
CONTOS DE MIA COUTO...............................................................................................
William Duarte Ferreira (UFRPE/UAG)
Nilson Pereira de Carvalho (UFRPE/UAG)
2.623
MOTIVAÇÕES SOCIOFONÉTICAS DO FONEMA LATERAL E FRICATIVO
PALATAL: CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO-APRENDIZAGEM DE ELE..........
Zaine Guedes da Costa (UFPE)
Rafael Alves de Oliveira (UFPE)
2.634
O VERBETE DE DICIONÁRIO COMO GÊNERO DISCURSIVO: UMA ANÁLISE
DISCURSIVA.....................................................................................................................
Zilda Maria Dutra Rocha (UERN)
Antônio Luciano Pontes (UERN)
2.645
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 23
PRÁTICAS DE LETRAMENTO: A LEITURA DELEITE
COMO PROCEDIMENTO ESTRATÉGICO NA FORMAÇÃO
DE LEITORES [Voltar para Sumário]
Abda Alves Vieira de Souza (UFAL)
Maria Auxiliadora da Silva Cavalcante (UFAL)
Introdução
O Ministério da Educação (MEC) com a finalidade de melhorar o processo de
alfabetização vem adotando medidas para melhorar a aprendizagem da leitura e escrita no
país. Uma das iniciativas adotadas foi a criação do PNAIC (Pacto Nacional pela
Alfabetização na Idade Certa) que é um programa cujo objetivo imediato é a alfabetizar
crianças até os oito anos de idade, foi implementado em 2013 pelo governo federal que
investiu na formação continuada visando formar 360 mil professores alfabetizadores até 2015.
A iniciativa do MEC partiu dos dados levantados pelo Censo 2010. Ao todo, são 15,2% as
crianças brasileiras em idade escolar que não sabem ler, nem escrever. O PNAIC traz em seu
conteúdo reflexões e sugestões de atividades de alfabetização, letramento e incentivo à
formação do leitor. Assim, percebemos a importância de assegurar um amplo debate sobre
possíveis repercussões causadas pelo Pacto no cotidiano das práticas de alfabetização. Nesse
sentido, o objetivo deste trabalho é refletir até que ponto as estratégias de formação
vivenciadas no PNAIC contribuíram para a melhoria das práticas de leitura desenvolvidas na
escola pelas professoras alfabetizadoras.
A formação de Professores Alfabetizadores PNAIC foi desenvolvida durante o ano de
2013. Nessa formação, atuamos como formadoras dos Orientadores de Estudos Estado da
Paraíba. Os orientadores de estudo tinham como função realizar a formação com os
professores dos municípios e acompanhar os resultados da aprendizagem. O processo de
formação continuada ocorreu durante todo o ano letivo com a participação de 43 orientadores
de estudo de dezoito municípios. Durante este período, tivemos a oportunidade de refletir
sobre as seguintes temáticas: currículo inclusivo; planejamento e organização de rotina na
Nas fronteiras da linguagem ǀ 24
alfabetização; o último ano do ciclo de alfabetização; vamos brincar de reinventar histórias; o
trabalho com diferentes gêneros textuais em sala de aula; diversidade e progressão escolar;
alfabetização em foco – projetos didáticos e sequências didáticas em diálogo com os
diferentes componentes curriculares; a heterogeneidade em sala de aula e a diversificação das
atividades; progressão escolar e avaliação o registro e a garantia de continuidade das
aprendizagens no ciclo de alfabetização. É importante destacar, que os orientadores de
estudos realizaram a formação em seus municípios com os professores alfabetizadores,
trabalhando com as temáticas supracitadas realizadas em 09 encontros, com duração de 08
horas cada.
O ensino da leitura na sala de aula
Acreditamos que é necessário planejamento por parte dos professores na organização
do trabalho pedagógico de forma que promovam atividades que ajudem as crianças a
desenvolverem habilidades de ler e compreender textos. Por esse motivo, julgamos pertinente
refletir sobre o ensino de leitura, ainda que sucintamente.
Adotamos a concepção de leitura enquanto interação, como uma atividade interativa
entre o autor e o leitor, mediada pelo texto. Nesta perspectiva, o leitor não assume um papel
passivo diante do material escrito, antes, atua sobre ele na busca pela construção do sentido
daquilo que lê. Ou seja, a leitura não pode ser entendida sem considerar a compreensão do
texto, pois se não há a compreensão do material lido, houve apenas um processo de
decodificação. (ALBUQUERQUE; SANTOS, 2007)
A prioridade no trabalho com a leitura na escola tem sido a decodificação, isto é, a
escola tem investido em um ensino que tem como objetivo instruir as crianças na
aprendizagem do sistema de escrita alfabética, deixando os outros aspectos em segundo plano.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCN/LP, 1997) postulam que
qualquer leitor mais experiente que consegue analisar sua própria leitura percebe que a
decodificação é apenas um dos procedimentos utilizados quando se lê.
Nesse sentido, o ensino/aprendizagem de estratégias de leitura é essencial para que o
aprendiz desenvolva uma leitura proficiente. Solé (1998) ao discorrer sobre a importância
dessas estratégias, explica que são operações regulares para abordar o texto, e destaca que elas
podem favorecer a compreensão textual. Tais estratégias podem ser cognitivas (operações
inconscientes) e metacognitivas (passíveis de controle consciente). Ainda de acordo Solé
(1998), esse momento em que o leitor monitora sua leitura, pode ser entendido com um
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 25
“estado estratégico’, caracterizado pela necessidade de aprender, de resolver dúvidas e
ambiguidades de forma planejada e deliberada [...]”. Para isto, o leitor faz uso das estratégias
metacognitivas. Estas, conforme Kleiman (1997, p.50), são “operações (não regras),
realizadas com algum objetivo em mente, sobre as quais temos controle consciente, no sentido
de sermos capazes de dizer e explicar a nossa ação.” Cabe ressaltar que não é o fato de possuir
um grande repertorio de estratégias que levará o leitor a entender um texto, mas é necessário,
sobretudo, saber usá-las, pois estas se constituem como um caminho para atingir a
compreensão. (COUTINHO 2004)
Ensinar os alunos a utilizarem estratégias de compreensão leitora deve ser tarefa
primordial no ensino da leitura desde a educação infantil, antes mesmo das crianças
aprenderem a ler convencionalmente. (COUTINHO 2004; BRANDÃO, 2006). Como bem
coloca as autoras supracitadas, desde cedo, uma criança é capaz de dominar a língua com
bastante propriedade, mesmo que ainda não esteja alfabetizada, ela é capaz de compreender
aquilo que alguém lê para ela, considerando á adequação do texto à sua idade. Nesse
processo, a criança mobiliza e, ao mesmo tempo amplia seus conhecimentos linguísticos
relativos tanto ao funcionamento da língua, quanto ao vocabulário. Kleiman (1997, p. 60),
acrescenta que “quando o aluno ainda não é proficiente na leitura, é na interação que se dá a
compreensão”. Nesse sentido, Brandão (2006) aponta com muita propriedade, como deve ser
o ensino da leitura antes mesmo da alfabetização propriamente dita.
(...) desde a educação infantil, devemos ensinar nossos alunos a ler como alguém
que tenta montar um quebra cabeça. Desse modo, estaremos formando um leitor
que, diante de qualquer texto, procura encontrar e construir elos entre as peças,
identificando pistas para relacionar as partes, com vistas a elaborar um todo
coerente: uma imagem que faça sentido e que possa, afinal, ser interpretável e
compreendida. (p.74)
Portanto, é necessário que haja um investimento diário na sala de aula, por parte dos
professores, no ensino das estratégias de compreensão leitora, aliadas ao domínio ensino do
sistema de escrita alfabética e ao trabalho de produção diversos gêneros orais e escritos para
que os alunos se tornem alfabetizados e letrados.
Sabemos que os materiais didáticos e as práticas pedagógicas refletem diferentes
concepções de ensino-aprendizagem da língua materna. A importância do planejamento para
o ensino dos eixos do componente curricular Língua Portuguesa está inserida na perspectiva
de que esta é uma atividade que antecede a um ato intencional. A rotina escolar, nessa
dimensão, passa a ser um momento de escolhas e decisões didáticas e pedagógicas baseadas
na reflexão sobre como agir e sobre as suas possibilidades.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 26
Nesse sentido, a Leitura Deleite pode ser uma estratégia eficiente para favorecer o
gosto pela leitura, porque pode promover uma aproximação das crianças com o mundo
letrado, mesmo quando ainda não sabem ler. Tal atividade pode contribui para ampliar a
visão do mundo, estimular o desejo de outras leituras, nessa atividade, o professor pode
desenvolver com as crianças estratégias de leitura que ajudem a compreender o texto. Assim,
na rotina da sala de aula, seja qual for à idade dos alunos é fundamental que sejam garantidos
momentos diários de leitura pelo professor e pelas crianças.
A leitura deleite na rotina da sala de aula
Durante o ano nos encontros de formação continuada PNAIC uma das atividades
permanentes vivenciadas foi a “leitura deleite”, tal atividade, tinha como objetivo ler por
prazer, era feita como sugestão para que a leitura fosse realizada pelas professoras
diariamente em suas classes, tinha como finalidade incentivar nas crianças o gosto pela
leitura.
Neste trabalho, estamos apresentando a inserção da leitura deleite como estratégia
eficaz proposta pelo PNAIC, cujos resultados foram comprovados nos relatos de experiências
produzidos pelas orientadoras de estudo no final do ano letivo sobre os resultados da
formação e as repercussões na sala de aula.
O relato de experiência produzido por uma orientadora de estudo do município de
Campina Grande-PB traz o seguinte depoimento e de uma professora sobre inserção da leitura
deleite:
A professora contemplou os resultados positivos da realização de um trabalho
sistemático com a literatura infantil em sua sala de aula. Sabendo que a leitura
deleite se tratava de uma atividade diária, a professora passou a ler para seus alunos
e propiciar momentos de exploração dos livros do acervo disponibilizados pelo
Pacto. Os alunos internalizaram a rotina de leitura deleite e se encantaram pelo
fantástico mundo da literatura. Foi criado um colorido cantinho da leitura no final da
sala, lugar disputado pelos alunos que encontravam além dos livros, pensamentos
acerca do mundo da leitura.
A professora estabelecia metas de leitura, incentivando os alunos a ler; realizava
locações para que durante os finais de semana, os alunos não ficassem sem ler em
suas casas. Nesse período, a professora promoveu atividades de escrita a partir dos
livros lidos nas quais os alunos tiveram a oportunidade de opinar e até criar outros
finais para a história, como foi o caso do livro “A Pipa e a Flor”. A docente elaborou
cartazes com os livros preferidos da turma, organizou e apresentou gráfico de barras
registrando o quantitativo de livros lidos pelos alunos da turma, fazendo uma
interdisciplinaridade com matemática, realizou ainda, preenchimento de fichas de
leitura de pelo menos um livro bimestralmente (o livro preferido), promoveu
atividades de recontos orais e escritos dos livros do acervo enviado pelo MEC.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 27
Com esse trabalho, os alunos envolveram-se em virtude da motivação recebida da
parte da docente e também dos próprios colegas, que entusiasmados relatavam suas
experiências com a leitura, a ponto de adentrarem a sala de aula querendo saber qual
seria a leitura deleite do dia, apresentando no olhar o brilho de quem havia
descoberto o prazer que os livros proporcionam aos leitores!
Toda a comunidade escolar percebeu e avaliou de forma positiva o trabalho da
professora que emocionada, faz menção aos comentários feitos pelas mães dos
alunos, especialmente dos que inicialmente não conheciam nem as letras.
A gestão da escola acompanhou o trabalho das docentes atendidas pelo Pacto e
salientou a satisfação com os resultados obtidos pelos alunos.
Em visita à escola, tivemos a oportunidade de ver a socialização dos trabalhos
desenvolvidos na turma, tivemos um retorno do nosso trabalho como orientadora de
estudo ao contemplar a transposição didática do que é estudado nos encontros de
formação para a sala de aula. (Na ocasião, gravamos vídeos com o depoimento da
gestora escolar, professora, e mães de alunos). Foi muito gratificante ver o brilho
nos olhos das crianças ao expressar quantas aprendizagens conquistaram neste ano!
O que motiva tanto à professora, quanto a nós que ora desenvolvemos a atividade de
orientadora de estudos. (relatório da orientadora de estudo de Campina Grande-PB)
Outra experiência relatada por uma orientadora de estudos do Município de Caturité-
PB, mostra uma sequencia de atividades que foi desenvolvida em uma escola pública a partir
de uma leitura deleite que teve como objetivo proporcionar aos alunos momentos de leitura,
de alegria e fantasia possibilitando o enriquecimento do hábito de ler, reservado na rotina
semanal, como atividade permanente, a leitura deleite teve como intuito enfatizar os eixos:
leitura e oralidade. O relato produzido pela orientadora traz o seguinte depoimento da
professora:
A leitura deleite do livro “Eu sou o mais forte” de Mário Ramos teve como objetivo
principal despertar nos alunos o hábito da leitura, bem como, desenvolver estratégias
de leitura necessárias para a compreensão de textos lidos, formando assim leitores
proficientes. Como essa leitura despertou grande interesse nos alunos, elaborei uma
sequência didática com o objetivo de enfatizar alguns direitos de aprendizagem nos
eixos da leitura e da oralidade. Percebi neste processo, um grande interesse por parte
dos alunos em relação à leitura, o que facilitou muito a inserção dos mesmos nas
atividades propostas. Sem dúvida a aprendizagem tornou-se mais significativa com a
participação efetiva de todos os alunos da turma. A sequência didática realizada
organizou-se do seguinte modo:
No primeiro momento, apresentei o livro “Eu sou o mais forte” de Mário Ramos,
mediante a discussão oral para levantamento de hipóteses sobre o assunto tratado no
texto. Depois abordei informações importantes como: título, autor, ilustrador e
editora. Tais procedimentos auxiliam na concentração e a atenção das crianças em
relação ao texto a ser lido. Prosseguindo, promovi uma roda de contação de história
e foi feito os seguintes questionamentos sobre o personagens o “lobo”: onde vive?
Quais são suas características? Se conheciam outras histórias em que o lobo
aparece? Todos respondiam e discutiam oralmente e assim os alunos expressavam
os conhecimentos prévios sobre a personagem do lobo fazendo inferências ao texto
apresentado.
Após a roda de contação de história trazidas pelas crianças, fiz a leitura do título e da
história: “Eu sou o mais forte” para a comprovação das hipóteses levantadas pelos
alunos ao mesmo tempo em que eles iam prevendo outras. Assim, fiz
questionamentos antes, durante e após a leitura. Uma das hipóteses que me chamou
atenção foi: “vai aparecer o caçador para acabar com o lobo”. Com isso, todos
Nas fronteiras da linguagem ǀ 28
ficaram atentos aguardando a confirmação dessa hipótese que no final da história
não é confirmada.
Esses procedimentos metodológicos os levam a desenvolver estratégias de leitura
como a antecipação e o conhecimento prévio. Além disso, observei o quanto às
crianças participam do momento da leitura com entusiasmo.
Finalizando o primeiro momento, os alunos relataram oralmente o final da história
lida, apontando que “o lobo que queria ser o mais forte do bosque se deu mal ao dar
de cara com um animal mais feroz que ele um dragão”.
No segundo momento, sentamos em círculo no cantinho da leitura retomei a história
através do reconto oral da história: ‘Eu sou o mais forte” e logo após distribui o
texto fatiado, em duplas e solicitei que os alunos colassem a narrativa no mural
observando a sequência lógica e temporal da história e, ao mesmo tempo fazia a
leitura da fatia colada.
Nessa atividade, observei a interação entre os alunos, pois os que já liam com
fluência ajudava os que tinham dificuldades. Encerrando o segundo momento,
propus a turma a dramatização do livro: “Eu sou o mais forte”. Todos demonstraram
muito interesse e logo dizia que personagem queria representar. Houve uma grande
disputa pela personagem do lobo.
Iniciando o terceiro momento, realizei a escolha dos personagens que cada um iria
representar. Em seguida, sentamos no cantinho da leitura e realizamos a leitura
compartilhada do livro: “Eu sou o mais forte” neste momento cada criança leu uma
parte do texto em voz alta. Por fim, caracterizados com os respectivos personagens,
os alunos dramatizaram a leitura (Eu sou o mais forte), inclusive fizeram uma
apresentação no seminário final do PNAIC, com muita alegria, fantasia, imaginação
e entusiasmo! ( relato de uma professora contido no relatório da orientadora de
estudo de Caturité-PB)
Ao desenvolver essa sequência didática a partir de uma leitura deleite a professora
avaliou o resultado como satisfatório uma vez que conseguiu fazer com que as crianças
realizassem diversas vezes a leitura de um mesmo livro, sem que em nenhum momento se
recusassem a realizá-las. Sendo assim, as estratégias utilizadas foram eficientes para que os
alunos vivenciassem todas as atividades aprendendo com satisfação.
Considerações finais
Neste trabalho, tivemos como finalidade refletir até que ponto as estratégias de
formação vivenciadas no PNAIC contribuíram para a melhoria das práticas de leitura
desenvolvidas na escola pelas professoras alfabetizadoras.
Com base nos dados analisados, foi possível perceber nos relatórios produzidos pelas
orientadoras de estudos que a formação permitiu momentos de reflexão em relação à prática
pedagógica contribuindo para a implantação de mudanças significativas no cotidiano da sala
de aula, sobretudo nos planejamentos das aulas e na organização da rotina pedagógica.
Nos relatos apresentados sobre a inserção da leitura deleite na rotina diária das classes
de alfabetização de textos literários indicaram que tal atividade, proporcionou o
desenvolvimento do gosto pela leitura nas crianças, uma vez que as próprias ações das
professoras e suas rotinas diárias com o uso dessas leituras favoreceram o processo ensino e
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 29
aprendizagem. Foi ainda, o ponto de partida de sequencia de atividades que tiveram a leitura
como eixo principal.
Referências
BRANDÃO, A. C. O ensino da compreensão e a formação do leitor: explorando as estratégias
de leitura. In: BARBOSA, M. L. Práticas de leitura no ensino fundamental. Belo Horizonte:
Autêntica. 2006.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua
Portuguesa. – Brasília. 1997.
COUTINHO, M. L. Praticas de leitura na alfabetização de crianças: o que dizem os livros
didáticos? O que fazem os professores? Dissertação (Mestrado em Educação). Programa de
Pós-graduação em Educação. Universidade Federal de Pernambuco. 2004.
KLEIMAN, A. B. Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática
social da escrita. Campinas: Mercado de Letras. 1995.
KLEIMAN, A. B. Oficina de leitura. São Paulo: Pontes. 1997.
RAMOS, M. Eu sou o mais forte. São Paulo: Martins Fontes. 2005
SOLÉ, I. Estratégia de leitura. Porto Alegre: ArtMed. 1998.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 30
GÊNEROS DIGITAIS E ENSINO DE LITERATURA: UMA
EXPERIÊNCIA DE LETRAMENTO LITERÁRIO [Voltar para Sumário]
Adriana Nunes de Souza (IFAL/UFAL)
O professor no universo das TICs
O mundo contemporâneo trouxe uma série de novos recursos fascinando a todos os
que têm acesso a eles: computadores, tablets e smartphones atraem com inúmeros aplicativos,
a Internet promove viagens virtuais fascinantes. Tais recursos são vistos por muitos
professores como vilões que distanciam o aluno do ato de estudar, são imagens que tornam a
leitura algo raro e desinteressante no cotidiano, são pesquisas irreais que se limitam ao copiar
e colar.
Entre esses docentes, muitos lecionam literatura e reclamam que os alunos não gostam
de ler, limitam-se a coletar resumos na Internet, repudiam os clássicos, têm um vocabulário
limitado. Inúmeros afirmam que a escrita abreviada da Internet é uma afronta à língua, que
homepages servem como um arquivo de trabalhos já prontos do qual o aluno apenas copia o
que deve ser entregue como atividade para nota sem nem mesmo ler, que os computadores,
tablets e smartphones afastam o jovem da leitura.
Entretanto, essa visão é enganosa, pois computadores, tablets e smartphones têm
criado inúmeros leitores, não o leitor escolar da literatura dissociada do cotidiano, alheia às
preferências individuais, mas um leitor dinâmico que cria novos caminhos, passeia pelos
textos, escolhe o que deseja ler: o leitor do hipertexto.
Esse novo leitor exige um novo professor, o qual retire a máscara do preconceito de
que as redes sociais e toda a Internet dificultam a aprendizagem da língua e da literatura – e
passe a encarar as TIC (Tecnologias da Informação e Comunicação) como aliadas, como um
recurso eficiente para o letramento literário.
Temos possibilidades imensas de pesquisa na rede mundial de computadores;
inúmeros aplicativos voltados à leitura, jogos apoiados em estratégias que necessitam de um
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 31
alicerce em textos trazidos em cada uma de suas fases; redes sociais em que a interação ocorre
basicamente pela leitura; comunidades de leitores nas redes sociais; para que esse universo
passe a ser aliado da educação, basta haver a vontade de inserir esse novo mundo ao
construído na sala de aula, pensar não na imposição da leitura única dos clássicos, na aula de
história da literatura, no desrespeito ao gosto e na avaliação mecânica dos resumos para
pensar num ensino que una esse novo recurso ao respeito, à multiplicidade de leituras, de
gêneros, ao prazer de ler.
As TIC podem ser aliadas no processo ensino-aprendizagem, tornando a literatura e a
leitura algo muito mais atraente para o discente, inserindo-a no mundo de que ele gosta.
Lembremos que a associação do novo à literatura pode criar um inovador e fascinante mundo
para o aluno: por que o docente deve começar o Mal-do-século (Segunda Geração do
Romantismo Brasileiro) com um texto de Álvares de Azevedo, tão distante do aluno – pela
linguagem do século XXI, se pode discutir inicialmente o estado de alma romântico e partir
de Exagerado de Cazuza para falar do sentimento de autodestruição e de um amor exacerbado
e idealizado. Isso, certamente, agradaria mais o aluno e o convidaria a navegar pelo texto.
Igual efeito a Internet (com as redes sociais, as homepages e os inúmeros aplicativos para
tablets e smartphones) pode trazer ao ensino da literatura e consequentemente à formação do
leitor.
A educação há muito se preocupa com a construção do conhecimento a partir da
realidade do aluno, assim, se as TIC são parte dessa realidade, deve-se vê-las como aliadas. O
professor, nesta nova realidade, precisa saber orientar os educandos sobre onde colher
informação, como tratá-la e como utilizá-la. Esse educador será o encaminhador da
autopromoção e o conselheiro da aprendizagem dos alunos, ora estimulando o trabalho
individual, ora apoiando o trabalho de grupos.
Gêneros digitais e ensino
Discutiremos o papel das TIC e dos gêneros digitais para o ensino da literatura, será
uma breve análise das tecnologias da informação e comunicação no ambiente escolar como
recurso fundamental do processo ensino-aprendizagem, tornando a literatura algo mais
próximo da realidade do aluno e mais prazeroso, fazendo do ato de ler algo sempre atual e
encantador, contribuindo para o letramento literário e facilitando o trabalho docente.
O acesso à Internet e a disseminação do uso das TIC estão provocando uma revolução
no conhecimento. A forma de produzir, armazenar e disseminar a informação está mudando;
Nas fronteiras da linguagem ǀ 32
um enorme volume de fontes de pesquisas é aberto aos alunos pela rede, bibliotecas digitais
em substituição às publicações impressas e os cursos à distância, por videoconferências ou
pela Internet, são hoje uma realidade.
Essa revolução precisa ser inserida na escola, em especial se pensarmos no ensino de
literatura, pois a Internet está possibilitando a adolescentes um maior contato com a leitura e a
escrita. Eles passam horas diante da tela, conversando nos bate-papos, redigindo postagens
para as redes sociais, escrevendo e lendo e-mails, visitando sites. Utilizar este gosto pela
navegação pode proporcionar ao aluno “um novo encontro com a literatura” (FREITAS,
2003, p. 170).
A Internet, o computador, os tablets e smartphones podem, portanto, ser aliados no
processo ensino-aprendizagem, tornando a literatura e a leitura algo muito mais atraente para
o discente, inserindo-a no mundo de que ele gosta. Lembremos que a associação do novo à
literatura pode criar fascinante mundo para o aluno, contribuindo para o hábito de leitura tão
desejado pelos professores.
Sabemos que essa preocupação com a formação do gosto e o hábito de leitura é
fundamental para o ensino de literatura. Incentivar a iniciação à pesquisa bibliográfica, por
meio da adequação do material de leitura à clientela escolar é objetivo frequente nos
planejamentos e a Internet é uma importante aliada para se atingir tal objetivo.
Sendo a escola um espaço privilegiado de interação social, ela deve integrar-se aos
demais espaços de conhecimento hoje existentes e incorporar os recursos tecnológicos e a
comunicação via redes, permitindo fazer as pontes entre conhecimentos se tornando um novo
elemento de cooperação e transformação.
Tal incorporação da Internet, das TIC, à escola gera uma ampla discussão sobre o
possível impacto do uso de dispositivos técnico-informacionais (como os tablets,
computadores e smartphones) na estrutura educacional, mas um ponto é fundamental: a
necessidade da criação de uma cultura educativa que integre os instrumentos, tanto no nível
da concepção quanto no da prática, considerando a complexidade da relação entre os
instrumentos informáticos e os conhecimentos e técnicas utilizadas pelo docente.
Para essa integração, no caso específico do ensino de literatura e da formação do
leitor, nosso foco nessa discussão, torna-se necessário discutir a questão dos gêneros textuais
que emergiram a partir da revolução do conhecimento que a tecnologia proporcionou.
A questão dos gêneros é bastante ampla e para comentá-la temos de pensar primeiro
de onde provêm os gêneros? Para Todorov (1981), a resposta é que vêm simplesmente de
outros gêneros. Um novo gênero é sempre a transformação de um ou de vários gêneros
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 33
antigos: por inversão, por deslocamento, por combinação. Um texto atual deve tanto à poesia
quanto ao romance do século XIX. Nunca houve literatura sem gêneros; é um sistema em
contínua transformação. Saussure não afirmara: “O problema da origem da linguagem não é
outro senão o de suas transformações”?
Assim, podemos afirmar que a Internet nos trouxe novos gêneros, mas eles não são tão
variados assim, pois partem de outros já consolidados. Entretanto são importantes, são
frequentes no cotidiano do alunado e podem contribuir para a formação do leitor que, pelo
contato com estes e com outros gêneros, construirá um repertório de leitura que possibilitará a
análise e a crítica, além do reconhecimento de outros gêneros.
Lembremos que, para Todorov (1981), os gêneros existem como instituição,
funcionam como horizontes de expectativa para os leitores e como modelos de escritura para
os autores. Por um lado, os autores escrevem em função do sistema genérico existente, aquilo
que podem testemunhar no texto e fora dele, ou, até mesmo entre os dois. Por outro lado, os
leitores leem em função do sistema genérico que conhecem pela crítica, pela escola, pelo
sistema de difusão do livro ou simplesmente por ouvir dizer; no entanto, não é necessário que
sejam conscientes desse sistema.
Observamos, pois, que a diversidade de gêneros na escola, e não escolares (como a
redação escolar ou o livro didático), é fundamental para o ensino de literatura. As TIC, a
Internet em especial, como recurso didático são importantes, pois podem proporcionar um
contato com diversas modalidades textuais o que é defendido pelos PCN (Parâmetros
Curriculares Nacionais – publicados em 1997 – foram elaborados por equipes de especialistas
ligadas ao Ministério da Educação, têm por objetivo estabelecer uma referência curricular e
apoiar a revisão ou a elaboração da proposta curricular dos sistemas de ensino no Brasil e,
segundo o Ministério, visa à educação básica de qualidade).
A necessidade de trazer um amplo número de textos e modalidades textuais para a
escola, para a qual a Internet é aliada, faz-se presente não apenas por ser uma indicação dos
PCN, mas por ser a língua um organismo vivo, por ser um leitor completo aquele que
consegue passear pelos diversos gêneros, compreendê-los e efetuar realmente a comunicação.
Nesse sentido, é importante lembrarmos o pensamento de Bakhtin.
Perceber a utilização da língua como um processo com heterogêneas e múltiplas
maneiras de realização é fundamental para a compreensão do ponto de partida proposto por
Bakhtin para conceituar gênero do discurso. Para ele, o ser humano em quaisquer de suas
atividades serve-se da língua a partir do interesse, intencionalidade e finalidade específicos
dela, realizando enunciados linguísticos de maneiras diversas. A essas diferentes formas de
Nas fronteiras da linguagem ǀ 34
incidência dos enunciados, o autor denomina gêneros do discurso, porque “cada esfera de
utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN,
2000, p. 277).
É válido comentarmos que essa relativa estabilidade, inerente ao gênero, chama a
atenção e deve ser compreendida como algo passível de alteração, aprimoramento ou
expansão. Tratando-se de linguagem, modificações podem ocorrer em função de
desenvolvimento social, de influências culturais, ou de outros tantos fatores com que a língua
tem relação direta. Ciente do caráter inesgotável das atividades humanas e seu constante
processo de evolução, torna-se impossível definir quantitativamente os gêneros, que se
diferenciam e se ampliam em seu uso.
Um dos aspectos marcantes dos gêneros, que alude de forma direta à questão do uso é
o fato de que devemos considera-los como um meio social de produção e de recepção do
discurso. Para classificar determinado enunciado como pertencente a dado gênero, é
necessário verificarmos suas condições de produção, circulação e recepção. É relevante
observar que o gênero, como fenômeno social, só existe em determinada situação
comunicativa e sócio-histórica; caso modifiquemos tais condições, é possível que um mesmo
enunciado passe a pertencer a outro gênero.
Bakhtin, com sua proposta de conceituação para os gêneros do discurso veio suprir a
necessidade de se compreender os enunciados como fenômenos sociais, resultantes da
atividade humana, caracterizados por uma estrutura pilar básica, suscetível a determinadas
modificações. Um gênero do discurso é parte de um repertório de formas disponíveis no
movimento de linguagem e comunicação de uma sociedade.
Indissociável da sociedade e disponível em sua memória lingüística, o domínio de um
gênero permite ao falante prever quadros de sentidos e comportamentos nas diferentes
situações de comunicação com as quais se depara. Conhecer determinado gênero significa ser
capaz de prever regras de conduta, seleção vocabular e estrutura de composição utilizada. É
essa competência sociocomunicativa dos falantes que os leva à detecção do que é ou não
adequado em cada prática social.
A vivência das situações de comunicação e o contato com os diferentes gêneros
exercitam a competência linguística do indivíduo. A saber: competência lingüística é um
conceito aprofundado, que possui certa complexidade, mas que aqui será recortado no sentido
de que todos nós somos aptos a, perante determinada estrutura e contexto, definir a qual
categoria um dado enunciado pertence. Essa competência é inerente ao ser humano social, que
interage, comunica, cria e recria. Na medida em que um indivíduo avança em grau de
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 35
escolaridade, tende a tornar-se cada vez mais proficiente na operacionalização de variadas
categorias textuais. Da mesma maneira, experiência de vida e cultura geral fazem evoluir
linguisticamente os falantes.
Sendo assim, é fundamental percebermos o gênero como um produto social e como
tal, heterogêneo, variado e suscetível a mudanças. Devido à heterogeneidade dos gêneros do
discurso, resultado da infinidade de relações sociais que se apresentam na vida humana,
Bakhtin optou por dividir os gêneros em dois tipos: primário e secundário.
Os chamados gêneros primários são aqueles que emanam das situações de
comunicação verbal espontâneas, não elaboradas. Pela informalidade e espontaneidade,
dizemos que nos gêneros primários temos um uso mais imediato da linguagem (comunicação
imediata, como em uma reunião de amigos).
Nos gêneros secundários, existe um meio para que seja configurado determinado
gênero. Esse meio é normalmente a escrita. Logo, se há meio, dizemos que há relação mediata
com a linguagem, há uma instrumentalização. O gênero funciona como instrumento, uma
forma de uso mais elaborada da linguagem para construir uma ação verbal em situações de
comunicação mais complexas e relativamente mais evoluídas: artística, cultural, política.
Esses gêneros chamados mais complexos absorvem e modificam os gêneros primários.
Os gêneros primários, ao se tornarem componentes dos gêneros secundários,
transformam-se dentro destes e adquirem uma característica particular: perdem sua
relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados
alheios.. (BAKHTIN, 2000, p.281)
Para melhor compreensão do fenômeno de absorção e transmutação dos gêneros
primários pelos secundários, Bakhtin traz como exemplo uma carta ou um diálogo cotidiano,
os quais, quando inseridos em um romance, desvinculam-se da realidade comunicativa
imediata, só conservando seus significados no plano de conteúdo do romance. Ou seja, não
são mais atividades verbais do cotidiano, e sim de uma atividade verbal artística, elaborada e
complexa. É importante lembrarmos que a matéria dos gêneros primários e secundários é a
mesma: enunciados verbais, fenômenos de mesma natureza. O que os diferencia é o grau de
complexidade e elaboração em que se apresentam.
Se os gêneros primários e secundários partem de uma mesma matéria, podemos
afirmar: os gêneros que emergiram a partir do advento da Internet também a utilizam e,
portanto, precisam ser discutidos, para isso as obras Marcuschi e Xavier são utilizadas como
referência.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 36
Para Marcuschi (2004), é certo que a Internet e todos os gêneros a ela ligados são
eventos textuais fundamentalmente baseados na escrita, assim, ela continua essencial apesar
da integração de imagens e de som. Por outro lado, a ideia que hoje prolifera quanto a haver
uma “fala por escrito” deve ser vista com cautela, pois o que se nota é um hibridismo mais
acentuado, algo nunca visto antes, inclusive com o acúmulo de representações semióticas.
As formas textuais emergentes nessa escrita são várias e versáteis. Entre os gêneros
mais conhecidos e que vêm sendo estudados podemos situar pelo menos estes (numa tentativa
de designar e diferenciar tais gêneros): e-mail, bate-papo virtual em aberto (inúmeras pessoas
interagindo simultaneamente, como ocorre nos grupos do WhatsApp), bate-papo virtual
reservado (chat), como acontece no Messenger, do Facebook); bate-papo agendado (ICQ),
algumas universidades utilizam esse recurso para o ensino à distância; aula virtual (interações
com número limitado de alunos tanto no formato de e-mail ou de arquivos hipertextuais com
tema definido em contatos geralmente assíncronos; bate-papo educacional (interações
síncronas no estilo dos chats com finalidade educacional, geralmente para tirar dúvidas, dar
atendimento pessoal ou em grupo e com temas prévios); lista de discussão e fórum.
Entre os mais praticados pelos jovens estão os e-mails, bate-papos virtuais e fóruns.
Em todos esses gêneros a comunicação se dá pela linguagem escrita, vemos assim que é
fundamental aproveitarmos esse recurso como auxiliar na formação do leitor e também na
aula de literatura.
O professor e os gêneros digitais
Todos esses gêneros podem ser utilizados pelo professor como apoio para o ensino de
literatura, podem-se criar perfis de personagens como Capitu, de Machado de Assis, o
discente teria uma interação com a personalidade virtual (o professor responderia às
mensagens); pequenas encenações ou fragmentos de textos literários podem ser publicados
em um blog e discutidos em um fórum; entre outras estratégias que insiram a literatura no
cotidiano discente.
Essa nova interação com o texto literário que a internet pode proporcionar é recurso
eficiente para o letramento literário e para a formação do leitor, por proporcionar o contato
com diversos gêneros: digitais ou não. Sendo eficiente, ela, entretanto, exige um professor que
não se limite ao livro didático ou aos clássicos, mas que se aproprie do conhecimento acerca
desses novos gêneros e os insira em sua prática.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 37
Para Pinheiro (2010), o professor precisa compreender que o estudante de hoje possui
uma lógica de raciocínio e atenção utilizada em várias atividades simultâneas, as tecnologias
proporcionam isso. O professor deve entender a realidade do discente enxergando as coisas
sob a perspectiva dele, caso contrário assumirá uma posição desfavorável em sala de aula e
isso poderá tornar o ensino ineficaz.
Se os gêneros digitais que a Internet proporciona são parte do cotidiano do aluno, o
professor precisa inseri-lo em sua prática como um elemento que proporcione a aprendizagem
e aproxime a literatura de seus discentes. O professor de literatura não será mais um mero
transmissor de conhecimentos, mas será um facilitador do letramento literário.
O professor se transforma agora no estimulador da curiosidade do aluno por querer
conhecer, por pesquisar, por buscar a informação mais relevante. Num segundo
momento, coordena o processo de apresentação dos resultados pelos alunos. Depois,
questiona alguns dos dados apresentados, contextualiza os resultados, os adapta à
realidade dos alunos, questiona os dados apresentados. Transforma informação em
conhecimento e conhecimento em saber, em vida, em sabedoria. (VIEIRA, 2012, p.
6).
Não apenas a leitura, mas a escrita será desenvolvida com a inserção dos gêneros
digitais na prática docente. Vemos em Marcuschi (2004) que a escrita tem fundamental papel
na construção dos gêneros digitais e que nestes há uma interação real. Pensemos nos fóruns de
discussão das redes sociais, em especial o Facebook, amplamente utilizado pelos
adolescentes. Eles podem constituir um bom recurso didático para a formação do leitor.
Nesses fóruns, o participante expõe suas opiniões sobre dado tema e com isso põe em prática
o que Bronckart denomina modalizações.
Bronckart afirma que as modalizações têm “como finalidade geral traduzir, a partir de
qualquer voz enunciativa, os diversos comentários ou avaliações formulados a respeito de
alguns elementos do conteúdo temático”. (BRONCKART, 1999, p. 330)
Portanto, as modalizações pertencem à dimensão configuracional do texto,
contribuindo para o estabelecimento de sua coerência pragmática ou interativa e orientando o
destinatário na interpretação de seu conteúdo temático.
Existem quatro funções de modalização inspiradas na teoria dos três mundos de
Habermas, são elas:
Modalizações lógicas: avaliação de alguns elementos do conteúdo temático apoiada em
critérios elaborados e organizados a partir do mundo objetivo;
Nas fronteiras da linguagem ǀ 38
Modalizações deônticas: avaliação de alguns elementos do conteúdo temático apoiada em
valores, opiniões e regras do mundo social;
Modalizações apreciativas: avaliação de alguns aspectos do conteúdo temático, apoiada em
critérios provenientes do mundo subjetivo;
Modalizações pragmáticas: explicitação de alguns aspectos da responsabilidade de uma
entidade constitutiva do conteúdo temático (o narrador, por exemplo).
As modalizações relacionam-se ao gênero a que pertence o texto. É, pois, importante
estudarmos a teoria de Bronckart a fim de que possamos considerar a inserção de variados
gêneros na relação didática uma necessidade para que o aluno conheça as várias
possibilidades de expressão de uma mesma ideia, tornando-se, portanto, um leitor completo,
que reconheça os gêneros e interprete o mundo.
Observa-se que as TIC proporcionam ao jovem um amplo contato com a escrita e a
leitura, sendo aliadas para a formação do leitor, Chartier faz importante afirmação em A
aventura do livro: do leitor ao navegador:
Aqueles que são considerados não-leitores, leem, mas leem coisa diferente daquilo
que o cânone escolar define como uma leitura legítima. O problema não é tanto o de
considerar não-leituras estas leituras selvagens que se ligam a objetos escritos de
fraca legitimidade cultural, mas é o de tentar apoiar-se sobre essas práticas
incontroladas e disseminadas para conduzir esses leitores, pela escola mas também
sem dúvida por múltiplas outras vias, a encontrar outras leituras. É preciso utilizar
aquilo que a norma escolar rejeita como um suporte para dar acesso à leitura na sua
plenitude, isto é, ao encontro de textos densos e mais capazes de transformar a visão
do mundo, as maneiras de sentir e pensar. (CHARTIER, 1998, p. 103-104)
Considerações finais
Como educadores, devemos nos despir dos preconceitos e do lugar comum que diz: as
TIC são um problema, que distanciam o jovem da leitura e vestir a idéia de que elas podem
constituir um aliado na construção do conhecimento.
Para ser esse professor que não se veste de preconceitos, mas utiliza os novos recursos
como aliados, é necessário qualificar-se, conhecer as redes sociais, os gêneros digitais da
internet e familiarizar-se com essa nova linguagem. É necessário mergulhar no mundo dos
adolescentes, conhecer suas leituras, aquilo que faz sucesso entre eles. É fundamental estudar
com profundidade as obras que serão trabalhadas para que se possa aproximá-la do aluno: seja
criando um perfil de personagens nas redes sociais, seja construindo um site, seja num fórum
ou em um bate-papo.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 39
Para isso, as políticas públicas precisam voltar-se à formação e atualização de
professores, de forma que a tecnologia seja de fato incorporada ao currículo escolar, e não
vista apenas como um acessório marginal. É preciso pensar em como incorporá-la ao
cotidiano da educação de forma definitiva.
Podemos afirmar, portanto, que as TIC são importante recurso para a introdução de
inúmeros gêneros textuais na sala de aula, garantindo a diversidade necessária para a
formação de um leitor completo e crítico, para a consolidação do gosto pela leitura e para o
letramento literário tão desejado por docentes em seus planejamentos.
Referências
AZEVEDO, A. Lira dos Vinte Anos. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
BAKHTIN, M. A. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BRONCKART, J.P. Atividade de linguagem, textos e discursos: Por um interacionismo
sócio-discursivo. Tradução Anna Rachel Machado. São Paulo: EDUC, 1999.
CHARTIER, Roger. A aventura do livro. Do leitor ao navegador. São Paulo, SP: Unesp,
1998.
MARCUSCHI, L. A. & XAVIER, A. C. Hipertexto e Generos Digitais: novas formas de
construção de sentido. Rio de Janeiro. Lucerna, 2004.
MARCUSCHI, L. A. Gêneros Textuais Emergentes no Contexto da Tecnologia Digital.
Texto da Conferência pronunciada na 50ª Reunião do GEL – Grupo de Estudos Lingüísticos
do Estado de São Paulo, USP, São Paulo, 2002.
PINHEIRO, P. P. Direito Digital. 4ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010.
Secretaria de Educação Fundamental do Ministério da Educação e do desporto do Brasil.
Parâmetros curriculares nacionais: língua portuguesa. Brasília: Autor, 1997.
TODOROV, T. Os Gêneros do Discurso. Coleção: SIGNOS. Edições 70, 1981.
VIEIRA, M. M. Educação e novas tecnologias: O papel do professor nesse novo cenário de
inovações. http://eduemojs.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/14359/8641
(Acessível em 08 de junho de 2014).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 40
ESTUDO DELEUZIANO DE LITERATURA
CONTEMPORÂNEA: LITERATURA MENOR E
AGENCIAMENTO EM ANTÓNIO LOBO ANTUNES E
FERRÉZ [Voltar para Sumário]
Adriano Carlos Moura (IFF)
Introdução
A literatura contemporânea tem-nos apresentado grandes desafios sob a perspectiva
crítica, teórica e cultural. A ausência de modelos predefinidos, a democratização dos meios de
produção, criação e circulação de obras contribuíram para que a literatura passasse a não ser
mais privilégio de uma elite “letrada” e abastada, e se consolidasse também como uma “tarefa
do povo”, que não atua apenas como receptor/leitor, mas também como
autor/produtor/enunciador. Apesar de não serem fenômenos exclusivos da
contemporaneidade, registros coloquiais, regionais e informais, ou seja, uma linguagem não
canônica, se intensificaram nesse período. O “povo” deixou de ser apenas personagem ou
leitor e assumiu a tarefa da autoria.
Este trabalho visa a um estudo de romances de dois autores contemporâneos da
literatura brasileira e portuguesa: Meu nome é legião de António Lobo Antunes e Capão
pecado de Ferréz . Ambos tratam de personagens excluídos social e economicamente. No
entanto, a linguagem do primeiro pauta-se pelo português lusitano legitimado pelo cânone
linguístico e crítico e por uma narrativa fragmentada pelo discurso de vários narradores-
personagens. O segundo, pelo português falado na periferia de São Paulo, estado situado num
país que viveu como “periferia” portuguesa durante quase quatro séculos.
Por meio dos conceitos de “Literatura menor” e “Agenciamento” dos filósofos Gilles
Deleuze e Félix Guattari, pretende-se refletir sobre os processos criativos e composicionais
das obras que compõem o corpus do trabalho, bem como possíveis problemas imbricados na
recepção pelo leitor e pela crítica.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 41
Antes de iniciar o estudo das obras a que se refere o parágrafo o anterior, faz-se
necessário uma exposição dos conceitos nos quais este trabalho se respalda.
Em Kafka por uma literatura menor, escrevem os filósofos: “Literatura menor não é a
de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior” (DELEUZE e
GUATTARI, 2014, p.35). O conceito de “Literatura menor” de Deleuze e Guattari é
elaborado a partir do estudo que os filósofos fazem da obra do escritor tcheco Franz Kafka,
judeu e alemão, morando em Praga, onde o alemão era uma língua “desterritorializada”,
própria à utilização por “minorias” como ciganos e judeus. Como afirmam os autores, algo
parecido com o uso que os negros norte-americanos fazem do inglês. Pertencer a um grupo
marginalizado e escrever numa língua dominante talvez seja a principal característica desse
tipo de literatura. No caso de Kafka, o alemão era uma língua dominante, mas em Praga, não
tão prestigiada quanto o tcheco. Imagina-se um escritor imigrante, radicado na França,
escrevendo em outro idioma que não o francês, ou num francês “contaminado” pelas
influências de seu idioma de origem.
A “literatura menor” se caracteriza ainda pela ligação do individual ao coletivo
conferindo um caráter político e revolucionário à literatura. Na literatura menor, o ambiente
social não serve apenas de pano de fundo para as situações vividas pelo personagem, mas para
conectá-lo à realidade de tantos outros num projeto de enunciação coletiva ou agenciamento
coletivo de enunciação.
Mas o que seria, então, um agenciamento na concepção deleuziana?
Segundo um primeiro eixo, horizontal, um agenciamento comporta dois segmentos,
um de conteúdo, outro de expressão. De um lado ele é agenciamento maquínico de
corpos, de ações e de paixões, mistura de corpos reagindo uns sobre os outros; de
outro, agenciamento coletivo de enunciação, de atos e de enunciados,
transformações incorpóreas atribuindo-se aos corpos. Mas, segundo um eixo vertical
orientado, o agenciamento tem ao mesmo tempo lados territoriais ou
reterritorializados, que o estabilizam, e pontas de desterritorialização que o impelem.
(DELEUZE e GUATTARI, 2014, p.112)
Como tipos territorializados de agenciamento há as instituições familiares, sociais,
jurídicas, educacionais, religiosas. Em O vocabulário de Deleuze (online), François
Zourabichvili escreve que os agenciamentos sociais são definidos por códigos
preestabelecidos, mas que são frequentemente afetados pelas investidas das ações do
indivíduo, que
aí introduz sua pequena irregularidade, seja porque procede à elaboração
involuntária e tateante de agenciamentos próprios que "decodificam" ou "fazem
Nas fronteiras da linguagem ǀ 42
fugir" o agenciamento estratificado: esse é o pólo máquina abstrata (entre os quais é
preciso incluir os agenciamentos artísticos). (ZOURABICHVILI, 2004, p.8)
A literatura é uma máquina abstrata, porquanto se constitui pelos dois tipos de
agenciamento: o de expressão (agenciamento coletivo de enunciação) e de conteúdo
(agenciamento maquínico). Para Deleuze o agenciamento é o objeto por excelência do
romance.
Literatura menor e agenciamento em Capão pecado
Na literatura menor, “tudo toma um valor coletivo” (DELEUZE e GUATTARI, 2014,
p.37). Capão pecado é um livro que, por mais que seja assinado por um autor, Ferréz, trata-se
do resultado de um projeto de enunciação coletiva, em que o português não canônico – a
linguagem de jovens marginalizados da periferia de São Paulo – é o código linguístico
utilizado para produção da obra. Parte dos enunciados que compõem o agenciamento
maquínico de Capão pecado carrega a sintaxe e o léxico de um português bem diferente do
escrito e falado nas academias e na maioria das obras consideradas canônicas. O português é a
“língua maior” por meio da qual se expressam autor e personagens, mas uma língua maior
que comporta inúmeras variantes.
Ora, ocorre que uma língua de literatura menor desenvolve particularmente esses
tensores ou esses intensivos. Wagenbach, nas belas páginas em que analisa o alemão
de Praga influenciado pelo tcheco, cita como características: o uso incorreto de
preposições; o abuso do pronominal; o emprego de verbos curingas ( DELEUZE e
GUATTARI, 2014, p.46).
Se ao analisar o alemão de Praga, o editor e escritor Klaus Wagenbach observa o
hibridismo linguístico em sua composição, além das transgressões às normatizações
gramaticais e sintáticas, o que o filósofo não escreveria sobre o português falado e escrito no
Brasil. Afinal, como bem cantado na letra de Sem tradução do compositor Noel Rosa, “Tudo
aquilo que o malandro pronuncia. Com voz macia é brasileiro, já passou de português”. O
português brasileiro, além de suas raízes europeias, é fortemente afetado pelas línguas
indígenas e africanas. Na fala do brasileiro, dificilmente escuta-se a utilização da ênclise. A
próclise é a forma usual do pronome oblíquo na fala cotidiana, fenômeno já poeticamente
abordado pelo escritor modernista Oswald de Andrade em seu conhecido poema
Pronominais: “Dê-me um cigarro/Diz a gramática/Do professor e do aluno/E do mulato
sabido/Mas o bom negro e o bom branco /Da Nação Brasileira/Dizem todos os dias/Deixa disso
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 43
camarada/Me dá um cigarro.” Além das misturas linguísticas e transgressões normativas, pode-se
afirmar que as variantes resultantes de diferenças regionais, classes sociais e grupos culturais
contribuem para uma formação ainda mais complexa do português falado e escrito no Brasil. No
fragmento a seguir, transcrito de Capão Pecado, percebe-se o uso de palavrões, gírias resultantes
de estrangeirismos, desobediência a normas básicas de concordância verbal, neologismos falados
por jovens ativos nos movimentos de intervenção cultural e musical como o hip hop e o grafite.
- É! O bar do Polícia é o point agora, cê tá ligado? Também, o lava-rápido lá de
perto da igreja fechou; lá dava umas duas mil pessoas, mano.
- O que pegava lá, Burgos, é que o som da equipe tinha uma puta qualidade, aqueles
manos da Thalentos são foda, além do equipamento eles agitam o pessoal pra
caramba.
- É, pode crê, eu vim lá da Funchalense agora, tava tomando umas brejas lá, com os
manos da Sabin. (FERRÉZ, 2013, p. 35)
As intensidades e tensões no interior de uma língua são as possibilidades além dos
limites da própria língua, suas potências sonoras, sintáticas e semânticas. O diálogo transcrito
acima, entre os personagens Zeca e Burgos, é a expressão da realidade sociocultural desses
personagens, moradores de Capão Redondo, um dos bairros mais pobres e violentos da
periferia de São Paulo. Os dois se encontram em um bar movimentado (point), para tomar
umas brejas (cervejas). Nesse bar, Zeca pensa em São Paulo, cidade cosmopolita, considerada
uma das mais badaladas do mundo, e compara a vida dos playboys com a que ele tinha.
No plano linguístico, o parágrafo seguinte apresenta um narrador heterodiegético cuja
língua não parece ser a de seus personagens.“Rael abriu os olhos lentamente, o sol que
entrava pelas frestas das tábuas irritava seus olhos, levantou e foi até a cozinha, onde sua mãe
estava preparando café, ela lhe perguntou algo, mas ele não ouviu direito...” (FERRÉZ, 2013,
p.36) Longe de buscar no narrador a pessoa do autor, porém não ignorando o fato de a língua
utilizada por este refletir-se na daquele, observa-se um abismo linguístico entre narrador e
personagens. Abismo semelhante ao do narrador de Vidas secas e o personagem Fabiano. O
pouco domínio sobre a linguagem formal ou até mesmo sobre a linguagem de maneira geral
talvez impossibilitasse o personagem Fabiano de narrar. Se Ferréz optasse por um narrador
autodiegético e atribuísse a Rael, Zeca ou a Burgos essa função, todo o romance seria escrito
com registro coloquial.
Quantas pessoas hoje vivem em uma língua que não é a sua? Ou então não
conhecem mesmo mais a sua, ou não ainda, e conhecem mal a língua maior de que
são forçados a se servir? Problemas dos imigrados, e sobretudo de seus filhos.
Problemas das minorias. Problema de uma literatura menor, mas também para nós
todos: como arrancar de sua própria língua uma literatura menor, capaz de escavar a
Nas fronteiras da linguagem ǀ 44
linguagem, e de fazê-la escoar seguindo uma linha revolucionária? (DELEUZE e
GUATTARI, 2014, p.40)
Por mais que o texto de Deleuze e Guattari discorra sobre a obra de Kafka e de uma
realidade política, social e cultural bem diferente da de Ferréz, não é forçoso afirmar que os
que escrevem em um português diferente do prestigiado pelos círculos acadêmicos são ainda
classificados como uma literatura menor, não no sentido deleuziano do termo, mas “menor”
no plano estético da linguagem por meio da qual se expressam. Não fazem literatura. Ou
fazem o que se convencionou chamar de “literatura marginal”.
O professor Napoleão Mendes de Almeida já havia afirmado que a literatura brasileira
morrera com Machado de Assis em 1908, e que escritor é aquele que conhece o idioma, tem
erudição e cultura.
Certamente, o idioma de que fala Napoleão deveria ignorar as variantes regionais,
sociais e culturais, limitando-se à norma padrão. De acordo com Marcos Bagno, em
Preconceito linguístico, Napoleão se recusava a reconhecer Drummond como poeta por este
ter, em seu poema No meio do caminho, usado o verbo ter em vez de haver. Portanto o
preconceito de que trata o linguista em seu livro não se refere apenas aos usuários cotidianos
da língua, mas também aos que pretendem usá-la com fim literário.
O livro é comumente classificado como literatura marginal ou literatura de periferia.
Segundo Deleuze e Guattari, os critérios para a definição de literatura marginal, popular ou
proletária são muito difíceis e subjetivos enquanto não se passe pelo conceito mais objetivo
que é o de literatura menor. Para os filósofos é “a possibilidade de instaurar de dentro um
exercício menor de uma língua mesmo maior, que permite definir literatura popular ou
marginal.” (DELEUZE E GUATTARI, 2014, p. 39).
Mas marginal até quando? Nos anos 70, esse adjetivo era atribuído a uma literatura
praticada por autores – a maioria poetas – cujos textos estavam à margem do projeto
ideológico e financeiro do mercado editorial abalado pela censura da ditadura militar. Esses
poetas apresentavam uma literatura com proposta estética inovadora não apenas sob o ponto
de vista da linguagem, mas também pela forma de circulação. A literatura marginal composta
por Ferréz está além disso, pois, diferente da produzida por escritores oriundos em sua
maioria da classe média, as palavras que compõem a tessitura de Capão Pecado emergem de
um conjunto de vozes também marginalizadas. As partes do romance são abertas por textos
compostos por rappers amigos do autor.
Estar à margem dos bens materiais e culturais, dentre eles a universidade, bibliotecas e
livrarias é a realidade de moradores de bairros como Capão Redondo. Os produtos culturais
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 45
produzidos pelos moradores de regiões como essas são comumente recusados em ambientes
onde impera a cultura considerada de bom gosto: a “literatura maior”. A que quando
transgrede, apenas o faz no plano do conteúdo e da forma, porém linguisticamente se mantém
espelho do seguimento social de onde surge e que dita os parâmetros do que pode ser
considerado literatura, conceito frágil e até hoje objeto de acaloradas discussões em círculos
acadêmicos.
Meu nome é legião – romance o qual analisaremos adiante – também retrata a
realidade de um grupo socialmente excluído, porém a língua falada por seus personagens e
narradores não apresenta as variações e transgressões de Capão Pecado. Os marginalizados
do romance de Antunes estão na capital da língua portuguesa – Lisboa –, sua sintaxe de
concordância e de colocação, assim como seu léxico não têm a diversidade caracterizadora do
texto que ecoa de personagens como Rael e Burgos do romance de Ferréz.
O português ditado pelas gramáticas parece uma língua estrangeira para um número
grande de brasileiros que vivem numa língua que não é sua , porque ignora seu jeito de falar
e de se expressar. Fala oprimida dos que não têm acesso à cultura erudita e acadêmica das
universidades ganha no livro de Ferréz uma postura opressora dos círculos que ignoram o
terceiro mundismo linguístico dos moradores de áreas marginalizadas como Capão Redondo
(SP). Para Deleuze e Guattari, o uso transgressor que escritores e outros artistas podem fazer
da língua é uma saída para a linguagem, para a música, para a escrita. Esses autores devem
servir-se do polilinguismo de sua língua (2014).
Agenciamento e rizoma em Meu nome é legião
Meu nome é legião, romance publicado em 2007 pelo escritor português António Lobo
Antunes, conta a história de oito garotos entre 12 e 19 anos, que roubam dois carros e
praticam crimes em um bairro afastado de Lisboa. Os três primeiros capítulos são narrados
por Gusmão, policial em fim de carreira, como se fosse um relato policial. No entanto, outros
personagens – que têm algum tipo de relação com os criminosos – assumem também o papel
de narradores, e suas vozes se sobrepõem umas às outras transformando a narrativa num
mosaico polifônico e rizomático.
No começo do livro, tem-se a impressão de que Gusmão, metalinguisticamente,
assumirá a função de autor. Chega-se a acreditar que o romance seguirá a forma de um relato
policial e que o autor se valerá desse personagem para levar adiante seu projeto narrativo,
apagando-se sob o simulacro do narrador, como faz Clarice Lispector com seu Rodrigo S.M.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 46
em A hora da estrela. Porém a palavra é tomada por uma prostituta de cinquenta anos que é
amante de um dos garotos. E da prostituta a palavra é tomada pelo pai de outro menino e
depois pela irmã e a mãe de outro. Em vários trechos do romance não se sabe exatamente a
quem pertence os enunciados, pois o discurso de cada narrador é entrecortado pelas vozes e
discursos de outros micronarradores que emergem de suas lembranças, presentificando-se na
narrativa tal qual fantasmas, dificultando ao leitor, a identificação do narrador/autor que as fez
emergir. Dessa forma, por meio dos personagens, não se consegue facilmente buscar o
narrador que media seus discursos. Se Gusmão redige o inquérito policial, ele é o autor
ficcional deste texto. Porém o narrador faz a seguinte revelação a seu leitor:
desde que comecei a escrever se é que pode chamar-se escrever ao que faço, já
garanti ser uma voz que dita umas ocasiões tão depressa que não a acompanho e
outras silencio horas a fio e eu de bico no papel” (ANTUNES, 2007, p.122).
Talvez, neste ponto, personagem/narrador tangencie o escritor, que também afirma
não ser o autor do que escreve atribuindo isso a uma voz desconhecida.
A Lisboa retratada em Meu nome é legião é uma capital de imigrantes africanos e
mestiços, que sofrem com o racismo e a discriminação. Sem panfleto, Lobo Antunes, ou a voz
a que narrador/personagem/ autor se refere, por meio de arranjos poéticos como “os mestiços
não choram porque o mecanismo das lágrimas não nasceu com eles que vantagem, dividem
tripas no seu idioma de consoantes compridas”, denuncia como vive a população pobre e
periférica da capital portuguesa.
Meu nome é legião é o agenciamento por excelência. Não narrador, mas uma
multiplicidade deles, com vozes que se entrecruzam, se complementam, se contradizem ou se
repetem para contar a história dos garotos delinquentes e de seus crimes. Enunciados que
agem uns sobre os outros, ou corpos que agem uns sobre os outros para ser mais preciso em
terminologia deleuze-guattariana, peças da grande máquina que é o romance, cujas
engrenagem são, além dos personagens-narradores, seu autor, Lisboa, os problemas dos
imigrantes e miseráveis lisboetas.
Para Deleuze e Guattari “a enunciação literária a mais individual é um caso particular
de enunciação coletiva” (DELEUZE e GUATTARI, p. 152). Afirmar-se não ser ele o autor do
romance, mas que este resulta de vozes que lhe ditam o que escreve, coloca Lobo Antunes na
posição de um autor que se assume como parte de um agenciamento coletivo de enunciação e
não como senhor dos enunciados; ao ponto de o livro parecer um ser autônomo.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 47
Mesmo aquele que tem a infelicidade de nascer no país de uma grande literatura
deve escrever em sua língua como um judeu tcheco escreve em alemão, ou como um
uzbeque escreve em russo. Escrever como um cachorro que faz seu buraco, um rato
que faz sua toca. (Ibdem)
Assim é a escrita de Lobo Antunes, como a de um cachorro que cava seu buraco, nos
quais insere suas construções metafóricas e sintáticas inovadoras. Os enunciados do romance
em inúmeros trechos não se completam, porque o diálogo entre os personagens é sempre
entrecortado por lembranças, anacolutos, frases incompletas, dificuldades com a linguagem e
com a comunicação. Ler Meu nome é legião é como estar em uma sala com mais de dez
pessoas falando ao mesmo tempo.
São outras vozes que oiço, finados de antes do meu nascimento num português de
pretos porque somos pretos e não temos um lugar que nos aceite salvo figueiras
bravas e espinhos, se contasse das vozes ao meu marido por mais que se inclinasse
para o chão (e inclinar-se-ia para o chão coitado).
Não entendia senão o vento nas ervas (ANTUNES, 2007, p. 153)
No trecho acima, tem-se o depoimento da mãe de um dos garotos presos, moradora de
um bairro de imigrantes e portugueses negros na periferia de Lisboa. Um bairro, assim como
Capão Redondo, abandonado pelas políticas do Estado e vítima da violência policial. O que
aproxima o texto de Antunes do conceito de “Literatura menor” é o fato de o autor permitir
que seus personagens falem sem mediações, criando com isso uma língua totalmente
agramatical e assintática. Conteúdo e expressão são determinados sempre de forma inovadora,
já que a possibilidade de criar enunciados novos é uma característica da literatura menor. No
caso de Antunes, feito numa “língua maior” sem a diversidade linguística de Capão pecado.
Para Lobo Antunes, cada livro representa uma experiência nova com a escrita,
perseguindo formas e expressões diferentes ou aprofundando experiências de obras anteriores.
Segundo Deleuze, em Crítica e Clínica “A literatura está antes do lado do informe, ou
inacabamento (...) Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se
(...)”(DELEUZE, 2011, p. 11)
Quanto à recepção, Meu nome é legião não deve gerar rejeição no leitor brasileiro por
utilizar uma língua considerada vulgar por uma elite letrada (no trecho transcrito, há inclusive
uma construção mesoclítica). Para o leitor mediano, talvez pelo português com construções
comuns à sintaxe e semântica lusitanas. A todo um conjunto de leitores, independente do grau
de iniciação à leitura ou à Literatura, o romance apresenta grandes desafios devido a sua
elaboração formal, constituída de rizomas narrativos. Em Mil Platôs, Deleuze e Guattari
postulam que um rizoma conecta “cadeias semióticas, organização de poder, ocorrências que
Nas fronteiras da linguagem ǀ 48
remetem às artes, às ciências, às lutas sociais.” (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p.15). Os
agenciamentos do romance produzem uma obra rizomática cuja leitura implica a disposição
do leitor para se aventurar numa selva sem trilhas, para atuar como um cartógrafo, traçando
linhas de leitura e conectando discursos e signos para que a leitura e a compreensão do texto
sejam possíveis.
Considerações finais
Tanto Meu nome é legião quanto Capão pecado apresentam traços característicos do
que se conceitua como agenciamento e literatura menor. Para Deleuze, o verdadeiro filósofo é
o que inventa conceitos e essa é uma das funções da filosofia. Os conceitos criados pela
filosofia valem pela possibilidade de serem aplicados, adaptados e relidos em situações
diferentes daquelas em que se originaram. A filosofia de Deleuze e Guattari, por seu caráter
transgressor, assim como é a literatura de Lobo Antunes e Ferréz, permite a análise dessas
duas obras que, independentemente dos critérios de gosto ou das definições do que é ou não é
literatura, apresentam desafios para leitores, professores e críticos: o desafio de ler e analisar
obras cujos procedimentos de composição e expressão são resultado das experiências sociais,
políticas, culturais e estéticas de autores cuja escrita assim como a vida é um devir, uma
atividade inacabada, sujeita a mudanças e que não se rende ao ditames das instituições.
O enunciado se faz de acordo com determinadas regras e faz parte do que os filósofos
chamam de máquina. Os agenciamentos sociais (família, universidade, religião, empresa, etc.)
são totalmente territorializados. Uma literatura considerada menor será sempre a de uma
língua desterritorializada, uma literatura onde o interesse individual está ligado ao “imediato-
político” e o agenciamento de enunciação será sempre coletivo. É o que fizeram António
Lobo Antunes e Ferréz nos romances objetos deste estudo.
Referências
ANTUNES, António Lobo. Meu nome é legião. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico: o que é, como se faz. 55ª ed. São Paulo: Edições
Loyola 2013.
DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. Tradução: Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34,
2011.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 49
DELEUZE e GUATTARI. Kafka:por uma literatura menor. 2ª ed. Tradução: Cintia Vieira da
Silva. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.
FERRÉZ. Capão Pecado. 1ª ed. São Paulo: Planeta, 2013.
ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Em
www.claudioulpiano.org.br.s87743.gridserver.com/agenciamento-deleuze. Acesso em 20 de
abril de 2015.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 50
O FILME DENTRO DO FILME. TEATRO, TV E CINEMA: UM
ESTUDO SOBRE A METALINGUAGEM EM “LISBELA E O
PRISIONEIRO”, DE OSMAN LINS [Voltar para Sumário]
Adriano Siqueira Ramalho Portela 1
Osman Lins
Nascido em Vitória de Santo Antão, zona da mata pernambucana, Osman Lins é autor
de peças de teatro, contos, romances e ensaios. O romance “Avalovara” 2 (1973) é
considerado pelos pesquisadores e por seus leitores como a sua obra prima. Já no final da
vida, o vitoriense chegou a escrever direto para a mídia televisão, resultante dos “Casos
Especiais” 3, programa transmitido em 1978 pela Rede Globo. As narrativas foram: “A Ilha
no Espaço”, “Quem era Shirley Temple?” e “Marcha Fúnebre”. Depois vieram as adaptações;
em 1981 a TV Cultura exibiu “O Fiel e a Pedra” 4; Em 1993, a peça “Lisbela e o Prisioneiro”
– corpus do nosso estudo -, foi levada para a TV.
Lisbela e o Prisioneiro
A peça foi encenada pela primeira vez em 1961, no teatro Mesbla do Rio de Janeiro,
pela Companhia Tonia-Celi-Autran. O enredo se passa na cadeia pública de Vitória de Santo
Antão. Lisbela é filha do delegado, o Tenente Guedes, e noiva do advogado Noêmio. A jovem
se interessa por Leléu, uma mistura de conquistador com artista de circo. Na trama outros
personagens também ganham destaque, são eles: o soldado, corneteiro e apaixonado por fitas
1 Jornalista. Mestrando em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. 2 O livro intercala oito narrativas que permeiam tempos e espaços distintos, tendo como ponto de partida uma
espiral e um quadrado. 3 A série de programas fez parte da programação da Rede Globo entre 10 de setembro de 1971 e 5 de dezembro
de 1995. No total foram 172 episódios. Diversos autores foram adaptados, como Machado de Assis, Graciliano
Ramos e Jorge Amado. 4 O romance foi adaptado por Jorge Andrade.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 51
de vídeo, Jaborandi5; o soldado Juvenal, o cabo Heliodor, o carcereiro Citonho, os presos
Testa-Seca e Paraíba, o vendedor de pássaros e amante da mulher de Raimundinho; e o
matador Frederido Evandro. O eixo central da peça está no triângulo amoroso entre Lisbela,
Noêmio e Leléu; o conflito: Leléu é preso por tentar conquistar Lisbela e perseguido por ter se
envolvido com a mulher do matador Evandro.
Lisbela e o prisioneiro é peça indispensável no conjunto dramatúrgico Osman Lins.
Escrita sob os cânones da tradição cômico-popular, confere espaço a essa faceta do
autor, cujas obras apresentam, na maioria, forte tom dramático. (DIAS, 2011, p. 20).
De acordo com Sandra Nitrini, o texto é uma comédia de caracteres e com uma
estrutura tradicional, “com exposição, desenvolvimento, falso clímax, clímax, desfecho de
situações vivenciadas por personagens nordestinos muito bem amarrados”. (NITRINI apud
LINS, 2011, p. 113).
Osman adaptado
“Nem o produto nem o processo de adaptação existem num vácuo: eles pertencem a
um contexto – um tempo, um lugar, uma sociedade cultural”. (HUTCHEON, 2013,
p. 17).
O cineasta pernambucano, Miguel Arraes de Alencar Filho6, é - podemos dizer -,
quase um personagem de “Lisbela”. Guel Arraes, como é conhecido, é um profissional que se
mostra interessado no cruzamento das linguagens. Em 1993 ele dirigiu uma série da Rede
Globo, chamada “Terça Nobre”, onde os programas eram adaptações dos clássicos da
literatura nacional. Uma delas foi, justamente, “Lisbela e o Prisioneiro”. Em 2000, Guel
retomou o texto do vitoriense, só que dessa vez, a adaptação foi para o teatro, três anos mais
tarde, os mesmos atores da peça seguiram com o diretor para o cinema. No roteiro, Arraes
teve o suporte dos cineastas Jorge Furtado e Pedro Cardoso, na direção musical, a parceria foi
com o pernambucano e também cineasta e dramaturgo João Falcão. O filme levou mais de
três milhões de espectadores pagantes ao cinema, ocupando o sétimo lugar no ranking7. Isso
remonta a reflexão de Virgínia Woolf, no livro Os filmes e a realidade: “O cinema tem ao seu
5 Na adaptação para o cinema, a personagem Lisbela é que é apaixonada por cinema. 6 Cineasta e diretor de televisão. Filho do ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes. Atualmente é diretor de
programas de entretenimento da Rede Globo de Televisão. Ele também dirigiu “O auto da Compadecida”
(1999); “Caramuru – A invenção do Brasil” (2000); “Romance” (2008); e “O bem amado” (2010). 7 Dados da Ancine referentes ao ano 2003 (www.ancine.gov.br).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 52
alcance inúmeros símbolos para emoções que até hoje não encontramos expressão.” (1926, p.
309).
Diretor e equipe demonstram prezar pelo quesito intertextualidade, e o filme nos traz
um ícone em especial que finda por estabelecer o diálogo com o leitor e, posteriormente, com
o espectador, é a metalinguagem. Tanto Osman como Guel se utilizam dessa ferramenta em
seus trabalhos, tecendo um jogo de conhecimento e entretenimento.
Metalinguagem
“Metalinguagem é linguagem falando de linguagem” (1986, p. 32). Chalhub nos inicia
muito bem no tema, reforçando que todo enunciado que se referir à língua, linguagem e
termos relacionados é meditado metalinguístico, por exemplo: um filme que fala sobre filme,
uma canção que aborda outra canção, uma peça teatral que retrate outra peça. Neste estudo
vamos analisar as funções características do processo de comunicação com ênfase na função
metalingüística da linguagem em “Lisbela e o Prisioneiro”. O ponto de partida é o texto
original:
Lapiau – Se me lembro? Ora se! Peça formidável era aquela: “Meu Único
Progenitor”.
Leléu – E “A Paixão de Cristo”, rapaz. Aquilo é que era uma peça. Quarenta e dois
atos.
Lapiau – Quarenta e seis.
Jaborandi – Danou-se. Nem uma série.
(LINS, 2011, p. 45)
A primeira vista podemos até passar despercebido, mas parando para refletir,
compreendemos que “Lisbela” é um texto literário teatral e que, especificamente na citação
supracitada, está fazendo referência a outra peça de teatro. “Recentemente a especialização da
arte levou os artistas a dialogarem não com a realidade aparente das coisas, mas com a
realidade da própria imagem.” (SANT’ANNA, 1988, p. 8).
Na TV e, no cinema, principalmente, o uso da metalinguagem é mais presente, tendo
como alvo o envolvimento do espectador, despertando o seu interesse pela obra. Em “Lisbela
e o Prisioneiro” a diegese8 – tanto no produto veiculado na TV como nas telonas -, se dá,
diversas vezes, nos encontros dentro do cinema. É lá que eles assistem os filmes em preto e
8 Segundo João Batista de Brito, diegese é compreendida como “todo o universo fictício, temporal e
espacialmente concebido, manifestado ou implícito num filme; o que inclui, portanto, não só a sua narração,
como também os seus aspectos descritivos, subtendidos ou não” (1995, p.204).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 53
branco, namoram, brigam, tentam se resolver, e também é o local onde acontece o desfecho
da história. No episódio que foi ao ar na Rede Globo, Guel Arraes usou imagens do cinema
mudo e de seriados de TV dos anos 50. Em uma das cenas o tenente Guedes entrega armas
aos soldados com a finalidade deles capturarem Leléu, esse trecho é alternado com imagens
do filme “Carlitos em Fuga”; e assim o diretor foi costurando o enredo e desenvolvendo seu
processo criativo.
Os experimentos que ocorreram na TV foram retomados e aprimorados para o
cinema. A diferença é que, no caso do filme, ele não recorreu aos clássicos originais
do cinema. Guel e equipe preferiram criar novas inserções, paródias
cinematográficas, com atores diferentes do elenco, digamos assim, do filme
principal, Lisbela e o Prisioneiro, o que fez surtir um efeito extremamente
interessante de um filme dentro de outro filme. (FIGUÊIROA e FECHINE, 2008, p.
235).
O diretor leva para a TV e para o cinema uma crítica aqueles que só enxergam o
nordeste como uma terra seca e sem valor cultural, como um espaço sem cor, sem graça, onde
nada pode acontecer; por meio do humor ele apresenta um nordeste colorido, um tanto
surrealista, com permissividade para o teatral. Com essa releitura, o Nordeste passa a ser o
espaço diegético texto-filme, onde Guel resulta por romper fronteiras quando passa a dialogar
com a contemporaneidade, deixando suas personagens, mesmo estando na zona da mata,
adeptas de características urbanas.
No artefato metalinguagem, a crítica ganha corpo, mostrando que situações que
acontecem lá fora, como nas tramas de Hollywood, podem ocorrer no Brasil, e porque não no
nordeste. Arraes aproveita o humor crítico de Osman Lins e acrescenta seu arsenal de técnicas
para mostrar o filme dentro do filme, unido o cômico à análise, provocando e, ao mesmo
tempo, levando o distanciando entre espectador e objeto, “uma vez que a comicidade se dirige
a inteligência pura, e a avaliação crítica é procedimento de um teatro épico consciente”.
(BERGSON, 2004, p. 3).
Na TV ele aproveita todos os espaços e chega a brincar com a “passagem de bloco”9.
Na transição para o terceiro intervalo, por exemplo, surge a locução: “Não perca no próximo
bloco. A moça que virou cobra, o valente que fez o diabo chocar um ovo, a mulher que deu à
luz um satanás; e se for mentira, eu cegue.” (FIGUEIRÔA e FECHINE, 2008, p. 239). Com
essa estratégia o diretor consegue prender a atenção do telespectador e fazer com que ele não
disperse e espere a volta do break10
. Percebemos que os códigos passam a se relacionar, e o
9 Usado em programas de televisão, novelas e minisséries, a passagem de bloco é um formato de arte usada para
a transição entre o produto e o intervalo comercial. 10 Intervalo entre os programas de TV.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 54
off11
da passagem de bloco culmina por representar e informar que o próximo capítulo volta
em breve, ou seja, é o signo como signo de alguma outra coisa.
A metalinguagem é uma aposta antiga e que vem dando certo, a prova está em alguns
clássicos, como: “Oito e Meia” (1963), dirigido por Fellini. A película conta a história do
cineasta Guido Anselmi que está sem ideia para a realização do seu filme; ele acaba entrando
em crise, é internado e passa a misturar ficção com realidade. Dez anos depois estreia “A
Noite Americana”, de François Truffaut. O enredo mostra os bastidores de um set de
filmagem e uma tamanha confusão envolvendo atores, dublês e o diretor. E para encerrar a
nossa lista12
, numa coincidência de intervalos de dez anos, o filme “Zelig” (1983), de Woody
Allen. A obra é uma pseudo-documentário sobre Leonard Zelig, interpretado pelo próprio
Allen. O protagonista costumava modificar a aparência para agradar quem se aproximava
dele. Esses feitos, essa vontade de mostrar, de descodificar os signos calha com uma das
teorias de Robert Stam, quando ele diz que “o cinema é em si é um instrumento filosófico, um
gerador de conceitos que traduz o pensamento em termos áudio-visuais.” (2006, p. 25).
Os números, já citados anteriormente, mostram que “Lisbela” fora um sucesso de
bilheteria e isto vem provar que o filme conseguiu estabelecer uma identificação com o
público; essa é uma das inúmeras possibilidades oferecidas pela metalinguagem. Ana Lúcia
Andrade explica que ao longo da história do audiovisual, o cinema norte-americano percebeu
o encanto que poderia exercer no público ao tratar a si mesmo na telona.
Para atingir esse grau de cumplicidade com o público, o cinema primeiramente
retratou seu próprio ritual, em um jogo de reconhecimento em que o espectador
assistia ao que lhe era mais familiar até então, enquanto ia formando seu inventário
imagético. (ANDRADE, 1999, p. 65).
Em “Lisbela” essa empatia com o público vem estampada na primeira cena, onde a
mocinha e Douglas13
estão no cinema. O espectador se identifica com o casal procurando o
lugar certo para sentar, um local que não fique nem muito perto da tela nem muito longe e
sim, com brechas para que possam ver bem. Lisbela mostra-se fascinada pelo mundo do
cinema e vai contando para o noivo como procedem as cenas da comédia romântica que
assistem; Douglas aparenta ter bem menos conhecimento em relação à sétima arte e está ali
mesmo é para namorar. Quando a mocinha principia a contar as cenas, passa-se a ter uma
11 Voz do narrador usada para cobrir uma imagem. 12 Lista com uma quantidade suficiente de filmes com a temática metalingüística está disponível em:
<http://cinetoscopio.com.br/2013/06/20/11-filmes-de-metalinguagem-no-cinema/> 13 No texto original, Douglas é o advogado vegetariano, o Dr. Noêmio.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 55
interação com o espectador, o qual parece querer opinar, sugestionar. Ele acaba se
encontrando “dentro da narrativa”.
Lisbela – Eu adoro essa parte. A luz vai se apagando devagarzinho. O mundo lá fora
vai se apagando devagarzinho. Os olhos da gente vão se abrindo. Daqui a pouco a
gente não vai mais nem lembrar que tá aqui.
Douglas – É preto no branco.14
A narração em off, usada no especial para TV é aproveitada no cinema. A voz narra
trechos do filme em preto e branco, ao mesmo tempo atrelando aos momentos vividos por
Leléu e Lisbela. Outros elementos compõem essa intercalada, por exemplo, quando o vilão
Frederico Evandro aparece pela primeira vez, também aparece um vilão no filme que o casal
está assistindo; em seguida a narração volta e o processo metalinguístico continua. Em uma
das cenas, Frederico, ao chegar a casa, flagra sua mulher Inaura na cama com Leléu;
revoltado ele sai atirando e correndo para pegar o Dom Juan nordestino. No cinema o casal vê
o mocinho sendo perseguido pelo bandido. Entra o off: “Será que nosso herói vai partir para
o beleléu? Não perca no próximo episódio: as aventuras de um herói sabido contra o corno
matador”. (Transcrição do filme). Os enredos vão se cruzando, é como se a história que eles
assistem no cinema, fosse igualmente acontecendo na cidade onde estão.
Existem momentos em que a metalinguagem acontece em níveis variados, em uma
delas Lisbela está sozinha dentro do cinema, quando Leléu aparece; os dois, além de estarem
vivendo algo semelhante ao que acontece na película projetada, começam a conversar sobre
cinema e o contexto do diálogo se realiza na telona; quando eles estão falando sobre história
de amor, ao fundo o casal do filme vive momentos felizes.
Leléu – a senhora tem vontade de ser artista de cinema, é?
Lisbela – E meu filho, eu não sou nem americana pra ser artista.
Leléu – Minha filha, nunca ouviu falar em artista nacional, não?
Lisbela – Uma história de amor bonita mesmo, só nesses filmes.
Leléu – É? Quando a mocinha é nacional é bom que o beijo já vem traduzido.
Lisbela – Deixa de ser besta que eu não lhe dei essa ousadia. (Transcrição do filme Lisbela e o Prisioneiro).
Perto do desfecho da obra, a metalinguagem se repete. Lisbela havia terminado o
relacionamento com Douglas e estava no cinema esperando por Leléu. O “herói” chega ao
final do filme que a mocinha estava assistindo. Percebendo algo de estranho, ela antecipa a
sua fala:
14 Transcrição do filme “Lisbela e o Prisioneiro”. Transcrição nossa.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 56
“Veio dizer que vai embora. É igualzinho no cinema. A mocinha está ansiosa esperando o mocinho e finalmente
eles se reencontram. Ele vem se aproximando e ela acha que é para dar um beijo. Mas aí ela vê que o rosto dele
está preocupado demais para isso.” (Transcrição do filme Lisbela e o Prisioneiro).
Até na cena da cadeia o diálogo metalinguístico é desenvolvido. Depois do beijo,
Leléu questiona se aquele fora o beijo do casamento, ela nega e diz que foi o da despedida; o
herói pergunta se ela não sabe que todo filme de amor se acaba em beijo. “Sei. Mas já acabou
a luz do cinema. E agora vai começar a minha vida”. (Transcrição). No desenlace da história,
quando Leléu e Lisbela estão no caminhão, o diretor reforça ainda mais suas técnicas e coloca
de vez o espectador na história.
Lisbela – Mas agora eu me sinto num filme de verdade.
Leléu – É? Lisbela e o Prisioneiro. O nosso filme nunca vai ter fim.
Lisbela – Espera um pouquinho.
Leléu – Que foi?
Lisbela – É que o melhor do cinema é o jeito como termina.
Leléu – E como é isso, heim?
Lisbela – Adivinha?
Leléu – Com todo mundo olhando.
Lisbela – É só no começo. Depois o filme acaba.
Leléu – Então tá bom da gente se apressar, porque o povo já entendeu que ta
acabando e é capaz de começar a sair sem prestar mais atenção na gente.
Lisbela (olhando para câmera) – Mas talvez nessa sala tenha pelo menos um casal
apaixonado que vai assisitir até o finalzinho. E mesmo depois que o filme acabar,
eles vão ficar parados um tempão até o cinema esvaziar todinho. E aí vão se
mexendo devagar como se estivessem acordando depois de sonhar com a história da
gente.
Leléu – tomara que eles tenham gostado.
Após o beijo, o cenário passa a ser a sala de cinema e na tela surgem Leléu e Lisbela,
entra lettering:15
“Fim”; as pessoas vão saindo até sobrar um casal na sala. Os dois são os
últimos a sair, são eles, justamente, Leléu e Lisbela. Guel, por fim, acaba conseguindo a
identificação ainda maior de um público em particular, os casais apaixonados que frequentam
o cinema. E para fechar com ainda mais elementos metalinguísticos, João Falcão utiliza uma
música de sua autoria junto com André Moraes e gravada pela banda Cordel do Fogo
Encantado16
.
O amor é filme.
Eu sei pelo cheiro de menta e pipoca que dá quando a gente ama.
Eu sei porque eu sei muito bem como a cor da manhã fica.
Da felicidade, da dúvida, da dor de barriga.
É drama, aventura, mentira, comédia romântica.17
15 Texto que surge na tela. 16 Foi um grupo musical brasileiro fundado na cidade de Arcoverde, Pernambuco. 17 O amor é filme. Disponível em: <http://letras.mus.br/lirinha/238132/>
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 57
Para Betton18
, a música é uma atividade importantíssima no cinema, ela consegue unir
funções estéticas e psicológicas, aumentando a capacidade expressiva do filme, criando
coques afetivos que exaltam a afetividade.
Conclusão
Podemos, se não for ousadia da nossa parte, ultimar que a própria obra “Lisbela e o
Prisioneiro” - seja ela peça de teatro, especial para TV ou cinema -, é, por si só,
metalinguística. Falar em “Lisbela” é se reportar, automaticamente, a uma linguagem
discorrendo sobre outra linguagem. Osman, no livro Guerra Sem Testemunhas, em suas
indagações em relação à Indústria Cultural questionou: “poderá um romancista, um poeta,
levar-lhes contribuições, não porém a eles aderir, abandonando o livro.” (LINS, 1978, p. 5).
Talvez o nosso escritor tenha morrido sem a conclusão para a sua reflexão; mas, o fato é que,
sem abandonar o texto original, “Lisbela” invade a Indústria, aproveita todas as
oportunidades, e contribui para os processos da literatura, do teatro, do cinema e das pesquisas
acadêmicas, tornando este artigo, quem sabe, em um possível documento metalinguístico. E
como num palimpsesto, cada um vai escrevendo a sua “Lisbela e o Prisioneiro”.
Referências
ANDRADE, Ana Lúcia. O filme dentro do filme: a metalinguagem no cinema. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 1999.
BRITO, J. B. D. Imagens Amadas: ensaios de Crítica e teoria do cinema. São Paulo: Ateliê
Editorial, 1995.
CHALHUB, Samira. A metalinguagem. São Paulo: Ática, 2005.
BERGSON, Henri. O riso. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BETTON, G. Estética do Cinema. Tradução: Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes,
1987.
FALCÃO, João e MORAES, André. O amor é filme. Disponível em:
<http://letras.mus.br/lirinha/238132/> . Acesso em: 18 jun. 2011.
FIGUEIRÔA, Alexandre; FECHINE, Yvana. Guel Arraes: um inventor no audiovisual
brasileiro. Recife: CEPE, 2008.
18 BETTON, G. Estética do Cinema.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 58
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Tradução: André Cechinel, 2º ed.
Florianópolis: UFSC, 2013.
LINS, Osman. Guerra Sem Testemunha. São Paulo: Martins, 1969.
LINS, Osman. Lisbela e o Prisioneiro. São Paulo: Planeta, 2011.
LISBELA e o prisioneiro. Direção de Guel Arraes. Rio de Janeiro. Globo Filmes, 2003. DVD:
son., color.
SANT’ANNA, A. R. d. Paródia e Paráfrase & Cia. 3 ed. São Paulo: Ática, 1988 (Série
Princípios; 1)
STAM, Robert. Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à intertextualidade. New York
WOOLF, Virgínia. The movies and reality. New Republic, 1926.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 59
MUXE MARAVILHA E MULHER DEPOIS: DA GRAPHIC
NOVEL À POESIA, IDENTIDADE DE GÊNERO EM
ANGÉLICA FREITAS [Voltar para Sumário]
Ágatha Costa Salcedo (UFAL)
Por compreender que o ser humano (seja ele artista ou não) é pertencente à cultura de seu
tempo e espaço, acho por bem ressaltar que a poesia de Angélica Freitas é marcada pelo contexto em
que a poeta está inscrita, não no sentido determinista, mas na compreensão de que sua poesia traz em
si a marca da existência no conturbado mundo contemporâneo (séc. XXI). Sua produção literária é
composta por dois livros de poesia – Rilke shake e Um útero é do tamanho de um punho, publicados
em 2007 e 2012, respectivamente – e Guadalupe – graphic novel publicada em 2012, em que assina o
roteiro e o cartunista Odyr é responsável pelas ilustrações.
Os temas abordados por Angélica Freitas são atuais, e se hoje encontram espaço de
locução, devem em parte ao percurso traçado por tantas outras mulheres que inseriram suas
personagens femininas e a representação (na literatura) das experiências e angústias
vivenciadas por mulheres. Em “A ficção brasileira no horizonte pós-moderno: recusa e
incorporação”, Tânia Pellegrini (2008) destaca que por volta dos anos de 1980 houve uma
crescente presença de novas temáticas relacionadas às experiências vividas nas grandes
cidades – naquele momento o tom de resistência à ditadura militar (1964-1985) havia iniciado
seu processo de arrefecimento.
A resistência à ditadura cede espaço à resistência a ideia hierárquica e ancestral
balizada pelo discurso cristão, masculino e branco. Assim como surgiam novos movimentos
sociais, pautados em bandeiras específicas (como a questão racial, a condição feminina, a
homossexualidade e a religião), surgiam, na literatura, novas vozes que representavam
espaços de locução para as novas formas de organização e pensamento.
Angélica Freitas é considerada uma das vozes mais significativas do feminismo na
literatura brasileira contemporânea, conseguindo aliar crítica à qualidade estética, não
perdendo em forma ao abordar questões que dizem respeito às mulheres contemporâneas.
Com traços típicos das produções pós-modernas, apresenta aos leitores e leitoras obras
Nas fronteiras da linguagem ǀ 60
marcadas por uma ironia inteligente, imersas em referências e numa apropriação do popular
que resultam na transmutação de seu contexto em parte integrante de sua produção literária.
Este trabalho propõe um caminho interpretativo para a graphic novel Guadalupe e
para o poema “mulher depois” (do livro Um útero é do tamanho de um punho), buscando
investigar a maneira como Angélica Freitas imprimiu em sua obra seu posicionamento acerca
da questão da identidade de gênero, seja em forma quanto em conteúdo.
O feminismo atual não traz um consenso no que diz respeito a questão das mulheres
transexuais1, bem como das travestis, alguns grupos que se reivindicam feministas afirmam
que tais pessoas devem ser atreladas às questões LGBT’s, não às questões ditas femininas,
enquanto outros grupos entendem que a identidade de gênero é essencial na compreensão do
ser mulher, e que não é o fato de ter nascido com uma genitália “masculina” que impedirá que
uma mulher trans2 se reconheça em sua identidade de gênero feminina e seja reconhecida
pelas demais mulheres na luta contra uma sociedade heteronormativa, sexista e excludente.
A medida em que constrói suas personagens femininas, Angélica Freitas desconstrói a
ideia determinista que associa identidade de gênero ao sexo de nascimento. Esta ruptura é
claramente percebida no poema “mulher depois”:
queridos pai e mãe
tô escrevendo da tailândia
é um país fascinante
tem até elefante
e umas praias bem bacanas
mas tô aqui por outras coisas
embora adore fazer turismo
pai, lembra quando você dizia
que eu parecia uma guria
e a mãe pedia: deixem disso?
pois agora eu virei mulher
me operei e virei mulher
não precisa me aceitar
não precisa nem me olhar
mas agora eu sou mulher
(FREITAS, 2012b, p.35)
1 A pessoa transexual é aquela que recorre à prática das transformações corporais para atender a seu desejo de
viver e ser identificada como pessoa do sexo oposto ao seu sexo biológico. A transexualidade é, nesse sentido,
uma condição sexual que, segundo a definição médica, é denominada é, nesse sentido, uma condição sexual que,
segundo definição médica, é denominada de transexualismo, transtorno de identidade sexual ou de identidade de
gênero (VENTURA, 2010,p.11). 2 A partir deste momento, utilizaremos o termo “mulher trans” para nos referirmos a mulheres transexuais.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 61
A autora se apropria de um tom epistolar, compondo seu poema a partir de
fragmentos/desmembramentos de uma possível correspondência (um e-mail, talvez) enviada
por uma mulher trans que acaba de fazer sua cirurgia de mudança de sexo em um dos países
que são referência em cirurgias do tipo, a Tailândia.
O título escolhido para o poema, “mulher depois”, indica o ponto de vista da autora,
que reconhece a construção social das mulheres – relembrando a famosa frase de Simone de
Beauvoir, que afirmou que “ninguém nasce mulher, mas torna-se mulher” – incluindo nesta
construção as mudanças físicas (conseguidas por via cirúrgica) pelas quais uma mulher trans
passa. A autora rompe com a ideia normativa vigente na sociedade brasileira:
A concepção normativa expressa é que o normal é a coerência entre sexo-gênero,
implícita a compreensão de sexo e gênero a partir de aspectos biológicos, e que
quaisquer outras combinações que não sejam mulher/feminino, homem/masculino
são patológicas. Esse sistema sexo/gênero, que se fundamenta em uma base
biológica e na diferença sexual, estabelece, ainda, combinações entre seus elementos
a partir da matriz binária heterossexual que determina a complementaridade
“natural” dos sexos opostos e se converte em um sistema regulador da sexualidade
dos sujeitos (VENTURA, 2010, p.13)
Angélica Freitas assegura espaço de locução para esse grupo específico de mulheres,
trazendo para o público o ponto de vista de pessoas que normalmente se encontram à margem
na sociedade.
Reconhecemos em seu poema um traço característico do Brasil, em que para que uma
mulher trans seja reconhecida legalmente enquanto mulher, precisa ser diagnosticada como
indivíduo portador de transtorno de identidade de gênero, ou seja, precisa ser catalogada
enquanto “doente”, catalogação que permitirá passar por processos cirúrgicos, encarados por
muitas dessas mulheres como uma necessidade para que se alcance o reconhecimento de sua
identidade de gênero. Temos registrado o peso na normatividade, que encontra respaldo
jurídico para impor padrões, que cataloga tudo que dela diverge como patológico, tornando-se
apta a intervir, inclusive, na esfera privada dos indivíduos.
“mulher depois” possui destinatários (pai e mãe, representação da família tradicional,
base da sociedade atual), localização geográfica de quem o “escreve”, assim como traz
memórias que não deixam dúvidas de que se trata de um indivíduo que viveu em conflito com
a família (e a sociedade como um todo) por não corresponder ao comportamento esperado ao
sexo de seu nascimento (masculino).
Composto por três estrofes/momentos, a primeira com a ausência do eu lírico
enquanto ser de ação, em que se enfatiza as belezas de um país distante, a segunda destinada a
Nas fronteiras da linguagem ǀ 62
lembranças de opressão, em que a mulher trans surge como figura sem voz, oprimida pela
figura paterna (representação do jugo patriarcal e normativo), e o terceiro momento, em que
surge como única voz, afirmativa em sua identidade de gênero e condição feminina
construída, vinculada a mudança de sexo.
O verbo parecer (da segunda estrofe “parecia uma guria”), conjugado no pretérito
imperfeito, é confrontado pelo verbo virar, conjugado no pretérito perfeito (indicando uma
transformação finalizada, reforçada pelo verbo que o antecede, operar), seguido do afirmativo
do verbo ser no tempo presente (“mas agora eu sou mulher”).
Em Guadalupe (2012) temos uma personagem travesti, trata-se de Minerva, que no
auge de sua carreira com drag queen se viu obrigada a abandonar a vida noturna na casa de
shows Divina Perla para cuidar de sua sobrinha Guadalupe, criança de 10 anos abandonada
pelos pais. A história se desenrola quase em sua totalidade durante o dia em que a
protagonista, que dá nome a graphic novel, completa trinta anos, mesmo dia em que sua avó
Elvira (mãe de Minerva) morre ao colidir sua moto com uma quitanda. Em um dos primeiros
momentos, temos Guadalupe imersa em suas memórias infantis, como vemos abaixo:
(FREITAS, 2012a)
Temos o único momento em que Minerva faz uso de roupas e acessórios ditos
masculinos, ao se preparar para pedir empréstimo no banco, com o intuito de garantir
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 63
estabilidade financeira, agora que se percebe responsável por uma criança. Ironicamente, o
empréstimo é conseguido no momento em que o gerente do banco reconhece Minerva,
tecendo-lhe elogios e desejando-lhe boa sorte na fase que estava por começar, a abertura de
uma livraria (na qual tia e sobrinha trabalhariam juntas)
Angélica Freitas trabalha, sutilmente, mais uma vez a desconstrução de ideias
naturalizadas de funções socialmente atribuídas como sendo de responsabilidade do homem
ou da mulher. Ao ser perguntada se passaria a ser a mãe da garota, Minerva demonstra que a
forma como será chamada não restringirá ou modificará o cuidado a ser dispensado com a
sobrinha, nem moldará suas ações.
O nome escolhido para a personagem Minerva reforça a ideia desta enquanto
representação da desconstrução do binário masculino/feminino, tendo em vista que a deusa
romana que lhe inspirou o nome é conhecida tanto por estar relacionada a atividades tidas
como femininas como com atividades tidas como masculinas.
Guadalupe decide realizar o que havia prometido à avó, enterrá-la em sua terra natal, a
cidade de Oaxaca. Guadalupe e Minerva fecham as portas da Minerva livros e seguem de
furgão, da Cidade do México para Oaxaca, levando o corpo de Elvira. Inicia-se então uma
espécie de roadmovie trapalhão e nonsense em que as personagens passam por um processo
de autoconhecimento e tomam decisões sobre o caminho que darão as suas vidas após o
término daquela missão.
As lembranças de infância de Minerva ressurgem durante a viagem, em que alguns
segredos são revelados, como a sexualidade de sua mãe:
(FREITAS, 2012a)
Elvira era lésbica, havia sido obrigada pela família a se casar, tratada como uma
selvagem indomável surpreendentemente domada pelo jugo das relações matrimoniais. Na
sequência acima temos a revelação, a foto de Juanita, seu grande amor.
Minerva narra a vida em Oaxaca, e o machismo de seu pai que embora tivesse amantes
não admitiu a descoberta do caso de Elvira com Juanita, chegando a agredir a esposa
Nas fronteiras da linguagem ǀ 64
fisicamente. A figura paterna já se mostrara em seu machismo no momento em que descobriu
que seu filho era gay. Em meio ao toda a confusão, Mãe e filhos fogem da cidade e vão para a
capital do México.
Assim como “mulher depois” faz referência à Tailândia, Guadalupe também não se
passa no Brasil, é ambientado em terras mexicanas e se apropria de algo típico da cultura local
para ampliar suas possibilidades de discussão de gênero. Traz para a trama a experiência das
muxes, indivíduos (do sexo masculino) pertencentes comunidades de origem indígena (do
México) que se vestem de mulheres e possuem liberdade para constituir família tanto com
mulheres quanto com homens, além de transitarem pelos universos masculino e feminino.
(FREITAS, 2012a)
No meio da viagem, a dupla (sobrinha e tia) é ameaçada por forças do mal,
representadas por um vilão inábil que tenta a todo custo roubar a alma de Elvira para leva-la a
seu mestre. Esse vilão trapalhão mais parece uma releitura da personagem Malvado, do
desenho animado Ursinhos carinhosos, que nunca lograva êxito em suas investidas e nem
mesmo convencia o espectador de sua suposta maldade. É durante um embate entre o suposto
ladrão de almas e a dupla Guadalupe e Minerva que a história das muxes serve de inspiração
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 65
para Angélica Freitas, que concede mais algumas pitadas de desconstrução a sua personagem
travesti.
Ao ingerir cogumelos mágicos, Minerva se torna a Muxe maravilha, heroína
totalmente desvinculada dos padrões estéticos alardeados pelos quadrinhos de super-heróis,
inclusive da mulher-maravilha, em quem também é ironicamente inspirada. Ao contrário da
super-heroína de corpo exuberante, que mais parece ter sido desenhada para satisfazer fetiches
de leitores, a Muxe maravilha de Angélica Freitas é composta por traços masculinos somados
a5 trejeitos socialmente associados ao feminino, e que ao vencer o vilão trapalhão, permite
que este fuja após entrega-la um espelho mágico que permite a quem se olhe nele enxergar
seu próprio futuro.
O espelho, objeto comumente associado às questões estéticas ou como símbolo da
passagem do tempo (e sua irreversibilidade) nos corpos de homens e mulheres, associado
quase sempre ao tempo que passou, na graphic novel surge como uma possibilidade de
autoconhecimento e possibilidade de mudanças. A autora ao utilizar a simbologia do espelho,
subverte-a, permitindo a suas personagens enxergar seus futuros vislumbrados a partir da
ideia de permanência e estabilidade.
Ao se ver vinte anos depois (imagem que não é mostrada ao leitor), Minerva decide
mudar sua vida, o que se percebe com sua intenção de passar a loja de livros para Guadalupe,
a quem presenteia com o espelho destacando a possibilidade de alterar o futuro a partir de
ações. O objeto perde seu poder no momento em que Guadalupe resolve largar tudo e não
voltar para Cidade do México. Ao fim da trama, Guadalupe está sozinha, e algum lugar do
mundo, olhando o mar e jogando o espelho para longe.
O ato de Minerva e Guadalupe, que ao enxergarem seus possíveis futuros resolvem
colocar em práticas planos há muito guardados, e que após a constatação desta necessidade
acham por bem se livrar do espelho, reforçam a ideia de que Angélica Freitas, enquanto poeta,
reconhece a literatura como meio de afirmar tanto a construção do ser mulher como a
necessidade de se construir o próprio destino.
A liberdade feminina, e sua necessidade, é o tema central de Guadalupe, seja
abordando a questão das travestis, seja tratando das decisões impostas pela idade e que
requerem coragem, como Minerva com mais de 50 anos escolher recomeçar, ou Guadalupe,
que aos trinta nos se nega a casar e permanecer trabalhando com o que abomina e vivendo
numa cidade com a qual não se identifica, e como a de ambas em realizar o desejo de Elvira,
de voltar para a terra da qual foi expulsa, e para os braços da mulher que amou .
Nas fronteiras da linguagem ǀ 66
A maneira como Angélica Freitas une seu posicionamento político e o faz parte
integrante de sua produção literária, reafirmam seu lugar enquanto voz feminina e feminista a
literatura brasileira. Com isso ganham os leitores e leitoras, que em meio a tantas tentativas
de invisibilização dos conflitos existentes na sociedade contemporânea podem ter diante de
seus olhos uma obra literária que traz consigo o potencial reflexivo característico de uma obra
de arte. Os formatos escolhidos pela autora (poesia e graphic novel) garantem, inclusive, que
a discussão sobre liberdade feminina e identidade de gênero chegue a espaços antes deixados
de lado por teóricas e artistas feministas.
Referências
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Reato
Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2011.
EISNER, Will. Narrativas gráficas. Trad. Leandro Luigi Del Manto. São Paulo: Devir, 2005.
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________. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac Naify, 2012b.
GENEST, Émile; FÈRON, José; DESMURGER, Marguerite. As mais belas lendas da
mitologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
MAGALHÃES, Belmira. História e representação literária: um caminho percorrido. In:
Revista Brasileira de Literatura Contemporânea. Rio de Janeiro: Abralic, 2002.
PELLEGRINI, Tânia. Despropósitos: estudos de ficção brasileira contemporânea. São Paulo:
Annablume; FAPESP, 2008.
TREVISAN, João. Devassos no paraíso. Rio de Janeiro: Record, 2011.
VENTURA, Miriam. A transexualidade no tribunal: saúde e cidadania. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2010.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 67
DECORAR OU APRENDER NO PROCESSO ENSINO-
APRENDIZAGEM [Voltar para Sumário]
Alaíde Marie Correia Barros (IFAL - Campus Maceió)
Nádia Mara da Silveira (IFAL - Campus Maceió)
Introdução
A memória é um recurso natural do ser humano, pois desde a infância informações
são armazenadas, constituindo uma base de dados que compreende as experiências vividas
pelo sujeito. Na verdade, tudo que nos é pouco significativo, que foi decorado, mas não
necessariamente aprendido, pode vir a ser esquecido ou deixado de lado, porém, aquilo que
nos é relevante, marcante, torna-se inesquecível, ou seja, é armazenado na nossa memória de
longa duração.
“A verdadeira essência da memória humana está no fato de os seres humanos serem
capazes de lembrar ativamente com a ajuda de signos.” (VYGOTSKI, 1991, p. 58). Assim
sendo, é notável que através das experiências cotidianas o ser humano pode evocar suas
lembranças quando em contato com um signo. Dessa forma, pode se imaginar similares que
não estão presentes e apenas remetem a um visualmente percebido ou em contato através de
quaisquer sentidos. Isso demonstra a importância da memória em simples ações rotineiras.
Interligando-se a memória, a linguagem torna possível o processamento de
informações captadas pelo indivíduo através do local em que este se insere. Na sala de aula,
há o constante estímulo para que inúmeros dados sejam captados pelos alunos e,
posteriormente, sejam utilizados no decorrer das disciplinas e exames. No entanto, é preciso
que demasiados assuntos sejam aprendidos e para isso, alguns alunos aplicam, algumas vezes
com excesso, o uso da memorização, comumente conhecida pela gíria “decoreba”.
No entanto, algumas disciplinas denominadas decorativas são de grande relevância
para a compreensão de assuntos abordados diariamente, desta forma, o estudante pouco
aproveita o conteúdo que lhe é apresentado, para posteriormente aplicá-lo, por acreditar que o
Nas fronteiras da linguagem ǀ 68
sistema de notas pode avaliar o seu grau de conhecimento, quando este, na verdade, muitas
vezes é superficial.
A reprodução de um antigo método de aprendizagem como a memorização de
conteúdo, que pouco dinamiza as formas de ensino, ocorre quando os professores não buscam
modernizar e realizar interações com os novos recursos tecnológicos que podem ser
desenvolvidos em sala de aula e melhorar o desempenho dos alunos. Porém, apesar da grande
importância da condução do professor, cabe ao aluno estar ciente de que no processo de
aprendizagem ele pode ser prejudicado, até mesmo futuramente, quando lhe for requerido
informações das quais ele não consolidou.
As escolas se apegam mais e mais obstinadamente à sua ideia equivocada de que a
educação e ensino são processos industriais, a serem projetadas e planejadas em
pequenos detalhes e então impostas em professores passivos e em seus ainda mais
passivos estudantes. (HOLT, 1982, p.2).1 Tradução minha.
Antigamente, a concepção que se tinha das escolas era muito rígida e, certamente,
em gerações anteriores, os alunos precisavam, de acordo com os professores, lembrar-se de
cada detalhe do conteúdo visto. Ainda que hoje essa rigidez tenha sido abolida das escolas
brasileiras, muito ainda se é cobrado dos alunos uma vez que a ideia de conhecimento, para
alguns professores, é a repetição de conteúdo para que se consiga um sucesso superficial.
Uma das principais mudanças que a escola sofreu refere-se à participação do aluno
em sala de aula uma vez que, na aprendizagem atual, o aluno é sujeito ativo, quando
anteriormente era passivo, pois apenas recebia as informações do professor, sem contestá-las
ou complementá-las.
Contudo, infelizmente, o processo de aprendizagem não está totalmente alterado para
a melhor compreensão e facilitação da aquisição de conhecimento, mantendo, ainda, a falsa
ideia de que para aprender faz-se necessário a prática de memorizar, uma ideia popular entre
diversos estudantes e também professores. E, para melhor compreensão e aprimoramento do
processo de ensino-aprendizagem, é preciso entender como a memorização pode influenciar
no aproveitamento escolar.
Metodologia
1 The schools cling more and more stubbornly to their mistaken idea that education and teaching are industrial
processes, to be designed and planned from above in the minutest detail and then imposed on passive teachers
and their even more passive students.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 69
Desse modo, pretende-se, através de um estudo exploratório, que possibilita “ao
investigador aumentar sua experiência em torno de determinado problema” (TRIVIÑOS,
1987, p. 109), investigar o fato de que apesar de hoje haver uma maior participação dos
estudantes na construção do conteúdo trabalhado em sala de aula, já que os professores estão
adquirindo novas metodologias, a fim de tornar seus alunos formadores de opiniões, capazes
de construir ou participar ativamente do processo de aprendizagem, ainda existem educadores
exigindo a decoração do conteúdo, como um recurso necessário para a promoção do aluno no
seu processo de ensino e aprendizagem. Visa-se, portanto, verificar se a decoração de
conteúdo gera aprendizagem nos alunos.
Assim sendo, a fim de realizarmos este estudo exploratório, torna-se necessário um
levantamento bibliográfico, que consiste, no “conjunto de materiais escritos/gravados,
mecânica ou eletronicamente, que contém informações já elaboradas e publicadas por outros
autores.” (SANTOS, 2002, p. 31).
Contudo, salienta-se, ainda, que o presente trabalho se apoia na área da Linguística
Aplicada, afinal, “Há uma preocupação cada vez maior em LA com a investigação de
problemas de uso da linguagem em contextos de ação ou em contextos institucionais, ou seja,
há um interesse pelo estudo das pessoas no mundo” (MOITA-LOPES, 1996, p. 123). Além do
que, a Linguística Aplicada permite a integração com outras áreas, como por exemplo, a
psicologia cognitiva, possibilitando um estudo sobre a decoração de conteúdo e sua relação
com a aprendizagem.
Discursão teórica
Nas escolas é comum a prática de decorar entre os alunos, devido a constante
cobrança com exames que, geralmente, ocorrem bimestralmente nos ensinos fundamental e
médio, e ainda, principalmente, para ingressar na faculdade, através do ENEM. É fato que
nenhum estudante conseguirá aplicar todos os assuntos vistos ao longo dos anos letivos, de
todas as disciplinas requeridas, por isso o recuso mais comum para obter um desempenho
satisfatório e uma nota dentro do padrão, é decorar fórmulas, assuntos e conceitos. Porém,
questiona-se, até que ponto a avaliação poderá de fato medir o conhecimento de cada aluno se
alguns arquivam temporariamente informações que acreditam ser dispensáveis depois de
aplicadas em provas.
Vários resquícios de antigas metodologias de ensino são perpetuados por alguns
professores que permitem que o estudo adquira um caráter decorativo e cansativo. Não se
Nas fronteiras da linguagem ǀ 70
tem, contudo, nenhum modo de classificar quais matérias deve ser ou não decoradas, ou de
que forma esse método pode afetar o aprendizado do aluno e até quando pode favorecê-lo.
Salienta-se que, a memória humana, tem a capacidade de adquirir, armazenar e
recuperar as informações que são recebidas diariamente por meio dos sentidos, por isso é que
podemos lembrar-nos de cheiros, faces, sequências numéricas e tantos outros dados que se
pode obter tanto diariamente quanto ao longo da vida. A linguagem, segundo LINDZEY;
HALL; THOMPSON (1977, p. 212) está ligada a memória, pois esta possibilita a
aprendizagem e o armazenamento de sons, palavras frases e até mesmo da gramática.
A percepção, que é definida como “processo de recepção, seleção, aquisição,
transformação e organização das informações fornecidas através dos nossos sentidos.”
(BARBER; LEGGE, 1976, p.11) é a primeira etapa para a consolidação da memória, que
implica na seleção para o armazenamento de dados.
Os especialistas acreditam que o hipocampo, juntamente com outra parte do cérebro
chamada de córtex frontal, é responsável por analisar essas diversas entradas
sensoriais e decidir se vale a pena lembrar-se delas. Se valerem a pena, elas podem
se tornar parte de sua memória de longo prazo. (MOHS, 2010, p. 4).
Deste modo, nem sempre pode se dizer que o cérebro armazena ou acessa tudo o que
se é percebido, mas apenas o que ele seleciona para lembrar. Esse processo de seleção prévia
é o que não nos permite lembrar todas as cenas de uma peça teatral, pois embora recebamos
as informações através dos nossos sentidos, nem todas podem ser acessadas.
Umas das divisões mais conhecidas são às memórias: primária e secundária, que são
também denominadas de curto e longo prazo, respectivamente. Elas dão prosseguimento ao
armazenamento sensorial, que faz uso da percepção, podendo ser visual, olfativa, tátil,
gustativa ou auditiva. A memória primária possui a duração de alguns poucos segundos, faz
contraste com a secundária devido a sua quantidade limitada de armazenamento.
A transformação gradual da memória primária em secundária torna possível o acesso
à informação por um tempo maior. Utilizando como exemplo um estudante que precisa
armazenar rapidamente informações e faz diversas repetições para tentar consolidá-las: “O
esquecimento instala-se infalivelmente se não se estuda regularmente: a memória não é um
gravador.” (LIEURY, 2001, p.90). Desde modo, é natural a transformação da memória a curto
para a de longo prazo, contudo não deve ser praticada a memorização excessiva como via de
facilitação de estudo.
Como apresenta Almeida (2002), a memorização pode ser usada como estratégia de
estudo para que o estudante que possui dificuldade em lembrar-se de um assunto possa
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 71
organizá-lo e, por meio de pistas, acessá-los quando precisar. Desta forma, a memorização é
vista como ajuda, não atrapalhará no decorrer do processo de ensino.
A consolidação da memória sucede a aquisição delas, quando isso ocorre a
informação é estabilizada. De acordo com a ocasião, alguns dados são mais suscetíveis a
serem armazenados. As informações que são captadas ao longo da vida ficam armazenadas na
memória, podem ser acessadas por estarem possivelmente disponíveis através do processo de
evocação, que “consiste em extrair da memória um item específico.” (LINDZEY, HALL;
THOMPSON, 1977, p.218). E, portanto, o esquecimento pode ocorrer devido uma falha nessa
busca de informação, algumas vezes por distração ou como Schacter (2002, p. 184) enfatiza:
Tem sido estabelecido que o esquecimento possa ocorrer rapidamente numa escala
de tempo ou segundos, ao em vez de minutos, horas ou dias. O esquecimento rápido
foi atribuído à operação de curto prazo ou do sistema de memória de trabalho.
O esquecimento acontece de forma natural e juntamente com outras características
torna o homem diferente da máquina, para Izquierdo (1989) nós esquecemos mais do que
recordamos e isso pode ser causado pelo tempo, podemos esquecer-nos de números
aprendidos no dia anterior e ainda lembrar-se de um fato marcante que ocorreu anos atrás.
A memorização é utilizada e estimulada desde a infância, já que esta é uma das
formas para “exercitar” a memória, sendo esta trabalhada tanto no ambiente escolar quanto no
familiar. Porém não se deve fazer o uso dela de forma exacerbada, pois poderá ser prejudicial
ao desempenho escolar do aluno e a confiança que ele estabelece no método decorativo, uma
vez que a memorização de conceitos não significa a aprendizagem deles.
Considerações Finais
No Brasil, a busca por uma educação de qualidade precisa ser determinada pela
relação família-escola, no entanto, segundo Ribeiro (1991), para os pais, a frequência que o
aluno vai a escola é mais importante do que a qualidade de ensino. Desse modo, para o aluno
estar presente, mesmo que não prestando atenção nas aulas, se torna, algumas vezes, uma
obrigação desinteressante, porém fundamental.
Pais e educadores priorizam a memorização como um recurso essencial para que a
aprendizagem ocorra, esquecendo-se de outros recursos predominantes que podem promover
a interação e possibilitar a aprendizagem, como a brincadeira, o jogo, o lúdico. Contudo, é
importante não condenar a prática da memorização, sendo ela possível de ser evocada e então
Nas fronteiras da linguagem ǀ 72
aplicada além de conceitos, como por exemplo, na resolução de uma questão. Afinal, como
foi dito anteriormente, ela nós é necessária desde a infância, portanto utilizada durante toda a
vida. Porém, a memorização pode assumir um aspecto cansativo para quem a utiliza, quando
muita exigida, e acaba sendo um desestímulo no ensino fundamental, tornando desinteressante
o processo de aquisição de informações.
Quando se fala em escolas, no nosso país, aparentemente, as que são privadas se
tornaram mais eficazes para a formação dos alunos que, posteriormente, irão ingressar na
faculdade. E, apesar de que a memorização seja um problema tanto em escolas públicas e
privadas, estamos em um círculo de problema muito maior na educação brasileira, já que: “O
único (e último) momento em que se tenta fazer uma avaliação do domínio cognitivo dos
alunos é por ocasião do vestibular aí se constata o seu baixo desempenho” (Ribeiro, 1991, p.
19). A mudança de didática estrutural e a atualização de métodos de ensino são da
responsabilidade das escolas fundamentais para melhor aproveitamento e aplicação de
métodos que possam ser aproveitados pelos estudantes.
Uma proposta para facilitar a aquisição e compreensão seria promover a interação
por meios de jogos, com o fim de estimular o estudante a se interessar pelo assunto
ocasionalmente trabalhado com e pelo professor. Além do que, a interação entre os
participantes promoveria um ambiente mais agradável para estudo. Afinal, os dois processos,
a assimilação e, posteriormente, a acomodação, conforme Piaget (1975) pode ocorrer de
forma mais simples e natural por meio de uma dinâmica.
E ainda, a ausência da memorização não é uma opção, pois ainda que ela seja
utilizada de forma antiquada pelos estudantes e professores, ela, como dito anteriormente, é
necessária desde a infância e quando aplicada nos estudos como alternativa e não como
indispensável, se torna um dos métodos auxiliares dos alunos no decorrer do processo de
aprendizagem sem que atrapalhe o mesmo.
Hoje, com todo o acesso a tecnologia e a programas que facilitam o dia a dia em sala
de aula, há recursos disponíveis que facilitam a aprendizagem; é importante deixar de
restringir os objetivos do ensino. Assim, torna-se de maior relevância que o estudante consiga
compreender o que está sendo aplicado em sala de aula e assumir uma postura crítica.
Referências
ALMEIDA, Leandro S. Facilitar a aprendizagem: ajudar os alunos a aprender e a pensar.
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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 73
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-85572002000200006 Acesso
em: 04/05/15.
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http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141989000200006 Acesso
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LINDZEY, Gardner; HALL, Calvin S.;THOMPSON, Richard F. Psicologia. Editora
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VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. 4º ed. São Paulo, Martins Fontes, 1984.
TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva. Introdução à Pesquisa em Ciências Sociais: a pesquisa
qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1988.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 74
OS GÊNEROS DIGITAIS NO ENSINO DE LÍNGUA DE
MATERNA1
[Voltar para Sumário]
Albanyra dos Santos Souza (UFRN/CERES/DCSH)
1. Introdução
Os estudos linguísticos das últimas décadas têm colocado em pauta muitas questões
em torno do ensino de línguas, principalmente relacionadas ao trabalho com os gêneros do
discurso que materializam as práticas sociais situadas. Além disso, novas práticas discursivas
decorrentes das tecnologias da informação estão atraindo os alunos à nova realidade social e,
consequentemente, à produção e utilização de novos gêneros discursivos próprios de
ambientes midiáticos, aqui denominados de gêneros discursivos digitais.
Diante disso, o presente artigo baseia-se nas considerações de Bakhtin (2000) acerca
dos gêneros do discurso, nos postulados de Marcushi (2005) com relação aos gêneros
emergentes e, ainda, nas ideias de letramento (KLEIMAM, 1995; TFOUNI, 1988; SOARES,
2002), letramento digital (SHEPHERD e SALIÉS, 2013), multiletramentos e multisemioses
(ROJO, 2013).
Objetiva-se com o estudo, desenvolver uma pesquisa quantitativa de coleta de dados,
ao mesmo tempo em que utilizamos a abordagem qualitativa para a interpretação dos dados,
configurando nossa pesquisa como quantitativo-qualitativa. Isso, para atender ao nosso
propósito de evidenciar quais os gêneros discursivos digitais que estão sendo usados pelos
alunos.
Diante disso, a nossa pesquisa torna-se relevante à medida que contribui tanto para as
teorias dos gêneros do discurso quanto para o campo da Linguística Aplicada.
A partir dessa abordagem, o artigo apresenta a seguinte divisão: i) na primeira seção,
apresentamos o nosso trabalho; ii) na segunda seção, apresentamos uma discussão teórica
1 Pesquisa realizada no curso de Pós-Graduação “Ensino e Aprendizagem de Línguas”, na Universidade Federal
do Rio Grande do Norte – CERES – Currais Novos/RN.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 75
sobre a significação dos gêneros do discurso e sua constituição, seguida de conceituações
sobre os gêneros discursivos digitais; iii) na terceira seção, expomos os procedimentos
metodológicos adotados para o desenvolvimento do estudo; iv) na quarta seção, são
apresentadas as análises dos dados coletados e os resultados da pesquisa; v) por fim, na quinta
seção, tecemos as conclusões alcançadas com o estudo.
2. Os gêneros do discurso e sua constituição
Bakhtin (2000) afirma que a utilização que fazemos da língua dá-se por meio de
enunciados orais e escritos que emanam de uma ou de outra esfera da atividade humana. Os
enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada esfera através da sua
construção temática, estilística e composicional. Cada esfera de utilização da língua elabora
seus tipos relativamente estáveis de enunciados, assim chamados de gêneros do discurso.
O surgimento dos gêneros do discurso se dá mediante a necessidade de uso da língua
em uma dada esfera social. Esta, por excelência, comporta um conjunto específico de gêneros
que vão modificando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se transforma e fica
mais complexa.
Com relação à caracterização dos gêneros, Bakhtin (2000, p. 281) faz uma distinção
entre gêneros primários e secundários, afirmando,
Importa, nesse ponto, levar em consideração a diferença essencial existente entre os
gêneros do discurso primário (simples) e o gênero do discurso secundário
(complexo). O gênero secundário do discurso – o romance, o teatro, o discurso
científico, o discurso ideológico, etc. – aparecem em circunstância de uma
comunicação cultural mais complexa e relativamente mais evoluída, principalmente
escrita: artística, científica, sociopolítica. Durante o seu processo de formação, esses
gêneros secundários absorvem e transmutam os gêneros primários (simples) de todas
as espécies, que se constituíram em circunstância de uma comunicação verbal
espontânea. Os gêneros primários, ao se tornarem componentes dos gêneros
secundários, transformam-se dentro destes e adquirem uma característica particular:
perdem sua relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos
enunciados alheios [...] (Grifos do autor).
Essa distinção entre os gêneros primários e secundários, para o autor, é considerada de
grande importância, uma vez que a natureza do enunciado deve ser estudada por meio de uma
análise de ambos os gêneros, caso contrário, corre-se o risco de não entender os aspectos
essenciais do enunciado, ou seja, a inter-relação existente entre os dois gêneros, juntamente ao
seu processo histórico de formação.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 76
2.1 Os gêneros do discurso digitais na contemporaneidade
A plasticidade e dinamicidade da linguagem torna-se a maior responsável pelas
mudanças sociais, políticas e culturais geradas pela capacidade de criatividade do ser humano.
Essas transformações são decorrentes da necessidade de comunicação e do uso
particularmente acelerado de equipamentos tecnológicos e de novas Tecnologias de
Informação e Comunicação (TICs). Com essas mudanças, o uso da língua nas diversas esferas
sociais passa por um processo de adaptação e construção de novos gêneros para adequar-se a
esse novo contexto de uso da língua.
Nos ambientes virtuais, os gêneros surgem em função de um novo tipo de
comunicação “conhecida como Comunicação Mediada por computador (CMC) ou
Comunicação Eletrônica e desenvolve uma espécie de ‘discurso eletrônico’” (MARCUSCHI,
2005, p. 15). Esse fator é preexistente do uso acelerado das tecnologias computacionais nas
últimas décadas do século XX, uma vez que favoreceu, enormemente, ao uso da escrita
eletrônica, e consequentemente, o que o autor chama de “cultura letrada” (Ibid., p. 14),
“cultura eletrônica” (Ibid., p. 15) e “letramento digital” (Ibid., p. 15). O surgimento desses
novos gêneros possibilita a categorização do que chamamos de gêneros digitais, entendidos
como o uso de discursos eletrônicos que circulam nos ambientes virtuais, mediados pelo uso
das tecnologias digitais e ainda um fenômeno sócio-histórico situado de uso da linguagem.
Marcuschi (2005, p. 33) ao tratar sobre os gêneros em ambientes virtuais afirma que
eles se caracterizam pela sua interatividade de múltiplas semioses, pois
tendo em vista a possibilidade cada vez mais de inserção de elementos visuais no
texto (imagens, fotos) e sons (músicas e vozes) pode-se chegar a uma interação de
imagem, voz, música, e linguagem escrita numa integração de recursos
semiológicos.
Assim, do ponto de vista formal e estrutural, esses gêneros digitais podem ser
considerados mais envolventes para serem utilizados em sala de aula como recurso de ensino
de Língua Portuguesa. Será mais atrativo para o aluno, por exemplo, estudar um gênero que
trate sobre literatura com os recursos semióticos, do que ler esse mesmo gênero em um livro
didático, pois, de certa forma, esse novo gênero estudado no espaço digital, acaba sendo
distinto do gênero de texto comum estudado na escola, até mesmo por sua característica de
contemporaneidade.
Marcuschi (2005), em seu trabalho, apresenta uma lista dos gêneros digitais mais
conhecidos e estudados até então, assim denominados: E-mail; Chat em aberto (bate papo
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 77
virtual em aberto – room chat); Chat reservado (bate papo virtual reservado); Chat agendado
(bate papo agendado ICQ); Chat privado (bate papo virtual em salas privadas); Entrevista com
convidado; E-mail educacional (aula virtual); Aula chat (chat educacional); Vídeoconferência
interativa; Lista de discussão (mailing list); Endereço eletrônico; Weblog (blog; diários
virtuais).
Esses são apenas alguns gêneros digitais tratados por Marcuschi (2005, p. 29), como
“emergentes”. Essa categorização se dá, segundo o autor, por esses gêneros terem sido
emergidos nas três últimas décadas na mídia eletrônica, através da Comunicação Mediada
pelo Computador (CMC).
Nesse estudo, buscamos identificar os usos sociais não somente dos gêneros
apresentados pelo autor, mas, também de novos gêneros digitais que se fazem presentes
atualmente tanto no contexto escolar como fora dele e que são utilizados pelos alunos e pelo
professor.
3. Aspectos metodológicos
A metodologia usada para a identificação dos gêneros discursivos digitais conhecidos
e usados pelos alunos em sala de aula toma como base o método sociológico do Círculo de
Bakhtin, a considerar aspectos comunicativos sociais aliados aos gêneros do discurso na
interação verbal. Além disso, a análise considera também os gêneros emergentes nos
ambientes virtuais, assim posto por Marcuschi (2005), bem como as teorizações acerca dos
multiletramentos e as multissemioses apresentadas por Rojo (2013).
Assim sendo, o estudo baseia-se em uma análise de dados por meio de uma pesquisa
quantitativo-qualitativa, partindo de questionários direcionados aos alunos do 3º ano do
Ensino Médio de uma escola pública da cidade de Parelhas/RN. O questionário aborda
questões relativas aos usos dos gêneros digitais dentro da escola, a fim de identificar quais são
os gêneros que circulam nos ambientes virtuais mais conhecidos e usados pelos alunos dentro
do espaço educacional e a sua importância para o ensino e aprendizagem.
Respondidos os questionários, os resultados foram representados em forma de gráficos
e tabelas, interpretados tal qual está dado nos questionários e analisados com base nos
pressupostos teórico-metodológicos aqui apresentados.
4 Resultados da pesquisa
Nas fronteiras da linguagem ǀ 78
O uso das novas tecnologias tem permitido novas práticas de leitura e escrita, antes
feitas por meio do papel. Isso porque, os ambientes virtuais possibilitam não apenas a
interação com textos escritos, mas também a habilidade de construir sentido em textos
multimodais e multissemióticos (ROJO, 2013). Essa realidade se faz presente também no
contexto educacional, marcado principalmente pela necessidade de se adequar às novas
formas de interação, como percebemos nos resultados aqui apresentados.
De acordo com os dados obtidos na pesquisa realizada com a turma, os gêneros
digitais estão se tornando cada vez mais importantes para a aprendizagem escolar, e o seu uso
passa a ser uma alternativa de construção de conhecimento.
Inicialmente os alunos foram questionados quanto ao uso do computador, se tem
computador em casa ou o usa cotidianamente. 90% confirmaram o uso, tendo apenas 10%
uma posição diferente, conforme pode ser visto no gráfico 1:
Gráfico 1 – Acesso ao computador ou à internet cotidianamente.
Fonte: Autoria nossa.
Com esses dados, observamos que não estão todos os alunos imersos no mundo
digital, e consequentemente essa minoria não tem acesso aos gêneros digitais da mesma forma
que os demais alunos. Por outro lado, se 90% dos alunos estão envolvidos com o uso do
computador, essa maioria usa com frequência os gêneros digitais. Mas, será que essa maioria
é conhecedora do uso que faz dos gêneros digitais?
Ao perguntamos se eles já ouviram falar em gêneros digitais, obtivemos os seguintes
dados:
Gráfico 2: Conhecimento quanto aos gêneros digitais.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 79
Fonte: Autoria nossa.
Nessa questão, enquanto 70% confirmam conhecer os gêneros digitais, 30% dos
alunos afirmam não ter ouvido falar em gêneros digitais, embora, conforme visto no gráfico 1,
90% dizem usar ou ter computador em casa. Isso indica que, apesar usarem os gêneros
digitais no seu cotidiano, essa minoria de alunos não os reconhecem socialmente como
gêneros ou não entendem que já os usam.
Esse resultado, particularmente, aponta para a necessidade de incluir nas práticas
metodológicas escolares o trabalho com os gêneros digitais, uma vez que eles se multiplicam
a cada situação de interação, e são usados com mais frequência em função das tecnologias.
Ora, se nosso aluno, hoje, está conectado aos avanços tecnológicos e multimidiáticos, nada
melhor que aproveitar essa relação de proximidade para torná-lo conhecedor dos tipos de
enunciados que ele mesmo produz ou tem contanto constantemente.
Em outro momento, quando questionados sobre onde usavam os gêneros digitais – na
escola, no trabalho ou nos encontros com os amigos – os alunos afirmaram que:
Gráfico 3: Onde são usados os gêneros digitais?
Fonte: Autoria nossa.
Os lugares em que os gêneros digitais são mais usados pelos alunos é nos encontros
com os amigos, conforme afirmam 95% deles, sendo no trabalho quase não usados, apenas
por 10%, e na escola usados pela maioria, 70%.
Nesses ambientes, os gêneros livremente citados pelos alunos foram:
Nas fronteiras da linguagem ǀ 80
Tabela 1: Gêneros usados pelos alunos em ambientes específicos.
Fonte: Autoria nossa.
Os gêneros digitais mencionados pelos alunos enquanto os mais usados no espaço
escolar foram vídeos, fotos e mensagens, cada um com 3 votos. Em seguida, temos os gêneros
pesquisa e texto, com 2 votos, e com apenas 1 voto os gêneros e-mail, slides, músicas,
torpedo e filme. Já no ambiente de trabalho, os alunos citaram apenas o gênero foto e
cadastro, tendo 1 voto para cada deles. Diferentemente de ambientes em que há encontros
com os amigos, pois nesses espaços os alunos citaram a música como o gênero mais usado, 8
votos, mensagens e fotos, 7 votos, vídeos, 5 votos, texto e conversa, 2 votos, e 1 voto para os
gêneros torpedo, imagem, chat, notícia, reportagem e áudio.
Essa escolha nos revela que, mesmo estando em um ambiente educacional, os alunos
mantêm comunicação com os amigos, fato facilitado pelo uso do celular na escola. Esses
gêneros também foram mencionados enquanto os mais usados nos encontros com os amigos,
como podemos perceber na tabela 1, sendo a música o gênero digital mais usado nesse
ambiente. A pouca ocorrência de gêneros digitais em ambientes, como no trabalho, dá-se pois
estamos lidando com alunos que ainda não alcançaram a maioridade, e consequentemente,
como está subentendido, a maioria deles não trabalha.
Partindo para ambientes mais específicos, os alunos foram solicitados a responder com
relação aos gêneros digitais em sala de aula, se o professor faz uso desses gêneros. Vejamos
os dados obtidos com base nos questionários, conforme o gráfico 4:
Gráfico 4: Os gêneros digitais em sala de aula.
Na escola No trabalho Nos encontros com os amigos
Vídeos 3 Fotos 1 Música 8
Fotos 3 Cadastro 1 Mensagem 7
Mensagens 3 Fotos 7
Pesquisa 2 Vídeos 5
Textos 2 Textos 2
E-mail 1 Conversa 2
Slides 1 Torpedo 1
Música 1 Imagem 1
Torpedos 1 Chat 1
Filme 1 Notícias 1
Reportagem 1
Áudio 1
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 81
Fonte: Autoria nossa.
De acordo com os dados do gráfico 4, apenas uma pequena parcela de alunos afirma
não usar os gêneros digitais em sala de aula, 5% deles, enquanto 95% confirmam o uso, e
apresentam as situações metodológicas vivenciadas na aula com esses gêneros. Vejamos na
tabela 2 a seguir:
Tabela 2: Situações de uso dos gêneros em sala de aula.
Situações em que os gêneros são usados em sala de aula
Assistir filmes 10
Ouvir músicas 2
Estudar textos 2
Assistir vídeos 2
Explicar o conteúdo 2
Preencher a lista de presença diária 2
Discutir notícias 1
Fonte: Autoria nossa.
Essas informações nos mostram que são vários os momentos em que os gêneros
digitais são usados pelo professor em sala de aula e que, mesmo com pouca expressividade,
eles estão sendo incluídos no ensino de língua materna, de modo especial ao gênero filme, este
enquanto o mais recorrente nas aulas de língua portuguesa, tendo ele 10 votos. Nas demais
situações mencionadas, os gêneros digitais são usados para ouvir músicas, estudar texto,
assistir vídeos, explicar o conteúdo e preencher a lista de presença, tendo estes 2 votos, e
com apenas 1 voto, o momento de discussão de notícias.
Os alunos foram questionados ainda quanto ao uso de alguns gêneros, pré-
estabelecidos, próprios da modalidade virtual, usados na sala de aula e fora dela.Vejamos os
gráficos a seguir:
Nas fronteiras da linguagem ǀ 82
Gráfico 5: Gêneros digitas usados na escola
Blogs26%
Vídeos26%
E-mail20%
Sala de bate papo
8%
Torpedo8%
Mensagens Intantânea
5%
Fórun5%
Vídeo-conferência
2%
Fonte: Autoria nossa.
Nesse gráfico percebemos que os gêneros digitais mais usados na escola, enquanto
gêneros emergentes da cultura digital, conforme Marcuschi (2005), são os blogs e os vídeos,
sendo ambos 26% mais usados. Seguindo a ordem decrescente de uso, o e-mail foi o terceiro
gênero considerado mais usado, 20%, seguido do gênero sala de bate papo, com 8%, fotos e
mensagens, 5%, e com apenas 2% o gênero vídeoconferência.
Foi importante para a pesquisa, ainda, observar quais os gêneros próprios da
modalidade escrita que estão sendo usados na modalidade virtual, tanto na escola quanto fora
dela.
Gráfico 6: Gêneros usados na escola na modalidade virtual
Fonte: Autoria nossa.
A letra de música foi considerado o gênero da modalidade escrita mais usado na
escola na modalidade virtual, com 13%, seguido dos gêneros artigo de opinião, resenha de
livro, filme e fotos/imagens, todos com 12%. Além disso, em ordem decrescente de uso, temos
o gêneros gráfico, com 9%, a notícia, com 8%, a crônica, 7%, histórias em quadrinhos, carta
e propaganda, com 6%, a entrevista, com 5%, e a reportagem, com 4%.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 83
Quando perguntados sobre a preferência de gênero, digital ou impresso, para ler uma
notícia de jornal, os dados obtidos foram:
Gráfico 7: Preferência entre o gênero digital ou impresso.
Fonte: Autoria nossa.
Enquanto 10% dos alunos afirmam preferir ler uma notícia em um jornal impresso,
75% deles afirmam ser a notícia de jornal digital a favorita, e ainda justificam essa preferência
com enunciados do tipo: “É mais rápido e prático”; “Pela facilidade”; “Por facilitar a
interpretação”; É mais fácil e compacto, posso ler em qualquer lugar”; “Tenho mais
acesso”. Essas respostas são indícios do quanto os gêneros digitais são importantes como
recursos metodológicos para a prática de ensino do professor, bem como refletem as novas
formas de ler que são subjacentes às práticas de escrita da contemporaneidade.
Além disso, nas aulas de Língua Portuguesa, especificamente, para que a
aprendizagem aconteça, é imprescindível que as práticas de ensino estejam adequadas à
realidade dos alunos, às suas vivências e aos seus costumes. Esse tipo de prática visa
potencializar habilidades e competências do aluno para atuação social de forma mais efetiva,
garantindo-lhe sucesso nas interações mediadas pelos gêneros discursivos digitais com os
quais ele se depara no ambiente digital. Logo, o aluno que tem contato com esses gêneros na
escola estará mais apto, ou letrado digitalmente (SHEPHERD e SALIÉS, 2013), para agir
socialmente por meio deles.
Quando indagados sobre a importância dos gêneros digitais para o aprendizado e,
ainda, a contribuição desses gêneros em comparação aos gêneros impressos, os alunos
responderam que aqueles: “Facilitam o estudo de qualquer assunto”; “Torna a aula mais
interessante”; “São melhores, práticos e fáceis de usar”; “Ajuda no conhecimento de novos
gêneros usados no dia a dia”; “Proporciona sair da rotina”; “Ajuda a completar o que às
vezes faltam nos livros, jornais ou revistas”. Vejamos os dados quantificados no gráfico 12:
Nas fronteiras da linguagem ǀ 84
Gráfico 12: Os gêneros digitais contribuem para o aprendizado?
Fonte: Autoria nossa.
85% dos alunos afirmaram que os gêneros digitais contribuem para no seu
aprendizado, ao passo 10% deles alegam que essa contribuição se dá em partes, resposta essa,
a qual subentende-se, que se não usados em um contexto de ensino específico os objetivos de
aprendizagem não serão alcançados.
Percebemos então, a partir das respostas que há uma multiplicidade de gêneros digitais
sendo usados e construídos em favor dos avanços tecnológicos. A inclusão desses gêneros
nas aulas de Língua Portuguesa se faz cada vez mais necessária e urgente de forma que os
alunos assumam uma posição de, além de usuários, conhecedores e reconhecedores dos
gêneros discursivos digitais existentes, bem como do seu uso e do próprio processo de
construção do gênero, tanto no que diz respeito a sua estrutura composicional, tema e estilo.
Os resultados nos revelam que alguns gêneros digitais estão sendo mais usados hoje na escola,
como é o caso do blog (gráfico 5), além de fotos, vídeos e mensagens (tabela 1).
5. Conclusão
Os resultados apresentados e discutidos nesse estudo serviram para compreendermos
que, hoje, inicialmente, a questão não é trabalhar as práticas de letramento (KLEIMAM,
1995; TFOUNI, 1988; SOARES, 2002) de um só gênero discursivo digital como se ele ainda
não fosse usado pela comunidade discente. Pelo contrário, é relevante estar atento a grande
diversidade de gêneros que surge em função das novas tecnologias e usá-los em sua
variedade, pois, como pudemos perceber, os alunos não usam apenas um gênero digital na
escola ou em outros ambientes sociais, eles estão usando vários deles ao mesmo tempo. Por
isso, aqui, não cabe destacarmos o mais usado pelos alunos, apenas podemos dizer que hoje,
nos contextos educacionais, especificamente na sala de aula, são usados frequentemente
gêneros como o blogs, a letra de música, fotos, vídeos e mensagens, a sala de bate papo,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 85
fotos/imagens, além do artigo de opinião e dos filmes, com mais frequência, porém sem
exclusividade.
Isso mostra que os alunos estão se tornando cada vez mais usuários de uma grande
quantidade de gêneros digitais, embora não tenham ainda o conhecimento pleno de questões
como nomenclatura, composicionalidade, assim como discutidas nas seções anteriores, claro,
salvo algumas exceções. Esse dado se justifica pela grande variedade de gêneros usados ao
mesmo tempo em uma só mídia, o computador.
Referências
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
_______. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance (1934-1935). Trad.
Bernadini, et. al. 4. ed. São Paulo: Unesp, 1998.
MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais emergentes no contexto da tecnologia digital. ______;
XAVIER, A. C. (orgs.). Hipertexto e gêneros digitais. Rio de Janeiro: Editora Lucerna, 2005,
p. 13-67.
LIMA. M. B.; GRANDE, P. B. Diferentes formas de ser mulher na hipermídia. In: ROJO, R.
(org.). Escol@ concectada: os multiletramentos e as TICs. São Paulo: Parábola, 2013. p. 37-
58.
KLEIMAN, A. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola. In: _______
(Org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da
escrita. Campinas: Mercado de Letras, 1995, p. 15-61.
ROJO, R. Gêneros discursivos do Círculo de Bakhtin e multiletramentos. In: ______. (org.).
Escol@ concectada: os multiletramentos e as TICs. São Paulo: Parábola, 2013. p. 13- 36.
SHEPHERD, T.; SALIES, T. Linguística da Internet. São Paulo: Contexto, 2013.
SOARES, M. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. Educ. Soc.,
Campinas, Vol. 23, n. 81, 2002, p. 143-160. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/es/v23n81/13935>. Acesso em 18 de maio de 2014.
TFOUNI, L.V. Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso. Campinas: Pontes, 1988.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 86
ORALIDADE E ARGUMENTAÇÃO EM FOCO: UMA
EXPERIÊNCIA DIDÁTICA COM O GÊNERO TEXTUAL JÚRI
SIMULADO [Voltar para Sumário]
Alberto Felix da Hora (UPE)1
Introdução
É evidente a necessidade e a relevância do trabalho com gêneros textuais orais nas
aulas de língua portuguesa na educação básica.
Não há o menor sentido linguístico em se atribuir maior importância ao ensino da
modalidade escrita ou da oral, pois nos comunicamos em situações de uso real, social e
cultural fazendo uso de ambas as modalidades da língua, numa concepção de língua como
prática social e histórica e um meio pelo qual os usuários da língua interagem uns com os
outros. Essa interação se dá por meio de textos que se manifestam linguisticamente na forma
de gêneros textuais diversos orais e escritos.
Quanto à necessidade de exercitarmos a nossa capacidade argumentativa por meio da
fala e da escrita, bem como da constância desse uso, Marcuschi (2005, p. 31) corrobora
“Sabemos que a argumentatividade é um aspecto essencial no uso da língua. Isso pode ser
treinado e analisado em suas formas peculiares de ocorrer na fala e na escrita”.
A oralidade deve ser abordada no ensino da língua portuguesa, constituindo, portanto,
um eixo que possibilite o trabalho com a linguagem, desenvolvendo nos alunos um domínio
linguístico capaz de exercer seu papel sociocomunicativo, via modalidade oral, nas diversas
situações de uso da linguagem dentro e fora do espaço escolar.
O presente trabalho tem como objetivo apresentar uma experiência didática com o
gênero textual júri simulado, para trabalhar os domínios da oralidade e da argumentação oral
numa turma do 9º ano do Ensino Fundamental. Para tanto, nos embasamos no Interacionismo
1 Mestrando do Profletras da UPE – Garanhuns. Especialista no Ensino de Língua Portuguesa. É docente de
Português Jurídico na Faculdade ASCES – Caruaru. É professor de Língua Portuguesa na Secretaria de
Educação Estadual de Pernambuco. Email: [email protected]
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 87
Sociodiscursivo (ISD) defendido por Bronckart (1999) por conceber a linguagem como
fenômeno indissociável da interação social, nas concepções de ensino de gêneros textuais
abordadas por Marcuschi (2005, 2008) e nos estudos de Koch (2011) e Pinto (2010) sobre
argumentação. O procedimento metodológico adotado foi uma sequência didática para o
ensino do gênero textual júri simulado conforme Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004).
As atividades pedagógicas, vivenciadas por meio da sequência didática com o júri
simulado, proporcionaram avanços no domínio linguístico discursivo dos discentes quanto ao
uso de argumentos por meio da oralidade.
O presente trabalho pretende detalhar como as atividades foram desenvolvidas,
pontuando, inclusive, as contribuições efetivadas na turma, como também as dificuldades
apresentadas.
Dessa forma, acreditamos que a experiência didática com o gênero júri simulado nas
aulas de Língua Portuguesa podem trazer diversas contribuições para o desenvolvimento oral
argumentativo dos discentes.
1. O ensino dos gêneros textuais
Tradicionalmente a palavra gêneros foi sempre utilizada pela retórica e pela teoria
literária a fim de caracterizar os gêneros clássicos, tais como: o lírico, o épico e o dramático,
ou até mesmo os gêneros modernos, como o romance e a novela, entre outros.
Essa noção ganhou importante extensão a partir das ideias defendidas por Bakhtin em
meados do século XX, que passa a incorporar a palavra gênero na referência aos textos usados
nas situações cotidianas de interação por meio da comunicação oral e verbal.
Schneuwly (2004, p. 25) resume desta forma o posicionamento Bakhtiniano:
cada esfera de troca social elabora tipos relativamente estáveis de
enunciados: os gêneros;
três elementos os caracterizam: conteúdo temático – estilo – construção
composicional;
a escolha de um gênero se determina pela esfera, as necessidades da temática,
o conjunto dos participantes e a vontade enunciativa ou intenção do locutor.
A partir da visão estabelecida por Bakhtin, percebe-se que os textos produzidos, orais ou
escritos, oferecem um conjunto de características relativamente estáveis, configurando-se em
diversos gêneros textuais, que podem ser caracterizados por três aspectos ou elementos
básicos: o tema, a estrutura e os usos específicos da língua.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 88
É perceptível a magnitude da proposta de adoção dos gêneros textuais como objeto de estudo
e ensino nas escolas, sobretudo, por nos possibilitar o uso das diversas formas de expressão
oral/escrita que circulam socialmente.
É perfeitamente possível elaborarmos construções informais e formais, textos coesos e
coerentes tanto na modalidade escrita quanto na oral.
Afirmar que a escrita é formal, complexa, enquanto a fala é informal e simples não é
suficiente, nem tampouco coerente linguisticamente, pois, como afirma (Koch 2012, p. 78),
“existe uma escrita informal que se aproxima da fala e uma fala formal que se aproxima da
escrita, dependendo da situação comunicativa”.
Ora, se analisarmos do ponto de vista dos usos sociais da língua, fica perceptível que
língua falada e língua escrita não são responsáveis por domínios estanques ou dicotômicos.
Segundo Marcuschi (2008, p. 37), “Há práticas sociais mediadas preferencialmente pela
escrita e outras pela tradição oral (...) Oralidade e escrita são duas práticas sociais e não duas
propriedades de sociedades diversas”.
Cabe, portanto, aos docentes, nas atividades que visam desenvolver a capacidade de
uso linguístico dos seus alunos, oferecer ambas as modalidades reconhecendo a função social
e os usos dos gêneros textuais orais e escritos.
2. Oralidade em foco
O oral se ensina, mas não conseguiremos formar alunos competentes linguisticamente
em relação ao uso oral, enquanto as aulas apresentarem propostas genéricas de discussões nas
salas de aula. Quanto a esse aspecto Barbosa (2000, p. 154) aduz que:
Essas práticas acabam sendo pouco producentes (...) o que deveria estar em questão
são as diferentes formas de dizer, determinadas por diferentes situações
comunicativas (...) em vez de aulas que tematizem o falar ou a oralidade de uma
forma geral, pode-se e deve-se tomar os gêneros orais públicos como objetos de
ensino.
Para encontrar caminhos para ensiná-lo, vejamos o que os PCNs apontam em relação
ao processo de escuta de textos orais, espera-se que o aluno no Ensino Fundamental:
Amplie, progressivamente, o conjunto de conhecimentos discursivos, semânticos e
gramaticais envolvidos na construção dos sentidos do texto;
Reconheça a contribuição complementar dos elementos não verbais (gestos,
expressões faciais, postura corporal);
Utilize a linguagem escrita, quando for necessário, como apoio para registro,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 89
documentação e análise;
Amplie a capacidade de reconhecer as intenções do enunciador, sendo capaz de aderir
a ou recusar as posições ideológicas sustentadas em seu discurso. (PCNs, 1998, p.
49)
Dolz & Schneuwly (2004) destacam a relevância de também se considerar no trabalho
com gêneros orais - além dos meios linguísticos e prosódicos - os meios não-linguísticos da
comunicação oral (meios paralinguísticos, cinésicos, posição dos locutores, aspecto exterior e
disposição dos lugares).
A adoção de uma sequência didática com o gênero textual júri simulado oportuniza
aos docentes de Língua Portuguesa trabalharem tanto os recursos linguísticos da
argumentação quanto os meios não-linguísticos da comunicação oral. Os alunos vivenciando
as funções de juízes, julgadores, defensores e promotores, notadamente, utilizarão recursos
paralinguísticos (qualidade da voz, elocução), cinésicos (movimentos, gestos, olhares e
atitudes corporais diversas), posição dos locutores (ocupação de local adequado e espaço
pessoal), aspecto exterior (vestimentas adequadas) e disposição dos lugares (sala adequada,
iluminação, disposição das cadeiras e mesas).
A proposta de ensino das práticas de oralidade deve estimular os alunos a desenvolver
as capacidades de uso da língua em diferentes realidades e finalidades, levando-os a uma
reflexão mais sistemática sobre as práticas de linguagem e o planejamento e avaliação do
discurso oral.
3. Retórica e argumentação
O homem, como ser social, sempre esteve em contato com a natureza e também em
pleno relacionamento com os seus pares. Esse relacionamento social e linguístico entre os
homens fomenta a necessidade comunicativa e, por conseguinte, a comunicação com o intuito
de convencer o outro, a necessidade de argumentar para fazer valer o seu ponto de vista
acerca de um tema.
Na sociedade atual, cada vez mais, o indivíduo precisa se posicionar sobre temas
polêmicos, opinar, avaliar, fazer escolhas, julgar. E para isso, por meio do discurso, sempre
dotado de uma carga de intencionalidade, tenta fazer valer suas opiniões, com o propósito de
conduzir o interlocutor a compartilhar das suas convicções. Koch (2011, p. 17) afirma que “o
ato de argumentar, isto é, de orientar o discurso no sentido de determinadas conclusões,
constitui o ato linguístico fundamental, pois a todo e qualquer discurso subjaz uma ideologia”.
Os primeiros estudos acerca da retórica surgem com Aristóteles (384-322a.C.) -
Nas fronteiras da linguagem ǀ 90
pensador e filósofo grego – na sua obra intitulada Retórica encontramos subsídios para
explicitar as teorias mais recentes sobre argumentação.
Ao discutir a retórica como forma de persuasão, Aristóteles buscou aplicar as técnicas
da retórica para a construção da noção de justiça, levando em conta que a noção de justiça não
existe, é construída.
Vejamos como Pinto (2010, p. 36) traduz a definição de retórica segundo Aristóteles,
“a retórica é um instrumento e pode ser usada a serviço tanto do bem quanto do mal,
importando assim a verossimilhança dos fatos”. O que se está querendo aqui afirmar é que a
Retórica argumenta para persuadir as pessoas a agirem no mundo, mas não é natural, é coisa
inventada, pois não existe na natureza.
A partir dos estudos retóricos de Aristóteles, há um alargamento no campo de atuação
da retórica, para além do espaço jurídico e filosófico, se fazendo presente em todas as
situações ou espaços em que se faz necessário convencer alguém.
A grande contribuição de Aristóteles foi demonstrar que o raciocínio jurídico não se dá
pela demonstração matemática e exata da noção de justiça. O conceito de justiça é, em certa
medida, uma invenção retórica que, partindo daquilo que a comunidade tem como valor justo,
pela argumentação é efetivada, o que pluraliza a noção de verdade e que permite nos valer do
dizer popular de que “cada caso é um caso”.
Em 1958 Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca lançam um livro que veio
representar um marco sobre o estudo da retórica “Tratado da argumentação: a nova retórica”.
A obra rompe com o conceito positivista e racional preconizado por Descartes, que
desconsiderava o verossímil como um possível critério a ser utilizado na argumentação. Os
autores resgatam a importância da verossimilhança e da dialética, contrapondo-as à
obrigatoriedade do raciocínio e da pura verdade. Sobre esse aspecto Pinto (2010, p. 44)
comenta:
Para Perelman & Olbrechts-Tyteca, a noção de evidência, no intuito de caracterizar
a razão, pode ser fundamental para a teoria da argumentação, mas deve ser entendida
numa escala proporcional e não deve ser decodificada como uma verdade absoluta.
A argumentação, para Perelman, está ligada a um tipo de ação discursiva, a qual
pretende conseguir a adesão do auditório, mas só por meio da linguagem. A persuasão e o
convencimento são elementos que devem atuar de forma paralela à argumentação. A
persuasão se dirige de forma particular a um auditório particular, já o convencimento se
estende, a partir do particular, a um auditório abstrato, universal, coerente com a regra de
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 91
justiça aceita pelo maior número possível de pessoas (valores universais), criando
jurisprudência.
Assim a Nova Retórica é mais que uma teoria da argumentação: trata-se, pois, de uma
análise crítica do Direito, na qual se constata a carga de elementos sociais subjetivos e
objetivos que fundamenta as decisões jurídicas, as quais são tópicas e marcadas por valores
sociais ante a norma jurídica. O Direito deve ser um parâmetro, cujo valor da solução trazida
pela argumentação deve estar em conformidade ao apontar uma resolução que não apenas está
de acordo com a lei, mas é razoável, aceitável, equitativa.
4. A sequência didática com o júri simulado
A pertinência do trabalho, nas aulas de português, com gêneros orais organizados a
partir de sequências didáticas, encontra fundamentação nas ideias de Dolz, Noverraz e
Schneuwly (2004) de que é possível ensinar os alunos a se expressarem oralmente em
situações públicas escolares e extraescolares.
Dolz & Schneuwly (2004, p. 97) definem sequência didática como “um conjunto de
atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral
ou escrito”.
Os representantes da Escola de Genebra defendem que a sequência didática pode
apresentar a seguinte organização:
Apresentação da situação: objetiva expor aos alunos um problema de comunicação bem
definido, além de preparar os conteúdos dos textos que serão produzidos.
Produção inicial: papel diagnóstico, verifica-se os conhecimentos prévios dos alunos, amplia-
se o repertório dos alunos a partir da aproximação deles com o gênero em estudo, inicia-se
atividades de oralidade nas aulas;
Módulos: divididos em seções, abordam as características da situação de produção, da
organização textual, dos aspectos linguístico-discursivos e dos meios não-linguísticos;
Produção final: visa verificar os avanços dos alunos durante o percurso do trabalho com a
sequência didática.
A experiência de trabalharmos oralidade e argumentação nas aulas de Língua
Portuguesa numa turma do 9º ano do Ensino Fundamental começou com um levantamento
Nas fronteiras da linguagem ǀ 92
prévio sobre o que os alunos conheciam sobre o júri, após ouvi-los realizamos uma exposição
mais detalhada acerca do gênero em tela, destacamos os atores envolvidos, seus respectivos
papéis sociodiscursivos e os meios linguísticos e não-linguísticos presentes no domínio
jurídico. Finalizamos a aula informando que nas próximas atividades iriamos assistir a um
filme sobre julgamento, a fim de levá-los a compreender melhor o papel dos operadores do
direito e do júri popular. Desde o início, a perspectiva de atuar no júri simulado deixou-os
interessados.
Na aula seguinte apresentamos a temática do julgamento: O trabalho infantil. A
problematização a ser julgada: Permitir ou proibir o trabalho de um jovem de 12 anos como
fretista, aos sábados, na feira livre da cidade? Vale a pena destacar que essa atividade é muito
comum na cidade e no cotidiano dos jovens da escola. Tivemos a preocupação de indagá-los
sobre a problematização e ficou evidente que apenas 5% (dois alunos) dos discentes eram
contra o trabalho de jovens na feira livre da cidade, eles afirmaram que “lugar de criança é na
escola”. Já a maioria que se declarou a favor do frete, alegou questões financeiras e frases do
tipo “é melhor trabalhar do que roubar”, alguns fizeram uma ressalva “desde que não seja um
trabalho forçado”.
Na sequência apresentamos e debatemos o regulamento do júri, definimos que seria
melhor realizá-lo no fórum da cidade, por apresentar uma estrutura propícia ao evento,
inclusive procuramos conscientizá-los sobre a importância de gravar o evento para avaliarmos
posteriormente as nossas participações, além de guardarmos como uma lembrança da
atividade escolar. Os alunos concordaram com a proposta, só que em virtude da reforma do
fórum, realizamos o evento no auditório da Câmara de Vereadores da cidade por ter uma
estrutura física confortável e similar à do fórum.
No regulamento ficou estabelecido o local, a data e horário do evento, funções e
formação dos grupos (Juízes = 5 alunos; Promotores = 8 alunos; Defensores = 8 alunos e
Julgadores = 21 alunos). Aos juízes coube a organização do júri, elaboração de pauta, discurso
de abertura e condução do julgamento, cronometragem do tempo e da mediação dos
confrontos e discussões (o famoso protesto); os julgadores ficaram responsáveis pela decisão
final, na qual cada membro do júri popular deu seu voto, justificando o porquê de sua decisão
de acordo com o que foi apresentado e argumentado pela defesa e acusação; Aos promotores e
defensores coube a tarefa de apresentarem teses e argumentos convincentes a fim de persuadir
o júri popular, inclusive com a oitiva de testemunhas. O regulamento definiu o tempo de
atuação da acusação e da defesa, levando em consideração as seguintes etapas: Teses iniciais:
15 minutos para cada grupo; réplica: 10 minutos para cada grupo e tréplica de 5 minutos. Três
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 93
protestos por grupo. Cada protesto com duração máxima de 1 minuto, não sendo permitido
protestar durante as tréplicas.
Destinamos 2h/aulas para apresentar e explicar os critérios de avaliação. Para isso foi
entregue a cada participante uma planilha de avaliação contendo as expectativas de atuação
dos 4 grupos. Os juízes foram avaliados com base na elaboração do roteiro, saudação às
partes, contextualização do caso em julgamento, trabalho em equipe, cronometragem,
manutenção da ordem, tratamento isonômico às partes, segurança na aplicação das regras,
intervenção coerente nos protestos, vestimentas, postura corporal e linguagem adequada ao
evento. Os promotores e defensores foram avaliados com base na vestimenta, saudação às
partes, trabalho em grupo, contextualização do caso, organização e apresentação da tese,
linguagem adequada ao evento, capacidade de atrair a atenção da audiência, linguagem e
oralidade (postura, fala, entonação, gestos, movimentos, comunicação persuasiva), utilização
e exploração das testemunhas, uso da linguagem argumentativa para refutar e contra-
argumentar, utilização de exemplificações, perguntas retóricas, analogias e citações. Os
julgadores foram avaliados em função do comportamento adequado ao evento (atenção,
silêncio, não comunicação com os outros membros do júri popular, vestimentas), linguagem
adequada ao evento, capacidade linguística de explicar e justificar o voto, linguagem e
oralidade (fala – entonação – gestos).
Solicitamos dos alunos uma atividade em grupo. A realização de entrevistas gravadas
com personalidades da cidade escolhidas por eles, a fim de questioná-las sobre o que acham
do trabalho dos jovens na feira livre da cidade, aos sábados. Essa atividade contribuiu para a
ampliação do ponto de vista dos alunos sobre o tema do júri e ocupou 2h/aulas na sequência
didática.
Destinamos 3h/aulas para a sessão com o filme Tempo de Matar. Houve debate acerca
da temática abordada no filme, bem como o estudo da linguagem e postura adotadas pelos
operadores do direito. Apresentamos, na aula seguinte, um vídeo para o estudo da postura,
fala, entonação e da linguagem persuasiva. Destinamos, ainda, 2 h/aulas para pesquisas no
laboratório de informática sobre as leis e argumentos relacionados ao trabalho infantil,
inclusive criamos um grupo no Facebook (projeto júri simulado) para a interação dos
participantes durante a realização da sequência didática. Outra iniciativa interessante e que
rendeu bons resultados foi a participação colaborativa de um professor da escola com
formação em Direito (fez o papel de orientador da promotoria) e de um ex-aluno do colégio,
estudante de Direito (fez o papel de orientador da defensoria). Esses colaboradores reuniram-
se em 1h/aula com seus respectivos grupos para orientá-los acerca da atuação argumentativa,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 94
inclusive participaram do júri simulado e puderam apoiar e orientar os grupos nos intervalos
entre as teses iniciais, réplicas e tréplicas.
Destinamos 2h/aulas para uma apresentação em PowerPoint sobre o uso dos
operadores argumentativos nos textos escritos e orais.
Realizamos, uma semana antes do júri, visita prévia ao local do evento para
familiarizar os alunos com o espaço físico, locais específicos de atuação dos grupos e explicar
acerca da sequência do júri simulado. A culminância da sequência didática ocorreu com a
realização do júri simulado totalizando 18 h/aulas.
5. Resultados
Passemos, agora, a pontuar os aspectos mais significativos da performance
apresentada pelos grupos durante o júri simulado.
A atuação dos juízes foi satisfatória quanto ao trabalho em grupo, vestimentas,
cronometragem, isonomia no tratamento aos grupos, entonação e gestos, zelo pela
manutenção da ordem. Porém durante o protesto proferido pelos defensores nas teses iniciais
da promotoria os juízes não se pronunciaram (protesto aceito ou negado). Durante o tempo de
fala da defensoria nas teses iniciais, a defensora teve o seu turno de fala interrompido pelo
promotor, neste instante a atuação do juiz foi providencial ao tocar a sineta e advertir o
promotor “Se usa protesto!”. Outro aspecto positivo na atuação dos juízes foi sempre alertar
as partes sobre o tempo restante de fala “gostaria de avisar que a promotoria só tem mais um
minuto!”. Quanto a essa mensagem houve apenas um momento em que a fala do juiz ganhou
um tom de informalidade quando afirmou: “Quero avisar ao povo da defensoria que só falta 1
minuto!”. Porém o mesmo juiz no momento seguinte advertiu dizendo: “Quero informar à
parte da defensoria que só falta 1 minuto!”.
A atuação da promotoria foi marcada pelo argumento de que existem leis no país,
destaque para a Lei 8.069/1990, elas estão para proteger as crianças e os adolescentes, deram
ênfase ao argumento de que quem deve trabalhar para sustentar o menor é o adulto (pai e
mãe) e não o contrário. Exploraram, ainda, os riscos (exposição ao sol, peso e acidentes), e as
ações sociais do governo (Escola Aberta e o PETI). Dos 8 promotores, 4 utilizaram
parcialmente os recursos (entonação, movimentação, discurso persuasivo). Vejamos alguns
trechos da atuação da promotoria:
“como podemos observar as leis proíbem o trabalho de crianças...então e aí vamos rasgar as
leis?”; “Então como ele só pode trabalhar como aprendiz...não tem ninguém ensinando...além
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 95
do carro ser pesado...uns 40 quilos um jovem não tem condições de carregar de manhã no sol
quente...as vezes passando fome!”; “Por que que a mãe e o pai não vão trabalhar...se eles têm
um físico melhor.”; “Eu vou seguir na mesma tecla...será que eles (gesto na direção da
defensoria) queriam que os seus filhos trabalhassem na feira livre? Eu acho que não!”; “Pela
ordem Excelência! Nós vamos fazer primeiro as perguntas à testemunha da defensoria.”
Pergunta a testemunha da defesa “O lugar da criança é carregando frete na feira ou na
escola?”; “A testemunha da defesa falou que ele cursou a faculdade, fez estudos, e ele não
conhece outra pessoa que trabalhava no frete...e então ele não passa de uma exceção porque
na maioria dos casos quem trabalha no frete na feira mal conseguia terminar seus estudos!”.
A atuação da defensoria foi marcada pelo argumento de que vivemos num país de
desigualdades sociais, o trabalho do jovem na feira é digno, em nada atrapalha a sua atividade
estudantil, não é sistemático nem forçado e ainda garante uma ajuda financeira para o jovem
e/ou sua família. Todos os 8 defensores utilizaram muito bem os recursos (fala – entonação –
movimentação – linguagem persuasiva). Vejamos algumas passagens da atuação dos
defensores:
Protesto da defensoria: “A senhora está falando de criança de 12 anos, porém a Lei 8069/1990
afirma que com 12 anos completos estamos falando de adolescente.”; “Há mais de 80 anos
que a feira livre tem existência em nossa cidade e com ela surgiu o chamado frete. Segundo o
historiador, também professor de Língua Portuguesa, Ubiratan Ferreira de Carvalho, quando
criança ele presenciava esses jovens trabalhando não só como fretista, mas também em outras
funções”; “Até hoje nunca houve evidências ou dados de algum acidente ou morte de algum
desses jovens por trabalharem como fretista!”; “não é um trabalho forçado, não atrapalha nos
estudos, pois rebatendo também o que a promotoria falou, o programa Escola aberta ele é
aberto de manhã e à tarde...ele poderia trabalhar de manhã e ir ao projeto escola aberta à
tarde!”; “Vossa Excelência, eu gostaria de chamar nossa testemunha!”; “Bom senhores
julgadores...vejamos bem! Esse policial militar que na sua adolescência trabalhou no frete, e
pelo que foi dito, nunca lhe prejudicou...pelo contrário foi...lhe ajudou a ser mais responsável
e independente”; “Senhores julgadores, peço que reflitam um pouco! O que é mais nocivo ou
perigoso, esse jovem trabalhar e ganhar o seu dinheiro dignamente ou proibi-lo de fazer...e aí
ele roubar ou furtar?”; “o pobre vai trabalhar porque tem necessidade. Estamos falando aqui
de um mundo real onde existem muitas necessidades. O mundo ideal que a lei rege não é
esse!”; “Eu gostaria de reforçar um pouco a fala da Drª Defensora, só recebe o Bolsa Família
quem está estudando, portanto se o fretista está estudando ele vai receber, mas todos nós
sabemos que o bolsa família não dá pra sustentar o jovem e muitas vezes ele quer ter seu
Nas fronteiras da linguagem ǀ 96
próprio dinheiro para consumi-lo e não deseja pedi-lo a ninguém!”.
A atuação dos julgadores definiu o resultado do júri simulado com 18 votos a favor da
defensoria (liberação do trabalho do jovem de 12 anos, aos sábados, na feira livre da cidade) e
3 votos contrários. Os membros do júri popular apresentaram ótimo comportamento quanto à
atenção, silêncio, não comunicação entre os integrantes julgadores, porém apenas 6
integrantes demonstraram pleno desenvolvimento da capacidade linguística de explicar e
justificar o voto.
6. Considerações finais
O objetivo deste artigo foi apresentar uma experiência de sequência didática com o
gênero textual júri simulado numa turma do 9º ano do Ensino Fundamental, proporcionando
um desempenho linguístico satisfatório quanto à oralidade e à argumentação oral dos
discentes.
É relevante destacar a necessidade de realizar, ao longo do ano letivo, mais de um júri,
para que haja um rodízio dos alunos em relação às funções desempenhadas. Notadamente a
sequência didática contribuiu para avanços significativos no domínio linguístico discursivo
dos discentes quanto ao uso de argumentos por meio da oralidade.
É importante, ainda, que os professores tenham a consciência da necessidade de gravar
os eventos relativos ao ensino do oral na escola, com o propósito de poder avaliar melhor os
desempenhos atingidos e redimensionar novas atividades de ensino por meio dos gêneros
orais.
Diante disso, percebemos que trabalhar os aspectos da oralidade e da argumentação
por meio de uma sequência didática com o júri simulado possibilita ao professor de Língua
Portuguesa um trabalho com inovação, criatividade e interatividade, capaz de contribuir para
a formação discursiva competente dos discentes.
Referências
BARBOSA, Jacqueline Peixoto. Do professor suposto pelos PCNs ao professor real de língua
portuguesa: são os PCNs Praticáveis?. In: ROJO, Roxane (org.). A prática de linguagem em
sala de aula: praticando os PCNs. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2000.
BRASIL/MEC. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais:
Ensino Fundamental: Língua Portuguesa. Brasília, 1998.
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KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Argumentação e linguagem. 13. ed. São Paulo: Cortez,
2011.
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MARCUSCHI, L. A. Oralidade e ensino de língua: uma questão pouco falada. In: DIONÍSIO,
Ângela Paiva; BEZERRA, Maria Auxiliadora (org.). O livro didático de português: múltiplos
olhares. 3. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.
________. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 4 ed. São Paulo: Cortez,
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PINTO, Rosalice. Como argumentar e persuadir? Práticas: política, jurídica e jornalística.
Lisboa: Quid Juris – Sociedade Editora, 2010.
SCHNEUWLY, Bernand; DOLZ, Joaquim. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas,
SP: Mercado de Letras, 2004.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 98
POEMAS TIRADOS DE NOTÍCIAS, MAPAS, TABELAS... E
OUTROS GÊNEROS JORNALÍSTICOS: PROCEDIMENTOS
LÚDICOS EM AULAS DE LITERATURA [Voltar para Sumário]
Alberto Roiphe (UFS)
Introdução
O Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), no âmbito do
curso de Letras-Português do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de
Sergipe, possui, desde 2014, um projeto intitulado “Leitura, Escrita e Autoria: o jornal em
sala de aula” e coordenado pelos professores Alberto Roiphe, responsável pela área de ensino
de literatura, Taysa Mércia dos Santos Souza Damaceno e Wilton James Bernando-Santos,
responsáveis pela área de ensino de língua portuguesa.
Os trabalhos realizados neste projeto ocorrem em duas etapas. A primeira se constitui
da orientação dos alunos de Letras quanto à sua atuação em sala de aula. A segunda etapa está
centrada na atuação, de fato, desses mesmos alunos em salas de aula do Ensino Médio da rede
pública de ensino do estado de Sergipe.
O que se pretende evidenciar, neste texto, é, justamente, de que maneira os alunos de
Letras são orientados a atuar em sala de aula, nos minicursos ministrados pelos três
coordenadores do projeto, destacando-se, como exemplo, um atividade desenvolvida durante
o minicurso de literatura “O jornal como mote: práticas de leitura e escrita literária”, a ponto
de se questionar: Em que medida procedimentos lúdicos podem contribuir para aulas de
literatura?
Os procedimentos e suas improváveis fontes
O minicurso de literatura “O jornal como mote: práticas de leitura e escrita literária”
teve como foco a relação entre gêneros jornalísticos e gêneros literários, de forma a
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 99
instrumentalizar os alunos de Letras à criação de atividades lúdicas sempre relacionando os
dois campos de produção.
Para tratar dos gêneros presentes no campo jornalístico, a referência teórica
motivadora ao desenvolvimento do minicurso foi o ensaio “Os gêneros do discurso”, de
Mikhail Bakhtin, no qual o teórico russo estabelece três categorias, a saber, para caracterizar
tal noção:
Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem.
Compreende-se perfeitamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão
multiformes quanto os campos da atividade humana, o que, é claro, não contradiz a
unidade nacional de uma língua. O emprego da língua efetua-se em forma de
enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse
ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições
específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo
(temático) e pelo estilo de linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais,
fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção
composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a
construção composicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e
são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da
comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada
campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de
enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso. [grifos do autor]
(BAKHTIN, 2003, p. 261-262)
Considerando-se, portanto, as três categorias estabelecidas por Bakhtin, o tema, a
construção composicional e o estilo, é possível afirmar o jornal traz, como se sabe,
privilegiadamente, uma multiplicidade de gêneros.
O procedimento realizado, no âmbito do minicurso de literatura, teve como motivação a
convergência proposta por Manuel Bandeira (2009, p. 110), no seu conhecido “Poema tirado de uma
notícia de jornal”, no qual o autor modernista une, evidenciando já no título, o gênero que se
encontrará em seu texto, um “poema”, e o gênero que deu origem à sua criação “uma notícia
de jornal”.
Para a atividade desenvolvida no minicurso, cada um dos alunos de Letras recebeu um
envelope, contendo um gênero do campo jornalístico, como notícias, mapas, tabelas etc, e um
gênero do campo literário, um poema.
Em primeiro lugar, com os envelopes em mãos, os participantes foram convidados a
observar minuciosamente os gêneros jornalísticos e, da mesma forma que sugere a educadora
francesa Josette Jolibert (1992), em sua obra Former des enfants lecteurs et producteurs de
poèmes, para a criação de poemas a partir de cartões-postais, produziram descrições, contendo
os aspectos ali observados, utilizando-se, evidentemente, de adjetivos, frases nominais,
períodos curtos, estruturas comparativas e uma sucessão de percepções anunciadas a partir de
Nas fronteiras da linguagem ǀ 100
seus sentidos.
Em segundo lugar, aproveitando as anotações feitas nas descrições, os alunos
passaram a criar poemas que mantivessem a mesma estrutura do poema contido no envelope,
isto é, o poema criado por um aluno deveria conter as características rítmicas, lexicais,
sintáticas etc do poema encontrado no envelope.
É preciso lembrar que, para a montagem dos envelopes, foram escolhidos,
inicialmente, recortes contendo tanto os textos jornalísticos como os poemas em função da
abordagem temática. Sendo assim: para o poema “Não há vagas”, de Ferreira Gullar (2004,
162), que afirmando de início “O preço do feijão/não cabe no poema”, foi escolhida uma
tabela de cotação preços, que contém os valores do algodão, arroz, boi, café, cana-de-açúcar e
outros produtos; para o poema “Mapa”, de Mário Quintana (2013, p. 69-70), foi escolhido, no
jornal, um mapa meteorológico, acompanhado de uma legenda, incluindo as condições
climáticas em diversas regiões do Brasil; para o poema concreto “Velocidade”, de Ronaldo
Azeredo (1971, p. 25), foi escolhida uma fotografia também com uma legenda, mas, nesse
caso, em forma de lide. O conteúdo da fotografia mostrava três rapazes em suas bicicletas,
trafegando por calçadas esburacadas. Tais rapazes estão, diante dos buracos do chão, em
posições corpóreas que lembram, ironicamente, manobras de participantes de campeonatos de
bicicross.
Levando-se em conta as condições sugeridas para a criação dos poemas, caberia
acrescentar, nesse ponto da descrição da atividade, o que já alertava Nelly Novaes Coelho, em sua
obra O ensino de literatura, na metade dos anos 1960:
Lembramos, apenas, o perigo de cairmos na exageração, ao adotarmos, por exemplo,
o difundido “método da imitação”, recomendado por muitos pedagogos. Exageração
que poderá levar os alunos a uma “esterilização” interior, dando uma “forma” ao seu
pensamento e sufocando-lhe a inspiração. Sem dúvida, o processo de leitura e
comentário dos bons autores, seguido de uma reelaboração do tema, é bastante
proveitoso. Porém é preciso que não se chegue ao extremo de provocar na mente do
aluno o enraizamento de “ideia e frases feitas.” [grifos da autora] (COELHO, 1966,
p. 33-34)
Embora o procedimento de descrever um gênero jornalístico e transpor tal descrição
para a estrutura do poema possa lembrar a redação imitativa, é importante lembrar que a
passagem da leitura para a escrita pode se tornar um exercício do pensar sobre a
caracterização da sequência verbal e visual presentes em ambos os gêneros envolvidos na
atividade. Por esse motivo mesmo e, a fim de provocar alterações nas estruturas
composicionais entre as criações dos alunos de Letras e não manter as mesmas temáticas,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 101
durante a elaboração da atividade, foram montados envelopes, não só em função da
aproximação temática entre os gêneros jornalísticos e literários, mas também em função da
alternância entre os três temas apresentados, isto é, foram preparados envelopes contendo, por
exemplo, o poema “Não há vagas”, de Ferreira Gullar, e a imagem das bicicletas. Foram
preparados ainda envelopes incluindo um recortes com o poema “Mapa”, de Mário Quintana,
e com a tabela de cotação de preços, extraída do jornal. Enfim, uma oportunidade de se
perceber diferentes construções a partir de cada nova combinação entre um gênero literário e
um gênero jornalístico.
Dos recortes e às produções
Para a avaliação dessas produções, foram consideradas as especificidades da
linguagem poética, que trazem em si recursos como a sonoridade, o ritmo, as rimas, as
anáforas, dentro outros recursos relevantes.
O poema abaixo, tomado como exemplo de produção realizada para a atividade
proposta, é de autoria do estudante de Letras da UFS, Pedro Santos da Silva. Intitulado “Não
há água”, o texto do aluno foi elaborado a partir da descrição do um mapa meteorológico do
Brasil e do poema “Não há vagas”, de Ferreira Gullar (2004, 162).
NÃO HÁ ÁGUA
23° cabe em Teresina.
23° cabe em São Luiz (1930)
Ainda cabem nesse país!
22° em:
Salvador;
Natal;
Recife;
João Pessoa;
Cuiabá;
24° em Macapá.
Ainda cabe nesse poema
Boa Vista com insuportáveis 27°
Como também cabe
24° em Fortaleza.
– porque nesse poema, Senhores
Há espaço para “calor ou frio”
Só não cabe mais nesse poema
15° em São Paulo
Lá Senhores secas não há
São apenas alguns metros
Abaixo do nível do Mar...
Observando-se que, na poesia, a estrutura formal tem uma importância considerável,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 102
sobretudo porque está ligada diretamente ao sentido do poema, nota-se que, de forma geral, o
texto, distribuído em três estrofes, como ocorre com o original, expõe as variadas
temperaturas encontradas nas diversas regiões do país.
Essas evidências ressaltam, já de início, o caráter lúdico da criação do poema. Algo
que lembra o que afirma Johan Huizinga, em Homo ludens, quando mostra que a afinidade
entre a poesia e o jogo “se manifesta na própria estrutura da imaginação criadora” (1996, p.
147-148), considerando que “na elaboração de uma frase poética, no desenvolvimento de um
tema, na expressão de um estado de espírito há sempre a intervenção de um elemento lúdico”
(Idem, Ibidem, p. 148)
O jogo proposto pelo aluno, na sua criação, fica claro também, quando se percebe, a
seguir, que ele mantém, de certa forma, a estrutura do poema original, ao mesmo tempo em
que altera a sua temática.
NÃO HÁ VAGAS
O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
– porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 103
Ferreira Gullar
Comparativamente, nota-se que o aluno alterou o título do poema “Não há vagas”, de
Ferreira Gullar, para “Não há água”, permitindo-se observar que, na relação entre o título e o
texto, construído a partir de um mapa meteorológico, como se afirmou acima, e repleto de
informações sobre as diversas temperaturas no Brasil, a água que falta é a água das chuvas.
Essa ideia se confirma, quando se encontra, na primeira estrofe, a enumeração de nomes de
capitais do país e suas correspondentes temperaturas, o que contribui para registrar o ritmo do
poema. O verbo “caber” tem seu sentido alterado daquele empregado no texto de Gullar, já
que nunca é precedido do advérbio “não”. Sendo assim, a brincadeira sugerida pelo aluno, é
que tudo cabe no poema. Esse atitude, em seu processo de criação, faz lembrar novamente
Johan Huizinga que, ao defender a tese de que o texto poético e o jogo apresentam elementos
comuns, afirmando a poesia não “possui apenas uma função estética ou só pode ser explicada
através da estética” (1996, p. 134).
Na segunda estrofe, a enumeração, e o ritmo, têm continuidade, mostrando que o
aluno transportou sem dificuldades a imagem do mapa, no sentido amplo do termo, de forma a manter
o sentido do verbo “caber” e, consequentemente, a coerência de seu poema, do qual parece oferecer
lições de linguagem.
Nos versos da terceira e última estrofe, o aluno altera significativamente a estrutura do
poema original, a fim de reforçar sua afirmação, já anunciada no título, de que “Não há água”.
Por isso, ressalta as possibilidades de alternâncias na temperatura, mostrando que “Há espaço
para ‘calor ou frio’, e, em seguida, finaliza o texto, explicando as circunstâncias climáticas de
São Paulo:
Só não cabe mais nesse poema
15° em São Paulo
Lá Senhores secas não há
São apenas alguns metros
Abaixo do nível do Mar...
Tal circunstância, entretanto, quando relacionada ao título do poema, exibe
ironicamente não somente a falta de chuvas, mas a consequência disso, a falta de água
potável, realidade atual da capital paulista, onde nem a paisagem seca, como afirma, traz a
água: São apenas alguns metros / Abaixo do nível do Mar...”.
Em outro poema desenvolvido, nesta mesma atividade, a partir de uma tabela de
cotações de preços, contendo os valores do algodão, arroz, boi, café, cana-de-açúcar e outros
Nas fronteiras da linguagem ǀ 104
produtos, e do poema “Mapa”, de Mário Quintana (2013, p. 69-70), o autor, Cássio Augusto
Nascimento Farias, respeita a estrutura do texto original, a ponto de manter alguns de seus
versos, ao mesmo tempo em que troca a palavra “mapa” pela palavra “cotação”, alterando
completamente outros valores do poema: os semânticos.
As cotações
Olho as cotações das cidades
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo
(É nem que fosse meu corpo!)
Sinto uma dor infinita
Dos preços médios do leite
Que jamais entenderei...
Há tanta coisa esquisita
Tanta nuança de preços
Há tanta cidade bonita
Nas cotações que não entenderei
(E há uma porcentagem engraçada
Que nem em sonhos sonhei...)
Quando entender, um dia desses,
Os dados somados das cotações
Nas confusões da economia,
Serei um pouco da loucura
somada, deliciosa
Que faz com que teus resultados
Pareçam mais um olhar
Suave mistério das mesas vazias
Cotações do meu desentender
(Desde já tanto tentar entender!)
E talvez da minha fome
Essa transposição da palavra “mapa” para a palavra “cotação”, por coerência, gera
outras alterações. Por isso, o nome da cidade onde o poeta viveu (ruas de Porto Alegre) vira
nome de produto (preços médios do leite) e as características da cidade (“esquina esquisita”,
“rua encantada”) viram características do produto e de sua comercialização (“coisa esquisita”,
“porcentagem engraçada”), como se pode confirmar, comparando-se o poema do aluno de
Letras ao poema de Quintana que deu origem ao exercício:
O MAPA
Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 105
(É nem que fosse meu corpo!)
Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...
Há tanta esquina esquisita
Tanta nuança de paredes
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar
Suave mistério amoroso
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso...
O que se torna curioso é que os versos mantidos nas duas estrofes iniciais de ambos os
poemas, por exemplo, permitem leituras com duplos sentidos. No poema do aluno, tem-se a
interpretação voltada para a cotação:
Olho as cotações das cidades
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo
(É nem que fosse meu corpo!)
No poema de Quintana, a interpretação se volta, evidentemente, para o mapa:
Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
(É nem que fosse meu corpo!)
O poema do aluno é finalizado, assim como havia acontecido no anterior, por uma
ironia marcada por termos como “confusões da economia”, “Serei um pouco da loucura /
somada, deliciosa”.
Na invenção do aluno, o que se manteria como anáfora na penúltima estrofe do poema
Nas fronteiras da linguagem ǀ 106
original, “Cidade de meu andar / (Deste já tão longo andar!)”, é descontruído e reconstruído,
pela brincadeira com as palavras “entender” e “desentender”:
Cotações do meu desentender
(Desde já tanto tentar entender!)
O último versão, então, dá ênfase à temática escolhida pelo aluno. Por isso, “repouso”
se transforma em “fome”: possibilidade lúdica e, criticamente, lúcida para o leitor sentir e
pensar por meio da linguagem poética.
Esses dois exemplos mostram que o procedimento proposto na atividade exige do
aluno uma análise do poema original para a construção de seu próprio poema, o que se
aproxima do que afirma Alfredo Bosi, em O ser e o tempo da poesia, quando diz que “a
análise descobre o poema” (2000, p. 37). Dessa forma, não é difícil observar que o aluno
estuda o poema original por meio da confecção de seu próprio poema. Não se pode esquecer
ainda que, por meio do procedimento proposto no minicurso, foram estudados também os
gêneros jornalísticos que serviram como fonte para a criação dos poemas.
Considerações finais
Os resultados preliminares dos procedimentos realizados durante o minicurso de
literatura, no âmbito do PIBID Letras-Português da UFS, mostram que o poema, um gênero,
geralmente, distante da Educação Básica em práticas de leitura e de escrita, como se
demonstrou, pode se tornar um objeto de estudo, justamente, por meio de exercícios de leitura
e de escrita. Para tanto, torna-se necessário o desenvolvimento de atividades que incentivem
os professores em formação e, consequentemente, seus alunos, ao trabalho específico com a
linguagem poética. Ficou evidente durante o minicurso que tais aproximações geram maior
interesse por meio de atividades lúdica, entretanto, o desdobramento dessas ações, em escolas
de rede pública de ensino do estado de Sergipe, por meio de exercícios propostos pelos alunos
de Letras da UFS é que poderão confirmar a consequência de trabalhos como esse com alunos
no Ensino Médio.
Referências
AZEREDO, Ronaldo. “Velocidade”. In: Revista de Cultura Vozes. Concretismo. Ano 1, 1971.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 107
BANDEIRA, Manuel. Manuel Bandeira: poesia completa e prosa. 5ª ed. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 2009.
BAKHTIN, Mikhail. “Os gêneros do discurso”. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação
verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 261-269.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. 6ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
COELHO, Nelly Novaes. O ensino da literatura. São Paulo: FTD, 1966.
GULLAR, Ferreira. Toda poesia. 14ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.
HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 4ª ed. Tradução de João
Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 1996.
JOLIBERT, Josette et al. Former des enfants lecteurs et producteurs de poèmes. Paris:
Hachette, 1992.
QUINTANA, Mário. Rua dos cataventos & outros poemas. Porto Alegre: LP&M, 2013.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 108
INTERPRETANDO EM CONTEXTOS: UMA ANÁLISE DA
PRESSUPOSIÇÃO DISCURSIVA NO GÊNERO “FRASES” [Voltar para Sumário]
Aleise Guimarães Carvalho (S.E.E.-PB)
Alessandra Magda de Miranda (S. E.E.- PB)
Introdução
As construções linguísticas, materializadas tanto na forma escrita quanto falada,
carregam consigo conteúdos semânticos que, em alguns casos, não estão explicitamente
revelados, mas implicitamente inseridos nas sentenças. De acordo com Ducrot (1987), o
pressuposto é um dos conteúdos implícitos que é descrito por meio do componente. Moura
(2006) se apropria desta classificação em relação à pressuposição, acrescentando apenas a
ideia de que, além da estrutura linguística (semântica), a pressuposição depende também do
contexto (conhecimento compartilhado entre os sujeitos participantes do discurso), contexto
este de natureza semântica. Para este estudo, nos utilizaremos da classificação apresentada por
Moura para a classificação da pressuposição.
Um gênero discursivo bastante relevante para a análise dos sentidos implícitos é o
gênero “frases”. Este se encontra em revistas populares, nas quais a edição dedica uma seção
especificamente para publicar as “frases” que foram ditas por pessoas públicas (artistas;
celebridades; políticos) durante a semana, caso a revista seja de circulação semanal.
O gênero “frases” é constituído da ‘fala’ do locutor/autor (pessoa pública), mais a
contextualização apresentada pelo editor da revista com a finalidade de situar o leitor de que
contexto, situação física, psicológica, a frase foi extraída. Ainda, em alguns casos, a revista
publica uma imagem da pessoa que fala.
Diante do exposto, pretendemos, com este estudo, descrever os sentidos pressupostos
presentes em três “frases” publicadas pela Revista Veja e, em seguida, observar se, a partir da
contextualização da fala, os pressupostos são mantidos, modificados e/ou anulados. Neste
sentido, verificaremos se a contextualização da edição das “frases” em análise comporta-se
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 109
como contexto dinâmico, tal qual é referido por Moura, uma vez que, para o autor, cada
sentença gera um novo contexto e este elimina ou não os contextos anteriormente aceitos.
O corpus para este trabalho foi selecionado de maneira aleatória. Inicialmente foram
selecionadas dezesseis “frases” publicadas pela Revista Veja durante três meses consecutivos.
Todas elas apresentavam informações pressupostas, no entanto, para este estudo escolhemos
apenas três delas.
Esta pesquisa é, portanto, de cunho qualitativo, a qual tem como principais
pressupostos teóricos os postulados de Ducrot (1987); Moura (2000); Pedrosa (2007; 2011),
entre outros.
1. Considerações teóricas
1.1 Uma breve discussão acerca da pressuposição
Para tratar da pressuposição, seguiremos, neste estudo, as abordagens apresentadas
pelo linguista Heronides Moura (2006), o qual trata deste fenômeno linguístico na interface
entre a semântica e a pragmática.
A partir de exemplos, Moura (idem) expõe dois níveis nas informações contidos nas
sentenças exemplificadas. O primeiro nível é o posto, e o segundo, o pressuposto. De acordo
com o autor supracitado, o posto é a informação contida no sentido literal de uma sentença, já
o pressuposto é a informação inferida da enunciação, “a aceitação de verdade do posto leva à
aceitação da verdade do pressuposto” (ibdem).
Ducrot (1987), precursor do estudo da pressuposição, admite que o pressuposto não
pertence ao enunciado da mesma maneira que o posto, mas ocorre de formas diferentes, no
entanto o posto é o que é afirmado enquanto que o pressuposto é o que é apresentado como
pertencendo ao domínio comum dos participantes do diálogo.
Percebemos, então, que Moura corrobora com Ducrot na diferenciação destes dois
níveis, uma vez que ambos afirmam que o posto é o que está dito, enquanto que o pressuposto
é a informação compartilhada entre os participantes do diálogo, informação esta interpretada a
partir de marcadas linguisticamente inseridas na sentença.
Para Moura (idem), a compreensão da pressuposição ocorre, se as proposições forem
aceitas tanto pelo falante quanto pelo ouvinte. A este fenômeno, o autor chama de
conhecimento compartilhado. Assim sendo, “a pressuposição deve ser parte do conhecimento
compartilhado dos interlocutores” (ibdem, p. 17).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 110
Além da marca linguística, existem alguns outros fatores que nos permitem confirmar
se de fato existe a pressuposição dentro de determinada sentença. Moura (idem), respaldando-
se em Ducrot (1987), apresenta o mecanismo de negação do posto para comprovação da
pressuposição, ou seja, a negação do posto não afeta a necessidade de aceitarmos como
verdade o pressuposto. Ao negar a “informação afirmada no posto, o pressuposto ainda
permanece válido” (ibdem, p. 16).
Na primeira versão sobre o estudo da pressuposição, Ducrot (idem) afirma que o
critério comprobatório de classificação da pressuposição é o de que no momento em que o
enunciado é submetido à negação ou à interrogação, os pressupostos continuam inalteráveis.
Ducrot reexamina este estudo e afirma que “quando não se pode transformar, negativamente
ou interrogativamente, um enunciado, pode-se encadear a partir dele” (ibdem, p. 38).
Moura não aborda o mecanismo do encadeamento proposto por Ducrot, mas, além dos
testes com a negação e interrogação, apresenta os testes com o uso do operador modal e do
verbo factivo. Desta forma, em qualquer que seja o caso duvidoso de pressuposição, basta
aplicar estes testes e a evidência de pressuposição se confirmará.
Em algumas sentenças, a existência de expressões já evidencia o implícito
pressuposto. Moura (idem) lista sete tipos de expressões que ativam a pressuposição, a saber:
a) Descrição definida (pressuposto de existência): “o uso de uma descrição definida
pressupõe a existência do ser a que ela se refere” (idem, p. 17).
b) Verbos factivos: lamentar; sentir; compreender; saber; adivinhar.
c) Verbos implicativos: conseguir; esquecer.
d) Verbos de mudança de estado: deixou de; parou de; começou a; iniciar em.
e) Verbos interativos: a ação já tinha acontecido anteriormente.
f) Expressões temporais: depois de; antes de.
g) Sentenças clivadas: “sentenças em que uma sentença simples é dividida em duas
orações a fim de destacar um certo constituinte da sentença” (ibdem, p. 21).
1.2 Refletindo sobre contexto
Diferentemente de Ducrot (1987), Moura (idem) afirma que a pressuposição depende
do contexto e não somente da estrutura semântica e, portanto, a pressuposição funciona a
partir de contextos compartilhados entre os participantes da conversação. Assim sendo, as
palavras e/ou expressões ativadoras de pressuposição impulsionam a informação
compartilhada favorecendo o fluxo conversacional. “A determinação ou não do pressuposto
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 111
de uma sentença depende do contexto conversacional e do conhecimento compartilhado dos
interlocutores” (ibdem, p. 23).
Desta feita, os participantes do discurso assumem como verdadeiros o conhecimento
compartilhado entre eles como também o contexto pelo qual a sentença está referida e daí
constata-se a pressuposição.
Em muitos casos, este contexto é modificado por meio da dinâmica conversacional, ou
seja, à medida que a conversação avança, pode acontecer de o contexto referido ser alterado
conjuntamente. A esta mudança do contexto, alterado pelo processamento da conversação,
Moura (idem) classifica de contexto dinâmico.
De acordo com Moura (idem, p. 46), “o contexto pode ser aumentado de duas
maneiras: (1) pela incorporação dos pressupostos das sentenças enunciadas; (2) pela
incorporação de informações novas contidas nas próprias sentenças enunciadas”. Diante da
inserção de novos contextos à conversação, os pressupostos, que inicialmente foram
comprovados, podem permanecer ou, até mesmo, serem eliminados.
Em alguns casos, acontece a eliminação da pressuposição a partir do uso de dois
conectivos, “e” e “ou”. Este processo é classificado de filtro. Mas, em algumas sentenças,
esses conectivos não filtram a pressuposição contida na sentença simples e ocorre a
permanência do pressuposto na sentença composta. Esta permanência é classificada de
projeção da pressuposição. (MOURA, 2006)
Além destes dois processos, ainda podemos citar os bloqueios e os furos. Os bloqueios
impedem a preservação dos pressupostos das sentenças simples e geralmente são ativados
pelos verbos de atitude proposicional (acreditar; querer; imaginar; sonhar; dizer; contar; falar;
retorquir), os furos preservam (deixam passar) esses processos evidenciados, em sua maioria,
por verbos factivos, operadores modais e a negação. (ibdem)
Mesmo diante da classificação destes processos anteriormente citados (filtros;
bloqueios; furos), os quais são compreendidos somente mediante entendimento semântico,
para a afirmação da pressuposição, valerá não somente esta classificação, mas,
principalmente, a definição do contexto, uma vez que, em alguns casos, a classificação
semântica não é suficiente para a compreensão da pressuposição.
No tópico seguinte, abordaremos algumas considerações a respeito do gênero “frases”,
gênero este que nos servirá de corpus para análise das pressuposições e do comportamento
destes implícitos mediante contextos dinâmicos.
1.3 Gênero “frases”
Nas fronteiras da linguagem ǀ 112
Discutindo sobre gêneros discursivos, Bakhtin (2010 [1992], p. 262) afirma que a
imensa quantidade de texto se justifica pelo fato de serem “inesgotáveis as possibilidades da
multiforme atividade humana” e que a cada esfera destas atividades e ações humanas é
integral um grande número de gêneros do discurso, sendo estes maleáveis e dinâmicos. Esta
diversidade textual cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e torna-se mais
complexo uma determinada esfera social.
No caso do nosso estudo, exploraremos a pressuposição em algumas “frases” que
estão publicadas na Revista Veja. Este gênero, assim como todos os demais, possui
características peculiares. É um gênero de tamanho curto, geralmente veiculado em jornais e
revistas. “Estruturalmente, compõe-se na ‘fala’ dos locutores/autores [...], mais o contexto
recuperado [...] do editor” (COSTA, 2009, p. 121).
As “frases” são sempre publicadas a partir de um recorte feito pela edição da revista
ou do jornal a partir de uma fala maior do locutor. Depois deste recorte, a edição situará o
leitor informando qual o contexto e a situação física, psicológica etc., pela qual a “frase” foi
extraída. Segundo Pedrosa (2007), as revistas sempre publicam este gênero com uma forma
padrão, primeiro a ‘fala’ escolhida e depois, logo abaixo da fala, a contextualização.
Para a autora (2007, p. 157), os contextos podem ser classificados de três formas:
contexto informativo (aquele contexto que traz apenas informações sobre a situação, sem que
esteja explícita a opinião do editor); contexto atrelado (aquele que não é suficiente para a
compreensão da fala tendo de recorrer ao contexto de “fala” anterior); e contexto
interpretativo ou tendencioso (aquele que identificamos explicitamente, através de marcas
linguísticas, a opinião do editor).
Segundo ela, é através do contexto que o leitor conhece a “fala” retextualizada.
No primeiro processo, o editor seleciona a ‘fala’ do locutor a partir de um evento
comunicativo mais amplo e a retextualiza segundo critérios bem subjetivos, pois
verificamos que as ‘falas’ não são transcritas, como o uso das aspas poderia sugerir,
mas retextualizadas segundo preferências lexicais, sintáticas, semânticas,
pragmáticas e ideológica do editor (PEDROSA, 2004, p. 2).
Então, “poderemos afirmar que só podemos tratar do gênero discursivo “frases”,
considerando-o em seu conjunto construtivo: ‘fala’ do locutor + contexto do editor”
(PEDROSA, 2007, p. 158). Portanto, é com base nesta constatação que analisaremos a
pressuposição contida em algumas “frases”, ou seja, consideraremos a fala do locutor como
também o contexto do editor.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 113
2. Análise do corpus
Conforme vimos anteriormente, o gênero “frases” é composto de duas partes e a
análise a seguir, visa descrever os pressupostos inseridos no gênero como um todo (fala +
contextualização), observando se esse apresenta sentenças compostas, analisando, em seguida,
se ao inserir novos contextos, a pressuposição inicial é anulada, alterada ou reiterada. Desta
maneira, observaremos se este fenômeno semântico pode ser considerado como característica
do gênero discursivo em estudo.
“Frase” 01:
“A classe C não tem medo de dar vexame.”
GABY AMARANTOS, a Beyocé do Pará,
rainha do movimento musical tecnomelody,
antes conhecido como tecnobrega.
A fala da “frase” acima pertence a uma cantora precursora de um novo movimento
musical, o qual se espalhou pelo restante do Brasil a partir da população de baixa renda do
Estado do Pará.
Essas informações do parágrafo anterior são informações que, possivelmente, estão
compartilhadas entre o enunciador e seus interlocutores. Com base na aceitação de verdade
deste conhecimento compartilhado, podemos considerar que há uma primeira informação
pressuposta nesse texto, ou seja, a pressuposição de que existe uma classe C. Ainda
conseguimos interpretar outra pressuposição na fala da cantora, a de que a classe C dá
vexame. Por já conter uma negação no posto, apliquemos, então, o teste da interrogação para
verificar a comprovação desses pressupostos:
Nas fronteiras da linguagem ǀ 114
Posto: “A classe C não tem medo de dar vexame.”
Pp. 1: Existe uma classe C.
Pp. 2: A classe C dá vexame.
Int.: A classe C não tem medo de dar vexame?
Através do posto interrogado, comprovamos a existência dos dois pressupostos na fala
da personagem, pois estes implícitos se mantiveram inalterados mesmo com a interrogação do
posto.
Ao observar a contextualização da revista -“Gaby Amarantos, a Beyocé do Pará,
rainha do movimento musical tecnomelody, antes conhecido como tecnobrega”- percebemos
que nela não há informações pressupostas, e que todos os fatos informados apenas reforçam o
conhecimento compartilhado entre os participantes do discurso. Desta maneira, o novo
contexto não modificou e nem ratificou nenhuma da pressuposição inicial da fala da
personagem da “frase”.
“Frase” 02:
“Agora sou só família, trabalho
e eu mesma. Ando ocupada demais
para um namoro sério.”
PARIS HILTON, celebridade, depois de acabar com
o último namorado e antes de engatar com o próximo.
Na primeira sentença da fala da atriz Paris Hilton -“Agora sou só família, trabalho e eu
mesma.”- existe uma marca temporal “agora”, considerada, gramaticalmente, como um
advérbio, que aponta bem na linha do tempo, o momento referido pela atriz. Ao afirmar que
agora Paris Hilton é só família, trabalho e ela mesma, a atriz deixa uma informação
pressuposta, a de que antes ela não era só família, trabalho e ela mesma, ou seja, existia algo a
mais.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 115
Ao ler a segunda sentença -“Ando ocupada demais para um namoro sério.”- o novo
contexto nos informa que, o algo a mais implícito na primeira sentença, nos permite
interpretar que ela se referia a “um namoro sério”. Desta maneira, uma das outras coisas que
existiam em sua vida, além de família, trabalho e ela mesma, era a um “namoro sério”. Assim
sendo, por causa da segunda sentença proferida por Paris Hilton, percebemos que existe uma
intensificação da informação inicialmente pressuposta.
Com a contextualização da revista, ao afirmar -“Paris Hilton, celebridade, depois de
acabar com o último namorado”- este novo contexto confirma a interpretação da
pressuposição de que existia um namoro na vida da atriz e, portanto, confirmamos a
pressuposição dita inicialmente, a de que antes a Paris Hilton tinha um namoro e não só
família, trabalho e ela mesma.
Com a sequência da contextualização da revista, ao dizer -“e antes de engatar com o
próximo”– este novo contexto ainda confirma a pressuposição inicial, isto por causa da
expressão “e antes”, no entanto, argumentativamente, desfaz o que foi dito pela celebridade
ao afirmar que ela engatou um novo relacionamento. Passamos, portanto, a interpretar que a
atriz não é só família, trabalho e ela mesma, uma vez que, conforme a informação apresentada
pela revista, possivelmente ela tenha assumido outro relacionamento.
“Frase” 03:
“Esta é a festa mais sexy do mundo
no canal mais sexy do mundo.”
DR. ROBERT REY, o cirurgião plástico brasileiro que é sucesso em
Hollywood, falando do show trash Sexo a 3, que apresenta na RedeTV!
Na fala acima, podemos interpretar que alguns pressupostos são ativados a partir de
descrições definidas. No momento em que o enunciador afirma -“Esta é a festa”- deixa
Nas fronteiras da linguagem ǀ 116
pressupor a existência de algo, e, neste caso, pressupõe a existência de uma festa. Conforme
Moura (2006, p. 18), “esse tipo de pressuposição é chamado também de pressuposto de
existência”.
Consideramos, portanto, que a primeira pressuposição contida na fala do Dr. Robert
Rey é a de que existe uma festa. O segundo pressuposto de existência nesta frase é o de que
existe um canal.
Outras pressuposições podem ser interpretadas neste texto, por causa do uso da marca
linguística “mais”. Ao considerar que existe uma festa e esta é a mais sexy do mundo, a
palavra “mais” ativa o pressuposto de que existem outras festas que são sexy. Da mesma
forma acontece na segunda parte da sentença, quando o médico cirurgião afirma –“no canal
mais sexy do mundo”– a palavra “mais” aciona o pressuposto de que existem outros canais.
Para comprovação destas pressuposições, neguemos e interroguemos o posto e
verifiquemos a permanência dos pressupostos:
Posto: “Esta é a festa mais sexy do mundo no canal mais sexy do mundo.”
Pp. 1: Existe uma festa.
Pp. 2: Existe um canal.
Pp. 3: Existem outras festas que são sexy.
Pp. 4: Existem outros canais.
Neg.: Esta não é a festa mais sexy do mundo não é o canal mais sexy do mundo.
Int.: Esta é a festa mais sexy do mundo no canal mais sexy do mundo?
Comprovamos que, tanto com a negação do posto, quanto com a interrogação, os
quatros pressupostos continuam inalterados. Consideramos, portanto, que os quatros são
pressupostos contidos na fala da “frase”.
A contextualização da revista, nesta “frase”, ao dizer –“falando do show trash Sexo a
3”– ela classifica, nominalmente, a festa que havia sido referida pelo Dr. Rey em sua fala. Em
seguida, a contextualização também nomeia o canal pelo qual tinha se referido o médico
cirurgião plástico. Ao afirmar – “falando do show trash Sexo a 3, que apresenta na RedeTV!”
– a revista considera que o leitor possui o conhecimento de que a RedeTV é um canal de TV
brasileiro e, desta forma, confirma o pressuposto de que existe um canal.
Portanto, com a contextualização da revista, somente dois dos quatro pressupostos
foram confirmados: o pressuposto 1 - existe uma festa - e, depois do novo contexto,
consideramos que esta festa é chamada de Sexo a 3; e também reitera a pressuposição 2 -
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 117
existe um canal - e, a partir da contextualização, conhecemos que o canal referido é a
RedeTV. Os demais pressupostos contidos na fala do Dr. Rey, não foram anulados, alterados
e nem reiterados pela contextualização da revista.
Diante das três “frases” analisadas, consideramos que houve reiteração de pelo menos
um pressuposto em duas delas. Somente em uma “frase” observamos que a contextualização
anula o pressuposto ao ativar outro pressuposto e em apenas uma outra “frase” a
contextualização da revista não interferiu na pressuposição. Desta forma, no corpus analisado,
o novo contexto, inserido a partir da contextualização da revista, em sua maioria, ratificou os
pressupostos inseridos nas falas das celebridades, sendo a anulação e não interferência
ocorrida na minoria das “frases”.
3. Algumas considerações
Como pudemos observar, o gênero “frases” possui bastante relevância no que
concerne à análise dos implícitos pressupostos, uma vez que, a partir de marcas linguísticas,
faz-se possível interpretar todas as informações contidas nas falas das celebridades, mesmo
que estas não tenham sido inseridas de maneira proposital.
Com a análise deste gênero como um todo, ou seja, fala + contextualização,
comprovamos que, de fato, a contextualização da revista ativa novos contextos e este, em
muitos casos, interfere na pressuposição da fala, mesmo que esta interferência seja apenas
para ratificar a pressuposição.
Assim sendo, a análise do corpus atingiu nossas expectativas, pois, como proposto
inicialmente, descrevemos os pressupostos inseridos nas “frases”, aplicando os testes a fim de
possibilitar sua comprovação e, posteriormente, observamos o comportamento dos novos
contextos inseridos a partir da contextualização da revista, verificando se estes anulavam,
alteravam ou reiteravam os pressupostos contidos na fala das pessoas públicas.
Diante destas considerações, observamos que a contextualização ora interfere na
pressuposição, e ora não, nos revelando que, mesmo não sendo recorrente em todos os textos,
consideramos que o contexto dinâmico influência na compreensão e interpretação do texto
como um todo. A partir do novo contexto, novas informações são inseridas e estas permitem,
muitas vezes, maior clareza no entendimento do dito e não dito na fala da personagem.
Além disso, a análise do fenômeno da pressuposição, a partir da inserção de novos
contextos, tornou-se bastante relevante para este estudo, uma vez que o aparecimento de
novos contextos é uma característica intrínseca do gênero “frases” por causa de sua
Nas fronteiras da linguagem ǀ 118
construção composicional. A partir da contextualização da revista, as informações
pressupostas podem ser confirmadas ou anuladas permitindo a compreensão de que a
pressuposição discursiva pode ser considerada um fenômeno característico do gênero
estudado.
Sem dúvidas, o gênero em questão é riquíssimo para ser explorado no campo dos
estudos linguísticos, visto que este apresenta a seleção (recorte) das falas de celebridades;
inserem-se considerações da revista em relação às determinadas falas; e, ainda, escolhe-se
imagem ilustrativa da pessoa pública. Todos esses critérios são bastante relevantes para o
estudo em todas as áreas da Linguística e para o meio acadêmico.
Referências
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edição 1992). Tradução: Paulo Bezerra. 5. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010,
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COSTA, Sérgio Roberto. Frases. In: Dicionário de gêneros textuais. 2. ed. ver. ampl. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 119
A ESCRITA DEMOCRÁTICA E RUMOREJANTE DE UMA
NOVELA NACIONAL, EM A BICICLETA QUE TINHA
BIGODES: ESTÓRIAS SEM LUZ ELÉTRICA [Voltar para Sumário]
Alice Botelho Peixoto (PUC Minas. CAPES)
Em A Bicicleta que tinha bigodes: estórias sem luz elétrica, do escritor angolano
Ondjaki, acompanhamos as peripécias de um menino em busca do seu sonho, ganhar um
concurso nacional de estórias, cujo prêmio é uma sonhada bicicleta colorida.
Surpreendentemente, a novela infanto-juvenil não nos coloca atrás da bicicleta, um sonho
comum a muitas crianças. Vamos guiados pela voz do menino-narrador em busca de uma
ideia para escrever a sua estória. Vamos procurar o segredo nos bigodes do tio Rui, de onde
saem as boas ideias para as boas estórias.
O assunto é introduzido nas primeira páginas, ainda não numeradas, onde lemos um
breve diálogo entre o sobrinho que pede licença ao tio para “falar dos restos de letras que a tia
Alice tira do teu bigode à noite?” (ONDJAKI, 2012)1. Diálogo que é respondido também com
um bilhete, assinado pelo “Tio Manuel também Rui”. O paratexto, na orelha do livro, traz a
seguinte dedicatória do autor, Ondjaki, aos escritores Luís Bernardo Honwana, moçambicano,
e Manuel Rui, angolano: “o corpo deste texto é um abraço de amizade e de saudade”
(ONDJAKI, 2012). A filiação reclamada pelo autor, Ondjaki, às literaturas angolana e
africana é explicita. Na narrativa, associamos logo a dedicatória feita ao escritor angolano
Manuel Rui, ao personagem, “tio Manuel também Rui”, que atua, na trama, também como
escritor. Assim, expectativa e mistério introduzem a estória dessa novela infanto-juvenil.
É em torno da expectativa de situar a novela de Ondjaki dentro do sistema literário
angolano e do mistério desses “restos de letras” a cair do bigode do tio Rui que formulamos
nossa problemática. Concordamos com a interpretação da pesquisadora Inocência Mata que
entende certas narrativas angolanas contemporâneas como a “'escrita da nação', embora não
mais numa perspectiva nacionalista” (MATA, 2008, p. 75). Se sabemos que a temática
1 Todas as citações de A Bicicleta que tinha bigodes: estórias sem luz elétrica se referem à edição de 2012 e
serão indicadas a partir de agora apenas pelo número da página.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 120
nacional está presente na literatura angolana em diferentes épocas, é necessário situar em que
fase do relacionamento, entre a literatura e a nação, está a obra estudada. Para tanto, vamos
pelo caminho escolhido pelo menino-narrador, o da própria escrita. A partir da filiação à
literatura africana e, especificamente, à angolana, declarada na dedicatória, interrogamo-nos
sobre a representação ficcional da nação angolana. Procuramos entender como a língua escrita
se torna a expressão de uma língua nacional, tanto na língua literária do escritor Ondjaki,
quanto na língua que os personagens encenam nessa busca por uma estória. Finalmente,
discutiremos sobre como, no exercício da criação ficcional, se materializa o que Barthes
considera um “rumor da língua” (BARTHES, 1988).
Abordaremos a representação da nação proposta por Ondjaki apoiando-nos nas
reflexões da pesquisadora das literaturas africanas de língua portuguesa, Inocência Mata que
analisa a “escrita angolana pós-colonial” como “uma escrita de ruptura.” (MATA, 2008,
p.75). Entendemos que o corte com o passado colonial, expresso na literatura angolana
contemporânea, caracteriza-se pelo abandono dos temas relacionados a terra-mãe-Angola por
romper com uma escrita marcada pela utopia de uma nação, que valorizava uma essência
tipicamente angolana. No entanto, a nação independente do jugo colonial não é aquela tão
sonhada. Uma literatura da distopia aparece na pluma principalmente do escritor Pepetela,
marcando a cisão entre a “escritura da terra”, dos poetas da geração da revista Mensagem, e
“escrita da História”, referente à produção angolana pós-colonial. Essa “ruptura” de gerações
literárias se dá mais na abordagem literária das questões relativas à nação do que no assunto
em si. Ou seja, continua-se falando de Angola, do país e do povo, muitas vezes de forma
política, mas não mais de forma idealizada. É nessa linha que identificamos uma temática
nacional na novela em estudo, no intuito de compreender a relação de filiação d'A Bicicleta
ao trabalho do escritor Manuel Rui.
Essa “escrita da nação” traz referências explicitas ao contexto da guerra civil dos anos
80 e 90, como a falta de luz, indicada no subtítulo. Notamos que a guerra faz parte da vida dos
personagens quando o menino-narrador nos conta que “Era hora do noticiário e explicaram
coisas da nossa guerra, falaram também da falta de água e de uma falta de luz que também
poderia acontecer devido aos combates de Cambambe.” (p.43). Apesar da nota de esperança
expressa pelo tom infantil da estória, não há a utopia de outrora. Embora, eventualmente, a
obra permita uma interpretação por um viés ideológico, por exemplo, quando há denúncia de
situações precárias, o que prevalece no texto literário é a apropriação de um dado
acontecimento, contexto extra-textual (histórico ou atual), que se torna ambiente da estória. A
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 121
pesquisadora Tânia Pellegrini nos esclarece sobre a relação da arte literária com o real e
explica o realismo como:
um modo de representar as relações entre o social e o pessoal que não se limita a um
simples processo de registro e/ou descrição, pois sempre depende, para sua plena
elaboração, da apreensão das formas de percepção e de representação artística,
mutáveis ao longo da história. Nesse sentido, trata-se de um modo de compreensão
estética do mundo social que o representa em profundidade, e não uma forma de
representação presa apenas a aspectos aparentes ou a possibilidades dadas pela
linguagem em si. (PELLEGRINI, 2009, p.33).
Na trama d'A Bicicleta que tinha bigodes, Ondjaki elabora uma imbricação de
contextos, real e fictício, sugerindo uma espécie de mise en abyme, ou efeito de espelhamento,
onde ficção e realidade estão uma dentro da outra, ao infinito, num movimento em que a
literatura fala dela mesma e a obra se volta sobre seu próprio processo criativo. No geral, o
termo mise en abyme refere-se:
aos casos em que a obra representa no texto a leitura dele próprio ou a escritura dele
próprio. […] A representação pode propor o que é chamado de 'reduplicação
repetida', ou 'ao infinito', na qual o fragmento posto no procedimento de “mise en
abyme” comporta nele mesmo uma representação que entretém uma relação de
similitude com o todo. [...] Oferecendo ocasiões para uma reflexão metadiscursiva, a
obra pode refletir sobre o desenvolvimento complexo que é sua própria elaboração
[…]. Além da dimensão lúdica do processo de mise en abyme, destacamos sua
capacidade de produzir uma infinidade de “trompe-l'œil” […] e podemos dizer que
essas representações espetaculares são sintomáticas de períodos de crise da
representação, ou seja, de momentos onde a mimésis duvida de sua própria aptidão
de falar verdadeiramente do mundo, e se volta para o que toda representação
comporta de ilusão e de enganação. [...] [Essa estratégia de mise en abyme] usa de
procedimentos variados para se situar mais perto do gesto da criação literária,
apreendida no seu movimento de reflexibilidade de um texto que se torna
“metatexto”. (GEFEN, 2003, p. 211-212, tradução nossa).2
É nesse sentido, de um “metadiscurso”, de um “metatexto” e de uma “reduplicação
repetida” que lemos a referida dedicatória, na orelha do livro, ao escritor angolano Manuel
Rui. Nesse fragmento posto no procedimento de “mise en abyme”, o autor Ondjaki que, logo
2 “[...] on parlera « mise en abyme » pour caractériser tous les cas où une œuvre représente dans le texte sa
lecture ou son écriture […]. À la limite, la représentation peut proposer ce que l’on nomme réduplication
répétée, ou à l’infini, dans laquelle le fragment mis « en abyme » comporte lui-même une représentation ayant
cette relation de similitude avec le tout. […]. En offrant des occasions de réflexion métadiscursive, l’œuvre peut
réfléchir au cheminement complexe dont relève son élaboration […]. Par-delà sa dimension ludique, aptitude à
produire une infinité de « trompe-l’œil » […] on peut avancer que ces représentations spéculaires sont
symptomatiques de périodes de crise de la représentation, c’est-à-dire de moments où la mimèsis se met à douter
de son aptitude à parler véritablement du monde, pour se replier sur ce que toute représentation comporte
d’illusion et de mensonge. […] Jean Ricardou a montré dans les Problèmes du nouveau roman (1967) comment
ce courant littéraire avait usé de procédés variés de mise en abyme pour se situer au plus près du geste même de
la création littéraire, saisie comme dans son mouvement même par la réflexivité d’un texte devenu
« métatexte ».”
Nas fronteiras da linguagem ǀ 122
em seguida, coloca ênfase na sua função de escritor, se declara influenciado pelo mais velho:
“tu sabes: (quase) todos nós, dos anos 80, somos um pouco a ficção e a realidade do teu
Quem me dera ser onda”. Ou seja, na novela, quando Ondjaki reitera a estratégia ficcional
de seu mais velho, fazendo com que a sua ficção também encene questões do contexto sócio-
político angolano, assim como a novela de Manuel Rui, a obra se volta sobre ela mesma. Há
um movimento reflexivo no texto de Ondjaki que trata do fazer literário pela evocação do
escritor Manuel Rui, no paratexto, pela reiteração de sua estratégia, na trama, e pela
encenação da própria criação literária: ao transformar o escritor em personagem e ao usar o
narrador como investigador desse processo de criação literária encenada pelo tio Rui e, pelo
próprio narrador que escreve a sua estória.
Assim, o diálogo com o texto de Manuel Rui, também uma obra literária curta, instiga
a interpretação. Situamos ambos escritores – embora sejam de gerações, idades, diferentes –
no mesmo movimento literário angolano, analisado por Inocência Mata como a “escrita da
História”, o que implica uma relação da obra com o contexto sócio-político angolano.
É neste contexto, de reinterpretação de um corpo nacional que se apresenta
fracturado em termos de memórias que a ficção angolana tem sido expedita no
processo de cerzimento identitário: Pepetela, Boaventura Cardoso, Manuel Rui; mais
recentemente João Melo, Roderick Nehone, João Tala, Ismael Mateus, Ondjaki,
entre poucos outros.” (MATA, 2008, p. 81).
Identificamos, de fato, a permanecia da discussão sobre a identidade nacional
angolana, na novela de Ondjaki. O processo de criação literária, encenado na obra com o
personagem Manuel Rui, concretiza na escrita literária a língua nacional angolana pelo
movimento reflexivo da obra observado anteriormente. Observamos ainda, no processo de
encenação da escrita, a opção pelo sotaque angolano com a incorporação das letras
estrangeiras ao alfabeto português e de palavras locais, como veremos adiante. Por isso, a
figura do escritor Manuel Rui e do personagem em homenagem, o também escritor tio Rui, é
fundamental. O escritor é na estória, e para ela, o catalisador da abstração da língua, aquele
“que é escritor e inventa estórias e poemas que até chegam a outros países muito
internacionais.” (p.9).
Tio Rui é desde o início escolhido como “patrocinador” da empreitada de construção
da estória, que incluí ter a ideia, primeiro, e escrevê-la, em seguida. Há uma ênfase no
carácter inventivo da escrita de uma estória: “para ganhares tens de inventar uma estória.”
(p.11).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 123
- Tou masé3 a pensar que devíamos pedir patrocínio no tio Rui, aquele que escreve
bué4 de poemas.
- Isso não é batota5?
- Batota porquê?
- E as outras crianças?
- Quero lá saber, não tenho culpa que o tio Rui vive aqui na minha rua. Eles que
descubram também o escritor da rua deles. (p.11).
No diálogo acima, entre o narrador e o personagem adulto CamaradaMudo, o menino
elege o tio Rui como patrocinador oficial e legítimo da estória que ele quer escrever para
ganhar o concurso, porque o tio Rui é o escritor “minha rua”. Pedir essa ajuda ao escritor
profissional não invalidaria sua candidatura, já que as outras crianças também podem pedir
ajuda ao “escritor da rua deles”. Ao sugerir que existiria um escritor por rua em Luanda, tio
Rui se torna o representante de todos eles por atuar nessa trama. Da mesma forma, a estória
que está sendo contada é representativa, pois é a estória contada entre todas as outras de todas
as crianças que tentam ganhar o concurso. Nessa perspectiva, em que um caso individual
contribui para representar o coletivo, tio Rui sugere ao seu pupilo que escreva a estória dele:
“- Só sei que queria ganhar a bicicleta. Mas isso não é uma estória, é só uma vontade.” (p.
64), diz o sobrinho ao tio, pedindo uma ideia. Ao que o escritor responde: “- Essa é a tua
estória. Podias escrever sobre isso.” (p. 64).
Logo, se aderimos ao jogo sugerido pelo autor que implica uma relação entre o texto e
o contexto, é válida a analogia entre a escrita literária, representada na trama pela busca da
estória para ganhar o concurso, e a função da literatura no processo de escrita da história,
apontada por Inocência Mata. A estudiosa considera que “A actual produção [literária
angolana] persegue, e realiza, um 'inventário de diferenças e conflitos' para se insurgir contra
a privatização da História pelas sucessivas dominâncias” (MATA, 2008, p. 76). A literatura
atuaria, então, na democratização da história contando a estória de cada um, como tio Rui
ressalta: “essa é a tua estória” (grifo nosso). Nesse sentido, a busca do menino por uma ideia
para a estória do concurso representa a busca pela própria história, “contra a privatização da
História”.
Dessa forma, fica explícito que “Tio Manuel também Rui” estabelece uma relação
direta entre a escrita, ficcional e histórica, e a literatura angolana dentro da novela infanto-
juvenil A Bicicleta que tinha bigodes: estórias sem luz elétrica, quando é claro o jogo entre
ficção e realidade, num processo de auto-referenciação explicado pela mise en abyme. No
3 No glossário ao fim da obra, Masé: “Mas + é”. 4 “Bué: grande número ou quantidade”. 5 “Batota: qualquer forma de trapaça, falcatrua”.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 124
plano da escrita literária, para compreendermos a deferência do escritor mais novo ao mais
velho, destacaremos algumas características da escrita de Manuel Rui e do seu famoso Quem
me dera ser onda, analisado pela professora Maria Teresa Salgado (2011) à luz do conceito
de carnavalização bakhtiniana, de paródia e de realismo grotesco.
Sobre Manuel Rui, ressaltamos:
Como afirma Luiz Kandjimbo (1997), a ficção de Manuel Rui é marcada por um
realismo social que assegura ao escritor o manejo de instrumentos capazes de tornar
risíveis as situações enfocadas. O riso e a ironia são as armas com que esse escritor
angolano disseca o cotidiano das gentes simples ou critica o modo de vida dos mais
abastados. (FONSECA; MOREIRA, 2007, p. 46).
Escolhemos, pois, entender a novela de Ondjaki, no rastro da escrita de Manuel Rui,
de um “realismo social”, também como “a compreensão estética do mundo social”, no sentido
em que nos fala Pellegrini.
Nesse caminho, somos induzidos a nos questionar sobre a representação literária de
uma situação angolana mais ampla e percebemos em Ondjaki um tom irônico, que pode
provocar o riso por sua dose de ridículo, em certas cenas da novela, como no diálogo seguinte
acerca do atropelamento do sapo Raúl, irmão do sapo Fidel.
- Só uma coisa, camarada General.
- O que foi, camarada Rui?
- O camarada motorista deve sofrer uma atualização.
- Como assim? Uma multa?
- Não. Uma atualização nominal. O camarada motorista passa a ser chamado de Dez.
- Isso é que não – o GeneralDorminhoco ficou furioso. - Sapos não contam! Só
pessoas ou cães vacinados.
- Você está a dizer que um sapo chamado Raúl, irmão de um sapo chamado Fidel,
não conta para mudar o nome do seu motorista?
Nós, as crianças, rimos baixinho.
O GeneralDorminhoco foi obrigado a concordar e o motorista passou a chamar-se
Dez. (p. 25).
Nessa cena, os nomes próprios dos sapos Raúl e Fidel, o camarada General que é
GeneralDorminhoco e seu motorista, chamado Nove, que passa por uma atualização nominal,
são uma sátira ao formalismo dos regimes militares, em geral, mas também fazem referência
aos regimes de esquerda adotados em alguns países africanos após a independência, como foi
o caso em Angola. Assim, as referências a um contexto extraliterário são explícitas e várias.
A personagem Isaura, amiga do narrador, marca a outra filiação do escritor Ondjaki
em referência também declarada a uma personagem do escritor moçambicano Luís Bernardo
Honwana. Na Bicicleta, assim como no conto de Honwana, Nós matamos o Cão-Tinhoso,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 125
Isaura tem uma relação especial com os animais. Na novela angolana, ela é uma menina que
dá nome aos bichos do seu quintal de presidentes ou de pessoas “importantes”, em referência
ao contexto da história mundial recente. Estão presentes o gafanhoto SamoraMachel, a lesma
Senghor, o cachorro AmílcarCabral ou AmílcarCãobral, os também gafanhotos Mobutu e
Khadafi e ainda os papagaios, pai e filho, JãoPauloSegundo e JoãoPauloTerceiro e o gato
Gandhi, antes chamado de Tátecher6.
Os personagens humanos também recebem nomes significativos, como o
CamaradaMudo. Tudo escrito junto, com o “m” de mudo em letra maiúscula, mostrando que
substantivo e adjetivo compõem um nome próprio único. “Camarada” remete a forma de
tratamento utilizada pelo partido-governo socialista, não só de Angola. No caso, o Movimento
Pela Libertação de Angola (MPLA) chegou ao poder com o intuito de construir um país
socialista, de partido único e economia planificada, com a independência em 1975. O partido
está até hoje no poder com o presidente, engenheiro de formação, mas que já não é mais
camarada, Eduardo Santos que foi empossado pela primeira vez em 1979. Logo, um
CamaradaMudo, pelo designação de camarada remete ao contexto econômico e político de
Angola nas primeiras décadas do pós-independência. O adjetivo mudo, que acoplado ao
substantivo forma o nome próprio desse personagem, aparece mais como uma crítica ao
regime do que como uma característica do personagem, denunciando assim esse sistema que
falhou na construção da nação sonhada pelos poetas como o primeiro presidente angolano,
Agostinho Neto. Da mesma forma, não parece gratuito dar nomes de ditadores aos
gafanhotos, pragas em certas regiões africanas, assim como as ditaduras sanguinárias e
silenciadoras. Devemos, pois, atentar para produção de sentido na ficção, a partir das
referencias extraliterárias.
Interessante perceber, nesse contexto, como o status do escritor é visto pelas crianças,
quando o tio Rui vence a discussão anterior contra o GeneralDorminhoco, uma voz anônima
diz: “- Eu quando crescer também quero ser advogado e escritor. Assim nenhum general vai
querer me enganar – alguém falou.” (p. 26). Manuel Rui, autor de Quem me dera ser onda é,
6 Samora Machel: líder na luta de independência e primeiro presidente de Moçambique, socialista. Léopold
Sédar Senghor: poeta e escritor, desenvolveu o conceito de negritude de Aimé Césaire e foi o primeiro
presidente do Senegal, da independência em 1960 a 1980, também simpatizante do socialismo. Amílcar Cabral:
poeta e líder pela luta de independência da Guiné Bissau e do Cabo Verde, também teve participação no MPLA.
Khadafi: ditador da Líbia, deposto e morto em 2011, tinha sua própria filosofia de governo. Mobutu: um dos
governantes mais ricos do mundo, apoiado pelos EUA, deu o golpe militar que tirou do governo Patrice
Lumumba. O ditador Mobutu nomeou o antigo Gongo belga de Zaire. Atualmente, chama-se República
Democrática do Congo. João Paulo II: papa polonês de 1978 a 2005. Gandhi: líder pacifista na luta de
independência da Índia. Margaret Tatcher: primeira ministra do Reino Unido, de 1979 a 1990, conhecida como a
dama de ferro.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 126
de fato, escritor e advogado em Luanda. Mais uma vez, Ondjaki reforça o jogo entre ficção e
realidade na sua obra.
A aproximação com a novela de Manuel Rui se dá, assim, na manifestação literária de
um olhar crítico da realidade social e política de Angola. Além disso, em Ondjaki, as
situações infantis trazem para perto do leitor, numa primeira instância, um cotidiano lúdico,
marcado pela esperança, mesmo que infantil, mas sem a utopia de outrora. Mas não só, pois
aqui o lúdico da invenção infantil se transforma em crítica e denúncia social, como
observamos no trecho a seguir:
Ouvi os passos dos chinelos da Avó bem devagar, vi as primeiras luzes da manhã.
Um dia alguém disse que aquela era uma luz muito fresca, eu ria de ouvir essas
frases dos poetas, “luz fresca”, como a água da Avó regar as plantas verdes de
manhã, isso quando a água vinha. Se a água não viesse, a minha Avó, que é muito
engraçada, regava mesmo assim.
- Só de mangueira a fingir numa água que ainda está lá na barragem, Avó?
- Assim mesmo.
- Tipo que és do teatro dos jardineiros?
- Tipo – a Avó sorria, os gestos dela continuavam a abanar a mangueira sem água
nenhuma, só umas gotas sacudidas do dia anterior ou quê.
- Assim estás a regar como, Avó?
- A regar só. As plantas sabem.
A regar só. A Avó ficava bué de tempo a “regar só”. Mesmo deixava passar esse
tempo com se fosse uma demora de molhar. E olhava o céu num pedido de pingos.
(p. 39-40).
“A regar só”. A economia de palavras provoca um efeito lírico na cena, pois faz da
pequena expressão uma frase fértil de sentidos, aludindo a significados possíveis que trazem
esperança. Embora o gesto em si não provoque efeito algum, regar sem água não abastece as
plantas, ele enche a situação da falta de água de esperança ao se transformar numa espécie de
oração escondida, como confirma o menino-narrador, ao contar: “E olhava o céu num pedido
de pingos.” E ao perguntar: “- Pediste água dos céus, Avó, no tal camarada que abre as
torneiras?” (p. 40).
Ainda nessa cena, o humor do menino-narrador imprime um tom bem humorado à
narrativa, ao instigar o riso numa situação trágica de falta d'água. A narração expõe aspectos
cômicos do cotidiano, apontando para o fingimento óbvio, mas também para o fingimento
escondido na rotina, e denuncia, assim, o modo disfarçado de lidar com as práticas religiosas
tradicionais, muitas vezes, perseguidas pelos regimes dos generais e camaradas. Abusando do
que pode ser engraçado, o narrador ressalta com ironia a confusão de valores na época da
guerra civil, ao terminar dizendo que seria melhor que a Avó pedisse água à companhia de
abastecimento “na conta de seres mais-velha respeitada”, quando sabemos que “ser mais
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 127
velho” é um status colocado em xeque desde a época da colonização. Logo, a cena representa
com justeza o tom impresso ao longo da obra.
A novela encena certos costumes angolanos, valendo-se do passado recente do
período de guerra civil. A busca pela ideia para escrever a estória do concurso aparece como a
força motriz da trama e representa o processo criativo da escrita literária. “Escrever a estória,
com um bocadinho de esforço, talvez dois ou três podem conseguir, mas a ideia é como uma
raiz invisível que faz crescer a planta.” (p. 44). A literatura toma parte na escrita de uma
história ainda não registrada e mais democrática, ao encenar a própria escrita de uma estória
que referencia o contexto de construção da nação angolana.
Assim, para entendermos o lugar da escrita e da linguagem literária como
concretização de algo que é nacional, é fundamental atentarmos para o lugar ocupado pelo tio
Rui e pela própria escrita na trama. Tio Rui traz consigo, em seus bigodes, a escrita. Por seu
papel, ele é admirado pelas crianças que demonstram curiosidade e encantamento com a
profissão de escritor, aquele que tem ideias e escreve. A visão das letras caindo concretiza de
forma lúdica, para as crianças, o processo criativo: ter ideias, pensar, e escrevê-las,
comunicar. A escrita se materializa ao sair dos bigodes do mais velho, colocando o gesto da
criação literária mais próximo das crianças, dos leitores, e do próprio texto que fala dele
mesmo, como explicado anteriormente sobre a estratégia de mise en abyme.
A escova tocava e fazia acontecer uma espécie de brilho. O tio Rui parece que sorria
devagar, eu olhava a Isaura que olhava para eles e eu olhava de novo: na outra mão
dela, a tia Alice tinha uma pequena caixa de madeira, com desenhos que eu já vi
num museu qualquer, a caixa aberta ficava assim perto do queixo do tio Rui. Ela
esfregava os bigodes, soprava, esperava e aquilo acontecia: pequenas letras caíam do
bigode para a caixa, eram vogais de “a”, “e”, “i”, “o”, “u”, mas também sobras de
“k” e “w”, alguns “t” e dois “h”. Ela escovava e a caixa guardava aquelas letras
soltas. Parece que aquilo dava comichão, o tio Rui mexia os lábios, queria tocar no
bigode mas a tia Alice não deixava.
- Isso é mesmo possível ou é feitiço?
- Acho que é mesmo possível, o tio Rui tem bigodes de escritor – a Isaura falou
baixinho. (p. 48).
Nesse momento, a linguagem é percebida como algo material pelas crianças, quando
elas espreitam os “restos de letras” caindo do bigode do tio Rui. A abstração de uma língua
nacional se concretiza com a visão dessas letras caindo: “eram vogais” da língua portuguesa,
“mas também sobras de 'k' e 'w'”. Essas últimas, incorporadas ao alfabeto da língua
portuguesa e usadas na grafia de algumas palavras do português com sotaque angolano,
constroem a “nossa língua toda desportuguesa...”, segundo Ondjaki, na orelha do livro. E a
criação literária acontece.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 128
Considerações finais
Bakhtin associa à composição do gênero romance, o trabalho com uma língua nacional
única que é “estratificada” na e para a composição do romance. Ora, em certos romances
angolanos, que apresentam uma temática nacional, como n'A Bicicleta que tinha bigodes,
percebemos que essa estratificação atende não apenas à formação de um contexto social ou de
um personagem, como explica Bakhtin, mas associa a linguagem à formação de uma língua
nacional própria e diversificada. O sotaque português angolano, constituído por ks, ws etc
torna-se a língua nacional angolana formada com o sotaque das línguas africanas.
Essa língua nacional angolana torna-se rumorejante, no sentido de Roland Barthes, ao
incorporar em si as marcas das línguas africanas. No silêncio da escrita e da leitura, o “rumor
da língua” é introduzido pelos sinais gráficos, das letras que caem na caixa mágica e na
incorporação das palavras angolanas listadas no glossário. Mas é quando o mais velho dá
licença ao mais novo para nos contar a estória que podemos exemplificar o pensamento do
semiólogo e crítico literário. Respondendo à pergunta do sobrinho colocada no início da trama
e desse breve estudo, tio Rui diz: “Podes, com palavras pode-se mesmo traduzir a voz do
silêncio. Com bigodes e a fazer de guiador de uma bicicleta que desce para cima sem travões.
Podes, sim senhor, falar dos restos de letras que, felizmente, andamos a semear.”
Dessa forma, o rumor está concretizado na literatura como a tradução de uma “voz do
silêncio”, quando “uma bicicleta que desce para cima sem travões”. A língua se torna
rumorejante ao assumir “esse não-sentido que faria ouvir ao longe um sentido agora liberto de
todas as agressões de que o signo, formado na 'triste e selvagem história dos homens', é a
caixa de Pandora. É sem dúvida uma utopia; mas a utopia é que muitas vezes guia as
pesquisas de vanguarda.” (BARTHES, 1988, p. 94).
Para Barthes, a liberdade de sentido que um signo poderia assumir é uma utopia. No
entanto, é justamente a utopia que guia “as pesquisas de vanguarda”. Assim, “pesquisas de
vanguarda”, guiadas pela utopia, seriam capazes de libertar o sentido. A literatura, enquanto
forma de arte, faz essas “pesquisas de vanguarda” e liberta o sentido para “com palavras
traduzir a voz do silêncio”. Na estória d'A Bicicleta que tinha bigodes, o sonho e o desejo
guiam a escrita. O menino-narrador persegue as letras, a palavra, a linguagem e finalmente, a
escrita, imbuído do sonho de ganhar a bicicleta, para, ao libertar a escritura (BARTHES,
1998, p. 50), encontrar sua língua nacional.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 129
Percebemos, assim, na narrativa de Ondjaki, a encenação de um jogo de
representatividades. Primeiro, o mote da trama é a busca de uma ideia para a estória que deve
ganhar o concurso nacional. O concurso nacional elege a melhor estória, entre todas as outras,
e premia o ganhador com uma bicicleta nas cores da bandeira angolana. Em seguida, dentro e
fora da narrativa, temos um escritor, aquele que tem as ideias e escreve as estórias, escolhido
para representar todos os outros: o tio Rui da “minha rua” e o Manuel Rui, como o escritor
angolano, representante desta literatura. Finalmente, metaforização e metalinguagem ficam
claras na novela, quando os escritores, Manuel Rui e Ondjaki, se tornam personagens para
encenar a escrita: uma estória, a de uma rua, para representar todas as outras, de todas as
outras ruas, sendo escrita para falar da escrita e da literatura.
Logo, a novela infanto-juvenil de Ondjaki escreve, em língua nacional, a
representação literária da nação angolana. E age de forma democrática na literatura e na
históira, pois “Que eu saiba, ninguém é dono de migalhas nenhumas, e aquela caixa tinha só
restos de palavras, bocadinhos de sonhos, letras que nunca conseguiram ser palavras nem
mesmo frases de o tio Rui escrever os livros dele.” (p. 39).
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética. São Paulo: Unesp, 1993, p. 71-163.
BARTHES, Roland. O Rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988.
HONWANA, Luís Bernardo. Nós matámos o Cão-Tinhoso. Porto: Edições Afrontamento,
1998.
FONSECA, Maria Nazareth Soares; MOREIRA, Terezinha Taborda. Panorama das literaturas
africanas de língua portuguesa. In: Cadernos Cespuc de pesquisa, Belo Horizonte, PUC
Minas, n. 16, p. 13-69, set. 2007.
GEFEN, Alexandre (org.). La mimèsis. Paris: GF Flammarion, 2003.
MATA, Inocência. Narrando a nação: da retórica anticolonial à escrita da história. In:
PADILHA, Laura Cavalcante; RIBEIRO, Margarida Calafate. Lendo Angola. Lisboa: Edições
Afrontamento. 2008, p. 75-86.
ONDJAKI. A Bicicleta que tinha bigodes: estórias sem luz elétrica. Rio de Janeiro: Pallas,
2012.
PELLEGRINI, Tânia. Realismo: a persistência de um mundo hostil. In: Revista brasileira de
literatura comparada, n. 14, p. 11-36, 2009. Disponível em:
http://www.abralic.org.br/revista/2009/14/63/download. Acesso em 10 de julho de 2014.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 130
RUI, Manuel. Quem me dera ser onda. União dos Escritores Angolanos, 1989.
SALGADO, Maria Teresa. Carnavalizar é preciso: uma leitura da paródia em “Quem me dera
ser onda”. In: Mulemba, Rio de Janeiro, UFRJ, v. 1, n. 5. p. 67-78, dez. 2011. Disponível em:
http://setorlitafrica.letras.ufrj.br/mulemba/artigo.php?art=artigo_5_5.php
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 131
A PRODUÇÃO DE TEXTOS EM SALA DE AULA: UM
PROCESSO DE RETEXTUALIZAÇÃO [Voltar para Sumário]
Aline Peixoto Bezerra (UERN)
Introdução
O trabalho com a língua materna em sala de aula, conforme postulam os Parâmetros
Curriculares Nacionais (1998), deve ter como base o texto, o qual proporcionará ao aluno o
contato direto com as mais variadas situações concretas de uso da língua. O ensino da língua
esteve diretamente ligado ao tradicionalismo: uso do texto como pretexto para apresentar os
aspectos gramaticais, o ensino descontextualizado e distante da realidade dos alunos; na
atualidade, ainda conforme os PCNs (1998), as propostas de transformação das práticas de
ensino se consolidam no uso da linguagem, por conseguinte começa-se a levar em
consideração fatores que possibilitem ao alunado não só interagir diretamente com o objeto
estudado como questionar a realidade social em que está inserido.
Para tanto, tornaram-se objeto de estudo deste trabalho os textos produzidos pelos
alunos do 7º ano do Ensino Fundamental II durante as oficinas de leitura e produção de texto.
Fizemos um trabalho intervencionista com um grupo de 40 alunos do sétimo ano do Ensino
Fundamental II na Escola Estadual Centenário de Mossoró/RN. Para tanto, o nosso corpus é
constituído de um texto – histórias em quadrinhos – produzidos pelos alunos durante as
oficinas de produção textual; a coleta dos dados foi feita paulatinamente, durante 15
encontros, os quais tinham duração de duas horas e meia (referente a três hora/aula) no turno
vespertino de novembro a dezembro de 2014; esse espaço foi usado para a aplicação dos
questionários, realização das oficinas de produção de texto, aplicação das atividades de
retextualização e de reescrita textual. Escolhemos, por sua vez, analisar aleatoriamente uma
produção para que os resultados não tivessem interferências preestabelecidas. Trabalhamos
com apenas um texto em um universo de 20 em virtude do tempo e do espaço que este artigo
requer.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 132
Usamos metodologicamente o método qualitativo – interpretativo e intervencionista.
Para respaldar a pesquisa faremos uma abordagem bibliográfica dos principais estudiosos do
tema proposto, seguidamente, apresentaremos as oficinas e o passo a passo da intervenção
feita junta ao alunado. A última etapa tem caráter interpretativo – analisamos os textos finais
dos alunos. Dentre os vários gêneros com os quais lidamos no nosso cotidiano escolhemos
para trabalhar com o alunado as narrativas de aventura e a história em quadrinhos de modo
que possibilite ao aluno transitar entre esses dois gêneros retextualizando-os.
Há nas atividades de retextualização um aspecto importantíssimo a ser destacado, pois
para transmitirmos de uma modalidade textual para outra, segundo Marcuschi (2010),
devemos inevitavelmente passar pelo processo de compreensão dos textos, dos gêneros
retextualizados. Portanto, o processo de retextualização não é uma passagem suspostamente
artificial de um gênero em outro, mas um processo de conhecimento e compreensão
aprofundados acerca dos gêneros que passam pela transformação textual. Neste sentido,
escolhemos falar sobre a retextualização, pois consideramos que, ao retextualizar, o aluno
desenvolve várias habilidades textuais, entre elas, destacamos as atividades de leitura,
compreensão e escrita.
Por conseguinte, este trabalho surgiu das inquietações advindas do contexto da sala de
aula, em especial nas aulas de Língua Portuguesa, pois os alunos demonstravam dificuldades
em produzir textos, esquematizá-los, entendê-los. Diante dessa constatação, este trabalho
apresenta a seguinte questão de pesquisa: Qual o lugar da retextualização na sala de aula de
Língua Portuguesa como uma ferramenta eficaz às aulas de leitura e produção de texto?
O presente trabalho está dividido em três partes que estão assim constituídas: na
primeira parte fazemos um aparato teórico acerca das principais teorias linguísticas sobre os
gêneros textuais e os processos de retextualização, na segunda descrevemos a metodologia
utilizada para a coleta de dados, as etapas de produção, bem como os sujeitos envolvidos; na
terceira analisaremos o texto produzido pelos alunos em dupla.
A retextualização como essencial à leitura e produção de textos
Consideramos o trabalho com a retextualização uma atividade que conduz o alunado à
leitura, compreensão e produção de textos, de modo que lhes oportunizamos elaborações
textuais que vão além da tipologia clássica (narração, dissertação e descrição). Nos contextos
mais atuais, lidamos com a emergência da informação, com alunos mais dinâmicos, modernos
e ligados às novas tecnologias; com isso observamos que as práticas de ensino ligadas à
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 133
redação (dissertação) escolar, texto como pretexto para o ensino da gramática, já não
satisfazem a esse novo contexto social e educacional.
Nos gêneros textuais, dispomos de uma gama de possibilidades para um ensino mais
dinâmico e eficaz e, por meio desses, temos a retextualização, procedimento de grande valia,
que permite o trabalho com gêneros diversos que consiste em transmudar um texto em outro,
seja oral ou escrito. Mais precisamente, a retextualização configura-se, para Dell’Isola (2007,
p. 36), na “refacção ou a reescrita de um texto para outro, ou seja, trata-se de um processo de
transformação de uma modalidade textual em outra, envolvendo operações específicas de
acordo com o funcionamento da linguagem”. Logo, é a mudança do gênero, trata-se de um
processo minucioso, de muito rigor, no qual deverão ser levados em consideração vários
aspectos dos gêneros e, por isso, caracteriza-se como um trabalho relevante para as aulas de
língua materna.
Marcuschi (2010, p. 48) apresenta um quadro de possibilidades de retextualização: 1.
Fala → escrita; 2. Fala → Fala; 3. Escrita → Fala; 4. Escrita → Escrita. Para o autor,
retextualizar é rotineiro, pois já lidamos o tempo inteiro com essas reformulações na nossa
sociedade, no entanto, não se configuram como atividades mecânicas. E é a respeito da
retextualização, especificamente na modalidade da escrita para a escrita, que constituímos o
nosso trabalho intervencionista.
A retextualização tem se mostrado um excelente mecanismo para o trabalho com os
gêneros, pois a tarefa de transformar um texto escrito em outro demanda uma série de
atividades que levará o aluno a um processo pormenorizado dos textos em transformação;
nesse procedimento transformacional, o alunado, inevitavelmente, compreenderá as condições
de produção e recepção dos textos.
Com o recurso da retextualização, a elucidação do texto torna-se muito importante, um
dos primeiros objetivos a ser vislumbrado pelo leitor é o da compreensão textual, tendo em
vista que sem essa se compromete o desenvolvimento da atividade.
As atividades de retextualização englobam várias operações que favorecem o
trabalho com a produção de texto. Dentre elas, ressalta-se um aspecto de muita
importância que é a compreensão do que foi dito ou escrito para que se produza
outro texto. Para retextualizar, ou seja, para transpor de uma modalidade para outra
ou de um gênero para outro, é preciso, inevitavelmente, que seja entendido o que se
disse, ou quis dizer (...). Antes de qualquer atividade de retextualização, portanto,
ocorre a compreensão. (DELL’ISOLA, 2007, p.14).
Essa mesma questão importantíssima na retextualização – o processo da compreensão
– também é mencionada por Marcuschi (2010, p. 47), “pois para dizer de outro modo, em
Nas fronteiras da linguagem ǀ 134
outra modalidade ou em outro gênero o que foi dito ou escrito por alguém, devo
inevitavelmente compreender o que foi que esse alguém disse ou quis dizer”. Portanto, nessa
atividade de transformação textual, o aluno é instigado primeiro a compreender o texto base.
A manutenção do tema é outro ponto a ser preservado no durante o processo da
retextualização, “É importante observar que o gênero escrito, a partir do original, deve
manter, ainda que em parte, o conteúdo do texto lido”. (DELL’ISOLA, 2007, p. 46). Com
relação ao falseamento, Marcuschi (2010, p. 102) apregoa que é bastante comum, “trata-se de
uma espécie de acréscimo, não de um fenômeno linguístico e sim da falsidade dos
enunciados”, no entanto, o estudioso ainda destaca que alguns falseamentos no processo da
retextualização podem ser considerados muito mais como interpretação do texto base do que
mesmo como um falseamento.
Sem dúvidas, o trabalho com a retextualização é desafiador, entretanto, como explica
Dell’Isola (2007, p. 27), é uma atividade muito produtiva em sala de aula, leva os alunos a
pensarem (forma, função, elementos que caracterizam os gêneros, linguagem, veiculação,
dentre outros) sobre gêneros sugeridos pelo professor; destarte, “a retextualização não deve
ser vista como tarefa artificial que ocorre apenas em exercícios escolares, ao contrário, é fato
comum na vida diária. Ela pode ocorrer de maneira bastante diversificada”. A autora ilustra e
defende que o nosso alunado no dia a dia encontra-se diante de vários processos de
retextualização, com isso torna-se importante a mobilização da escola em começar a pensar na
eficiência das atividades envoltas com a retextualização; e justamente por ser familiar ao
aluno a inserção da retextualização é bem aceita por esse público, favorecendo as práticas
docentes durante todo o processo da retextualização.
O professor, por sua vez, deve orientar e acompanhar cada etapa da retextualização,
conduzir os alunos a refletirem sobre os gêneros que serão produtos da escrita. Destacamos a
importância da retextualização de gêneros escritos, uma vez que envolve o aluno na prática de
leitura, escrita e compreensão textual e, ainda, na mudança de um texto escrito em outro, com
o desafio de manter o sentido original e alterar o formato para o novo gênero retextualizado.
Essa importante atividade envolve aspectos complexos com relação ao estudo e compreensão
de texto; sem dúvidas, com um trabalho contínuo em sala de aula, os alunos terão mais
condições de refletir sobre o objeto estudado, sobre si e sobre a sociedade.
Nessa constante, mostraremos o resultado de um trabalho intervencionista feito numa
escola de ensino fundamental da rede pública de Mossoró/RN, nos próximos capítulos. E para
conduzir a nossa análise estamos no embasando nas teorias de Marcuschi (2010) e Dell’Isola
(2007).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 135
Fases e Sujeitos da Pesquisa
O público alvo da intervenção são alunos da rede pública de ensino, oriundos, em sua
maioria, da periferia da cidade. Na escola, encontrávamos alguns alunos com dificuldades
básicas de ler e escrever, medo de se socializar com os demais colegas, a ausência durante
semanas à escola. Mas, esses fatores não eram característica dominante, pois a escola era
muito reconhecida na cidade como organizada, rígida, pontual com a sua missão, há cinco
anos se destacava em primeiro lugar no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica
(IDEB) municipal e, com isso, normalmente, os estudantes que a escolhiam eram aqueles que
estavam interessados em adquirir conhecimentos.
A escola, por sua vez, oferece um espaço físico muito bom, com salas de aula bem
iluminadas e ventiladas, carteiras em bom estado, quadro a lápis, materiais disponíveis –
como livros, folhas, tesoura etc. –, merenda, uma equipe pedagógica muito presente e disposta
a ajudar, tínhamos um auditório que estava em reforma, portanto, não havia como utilizá-lo
para a apresentação dos textos, assim, todas as oficinas e a culminância do projeto
aconteceram nas salas de aula da escola.
Para dar início à pesquisa, aplicamos um questionário com 40 (quarenta) alunos da
escola que escolhemos para efetivar o projeto com o objetivo de averiguarmos vários
elementos que seriam importantes antes de iniciarmos a intervenção, em especial, diagnosticar
o perfil dos alunos e também para nos auxiliar na escolha dos gêneros a serem
retextualizados. Logo após observação do questionário, fizemos a escolha dos gêneros
(narrativa de aventura e história em quadrinhos) e seguidamente iniciamos as oficinas com a
turma, as quais seguiram respectivamente a seguinte formatação:
Oficinas com o gênero narrativa de aventura
1. Os alunos foram motivados a trazer para a sala de aula narrativas de aventuras
(foi feito um trabalho socializador);
2. Foram apresentadas outras narrativas de aventuras para os alunos com o
objetivo de interpretá-las, discuti-las e aprofundar o conhecimento sobre o gênero;
3. Os alunos foram estimulados a produzir narrativas de aventura (essas histórias
poderiam fazer intertextualidades com os heróis da antiguidade como também com os
contemporâneos);
Nas fronteiras da linguagem ǀ 136
4. Os textos produzidos foram entregues à professora, que fez as devidas observações
necessárias para dar continuidade às atividades; destacamos que nesse momento os textos
também passaram pela reescrita textual.
Oficinas com o gênero história em quadrinhos (HQs)
1. Os alunos foram motivados a trazer para a sala de aula histórias em quadrinhos
(foi feito um trabalho socializador);
2. Socialização das histórias em quadrinhos lidas e comentadas pela turma;
3. Foram apresentadas outra HQs à turma com o objetivo de interpretá-las, ,
discuti-las e aprofundar o conhecimento sobre o gênero.
Retextualização:
1. Foi proposto um trabalho de transformação da narrativa inicialmente
produzida para uma história em quadrinhos;
2. A produção dos alunos foi analisada pela professora, a qual passou novamente
pelo processo de reescrita textual (a professora intermediou a formatação das falas, a estrutura
e disposição do texto final);
3. Por fim, foi feita a escrita final (retextualização) das HQs.
As produções de textos na sala de aula – análises das atividades de retextualização
O corpus desta pesquisa é constituído por uma HQ produzida pelos alunos do sétimo
ano do Ensino Fundamental, a escrita aconteceu no decorrer das oficinas dadas pela
professora intervencionista da turma. Nesta análise , de acordo com o que já mencionamos,
verificamos os processos apontados por Dell’Isola (2007): a Retextualização, a Identificação
e a conferência, nos textos retextualizados pelos alunos. Destacamos que esses fatores durante
a observação dos textos não são mostrados respectivamente. Apresentamos a definição destes
referendados em Dell’Isola (2007), vejamos:
Retextualização: escrita de um outro texto, orientada pela transformação de um
gênero em outro gênero; Conferência: verificação do atendimento às condições de
produção: o gênero textual escrito, a partir do original, deve manter, ainda que em
parte, o conteúdo do texto lido; Identificação, no novo texto, das características do
gênero – produto da retextualização. (DELL’ISOLA, 2007, p. 42).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 137
E com base nesses conceitos trazidos pela autora apontaremos nas produções textuais
dos alunos a efetivação ou não dos pontos mencionados, optamos por fazer recortes da HQ,
em virtude do seu tamanho. E para preservar a identidade dos alunos escolhemos mencionar
os autores como dupla 1 (D1). Os alunos escolheram escrever a Narrativa de aventura sobre
um dos mais clássicos personagens da literatura brasileira: Dom Quixote (personagem criado
por Miguel de Cervantes), o lendário Dom é o protagonista/herói da história que tem como
título Sancho o galo Dom Quixote e a galinha. Vejamos a narrativa:
Ao longo daquele dia, Dom Quixote viajou inclinado sobre a cabeça do seu cavalo, porque os ossos lhe
doíam tanto que não podia endireitar-se. Ao entardecer, apareceu na beira da estrada uma venda, que era o lugar
onde se hospedavam os viajantes, e então Sancho disse:
- Alegre-se, Senhor, que aí adiante vejo uma venda.
Dom Quixote levantou a cabeça, olhou ao longe e respondeu:
- Essa não é uma venda, mas um castelo.
Estou lhe dizendo, senhor, é uma venda.
- É um castelo!
- É uma venda.
- Um castelo.
Passaram nisso um tempão, sem que nem Dom Quixote nem Sancho Dessem o braço a torcer. Quando
chegaram a venda estavam abarrotados, mas assim mesmo o vendeiro arrumou um par de camas num palheiro
para que pudessem passar a noite. Antes de sair Sancho bebeu uma caixa de vinho e adormeceu que nem uma
pedra.
Em compensação, Dom Quixote continuou acordado durante muito tempo, porque havia começado a
pensar que naquele castelo viva uma linda princesa.
“Com certeza apaixonou-se por mim ao me ver chegar” dizia isso a si mesmo, “e essa noite virá
confessar-me o seu amor. Mas não posso a responder, porque meu coração pertence a Dulcínea”.
De tanto pensar, passou mais de três horas de olhos abertos que nem coruja.
De repente, ao bater a meia noite, ouviram-se passos além da porta do palheiro e Dom Quixote
murmurou: “aí meu Deus a princesa”.
Mas ao abrir a porta só o que ele viu foi uma simples e pequena galinha com uma simples coroa no
pescoço. Ele achou a coroa que a galinha tinha muito bonita e a partir dela ele se lembrou de Dulcínea.
Com carinho e voz mansa Dom Quixote chamou a galinha dizendo:
- Vem cá querida galinha...
Dom Quixote não pensou duas vezes e pulou em cima da galinha e ela aperreada fazia: cóco cóco có
Mas Dom Quixote de tanto tentar conseguiu segurar a galinha. Ao amanhecer Dom Quixote mandou
uma carta com uma coroa para Dulcineia; dias depois ela devolveu a coroa com uma carta dizendo que havia se
casado.
Certo dia Sancho saiu para alimentar o seu cavalo, e Dom Quixote ficou sozinho com a galinha, sem ter
o que fazer Dom Quixote resolveu falar com ela, no meio da conversa ele tropeçou e acabou caindo no chão
encostando sua boca no bico da galinha.
A galinha se transformou em uma princesa, mas devido o encanto ao invés de cabelos ela tinha penas,
Dom Quixote logo a pediu em casamento, mas ela disse que só aceitaria se casar se ele a beijasse novamente
para ela voltar a ser galinha. Ele aceitou a proposta e a beijou. Mas com o beijo os dois viraram galinha e galo.
Ao voltar Sancho encontrou a galinha e o galo, estranhou a situação, procurou Dom e logo percebeu o
que tinha acontecido. Sancho ficou com a galinha e o galo e juntos viveram felizes para sempre viajando pelo
mundo e conhecendo novos lugares.
Podemos perceber a intertextualidade do texto criado pela dupla 1, alunos de trezes
anos de idade, com partes da história do livro de Cervantes, sem dúvidas, com essa referência,
podemos afirmar que os alunos tiram proveito das oficinas, nas quais a professora
Nas fronteiras da linguagem ǀ 138
intervencionista leu trechos e comentou sobre a construção das narrativas com base na história
de Cervantes. Considerada um dos elementos da textualização, a intertextualidade, é o
fenômeno pelo qual, considera-se que em um texto está inserido ou faz referência a outro
texto seja para validar o que “o novo dito”, seja para levar o humor, ou mesmo criticar; o que
destacar-se é que o autor do texto lança mão de um texto ou conceito social existe para
re/formular o seu dito. Assim, “a intertextualidade é, pois, uma das propriedades constitutivas
de qualquer texto, ao lado da coesão, da coerência, da informatividade, entre outras”.
(ANTUNES 2009, p.164)
O texto, por sua vez, foi reconstruído e apresenta um final bem diferente da história do
livro, segue a formatação de uma narração e cumpre, impreterivelmente, ao que foi proposto:
criar uma Narrativa de aventura. Essa narrativa serviu de texto base para a retextualização em
HQ.
No tocante a produção final (HQ), averiguamos que se trata de uma efetivamente de
uma história em quadrinhos, pois o texto segue o formato em quadros sequenciados um após
o outro com imagens ilustrativas, balões, personagens, fatos sobrepostos entre si narrando
uma história ficcional coerente. Cereja e Magalhães (2007) apresentam o conceito de
quadrinhos como uma arte de sequências, com desenhos ilustrativos que são usados para
narrar uma história, “sempre que duas imagens são desenhadas uma após a outra, criando uma
sucessão de quadros, uma sequência gráfica, trata-se de uma história em quadrinhos”; à vista
disso identificamos no texto final características pertencentes às HQs em geral.
Vejamos como a D1 transformou essa narração em uma HQ, a dupla inicia o texto
com uma legenda na qual relata a viagem de Dom Quixote, a legenda é um recurso muito
usado nas histórias em quadrinhos, caracteriza-se por ser um texto relativamente pequeno que
serve para informar alguma coisa ou para ligar os quadrinhos entre si. Esse recurso foi
intensamente utilizado na história analisada, acreditamos que isso se deve ao fato de que o
texto base é uma narração com um narrador em terceira pessoa e possivelmente, os alunos
tiveram dificuldades de transpor o discurso indireto em direto, logo usaram o recurso para
deixar os quadrinhos interligados como também para deixar a história mais coerente. Mesmo
assim, conferimos na HQ a manutenção do tema colocado no texto base.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 139
Seguem a história em quadros com balões que é um dos elementos característicos dos
quadrinhos, os balões podem apresentar diversos formatos Cereja e Magalhães (2007)
apresentam alguns formatos que podemos seguir: balão-grito, balão-uníssono, balão-imagem,
balão-pensamento, balão-fala e outros. O balão-fala é o mais comum de todos, na HQ
observamos que é este tipo de balão que prevalece na produção. Destacamos dois balões
usados na história, o balão-grito e o balão-pensamento, pois observamos que a dupla
conseguiu compreender os elementos próprios da HQ colocando-os em prática. Ocorreu no
produto final da D1 a transformação de um gênero textual escrito em outro, portanto a
retextualização aconteceu efetivamente.
Na HQ também encontramos o uso de onomatopeias – as quais representam o som das
imagens e interjeições – expressões que indicam estados emotivos. Vejamos:
Nas fronteiras da linguagem ǀ 140
A dupla também fez uso do recurso do balão-pensamento. Vejamos:
A HQ feita da D1 atende aos três critérios elencados por Dell’Isola (2007), portanto o
texto produzido pelos alunos com base na Narração Sancho o galo Dom Quixote e a galinha
apresenta-se como uma tarefa realizada com êxito. Nessa atividade os alunos demonstraram
talentos em escrever, desenhar, sintetizar o assunto, escolher os pontos mais relevantes para a
HQ, seleção da linguagem própria ao público alvo da história, escolha humorizada de recontar
uma história cânone na sociedade; dentre outras habilidades que sem dúvidas os alunos
desenvolveram durante a feitura do texto final e, concluem a HQ mantendo o assunto da
narrativa inicial.
No final da HQ encontramos a palavra fim, algo muito comum nas mais consagradas
histórias em quadros. Observemos:
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 141
Dessa forma, no decorrer da retextualização os alunos refletem acerca dos elementos
dos gêneros e, “em todas as etapas está prevista uma reflexão de como a sociedade produz e
consome textos de diversas naturezas. (...) Dessa forma, estarão estabelecendo relações
existentes entre a linguagem e as estruturas sociais”. (DELL’ISOLA, 2007, p. 81). O espaço
da retextualização, na sala de aula, se mostra como um recurso auxiliador no
desenvolvimento/aprimoramento de habilidades e competências dos alunos na escola e na
sociedade, o faz refletir o gênero, a produção em si, como também a sociedade e os meios de
produção desta.
A prática desafiante da retextualização leva o alunado não só ao conhecimento
sistemático da língua, mas também aos seus usos, de como os sujeitos manifestam a
língua/linguagem por meio de textos na sociedade. Estamos inserindo-os nas mais diversas
modalidades da língua, dos gêneros escritos ou mesmo orais – dependendo da condução e
escolha dos gêneros trabalhados durante um processo de retextualização na escola (um
professor pode, por exemplo, trabalhar com textos orais), ampliando a visão dos alunos sobre
as práticas sociais, re/significando as produções dos discursos/textos veiculados.
A retextualização na sala de aula como bem fala Dell’Isola(2007) é desafiante, e
trabalho com o gênero de forma mais participativa promoveu-nos exercitar e conhecer mais
sobre a língua/linguagem, por isso destacamos a relevância dessa atividade em sala de aula.
Não vamos furtar a responsabilidade da escola em promover o conhecimento, pois “para boa
parte das crianças e dos jovens brasileiros, a escola é o único espaço que pode proporcionar
acesso a textos escritos”. (PCN, 1998, p. 25). Portanto, cabe à escola propor atividades
didáticas de modo que venha oportunizar a construção do saber.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 142
Referências
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língua portuguesa/ Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.
DELL’ISOLA, Regina. Retextualização de Gêneros Escritos. Rio de janeiro, Lucerna 2007.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização, 10. Ed.
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CEREJA, William Roberto. MAGALHÃES, Thereza Cochar. 3.ed. reform. São Paulo: Atual,
2007.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 143
A PALATALIZAÇÃO DAS OCLUSIVAS ALVEOLARES E A
VARIÁVEL IDADE EM MACEIÓ - AL [Voltar para Sumário]
Almir Almeida de Oliveira (UFAL)
Introdução
Este trabalho tem como proposta refletir as correlações existentes entre a palatalização
das oclusivas alveolares [t] e [d] em contextos fonológicos seguintes à vogal anterior alta [i] e
a variável idade em Maceió, o que representa um fenômeno bastante característico dessa
região e se contrapõe, por exemplo, as palatalizações realizadas no Sul e Sudeste do Brasil,
que apresentam a oclusiva em posição precedente à vogal alta. Assim, e com base nas
orientações teóricas e metodológicas da Sociolinguística Variacionista (LABOV,
2008[1972]), busca-se entender os percursos históricos que tem sofrido este fenômeno
linguístico, uma vez que a maior frequência de sua realização por mais jovens ou por mais
velhos pode indicar que a variável linguística é sensível à idade e, consequentemente, estar
passando por um processo de extinção, estabilização ou expansão.
1. Sociolinguística Variacionista
Desde que a sociolinguística surgiu nos EUA, nos anos 1960, as discussões acerca da
variação da língua ganharam espaço, pois, por milênios as questões variáveis da língua
receberam unicamente um tratamento filosófico ou partiam de uma observação empírica sem
rigor científico. Em 1972, William Labov publica Padrões Sociolinguísticos, o que representa
a consolidação de um ramo da sociolinguística que trata dos fenômenos de variação e
mudança linguísticas. Resumindo uma série de pesquisas realizadas nos últimos anos, a obra
mostra que os processos de variação/mudança estão relacionados às questões de valor social,
o que lhe possibilita uma descrição quantitativa da variação linguística e social.
O estudo da variação linguística propõe uma relação biunívoca entre as variáveis
linguísticas (sintáticas, morfológicas, fonéticas, lexicais e discursivas) e as variáveis sociais
Nas fronteiras da linguagem ǀ 144
(idade, sexo, escolaridade, classe social, etc.) de modo a explicar como os fatores
sociais/externos interferem na produção linguística.
A partir da concorrência de variantes e da sobreposição de uma em relação à outra é
que se dá a mudança linguística. Desse modo, os termos mudança e variação
linguísticas estão estreitamente relacionados, pois “com o advento da Teoria da
Variação, evidencia-se que toda mudança na língua advém de uma variação, mas
nem toda variação implica mudança” (SANTOS & VITÓRIO, 2011, p. 19).
Labov (2008 [1972]) descreve dois tipos básicos de mudanças em função da classe
social: a vinda de baixo (change from below) e a vinda de cima (change from above). A
mudança vinda de baixo geralmente é introduzida pela classe social baixa e seus falantes a
desenvolvem abaixo do nível de consciência. Após essa variante atingir seu nível de
expansão, passa a ser uma regra para a comunidade de fala e todos os indivíduos devem
compartilhar as mesmas normas e atitudes em relação ao seu uso. Como esse processo inicia-
se com a classe menos favorecida, existe uma resistência da sociedade para aceitar a nova
variante porque transfere a ela o status da classe que a inicia. Já as mudanças vindas de cima
são introduzidas pela classe dominante, com nível pleno de consciência. Labov nesse sentido
explicita:
Se a mudança se origina no grupo de mais status socioeconômico, converte-se em
modelo de prestígio para todos os membros da comunidade. Outros grupos, na
medida em que mantêm contatos com os usuários desse modelo de prestígio, passam
então a adotar a forma modificada. (LABOV, 2008, p. 123).
Igualmente à variante vinda de baixo, recai também sobre a variante vinda de cima o
status de seus falantes, mas ao contrário da discriminação que ocorre com a primeira, a vinda
de cima é bem aceita na sociedade. A negociação ativa da relação de um indivíduo com as
estruturas sociais é que fornece os valores sociais de identidade. Fatores como sexo, origem,
ser brasileiro, argentino, etc. devem ser considerados como construções sociais.
O valor social (negativo ou positivo) resulta das relações do indivíduo com as
estruturas sociais que determinam o prestígio das variantes linguísticas e a identidade social
dos falantes e de suas comunidades de fala. É curioso observar que a identidade é bilateral,
pois ao mesmo tempo em que o indivíduo informante, a partir de suas escolhas linguísticas,
revela uma identidade individual de acordo com a comunidade de fala a qual pertence, define
os traços que podem identificar a mesma comunidade.
2. Comunidade de fala
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 145
O princípio laboviano de que a língua é um objeto de heterogeneidade ordenada, a
partir da homogeneização partidarizada pelas comunidades de fala impõe um tratamento de
análise que localiza especificamente as forças sociais condicionantes da variação linguística.
Numa comunidade de fala, a língua constitui-se pela complexa relação entre seus
elementos a partir da reconstituição de estágios anteriores e da combinação de
formas do passado com novas formas, condicionadas às dimensões sociais e
espaciais. Uma investigação que se propõe a identificar e a descrever as diferenças
de uma língua deverá atentar para as suas dimensões externas e internas e considerá-
las sua complexidade, dinamicidade e integração. (BUSSE, 2012, p. 91)1.
Desse modo, Labov (2008 [1972]) busca realizar análises correlativas entre os
aspectos linguísticos de algumas comunidades de fala, como as de Nova York ou da ilha de
Martha’s Vineyard, no intuito de identificar as forças sociais condicionantes dos processos
linguísticos. Para esse fim, ele relacionou as variáveis internas – os fenômenos linguísticos –
com as variáveis externas –, condicionantes sociais como sexo, idade, escolaridade, classe
social, profissão, etc. – o que lhe possibilitou traçar estatísticas de realização linguística de
cada comunidade de fala, bem como notar a força dos valores sociais atribuídos às diferentes
variantes linguísticas, condicionando, desta forma, as escolhas linguísticas dos falantes.
Como o objetivo da sociolinguística variacionista é estudar a língua em uso, a língua
livre de controles e que é usada casualmente – a língua vernácula –, o pesquisador deve
buscar dados da fala usual, ou não, – dependendo de seus objetivos de estudo – mas que
revelem os contrastes significativos das escolhas linguísticas, pois os falantes de uma
comunidade de fala compartilham traços linguísticos de valor diferentes dos outros grupos
sociais; apresentam uma frequência de comunicação entre si e têm as mesmas normas e
atitudes em relação à linguagem.
Dessa forma, se estabelece a identidade de uma comunidade de fala, bem como do
falante que nela está conscientemente inserido. Aliás, Labov (2008 [1972]) reconhece que em
nível de aquisição de linguagem há uma inconsciência por parte do falante que não escolhe
por se inserir em uma língua ou qualquer uma de suas variações, mas defende que este falante
tem consciência da comunidade de fala a qual participa e de seu prestígio social. “[...] os
mecanismos usuais da sociedade produziram diferenças sistemáticas entre certas instituições
ou pessoas, e que essas formas diferenciadas foram hierarquizadas em status ou prestígio por
acordo geral.” (LABOV, 2008, p. 64)
1 Todas as traduções apresentadas neste trabalho são de minha responsabilidade.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 146
Ao surgir uma nova variante linguística, ela entra em conflito com as que já estão em
uso e a partir de um julgamento de valor de prestígio dessa variante – embora esse possível
julgamento muitas vezes se dê inconscientemente pelo falante –, ela vai criar uma fricção
linguística no plano sincrônico da língua e pode provocar uma mudança linguística
perceptível com o decorrer do tempo. Mesmo que as mudanças linguísticas sejam apenas
percebidas em seus aspectos históricos, constante e diariamente tem-se uma verdadeira luta de
valores das variantes nos seus diferentes níveis. Não se tem como prever qual variante vai
prevalecer ou cair em desuso, mas pode-se observar que as formas que ganham prestígio
tendem a prevalecer.
Estas variações podem ser induzidas pelos os processos de assimilação ou
dissimilação, por analogia, empréstimo, fusão, contaminação, variação aleatória, ou
quaisquer outros processos em que o sistema linguístico interaja com as
características fisiológicas ou psicológicas do indivíduo. A maioria destas variações
ocorre apenas uma vez e se extinguem tão rapidamente quanto surgem. No entanto,
algumas são recorrentes e, em uma segunda etapa, podem ser imitadas mais ou
menos extensamente, e podem se difundir a ponto de formas novas entrarem em
contraste com as formas mais antigas num amplo espectro de uso. Por fim, numa
etapa posterior, uma ou outra das duas formas triunfa, e a regularidade é alcançada.
(LABOV, 2008, p. 19)
O surgimento de uma variante não depende, necessariamente, da inexistência de uma
outra equivalente, mas unicamente dos valores sociais que lhes são atribuídas. Assim, a
proposta de investigação da Sociolinguística Variacionista que surge a partir dos anos 1960,
nos EUA, busca explicar os fenômenos de variação e mudança linguísticas, relacionando os
aspectos linguísticos (fonológicos, morfológicos, sintáticos e discursivos) com aspectos
sociais (idade, sexo, classe social, localidade, etc.) e o valor de prestígio que daí resulta e
impulsiona a variação.
É desse lugar, e assumindo este perfil sociolinguístico que realizo a coleta, a
interpretação e análise dos dados, buscando encontrar e explicar possíveis regularizações
linguísticas no processo de palatalização das oclusivas alveolares [d] e [t] no contexto
fonológico seguinte à vogal anterior alta [i] na fala de falantes nativos de Maceió.
3. As faces da variação
A Sociolinguística Variacionista é uma das mais importantes correntes linguísticas
surgidas no século passado, fortemente influenciada pelas teorias sociológicas busca explicar
de modo quantitativo e estatístico os fenômenos da variação linguística, até então tratadas
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 147
apenas como especulações, não havendo, por exemplo, nenhuma metodologia que desse conta
da volatilidade dos processos sociais de produção da língua. Inclusive, se se pode destacar
algum ponto marcante da sociolinguística laboviana, com certeza será sua organização
metodológica que relaciona os aspectos internos da língua com os fatores sociais externos.
Hoje, parece óbvia essa associação entre os recursos sociais e linguísticos para explicar os
fenômenos variáveis da língua, mas não era tão fácil pensar isto há quase cinquenta anos
atrás.
No entanto, o maior trabalho de Labov (2008 [1972]) não foi apenas relacionar
quantitativamente os aspectos internos da língua com fatores sociais – até porque apenas
números não dão uma explicação efetiva às questões basilares – mas notar que todos os dados
estatísticos resultantes dessa relativização social-linguística apontavam para o fator abstrato
da identidade: o prestígio. É justamente a partir da noção de prestígio, que está
intrinsecamente relacionado com a ideia abstrata de identidade, que se dá o jogo de valores
decisivos acerca do que permanece na língua e do que dela se extingue.
Foi isto que ficou evidente quando Labov (2008 [1972]) pesquisou os falantes nativos
de Martha’s Vineyard, onde notou que os que mantinham a alta centralização da vogal [a]
eram justamente as pessoas mais velhas e/ou aquelas que demonstravam um sentimento maior
de apego à ilha e se identificavam com ela.
Fica evidente que o significado imediato desse traço fonético é “vineyardense”.
Quando
o fato de que pertence à ilha: de que ele é um dos nativos a quem a ilha realmente
pertence. Nesse sentido, a centralização não é diferente de nenhum dos outros traços
subfonêmicos de outras regiões que são distinguidas por seu dialeto local. (LAVOV,
2008, p. 57)
De modo semelhante, a pesquisa também feita por Labov (2008 [1972)] com os
funcionários das lojas de departamento de Nova Iorque mostrou que a presença ou ausência
do [r] em final de palavras estava diretamente relacionada com o público a que a loja atendia,
se de classe alta, o funcionário produzia a variante de prestígio, se de classe trabalhadora, a
variante estigmatizada; o que sugere uma identificação do funcionário com aquela classe
social com a qual se relaciona – o que ele chamou de estilo. Um fato importante que ratifica
esta posição é a decisão de alguns trabalhadores de abrir mão de reivindicar aumento salarial
em função da garantia de permanência naquele local de prestígio. Pois, “alguns incidentes
refletem uma disposição dos vendedores a aceitar salários muito mais baixos da loja com
maior prestígio” (LABOV, 2008, p. 68)
Nas fronteiras da linguagem ǀ 148
Sem dúvida, a percepção de prestígio e estigma que rodeia as variantes linguísticas
condiciona as escolhas do falante, dependendo do status social ao qual está almejando e do
grupo social ao qual compartilha traços de identificação pessoal. “Crer que há um modo
prestigioso de falar a própria língua implica, quando alguém pensa não possuir esse modo de
falar, tentar adquiri-lo” (CALVET, 2009, p. 77).
Não há como se fazer uma escala de identificação do sujeito com os grupos e práticas
sociais que estão ao seu redor, nem como determinar todas as relações de poder capazes de se
fazer presente em seu contexto diário, havendo apenas especulações teóricas que levam a
determinadas conclusões. Só se pode saber, por exemplo, se uma forma linguística é ou não
de prestígio por observar como os falantes agem em relação a ela, pois quando os falantes a
buscam é de prestígio, quando a evitam é estigmatizada, o que está diretamente relacionado à
noção de classe e valor social.
Se a mudança se origina no grupo de mais status socioeconômico, converte-se em
modelo de prestígio para todos os membros da comunidade. Outros grupos, na
medida em que mantêm contatos com os usuários desse modelo de prestígio, passam
então a adotar a forma modificada. (LABOV, 2008, p. 123)
A negociação ativa da relação de um indivíduo com as estruturas sociais é que fornece
os valores sociais de identidade, na medida em que essa negociação é sinalizada através da
linguagem e de outros meios semióticos. Fatores como origem, idade, profissão, escolaridade,
etc. devem ser considerados como construções sociais. Assim, os indivíduos devem ser vistos
como agentes inscritos em uma gama de práticas sociais através das quais eles constroem suas
identidades.
4. Variantes e variáveis
Para Labov, (1972) a língua é inerentemente heterogênea, o que significa dizer que ela
se realiza na e através da variação. A variação linguística é definida entre elementos variáveis
e variantes, sendo as variáveis tratadas sob um aspecto interno e externo, que dizem respeito,
respectivamente, ao conjunto de informações linguísticas que caracteriza uma regra e às
estratificações sociais, tais como idade, sexo, escolaridade, etc.
A palatalização das oclusivas alveolares se tornou variável na fala dos maceioenses em
contexto fonológico seguinte à vogal anterior alta [i] quanto a realização da consoante
oclusiva em formas linguistas como
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 149
2 2:44), conservando
havendo a palatalização da consoante [t].
Desse modo, pretendo relacionar, de acordo com a metodologia variacionista, essas
regras variáveis contrapondo-as com o aspecto externo idade, a fim de identificar os valores
sociais que são estabelecidos a cada uma dessas variantes. Daí a necessidade de se trabalhar
com dados estatísticos quantitativos, de correlacionar as variantes linguísticas com os
aspectos da vida social dos informantes, pois desse modo se pode mensurar adequadamente as
forças que estão em jogo nos processos dinâmicos da língua.
Métodos estatísticos podem ser utilizadas para avaliar e comparar diferentes efeitos
de contexto, bem como para detectar e mensurar tendências ao longo do tempo. As
técnicas estatísticas também permitem que correlações sejam feitas entre as
características sociais e linguísticas. (TAGLIAMONTE, 2006, p. 73)
Para Labov (2008 [1972]), o modo mais simplificado de conceituar a variável
linguística é tê-la como duas ou mais formas de dizer a mesma coisa com o mesmo valor de
verdade. Ele se refere à capacidade alternativa que algumas formas linguísticas permitem,
como a alternância entre as formas palatalizada ou oclusiva da consoante [d], em
formal da língua, portando a mesma carga semântica, porém, duas formas linguísticas
distintas, seja quão menor essa distinção, jamais se tornarão idênticas e o fato de uma
sobressair à outra prova justamente isto, pois a forma vitoriosa prevalece porque carrega em
seu interior uma carga valorativa maior que a excluída, uma vez que “nenhuma mudança
acontece no vácuo social” (LABOV, 2008, p 21).
E é justamente para identificar essas forças valorativas sociais que atuam sobre as
variantes linguísticas e direcionam os processos de variação e mudança linguística que se
realiza a sociolinguística variacionista. A correlação quantitativa entre as variáveis
linguísticas e sociais coletadas a partir do uso real e efetivo da língua permite ao pesquisador
notar quais as forças sociais são atuantes no processo de variação linguística.
As variáveis externas são as responsáveis por carregarem os valores sociais que
condicionam as variáveis internas promovendo a variação e a possível mudança ou extinção
das formas variantes em jogo. Cada uma dessas variáveis externas deve fornecer informações
suficientes para revelar as origens da variação e em que direção está caminhando, pois é
2 O código se refere à escolaridade, idade e sexo.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 150
através da correlação de fatores sociais às regras linguísticas que o sociolinguista encontra as
regularidades de ocorrências e afere as circunstâncias e valores sociais que interferem na
produção linguística do informante.
A variável idade tem como utilidade, deste modo, aferir a disposição das variantes no
tempo, o que pode determinar se uma forma linguística está caminhando para estabilização,
sobreposição ou extinção. A variável idade pode ser analisada em tempo real, em que a coleta
de dados de se dá com os mesmos informantes nas mesmas condições contextuais em dois
momentos cronológicos distintos que devem ser separados por pelo menos vinte anos,
garantindo a mudança de uma faixa etária para outra, ou seja, uma coleta de dados com duas
décadas de distância da primeira, permite que o informante jovem já seja adulto, enquanto
também permite que o informante originalmente adulto já possa ser idoso.
A ideia é que, porque as noções básicas de sistema fonológico do falante foram
estabelecidas em sua juventude, quando ouvimos falantes que tem 75 anos de idade,
hoje temos uma ideia sobre como as normas da comunidade eram quando eles eram
crianças (70 anos atrás). Da mesma forma, quando ouvimos falantes que tem 45
anos de idade hoje, temos uma ideia sobre o que as normas comunitárias foram
quando eram crianças (40 anos atrás). E assim por diante. Desta maneira,
sociolinguistas modelam a passagem do tempo. (MEYERHOFF, 2006, p. 134)
Esta pesquisa pode demonstrar facilmente se uma variante está caindo em desuso ou
em está em expansão, pois se for constatado que as pessoas de maior faixa etária produzem
em maior número a variante de controle, isto indica que tal variante está caindo em desuso,
uma vez que as pessoas mais jovens a evitam; por outro lado se a variante de controle for
mais usada por jovens, pode indicar que ela está em expansão. Evidentemente, há o problema
ao se considerar a pesquisa em tempo aparente de se está lidando com pessoas diferentes, que
consequentemente podem ser afetadas de modos distintos pelas forças sociais.
5. Um objeto a se observar
No meu caso, por uma questão de praticidade, vou utilizar a pesquisa em tempo
aparente em que considero três faixas etárias de informantes nascidos e vividos em Maceió,
elas vão de 16 a 35 anos, de 36 a 55 anos e de 56 a 80 anos. Com isto, busco descobrir os
caminhos que a palatalização das oclusivas alveolares está tomando em Maceió, se em
processo de expansão, estabilização ou extinção.
Embora minha pesquisa de doutorado deva contar com informações de 48
pessoas estratificadas de acordo com idade, sexo e escolaridade, neste trabalho aqui faço
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 151
apenas um recorte a fim de analisar, nos dados, as ocorrências do processo de palatalização
das oclusivas alveolares em contexto fonológico seguinte à vogal anterior alta. Como ainda
estou em processo de coleta e transcrição de dados, tenho em mãos apenas 15 áudios a serem
analisados, sendo 5 áudios para cada faixa etária, que as nomeio como faixa A, a que vai de
16 a 35 anos, B, de 36 a 55 e C, 50 a 80 anos.
Os dados foram rodados no Goldvarb X a fim de verificar relevâncias e pesos relativos
das variáveis, tendo como variável dependente a palatalização da oclusiva alveolar, que a
codifico com número 1, em oposição a forma oclusiva 2. A idade recebe os códigos A, B e C
e sexo F e M, para feminino e masculino.
Pelo que pude perceber, todos os informantes desta análise produziram, ao menos em
algum momento da entrevista alguma forma palatalizada, embora essas realizações tenham
uma frequência de uso bastante variável, havendo um informante, por exemplo, (1EMAF) que
chegou a produzir em sua fala 42 formas lexicais em que as oclusivas alveolares [t] e [d] se
realizam após a vogal anterior alta [i], aparecendo apenas uma forma palatalizada
Desse modo, eu considero as formas oclusivas:
prestígio na Comunidade de fala de Maceió, em oposição a forma palatalizada:
[ rrega uma
marca social de estigma. Para isso, eu analiso 299 realizações de formas lexicais em que as
consoantes [t] e [d] são produzidas após a vogal anterior alta [i] produzidas por 15
informantes, sendo 7 mulheres e 8 homens.
Conforme pode-se verificar no gráfico abaixo há uma frequência de uso bem maior da
forma de prestígio, a oclusiva, em detrimento a forma palatalizada.
Gráfico1: uso total das variáveis Palatal e Oclusiva
Nas fronteiras da linguagem ǀ 152
Pelo gráfico acima, fica evidente a preferência dos informantes pela forma oclusiva,
mas será que isto sempre foi assim ou se pode perceber algum movimento de ascensão ou
decesso no decorrer do tempo? Procurando compreender como o uso dessa regra variável
presente na comunidade de fala maceioense tem se comportado diacronicamente, relaciono o
a variante de controle ao fator idade no Goldvarb X, o que trouxe tais resultados:
IDADE Realizações Percentual Peso relativo
A – 16 a 35 17 11.3 0.32
B – 36 a 55 31 47 0.76
C – 56 a 80 23 28.0 0.59 Tabela 1: contraposição de variante dependente com a variável idade
É bastante interessante observar na tabela como há uma oscilação entre as
diferentes idades, ficando a faixa B como a mais produtiva da palatalização das oclusivas
alveolares em contexto fonológico seguinte à vogal anterior alta, havendo uma diferença com
a faixa C não muito grande, mas com expressiva distância da faixa A. Ou seja, os dados
apontam para uma variante evitada pelas pessoas mais jovens e mais produzida pelos
informantes com mais de 36 anos. O que não pode ser suficiente para afirmar que há um
processo de extinção da variante, pois, como se pode ver, essa variante não foi tão produtiva
com os informantes da faixa C, o que pode evidenciar uma variante se comportando como
pêndulo, ora ganhando mais uso, ora sendo evitada, de qualquer forma o que está claro é que
os mais jovens evitam esta forma linguística, constatando-se um estigma da variante.
Este estigma da variante se torna mais proeminente quando confrontamos a variável
sexo, pois as mulheres apresentaram menor frequência de uso e consequentemente um menor
peso relativo que os homens.
SEXO Realizações Percentual Peso relativo
Masculino 36 30,3 0.59
Feminino 35 19,4 0.44 Tabela 2: contraposição da variante de controle com o sexo.
Ao se comparar as realizações, entre homens e mulheres, da palatalização das
oclusivas alveolares vê-se como ambos produziram um número bastante próximo de
palatalizações M=36 e F=35, mas quando se analisa essas produções considerando as
realizações de acordo com cada sexo se vê que a produção dos homens é mais proeminente,
chegando a ser produzido com mais de 30% de frequência nos homens, e com pouco menos
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 153
de 20% pelas mulheres, o que vai refletir no peso relativo da variante, apresentando um
número consideravelmente maior para os homens em relação às mulheres. De modo que esses
dados confirmam, dentro da teoria assumida, que a variante em estudo porta estigma social e é
conscientemente evitada pelas mulheres.
Tabela 3: contraposição das variáveis idade e sexo com a variante de controle
Ao intercruzar as variáveis idade e sexo a fim de verificar como esta percepção de
estigma da variante se faz presente nos informantes de diferentes idades, se confirmou que os
informantes mais jovens realmente utilizam em menor frequência a forma palatalizada da
oclusiva alveolar em contexto fonológico seguinte à vogal anterior alta e que as mulheres
mais jovens são as que menos produzem esta variante, enquanto os homens entre 36 e 55 anos
são os principais usuários desta forma linguística, o que confirma, teoricamente, que na
comunidade de fala analisada, esta forma linguística é percebida como marca de estigma e
conscientemente evitada.
6. Conclusão
Dessa forma, posso encerrar este trabalho afirmando, diante dos dados coletados e
analisados, que a palatalização das oclusivas alveolares [t] e [d] em contexto fonológico
seguinte à vogal anterior alta vem passando por um recorrente processo de estigmatização
social, comprovado pelos menores usos dessas formas pelos jovens e ainda mais pelas
mulheres jovens.
Evidentemente, esta análise é prematura e conta com uma pouca quantidade de
informações linguísticas, uma vez que foram apenas 15 áudios analisados, mas suficientes
para mostrar algumas tendências sociais destas variantes linguísticas na comunidade de fala
maceioense e como elas vem se comportando diacronicamente em relação a cada uma das
faixas etárias analisadas.
Conforme haja o progresso da pesquisa, novas informações devem ser acrescidas às
discussões sobre a palatalização das oclusivas alveolares na comunidade de fala maceioense,
Idade/Freq.uso
A B C
Feminino 7% 28% 42%
Masculino 13% 67% 15%
Nas fronteiras da linguagem ǀ 154
bem como suas pertinentes reflexões acerca dessas realizações linguísticas e dos caminhos
que este fenômeno vem percorrendo diacronicamente.
Referências
BUSSE, S. Investigações geossociolinguísticas: considerações para uma descrição dos
fenômenos da variação. Revista Letras e Línguas. Vol. 13, Nº 24, p 89-116, Jan./Jun. 2012.
CALVET, L. J. Sociolinguística: uma introdução crítica. São Paulo: Parábola, 2002.
LABOV, W. Padrões Sociolinguísticos. São Paulo: Parábola, 2008.
MEYERHOFF, M. Introducing Sociolinguistics. New York: Routledge, 2006.
SANTOS, R. L. A.; VITÓRIO, E. G. L. A. Teoria da variação e mudança linguística. In:
COSTA, J.; SANTOS, R. L. A.; VITÓRIO, E. G. L. A. (orgs). Variação e mudança
linguística no estado de Alagoas. Maceió: Edufal, 2011.
TAGLIAMONTE, S. Analysing Sociolinguistic Variation. New York: Cambridge University
Press, 2007.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 155
UTILIZANDO A MULTIMODALIDADE EM COMUNIDADE
REMANESCENTE QUILOMBOLA: NOVOS DESAFIOS? [Voltar para Sumário]
Aluizio Lendl-Bezerra1(URCA/UERN)
Marcos Nonato de Oliveira2(UERN/CAMEAM)
Considerações iniciais
Muitos são os desafios impostos aos professores de língua portuguesa, este século de
mudanças trouxe com ele a necessidade de transformações das práticas linguísticas de sala de
aula, a quebra do tradicionalismo e o uso de novas metodologias para o ensino.
Nesta senda, este artigo se propõe a compreender as prática de ensino de produção de
texto de língua portuguesa na comunidade remanescente quilombola Lagoa dos Crioulos,
localizada na zona rural da cidade de Salitre, interior do estado do Ceará.
Essa trabalho é resultado da parte inicial do projeto de extensão ALT – Ampliando
Linguagem e Tecnologias, vinculado à Universidade Regional do Cariri em parceria com a
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, que tem como objetivo rever as práticas de
letramentos em escolas públicas e propor intervenções com base teórica nas metodologias de
ensino no ambiente citado.
Dessa forma, esta pesquisa está circunscrita ao estudo do texto na perspectiva da
coesão referencial, ainda tivemos como suporte metodológico a pesquisa-ação e a sequência
didática do Grupo de Genebra.
Assim, buscamos compreender as propostas de produção de texto a partir de uma
abordagem multimodal simples, neste caso, as histórias em quadrinho produzidas com lápis e
papel, sem auxílio de ferramentas digitais.
Gêneros Textuais e multimodalidade: breve consideração
1Professor da educação básica e do curso de Letras da Universidade Regional do Cariri e Mestrando em Letras
do Programam de Pós- graduação da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Campus CAMEAM –
Pau dos Ferros/RN. 2 Professor Doutor vinculado ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte, Campus CAMEAM – Pau dos Ferros/RN.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 156
Entende-se por gênero textual os textos que são úteis para a comunicação no cotidiano.
Marcuschi (2008) nos alerta para a diferença entre tipo textual e gênero textual, onde o
primeiro “(...) caracteriza-se muito mais como sequências linguísticas” e englobam “(...)
cerca de meia dúzia de categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição,
descrição, injunção”. Entendido o que é tipo textual - a estrutura linguística a qual o texto se
enquadra -, gênero textual são os modelos de texto usado no ato pragmático, assim, podemos
diferenciar esses dois conceitos tão próximos.
A propósito, as histórias em quadrinhos – populares HQ’s – quanto ao tipo textual são
sequências narrativas que unem linguagem verbal e não verbal, enquadrando-se também nos
gêneros multimodais. Esse gênero costuma ser propagado em jornais impressos, livros
didáticos, avaliações externas e internet, para o público em geral – em específico.
O conjunto de elementos que compõem a sequência narrativa das histórias em
quadrinhos (balões, frases, imagens) reproduzem marcas da oralidade e fornecem dados ao
leitor para que se possa fazer a compreensão da história proposta. Esse gênero ajuda no
entendimento do contraste entre a fala e a escrita. A imagem desenhada é o elemento de base
das histórias em quadrinhos dispostas para o leitor através das vinhetas, que contam a
narrativa – ficcional ou real – obedecendo a uma ordem temporal. A linguagem visual (ou
icônica) está ligada à estética da HQ, como o formato dos quadrinhos, montagem das tirinhas,
gestos dos personagens, ideogramas e metáforas visuais (VERGUEIRO, 2006).
Esses recursos marcam visualmente a fala entre os personagens ou gestos através das
onomatopeias, por exemplo, que contribuem para que o leitor chegue a compreensão dessa
interação entre as linguagens, assim este uso combinado contribui para a comunicação
sociointerativa, usando imagens e palavras simultaneamente.
As histórias em quadrinhos são um dos primeiros gêneros que os leitores iniciantes
têm contato, mas ainda são vistas por docentes como uma “leitura fácil”, que, aos olhos dos
mesmos, não estimulam o pensamento crítico-reflexivo. Os alunos, ao trabalharem com o
gênero HQ em sala, tornam-se mais empolgados pelo simples fato de fazerem parte do seu
cotidiano. O leitor de histórias em quadrinhos é capaz de diferenciar os aspectos mais formais
ou informais da língua a partir dessa leitura, de fazer a associação do signo verbal e signo
visual com rapidez para compreender a história ali presente. Dionísio (2005) reafirma a ideia
de que,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 157
Todo professor tem convição de que imagens ajudam na aprendizagem, quer seja
como recurso para prender a atenção dos alunos, quer seja como portador de
informação complementar ao texto verbal (DIONÍSIO, 2005, p. 195).
Vergueiro (2006) aborda a importância da relação entre as palavras e imagens
dispostas nas histórias em quadrinhos, utilizando-se da argumentação de que juntas ampliam a
interação entre os códigos verbal e não verbal. Se fossem trabalhadas isoladas e não de forma
complementar, talvez não atingissem tal proficiência. Cabe ao docente avaliar os elementos
que envolvem o texto multimodal e o gênero HQ, visando a possibilidade de maior interação
dos alunos.
Sabemos que cada leitor traz consigo uma vivência e experiências diferentes e quando
ele adentra no texto, descobre a interação texto-leitor. A linguagem não verbal é de suma
importância por reforçarem esta ideia anterior e servir de base para a organização da
linguagem verbal. Apresenta-se assim, a concepção de letramento (SOARES, 2003), ação que
envolve o ensinar e aprender a leitura e escrita, no contexto de suas práticas sociais. Assim
seguindo o pensamento da autora podemos inferir que hoje se faz necessário educar os alunos
para que eles aprendam também a leitura visual, entender toda a estrutura que remete ao
entendimento do texto, destacando que o texto visual também é uma unidade carregada de
significação.
Perspectivas metodologicas para o ensino da multimodalidade
Essa sessão se inicia destacando que as práticas linguageiras são osprincipais
instrumentos de interação social, essa assertiva é destacada nas reflexões de Dolz &
Schneuwly (2014) e ilustra nossa forma de concepçãodo ensino da língua, compreendendo
que os eventos comunicativos são construído a partir do contato com os gêneros textuais que
nos circundam.
Assim, à escolha do nosso locus buscamos um ambiente que, a nosso ver, precisasse
de atenção mais específica, na busca de minimizar diferenças sociais que por ventura a
linguagem estivesse associada. Centrada primordialmente na resolução dos problemas em
contexto escola (Moita-Lopes, 1996), logo, configurando um enfoque aplicado em linguística.
A comunidade remanescente quilombola Lagoa do Crioulos localizada na zona rural
da cidade de Salitre, interior do estado do Ceará, é nosso ponto de partida. É uma comunidade
oficialmente reconhecida pela Fundação Cultural de Palmares. Entendemos por remanescente
quilombola na mesma observação de Treccani (2006),como um vestígio e resquício no
Nas fronteiras da linguagem ǀ 158
patamar histórico da identidade de negros, índios e mestiços. Logo, é uma comunidade com
história e cultura própria que foi transmitida geração-a-geração que hoje não constituem
apenas dessas raças, mas de muitas outras que se identificam com a cultura e a história.
É uma comunidade de meio porte, nela funciona a Escola de Ensino Fundamental João
Rodrigues da Fonseca, que é mantida pelo governo municipal. A estrutura física ainda não
segue um padrão desejável, as salas são quentes e pouco ventiladas – situação da maioria das
escolas municipais do estado do Ceará.
Como esse trabalho trata-se de uma pesquisa-ação e ainda está em fase inicial,
decidimos ter como nosso foco apenas a turma de nono (9º) ano do ensino fundamental II.
Esse turma é composta de trinta e dois (32) alunos, desse número, apenas quatorze (14) fazem
parte da comunidade, os demais alunos são das regiões circunvizinhas.
Para tanto, essa pesquisa parte de um processo observatório, acreditamos nesse
enfoque metodológico, pois ele nos permitiu ver o comportamento dos participantes a partir
de uma nova luz e, ainda, nos mostrou novos aspectos do contexto estudado. Justificamos
ainda à medida do entendimento de Damas e De Ketele (1985) que destacam que a
observação não é um processo com fim em si mesmo, mas a serviço de uma atividade mais
complexa. Como nossa abordagem é parte inicial para compreender um contexto que não é
nosso, mas que tem como foco uma atividade de intervenção ancorada naquilo que foi
anteriormente tido como objeto de análise. Logo, como processo de mobilização da nossa
atenção.
Nossas observações foram realizadas durante o período de quinze (15) dias. Para que
não houvesse resistência, entregamos um ofício para a coordenação escolar, ainda, para a
professora da turma explicando que as atividades realizadas na escola faziam parte de um
projeto de extensão vinculado a Universidade Regional do Cariri (URCA) e Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte (UERN) que tinha como objetivo desenvolver atividade de
ensino e pesquisa na referida escola.
Nesta senda, os pesquisadores Schneuwlyet ali (2004) apresentam a sequência didática
como gênero discursivo, essa sequência foi adaptada, tendo em vista a necessidade de
desenvolver a capacidade comunicativa dos sujeitos, criando contextos de produções reais
para o desenvolvimento de letramentos múltiplos.
Os autores propõem uma sequência de módulos de ensino, ela se organiza em nossa
proposta da seguinte maneira:
Definição da
situação de
comunicação Modulo I Módulo II [...]
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 159
A ideia dessa sequência didática (adaptada) proposta pelos pesquisadores do Grupo de
Genebra é propor atividade de ensino sistemática, com o objetivo possibilitar um aprendizado
progressivo e a partir de práticas sociais e históricas de linguagem. Confrontados com esse
objetivo, o nosso surge com a necessidade de desenvolver práticas de leitura e produção de
textos que vinculem mais de um modo linguístico, que possibilite o contato com múltiplas
linguagens, com a complementação entre linguagens que são possibilitadas por textos que
relacionam linguagem verbal e não-verbal, ou seja, que surjam de uma perspectiva
multimodal de ensino.
Nessa mesma direção, elaboramos nesse trabalho apenas a parte inicial
dessasequência. Trata-se de dois momento (a) e (b), em (a) definição da situação de
comunicação, mostramos para os alunos que o trabalho seria desenvolvido em três (3) etapas.
Perguntamos o que eles achavam do gênero História em Quadrinho (HQ) e se eles já
produziram. Não nos foi surpresa que eles já conheciam, “tamanha a popularidade das
histórias em quadrinhos” (VERGUEIRO, 2014, p. 07), tão pouco a adesão rápida ao gênero.
Contudo, também não nos trouxe admiração quando os alunos relataram que não haviam
produzido HQs. Em (b) foi a solicitação da produção inicial, essa etapa tem como real
objetivo perceber o quanto os alunos conhecem do gênero e conhecer um pouco do que eles
pensam da comunidade local. Vale destaque a atenção e a vontade dos participantes de
produzir os HQs.
Os elementos citados acima são importantes para mostrar como nossa proposta foi
configurada, ainda deixa evidente que a sessão que se segue – Discussão e análise – tem como
foco os aspectos observados na aula de português e a produção inicial dos alunos.
Discussão e análise
Pensar em produção de textos é pensar que eles são produzidos por sujeitos em
processo de construção. Esse processo requer do professor práticas de ensino que possibilitem
o contato com as multiplicidades de formas de linguagens.
Produção
inicial Revisão I
Produção
final
Nas fronteiras da linguagem ǀ 160
Neste sentido, formos norteados pelo interesse de compreender como se desenvolve as
sequências de ensino que levam à produção de textos. Um olhar sobre o que acontece nas
práticas de sala de aula em uma comunidade remanescente quilombola.
Durante quinze (15) dias estivemos presente nas aula de português do 9º ano do ensino
fundamental II, esse passo foi importante para que nós pudéssemos reconhecer as práticas de
letramentos utilizadas pelo regente de sala.
Nessa perspectiva, observamos que não houve enfoque em nenhum tipo de texto
multimodal. As aulas ainda estavam vinculadas ao tradicionalismo e ligadas ao livro didático,
onde poucas vezes eram desenvolvidas atividades paralelas à ampliação do repertório
comunicativo dos alunos.
Destacamos, a necessidade de multiletramentos, tendo em vista que eles preparam os
alunos para situações comunicativas reais. Essa postura exige do professor mudanças para
uma atitude mais contemporânea para o ensino da escrita.
Essa proposta vem ampliar o conceito de ensino, principalmente ampliando a noção de
diversidade de semioses que doravante ocorreram em atividades em sala de aula.
Observemos a figura HQ 01 do aluno JRF:
Figura HQ 01.
No quadrinho (a) podemos observa a composição que é feita a partir do que é colocado
em destaque nos balões: “lagoa dos criolos e minha terra natal comunidade cheia de coisas
legais.” É clara a satisfação em ser um remanescente quilombola, é mostrado com orgulho
quando JRF diz ser sua terra natal.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 161
É evidente que na parte verbal do texto o aluno em nenhum momento faz referência às
questões do campo, isso só é entendido quando, no desenho, é construído a imagem de um boi
em uma espécie de curral e de um homem com um chapéu. Logo, desse conjunto, podemos
inferir que Lagoa dos Crioulos trata-se de uma comunidade rural. Essa assertiva só é possível
quando levamos em consideração as múltiplas linguagens contidas nas HQs. Quando
associamos um todo construído por coesão3responsável por atribuir sentindo ao texto.
A linguagem, assim, assumida em uma esfera de práticas sociais significativas
promove a materialidade multimodal desde um contexto informal até uma situação de
completa formalidade. Assim, os apoios na oralidade que constam nessas produções serão
abordado em módulos de ensino e propostas de revisão de textos no decorrer da pesquisa.
Tendo em vista que o nosso foco é construir com os aprendentes textos multimodais e que os
processos de composição verbal e composição visual, no que se relaciona a sua sintaxe.
Servem de análises para momentos posteriores.
Figura HQ
02.
A figura HQ 02trata-se de uma história popularmente conhecida no comunidade
quilombola, ressaltamos, com isso, que todo texto é formado dentro de determinado gênero
em função das intenções comunicativas.Podemos perceber que um boi foi transformado em
uma pedra – sendo encantado, conhecida como Pedra da Sereia.
Na imagem HQ 02 do aluno FRO também há a construção de uma forma de
referenciação4 entre o que é dito e o que é desenhado. Podemos observar que FRO faz uma
3 [...] coesão é, pois, uma relação semântica entre um elemento do texto e algum outro elemento crucial para sua
interpretação. (KOCK, p. 16, 2008) 4 Kallmeyer et al (apud KOCK, p. 34, 2008) falam que a referência tem sido usada [...] na trilha de Halliday,
significando a relação de sentido que se estabelece entre duas forma na superfície do textual.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 162
referência do que é enunciado verbalmente como: “vaqueiro”, “boi” e “pedra da sereia” com o
que é desenhado. Nesse sentido, o verbal e o visual se complementam na construção do
sentido, produzindo imagens da realidade. Essas representações são importantes, pois
compreender um texto é entrar em contato com todos os recursos utilizados na sua construção.
Considerações finais
A forte massificação no uso dos gêneros mais tradicionais na escola não propõe um
ensino de língua que esteja em acordo com os novos alunos deste século. Ainda a necessidade
de ser planejar aulas a partir de sequências de ensino bem estruturada e sistemática. Assim,
quando pensamos em desenvolver esse projeto, buscamos sequenciar as ações de sala de aula
em busca de uma aprendizagem satisfatória.
Acreditamos que a escola precisa ser cosmopolita na tentativa de aproximar os alunos
das atividades linguísticas em uso, bem como a gêneros que não são popularmente
encontrados nas escolas, mas que é possível de encontrar no uso cotidianos dos alunos,como é
o caso das histórias em quadrinhos.
Desse modo, essa pesquisa inicial buscou compreender as práticas de ensino em uma
comunidade com status diferenciado, na tentativa de desenvolver metodologias aparadas por
um suporte teórico e que fosse possível ser inserido da prática cotidiana do professor.
Em sequência, buscamos inserir os uso de estratégias textuais para a compreensão das
tirinhas produzidas, bem como justificar determinados acontecimentos ocorridos no texto, tal
como o apoio na oralidade.
Referências
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Almedina, 1985.
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GAYDECZKA, B; BRITO, K. S. (orgs.) Gêneros textuais: reflexões e ensino. São Paulo:
Parábola Editorial, 2005, 119 – 132.
DOLZ, J.; NOVERRAZ, M; SCHENEWLY, B. Sequências didáticas para o oral e a escrita:
apresentação de um procedimento, in: DOLZ, J.; SCHENEWLY, B. Gêneros orais e escritos
na escola. Trad. e Org.: R. Rojo e G. S. Cordeiro. Campinas. Mercado de Letras, 2004 [1998],
pp. 149 – 185.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 163
KOCK, I. V.; ELIAS, V. M. Ler e compreender os sentidos do texto. Segunda edição. São
Paulo. 2010.
MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gênero e compreensão. São Paulo:
Parábola Editorial, 2008.
SOARES, M. B. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, 2003[1995].
TRECCANI, G. D. Terras de quilombo: entraves do processo de titulação. Belém: Programa
Raízes, 2006.
VERGUEIRO, W. O uso do HQs no ensino. In:BARBOSA, A; RAMOS, P; VILELA, T.;
RAMA, A.; VERGUEIRO, W. (orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de
aula. 4 ed., 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2014.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 164
ESPELHAMENTOS IMPERFEITOS: OS REFLEXOS ENTRE
OS PERSONAGENS [Voltar para Sumário]
Amador Ribeiro Neto (UFPB)
Rafael Torres Correia Lima (UFPB)
O texto literário é um campo, complexo de sentido, em que há constante diálogo entre
os signos pertencentes a ele. Machado (2003) diz que, primeiramente, faz-se necessário
conhecer a linguagem como um conjunto, cujo objetivo é o de comunicar através de signos.
Lótman (1978), também semioticista, por sua vez afirma que a arte deve ser percebida como
linguagem pelo prévio fato de unir um emissor e um receptor. Dessa forma, a obra Budapeste,
de Chico Buarque, é um texto específico da arte literária que deve ser compreendida como
linguagem para que possamos interpretá-la por meio dos signos. Todos os elementos contidos
na obra têm importância significativa. Ao observarmos, por exemplo, a capa do romance
Budapeste, verificamos que o dorso do livro é composto por um título semelhante ao da capa,
chamado Budapest. Acreditamos que seja um “espelhamento imperfeito”. Definimos este
como um objeto que reflete ou representa algo de modo incompleto, defeituoso ou mesmo
inverso. No romance Budapeste, há diversas relações que remetem à questão dos “espelhos
imperfeitos”, como: José Costa – Zsoze Kósta; Vanda e Joaquinzinho – Kriska e Pisti. Neste
artigo, iremos verificar o movimento de reflexo entre os personagens presentes na obra.
A primeira relação (Costa – Kósta) é marcada por diferenças de identidades, que
classificamos em nacionais/linguísticas e compositivas; ou seja, apesar de ser uma única
pessoa, é possuidora de determinada identidade dependendo do lugar em que está situada. O
protagonista, desta maneira, perde o seu vínculo com o local de nascimento; está sempre
renascendo de acordo com a situação em que se encontra. O espelhamento pode “simboliza[r]
a sucessão de formas, a duração limitada e sempre mutável dos seres” (CHEVALIER, 2009,
p. 394). Costa, além de desprender-se nacionalmente, atravessa, constantemente, de um país
para outro; daí ocorrer sempre esta “sucessão de formas”, pois, em Budapeste, Costa
transforma-se em Kósta. No Rio de Janeiro, ele é marido de Vanda, falante da língua
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 165
portuguesa e prosador; em Budapeste, é namorado de Kriska, falante do húngaro e poeta.
Estes formatos se tornam alteráveis e restritos, porque dependem do local em que o
personagem esteja. Mas, estas mudanças nunca acontecem de modo que Costa/Kósta se sinta
confortável com a circunstância, já que “os atuais conflitos estão, com frequência,
concentrados nessas fronteiras, nas quais a identidade nacional é questionada e contestada”
(WOODWARD, 2009, p. 23). Em Budapeste, ele não atinge a pureza da língua húngara,
sucedendo de haver sempre um “sotaque” que anuncia o “acento estrangeiro”. Por outro lado,
no Brasil, ao retornar de Budapeste, Costa estranha o país de nascimento:
as pessoas que eu topava, por mais que rissem e balançassem os corpos, não me
pareciam afeitas ao ambiente. Às vezes eu as via como figurantes de um filme que
caminhassem para lá e para cá, ou pedalassem na ciclovia a mando do diretor. E as
patinadoras seriam profissionais, ganhariam cachê os moleques de rua, ao volante
dos carros estariam os dublês fazendo barbaridades na avenida. Acho que eu tinha
conservado uma lembrança fotográfica, e agora tudo o que se movia em cima dela
me dava a impressão de um artifício (...) mesmo o oceano, na minha memória,
estivera a ponto de se estagnar. (BUARQUE, 2003, p. 153-154, grifos nossos).
Reparemos como as imagens contempladas por ele estão fora de lugar. O narrador tem
a sensação de que a multidão que passa próximo a ele não está ligada ao ambiente, ou seja, é
como se estivesse numa terra estrangeira. Costa se encontra confuso neste lugar, como
localizado dentro de um “filme”, em que somente é capaz de memorizar representações
fotográficas de um país obsoleto, pois, agora, toda novidade, ou tudo que não é (re)conhecido
por ele, é simulação. Intrigante notar que a impressão que ele tem é a de que está em uma
criação artística, como se fizesse parte de um processo fictício; e não é a primeira vez que ele
se sente participando de uma atividade de criação. Quando Costa estava em um hotel, em
Budapeste, ele relata que “não me aborrecia caminhar assim num mapa, talvez porque sempre
tive a vaga sensação de ser eu também o mapa de uma pessoa” (BUARQUE, 2003, p. 56). O
fato de ele apresentar-se como um mapa, expressa uma ambiguidade, visto que este objeto é
uma reprodução gráfica. Adquire, assim, o sentido de que Costa se autodenomina “mapa” por
escrever biografias, isto é, construir graficamente a vida de uma pessoa; ao mesmo tempo em
que pode significar que ele seja esta pessoa representada graficamente. A partir desses
diferentes sentidos, podemos perceber como a identidade composicional do escritor anônimo
também possui o seu duplo.
No Brasil, Costa é ghost writer de biografias. Escreve, exclusivamente, narrativas.
Enquanto que em Budapeste, além de ser um escritor anônimo de prosa, passa a compor
poesia. Esta mudança pode ter sido ocasionada pelo fato de Costa espelhar ele mesmo
Nas fronteiras da linguagem ǀ 166
(Kósta), pois, segundo Chevalier (2009), o espelho é capaz de provocar uma imagem
invertida. No caso do protagonista, o inverso da prosa seria a poesia. Ele relata que “não sabia
escrever poesia, e todavia estava escrevendo um poema sobre andorinhas” (BUARQUE,
2003, p. 133). Acreditamos que pelo fato dele dominar com maior perfeição a língua nativa
(portuguesa), tornou-se um ser prolixo. Por outro lado, a língua magiar teria que ser escrita de
modo sucinto, uma vez que não a tinha totalmente no controle. Daí, como a poesia é expressa
mais concisamente que a prosa, ele somente consegue elaborá-la em uma língua estrangeira.
A relação entre Budapeste e Rio de Janeiro se insere diretamente neste contexto, pois naquela
cidade Costa não se incomodava com o silêncio, que pode atribuir à concisão da fala, por
exemplo, quando ele chega a Budapeste, entra em um táxi e fica “um minuto em silêncio
dentro do carro” (BUARQUE, 2003, p. 47, grifos nossos), ou quando encontra Kriska e
permanecem “cada qual com o seu silêncio; um dos silêncios acaba sugando o outro, (...)
segui observando o seu silêncio, decerto mais profundo que o meu, e de algum modo mais
silencioso (...) eu imerso no silêncio dela” (BUARQUE, 2003, p. 61, grifos nossos). Há um
outro instante em que Costa afirma que “me apeguei àquele silêncio” (BUARQUE, 2003, p.
62, grifo nosso), além da sua relação com o Danúbio, “negro e silencioso” (BUARQUE,
2003, p. 70, grifo nosso). Todavia, no Rio de Janeiro e nos encontros anônimos, Costa tem
atitudes contrárias ao silêncio, este o incomoda constantemente, por exemplo, em sua casa, a
televisão fica continuamente ligada, principalmente quando Vanda não está presente, pois “ao
silêncio de Vanda não voltando, preferia tiroteio e ronco dos motores” (BUARQUE, 2003, p.
77); ou quando ele está em um encontro em Melbourne onde ele “fervia, falava, falava, teria
falado até o amanhecer se não desligassem a aparelhagem de som” (BUARQUE, 2003, p. 21,
grifos nossos). Estes contínuos deslocamentos pelos países realizados também podem ser
compreendidos como refletores desta dupla identidade, uma vez que “é a viagem em geral que
é tomada como metáfora do caráter necessariamente móvel da identidade (...), posicionando-
o, ainda que temporariamente, como o ‘outro’” (SILVA, 2009, p. 88). É mais um movimento
que determina Costa ser considerado um prosador em Budapeste e um poeta no Rio de
Janeiro, assumindo diferentes identidades.
O espelhamento manifesta-se, da mesma forma, no âmbito familiar do protagonista. A
família carioca e budapestense reflete-se uma à outra, tendo como intermediário José Costa.
Sobre a família carioca, Costa e Vanda são pessoas antagônicas. Por um lado, Costa
conserva-se no anonimato; por outro, Vanda dedica-se à busca pela fama. Ela,
constantemente, ofusca o marido. Quando Costa passa a viajar constantemente, e Vanda a
viver sem a presença do marido, ela ganha mais notoriedade no seu emprego. Vanda
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 167
fora transferida para São Paulo (...) porque o telejornal da noite era gerado em São
Paulo (...) e de segunda a sexta a Vanda ia ao ar em rede nacional. Era um upgrade
na carreira, disse ela, tanto assim que em Higienópolis todo mundo parava na rua,
chegava a ser chato. Disse que por outro lado adorava a efervescência cultural da
cidade, tinha ido a um catatau de exposições. Frequentava restaurantes magníficos
no fim da noite, de tarde malhava na academia. Sem contar que três vezes por
semana tinha fonoaudióloga, porque apresentara problemas de fadiga nas cordas
vocais. Pensava em alugar um apartamento, mas ao mesmo tempo se sentia mais
protegida num residence. Disse também que exigiu da gerência a troca do colchão, e
com isso estava melhor da coluna. (BUARQUE, 2003, p. 81).
Este “upgrade” significa que ela agora se tornou visível no seu ramo de trabalho, que
pode ser representado também por ter “clareado os cabelos, e esticara os cachos, e usava
rímel, pingentes nas orelhas, uma camisa de colarinho, um paletó de homem, com ombreiras”
(BUARQUE, 2003, p. 76, grifos nossos). O clareamento, que alude a um efeito de luzes, e o
esticamento, que Vanda fez em seu cabelo, vão de encontro com o “cabelo preso” do início da
obra. É como se ela estivesse se libertado de Costa e ligada a um outro momento da sua vida
pessoal e profissional. Quando estica os seus cabelos, podemos entender que ela conseguiu se
firmar no emprego, ou seja, que houve uma ascensão no seu emprego, devido a sua mudança
de visual. Prova disso, é que os cabelos adquiriram luzes, foram realçados. Os cachos, que
podem representar um enrolamento pessoal e profissional, passam a não mais existir. O rímel
nos olhos contrasta com a anterior sombra com que ela se maquiava. O rímel serve para
colorir os cílios. Vanda agora tinha cores, diferentemente do começo, em que ela possuía uma
sombra sem nenhuma cor, ou melhor, com uma cor escura. Também podemos entender que o
cílio é uma parte do corpo que serve para esconder os olhos e o rímel é útil para curvar os
cílios, dando destaque aos olhos ao invés de escondê-los. O pingente nas orelhas vai de
encontro com o colar de miçangas que ela usava. O pingente é um brinco que fica pendente na
orelha. O “pender” pode ser deduzido, no caso de Vanda, como uma pessoa que se tornou
decidida, realizada e determinada para aquela sua função. Da mesma forma, podemos pensar
nas “ombreiras” que, por ampliação de sentido, é entendido como uma entrada, servindo para
dar passagem, que em relação à Vanda, é marcada pela saída de um jornal local para o
ingresso em um jornal nacional.
Já Joaquinzinho é o filho de Costa e Vanda. Ele “ia completar cinco anos e não falava
nada, falava mamãe, babá, pipi” (BUARQUE, 2003, p. 30-31). Esta sua carência na fala
reflete a inexistência de voz que o ghost writer tem sobre os seus escritos. Chevalier (2009)
diz que os espelhos provocam a reflexão das ações dos homens. Com isto, percebemos que
Joaquinzinho se torna reflexo de Costa no sentido de que os dois não possuem opinião
Nas fronteiras da linguagem ǀ 168
manifesta. Aquele não estabelece nenhuma conversa com o pai, mesmo na insistência deste.
Por exemplo, quando está a procura da esposa e pergunta ao filho “cadê a mamãe?, cadê a
mamãe? Começou a chorar alto” (BUARQUE, 2003, p. 78). Entretanto, a criança imita o pai.
O narrador relata que
pela madrugada ele [Joaquinzinho] pegou a mania de balbuciar coisas sem nexo,
inventava sons irritantes, uns estalos nos cantos da boca; eu não tinha sossego nem
minha cama, me segurava, me mordia, finalmente estourei: cala a boca, pelo amor
de Deus! Calou, e a Vanda saiu em sua defesa: ele está só te imitando (BUARQUE,
2003, p. 31).
A realização da imitação demonstra que o filho é o espelho do pai, pois ele tenta
reproduzir fielmente o que Costa falava quando estava dormindo. Era como se Joaquinzinho
tentasse copiar o pai, e como este era um ghost writer que não se manifestava publicamente, o
filho também não se revelava abertamente. Contudo, são “espelhamentos imperfeitos”, pois a
privação de Costa sucedia pela escrita, não assumindo ostensivamente o que produzia, e o de
Joaquinzinho ocorre pela fala, que somente é articulada no colóquio entre ele e a mãe. A
própria empregada do casal já havia pronunciado que “bebê que se vê refletido no espelho
fica com a fala empatada” (BUARQUE, 2003, p. 32, grifos nossos). Entendendo que o
reflexo é a imagem do pai, a palavra “empatada” pode significar tanto “impedida” como
“igualitária”. Joaquinzinho tem dificuldades em se expressar, ou seja, a propriedade da fala é
um estorvo (impedida) para o garoto; assim como a apropriação da escrita é para Costa.
Nenhum dos dois se apodera publicamente da palavra.
Além disso, Costa transforma-se em um pai ausente, pois passa a morar em Budapeste
e quando retorna ao Rio de Janeiro o seu filho não o reconhece. Eles se encontram
casualmente em uma loja de sucos, onde Joaquinzinho estava acompanhado de outro jovem.
Costa conta que “eram jovens musculosos, de cabeças raspadas e abundantes tatuagens, um
com répteis que lhe subiam pelos braços, o outro com uma espécie de hieróglifos espalhados
no peito nu. Mastigavam sanduíches de boca aberta” (BUARQUE, 2003, p. 155, grifos
nossos). Reparemos que Joaquinzinho já não é mais uma criança. Este fato marca, de maneira
imperfeita, o tempo em que Costa esteve no país estrangeiro. A musculosidade dos jovens
pode representar, mais especificamente no filho de Costa, a força em superar situações
difíceis, como a ausência dos pais (visto que Vanda também era distante, pois trabalhava
como repórter de um jornal em São Paulo e estava sempre viajando). Daí a “cabeça raspada”
ter o sentido de que a memória (cabeça) fora suprimida (raspada), não havendo o
reconhecimento do pai, e a tatuagem seria a única coisa duradoura e permanente. Sendo que,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 169
em Joaquinzinho, o desenho no corpo, segundo Costa, é um hieróglifo, o que sugere uma
pessoa enigmática, ligando-o ao pai que, por ser um ghost writer, tem o seu trabalho como
algo obscuro. A tatuagem é um sinal que pode revelar o possuidor da mesma, mas o hieróglifo
traduz uma dificuldade em decifrar quem é este sujeito; talvez, por isto, Costa demora a
reconhecê-lo. Ademais, o espelhamento também está presente neste desenho marcado no
corpo, porque a figura reflete a ambiguidade que são os dois personagens, Joaquinzinho e o
seu pai. Eles têm características misteriosas e ocultas: um em relação à fala, o outro à escrita.
Além disso, a imagem é exposta em um “peito nu”, podendo demonstrar que o jovem está
desprovido, por isso a nudez, de qualquer sentimentalismo, pois o “peito” é onde está
localizado o coração, podendo ser entendido, simbolicamente, como o lugar das emoções. O
outro jovem, companheiro de Joaquinzinho, usufrui de uma tatuagem de réptil no braço,
significando que é um sujeito que tem uma personalidade rasteira, assim como o animal,
também podendo ser interpretado como um mau caráter. Como a imagem está no braço,
demonstra que ele produz poderosa influência em Joaquinzinho, talvez seja por isto que
ocorre a perseguição à Costa. Já no fato dos jovens estarem “mastigando um sanduíche de
boca aberta”, percebemos que a ação de “mastigar” significa a mesma coisa que “triturar” ou
“destruir”; o “sanduíche” é feito com duas fatias de pães e como Costa e Joaquinzinho são
personagens espelhados, podemos assimilá-los aos pães, cada um seria uma banda; na
mastigação de “boca aberta”, julgamos a “boca” tendo sentido de “início” e como ela está
“aberta”, pensamos que a abertura pode ser entendida como “receptivo a uma conversa” ou de
um “diálogo entre os dois”. Portanto, Joaquinzinho estaria destruindo qualquer princípio de
diálogo entre ele e o pai, ao comer o pão.
Como nem o garoto e nem Costa se identificam, os dois jovens resolvem perseguir o
ghost writer ao sair da loja e Joaquinzinho
veio andando com um cigarro na boca e me fez um sinal com os dedos, pedindo
fogo. Apalpei o bolso onde costumava levar cigarros, estava vazio, mas ele
continuava a avançar, praticamente se colou em mim. Era um palmo mais alto que
eu, meus olhos batiam no seu peito, e por instantes imaginei que poderia decifrar os
hieróglifos ali tatuados. Depois olhei os olhos com que me fitava, e eram os olhos
femininos, muito negros, eu conhecia aqueles olhos, Joaquinzinho. Sim, era meu
filho, e por pouco não pronunciei seu nome; se lhe sorrisse e abrisse os braços, se
lhe desse um abraço paternal, talvez ele não entendesse. (BUARQUE, 2003, p. 156-
157, grifos nossos).
Apenas neste momento é que Costa reconhece o filho. Esta identificação é feita por
meio do “olhar” de Joaquinzinho. O “olho”, aqui, representa o órgão de esclarecimento,
porém, segundo o protagonista, a revelação é apresentada somente para ele. Por outro lado,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 170
Costa põe em dúvida o fato de Joaquinzinho não reconhecê-lo, “talvez ele soubesse desde o
início que eu era o seu pai, e por isso me olhava daquele jeito” (BUARQUE, 2003, p. 157).
Por fim, eles acabam se separando e não conseguem mais se avistarem.
Conforme estamos defendendo, a família de Costa, no Brasil, é o “espelhamento
imperfeito” da família na Hungria. Assim sendo, Joaquinzinho equivale a Pisti e Vanda à
Kriska. Então, iremos, agora, verificar como a mãe e o seu filho budapestense estão
relacionados com Costa e seus respectivos espelhos brasileiros.
O narrador compara Pisti a Joaquinzinho, dizendo que “Pisti regulava com meu filho,
apesar de miúdo, e puxara a mãe no rosto largo com as maçãs saltadas, nos lábios finos, nos
cabelos escorridos porém negros, no tom imperativo” (BUARQUE, 2003, p. 65-66, grifos
nossos). O fato de ele “regular”, ou seja, harmonizar com Joaquinzinho, comprova a reflexão
que há entre eles, pois significa que são comparáveis, tendo características aproximadas, mas
não necessariamente semelhantes, o que indica possíveis diferenças. O tamanho reduzido de
Pisti dá a entender que é atento aos detalhes; as companhias de um “rosto largo”, dos “lábios
finos” e dos “cabelos escorridos” mostram que, além de ser amplamente (largura) ousado, tem
uma linguagem afiada e sem volteios, não é à toa que, constantemente, ofende Costa. A
negritude dos cabelos talvez denote que é um indivíduo complicado, até porque está associado
ao “tom imperativo”, demonstrando o caráter dominador. Outro vínculo que chama a atenção
é a paronimia das palavras “Pisti” e “Peste”. Se relacionarmos estes dois nomes e pensarmos
em “peste” como um signo brasileiro regionalizado, então, Pisti pode ser uma pessoa geradora
de problemas.
Diferentemente da amizade com seu filho, Costa tem uma convivência com Pisti mais
perturbadora. Constantemente, este quer rebaixar aquele, talvez com o intuito de mostrar a
passividade de Costa perante todas as circunstâncias. Por exemplo, quando Kriska ia preparar
a refeição, o garoto convidava o protagonista para jogar bola e “escalava-me como goleiro,
batia uma saraivada de pênaltis e apreciava que eu me atirasse no terreno pedregoso e
encharcado” (BUARQUE, 2003, p. 66). Outra atitude que demonstrava todo o desprezo que
Pisti sentia por Costa é a do riso. O garoto está incessantemente zombando da conduta do
outro. Quando Costa iniciou as aulas na casa de Kriska,
dia sim, dia não, o filho dela rondava por ali, mexia nas coisas, ria da minha cara,
não sossegava enquanto Kriska não o despachasse para a cama. Divertia-se, Pisti, ao
ver um homem grande olhando figuras em álbuns coloridos, um homem gago
aprendendo a falar guarda-chuva, gaiola, orelha, bicicleta (BUARQUE, 2003, p. 63,
grifos nossos).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 171
Pisti costumava ficar próximo de Costa, não com o objetivo de admirá-lo, mas para
desprezá-lo, diferentemente de Joaquinzinho que tentava imitar o pai. A distração do garoto
budapestense era menosprezar o ghost writer. Outros meios em que exprimia este desdém
eram com palavras grosseiras, com o intuito de mostra a improficuidade de Costa. Este chega
a Budapeste e fica hospedado na casa de Kriska, que o arruma um emprego. Para praticar o
seu domínio do magiar, ele passa a corrigir os exercícios de escola de Pisti. Entretanto,
quando Costa fala a palavra “középiskola”, o menino o recrimina, denominando-o de “idiota”
por pronunciar erroneamente. O signo “idiota” remete a alguém sem valor, revelando a
inutilidade de Costa para o filho de Kriska. Desse modo, o garoto se torna o “espelhamento
imperfeito” de Joaquinzinho, pois este é o filho de Costa, no Brasil, e aquele é uma espécie de
afilhado, em Budapeste. A diferença entre eles está, justamente, no trato em que é dado ao
protagonista, que é o intermediário.
O outro espelhamento, que destacamos, é entre Vanda e Kriska. O nome completo
desta é Fülemüle Krisztina. A palavra “fülemüle” é a mesma dada a uma ave migratória,
sendo que, no caso de Kriska, não havia mudanças de países e nem linguísticas; ela é uma
pessoa purista, como são percebidas pelas advertências comunicadas à Costa, quando o
ensinava a língua húngara: “para ajustar o ouvido ao novo idioma, era preciso renegar todos
os outros” (BUARQUE, 2003, p. 64) e “me recomendou evitar outros idiomas durante o
período letivo” (BUARQUE, 2003, p. 71). Após conhecer o ghost writer, Kriska passa por
transformações que eram acompanhadas de acordo com o progresso ou regresso do
aperfeiçoamento linguístico dele em Budapeste. O uso de determinado tipo ou privação da
roupa, por ela, é um dos meios que revela o seu relacionamento com o aprendizado de Costa.
A natureza do novo homem moderno, desnudo, talvez se mostre tão vaga e
misteriosa quanto a do velho homem, o homem vestido, talvez ainda mais vaga, pois
não haverá mais ilusões quanto a uma verdadeira identidade sob as máscaras.
Assim, juntamente com a comunidade e a sociedade, a própria individualidade pode
estar desmanchando no ar moderno (BERMAN, 2007, p. 136, grifos nossos).
A identidade de Kriska está interligada a de Kósta, quando este se encontra em
Budapeste. Ela age de acordo com o desenvolvimento linguístico dele e, quanto mais avanço,
menos roupa é usada por ela. Como eles estão intrinsecamente unidos, não há uma
individualidade a ser observada, mas ações comuns aos dois. Por exemplo, nos momentos em
que ele ascendia na língua magiar, Kriska se sentia mais a vontade para usar roupas curtas e
se despir, por outro lado, quando Costa não lembrava ou errava o idioma local, ela ficava mais
Nas fronteiras da linguagem ǀ 172
reservada. Portanto, o domínio da língua húngara significava a conquista de Kriska. O
narrador diz que nas aulas iniciais do idioma
me fazia passar sede, porque eu falava, água, água, água, água, sem acertar a
prosódia. Os pães de abóbora, um dia trouxe à sala uma fornada deles, passou-os
fumegantes sob o meu nariz e jogou tudo fora, porque eu não soube denominá-los.
Mas antes de fixar e de pronunciar direito as palavras de um idioma, é claro que a
gente já começa a distingui-las, capta seu sentido (...) e um dia descobri que Kriska
gostava de ser beijada no cangote. Aí ela tirou pela cabeça o vestido tipo maria-
mijona, não tinha nada por baixo, e fiquei desnorteado (BUARQUE, 2003, p. 45-
46, grifos nossos).
A façanha de já conseguir apreender o significado de algumas palavras, forneceu,
também, a capacidade de mostrar o gosto de Kriska em receber beijos. Consequentemente, a
roupa comprida deixou de pertencê-la, isto é, à medida que Costa desvendava a língua
estrangeira, Kriska é revelada, como é percebido no ato de desnudamento desta. Em outra
situação, em que os dois estão juntos, Costa receia falar algo que não seja a língua húngara,
visto que, provavelmente, esta conduta implicaria em uma mudança de atitude de Kriska. Ele
diz que “num movimento único tirou o vestido pela cabeça (...). Tive medo de, num arroubo,
puxá-la contra o peito e falar as coisas que eu só sabia falar na minha língua, enchendo seus
ouvidos de palavras indecorosas, quiçá africanas” (BUARQUE, 2003, p. 68). Notemos que as
palavras pertencentes à língua estrangeira seria uma obscenidade, agredindo moralmente
Kriska, que, possivelmente, recomporia. Ela costumava exibir-se a Costa que, para este, era
entendido e comparado com as imagens utilizadas nas aulas para apreender o idioma, pois ela
teria que ser observada e lida. O protagonista relata que “desconfio que o tempo inteiro estava
se mostrando, como nos álbuns me mostrava estrelas e cavalos, mas olhando Kriska em
movimento eu aprendia mais” (BUARQUE, 2003, p. 64). Costa a equipara a ilustrações.
Logo, é visível a conexão entre Kriska e o aprendizado húngaro. Permanecer ao lado dela
traduz preservar o vernáculo budapestino. “Um mês em Budapeste, na verdade, significava
um mês com Kriska, porque sem ela eu evitava me aventurar na cidade; receava perder, no
vozerio da cidade, o fio do idioma que vislumbrava pela sua voz” (BUARQUE, 2003, p. 64-
65, grifos nossos). Privar-se de Kriska denota a perda do idioma.
Depois de passar um bom tempo no Brasil, Costa decide retornar a Budapeste. Ao
chegar neste país, que enfrentava um forte inverno, ele procura por Kriska, mas ao interfonar
e não ser atendido, acaba desmaiando em frente a casa dela. Ao acordar,
despertei de pijama num divã, debaixo de cobertores, a cabeça enfaixada, olhei para
Kriska e tive um pouco de medo de seus lábios delgados. Desatei a falar da minha
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 173
penúria, da minha condição de sem-teto em Budapeste, me disse perseguido político
em meu país e repetidas vezes a ouvi suspirar. Mas era por causa do meu húngaro,
tão precocemente deteriorado, que ela se condoia. E me fez calar, magoada com
razão, porque o idioma assim desaprendido, para ela, devia ser como a branca pele
dela que eu teria esquecido tão depressa (BUARQUE, 2003, p. 122-123, grifos
nossos).
Não obstante Costa fantasiar algumas misérias, ela fica desgostosa pela fragilidade que
ele apresentava no domínio do húngaro. Reparemos que Kriska estava desgostosa porque o
esquecimento do idioma significava, consequentemente, o esquecimento dela mesma. Então,
mais uma vez, percebemos a relação direta entre ela e o idioma. Após este acontecimento,
Costa vive na despensa da casa. A palavra “despensa” tem uma ligação paronímica com
“dispensa”. Daí, existe a possibilidade de pensarmos que, devido ao descuido com a língua
húngara e, por conseguinte, com Kriska, Costa se torna uma pessoa dispensável. Ela abdicava
de falar com ele e, como a língua está relacionada à roupa da própria personagem, de
apresentar-se de maneira descomposta. Assim, “falar, quase não me falava, (...) da mesma
maneira que nem o cachecol despia na minha frente. (...) Daí que meu pobre húngaro (...) só
podia caducar” (BUARQUE, 2003, p. 123). Kriska, notando que ele estava prestes a perder
tudo que havia aprendido, resolve arranjá-lo um emprego. Com isto, Costa reaprende o
idioma magiar e a reconquista. Neste caso, ela, que andava recatada, agora “usava uma saia
bem curta (...) e tornara a me querer bem.” (BUARQUE, 2003, p. 127), significando que não
estava mais decepcionada.
Entendemos, a partir de todas as ações realizadas por Kriska, que ela crescia
juntamente com ele. Diferentemente de Vanda, que desejava chegar à fama independente do
seu marido, enquanto que Kriska acompanhava Costa no seu desenvolvimento e regressão.
Elas se tornam um “espelhamento imperfeito”, visto que uma é a mulher de Costa no Brasil e
a outra em Budapeste; são comparadas por ele em circunstâncias diferentes, por isso o
espelhamento, e é imperfeita por não terem objetivos iguais quando se trata do ghost writer,
ou seja, uma é oposta a outra em relação à Costa, que é o ponto de conexão entre as duas. Ele
fala que “deitei-me com Kriska, e para melhor abraçá-la me lembrei de Vanda” (BUARQUE,
2003, p. 68), como se fossem uma só. Quando estava no Rio de Janeiro, Costa conta que ao
lembrar que, antes de conhecer seu [de Kriska] corpo, chegara a suspeitar de
qualquer coisa errada nele, tão diferentes seus movimentos dos de Vanda. A não ser
quando andava de patins (...). Às vezes, (...) eu lhe sugeria que os calçasse; era uma
maneira de melhor (...) me recordar da Vanda (BUARQUE, 2003, p. 94).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 174
Portanto, nos dois momentos, Costa tenta assimilar uma mulher com a outra, fazendo
com que as duas fossem o espelho da outra.
Os espelhamentos não se encerram apenas entre os personagens. Existem, também,
entre os escritos de Costa e em meio ao próprio romance Budapeste. Todos os reflexos
possuem como intermediário o ghost writer, pois ele é a relação direta que há entre os
personagens. Tratando-se da primeira ligação (José Costa - Zsoze Kósta), vimos que “o
sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando
fragmentado; composto não de uma única identidade, mas de várias identidades, algumas
vezes contraditórias ou não-resolvidas” (HALL, 2006, p. 12). Portanto, na obra estão
presentes questões de identidades referentes à nacionalidade e à composição escrita adotada
por Costa. Na simples mudança de nome há significados que abrangem toda a história do
personagem. Sobre a segunda comparação, colocaremos como Joaquinzinho – José Costa –
Pisti. Aqui, os dois garotos se relacionavam com o escritor de maneiras distintas; o primeiro,
por ser o filho, tenta refletir o próprio pai através de imitações imperfeitas da língua húngara e
do silêncio público, que se correspondia com os escritos anônimos de Costa, nunca sendo
pronunciado em público a não ser no próprio ocultamento; do outro lado existe Pisti, que não
era filho de Costa, porém tratado como tal, mas aquele repugnava este. Ele não tentava imitar
o ghost writer, mas humilhá-lo com deboches. Enquanto Joaquinzinho queria aproximar-se de
Costa, Pisti desejava afastá-lo. Na terceira descrição realizada, Vanda – José Costa – Kriska,
há em comum o fato de ser mulheres que Costa se relaciona, uma no Brasil e a outra em
Budapeste; a diferença entre elas é que o crescimento profissional e relacional de Vanda não
estava em simetria com o de Costa, ao passo que o de Kriska era progressivo com o dele.
Referências
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade.
Tradução de Carlos Felipe Moisés; Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras,
2007.
BUARQUE, Chico Budapeste. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
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costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 23. ed. Tradução de Vera da Costa e Silva
et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Tradução de Tomaz Tadeu
da Silva; Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
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LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artístico. Lisboa: Editorial Estampa, 1978.
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cultura. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
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9. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In:
HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos
Culturais. 9. ed. Organização de Tomaz Tadeu da Silva. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. p. 7-73.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 176
CARPENTIER E A MÚSICA: ENTRE SONATAS, ROMANCES
E ENSAIOS [Voltar para Sumário]
Amanda Brandão Araújo Moreno (UFPE)
“nenhuma música lhe era humanamente indiferente”
É comum no âmbito da crítica e da teoria literárias isolar um aspecto da obra de
determinado autor e analisá-lo de forma pontual a fim de melhor esmiuçar o tal aspecto desde
um ponto de vista relacional, seja com outra obra do mesmo autor ou com um outro conjunto
de obras que possam relacionar-se com a primeira, alvo maior da análise. É certo que muitas
vezes essa prática privilegia um método que acaba por negligenciar outras questões, também
importantes, do projeto literário de um escritor. Por outro lado, essa metodologia oferece
aportes mais densos e melhor embasados em teorias específicas. Há, entretanto, alguns temas
presentes em obras de determinados autores que são constitutivos de sua produção como um
todo, o que implica que tocar nesses assuntos leva a um comentário geral do projeto do autor.
O tema desse ensaio, acredito, é um desses motivos através dos quais se pode pensar todo um
conjunto de obras de um só autor através de um mote: trata-se das relações entre música e
literatura no projeto literário de Alejo Carpentier. Não se pretende, aqui, comentar a
tecnicidade da presença da música nos livros de Carpentier, haja vista a falta de ferramentas
da teoria musical por parte da autora deste ensaio. Pretende-se, isso sim, apontar alguns
momentos da literatura carpenteriana em que falar do texto é também falar de música. Nossa
intenção é dar destaque a algumas relações propostas pelo autor cubano entre os dois fazeres
artísticos, seja em forma de texto, em sua tessitura propriamente dita, seja como estrutura que
subjaz ou complementa o texto. Estarão presentes, neste ensaio, referências não apenas a
obras da ficção carpenteriana, mas também a textos teóricos e ensaísticos do autor.
Como é sabido, Alejo Carpentier é um autor cubano nascido nos primeiros alvores do
século XX. Filho de um arquiteto francês e uma professora russa, passou muitos anos de sua
vida transitando entre a América e a Europa, fatos que o lavaram ao plurilinguísmo, a uma
educação que não se restringia aos moldes europeus –apesar de baseada neles– e a uma
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 177
relação pouco trivial com várias culturas. No cenário literário, Carpentier é considerado um
dos precursores da novelística atual e um dos principais exponentes do romance hispano-
americano do século XX. O autor somou seus esforços aos daqueles que contribuíram para a
discussão em torno da ideia de América. Suas obras dialogam com ressonâncias históricas ou
literárias que de alguma forma tangenciam a temática ou fazem dela seu assunto principal. O
continente americano figura em seus textos como uma realidade maravilhosa, dotada de
privilégios estéticos extraordinários se comparados com os fornecidos pela Europa. Carpentier
tratou de assumir a experiência latino-americana em sua totalidade, “o mito passou a ser o
próprio real, compreendido na simultaneidade de suas perspectivas prováveis” (JOSEF, 1993,
p. 101); o autor procurou criar uma unidade entre os temas americanos e a cultura universal,
integrando as ciências e as artes no romance. A busca realizada é não apenas da própria
identidade, mas a de toda a Hispanoamérica.
Carpentier acreditava e propunha que todo escritor deveria conhecer pelo menos uma
arte paralela àquela que se dedica, pois isso enriqueceria seu mundo espiritual e sua produção
literária (DE VAN PRAAG, p. 225). A “arte paralela” escolhida pelo autor foi a música. Essa
escolha dificilmente pode ser considerada arbitrária: seu pai, além de arquiteto, fora músico
(violoncelista). Sua mãe também deixara uma veia musical como herança. Desde criança, o
garoto Alejo foi posto em contato com a primeira arte e, durante muito tempo, quis dedicar-se
a ela. Aos sete anos de idade já tocava ao piano prelúdios de Chopin. Antes de escolher a
carreira de escritor, sua ambição era tornar-se compositor. Além de dominar alguns
instrumentos, Carpentier também era especialista em teoria musical e isso se expressa em
vários – senão todos – de seus romances. Alguns títulos, inclusive, remetem diretamente a
esse viés tão caro ao autor: Concierto Barroco (1974), El arpa y la sombra (1979), La
consagración de la primavera (1978), La música en Cuba (1946) e Ése músico que llevo
dentro (2007) são alguns exemplos. Tanto na vida quanto na obra do autor cubano a música
ocupou um lugar privilegiado: Carpentier foi também crítico musical, organizador de
concertos musicais em Havana e testemunha das vanguardas artísticas de sua época durante
seu período de estadia na Europa (de cujo cenário intelectual nunca se desvinculou
totalmente). Carpentier advogava por uma união entre música e literatura que, por sua
afinidade, ofereceria ao escritor as condições suficientes para o desenvolvimento de sua
concepção vital (RUIZ BAÑOS, 1986, p. 65).
De acordo com Carlos Paz Barahona (2005, p. 73), “la música en la obra de Alejo
Carpentier se filtra por entre los espacios de la palabra, adquiriendo funciones complejas
dentro del texto”, e por isso mesmo é difícil precisar em qual de seus romances Carpentier dá
Nas fronteiras da linguagem ǀ 178
mais espaço aos temas musicais. Em alguns deles a música aparece como estrutura subjacente
ao enredo; em outros, ela compõe parte expressiva da temática desenvolvida. O que é certo é
que em todos seus romances é possível estabelecer alguma relação mais ou menos aparente
com o tema. Em Os passos perdidos (Los pasos perdidos, no original, publicado em 1953),
um dos romances mais expressivos e bem cotados do autor, o personagem principal é um
músico que trabalha numa grande cidade produzindo músicas comerciais. Frustrado com sua
rotina, decepcionado com sua vida pessoal e profissional, aceita um trabalho extra oferecido
por um antigo conhecido. Sua tarefa era viajar para a selva venezuelana, mais especificamente
nas altas extensões do rio Orinoco, e encontrar alguns instrumentos indígenas de origem
primitiva para compor um museu organológico da universidade em que trabalhava o colega
em questão. À medida que penetra e se integra aos labirintos da selva, a viagem se converte
em uma profunda reflexão sobre as etapas históricas mais significativas da América e sobre a
origem da música.
O personagem principal de Os passos perdidos, nos anos iniciais de sua formação de
musicólogo, criara a “teoria do mimetismo mágico-rítmico”, a qual supunha que o nascimento
da expressão rítmica primitiva se devia ao afã de arremedar o passo dos animais ou o canto
dos pássaros. É por causa dessa teoria que o convite é feito ao personagem e se empreende a
viagem. O contato com uma realidade bastante diferente da qual já se havia habituado, os
silêncios da floresta e os ruídos que se desdobravam destes e o posterior encontro dos
instrumentos procurados fizeram com que a teoria musical do personagem fosse diversas
vezes reformulada, até que sua versão definitiva se esboça a partir do que o personagem
chama de “grande revelação”: o nascimento da música lhe ocorrera através do som entoado
pela boca de um feiticeiro que afugenta os “mandatários da morte” do corpo de um homem
que morreu devido à picada de uma cobra. A cena é composta pelo corpo, as pessoas que só
observam e o feiticeiro. Este tange uma maraca e estabelece um diálogo com os tais
mandatários. Ocorre que nesse diálogo as vozes que se alternam não são apenas a do próprio
feiticeiro, mas também da entidade ali presente através da garganta do primeiro. “Entre
‘ambos’ hay diálogo, fricción, combate. De ese roce surgen trinos, portamentos,
contratempos. Las sílabas repetidas forman un ritmo. Las notas que aparecen entre dos trinos
forman una breve melodía. No es música aún, pero tampoco es ya palabra” (PEZZELLA,
2014, p. 206). Nas palavras do personagem:
Estou em morada de homens e devo respeitar seus Deuses... Mas então todos
começam a correr. Atrás de mim, sob uma massa de folhas penduradas nos ramos
que servem de teto, acabam de estender o corpo inchado e negro de um caçador
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 179
mordido por um crótalo. Frei Pedro diz que morreu há várias horas. No entanto, o
Feiticeiro começa a sacudir uma cabaça cheia de cascalho – único instrumento que
conhece essa gente – para tratar de afugentar os mandatários da Morte. Há um
silêncio ritual, preparador do ensalmo, que leva a expectativa dos que esperam por
seu apogeu. E na grande selva que se enche de espantos noturno, surge a Palavra.
Uma palavra que já é mais do que palavra. Uma palavra que imita a voz de quem
diz, e também a que se atribui ao espírito que possui o cadáver. Uma sai da garganta
do ensalmador; a outra, de seu ventre. Uma é grave e confusa como um subterrâneo
fervor de lava; a outra, de timbre médio, é colérica e destemperada. Alternam-se.
Respondem-se. Uma repreende quando a outra geme; a do ventre torna-se sarcasmo
quando a que surge da goela parece coagir. Há como que portamentos guturais,
prolongados em uivos; sílabas que de repente se repetem muito, chegando a criar um
ritmo; há trinados interrompidos de subido por quatro notas que são o embrião de
uma melodia. Mas vem em seguida o vibrar da língua entre os lábios, o ronco para
dentro, o arquejo em contratempo sobre a maraca. É algo situado muito além da
linguagem, e que, no entanto, está muito longe ainda do canto. Algo que ignora a
vocalização, mas já é algo mais que palavra. A ponto de se prolongar, parece
horrível, pavorosa, essa gritaria sobre o cadáver rodeado de cães mudos. Agora, o
Feiticeiro o encara, vocifera, golpeia com os calcanhares no chão, no mais
desgarrado de um furor imprecatório que já é a verdade profunda de toda tragédia –
intento primordial de luta contra as potências de aniquilamento que se atravessam
nos cálculos do homem. Trato de me manter fora disso, de guardar distâncias. E, no
entanto, não posso furtar-me à horrenda fascinação que essa cerimônia exerce sobre
mim... Ante a teimosia da Morte, que se nega a soltar sua presa, a Palavra, de
repente, abranda-se e desanima. Na boca do Feiticeiro, do órfico ensalmador,
estertora e cai, convulsivamente, o Treno – pois isto e não outra coisa é um treno -,
deixando-me deslumbrado pela revelação de que acabo de assistir ao Nascimento da
Música (CARPENTIER, 2009, p. 200)
A origem da música é um tema recorrente em Os passos perdidos e na obra de
Carpentier como um todo. Mas não se trata de qualquer música. Carpentier tenta abordar uma
música universal, uma que escapa ao olhar puramente ocidental ou europeu. O autor tentar
alcançar a Música primordial, comum a todos os homens. Existe uma constante tentativa de
universalização do particular, a constante mescla de culturas para alcançar a Cultura, a mescla
de músicas para chegar à Música. Essa proposta está em praticamente todas as suas obras,
mas talvez tenha especial desenvolvimento em La consagración de la primavera, a qual se
relaciona diretamente com um ballet de Stravinsky, A sagração da primavera. Nesse
romance, ritmos afro-cubanos contrapõem-se e mesclam-se com o eruditismo de Stravinsky,
corroborando para a teoria carpenteriana da universalidade da música. A ação começa ao final
da década de trinta do século passado, em um hospital de descanso dos feridos em brigadas
internacionais e culmina na Batalla de Playa Girón, fato histórico que comoveu Carpentier. O
próprio autor classifica La consagración de la primavera como seu romance mais longo e
ambicioso, por seu caráter político-revolucionário, que traz um novo olhar sobre a Revolução
Cubana.
Outro romance de Carpentier que traz a música como parte essencial é El acoso. Nesse
caso a música se manifesta não apenas como tema, mas como estrutura subjacente ao enredo.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 180
Trata-se de “um estudo psicológico dos efeitos do medo, causado pela perseguição, revolta e
injustiça. Durante os 46 minutos que dura a execução da Heróica de Beethoven, as
personagens culminam seu fatum” (JOSEF, 1986, p. 153, grifos da autora). Toda a estória se
desenrola num teatro enquanto é reproduzida a terceira sinfonia do famoso compositor. A
estória, assim como a música em questão, desenvolve-se em vários temas: um introdutório,
que se desenrola no ritmo rápido de um allegro, o qual, minutos depois, será reduzido ao
ritmo lento do adagio e crescerá, numa última parte, num andante animado. O uso que
Carpentier faz da música e a relação estrita que impõe confere ao romance uma nova
dimensão.
Em Concierto barroco também se apresenta um novo encontro entre a literatura
carpenteriana e a música. Dessa vez o relevo é dado à ópera e a relação que se estabelece, em
primeira instância, é com o compositor Vivaldi, que teria escrito a primeira ópera já conhecida
sobre a América. O livro problematiza essa questão, dado que a partitura completa da obra
vivaldiana não foi encontrada, como nos diz o romance de Carpentier. Em Concierto barroco
se vê “la convergencia de músicas diferentes en congregación de elementos, donde a la
música tradicional europea se une la diversidad instrumental americana, un nuevo tratamiento
del ritmo y la facilidad creadora de la improvisación” (BARAHONA, 2005, p. 78).
Como já dissemos, o conjunto dos romances carpenterianos pode ser relacionado à
música. José Antonio Sánchez Zamorano reforça essa opinião, quando diz que
La crítica, en repetidas ocasiones, ha puesto de manifiesto el hecho de que
Alejo Carpentier traslade a su narrativa ordenaciones y esquemas relacionados, en
principio, con el ámbito de la composición musical. Ya en su primer novela, Ecué-
Yamba-O (1933), se rastrean algunas transposiciones: la materia narrativa aparece
distribuida siguiendo ciertas simetrías, tendentes a cerrar la estructura – lo que
constituye uno de los principios básicos del arte musical -, y se usa la técnica de la
recurrencia temática – en música, variaciones sobre un tema-.
Sin entrar en repetidas discusiones sobre sus nombres, se puede llegar a
convenir que casi la totalidad de las obras posteriores de Carpentier se adapta a
estructuras de tipo musical. Así, se ha concebido El reino de este mundo (1949)
como una suite de ballet. Los pasos perdidos (1953) se ha puesto en relación con una
cantata. El acoso (1956) puede considerarse como sonata – o como sinfonía -. El
siglo de las luces (1962) se aproximaría al poema sinfónico. El recurso del método
(1974) y Concierto barroco (1974) se ajustarían, respectivamente, a las cualidades de
la ópera bufa y del “concerto grosso” (ZAMORANO, 2014, p. 327)
As conexões de Carpentier com a música não se expressam apenas, porém, em seus
romances, mas também em textos teóricos sobre o tema. O autor foi o primeiro a escrever, por
exemplo, uma história da música em Cuba, seu país natal, onde foi organizador de eventos
musicais. Em La música en Cuba traz um apanhado da história musical da ilha e suas inter-
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 181
relações com os acontecimentos culturais e sociais do país. Trata-se de um volume profundo,
de análise consistente que ainda hoje não foi superado. Escreveu também vários ensaios sobre
a música na América Latina, embora não se limitasse ao cenário americano.
Ése músico que llevo dentro, traduzido para o português do Brasil como O músico em
mim (2000), traz uma série de ensaios do autor, subdivididos em: a) Sobre compositores –
nesse espaço o autor traz um panorama de opiniões e contrapontos entre grandes nomes da
música do seu e de outros tempos, são comentados nomes canônicos, como Mozart e
Bethoven, Chopin e Wagner. Há um grande espaço para Stravinsky e Villa-Lobos, para
Mahler, Schumann, Puccini, Rossini, Debussy, entre vários outros; b) Intérpretes – nesse
apartado o autor se estende menos, traz alguns nomes, sempre relacionando-os aos
compositores a que davam vida; c) Musicologia – nessa parte estão reunidos vários textos de
opinião, resenhas, críticas musicais e ensaios sobre a música em geral (não só a erudita) os
quais traziam uma perspectiva teórica acurada. Aqui há espaço para a ópera, para sinfonias e
para o jazz; d) A música no teatro – a quarta parte se dedica, como o título tão claramente
indica, à música no teatro, com especial ênfase à ópera; e) Reflexões sobre a música – no
bloco de número cinco se condensam textos menos teóricos sobre a música, nos quais se
expressam problemas frequentes quanto ao tratamento do tema, quanto à profissionalização
do músico, sua relação com a juventude e uma série de questões variadas em torno da
atmosfera musical; f) Ensaios – à última parte do livro cabem apenas dois ensaios, um sobre o
folclorismo musical e outro intitulado “Música e emoção”.
Como se pode constatar, Carpentier deu espaço às mais variadas expressões da música
em suas obras e em sua trajetória artística: em seus romances, o conhecimento musical lhe
servia como subsídio para a estrutura da forma, como mote temático e como plano de fundo;
em seus ensaios, discursou sobre a música a partir de diversos matizes, gerando variadas
nuances, desde a mais teórica à mais reflexiva e desprendida de questões formais. A atuação
de Alejo Carpentier frente à Música reforça a frase de Jorge Luis Borges, a qual dizia que
“todas las artes propenden a la música, el arte en el que la forma es el fondo”1. Reforça
também a afirmação de Eduardo Rincón sobre Carpentier, em prólogo a O músico em mim:
“poderíamos dizer que nenhuma música lhe era humanamente indiferente”2. À guisa de
conclusão, repetimos as palavras de Sagrario Ruiz Baños (1986, p. 66) ao falar de Carpentier:
um homem que conheceu tão a fundo o mundo da música não podia deixar de ser sensível às
possibilidades expressivas que essa arte lhe oferecia e, assim, um grande conhecedor dos
1 Em “Notas sobre Walt Whitman”. 2 Em prólogo à edição brasileira de O músico em mim, p. 14.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 182
fenômenos musicais, elaborou uma construção literária em que ambas artes, Música e
Literatura inter-relacionadas, oferecem um monumento perdurável de representatividade
humana. Carpentier parece personificar à perfeição esse escritor que realiza a simbiose entre o
musical e o literário de forma coerente.
Referências
BARAHONA, Carlos Paz. Juego, símbolo y fiesta en Concierto Barroco de Alejo Carpentier,
una mirada desde la música. Disponível em <http://www.vinv.ucr.ac.cr/latindex/rfl-31-1/rfl-
31-1-06.pdf > Acesso em 20.jun.2014.
CARPENTIER, Alejo. La aprendiz de la bruja. Concierto Barroco. El arpa y la sombra.
México: Siglo XXI editores, 1998.
CARPENTIER, Alejo. O músico em mim. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
CARPENTIER, Alejo. Os passos perdidos. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
CHORNIK, Katia. Ideas evolucionistas en “Los orígenes de la música y la música
primitiva”: un ensayo inédito de Alejo Carpentier. Disponível em
<http://www7.uc.cl/musica/cita/Resonancias/26/Chornik.pdf> Acesso em 20.jun.2014.
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géneros estéticos. Tamkang Journal of Humanities and Social Sciences, 28, 123-162 (2006).
Disponível em <https://oak.ucc.nau.edu/nf4/pdfs/CarpentierFinal.pdf> Acesso em
20.jun.2014.
JOSEF, Bella. O espaço reconquistado: uma releitura. Linguagem e criação no romance
hispano-americano contemporâneo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
JOSEF, Bella. Romance hispano-americano. São Paulo: Ática, 1986.
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dentro”. Disponível em
<http://www.mauroyberra.cl/contenido/Bartolome/columnaramona/archivos/Alejo%20Carpen
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PEZZELLA, Daniel. Significación de la música en “Los pasos perdidos”, de Alejo
Carpentier. Disponível em <http://www.cienciared.com.ar/ra/usr/10/177/hln2.pdf> Acesso em
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PRAAG, Jacqueline Chantraine de van. El acoso de Alejo Carpentier estructura y
expresividad. Disponível em <http://cvc.cervantes.es/literatura/aih/pdf/03/aih_03_1_026.pdf>
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RUIZ BAÑOS, Sagrario. La música como expresión humanística en una novela de Alejo
Carpentier: estructura fugada de “La consagración de la primavera”. Anales de Filología
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 183
Hispánica. Vol. 2. 1986. Disponível em <http://revistas.um.es/analesfh/article/view/58831>
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VILLANUEVA, Carlos (org.). Ciclo de miércoles: El universo musical de Alejo Carpentier,
enero 2012 [introducción y notas de Carlos Villanueva]. - Madrid: Fundación Juan March,
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ZAMORANO, José Antonio Sánchez. “El siglo de las luces” una sonata de Alejo Carpentier.
Disponível em <http://institucional.us.es/revistas/philologia/5/art_24.pdf> Acesso em
20.jun.2014.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 184
PRÁTICAS DE LETRAMENTO NOS ANOS INICIAIS: A
FORMAÇÃO DE LEITORES ATRAVÉS DO MOMENTO DA
LEITURA DELEITE [Voltar para Sumário]
Amara Rodrigues de Lima (SEEL – Recife)
Introdução
Ensinar a ler e escrever não é uma questão simples, garantir que todas os estudantes
tenham acesso aos conhecimentos necessários para garantir um processo de alfabetização e
avancem nas suas aprendizagens não tem sido uma tarefa fácil, porém possível.
Saber ler e escrever, fazer uso da leitura e da escrita de uma forma funcional nas
diferentes situações do cotidiano, na atualidade, são necessidades precípuas tanto para o
exercício da cidadania, no plano individual, quanto para a medida do nível de
desenvolvimento de uma nação, no nível sociocultural e político. Logo é dever do Estado
proporcionar, por meio da educação, o acesso de todos os cidadãos ao direito de aprender a ler
e escrever (MORTATTI, 2004, p. 15).
Nesse sentido a escola pode ser vista como um espaço importante para apresentar aos
alunos o universo do mundo da leitura e contribuir na formação de leitores autônomos
capazes de ler para: aprender a fazer algo, aprender assuntos do seu interesse, informar-se
sobre algum tema e ter prazer na leitura.
É possível perceber no cotidiano da escola que muitos avanços ocorreram em relação
ao trabalho com leitura na sala de aula, especialmente quanto à qualidade dos textos
disponibilizados para as crianças através dos Programas Federais (PNBE/ PNLD Obras
Complementares) Programas que promove o acesso à cultura e o incentivo à leitura por meio
da distribuição de acervos de obras literatura, com o proposito de atrair os estudantes para o
universo da literatura de forma lúdica. (BRASIL, 2012, p. 38)
No entanto, tem-se constatado que persiste um grande número de alunos com
dificuldade de entender o que leem, mesmo quando já estão em etapas mais avançadas de
escolarização. Os baixos resultados apresentados em compreensão leitora, nas provas
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 185
aplicadas em larga escala como Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB),
Sistema de Avaliação da Educação Básica de Pernambuco (SAEPE), Provinha Brasil, entre
outras, apontam a necessidade de um maior investimento no ensino desse objeto de
conhecimento.
O trabalho com leitura na sala de aula tem sido uma das temáticas abordadas no
PNAIC – Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, desenvolvido por meio de
parceria entre o MEC, universidades federais e secretarias de educação. O material elaborado
para subsidiar a formação dos professores tem entre outros objetivos levar os mesmos a
conhecerem os recursos didáticos distribuídos pelo MEC entre os quais (livros do PNBE e as
Obras Complementares aprovados no PNLD) e planejar situações didáticas em que tais livros
sejam usados.
A leitura-deleite, vem sendo discutida quanto à sua importância e possibilidade
pedagógica nas formações do PNAIC e tem passado a fazer parte da rotina da escola. E é
visando discutir acerca do desenvolvimento dessa atividade como uma estratégia na formação
de leitores no Ensino Fundamental que apresentaremos, neste artigo, um relato de experiência
realizado com sessenta e cinco alunos do primeiro ao quinto ano da escola Municipal Córrego
do Euclides, localizada no Córrego do Euclides, bairro do Recife – PE.
1. Um pouco mais de leitura
Alfabetizar para ser leitor, para se apropriar da escrita e da leitura de forma autônoma,
criativa, para experienciar a leitura e a escrita com seus múltiplos saberes é um grande
desafio. Os acervos disponibilizados através do PNBE, PNLD Obras Complementares e
Programa Manoel Bandeira de Leitores, têm oportunizado as crianças um convívio íntimo e
cotidiano com os livros, proporcionando um acesso privilegiado à cultura escrita,
apresentando-se, assim, como uma ferramenta poderosa no processo de letramento. Para
Soares (1998), o indivíduo letrado faz uso da escrita envolvendo-se em práticas sociais de
leitura e de escrita, respondendo adequadamente às demandas sociais.
Acreditamos que para formar indivíduos capazes de usar eficientemente a leitura é
necessário que a escola planeje o ensino da leitura e de estratégias adequadas a compreensão
textual, enquanto objeto de conhecimento, que possibilita a aquisição de novas aprendizagens.
Fazer uso de recursos, no cotidiano escolar, que contribua para fazer dos alunos bons
leitores é um grande desafio. Nesse sentido, defendemos que a escola seja um espaço onde a
Nas fronteiras da linguagem ǀ 186
leitura possa também ser deleite. Segundo o Aurélio “deleite” pode ser definido como “gozo
íntimo e suave – prazer intenso, pleno – delícia”. (AURÉLIO, 2001)
Acreditamos que ler por prazer é o que nos faz leitores de fato, ou seja, é o que nos
impulsiona a buscar mais e mais textos, é o que nos dar o direito de negar um texto, escolher
outro texto, enfim interagir com a leitura. Na escola, parece, muitas vezes, haver certa
desvinculação entre leitura e prazer.
Segundo Solé, (1998) diferentes pesquisas tem demonstrado que há pouca variação
nas atividades desenvolvidas no ensino da leitura nas salas de aula, que de maneira em geral,
giram em torno da leitura em voz alta pelos alunos, de um texto ou de fragmentos, enquanto
outros acompanham, de elaboração de perguntas relacionadas ao texto e ficha de trabalho com
aspectos de sintaxe morfológica, ortografia, vocabulário e eventualmente a compreensão da
leitura.
Na verdade, não defendemos que ler na escola seja sempre para deleite. No entanto, é
fundamental que possa ser, também, deleite, para que essa instituição passe a constituir-se, de
fato, como um espaço de formação de leitores. Assim, defendemos que o espaço escolar seja
palco para a de condução de projetos de leiturização em que o leitor seja encarado como um
agente ativo de construção de sentidos.
Para formar leitores, objetivo que vem sendo cada vez mais verbalizado no meio
educacional, será necessário desconstruir práticas onde o leitor não tem voz e o professor é o
único sujeito que conduz o processo, e reconstruir as concepções sobre texto e sobre leitura.
Em primeiro lugar, será preciso reintegrar as preocupações com o ensino das estratégias de
leitura e as preocupações com a formação do leitor.
Solé (1998) define as estratégias de leitura como procedimentos cognitivos e
metacognitivos complexos, já que implicam a capacidade de refletir e planejar nossa própria
atuação enquanto lemos. Nesse sentido planejar um ensino que garanta que os estudantes,
durante a realização da leitura de textos diversos consigam ativar os conhecimentos prévios,
realizar inferência, previsão/ levantar hipótese acerca do texto lido, pode contribui para a
formação de leitores autônomos.
Para isso, é preciso que a leitura seja uma prática constante nas atividades escolares, a
fim de que o aluno − leitor em formação − domine as habilidades de leitura acima referidas.
2. Relatando a experiência
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 187
Uma forma de tornar rotineiro o ato de ler na escola é a sugestão da “leitura deleite”:
sempre um livro é lido para os alunos, sempre há um cantinho disponível para que os alunos
mergulhem na leitura de livros diversificados. Pensando na formação de leitores que não só
sintam o desejo de ampliar os saberes e informações proporcionados pela leitura, mas que
também tenham prazer na leitura desenvolvemos durante o ano letivo de 2014 um projeto de
leitura com um grupo de 65 alunos de turmas do 1º ao 5º ano de uma Escola Pública da
Cidade do Recife. Durante esse período foram realizadas à leitura de diversos livros que
fazem parte do acervo da escola, construído com as obras do PNBE e PNLD Obras
Complementares, entre os quais destacaremos os livros abaixo.
Figura 1 - Capas dos livros lidos para os alunos durante os momentos de leitura deleite
No primeiro momento da atividade, antes da leitura, o livro era apresentado às
crianças buscando motivá-las a ouvir a história. No segundo momento a partir da leitura do
título buscávamos resgatar os conhecimentos e experiências prévias dos alunos sobre a
história, lançando questões que os levassem a refletir acerca do título. No terceiro momento a
leitura era realizada, em alguns dias pela professora em outros por algum aluno escolhido
previamente. Durante a leitura buscava-se desenvolver um entonação que prendesse à atenção
das crianças. Depois da leitura fazíamos a recapitulação oral da história, tentando fazer com
que as crianças compreendessem os principais acontecimentos, suas causas e consequências.
Considerações finais
As atividades realizadas no desenvolvimento do projeto e apresentadas neste texto
mostraram alguns aspectos importantes no que refere ao ensino inicial da leitura, levando em
consideração as discussões atuais acerca do tema.
Acreditamos que o ensino inicial da leitura deve garantir a interação significativa e
funcional da criança com a língua escrita. Isso implica que o texto escrito esteja presente de
Nas fronteiras da linguagem ǀ 188
forma relevante no cotidiano da sala de aula e que a criança seja envolvida em atividades
significativas de uso da leitura e da escrita no espaço escolar.
Defendemos que a estratégia da leitura deleite é um instrumento que pode contribuir
para formação de leitores, pois por meio dessa estratégia, as professoras podem estimular os
alunos a ler mais e a socializar suas leituras favorecendo assim, o contato com bons textos.
Ressaltamos, ainda, que a inserção da literatura em sala de aula não pode ser algo
ocasional, acidental e nem pode fazer parte de um preenchimento de tempo sem
intencionalidade. O professor precisa realizar atividades constantes, planejadas, em que os
estudantes tenham acesso ao texto literário e possam refletir coletivamente sobre tais textos.
Foi possível observar que os alunos, quando chamados a participar, de forma ativa,
mostram que têm capacidade de atuar em todo o processo de construção do conhecimento,
demonstrando que são criativos e, principalmente, que se percebem agentes no processo de
construção do conhecimento. Em todos os momentos foi possível perceber a interação das
crianças através do interesse em participar dos momentos de leitura.
Assim foi possível constatar o desenvolvimento dos alunos, o que demonstra que
embora algumas crianças apresentem dificuldades, como o caso de um aluno com deficiência
cognitiva, quando inseridos em atividades sistemáticas de ensino, com a intervenção adequada
dos professores, são capazes de avançar na aquisição dos conhecimentos.
Enfim a proposta de trabalho vivenciada a partir da exploração desses livros nos
mostra que muitas são as possibilidades, para que de forma prazerosa, sejam desenvolvidas
atividades significativas e desafiadoras que contribuam para construção de conhecimentos
acerca da leitura.
Acreditamos que um trabalho nesta perspectiva possa contribuir para a formação de
ouvintes ativos que se engajem na aventura de construir sentidos dos textos lidos pela
professora e futuramente tornem-se leitores ativos.
Referências
BRASIL. Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa. Formação do Professor
Alfabetizador – Caderno de Apresentação – Brasília – 2012.
MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Educação e Letramento. São Paulo: Unesp, 2004.
SOARES, Magda. Letramento um tema em três gêneros. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica,
1998.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 189
METADE ROUBADA AO MAR, METADE À IMAGINAÇÃO:A
CIDADE DO RECIFE POR CARLOS PENA FILHO [Voltar para Sumário]
Amarino Oliveira de Queiroz (UFRN)
Este é o teu retrato feito
com tintas do teu verão
(Carlos Pena Filho)
O advento da cidade e a participação do poeta no centro desse debate proporcionaram o
registro de diferentes lugares de observação. Discorrendo sobre o tema, Nestor García
Canclini (1998) sugere um mapeamento desse olhar argumentando que o antropólogo chega à
cidade a pé, o sociólogo de carro, pela pista principal, e o comunicólogo de avião, cada um
deles construindo uma visão diferenciada e, por conseguinte, parcial do objeto observado.
Uma quarta e importante perspectiva seria tratada, ainda, por Canclini: aquela vivenciada pelo
historiador, cuja aquisição seria resultado não de uma entrada, mas de uma saída do ambiente
da cidade, partindo de seu centro antigo e seguindo em direção aos seus limites
contemporâneos. Cabe perguntar, portanto: quais poderiam ser as estratégias do poeta diante
dessa questão?
Na Modernidade, a situação do poeta urbano seria definida pelo sentido do
deslocamento: ao tomar conhecimento do seu não locus, o poeta da cidade se disporia na
condição de uma voz outra, a que o escritor mexicano Octavio Paz (1993) descreveria como
uma modulação indefinida, inconfundível, que se converte em diferença original. Já em
Charles Baudelaire, no final do século XIX, a expressão da tragédia do destino humano,
mesclada a uma visão mística do universo constituiria matéria para a poesia na cidade
ocidental moderna. Quase cem anos mais tarde, o poeta pernambucano Carlos Pena Filho
referenciaria, de forma laudatória, a empresa baudelaireana:
A CHARLES BAUDELAIRE
Carlos também
Embora sem
Flores nem aves
Vinho nem naves,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 190
Eu te remeto
Este soneto
Para saberes,
Se acaso o leres,
Que existe alguém
No mundo, cem
Anos após,
Que não vaiou
E nem magoou
Teu albatroz.
Em nossos dias, contudo, a experiência daquele flâneur que perambulava nas
metrópoles do início do século XX parece não ser mais possível. Para Micael Herschmann
(2000), é como se agora as cidades grandes tivessem se transformado “em um vídeo-clipe, ou
melhor, em uma montagem frenética de imagens descontínuas”, cabendo ao observador
atentar para o fato de que isso “não tem necessariamente um sinal negativo, ou implica uma
perda da experiência coletiva”. Ao contrário, poderá abrir espaço para um esforço de
compreensão da cidade além das “territorialidades exclusivas, bem definidas e/ou isoladas”,
em que o outro “já não é territorialmente distante ou alheio, mas parte constitutiva da cidade
que habitamos”.
Contemporâneo do Modernismo literário brasileiro, Carlos Pena Filho nasceu na cidade
do Recife em 17 de maio de 1929. Filho de pais portugueses realizou seus primeiros estudos
em terras lusitanas, complementando-os na cidade natal, onde também se diplomou advogado.
Publicou em 1952 O Tempo da Busca, seu primeiro livro de poesia, ao qual se seguiram
Memórias do Boi Serapião, A Vertigem Lúcida e Livro Geral, desaparecendo tragicamente
em 1960 na mesma cidade, vítima de um acidente de automóvel.
O ambiente urbano recifense encontrou no poeta um observador atento que tanto
descreveu com ironia e doçura a sua paisagem (Não é que somente em luas,/ o Recife farto
seja; é farto, também de igrejas), como realizou a crônica do cotidiano de sua gente mais
simples (Na cidade que amanhece/ vai a humilde tecelã/ para a fábrica onde tece/ o azul desta
manhã) ou a provocação às elites (...de brasileiros sabidos,/ portugueses sabidões/ que na vida
leram menos/ que o olho cego de Camões,/ mas que em patacas possuem/ muito mais que Ali
Babá/ e seus quarenta ladrões).
Para o sociólogo Gilberto Freyre (1999), em prefácio à edição póstuma de um dos livros
de Pena Filho, “de nenhum poeta do Brasil se pode dizer ter sido, mais do que ele, de sua
cidade, de sua província, de sua região, de sua tradição regional e, ao mesmo tempo, mais, a
seu modo, moderno”. Assim avaliado, o poeta Carlos Pena Filho foi, “tanto quanto Bandeira,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 191
quanto Cardozo, quanto Mauro Mota, quanto João Cabral, cantor por excelência do Recife:
cidade por ele mais amada do que por qualquer outro, poeta ou não-poeta”.
Em longo poema sobre o Recife, entretanto, Carlos Pena Filho revelaria textualmente
aqueles a quem identificaria como “os cantores da cidade”:
Hoje a cidade possui os seus cantores
que podem ser resumidos assim:
Manuel, João e Joaquim.
No Jardim Treze de Maio
Manuel vai ficar plantado
Para sempre e mais um dia
Sereno, bustificado,
Pois quem da terra se ausenta
Deve assim ser castigado...
Os versos que se sucedem, carregados de imagens recorrentes à poesia de Manuel
Bandeira, vão fluindo naturalmente, como um rio, em direção ao universo poético de João
Cabral de Melo Neto:
Água, lama, caranguejos,
Os peixes e as baronesas
E qualquer embarcação,
Está sempre e a todo instante
Lembrando o poeta João
Que leva o rio consigo
Como um cego leva um cão.
Mas vieram de longe as águas
Que aqui no Recife estão,
Já comeram areia e pedra
Lá bem perto do sertão
E é por isso, talvez,
Que escuras e tristes são.
Quase que num só fôlego, o poema de Carlos Pena Filho busca desenhar outro mapa da
cidade em cujos alicerces, fundados sobre a lama dos manguezais e cardozianamente
recobertos pela cor “púrpura de jambeiros” parecem querer sustentar, pedra a pedra e verso a
verso, o horizonte de “coqueiros roxos, azuis, verdes de mar” vislumbrado pelo poeta-
engenheiro Joaquim Cardozo em sua obra:
O poeta Joaquim que foi
Fazer uma estação de águas
Nos olhos do seu amor
E trouxe nos seus, acesos,
Os cajueiros em flor.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 192
Mas antes mesmo de prestar reverências a Bandeira, a Cabral e a Cardozo através de sua
poesia, Carlos Pena Filho já havia promovido, na abertura de seu Guia Prático da Cidade do
Recife, uma espécie de fundação física e poética da cidade:
No ponto onde o mar se extingue
E as areias se levantam
Cavaram seus alicerces
Na surda sombra da terra
E levantaram seus muros
Do frio sono das pedras.
Depois armaram seus flancos:
Trinta bandeiras azuis
Plantadas no litoral.
Hoje, serena, flutua,
Metade roubada ao mar,
Metade à imaginação,
Pois é do sonho dos homens
Que uma cidade se inventa.
O olhar do poeta possibilita aqui a visualização daquilo que Leandro Konder (1994)
definiria como a preocupação de descobrir uma resposta para a instituição da cidade a partir
de sua própria origem física, ressubstanciada no que ele chama de olhar poético e olhar
filosófico. O primeiro deles valeria como advertência para a recuperação, na cidade, de sua
própria humanidade. Humanidade esta que, no caso de Carlos Pena Filho, se desdobra
também numa re-geografia afetiva (Olinda é só para os olhos/ Não se apalpa, é só desejo./
Ninguém diz: é lá que eu moro./ Diz somente: é lá que eu vejo). Um olhar filosófico que não
coincidiria necessariamente, ainda em palavras de Leandro Konder, com um olhar poético,
mas que abarcaria aspectos mais abrangentes, para além daqueles que a síntese poética
pudesse situar. Nestes termos, num misto de sarcasmo e ternura, canta o poeta Carlos:
Na avenida Guararapes
O Recife vai marchando.
O bairro de Santo Antônio
Tanto se foi transformando
Que, agora, às cinco da tarde
Mais se assemelha a um festim,
Nas mesas do bar Savoy
O refrão tem sido assim:
São trinta copos de chopp
São trinta homens sentados
Trezentos desejos presos
Trinta mil sonhos frustrados.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 193
Ainda que versos como estes não engendrem automaticamente o sentido da cidadania, a
cidade passaria a ser, reiterando a afirmativa de Konder, o lugar onde melhor poderia ser
travada a luta pela efetivação desse exercício:
Mas não é só junto ao rio
Que o Recife está plantado,
Hoje a cidade se estende
Por sítios nunca pensados,
Dos subúrbios coloridos
Aos horizontes molhados.
Horizontes onde habitam
Homens de pouco falar
Noturnos como convém
À fúria grave do mar.
Amigo pessoal e estudioso da obra do poeta, ao referir-se ao Guia Prático da Cidade do
Recife, o escritor Edilberto Coutinho (1983) afirmou que Carlos Pena Filho foi “um poeta
político, interessado em cada aspecto da vida de sua cidade” e que essa obra é, “por vezes
uma representação exagerada, satírica e, portanto, crítica, da realidade; uma espécie de
autêntico ‘antiguia’, se pensarmos nos roteiros oficiais de atrações turísticas” posto que nela,
precisamente, o poeta Carlos “trata também do ‘povo marginal,/ escuro e anfíbio’ que habita
os mangues do Recife, (...) entre outros habitantes menos privilegiados de sua cidade”:
Recife, cruel cidade,
Águia sangrenta, leão.
Ingrata para os da terra,
boa para os que não.
amiga dos que a maltratam,
inimiga dos que não
Este é o teu retrato feito
com tintas do teu verão
e desmaiadas lembranças
do tempo em que também eras
noiva da revolução.
A aparentemente contraditória queixa do poeta, associando à cidade as figuras de “águia
sangrenta” e “leão”, da mesma forma que evoca nostalgicamente a imagem de uma “noiva da
revolução” talvez pudesse encontrar analogia no estereótipo do caráter rebelde de sua gente,
atribuído ao fato de vir o Recife colecionando, ao longo de sua história, uma trajetória de
insurgência civil frente às manobras das oligarquias que desde o advento das Capitanias
Hereditárias ocupam expressivo espaço no gerenciamento político da cidade e do Estado,
observável ainda em vários aspectos de suas manifestações culturais e perceptíveis inclusive
na literatura que produziu e produz. Talvez se pudesse estender esse esboço de compreensão
Nas fronteiras da linguagem ǀ 194
da cidade considerando as diversas convulsões sociais pelas quais passou, como a Guerra dos
Mascates, a Revolução Praieira ou a Revolução Pernambucana de 1817, chegando ao
desmonte político promovido pelas frentes populares ao conquistarem a prefeitura, no pleito
do ano 2.000, dissolvendo em votação direta a alternância no poder cristalizada pelos políticos
representantes das oligarquias rurais canavieiras em aliança com muitos de seus ex-opositores
históricos, feito que se manteve ao longo dessa primeira década do século XXI.
Quem sabe, pelo estudo da estrutura de suas festas de carnaval, referência poética para o
próprio Carlos Pena Filho. Também ele desenvolveu densa atividade como letrista de música
popular, como em A Mesma Rosa Amarela, poema composto para servir de letra a frevo-de-
bloco de Capiba, um dos mais importantes compositores pernambucanos do século XX,
parceiro de vários outros poetas e escritores. Re-formatada em ritmo de bossa-nova, gênero
emergente em todo o país na virada dos anos 50 para os 60, esta canção talvez constitua o
mais conhecido exemplo do Carlos Pena Filho letrista de música popular. Objeto de variados
registros fonográficos locais e nacionais a partir de 1960, ano de desaparecimento do poeta,
com destaque para aquele apresentado pela cantora e compositora Maysa, o sucesso de A
Mesma Rosa Amarela representaria ainda, juntamente com as outras parcerias musicais do
poeta com Capiba, um marco no diálogo entre literatura e música em Pernambuco, ampliando
o circuito de penetração da obra poética de Carlos Pena Filho:
Você tem quase tudo dela:
o mesmo perfume,
a mesma cor,
a mesma rosa amarela.
Só não tem o meu amor.
Mas, nestes dias de carnaval
para mim, você vai ser ela:
o mesmo perfume,
a mesma cor,
a mesma rosa amarela...
O carnaval do Recife preservaria, ao longo do século XX, muitos elementos
característicos de seus primórdios no século anterior, sobretudo no que diz respeito à
participação espontânea dos diversos segmentos sociais e à pluralidade das manifestações
culturais. Baseados na região portuária, local de fundação da cidade, e arregimentados por
corporações de trabalhadores em instituições conhecidas como clubes de rua, a grande
maioria existente até os dias atuais, várias entidades de classe desfilavam em cortejo pelas
vias públicas, promovendo entre si entusiasmada competição. Grupos de dançarinos
estrategicamente posicionados levavam ao fervo a multidão, fazendo o passo, ou seja,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 195
dançando o frevo ao som dos metais de bandas militares ou fanfarras arregimentadas para a
brincadeira.
Mais do que uma atividade alternativa de lazer em que se abria espaço para a livre
expressão e a crítica social, essa festa consistia, pelo seu tom dionisíaco, num contraponto ao
bem comportado entrudo, celebração carnavalesca introduzida no Brasil pela colonização
portuguesa e cultivada pelas elites da época, resguardadas em salões de festa e outras áreas
privadas. O clube carnavalesco dos “Vassourinhas”, por exemplo, fundado e conduzido
originalmente pelos trabalhadores da limpeza urbana, seria responsável pelo hino espontâneo
do carnaval da cidade, o Frevo dos Vassourinhas, bem como pela verdadeira catarse coletiva
que acomete os foliões já em seus primeiros acordes.
Talvez a problematização acerca de um caráter “rebelde” da cidade do Recife pudesse
ser orientada, ainda, a partir dos embates culturais e literários reivindicando a existência de
um surto modernista local e autônomo na década de 20 do século passado, chegando à
discussão, já posterior à presença física do poeta Carlos Pena Filho, de questões relacionadas
com uma cultura erudita brasileira baseada nas raízes nordestinas, onde os produtos artísticos
e literários traduziriam o cruzamento verificado entre o artesanato, a literatura de Cordel, as
manifestações populares e a cultura hegemônica. Nisto parecia estar fundado o pensamento
armorial, cujas bases estéticas foram defendidas por Ariano Suassuna em seu movimento
homônimo a partir de 1970, e sumariamente questionado pelo olhar proposto através do
Movimento Mangue, já nos anos 90.
A partir do levantamento de questões como as expostas acima é que a cidade do Recife,
a “águia sangrenta, leão” do poeta Carlos, talvez pudesse ser mais amplamente avaliada. A
propósito, o primeiro dos dois Manifestos Mangue, assinado por Fred Zero Quatro e Renato L
e publicado no início da década dos 90, dispõe de algumas idéias sinalizadoras para uma
possível re-significação da cidade:
Mangue - O Conceito
Estuário: parte de um rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas
margens se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou
subtropicais inundadas pelo movimento dos mares. Pela troca de matéria orgânica
entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre os ecossistemas mais
produtivos do mundo (...)
Manguetown - A Cidade
A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis rios. Após
a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex) cidade “maurícia” passou a
crescer desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição
dos seus manguezais. Em contrapartida, o desvairio irresistível de uma cínica noção
Nas fronteiras da linguagem ǀ 196
de “progresso”, que elevou a cidade ao posto de metrópole do Nordeste, não tardou
a revelar sua fragilidade (...)
Mangue - A Cena
(...) Em meados de 91 começou a ser gerado e articulado em vários pontos da
cidade um núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo é engendrar “um
circuito energético”, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede
mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo, uma antena parabólica
enfiada na lama (...)
Essa atitude mangue, manifestada esteticamente a partir da música e com passagens
pela escultura, a pintura, o cinema, a moda, as artes cênicas e a literatura, representou mais do
que uma possibilidade de ressignificação da cidade que Carlos Pena Filho cantou. O próprio
poeta lançou mão de recurso extraliterários, como é o caso de sua já referida aproximação
com a música, em parceria com Capiba, ou o namoro constante com a pintura, metaforizado
através da insistente alusão às cores em seus versos (rosa amarela, subúrbios coloridos, verdes
intervalos), que se fundiam, inclusive, como em novas cores para novas palavras (verdágua,
ourazul, azulverde). A evocação do azul intenso do céu nordestino e o verde dos mares e dos
canaviais, entretanto, constituiriam as presenças mais recorrentes, através das quais o poeta
usa as "tintas do seu verão" para pintar, poeticamente, a cidade, a amada e a si próprio:
Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas.
Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.
Em seu já mencionado Livro de Carlos, Edilberto Coutinho afirma ser “a cor, entre elas
o azul, seguido do verde”, um elemento recorrente e fundamental dentro da obra de Carlos
Pena Filho. Uma estatística levantada pelo crítico Renato Carneiro Campos aponta para
quarenta como sendo o número de vezes em que a palavra azul aparece nos versos de Pena
Filho. Neles, lembra Coutinho, “a amada é bela e azul, assim como, num certo carnaval, se
viu o poeta dependurado nos cabelos azuis de fevereiro”. Sua linguagem, plena de oralidade e
essencialmente musical, tem sempre um forte apelo pictórico, visual, plástico, “como se ele
realmente às vezes pintasse com palavras”.
Ao pintar de azul seus versos e sapatos, o poeta Carlos revelaria também outros tons
dessa cidade do mangue, “onde a lama é a insurreição”, como afirmaria na
contemporaneidade um seu outro cantor, Chico Science. Ao depor sobre o conceito de
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 197
pluralidade usando a imagem de uma antena parabólica enfiada na lama como metáfora, a
movimentação mangue acabaria por perturbar a idéia de uniformidade de expressão e
comportamentos característicos da cidade que interpretações mais apressadas poderiam
sugerir, injetando “um pouco de energia na lama” e estimulando “o que ainda resta de
fertilidade nas veias do Recife”, conforme se fez registrar em seu primeiro manifesto. É o que
se pode verificar nesses fragmentos do olhar lançado por Chico Science sobre um Recife tão
próximo e ao mesmo tempo tão distante do poeta Carlos, em que “a cidade não pára, a cidade
só cresce/ o de cima, sobe/ e o de baixo, desce”, mas onde “eu me organizando, posso
desorganizar” ou “desorganizando, posso me organizar”, porque basta “um passo à frente/ e
você não está mais no mesmo lugar”.
Tanto o Recife de Chico, “onde estão os homens-caranguejo”, numa evocação ao
geógrafo pernambucano Josué de Castro, como a cidade de Carlos, de Manuel, de João, de
Joaquim, por “bela e azul e improcedente” parecem não renunciar “ao privilégio de ser bela e
azul” e permanecem, conforme anuncia a arquiteta paulistana Raquel Rolnik (1995),
“ocupando e conferindo um novo significado para um território” e “escrevendo um novo texto
(...) como se a cidade fosse um imenso alfabeto, com o qual se montam e desmontam palavras
e frases”.
Recife, a palavra, vem do árabe al-raçif e significa calçada, rua, caminho revestido de
pedras. Interpretadas mais livremente, tais definições encontram analogia no vocábulo tupi
paranampuca, ou paranambuca, isto é: pedra furada, quebra-mar, arrecife, enfim; palavra
que, aportuguesada, deu nome ao Estado do qual a cidade de Carlos veio a ser a capital. O
Recife assim, cidade, espaço de múltiplas convivências por onde o poeta trafega como
cidadão comum encontra também, através da poesia, substância para a sua própria
significação. Antimusa para alguns, “metade roubada ao mar, metade à imaginação”, fez-se
musa e cidade para o poeta Carlos, recifissignificada:
MARINHA
Tu nasceste no mundo do sargaço
Da gestação de búzios, nas areias.
Correm águas do mar em tuas veias,
Dormem peixes de prata em teu regaço.
Descobri tua origem, teu espaço,
Pelas canções marinhas que semeias
Por isso as tuas mãos são tão alheias,
Por isso o teu olhar é triste e baço.
Mas teu segredo é meu, ah não me digas
Onde é tua pousada, onde é teu porto
Nas fronteiras da linguagem ǀ 198
E onde moram sereias tão amigas.
Quem te ouvir, ficará sem teu conforto
Pois não entenderá essas cantigas
Que trouxeste do fundo do mar morto.
Referências
CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da Modernidade.
Tradução de Heloísa Pezza Cintrão e Ana Regina Lessa. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 1998.
COUTINHO, Edilberto. O Livro de Carlos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983.
FREYRE, Gilberto. Prefácio in PENA FILHO, Carlos. Livro Geral. Recife: Editora Liceu,
1999.
HERSCHMANN, Micael. O funk e o hip hop invadem a cena. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,
2000.
KONDER, Leandro. Um olhar filosófico sobre a cidade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1994.
PAZ, Octavio. A outra voz. Tradução Wladyr Dupont. São Paulo: Siciliano, 1993.
PENA FILHO, Carlos. Livro Geral. Recife: Editora Liceu, 1999.
ROLNIK, Raquel. O que é cidade. São Paulo: Brasiliense,1995.
ZERO QUATRO, Fred; L. Renato. Manifesto Mangue. Disponível na Internet:
www.hotlink.com.br/users/lucasm/cultura.htm Data de acesso: 2 jun 2000.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 199
DIALOGISMO INTERDISCURSIVO E INTERLOCUTIVO:
COMENTÁRIOS ONLINE NO FACEBOOK [Voltar para Sumário]
Ana Carolina A. de Barros (UFPE)
Introdução
Entendemos que as relações comunicativas são dadas mediante a palavra, em
construções textuais elaboradas e presentes em diferentes esferas sociais, mas também que
toda palavra é proferida de alguém para alguém. Ao mesmo tempo em que essa palavra busca
um destinatário, apresenta eco de outros já-ditos presentes na memória interdiscursiva de uma
comunidade “marcada” social e historicamente.
Considerando, para tanto, que também existe uma “realidade” de atualizações e (re)
significações é que este trabalho se constrói, pois partimos da ideia que há uma
heterogeneidade que é construída linguisticamente e que faz dessa rede, múltipla e
multifacetada, estar embebida em relações dialógicas, seja entre interlocutores ou entre
discursos, em situações reais de uso, configurando uma natureza que aponta para o irrepetível
em uma cadeia enunciativa não marcada por início e fim.
O trabalho aqui desenvolvido encontra-se organizado em três sessões: “Da
comunicação humana: aspectos da enunciação”; “Do diálogo entre interlocutores e
discursos”; “Gênero e circulação social: o interdiscursivo e o interlocutivo nos comentários
online no Facebook”, assim elaborado em uma tentativa de compreender como o processo
dialógico está intrinsecamente presente nas enunciações entre discursos e entre os
interlocutores. Para tanto, tomou-se como corpus analítico os quatro comentários online
postados na fan page da Época, em relação ao suicídio assistido da americana Brittany
Maynard, e como pressupostos teóricos recorreu-se a: Bakhtin (1997;2006) Benveniste
(1995;2005), Cunha (2000;2011), Flores (2012) e Santos (2013).
1 Da comunicação humana: os aspectos da enunciação
Nas fronteiras da linguagem ǀ 200
A comunicação humana dá-se mediante o verbo, a palavra, não existindo, porém, sem
considerar nas extremidades os interlocutores, aqueles que seriam, de maneira simplista, a
cargo de uma compreensão ainda que “rasteira”, o “autor” do discurso enunciado e o
“receptor” desse discurso, mesmo que situado no plano “imaginário” e do ideal, são
necessários e cruciais para que as instâncias das produções enunciativas, instauradas em
diferentes momentos, contextos, situações e historicamente constituídas, ganhem vida e
realizem-se no plano da linguagem, mediados por uma língua que diz e é utilizada por
enunciadores diversificados.
Por isso, é só pela e na linguagem que o homem institui-se como sujeito, veiculando
informações, criando visões de mundo e por ela sendo constituído, mas é através dela
também, permanentemente configurado pelos óculos sociais que demandam e possibilitam
certas realizações por meio das interações que convergem sempre em direção a um outro que
não eu, sendo esse, preenchido com papeis e cargas de valorativa significação, já que o meu
dizer dirige-se socialmente e estabelece constante interação com a palavra do(s) outro(s).
Considerando este quadro, começa-se a pensar em enunciação, em palavra, palavra
cheia de vida e, por isso, flexível, plástica, dinâmica e mutável; palavra que existe em
momento único, particular e no irrepetível da enunciação, em que o sujeito é considerado e
reconhecido, já que a enunciação é realizada ou configurada em momentos “reais”, ou seja,
em situações cotidianas de interlocução sob condições concretas, e indicando que a palavra
dita é sempre nova, e embora configure-se como a “mesma palavra”, já , no entanto, constitui-
se em uma outra instância de significação, pois o “aqui”, “agora” e “eu/tu” são únicos (cf.
BENVENISTE 1995; 2006).
Bakhtin, em seus estudos, enuncia dizendo que as palavras partem de um “um” para
“outro um”, o nosso interlocutor, e que, para tanto, é importante considerar uma série de
questões circundantes que podem tornar-se cruciais para que a enunciação seja significativa,
pois leva-se em conta que o importante já não é mais o somente dito, mas o porquê do dito.
Assim, também salienta que “toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo
fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui
justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte” (2006, p. 115).
É, pois, essa palavra enunciada que interessa, a palavra que se realiza e atualiza na
interlocução, atendendo a propósitos sociais mais imediatos e ao meio no qual emerge, esfera
fundamental para a configuração da enunciação, posto que ela não é desprendida do território
em que a faz fértil e no qual se anuncia.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 201
A enunciação é completamente dependente da situação social na qual está inserida, de
um meio social que a envolve e envolve o indivíduo; é fenômeno realizado entre
interlocutores quer reais quer potenciais, mas sempre necessários para a construção de uma
ponte em que de um lado está situado o “eu” e do outro lado um “tu” que tornam essa
realidade fundante para a força enunciativa.
Tal realidade dialógica é essencial para a linguagem, pois este diálogo, entendido
como todas as possibilidades de trocas verbais comunicativas que ocorrem nas interações, em
fluxo contínuo, múltiplo, no entanto, completo para aquela instância enunciativa, está em
evolução e é pertencente a um corpo socialmente constituído, e como bem ressaltou Bakhtin
(2006, p.130), “a estrutura da enunciação é uma estrutura puramente social. A enunciação
como tal só se torna efetiva entre falantes”.
O sujeito desconsiderado por Saussure, quando nos referimos aos signos estudados em
uma cadeia que estabelece “exclusivamente” relações internas, assume aqui um papel de
relevância, pois entende-se a importância de considerar os elementos que estão fora da língua,
isto é, situados em uma exterioridade. O sujeito, agora salientado, não um sujeito
individualizado e limitado às suas próprias fronteiras, e sim, situado temporalmente e
pertencente a um quadro histórico-social-ideológico que torna possível a emersão de sentidos
em uma interlocução; não estando, porém, o sentido na palavra, ele é construído na relação
entre interlocutores, nos jogos possíveis, em uma “ação esperada”, em atitude de
responsividade que mostra um sujeito agente, mantenedor de uma relação com todos os
diálogos, discursos e caminhos possíveis que situam esse locutor em um fio, apontando para o
antes, já-dito, e para o depois, o novo.
É salutar dizer que esse aspecto do sentido, em Bakhtin, como afirmar Flores (2009,
p.154), se instaura sobre “uma tensão permanente entre a estabilidade do sistema e a
instabilidade da enunciação”, isto é, direciona para o fato do que consideramos consolidado
no signo, nas possibilidades do sistema ao qual recorremos linguisticamente, mas também ao
seu aspecto de flexibilidade, dependente da situação de enunciação, sugerindo, assim, que há
uma dimensão sendo tecida e/ou construída na própria interlocução.
Torna-se, então, importante compreender que a enunciação depende, para sua efetiva
constituição, de acordo com Benveniste (1995), de um “eu” que é construído em uma
relação de intersubjetividade com o “tu”, como também o fato de essas palavras nunca serem
as mesmas, posto que atualizadas por pertencerem a momentos/situações enunciativas
diferentes, ou é como Bakhtin salienta (2006),quando refere-se ao irrepetível e ao novo em
Nas fronteiras da linguagem ǀ 202
uma cadeia com outros enunciados que devem ser tomados em articulação com o que está
fora da língua para construção do “tema”, caracterizando-se pelo que é individual e único.
2 Do diálogo entre locutores e discursos
O enunciado na perspectiva bakhtiniana, como reflexo das relações interlocutivas que
se efetivam em situações concretas, não existe apenas enquanto um sistema invariável ou
rígido, que estaria em essência ligado à significação, ao intralinguístico, mas, sim, enquanto
uma zona de contato entre a realidade e a língua, ligado, pois, a instância de produção.
Não há, nesses termos, uma língua separada de um caráter idelogicamente construído,
isto é, uma língua dotada de neutralidade, posto que lidamos com uma realidade histórica e
social em que os dizeres estão intrinsecamente articulados a outros ditos em uma cadeia
dialogicamente constituída de enunciados, e que como o próprio Bakhtin (1997, p.292) aponta
“cedo ou tarde, o que foi ouvido e compreendido de modo ativo encontrará um eco no
discurso ou no comportamento subsequente do ouvinte.”, ou seja, mesmo que haja uma ação
responsiva retardada, em algum momento ou em algum grau serão encontradas ressonâncias
daquilo que foi compreendido quer através do que se ouve/diz quer através daquilo que se
lê/escreve.
Dessa maneira, compreende-se que a palavra do outro está inserida em graus
diferentes e plurais em todos os enunciados, formando cadeias dialógicas, não havendo, por
assim dizer, um enunciado que seja o gerador de todos os outros, como também não é
possível de maneira ampla determinar ou delimitar a finitude de tais enunciados.
Os interlocutores são, na verdade, participantes de esferas sociais e encontram-se
historicamente situados, dessa maneira, participam de um processo ocupando a condição de
agentes. Assim, a visão e o pensamento de Bakhtin direcionados à enunciação se revestem do
aspecto sociointeracional, pois, potencialmente, o sujeito é constituído e moldado nas relações
com os outros por meio da linguagem.
O dialogismo ou o dialógico, aqui entendido, poderia aproximar-se daquilo que Clark
& Holquist (1998, p.36) definem por diálogo como “o extensivo conjunto de condições que
são imediatamente moldadas em qualquer troca real entre duas pessoas, mas não exauridas em
semelhante intercâmbio”, ou seja, há sempre trocas que são efetuadas por interlocutores e
respostas que são dadas e se perpetuarão em outras realidades enunciativas que não findam na
corrente de enunciações, mas que atendem a possibilidades de respostas àquilo que foi ou
àquilo que será em outras relações de interlocução.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 203
Seria, então, o dialogismo próprio à linguagem humana, posto que ela configura-se
heterogênea, múltipla; é o “lugar” em que os discursos são construídos através dos discursos
dos outros como uma forma de herança passível de recuperação na comunidade da qual se faz
parte, pois somos sujeitos construídos na interação, na linguagem e revestidos por contextos.
Dentro desse quadro, daquilo que é estabelecido como primazia nos estudos de
Bakhtin e sua inclinação para uma heterogeneidade discursiva, entre aquilo que se diz,
instaurando-se também a esfera do “já-dito”, envolvendo a comunicação verbal humana, o
discurso seria construído sobre outros discursos, fundamentando-se nos dizeres de outros que
são (re)elaborados e ressignificados, entretanto, constitutivos de uma “memória discursiva”.
Poderíamos, assim, a partir do que se diz e do “já-dito”, elencar dois tipos de
construções dialógicas mais específicas: o dialogismo interlocutivo e o dialogismo
interdiscursivo. Segundo Cunha e Freitas (2009), essas duas “estruturações” dialógicas
refletem-se pelo caráter mesmo heterogêneo da linguagem, em que “o dialogismo
interdiscursivo se dá de forma marcada, através de ‘ilhas textuais’”, e o dialogismo
interlocutivo invocaria “a memória discursiva do leitor para outros eventos discursivos”. Dito
de outra maneira, há um processo que se volta em uma relação dialógica para o “já-dito” e
outro para um determinado interlocutor, real ou virtual, ao qual a minha enunciação é dirigida.
Essas palavras, os já-ditos, seriam “resultado” daquilo que foi construído no percurso
histórico, ideológico, social de uma comunidade, não são, portanto, neutras e nem se
encontram alojadas no seu potencial enquanto “sistema”, “estrutura”, ou seja, estão
embebidas do discurso do outro, do que é anterior. Já considerando o que se refere ao
interlocutivo, pode-se dizer que não há enunciação desprendida de um sujeito com o qual se
interage, isto é, a enunciação é destinada à alguém, assim como esse mesmo dizer é revestido
pela possibilidade de quem constitui o outro, em uma espécie de réplica, isto é, de uma atitude
responsiva em prol da compreensão, o que pode apontar para aquilo que Barthes (1978, apud
AUTHIER-REVUZ, p.9, 2011) pertinentemente marca :“ o homem falante [...] fala a escuta
que ele imagina para sua própria palavra”.
Bem se vê, então, que esses “dois dialogismos”, ou uma heterogeneidade na
linguagem, é constitutiva do próprio dizer, faz parte da natureza enunciativa que se revela
dialógica como condição, que reporta à uma memória e ao mesmo tempo instaura-se ou
institui-se na interação com o outro, com um interlocutor. Ao mesmo tempo mostra-se como
resposta ao “já-dito” e como previsão em resposta à compreensão do nosso outro interlocutivo
e que, mesmo mostrando-se distintas, podem estabelecer relações estreitas.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 204
3 Gênero e circulação social: o interdiscursivo e o interlocutivo nos comentários
online no Facebook
A comunicação humana realiza-se por meio enunciados que se configuram em
materialidades textuais, quer sejam orais ou escritos, em todas as dimensões e em diversas
instâncias das esferas discursivas. No entanto, tais organizações enunciativas são dadas
mediante os gêneros, compreendidos enquanto tipos relativamente estáveis de enunciados (cf.
BAKHTIN, 1997), pois eles passam por transformações ao longo do tempo, adaptando-se às
exigências históricas e comunicativas, porém mantêm a essência e os objetivos interacionais,
aquilo que permite aos falantes reconhecê-los e fazerem uso quando detentores de um
conhecimento sobre suas particularidades e funções.
Os gêneros constituem-se, assim, em entidades comunicativas pertencentes a práticas
sociais já estruturadas, isto é, culturalmente construídas, porém passíveis de dinamicidade,
conforme as necessidades e mudanças sócio-históricas. Dentro dessa dinâmica, escolhemos
para a análise os comentários online postados no Facebook, uma Rede Social. Eles, os
comentários, configuram-se como um constructo, pois socialmente elaborados e
compartilhados, isto é, são produtos socioculturalmente formados, e pertencem a uma
dinâmica interlocutiva atual que integra, agora, o uso em certos “Ambientes virtuais”.
O Facebook possibilitou a construção de um corpus interessante para demonstrar
como os diálogos entre os interlocutores e os diálogos entre discursos se efetivam nas práticas
enunciativas, ou seja, como os ditos estão ligados em uma cadeia discursiva através dos
comentários online.
Os comentários a serem analisados estavam inseridos dentro da esfera jornalísticas e
remetem a um momento discursivo especial. Compreende-se o “momento discursivo”, nas
palavras de Moirand (2007 apud CUNHA, 2011, p.122), como “a diversidade de produções
discursivas que surgem na mídia a propósito de algo que ocorreu no mundo e que se torna na
e pela mídia um acontecimento”.
Assim, o acontecimento eleito refere-se ao suicídio assistido1 da americana Brittany
Maynard, de 29 anos, em 1o
de novembro de 2014, que sofria de câncer no cérebro, em estado
terminal. A análise feita, baseia-se, como já dito, em comentários. Estes, porém, foram
1 Acontece quando paciente, em estágio terminal, não consegue concretizar sozinho seu desejo/vontade de
morrer, solicitando o auxílio a uma outra pessoa. A assistência ao suicídio é geralmente feita por prescrição
medicamentosa através de doses letais, por meio da indicação de uso da substância e de maneira indolor; a
administração, no entanto, é feita pelo próprio paciente.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 205
retirados da fan page da Época, no dia 03.11.14, quando a notícia foi vinculada. Abaixo, o
print da notícia.
Figura 1- Notícia na fan page da Época
(Fonte: Facebook – nov/2014)
Com a veiculação da notícia da morte da americana, Brittany, que optou por suicídio
assistido, muitos comentários foram publicados no Facebook como manifestação dos usuários
dessa Rede Social em relação ao fato. Partimos da ideia de que esses comentários na fan page
da Época, por serem enunciados, estão articulados e intrinsecamente relacionados como elos
que fazem parte de uma corrente discursiva contínua e formadora, assim, de uma grande rede.
Tomamos os pressupostos de Bakhtin para proceder às análises, dentro de um quadro
que se detém ao dialogismo interdiscursivo e ao interlocutivo, já que nessa teia, os discursos
remontam tanto a outros discursos previamente estabelecidos e presentes na memória de uma
determinada sociedade, como também tais discursos, por não acontecerem no vácuo,
direcionam-se a outros, nossos “outros comunicativos”, ou seja, estão indexados a um
interlocutor, real ou não, mas sempre “construído” em uma posição que suscitaria
responsividade.
Tomamos como amostra de análise, para “verificação” daquilo que acontece
efetivamente através dos comentários postados, quatro exemplares selecionados mais ou
menos aleatoriamente. Ao que se segue:
Figura 2- Comentário 1
(Fonte: Facebook- nov/2014)
Nas fronteiras da linguagem ǀ 206
Considerando esse comentário, poderíamos observar que o que aí se mostra enunciado
é uma relação diretamente estabelecida entre interlocutores em uma atitude “imediatamente”
responsiva, quando o “autor” com comentário 1 manifesta-se ao dizer que “já começou o
contra e o favor”. Vê-se, dessa maneira, uma tentativa de complementação, confronto,
negação ou mesmo um não julgamento perante aquilo que foi vinculado, a morte assistida ou
suicídio assistido, e tal posicionamento parte em direção a um outro ou a muitos “outros”. No
final do comentário, seu “autor” acaba assumindo um posicionamento que efetivamente
gerará outras respostas, ao dizer “Que esteja melhor. Apenas isso. ”, abrindo prontamente
possibilidade para que sequências de respostas sejam dadas. Aqui, portanto, encontramos uma
ponte clara com aquilo que Bakhtin (1997; 2006) sustenta em seus estudos, ao dizer que nos
enunciados é que as relações dialógicas tornam-se possíveis, pois esses enunciados espalham-
se através de movimentos contínuos e sucessivos, apoiando-se, contudo, também em relações
historicamente situadas.
O comentário aqui assinalado, comentário 1, certamente funcionará como “gatilho”
para o surgimento de respostas que serão destinadas ao próprio comentário 1 ou a “outros”
comentários anteriormente publicados, pois ao emitir um juízo prenhe de valor, explicitando-o
através de suas escolhas, mais ou menos conscientes, falando de um determinado lugar,
deseja-se encontrar no outro também respostas, isto é, verificamos a partir dessa
responsividade a presença do dialogismo interlocutivo. Pela natureza dos comentários online
e seu abrigo, o Facebook, há uma estreita proximidade entre os pares, dada a dinâmica do
gênero, coincidindo como nos dizeres bakhtinianos em “ecos” em que “cedo ou tarde, o que
foi ouvido e compreendido de modo ativo encontrará um eco no discurso ou no
comportamento subsequente do ouvinte” (BAKHTIN, 1997, p.292), e como é passível de
verificação no comentário seguinte.
Figura 3- Comentário 2
(Fonte: Facebook- nov/2014)
No comentário 2 encontramos relações também com os já-ditos, não exclusivamente
com o posicionamento imediatamente anterior, mas sim, configurando-se como participante
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 207
ou mais um nó em uma eterna cadeia dialogal que se mostra estreitamente articulada e que,
por isso, está atrelado a uma série de discursos elaborados e (re)atualizados, pois como bem
salienta Bakhtin (ibidem p.414-415) “Não há uma palavra que seja a primeira ou a última, e
não há limites para o contexto dialógico (este se perde num passado ilimitado e num futuro
ilimitado)”. Observamos, então, que esse enunciado surge também em resposta a dizeres
anteriormente construídos, e organizado em uma espécie de breve narrativa, “pincela” uma
experiência pessoal e diretamente vivenciada. O interlocutor posiciona-se em relação à atitude
de Brittany Mayanard ao declarar que a disposição dela foi “uma decisão muito corajosa”,
agindo interlocutivamente, mas não só.
O “autor” do comentário 2 parece mostrar-se estrategicamente favorável à ação da
americana, configurando-o como um ato de bravura, o que sugeriria o seguinte: aquele que
comete suicídio assistido, pelas circunstâncias ou estado terminal, desde que dotado de
consciência, teria o direito em optar pelo suicídio. O “autor” ainda do comentário 2, inclinar-
se-ia, com certa adesão a essa prática, pois, segundo suas percepções: “a pessoa fica em uma
situação que ninguém jamais gostaria de ver [...] é terrível ficar em cima de uma cama”.
Poderíamos apontar, no comentário 2, também ressonância/consonância/eco a outros
discursos, como os das entidades defensoras do “direito à morte” ou mesmo do que
configuraria o discurso de dignidade e autonomia dos pacientes humanos que se encontram
em estado terminal, ou seja, encontramos também evidenciado o dialogismo interdiscursivo.
Há, sem dúvidas, a necessidade de os interlocutores ativarem uma memória discursiva que
contribuirá de maneira tal para os processos de significação.
O comentário 3 parece, então, reconhecer, de alguma forma, aquilo que estaria
presente na memória interdiscursiva, mediante as relações estabelecidas com o comentário 2,
por exemplo, quando enuncia, dizendo:
Figura 4 – Comentários 3 e 4
(Fonte: Facebook- dez/2014)
No comentário 3, observa-se uma atividade enunciativa bem marcada e com
posicionamento claramente definido: “suicídio não tem perdão, com certeza não foi pro reino
Nas fronteiras da linguagem ǀ 208
dos céus”, em resposta aos interlocutores com os quais está interagindo nesse contexto
discursivo, dialogismo interlocutivo, mas além disso, pois é também possível recuperar a base
“ideológica” de onde emergiria seu discurso. O “autor” do comentário 3 fundamenta-se, em
linhas gerais, a preceitos cristãos, configurando um exemplo de dialogismo interdiscursivo
quando se refere ao suicídio, pois a vida, para o cristianismo, é crida enquanto dádiva/presente
de Deus, posta nas mãos dos homens para que dela cuidem, cabendo, apenas a Deus, crido
também como “fonte da vida”, Aquele “quem tira a vida e a dá”.
O comentário 4, como em resposta mais “diretamente” ligada ao que é exposto pelo
comentário 3, mostra-se inconformado e constrói seu enunciado através de palavras repletas
de valor, ideologia e carga semântica, já que “sem acento apreciativo, não há palavra”
(BAKHTIN, 2006, p.136), fazendo-a dela viva. O comentário 4 também se liga a outros já-
ditos, retomando, certamente, palavras de outros nessa heterogeneidade e dinâmica
interlocutiva e, por isso, dialógica. Em atitude responsiva e mais imediata ao que exposto de
forma contundente pelo comentário 3, faz o autor do quarto comentário taxar o comentarista
3 de doente, manifestando-se interlocutivamente.
Além disso, e em certo grau, poderíamos verificar que o comentário 4 também ativa
um discurso de viés cristão quando enuncia o seguinte: “quem é digno de quê?..E dobre seus
joelhos, ore”, pois, de acordo com a tradição bíblica, diz-se que não são os humanos dignos de
coisa alguma, pois pelo pecado, destituídos estariam da glória de Deus. Assim, não há que se
julgar, recuperando, assim, relações dialógicas de ordem do interdiscurso.
O que percebemos, ainda que em breve análise, é que todo discurso encontra pontes
com discursos anteriores, discursos esses que fazem parte da memória de uma determinada
cultura ou de um determinado grupo social e que ecoam em outros dizeres, configurando-se
como um dialogismo interdiscursivo, mas não só, pois foi possível, de maneira mais explícita,
entender que esses ditos estão orientados ou orientam-se a alguém, configurando-se como
dialogismo interlocutivo.
Essas configurações dialógicas tornaram-se mais facilmente observáveis por meio dos
comentários online e nas possibilidades imanentes das réplicas. Com nossos interlocutores,
nossos outros, travamos sempre diálogos e formamos teias, colaboramos com a tessitura de
um fio ininterrupto no qual somos pontos da trama em um tecido discursivo e, por isso,
dialógico, pois inerente à linguagem humana é.
5 Considerações finais
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 209
Consideramos, neste artigo, os comentários online como fonte que auxiliaria a
“revelar” o dialogismo presente em diversas instâncias discursivas, pois ele é característico da
linguagem humana que se utiliza de um sistema completamente articulado e vinculado à
diversidade de práticas sociais interacionais. Essas são historicamente situadas e emergem
através dos já-ditos, em uma dinâmica que ao mesmo tempo em que se revela como resposta a
outros enunciados e funciona como gatilho para outras enunciações, situam-se em uma
memória discursiva, em que vozes de outros manifestam-se.
Passamos a verificar, através desses usos reais, mediante os comentários no Facebook,
um verdadeiro trânsito de vozes que ao circular, cruzam-se, gerando uma cadeia de
responsividade, marca da relação dialógica, em que fluxos resultantes de direções diversas
remetem para o antes e para o depois na construção enunciativa, favorecendo a morada das
marcas do socialmente constituído e elaborado, propiciando a formação de uma rede
discursiva ininterrupta em que essas vozes não são consensuais, mas mostram-se em
“verdades” quer através do dialogismo interlocutivo quer mediante o dialogismo
interdiscursivo, passível de verificação em comentários online, como os aqui selecionados a
partir de suas publicações, em uma dinâmica construídas pelo uso da linguagem.
Referências
AUTHIER-REVUZ. Jacqueline. Dizer ao outro no já-dito: interferências de alteridades –
interlocutiva e interdiscursiva – no coração do dizer. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 46, n. 1,
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http://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/5185/5085. Acesso em: 26/12/2014
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FLORES, Valdir do Nascimento; TEIXEIRA, Marlene. Introdução à Linguística da
Enunciação. São Paulo: Contexto, 2012.
FREITAS, Virgínia Célia Pessoa de; CUNHA, Dóris de Arruda C. de. Dialogismo
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Iniciação Científica e I Congresso de Iniciação em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação,
2009, Recife. Resumos do XVII Congresso de Iniciação Científica e I Congresso de Iniciação
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E%29/conic/n_pibic/80/098011676SCNP.pdf Acesso em:27/12/2104
PANCERA, Nelzi Kszan. Linguagem, Enunciação, Enunciado – Ponto de partida para o
ensino de Língua Portuguesa. EDUCERE – Revista da Educação, Curitiba, v.2, n.1, jan/jun.
2002. Disponível em: http://revistas.unipar.br/educere/article/view/834 Acesso em:
26/12/2014
SANTOS, Eliane Pereira dos. O gênero comentário online: dimensão social e verbal. 2013.
194f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Centro de Ciências Humanas e Letras,
Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2013.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 211
O CONCEITO DE GÊNEROS TEXTUAIS NO ENSINO
MÉDIO: O QUE DIZEM OS LIVROS DIDÁTICOS DE
LÍNGUA PORTUGUESA? [Voltar para Sumário]
Ana Cátia Silva de Lemos
Maria Margarete Fernandes de Sousa
Introdução
O ensino de gêneros no ensino brasileiro tem ganhado espaço, a partir das
concepções adotadas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Esses
documentos pautam o ensino da língua materna e indicam o uso dos gêneros como um
meio para o desenvolvimento da competência textual dos alunos.
Com base nesse aspecto, os livros didáticos de língua portuguesa se apoiam no
uso dos gêneros como forma de tornar o aprendizado uma prática interativa e
contextualizada, como indicam os PCNs.
Para chegar ao conceito de gêneros, adotado pelos PCNs, é preciso investigar o
conceito de texto defendido por esse documento. Pois há uma relação deste com a
definição de gênero pregada.
Segundo os PCNs do ensino médio brasileiro, o texto é o resultado dos
“diálogos” que faz com as diversas situações que seus interlocutores vivenciam. Mas
precisamente seu sentido, segundo os Parâmetros, depende dessas relações:
O sentido de um texto e a significação de cada um de seus componentes
dependem [...] da relação entre sujeitos, construindo-se na produção e na
interpretação. Essa parece ser a condição mesma do sentido do discurso,
obrigando-nos a considerar não apenas a relação entre interlocutores, mas
também a desses sujeitos no meio social (p.44).
Nota-se que essa definição é “banhada” pelo conceito bakhtiniano de dialogismo
que norteia a concepção de gênero do teórico russo. Acreditamos que a definição de
texto adotada pelos documentos oficiais defende esse ponto de vista, pois
posteriormente patrocinará o conceito de gênero como formas materializadas dos textos,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 212
que constituem conjuntos caracterizados pela estrutura composicional, traços estilísticos
e aspectos sociais.
Ressaltamos que os documentos analisados neste trabalho referem-se aos PCNs
do ensino médio, pois é nesta etapa escolar que o ensino com gêneros é mais priorizado,
sobretudo devido ao Exame Nacional do Ensino Médio, que foca suas competências no
aprendizado a partir de práticas sociais do aluno.
O conceito de gêneros nos PCNs não adota um posicionamento sobre que
gêneros devem ser priorizados no ensino médio: gêneros textuais ou gêneros do
discurso? Comentamos esse aspecto, pois foi um dos problemas encontrados na
concepção de gêneros dos livros didáticos analisados.
Por isso, julgamos importante investigar a concepção de gêneros adotada e
ensinada pelos livros didáticos selecionados. Os livros analisados foram escolhidos a
partir do guia do Programa Nacional do Livro Didático – 2014 (PNLD-2014).
São, portanto, coleções modernas que já passaram pela avaliação inicial do
Ministério da Educação. Neste trabalho avaliamos as concepções de três livros de três
coleções diferentes. Analisamos os seguintes manuais:
1. Coleção Viva Português – Elizabeth Campos; Paula Marques Cardoso;
Sílvia Letícia de Andrade. Volume 1 ( 1ºsérie do ensino médio);
2. Coleção Língua portuguesa: linguagem e interação – Carlos E. Faraco;
Francisco M. Moura; José H. Maruxo Jr. Volume 1 ( 1ºsérie do ensino
médio);
3. Coleção Português Linguagens – William R. Cereja; Tereza C.
Magalhães. Volume 1 ( 1ºsérie do ensino médio).
Escolhemos essas coleções por serem algumas das mais selecionadas em anos
anteriores do PNLD, foram ainda escolhidos apenas o volume um de cada coleção, pois
são nestes volumes que estão as informações e conceitos iniciais sobre gêneros.
Em nossa análise podemos observar que apenas uma das coleções refere-se à
gêneros textuais e as outras à gêneros do discurso, apesar de alguns autores não
demarcarem essa diferença, ela é ainda motivo de discussão no meio acadêmico. Nos
livros didáticos observamos que uma coleção não faz distinção entre essas abordagens
de gênero, podendo ocasionar uma dificuldade na apreensão do conceito.
Além disso, é possível perceber, nos conceitos apresentados, diversas “vozes” de
autores conceituados nos estudos sobre gêneros, tais como Swales, Bazerman e,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 213
obviamente, Bakhtin. Algumas vezes esses conceitos misturam essas teorias de tal
forma que a definição de gêneros fica comprometida.
Para que isso fique mais claro, é necessário explicar melhor as abordagens de
gênero que encontramos nos conceitos dos livros analisados, por isso abaixo listamos e
apresentamos algumas dessas teorias.
Teorias de gênero
Um dos autores que ressoam nas definições encontradas nos livros didáticos é
John M. Swales, o modelo que ele propõem para a análise de gêneros está galgado em
pressupostos linguísticos e nas práticas sociais que envolvem esses pressupostos, ou
seja, ele não considera apenas os aspectos linguísticos, mas também as influências do
ambiente social em que os gêneros estão inseridos.
A definição de gêneros que Swales (1990) vai utilizar está embasada em cinco
critérios de análise: classe de eventos comunicativos; propósito comunicativo;
prototipicidade; lógica própria dos gêneros; comunidade discursiva.
Segundo Hemas; Biasi-Rodrigues (2005), esses critérios são definidos da
seguinte forma:
“O gênero é uma classe de eventos comunicativos, sendo o evento uma situação
em que a linguagem verbal tem um papel significativo e indispensável (p.113)” Esse
evento é formado pelo participantes do discurso e têm relação direta com o ambiente em
que o discurso é produzido.
Um dos conceitos mais importantes para a teoria de Swales (1990) é a definição
de propósito comunicativo. Ainda segundo as mesmas autoras, “os gêneros têm a
função de realizar um objetivo ou objetivos”(HEMAS;BIASI-RODRIGUES, p.114)
apesar do autor reconhecer que os propósitos nem sempre estão explícitos nos textos, os
textos sempre apresentarão intenções que os identificarão em uma classe ou
comunidade.
O critério de prototipicidade para Swales (1990) considera que os gêneros têm
características comuns, como traços linguísticos ou sociais, por exemplo. A definição de
gêneros apresentada pelos PCNs, como vimos, aponta marcas textuais de
reconhecimento dos gêneros.
O quarto critério sustenta que os gêneros têm uma lógica própria que é
reconhecida pela comunidade que o utiliza. Ou seja, segundo Hemas; Biasi-Rodrigues
Nas fronteiras da linguagem ǀ 214
(2005, p.114) existem algumas convenções esperadas e manifestadas no gênero que são
realizadas em função de um propósito.
O quinto critério considera a terminologia criada pela comunidade discursiva
para um fim específico e próprio. Para Swales (1990), a análise de gêneros deve levar
em consideração o comportamento comunicativo dos membros, pois o nome dos
gêneros pode se manter estável, enquanto o gênero em si muda suas práticas sociais.
Para finalizar a caracterização da abordagem de Swales, é crucial apresentar o
conceito de comunidade discursiva, que norteia sua teoria. Segundo Hemas; Biasi-
Rodrigues (2005, p.115):
A noção de comunidade discursiva é empregada em relação ao ensino de
produção de texto como uma atividade social, realizada por comunidades que
têm convenções específicas e para as quais o discurso faz parte de seu
comportamento social.
Segunndo Swales (1990) a comunidade discursiva pode ser caracterizada pelos
seguintes critérios: Objetivos públicos em comum; Mecanismos de comunicação
próprios entre os membros da comunidade; Utilização dos mecanismos de comunicação
para prover a informação; Um conjunto de gêneros utilizado para realização específica
de seus objetivos; A existência de um léxico específico; Uma hierarquia nos membros
que estabelece conhecimento mais elaborado em uns do que em outros.
Outra teoria de gêneros que podemos observar nos conceitos dos livros didáticos
analisados foi o conceito de gênero como ação social de Charles Bazerman e Carolyn
Miller. Bazerman (2011) critica o conceito de Swales (1990), pois nesta abordagem o
gênero é visto de maneira resumida, em uma fórmula textual, para Bazerman e Miller o
gênero deve ser visto como ação social.
A teoria de Bazerman é muito influenciada pela teoria dos atos de fala de Austin,
por isso, seu foco é a interação na comunicação. Para Bazerman (2011), quando nos
comunicamos textualmente há sempre grande probabilidade de sermos mal
interpretados para diminuir essas possibilidades Bazerman acredita que estabelecemos
padrões comunicativos, que se tornam reconhecidos em nosso meio.
Assim, Bazerman (2011, p.32), estabelece que “As formas de comunicação
reconhecíveis e autorreforçadas emergem como gêneros”. Logo ele estabelece que:
Gêneros são [...] fatos sociais sobre tipos de atos de fala que as pessoas
podem realizar e sobre os modos como elas os realizam. Gêneros emergem
nos processos sociais em que as pessoas tentam compreender umas às outras
suficientemente bem para coordenar atividades e compartilhar significados
com vistas a seus propósitos práticos (2011, p.32)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 215
Dessa forma, Bazerman e os seguidores dessa corrente desprezam abordagens
genéricas que não consideram o aspecto social como um dos mais fortes na definição de
gêneros, visto que para eles não adianta definir os gêneros através de aspectos textuais e
desconsiderar o ambiente social em que eles foram gerados.
Assim como Bazerman (2011), Miller (1994b) acredita que os gêneros
dependem da interação que orienta as práticas comunicativas e sociais, tornando-as
mecanismos padronizadas em nosso cotidiano. Para a autora:
O indivíduo deve reproduzir noções padronizadas de outros, sejam eles outros
institucionais ou sociais, ao passo que a instituição, sociedade ou cultura tem de
oferecer estruturas pelas quais os indivíduos possam fazê-lo (MILLER, 1994b, p.72)
Assim, a autora reafirma que gênero não é uma prática estruturada, mas uma
ação social, pois é através dela que os indivíduos podem criar padrões por meio de suas
ações e práticas reconhecidas na sociedade.
Sem dúvidas os estudos de M. Bakhtin sobre os gêneros são referência nas
pesquisas até hoje. Por ter sido pioneiro nessa área Bakhtin se tornou mais do que
referência ou um ponto de partida, ele é essencial para a compreensão de outras teorias.
Um dos aspectos que se faz necessário explicar é justamente uma das questões
que motivou este artigo, quando se fala em gêneros eles são textuais ou discursivos?
Bakhtin (2000) apresenta os gêneros do discurso como tipos relativamente estáveis de
enunciados.
Para Bakhtin (2000), o enunciado é a entidade concreta da comunicação, pois
está amparado em situações de aspectos sociais, nesse sentido o discurso para Bakhtin
representa a interação social e exemplo mais notório da comunicação humana. Logo, o
termo discurso, neste autor, não representa ideologia.
Talvez por isso Marcuschi (2008) diferencia esse termo caracterizando-o como:
“Do ponto de vista dos domínios, falamos em discurso jurídico, discurso jornalístico,
discurso religioso, etc., já que as atividades jurídica, jornalística ou religiosa não
abrangem um único gênero, mas dão origem a vários deles” (p.24).
Dessa forma, Bakhtin não objetiva construir definições fechadas sobre gêneros,
pois a única tipologia que cria é para definir gêneros primários e gêneros secundários.
Estes são os gêneros mais complexos que se utilizam dos gêneros mais simples para se
constituírem.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 216
A partir desses conceitos analisamos as definições de três manuais didáticos com
a intenção de avaliar como o conceito de gêneros é apresentado aos estudantes do
ensino médio.
Conceito de gêneros no ensino
A Coleção Viva Português (Elizabeth Campos; Paula Marques Cardoso; Sílvia
Letícia de Andrade) apresenta a noção de gêneros a partir do conceito de organização
que, conforme exposto, está presente nas concepções genéricas que consideram o
gênero sob a ótica do texto. Observemos como se dá essa conceituação no livro
didático:
Além disso, notamos que as autoras tratam dois gêneros distintos como
sinônimos, pois elas consideram que as tirinhas e a história em quadrinhos são o mesmo
gênero, quando sabemos que, dependendo da situação de comunicação, esses elementos
são gêneros distintos.
Podemos observar que há uma tentativa de definir os gêneros a partir das
características comuns que eles partilham, assim como Swales (1990) ao definir como
critério de gênero a prototipicidade. Apesar disso, a definição do livro prossegue com
características que podemos ligar a autores de correntes diferentes.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 217
Com esse trecho, observamos uma preocupação com os participantes da cena
enunciativa, fato que deve ter levado as autoras a definir gêneros sob a ótica do
discurso. No entanto, por terem se valido de características de ordem textual, podemos
encontrar um problema nessa definição: que teoria foi utilizada para a escolha do
conceito?
Além disso, as autoras classificam discurso como “um conjunto de elementos
que compõem um ato de comunicação”, sabemos que essa informação está incompleta,
pois para as teorias do discurso, ele é caracterizado como um ato representativo de uma
ideologia (PÊCHEUX,p.125).
O segundo livro analisado pertence à Coleção Língua portuguesa: linguagem e
interação – Carlos E. Faraco; Francisco M. Moura; José H. Maruxo Jr. Volume 1. Neste
exemplar, o gênero é imediatamente caracterizado como gênero do discurso.
É possível notar que, apesar de iniciar sua explicação com um título que
qualifica gênero ao discurso, os autores mencionam os objetivos das figuras
Nas fronteiras da linguagem ǀ 218
enunciativas, ou seja, mesmo ligado à enunciação, os gêneros têm uma propriedade
textual, relacionada ao propósito comunicativo.
Mesmo tendo, inicialmente, relacionado os gêneros ao discurso. Os autores
prosseguem sua definição e usam indistintamente os termos gênero textual e gêneros do
discurso.
O termo “esferas de circulação” nos remete ao conceito de comunidades
discursivas de Swales (1990). O termo pode fazer referência também às esferas
comunicativas, mencionadas por Bakhtin/Voloshinov (1981), no entanto as esferas
mencionadas por este autor estão vinculadas mais a critérios discursivos/ideológicos, o
que não necessariamente se assemelha aos exemplos do livro didático.
O terceiro manual analisado pertence à Coleção Português Linguagens –
William R. Cereja; Tereza C. Magalhães. Neste livro, observamos que os autores
optaram por definir gêneros com conceitos da abordagem sociorretórica, pois, além de
qualificar os gêneros como do texto, os autores fazem uma breve diferenciação entre
gêneros textuais e sequências textuais.
Julgamos pertinente essa distinção, uma vez que, na história da educação
brasileira, havia uma grande problemática em torno disso. Com esse exemplo,
observamos que as diferenças, em torno desses termos, podem está bem estabelecidas.
Para os autores dessa coleção, uma das características do gênero textual é “a(s)
sequência (s) textual (is) predominante (s)”, esse fato chamou nossa atenção, dado que
nas outras coleções nada foi mencionado a respeito.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 219
Notamos que conceitos importantes como propósito comunicativo são
retomados nessa definição, que também elenca as situações e os contextos como
características importantes na definição de gêneros. Ao prosseguir com a explicação os
autores citam, indiretamente, Bakhtin, ao mencionar “formas mais ou menos estáveis”.
É importante ressaltar que este manual procura definir gêneros, a partir do uso e
das diversas situações de comunicação que a sociedade nos apresenta, ele tenta também
conceituar gêneros por meio de critérios sociorretóricos, fato que julgamos como uma
estratégia didática no ensino, para que talvez os alunos se confiem em características
textuais no reconhecimento dessas práticas.
Nesse caso, é imprescindível o papel do professor pra esclarecer que sem o
aspecto social e as convenções culturais o gênero não poderia sequer existir, sendo
necessário, portanto, enfatizar a união dessas duas marcas.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 220
Considerações finais
A partir dos dados apresentados, acreditamos que a confusão terminológica que
existe no âmbito acadêmico sobre a definição de gêneros (do texto ou do discurso) é
reproduzida no meio escolar, de maneira ainda mais delicada, pois nesse ambiente
diversas teorias são mescladas, a fim de se obter um conceito de fácil apreensão.
Além disso, observamos que em nenhum dos manuais há indicações explícitas
sobre os teóricos que serviram de “inspiração” para suas definições, apesar de que para
um estudioso mediano do assunto será possível identificar as inferências, como
marcamos em nossa análise.
Julgamos que no ambiente acadêmico as pesquisas adaptam a terminologia mais
adequada para seus pontos de vista, no entanto, no meio escolar essa confusão em torno
da conceituação entre gêneros textuais ou discursivos pode gerar uma deficiência na
apreensão da definição de gêneros.
Acreditamos, portanto, que para tentar solucionar esse problema talvez fosse
necessário adotar, pelo menos, no ambiente escolar a terminologia de Gêneros,
simplificando e buscando definições mais claras e objetivas.
Referências
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Martins Fontes, 2000.
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SWALES, J.M. Genre Analysis: English in Academic and Research Settings.
Cambridge: 1990.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 222
O PAPEL DA TEORIA BAKHTINIANA NO CONCEITO DE
LÍNGUA NA CONTEMPORANEIDADE [Voltar para Sumário]
Ana Cláudia Soares de Paiva1 (UNICAP)
Discursões introdutórias
O século XX é marcado dentro dos estudos da linguagem por abordagens que
possibilitam olhares plurissignificativos acerca do fenômeno Língua. É sabido também da
larga ruptura que os estudos estruturalistas de Saussure provocam no modo de conceber a
língua. Segundo a concatenação de Saussure (MUSSALIM, 2009), a língua é constituída por
uma superfície bivalente, marcada por um viés social e por outro individual. Na concepção do
teórico suíço esses vieses não são opositores nem excludentes, mas são modulações que não
são possíveis de serem aglutinadas em um primeiro estudo de estruturação de um sistema
linguístico, fazendo-o, portanto, optar pela moldura social de língua compartilhada pelos
usuários.
A partir desse recorte, Saussure desenvolve uma conjuntura ideológica do signo, a
qual propaga um conceito de signo mediante uma ótica de representação direta de um dado
elemento. Segundo essa concepção, a língua é tida como ferramenta de transparência do ato
comunicativo, na qual o sujeito pode estruturalmente desenvolver uma mensagem, a qual
expressa para o outro a totalidade de sentido pretendido pelo enunciador. Dessa forma, a
língua é um instrumento objetivo, desarticulado da subjetividade do eu que enuncia,
requerendo apenas dos sujeitos o domínio e o compartilhamento do mesmo sistema, afim de
que o ato comunicativo seja entendível.
Segundo essa proposta saussuriana, observa-se que as principais análises eram
desenvolvidas tendo por prioridade revelar o conteúdo de uma sentença. Nesse momento,
nasce uma proposta estruturalista do conteúdo, em que a principal atenção recai sobre o
significado pleno do posto verbalmente. A língua como ferramenta social de comunicação,
1 Mestranda do curso de Ciência da Linguagem da Universidade Católica de Pernambuco.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 223
conseguia mediante a proposta de Saussure, condensar as concretudes do mundo real sem
nenhuma interferência das relações sócio-cultural-ideológica que circundam o sujeito. Dessa
forma, a língua adquire o status de ferramenta autônoma e autossuficiente, pois é pela e
simplesmente arrumação lexical dentro de uma construção que é possível veicular dentro de
uma prática de comunicação um dito, cuja totalidade de sentido está exposto na sentença.
Ainda acerca desta língua completa e de significado objetivo, destacamos o que comenta
Mussalim (2009, p.69):
Tentemos entender a diferença. O que conta na concepção de comunicação
utilizada por Saussure é que os interlocutores tenham pleno controle sobre os
elementos pertinentes dos signos linguísticos mediante os quais se comunicam.
Espera-se, em outras palavras, que os falantes usem os signos linguísticos que
compõem suas mensagens de modo tal que se reconheçam nesses signos todos os
traços pertinentes que permitem identifica-los. Essa concepção de comunicação, que
é a própria concepção saussuriana, basta para distinguir língua e fala e para
estabelecer como a fala depende da língua, mas reduz de certo modo o processo de
interpretação a uma questão de discriminação dos signos que se transmitem, e nada
nos diz sobre o que acontece quando interpretamos (2009, p.69).
O dialogismo bakhtiniano revela a subjetividade da língua
O filosofo Russo, Mikhail Bakhtin, também tece suas investigações no campo da
linguagem em um período paralelo ao de Saussure, no entanto, o que marca os estudos
bakhtinianos é a forma como esse teórico se reporta em direção à língua. Em um cenário,
cujas abordagens filosóficas enxergavam a língua/gem como um instrumento externo ao
indivíduo, como uma ferramenta de uso totalmente previsível e calculável, florescer uma
abordagem que rompesse com esse padrão não era tarefa fácil. É diante dessa sistematização
enrijecida da língua, que Bakhtin e seu Círculo concentram atenção no campo da literatura.
Em suas abordagens dentro desse campo, o Círculo evidencia a incompletude da língua sob
uma ótica da estruturação. É nesse reconhecimento, que Bakhtin dirige seus estudos
considerando o indivíduo que atualiza a língua, bem como todo o entorno que circunde o
sujeito da linguagem.
Com esse novo enfoque, o filósofo Russo, apresenta para os estudiosos da linguagem
que a objetividade de Saussure não dava conta do posto em uma relação de discurso, pois
segundo Bakhtin, o dito materializado pela linguagem agrega as marcas de quem o diz, bem
como toda constituição sociocultural e axiológica que determinaram a postura de indivíduo
social. Dessa forma, estar em contato com um discurso não é apenas um processo de
compreensão da mensagem, mas um ato que é marcado por relações de poder, de escolhas, de
Nas fronteiras da linguagem ǀ 224
apreciações ideológicas entre outros, os quais determinam a estruturação do dito, bem como
os valores que são intencionados e diluídos em cada novo ato comunicativo.
Diante dessa percepção sobre a materialização linguística, Bakhtin apresenta alguns
eixos, os quais dão concretude ao seu pensamento. Nesse momento, chamamos a atenção para
dois dos seus eixos: o dialogismo e a responsividade.
Na contramão da voz unívoca do estruturalismo, o dialogismo revela que não é
possível construir uma mensagem desassociada das determinações sociais, pessoais e
estruturais. É nessa interação de constituintes que é possível validar uma prática discursiva
que seja funcional. Mediante tal consideração, observa-se que a prática linguageira não é um
ato objetivo e transparente, mas um ato de densas implicações, as quais só são desmistificadas
se forem considerados todos os determinantes que atravessam o eu discursivo. A partir dessa
desmistificação, Bakhtin evidência que a língua/gem é um ato que se estruturaliza a partir de
relações de subjetividade, o que determinará a sua opacidade.
Diante dessa subjetividade que atravessa o discurso, o sujeito interage com essa prática
tendo por âncora todos os princípios socioideológicos que o povoa, os quais interferiram na
maneira de compreensão e resposta do que lhe é apresentado. A essa resposta, acrescenta
Faraco:
Toda compreensão de um texto falado ou escrito, implica uma
responsividade, e consequentemente, em um juízo de valor. O que isto quer dizer é
que, ao se apropriar de um determinado texto, o leitor se posiciona em relação a ele,
por meio de atitudes distintas: pode concordar ou não, pode adaptá-lo, pode
acrescentar ou retirar informações, pode exaltá-lo. Ou seja, sua reação consiste numa
resposta, o que caracteriza uma ação responsiva (FARACO ,2006, p. 210)
Essa subjetividade dialógica está marcada no texto pela relação EU-TU-OUTRO, que
determina qual seja a prática de discurso. Segundo Bakhtin, todo discurso é sempre enunciado
tendo como respaldo um Tu, o qual estabelece um contínuo com o Eu, e nessa duplicidade
desenvolvem relações de compreensão, o que atribui ao discurso o potencial funcional e
válido em um dado momento da prática comunicativa. Esse princípio dialógico evidencia as
marcas que o Eu e o Tu enunciativo promovem em seus ditos, marcas que são recuperadas e
relacionadas às vozes outras que serviram de âncora para o posto desvelado no discurso. Tal
olhar sinaliza para um discurso que é sempre múltiplo de vozes, mesmo quando nenhuma
marca restringe ou explicita essa voz.
Da subjetividade pessoal a plurissignificação do signo
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 225
Segundo os estudos desenvolvidos por Bakhtin, é possível observar que o sujeito se
constitui socialmente através de percepções individuais, as quais são organizadas por meio da
linguagem. Diante desse reconhecimento particular do mundo, depreende-se da obra de
Bakhtin, a percepção que tal autor dá aos fatores externos (culturais sociais, geográficos e
econômicos) na configuração de cada indivíduo. O autor discute em seus estudos que esse
processo de constituição individual é interativo, e que se dá por vias plurais e por
acomodações particulares. Desse modo, o filósofo da linguagem mostra em terrenos da
objetividade que a construção compreensiva do dito não poderá ser total se desconsidera o
singular que tais construtos condensam da particularização pessoal. Diante dessa constatação
evidencia-se as fissuras da língua autônoma e sua ineficiência em dar conta do holístico que
povoa a construção de um dito.
Diante dessa percepção interativa evidenciada por Bakhtin entre Sujeito e Língua,
pode-se compreender que o estudioso considera a língua em uso pela ótica da enunciação, em
que cada construção tem um Tu particular, o qual interfere na forma como o Eu vai
desenvolver seu discurso, fazendo de cada dito, um novo, pois não se é possível manter o
mesmo valor semântico-ideológico, visto que cada sujeito tem uma visão de mundo e valor
diferenciada.
A partir desse princípio subjetivo que envolve a língua, o estudioso Russo, afirma que
esse processo é materializado no contato da construção com o sujeito, mediante um processo
de representação/refração, segundo esse princípio, cada construção produz um efeito dentro
do processo de comunicação social, pois cada indivíduo possui uma base ideológica própria,
particularizada pelas relações de mundo de cada um.
Isto quer dizer que a compreensão da palavra no seu sentido particular
depende da compreensão da palavra no seu sentido particular depende da
compreensão da orientação que é conferida a essa palavra por um contexto e uma
situação precisos. “A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um
sentido ideológico ou vivencial”. As formas linguísticas vazias de ideologia são
apenas sinais da linguagem. Por outro lado, não há interlocutor abstrato, pois não
teríamos linguagem comum com tal interlocutor. (MARIA TEREZINHA, 2008, p.
184)
Mediante a compreensão de que cada sujeito desenvolve do signo um sentido novo,
observa-se que a ideia de signo saussuriano não dá conta dessa multiplicidade de sentidos,
pois como é constatável atualmente a palavra, o enunciado, o discurso desenvolve um
propósito e um sentido sempre novo a depender da funcionalidade pretendida, pois um
Nas fronteiras da linguagem ǀ 226
mesmo evento poderá conter vozes, as quais poderão ser reveladas por uns e desconhecidas
por outros, desencadeando sentidos múltiplos e efeitos também plurais.
Com essa multiplicidade de sentidos que a palavra pode apresentar a partir da situação
comunicativa e de seus atores discursivos, os estudos do Círculo sinalizam as relações
axiológicas que circundam o signo, visto que todo ato de dizer implica em um juízo por parte
do locutor. Ou seja, tudo o que é posto em funcionalidade por meio da linguagem agrega um
olhar particular e valorativo do mundo. Com esse novo enfoque em torno do signo, Bakhtin
propõe o conceito de Signo Ideológico. Conceptualização que serve de base para toda uma
teoria do Discurso.
O que une Bakhtin a uma teoria do Discurso?
A proposta de estudo do Círculo bakhtiniano é inovadora e de larga contribuição
acerca da composição e funcionalidade da língua. No entanto, suas ideias demoram a serem
conhecidas e postas em atividade dentro de uma concepção linguística por diversos fatores.
Os mais significativos, decorre de ser uma abordagem que nasce dentro de um campo
literário-filosófico, proposta em que não há uma concepção autoral particular, estudo que é
tentado ao emudecimento mediante o silenciamento dos estudiosos em um cenário de guerra
civil. Diante desses embates, a proposta de Bakhtin não ganha a mesma força que é veiculada
ao estruturalismo na primeira metade do século XX.
No entanto, paralelo aos estudos da objetividade linguística, outros olhares começaram
a ser postos sobre o fenômeno Língua, indagando e sinalizando para fatores que integram e
determinam essa atividade. A pluralidade de enfoques proporcionou conhecer o objeto de
maneira que contemple a sua totalidade, visualizando todos os princípios que agem e
determinam sua funcionalidade. Toda essa multiplicidade teórica serviu para tornar conhecido
a multifacetada Língua e o quanto esta precisa de uma proposta de estudo que dialogue todos
esses olhares e permita uma interação com a língua de modo que seus usuários compreendam
toda a sua dinamicidade e poder.
É nessa perspectiva de integração teórica, se assim podemos conceituar, que a análise
do discurso se propõe a estudar as práticas de interação comunicativa. É conhecido, que nos
seus primeiros anos esta abordagem não se diferenciou muito de uma proposta conteudista,
pois suas análises pouco apresentaram acerca da participação social, das relações de poder,
dos interesses subjetivos, das interferências situacionais e contextuais. No entanto, nas últimas
décadas do século XX a Análise do Discurso com um viés Crítico adquiriu um olhar mais
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 227
pontual acerca da atualização da língua. Nesse período, os estudos do discurso passaram a
considerar que os sujeitos constroem seus ditos a partir de uma continuidade de vozes que o
travessa e determina o seu posto em funcionamento dentro de uma atividade de comunicação.
A partir dessa ininterrupção que marca a continuidade do discurso, é possível perceber a
influência que a teoria dialógica bakhtiniana desenvolveu na construção das bases filosóficas
dessa abordagem teórica. Para Bakhtin, a língua é uma atividade e produto que se integra
dentro de cada novo uso e que este processo é sempre irrepetível, visto que o sujeito é a soma
de outros, os quais estão sempre marcados no seu discurso através de suas escolhas, de seus
posicionamentos, enfim, da própria maneira de atualização discursiva.
Ancorada nessa concepção filosófica, a Análise Crítica do Discurso entende que a
construção discursiva seja o resultado de uma atividade, de uma ação social, a qual dialoga os
constituintes subjetivos e objetivos de uma Língua e os dos sujeitos-colaboradores, em que
cuja interação promulga um ato discursivo, o qual é efetivado com uma finalidade
sociocomunicativa.
Sabido que a Análise do Discurso é constituída em duas vertentes, as quais se
encontram em alguns pontos e se distanciam em outros, priorizamos nesse artigo, a
abordagem anglo-saxã de van Dijk. Ao delimitarmos os caminhos da Análise Crítica do
Discurso, podemos ver, nas análises das atividades linguageira, o quanto a proposta do círculo
é válida e como esta é posta em exercício dentro das pluralidades de interação comunicativa
da sociedade do século XXI. Na proposta de van Dijk, é possível perceber como o conceito de
subjetividade, de valor, de refração e de dialogismo de Bakhtin dão sustentabilidade a sua
abordagem.
Van Dijk (2012) desenvolve uma abordagem centrada a partir da subjetividade do eu-
enunciante. O autor discute que não é o espaço sociocultural por si mesmo que determinará a
produção e a interpretação do discurso, mas como esses espaços são representados
mentalmente pela cognição individual de cada sujeito. Com essa nova maneira de perceber a
construção do contexto, constate-se que esse é dinâmico e subjetivo. Tais princípios são
possíveis não porque a cultura ou a sociedade muda, mas porque o sujeito está imerso nessas
práticas.
Mediante essa subjetividade mental do contexto, van Dijk (2012) discute que o mesmo
ato discursivo, proferido no mesmo grupo sociocultural produzirá efeitos e compreensões
diversas diversificas, visto que nenhum sujeito tem os mesmos modelos mentais. O autor
também chama a atenção a respeito desse conhecimento por parte do locutor, o que o leva a
produzir um ato discursivo mediante os possíveis modelos de contexto de seus interlocutores
Nas fronteiras da linguagem ǀ 228
e portanto produzir um discurso que seja compreendido de modo pleno ou aparente pelo
interlocutor, tal ação dar-se-á mediante a intenção de quem enuncia. A isso afirma van Dijk:
Embora na maioria das formas de discurso entre membros de uma mesma
comunidade os modelos mentais sejam suficientemente semelhantes para garantir o
sucesso da comunicação, convém ressaltar que os modelos mentais incorporam
necessariamente elementos pessoais que tornam únicas todas as produções e
interpretações – e portanto tornam possível o mal-entendido – mesmo quando eles
têm muitos elementos socialmente compartilhados. Vemos, portanto, que a
compreensão do discurso envolve a construção, controlada pelo contexto, de
modelos mentais baseados em inferências fundamentadas no conhecimento. (VAN
DIJK, 2012, p. 93)
Como foi possível depreender dessa abordagem, não é suficiente no processo de compreensão
e produção discursiva, que os sujeitos dominem apenas a língua enquanto estrutura, mas que
sejam capazes de interagir com os modelos episódicos que constituem seus modelos de
contexto para assim conseguir alcançar o que é preestabelecido no posto linguístico, visto que
muito do que é intencionado não está marcado por meio da palavra, mas sim, recuperável
através das estruturas subjetivas do contexto.
Considerações finais
Como se constatou ao longo desse estudo, a língua foi objeto de vários estudos ao
longo de um século. Estudos que propuseram sempre um olhar inovador e revelador acerca
desse objeto. Ao priorizarmos o enfoque bakhtiniano, pudemos perceber o quanto sua
proposta é ampla e como busca dar conta da funcionalidade da Língua em seu exercício. Ao
tentar estabelecer um elo entre a proposta do círculo e Análise Crítica do Discurso, observa-se
o quanto os eixos daquela (representação/refração, dialogismo, axiologia do signo,
subjetividade, multiplicidade de sentidos) são incorporados dentro de uma perspectiva
contemporânea de compreensão e funcionalidade da língua. Dessa maneira, é possível
concluir que a proposta de uma análise do discurso tem origem com os estudos de Bakhtin,
embora limitada aos textos literários e ultimamente difundida através de um enfoque mais
linguístico, mas mantendo toda a base filosófica herdada do filosofo Russo e seu Círculo.
Referencias
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 229
VAN DIJK, Teun A. 1943- Cognição, discurso e interação; (org. e apresentação de Ingedore
V. Koch). – 7. Ed. São Paulo: Contexto, 2011.
VAN DIJK, Teun A. Discurso e contexto: uma abordagem sociocognitiva. Tradutor Rodolfo
Ilari. – São Paulo: Contexto, 2012.
ELICHIRIGOITY, M. (2008). A formação do sentido e da identidade na visão bakhtiniana.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 181-206, 2008.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin.
– São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
MAGALHÃES, L. (2007). Introdução ao pensamento de Bakhtin. Locus: revista de história,
Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 210-215, 2007.
MUSSALIM, Fernanda. Introdução à linguística: fundamentos epistemológicos, volume 3/
Fernanda Mussalim, Anna Christina Bentes, Organizadoras – 4. ed. – São Paulo: Cortez,
2009.
PIRES, V; TAMANINI-ADAMES, F. (2010). Desenvolvimento do conceito bakhtiniano de
polifonia. On-line. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es/ >. Acesso em 16
de Julho 2014.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 230
QUESTÕES DE MULTIMODALIDADE EM CONTEXTO
ESCOLAR: DESAFIOS DO TRABALHO COM A IMAGEM [Voltar para Sumário]
Ana Cláudia Soares Pinto (UFPB)
Considerações iniciais
Para Dionísio (2005, p.3), os recentes avanços tecnológicos têm oportunizado o
surgimento de novas formas de interação que implicam na necessidade de revisão e ampliação
das interações humanas e de alguns conceitos no âmbito do processamento textual e das
práticas pedagógicas que lhe são decorrentes, uma vez que imagem e palavra mantêm relação
cada vez mais próxima, cada vez mais integrada. As imagens, na sociedade contemporânea,
passam a compor o sentido dos textos juntamente com a modalidade escrita, deixando de
apresentar caráter meramente ilustrativo, não sendo raro “os casos em que textos visuais são
responsáveis pela sistematização de informações não contidas no texto escrito” (DIONÍSIO,
2006 p.21).
Com as facilidades do avanço tecnológico, recebemos grande quantidade de
informação veiculada pelos diferentes meios de comunicação que se utilizam de várias
linguagens no processamento textual. Precisamos, pois, atribuir sentido a textos constituídos
por linguagens variadas consubstanciadas em palavras, imagens, cores, gestos, entre outros,
que se integram na construção do sentido do texto. Consequentemente, temos a necessidade
de uma formação com mais ênfase na modalidade visual, mais focada no letramento visual,
ou seja, na comunicação e na recepção de mensagens visuais.
Essa tendência cada vez mais orientada para o visual com o uso de múltiplas
modalidades é uma marca constante da sociedade contemporânea e, consequentemente, do
contexto escolar – em nossas salas de aula. Mas, até que ponto essas modalidades são
exploradas de fato pelo seu caráter multimodal ou são meros pretextos para o uso da
modalidade dominante, na sala de aula, ou seja, a linguística?
Sabemos que, apesar desse atual contexto da sociedade contemporânea e do uso
intensivo da imagem pelos alunos fora do ambiente escolar (cartazes, entretenimento,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 231
publicidade, por exemplo) ainda é bastante questionada a sistematização de seu uso para fins
pedagógicos.
É no âmbito da compreensão desse novo paradigma linguístico que nos propomos a
apresentar, nesse trabalho, uma reflexão sobre o trabalho com o texto imagético na sala de
aula de Língua Portuguesa. Para tanto, objetivamos identificar o posicionamento de uma
professora do Ensino Fundamental sobre os desafios encontrados no uso desses textos
(imagéticos) em sala de aula.
Os dados considerados, neste estudo, referem-se a respostas de uma entrevista
semiestruturada a partir de tópicos como: contribuição da imagem para o ensino de Língua
Portuguesa; escolha da imagem; objetivo da aula a partir da imagem; participação dos alunos;
presença da imagem no livro didático etc., tópicos que visam caracterizar as representações
sobre seu agir docente.
Sob a orientação teórico-metodológica da multimodalidade e do contexto visual, este
trabalho apresenta três seções além desta introdução. Primeiramente, é apresentada uma
caracterização geral do fenômeno da multimodalidade focalizando alguns conceitos que nos
ajudarão na análise dos dados. Em seguida, apresentamos informações sobre o contexto dos
dados apresentados, interpretamos os resultados e, então apresentamos algumas considerações
finais trazendo para a discussão a necessidade de se compreender de que modo o trabalho com
a imagem é visto ou representado em contexto escolar.
Multimodalidade
Falar em multimodalidade não é somente falar em múltiplos modos de transmitir
mensagem e conhecimento através de fotografia, pintura, desenhos, gráficos, etc. A
multimodalidade também está na língua/linguagem, como afirma Kress e Van Leeuwen:·.
Linguagem, por exemplo, é um modo semiótico porque pode se materializar
em fala ou escrita, e a escrita é um modo semiótico também, porque pode se
materializar como (uma mensagem) gravada em uma pedra, como caligrafia
em um certificado, como impressão em um papel, e todos esses meios
adicionam uma camada a mais de significado. (Kress & Van Leeweun,
2001)
Assim, todo texto pode ser multimodal, mesmo que só tenha texto escrito. O simples
destaque do título, os usos de diferentes tipos de letras, tamanho e cor tornam qualquer texto
escrito multimodal.
A noção de multimodalidade das formas de representação que compõem uma
mensagem foi introduzida por Kress & Van Leeuwen (1996) na área da Semiótica Social,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 232
buscando compreender todos os modos de representação no texto linguístico. Sendo assim os
autores propõem que se pense numa linguagem constituída como multimodal, em que o
sentido advenha da relação textual estabelecida entre os diferentes modos utilizados para sua
constituição e não que se pense isoladamente em cada um deles.
A multimodalidade encontra-se, portanto, nas múltiplas linguagens que utilizamos em
situações de comunicação. Quando falamos, por exemplo, utilizamos, além da fala, gestos,
movimentos corporais, entoações, etc. que vão ajudar a construir o sentido do texto que
estamos elaborando. Na escrita, a multimodalidade ocorre quando temos o texto escrito
incorporado a uma imagem ou outra linguagem visual, como desenhos, fotografias, gráficos,
cores, etc. Em relação à manifestação escrita, a própria disposição da escrita no papel já é
considerada visual, conforme acentua Descardeci (2002, p. 20-21) “em uma página, além do
código escrito, outras formas de representação como a diagramação da página (layout) a cor e
a qualidade do papel, o formato e a cor (ou cores) das letras, a formatação, etc. interferem na
mensagem a ser comunicada.”
Dessa forma, a perspectiva da multimodalidade revela que a prática da leitura e/ou
análise de textos não deve se pautar somente na mensagem escrita, pois esta constitui apenas
um elemento representacional que coexiste com uma série de outros, como a formatação, o
tipo de fonte, a presença de imagens, tabelas, etc. Estes recursos visuais também constituem
formas de expressão do conteúdo do texto e nos orientam na condução da leitura, fazendo-nos
enxergar que os sentidos somente serão reconstruídos pela leitura eficiente do conjunto dos
modos semióticos presentes no texto e não, apenas, com base em uma única modalidade.
O ensino como trabalho: o professor como trabalhador
Pensar em uma conceitualização para o termo trabalho implica aceitar as condições
sócio-históricas subjacentes ao conceito. Machado (2007), com o propósito de explicitar a
concepção de “trabalho do professor” faz uma acurada explanação do assunto, tomando como
ponto de partida os motivos de discutir essa noção, explorando em seguida os diferentes
significados atribuídos ao termo até chegar ao valor que tem essa expressão atualmente. Dessa
forma, com base em Bronckart (2004) e Machado (2007) apresentamos nossa reflexão acerca
da concepção de trabalho do professor. Antes, porém, uma definição do termo trabalho
apresentada por Bronckart (2004/2006) apud Machado (2007, p.78) que define trabalho
como:
[...] um tipo de atividade ou de prática. [...] um tipo de atividade própria da
espécie humana, que decorre do surgimento, desde o início da história da
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 233
humanidade, de formas de organização coletiva destinadas a assegurar a
sobrevivência econômica dos membros de um grupo: tarefas diversas são
distribuídas entre esses membros (o que se chama de divisão de trabalho);
assim, esses membros se vêem com papéis e responsabilidades específicas a
eles atribuídos, e a efetivação do controle dessa organização se traduz,
necessariamente, pelo estabelecimento de uma hierarquia.
Nesse mesmo texto, Machado (op.cit., p. 78), afirma que tal definição é insuficiente
para que se compreenda o trabalho do professor. O trabalho do professor só emerge como
objeto de estudos no final da década de 90. Foi nesse contexto que a abordagem ergonômica
passou a ser empregada, como “um instrumento adequado para enfocar a complexidade da
atividade educacional enquanto trabalho e o real funcionamento do professor enquanto
trabalhador” (MACHADO, 2007, p. 90).
Um dos problemas apresentados por Bronckart (2006, p.203-204) para definir a
prática do professor é a sua relativa opacidade, ou seja, “a dificuldade de descrevê-lo,
caracterizá-lo e, até mesmo, de simplesmente falar dele.” Frente a essa realidade, Machado
(2007, p.93) defende que
O trabalho docente, resumidamente, consiste em uma mobilização, pelo
professor, de seu ser integral, em diferentes situações – de planejamento, de
aula, de avaliação -, com o objetivo de criar um meio que possibilite aos
alunos a aprendizagem de um conjunto de conteúdos de sua disciplina e o
desenvolvimento de capacidades específicas relacionadas a esses conteúdos,
orientando-se por um projeto de ensino que lhe é prescrito por diferentes
instâncias superiores e com a utilização de instrumentos obtidos do meio
social e na interação com diferentes outros que, de forma direta ou indireta,
estão envolvidos na situação.
A partir deste fragmento que caracteriza o agir docente, nos chama atenção a primeira
parte da definição apresentada pela autora (em função de nossos objetivos, enfocaremos tais
aspectos neste artigo) que situa o professor no interior de sua disciplina como alguém que cria
meios para a aprendizagem de conteúdos e para o desenvolvimento de capacidades a eles
relacionadas.
Na análise dos dados, apresentaremos segmentos de respostas dadas por uma
professora do Ensino Fundamental com relação ao trabalho com o texto imagético em sala de
aula. Tais respostas referem-se ao trabalho interpretado pela própria professora que comenta o
seu trabalho. Desse modo, ao analisar esses segmentos podemos identificar representações
sobre o trabalho para que possamos melhor compreendê-lo.
Contexto de realização da entrevista
Nas fronteiras da linguagem ǀ 234
O texto proveniente da entrevista semiestruturada, teve como participantes, uma
professora do Ensino Fundamental (participante da pesquisa) e esta pesquisadora e foi
produzido no dia 07 de janeiro de 2013 com tempo de duração de aproximadamente 07
minutos na residência da própria professora que concedeu a entrevista.
Esta pesquisadora é estudante de segundo ano de Doutorado, com experiência no
ensino médio e também superior, estando no momento afastada de suas atividades
profissionais para realização do Doutorado. Em relação à participante da pesquisa, a
professora é recém - graduada em Letras, cursando, atualmente, Especialização em Língua
Portuguesa e atuando em uma Escola da Rede Privada, no Ensino Fundamental. A escolha da
participante deu-se devido ao contato que a pesquisadora já teve com ela em virtude de ter
sido sua professora ainda no Curso de Letras, quando teve conhecimento do seu trabalho
(mesmo sem ter concluído o curso, a aluna já ministrava aulas, regularmente) que
contemplava a utilização dos textos imagéticos em sala de aula.
No que diz respeito ao conteúdo temático, foi utilizado o tema “o trabalho com a
imagem em contexto escolar”.
Sobre as respostas da professora
A entrevista, embora composta por seis questões, (ver Apêndice I) apresentou muita
repetição de informações, fato este que creditamos a forma de estruturação. Ou seja,
estruturalmente organizamos a primeira questão com um caráter de tópico “maior” no qual
buscávamos informações variadas para termos uma visão geral das suas impressões sobre o
trabalho, objetivávamos que a professora falasse o mais naturalmente possível e de forma
ampla como de fato o fez. As demais questões propostas, porém, elaboradas de forma mais
específica tendo em vista informações mais pontuais, apresentaram, pois, uma repetição do
que já havia sido tematizado na pergunta de abertura.
Para fins de análise neste trabalho, tendo em vista o objetivo traçado, nos deteremos
apenas na observação de três questões. Vejamos segmentos da resposta dada à primeira
questão ao perguntarmos sobre o trabalho com a imagem e a contribuição deste para o
desenvolvimento linguístico dos alunos:
Ex 1: primeiramente é preciso que eu diga que ensino numa escola
particular... e há uma cobrança muito maior/.../é:: em relação a tudo... então
uma das exigências, é a utilização da imagem ... eles acreditam/
coordenação/supervisão/que assim estão trabalhando de maneira moderna...
atual...não só o texto verbal/certo? mas aí... em um momento ou outro...no
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 235
fim das contas acabam exigindo um estudo mais formal/tradicional...
conteudístico/ digamos assim... o que gera uma contradição...é prá trabalhar
mas não é importante como conteúdo...entende? tem que cobrar outras
coisas... então... me colocando como educadora dessa escola é um desafio
defender esse trabalho/.../ mas vejo que isso não é um problema dessa escola
conciliar essas contradições é sempre um problema para nós professores.
A partir da análise do exemplo 1 acima percebemos que a professora não responde
diretamente à pergunta feita. Na sua fala é possível identificar que há entraves de ordem
institucional e/ou pedagógica que dificultam ou não favorecem o efetivo trabalho com a
imagem. Um conjunto de mudanças precisa acontecer no ambiente educacional para que o
texto multimodal seja efetivamente explorado.
Observamos, no exemplo, alguns segmentos que são usados pela professora,
claramente, para justificar a situação de desconforto vivida por ela individualmente, o que ela
remete a uma insatisfação comum a todos os professores – conciliar essas contradições é
sempre um problema para nós professores. Logo, há um conhecimento compartilhado e
cristalizado na classe dos professores. Percebemos ainda uma sensação de rotina de algo
“institucionalizado”- a professora justifica o seu agir como uma forma de agir já realizado por
outros e também reapropriado por ela.
O discurso está organizado em torno do estabelecimento de orientações genéricas para
a realização das atividades a serem a trabalhadas com os textos imagéticos. Demonstra
também como a professora tem compreensão das diretrizes escolares como normas explícitas
para o seu trabalho (isto claro... dentro dos métodos estabelecidos pela instituição escolar).
Semelhante ao que foi analisado acima, no exemplo a seguir, a professora procura
assinalar uma prática baseada em um discurso generalizante, sem considerar, no entanto, as
particularidades locais de sua realidade. A utilização do “é preciso” denota que a professora
dá sua opinião utilizando-se do coletivo demonstrando um caminho que julga necessário para
todos os outros professores.
Ex. 2: a interpretação do texto imagético requer certa prática, tanto da parte
do educador quando do aluno é um processo lento e o aluno quer entender de
cara às vezes consegue mas nem sempre/ é preciso que agucemos a
curiosidade deles nessa prática e a gente vai tentando até ... enfim
“O aluno quer entender [...] e às vezes consegue, é preciso que agucemos a curiosidade
deles [...] e a gente vai tentando”. Esse segmento nos faz refletir com Freitas (2005) que
destaca o fato de o perfil do aluno atual ser diferenciado e ressalta a necessidade de melhorar
a formação inicial e continuada dos professores. Podemos perceber que há uma lacuna, o
aluno quer aprender e o professor tenta ensinar, está posto que lhe falta formação e
direcionamento para tal. Ainda que as teorias da multimodalidade e dos novos letramentos
Nas fronteiras da linguagem ǀ 236
não tenham feito parte de nossa formação inicial ou continuada, somos cobrados quanto a sua
inserção em nossas aulas.
Na segunda pergunta objetivávamos saber sobre o seu objetivo ao preparar uma aula
de leitura a partir de uma imagem. O fragmento a seguir é ilustrativo da resposta à essa
questão:
Ex. 3: então:: o objetivo principal é que o aluno perceba que o texto não está
só na palavra... que como diria Vigotsky a palavra sem sentido não pode ser
considerada palavra... assim é com o texto não verbal/ não é qualquer imagem/
não é qualquer desenho que o aluno interpreta por isso que se deve ter
cuidado... uma imagem jogada sem nenhum objetivo não vai ter sentido
algum pra aquele aluno
Novamente o discurso da professora parece estar deslocado do contexto real no qual
trabalha e relacionado com um modelo teórico que deve seguir. Pudemos observar a presença
de um discurso bastante objetivo e impessoal considerando de forma superficial o contexto
em que atua.
Utilizando-se de fontes enunciativas (como diria Vigotsky), a professora determina
vozes que direcionam sua formação ou sua prática funcionando como uma orientação sobre a
atividade a ser realizada. Embora percebamos que há pouca correlação entre o que é citado e o
que foi perguntado – objetivo de uma aula com a imagem.
O exemplo seguinte servirá para ilustrar a preocupação da professora em apropriar-se
do discurso de alguém como forma de justificar ou associar seu próprio modo de agir.
Ex.4: apesar de trabalhar muito com o texto imagético acredito que ainda não
consigo trabalhar de forma concreta esse tipo de texto/na verdade nem sei
porque / é... que muitas vezes acabo desviando o olhar para os conhecimentos
conteudísticos, é um processo longo... /.../ recentemente muitos estudiosos
estão privilegiando essa ferramenta na sala de aula... segundo eles a imagem
ativa uma função muito importante para o intelecto do jovem ou
adolescente/.../ quem sabe... pensar num trabalho que estimule os alunos a
desenvolver melhor suas capacidades cognitivas...
Semelhante ao Ex.3, há novamente uma referência a fontes enunciativas (muitos
estudiosos) que estão associadas a sua prática e/ou formação docente orientando ou servindo
como uma base teórica a ser considerada no trabalho com a imagem. Percebemos claramente
neste fragmento a ausência de uma formação específica para o trabalho com a imagem no
momento em que a professora usa “nem sei porque”, demonstra pouca propriedade sobre o
tema com o uso de expressões muito genéricas.
Considerações finais
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 237
É preciso que a escola trabalhe de fato,com outras formas de linguagem e a
diversidade cultural para desenvolver outros letramentos nos estudantes. Como a
multimodalidade já está inserida no cotidiano dos estudantes, o diferencial na escola será a
promoção da consciência crítica, como interagir socialmente por meio de tais conhecimentos
em diferentes contextos e com diferentes objetivos.
Com base nos resultados ora apresentados e de maneira limitada, haja vista não
contarmos com outros dados, constatamos que a concepção da professora sobre o trabalho
com a imagem é, na verdade, aquilo que é desejado ou teorizado sobre tal trabalho, isto é,
algo que a professora encara como um discurso ou uma orientação a ser seguida e que
generaliza como válido para todos, como uma afirmação de verdade absoluta, definida, sem
permitir contestação. Isso nos fez perceber a postura de uma professora passiva sempre
agindo em conformidade com um “padrão” a ser seguido.
Nesta perspectiva, nossos resultados confirmaram a relativa opacidade que permeia o
trabalho do professor. Isto porque, entre outras coisas, o professor como um trabalhador,
qualquer que seja a profissão, carrega consigo representações sociais (coletivas) que as
internaliza de forma particular, reconfigurando essas representações sempre que necessário. A
dificuldade da professora em se implicar no discurso, observada em nossos dados, pode
revelar traços constitutivos dessa representação social confirmando quão enigmática e opaca é
a prática do professor.
A nosso ver, compreender o agir docente pelo discurso do próprio docente é
fundamental, especialmente porque pode nos apontar elementos constitutivos do seu trabalho
difícil de ser identificado por outro observador, por outro lado, permitindo que se analise o
trabalho do professor de forma mais ampla e fundamentada, neste artigo, especificamente, que
repensemos as práticas de realização do texto imagético em sala de aula.
Referências:
BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano.
Campinas: Mercado de Letras, 2006.
DESCARDECI, M. Ler o mundo: um olhar através da Semiótica Social. In: Educação
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APÊNDICE 1:
Entrevista
1. Fale sobre o seu trabalho com o texto imagético em sala de aula e como este pode
contribuir para o desenvolvimento linguístico dos alunos.
2. Mas exatamente qual é o seu objetivo ao preparar uma aula de leitura a partir de uma
imagem?
3. Como você avalia a participação/recepção dos alunos nessas aulas?
4. O que você entende/adota como pré- requisito para escolher uma imagem para ser
trabalhada com seus alunos? Baseada em que você faz sua escolha?
5. Como são exploradas (ou não) as imagens no livro didático em suas aulas? Há alguma
orientação no livro didático para a abordagem desse tipo de texto ( o imagético)?
6. Sente que faz um trabalho satisfatório com este tipo de texto ou não? Por quê?
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 239
A PESQUISA EM METACOGNIÇÃO PARA UM ESTUDO DO
GÊNERO CRÔNICA NO ENSINO FUNDAMENTAL [Voltar para Sumário]
Ana Lúcia Farias da Silva (UFRRJ)1
1. Introdução
A pesquisa em cognição traz um suporte importante para o professor no trabalho com
o texto de gêneros literários, pois inaugura uma possibilidade de colocar o sujeito educando e
sua subjetividade no centro dos estudos cognitivos. O suporte da cognição e, mais
recentemente da metacognição, revela um trabalho focado nas intersubjetividades, emoções e
sentimentos que o texto desperta no aluno leitor. Por acreditar que antigas concepções de
ensino e parâmetros curriculares limitavam o papel do aluno na escola e questionarem isto,
promovendo novas reflexões, é que novos estudos surgiram, na área de cognição, e passaram
a pesquisar novas possibilidades de trabalho na sala de aula que valorizassem a figura do
aluno, enquanto aprendiz , assim como entender de que forma o indivíduo constitui-se,
posiciona-se em uma determinada prática e, enquanto aprendiz, ressignifica seu discurso,
como afirma Gerhardt (2006).
De todas as competências culturais, ler é, sem dúvida, a mais valorizada na sociedade,
então, cabe à literatura tornar o mundo mais compreensível, transformando o aspecto da sua
materialidade em textos com os quais convivemos, sobretudo, na escola. De acordo com
Cosson (2006), o letramento feito com textos literários proporciona um modo privilegiado de
inserção no mundo da escrita, pois conduz ao domínio da palavra a partir dela mesma.
Com relação a esse posicionamento acima, Cosson (2006) comenta a importância do
letramento literário baseado em textos de gêneros literários na escola, assim, o letramento
literário precisa da escola para acontecer. Para Zilberman (2003), o professor, ao promover
um letramento literário de qualidade no aprendiz, dá o direito para que ele, o educando,
experimente o texto literário e vá muito além da leitura, mas também que possa se apropriar
1 Mestranda de Letras da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 240
da literatura, tendo dela a experiência literária.
Nas discussões sobre o caráter plural da leitura do texto de gêneros literários, muitos
autores demonstram que a literatura exige uma leitura diferenciada, ou seja, que é preciso um
olhar que vá além da decodificação da escrita ali registrada, um olhar de percepções
múltiplas, de trocas de impressões partilhadas que o texto literário promove no leitor. Então,
se a leitura do texto literário dissemina sentidos variados, sugerindo amplas relações
dialógicas do texto com o leitor, é preciso haver um processo que valorize a importância do
trabalho com o ensino do texto de gêneros literários na escola, no sentido de capacitar o
aluno, através de atividades que possibilitem a ele um constante letramento literário.
Se consideramos a escrita como um processo que cabe à escola desenvolver nos
alunos, validando as intensas e diversificadas semioses que são produzidas por eles nas aulas
de língua materna, reconhecemos, com isso, que diversos tipos de conhecimentos são
acionados quando se parte para o ato de escrever e estão diretamente associados ao contato
que o sujeito teve e tem durante toda a sua vida com atividades que exijam dele leitura e
prática da escrita. Segundo Dahlet (1994), mesmo os escritores proficientes e profissionais no
campo da escrita admitem que escrever é um ato que exige muito trabalho e dedicação, sendo
uma atividade complexa que implica em relacionar as consciências linguística, cognitiva e
social.
Partindo da reflexão acima, privilegiamos o trabalho com o gênero crônica escolar, a
fim de situar o aprendiz e delimitar para ele as características sócio-comunicativas que tornam
um texto aplicável a este gênero, ou seja, deixar claro para o aluno que faz-se uso de um
determinado gênero de texto na tentativa de atender às necessidades da situação e de se
cumprir as funções sociais a que se destina, que no caso do gênero crônica escolar, está ligado
ao entretenimento, ludismo, humor, dialogismo e reflexão subjetiva do narrador frente a uma
problemática do cotidiano.
2. A crônica “escolar” e o valor da leitura da literatura
A justificativa para a questão do estudo do gênero crônica escolar, apoia-se na escolha
que se deu a partir da análise de currículos seguidos pelas escolas públicas do ensino
fundamental, do sexto ao nono ano no Estado do RJ. Juntamente à análise dos currículos, se
deu o estudo de livros didáticos mais adotados nas escolas neste segmento de ensino, em que
o gênero textual de maior destaque que ali é reproduzido é a crônica. No entanto,
percebemos que o tipo de crônica transcrito nos livros didáticos são os de natureza escolar, de
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 241
autores referência na escrita desse gênero, como Fernando Sabino, Carlos Heitor Cony, Luis
Fernando Veríssimo, Millôr Fernandes, Rubem Braga, Moacyr Scliar, Paulo Mendes Campos,
Carlos Drummond de Andrade, Machado de Assis, entre outros.
Caracterizamos esse tipo de crônica com o adjetivo “escolar”, pois elas se associam e
se assemelham pelas condições de produção e meios de circulação em que são apresentadas.
Se pensarmos nos dias de hoje, popularmente, somente o livro didático e alguns poucos
jornais veiculam esses textos chamados de crônica, que é um gênero fronteiriço, que oscila
entre jornalismo e literatura, ficção e história, prosa e poesia. Mas a característica
predominante nos textos do gênero crônica reproduzidos nos livros didáticos de ensino
fundamental é a marca de um finalidade didático-moralizante que apela para reflexões sobre a
natureza do ser humano, suas atitudes e comportamentos frente a um fato da rotina, cotidiano
e que suscita inclusive, uma espécie de entretenimento.
O gênero crônica, ao longo dos tempos veio se corporificando numa escala histórica
que vai do uso documental, do registro de viajantes da época das grandes descobertas
territoriais pelo mundo afora, até o registro jornalístico de fatos do dia a dia, seja social,
esportivo ou filosófico. Ou seja, do pragmatismo histórico de Fernão Lopes ao singelismo e
humor de Millôr Fernandes, a crônica veio assumindo um formato que hoje a democratiza,
através de sua produção nos meios digitais, em que qualquer um pode se habilitar a escrevê-la
e ousar em publicá-la nas redes sociais.
Os textos de crônica costumam ser leves, de fácil compreensão, pois a linguagem
empregada beira às vezes a informalidade típica das conversas do cotidiano de qualquer
pessoa. São simpáticas, bem apreciadas, de textos com começo-meio-e-fim, bastante propício
à leitura em ambiente escolar e tantas vezes humorísticas, engraçadas e sutis, tornando um
fato rotineiro algo de grande valor existencial, como bem exploram os narradores reflexivos
nas histórias de crônicas. Esse caráter da narração reflexiva nas crônicas aproximam-as até
mesmo do texto opinativo.
Os jovens, no ensino fundamental, leem Literatura a sua maneira e de acordo com as
possibilidades que lhes são oferecidas. Sabe-se que fora da escola, ocorrem escolhas muito
aleatórias pelos jovens, que selecionam livros a partir de uma capa, do que se lê entre seus
colegas, bem como do número de páginas. Observando essas escolhas feitas pelos jovens, fora
do ambiente escolar, consta-se, assim uma desordem própria da construção do repertório de
leitura dos adolescentes. A ausência de referências sobre o campo próprio da literatura e a
pouca experiência de leitura – não só de textos de gêneros literários – fazem com que os
jovens leitores se deixem in-
Nas fronteiras da linguagem ǀ 242
fluenciar por detalhes nem sempre importantes de certos tipos de leitura, não pertencentes à
Literatura, enquanto objeto de valor. No entanto, também não se pode descartar totalmente
aquilo que os jovens vêm se interessando como leitura, pois a recepção, a reprodução e a
circulação da literatura via público-leitor não podem ser estudadas como um fenômeno
isolado das outras produções culturais, sobretudo na contemporaneidade desse mundo digital
e globalizado.
Eco (1993) também ressalta o caráter da Literatura como bem simbólico e que deve-se
apropriar dela a fim de que haja uma proliferação ilimitada de leituras que a obra pode
suscitar. A partir dessa consideração de Eco (1993), nos reportamos à escola como um lugar
de compartilhamento de impressões sobre um texto lido, pois é no ambiente escolar que o
texto, bem escolhido pelo professor, pode favorecer uma experiência literária de grande valor
para os aprendizes. Também o mesmo texto, quando bem explorado por um trabalho que vise
não mais a superficialidade textual, mas a profundidade do discurso literário ali inserido e
registrado, ele passa a ter um efeito de que se espera da Literatura na escola, isto é, integrar o
aluno ao discurso literário, através do seu contato que se inicie na leitura, passe pela
compreensão daquela obra, a sua contextualização frente ao momento literário que se quer pôr
em estudo e ultrapasse os múltiplos sentidos que se dá ao texto literário.
Por meio da leitura do texto literário, o polo da leitura por se constituir num terreno
fluido e variável, a partir dela, origina-se a concretização de sentidos múltiplos, originados em
diferentes lugares e tempos. Nesse raciocínio, hoje, a noção de texto se amplia. Segundo
Barthes (1988), o texto hoje se dirige a um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se
contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original. Esse argumento utilizado por
Barthes (1988) vem a reformular o que já havia tratado Bakthin (1981), ao desenvolver o
conceito de polifonia, chamando a atenção para a dimensão dialógica do texto, apontou para
sua pluralidade discursiva, que vai além dos limites da estrutura interna de um texto de caráter
literário, estendendo-se à leitura e, em seguida, á sua recepção e compreensão literária.
Bakthin (1981) e Barthes (1988) ressaltam a importância das vozes que cruzam um
texto literário e suas múltiplas impressões de sentidos a ele conferido pelo leitor. Também na
sala de aula, as conferências múltiplas de sentido precisam ser apontadas ao texto, no trabalho
com a valorização da leitura conferida pelo aluno aprendiz. O objetivo perseguido nas práticas
escolares é o de formar leitores críticos, e, para tal fato, os próprios documentos oficiais
curriculares das últimas décadas, como os PCNs, tem demonstrado uma preocupação nesse
sentido de promover uma leitura com maior fruição e desempenho.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 243
Qualquer produção de linguagem situada, oral ou escrita pode ser considerada texto,
porém, a propriedade mais básica de todo texto é a sócio-comunicativa, porque diz respeito à
função que o texto cumpre num dado contexto social. O contexto sociocultural em que o texto
se insere determina a construção de seu sentido, uma vez que, além dos aspectos lógico-
semânticos, envolve também aspectos cognitivos, pois “é no partilhar de conhecimentos entre
os interlocutores que o texto passa a fazer sentido” (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1983).
Partindo da reflexão acima, privilegiamos o trabalho com o gênero crônica escolar, a fim
de situar o aprendiz e delimitar para ele as características sócio-comunicativas que tornam um
texto aplicável a este gênero, ou seja, deixar claro para o aluno que faz-se uso de um
determinado gênero de texto na tentativa de atender às necessidades da situação e de se
cumprir as funções sociais a que se destina, que no caso do gênero crônica escolar, está ligado
ao entretenimento, ludismo, humor, dialogismo e reflexão subjetiva do narrador frente a uma
problemática do cotidiano.
2.1 Como a literatura é reproduzida em documentos oficiais e currículos
O que se tem observado é que esses mesmos documentos oficiais curriculares
apresentam uma característica que lhes é comum, ou seja, o fato de querer impor às escolas de
nível fundamental, um trabalho muito automatizado e limitado com a leitura, pois quando
falam de proficiência, só levam em consideração o formatação do aluno para que ele tenha
desempenho favorável em avaliações externas que, no fundo, não aferem nada além da
compreensão superficial de um texto, que muitas das vezes nem é um texto de gênero
literário.
A prática escolar em relação à leitura literária tem sido a de dar ênfase às atividades de
metaleitura, como o estudo do texto e seus aspectos históricos-literários, caracterização de
estilo, deixando, assim, em segundo plano o trabalho mais importante que é a leitura em si do
texto literário. O fato é que os jovens, somente inseridos em atividades de metaleitura, não
serão motivados a ler de forma integral. As tarefas produzidas a partir da metaleitura são
necessárias na escola, entretanto, não podem ser somente o único recurso ao trabalhar com o
texto de gênero literário.
Nesse aspecto, as atividades de metaleitura, ainda que importantes na escola, somente
fazem o aluno aprendiz a refletir sobre alguns dos aspectos da escrita, como organização da
língua e fatores ligados à história e à estrutura dos textos literários. Embora seja difícil fazer
com que os alunos, ainda não leitores, realidade clara em nossas escolas hoje,se interessem até
Nas fronteiras da linguagem ǀ 244
mesmo pelas tais atividades de metaleitura. Parece, portanto, extremamente urgente motivá-
los à leitura dos textos de gêneros literários, promovendo atividades que tenham para eles uma
finalidade clara e não exatamente escolar, por exemplo, que ele se reconheça como leitor, que
compartilhe com outros alunos e o próprio professor, suas impressões de leitura do texto,
evitando a leitura de obrigatoriedade; ler somente porque a escola pede, transformando a sua
leitura numa obrigação, perdendo, com isso, o caráter do prazer de ler.
2.2 A posição do aluno aprendiz frente ao texto literário e os estudos na área de
cognição
Ao ser trabalhado com diversidade de atividades, a leitura de um determinado gênero
literário na escola acaba direcionando o aluno-aprendiz para o desenvolvimento de uma
conduta muito mais responsável e crítica em relação ao texto literário, como construir um
saber sobre o próprio gênero, bem como levantar hipóteses de leitura, perceber características
discursivas intrínsecas a um determinado gênero e até mesmo estratégias narrativas. Há nessa
perspectiva uma concepção cognitiva do uso que se faz da leitura na escola.
Com o desenvolvimento das pesquisas em ciências cognitivas, nos anos 90, surge uma
nova análise do processo de ensino aprendizagem, pois se passou a dar ênfase ao caráter de
natureza social e educacional do ensino de línguas com as quais o aluno tem contato no
ambiente escolar.
Apoiado nessa visão, o ensino de línguas ultrapassa a ideia de que elas seriam somente
“produtos sociais da linguagem” (SAUSSURE, [1916] 2001), atribuindo a elas a dimensão de
construtos semióticos, atingidos por valores identificados nas intersubjetividades em que os
indivíduos se envolvem cotidianamente em suas vidas, conforme afirma Gerhardt (2013).
Assim, essa visão cognitiva muito mais ampliada e focada na subjetividade do aluno,
situa-o no centro do processo de ensino e aprendizagem. O pensamento cognitivo, ao validar
os processos de subjetivação e as semioses que esse aluno constroi e desenvolve, aponta para
novas práticas didáticas que valorizem e reconheçam o aluno como um aprendiz, sobretudo ao
ressaltar a importância de seus conhecimentos prévios.
Ainda, segundo a opinião de Gerhardt (2013), questões como normatividade
(característica inerente à instituição escolar, existente por uma convenção social-histórica),
comprometimento conjunto e situatividade assumem papeis consistentes no novo cenário
educacional, ao mensurar o que significa ser um aprendiz e o que as situações de
aprendizagem significam para esse aprendiz. De posse dessa reflexão, conclui-se que a escola
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 245
ainda prende-se a uma visão muito institucionalizada, e que ao longo do tempo promoveu,
com suas antigas práticas, uma espécie de silenciamento do aluno, porque não reconhecia as
potencialidades cognitivas com as quais esse indivíduo educando chegava à escola.
Se o objetivo é, pois, motivar o aluno, levando em consideração suas habilidades
cognitivas, despertar nele o gosto para a leitura do texto literário e criar um saber sobre a
literatura, é algo que cabe à escola. O papel do professor como mediador das atividades que se
direcionem à leitura, é tarefa que deve permear o contexto das práticas escolares de leitura
literária.
Entretanto, o que é normalmente reproduzido pelos livros didáticos de Língua
Portuguesa no ensino fundamental, é o trabalho fragmentado do texto literário, servindo
apenas de pretexto para análises gramaticais normativas e que não promovem nenhum tipo de
reflexão em relação a própria linguagem. E como a leitura, na sua integridade se perde, em
função da fragmentação do texto literário, também esse modelo anula, em grande parte, a
própria natureza da leitura do texto literário. No trecho abaixo, Chartier explicita alguns
aspectos sobre a leitura do texto literário:
não é somente uma operação abstrata de intelecção; ela é engajamento do corpo,
inscrição num espaço, relação consigo e com os outros e a materialidade, segundo a
qual o texto é dado ao leitor, que contribui largamente para modelar suas
expectativas, além de convidar à participação de outros públicos e incitar novos
usos. (CHARTIER, 1994. p.16).
As considerações feitas sobre a leitura do texto literário na escola apoia-se também na
dimensão plural acerca da diversidade escolar que cada comunidade é inserida, pois cada
escola apresenta uma realidade, cada grupo de alunos se insere num determinado contexto
social e possuem saberes prévios bem distintos. Portanto, fica claro que não é possível
desenvolver um trabalho eficiente com os textos do gênero literário, se não houver a
conscientização de que não é possível admitir que a simples atividade de leitura seja
considerada a atividade escolar de leitura literária.
Refletindo sobre o leitor e o espaço que lhe é conferido pela escola pública, Geraldi
(1985, p.87) afirma que “no microcosmo da sala de aula (...) talvez sejamos nós, professores,
o melhor informante para nossos alunos. Rodízios de livros entre alunos, bibliotecas de sala
de aula, biblioteca escolar, frequência a bibliotecas públicas são algumas das formas para
iniciar este circuito”.
Para a execução didática eficiente de tal tarefa, que é o trabalho com o texto do gênero
crônica, é preciso levar em consideração atividades relativas ao ensino desse gênero,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 246
considerando os saberes prévios dos alunos, de forma a dotá-los de uma melhor capacidade
escrita, inclusive, promovendo uma possível consciência autoral no aprendiz. Essas atividades
têm um caráter de reformulação qualitativa no ensino de um gênero, a crônica, bem como
apostam no protagonismo autoral, literário e metacognitivo do aluno.
3. O trabalho didático com o gênero crônica “escolar” e as estratégias metacognitivas
Devido a seu traço dissertativo, ensaístico e opinativo, muitas crônicas convidam o
leitor a um posicionamento crítico a partir da situação abordada na narrativa. E esse aspecto é
o que mais chama a atenção nos textos de crônica inseridos nos livros didáticos. Tirando o
aspecto de base interpretativa a que as questões dos livros se agarram e que são somente
superficiais no trabalho com a linguagem, aproveitar esses textos de crônica escolar em
atividades que suscitem o uso das habilidades cognitivas e metacognitivas do aluno aprendiz,
passa a ter um valor didático bem mais aplicável e consistente, pois insere o aluno no contexto
literário, discursivo e linguístico.
Não só a leitura da crônica escolar, nesta abordagem, se torna importante, mas também
colocar o aluno frente a esse texto, confrontar os saberes prévios e conhecimentos individuais
que cada aprendiz traz consigo, arranjar e reformular questões linguísticas e gramaticais. A
produção escrita de um texto no formato da crônica escolar é outra atividade didática
fundamental, quando o aprendiz percebe a importância da sua escrita, como uma prática
social, bem como ele na prática escrita, melhora seu desempenho. Outra condição necessária
que se deve explorar é fazer com que o aluno enxergue a atividade escrita como uma prática
que se faz necessária para toda a sua vida e que a melhor saída é trabalhar o seu convívio com
ela da forma mais natural possível.
É preciso mensurar para o aluno o valor da escrita, pois é uma das formas do indivíduo
se fazer notado enquanto sujeito ativo na sociedade. Os próprios estudos linguísticos mais
recentes apontam para uma nova metodologia de ensino que considera essencial ter a escrita
como uma prática constante, como afirma Moita Lopes (1994). Com isso, a escola assume um
papel importante na orientação do indivíduo para a prática da escrita, ao encarar a escrita
como um processo, pois escrever é um processo que envolve inúmeras fases. A visão da
linguística a esse respeito nos demonstra que
A escrita é uma ativdade que envolve várias tarefas, às vezes sequenciais, às vezes
simultâneas. Há também idas e vindas: começa-se uma tarefa e é preciso voltar a
uma etapa anterior ou avençar para um aspecto que seria posterior (GARCEZ,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 247
2002,P.14).
Assim sendo, o processo de escrita da crônica por parte do aprendiz engloba também
uma atividade cognitiva sequencial e o uso de estratégias metacognitivas na produção dessa
escrita, podem ser traduzidas em etapas de arranjar, rearrumar a linguagem e construir um
significado para seu texto, isto é, para que ele assuma a condição de ser inserido num dado
gênero, como a crônica escolar. Neste momento, o aprendiz põe em ação uma consciência
metalinguística acerca de sua escrita e esta também é considerada uma habilidade
metacognitiva, pois a atividade metalinguística aparece pelas atitudes reflexivas e
intencionais na construção do texto.
Logo, o trabalho com o texto do gênero crônica escolar, baseado no uso de estratégias
metacognitivas, torna o aprendiz capaz de produzir esse gênero, compreendido a partir de sua
intencionalidade discursiva, suas condições de produção e suas peculiaridades linguísticas que
o tornam um texto dessa natureza. Consequentemente a isso, a escola assume a sua condição
de ensino natural e realiza a tarefa de trabalhar a escrita do indivíduo como um processo
gradual, desmistificando assim, a velha ideia de que escrever é um dom.
Conclusão
Apresentamos neste artigo um estudo com base nas pesquisas da área da Cognição e
Metacognição, aplicado ao trabalho do professor, em sala de aula, com o gênero crônica
escolar, que, configurada nesse padrão seria, portanto, uma narrativa breve com pouca tensão,
um texto ligeiro (no sentido de rápida leitura). Outro ponto importante para se entender este
tipo de crônica, muito publicada em nossos livros didáticos de Língua Portuguesa no ensino
fundamental, é o fato de sugerir grande aproximação entre autor e público, pois, conforme
afirma Candido (1992), “fala de perto ao nosso modo de ser mais natural”.
Neste trabalho, refletiu-se ainda sobre o ensino da crônica enquanto gênero literário
escolar e a aplicabilidade de uma proposta de intervenção em sala de aula do ponto de vista
cognitivo e que leve em consideração o aluno enquanto aprendiz, detentor de uma
subjetividade. Assim, a proposta aqui apresentada traz o aluno para o centro do cenário
educacional, priorizando as suas identidades situadas, a fim de compreender as formas como
esses aprendizes constroem significados múltiplos em relação à leitura do texto literário e a
sua consequente produção escrita.
Em suma, apresentamos, neste artigo, os saber (es) do aluno sobre o gênero crônica,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 248
como esses saberes se constroem individual e coletivamente no ambiente escolar, bem como o
que esse gênero pode representar para esse aluno, sobretudo por ser um gênero muito comum,
previsto pelos currículos escolares do 9º ano do ensino fundamental.
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Nas fronteiras da linguagem ǀ 250
LÍNGUA DISCURSIVA [E FORMAS DE VIDA] NOS
MANUSCRITOS DE SAUSSURE [Voltar para Sumário]
Ana Paula El-Jaick
É comum se responsabilizar Ferdinand de Saussure pela paternidade da ciência da
linguagem, a linguística. O mais intrigante, contudo, é que o DNA era atestado em corpo
textual alheio. Afinal de contas, é sabido que foram notas de alunos, feitas durante cursos que
Saussure professava em Genebra, que fizeram nascer o Curso de linguística geral1 – ou seja,
não foi de próprio punho que nasceu a obra que o fez notório entre seus pares, pois o CLG é
um livro escrito depois da morte do autor, por Charles Bally e Albert Sechehaye, em 1916, a
partir das referidas anotações. Desse modo, é evidente a dificuldade de recuperar o
pensamento de Saussure (quer dizer, é difícil recuperar o pensamento de qualquer autor, mas,
no caso dele, isso se torna ainda mais crítico). Porém, a publicação de material que se
encontrava restrito à consulta na Biblioteca pública e universitária de Genebra, material esse
que vem a ser um conjunto de manuscritos descobertos em 1996 na estufa do hotel da família
de Saussure nessa mesma cidade, faz renascer o autor.
Antes de começar qualquer análise acerca dos manuscritos de Saussure, quero ressaltar
a grande beleza desses textos devido a seu sopro confessional: Saussure escreve com uma
mão hesitante, transbordando dúvidas. Nos manuscritos, então, vemos o mestre genebrino
tateando através da complexidade do objeto que elegeu para investigar; vemos o linguista
expondo (à sua revelia, visto que esse não era um material para ser publicado) suas dúvidas a
seus discípulos. Encontramos, assim, um Saussure em busca das “verdades fundamentais” da
linguagem humana; um Saussure buscando argumentos para fixar um ponto de vista legítimo
sobre a linguagem.
Nos manuscritos, conforme teorizaram os prefaciadores Bouquet e Engler, Saussure
percorre três campos de saber: uma epistemologia para essa nova ciência que é a linguística;
uma reflexão prospectiva sobre a disciplina linguística a ser ministrada em cursos de
1 Doravante CLG.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 251
graduação; e (o ponto a que mais darei destaque neste meu escrito) uma especulação analítica
sobre a linguagem que o próprio Saussure chamou, por vezes, de filosófica (Bouquet; Engler,
2002, p.12).
Previno então meus leitores de que, se avisei sobre a dificuldade da reconstrução do
pensamento saussuriano, por outro lado devo dizer que a novidade trazida pelos manuscritos
pode, também, ser profícua para se ler um Saussure, digamos assim, “pós” estruturalista, isto
é, para se ver um autor a partir de novo ponto de vista segundo o qual este já percebia
questões sobre a linguagem humana que foram postas tempos depois de sua ideia de língua
como sistema de signos. Nesse sentido, vou aproximar Saussure de dois desses autores (pós-
modernos), J. Derrida e L. Wittgenstein, para mostrar um Saussure que parece ter reconhecido
uma linguística inessencial – ou, nos termos de autores ditos pós-estruturalistas, uma
linguística discursiva, uma linguística do acontecimento, uma ideia de linguagem como forma
de vida.
De fato, pretendo trazer elementos dos manuscritos para se pensar em lampejos de
formulação por uma linguística saussuriana do acontecimento (entendendo acontecimento
como uma possibilidade de fixar a linguagem de forma apriorística, posto que ela acontece no
ato de fala). Isso se dá quando Saussure procura corrigir alguma tentativa de se pensar o
sentido como podendo ser apriorístico e material. Em vez disso, o que Saussure afirma haver
é um sentido sem lastro essencial; afinal, um elemento só diz seu valor diante de outros
elementos de mesma ordem. Além disso (questão que foi ressaltada exaustivamente por um
dos maiores comentadores de seus manuscritos, Loïc Depecker (2012)), e mais importante:
Saussure enfatiza em seus escritos que o valor deve ser entendido, antes de tudo, como tendo
um caráter social.
Os valores estão, logo, na diferença das relações entre os signos, na différence das
significações estabelecidas pelas relações entre os signos, “mais a atribuição anterior de certas
significações a certos signos ou reciprocamente. Há, então, antes de tudo, valores
morfológicos: que não são ideias e também não são formas” (Saussure, 2002, p.31). Isso quer
dizer que, num certo sentido, os valores não existem – pois sequer eles são a forma, já que
eles só existem na relação com outras formas. O que há é negação: a diferença das “figuras
vocais” (que, no CLG, são definidas como “imagens acústicas”) somadas à différence dos
sentidos valorados no sistema linguístico:
Todo o estudo de uma língua como sistema, ou seja, de uma morfologia, se
resume, como se preferir, no estudo do emprego das formas ou no da representação
das ideias. O errado é pensar que há, em algum lugar, formas (que existem por si
Nas fronteiras da linguagem ǀ 252
mesmas, fora de seu emprego) ou, em algum lugar, ideias (que existem por si
mesmas, fora de sua representação) (Saussure, 2002, p.32).
Podemos dizer, então, que, para Saussure, a língua é diferença: a língua é um “oceano
de diferenças” – a essência da linguagem é negativa, diferencial. Propositadamente lancei
mão do termo francês différence aqui para estabelecer uma relação no mínimo instigante com
outro francês – que, a rigor, veio a desconstruir Saussure: o filósofo da desconstrução Jacques
Derrida. É conhecido o jogo de palavras que Derrida faz com différance/différence. Derrida
joga esse jogo com o intuito de mostrar como essa diferença só acontece e pode ser percebida
na escrita, uma vez que, na fala, ela desaparece (a pronúncia da expressão francesa é a mesma
nos dois casos). Ele propõe, dessa forma, um novo conceito de escrita a que ele chama de
grama ou différance:2 “A différance é o jogo sistemático das diferenças, dos rastros de
diferenças, do espaçamento, pelo qual os elementos se remetem uns aos outros” (Derrida,
2001, p.33). A différance é o jogo das diferenças que faz com que um elemento sempre remeta
a outro e, assim, nada mais haja que diferenças e rastros de rastros [trace]. De acordo com o
próprio Derrida: “A différance não é nem uma palavra, nem um conceito” (Derrida apud
Stone, 2000, p.88) – e, ouso dizer, é um herdeiro daquilo que Saussure rabiscou em seus
manuscritos. Então, ousarei dizer mais: a diferença saussuriana se aproxima da errância
derridiana, posto que as formas-sentido, os valores são erráticos, flutuantes:
1º Um signo só existe em virtude de sua significação; 2º uma significação só existe
em virtude de seu signo; 3º signos e significações só existem em virtude da
diferença dos signos (Saussure, 2002, p.37).
O que há, de acordo com Saussure, é diferença de formas e diferenças de significações
– ou seja, “coisas já negativas em si mesmas” (Saussure, 2002, p.42). Como já disse
repetidamente, meu objetivo aqui é atentar para esse Saussure pós-estruturalista que já previa
a necessidade de se ater ao emprego (vou deliberadamente chamar de uso) das formas – para
só então ser possível o estudo de uma língua. Realmente, Saussure afirma não haver formas
que pairam “fora do seu emprego” – eu diria: fora do seu uso. Pensar que haveria formas
materiais é quase como pensar na realidade da quadratura do círculo.
Pensar a língua em seu uso aproxima Saussure das perspectivas da linguagem
ordinária, que busca discutir os problemas centrais da tradição filosófica através da análise da
linguagem comum. Entre tais perspectivas encontra-se a do assim chamado segundo
2 “Obviamente, não se trata de recorrer ao mesmo conceito de escrita e de inverter simplesmente a dissimetria
que colocamos em questão. Trata-se de produzir um novo conceito de escrita. Pode-se chamá-lo grama ou
différance” (Derrida, 2001, p.32).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 253
Wittgenstein. Essa aproximação se torna ainda mais palpável quando pegamos a afirmação de
Saussure de que a forma fora de seu emprego é vazia e a juntamos ao aforismo
wittgensteiniano segundo o qual a linguagem fora de uso é “quando a linguagem entra em
férias” (Investigações Filosóficas § 38).3
Pensar a língua em seu uso também pode aproximar Saussure daqueles que entendem
a linguagem como presença – ou seja, a língua existe na efemeridade da pronunciação,
quando abrimos a boca para falar (uma vez, duas vezes, quinhentas vezes...). A língua não é
um ente concreto – para Saussure, a língua é (Saussure, 2002, p.35). Não há uma essência
para além da aparência da língua – as expressões linguísticas valem no uso que se faz delas.
Admitir que o objeto estudado pelo linguista só pode ser definido em seu uso é
também admitir que a delimitação das unidades linguísticas têm fronteiras, limites plásticos,
móveis. A questão da delimitação, de fato, recorre nos manuscritos saussurianos. Saussure
pretende delimitar unidades linguísticas – mas, para tal, é preciso que essa unidade seja
significativa: a unidade linguística, diz Saussure, só pode ser determinada por sua
significação. Não obstante, a significação só se dá pela diferença: “É a diferença que torna
significativo, e é a significação que cria também as diferenças” (Saussure apud Depecker,
2012, p.74). Não obstante, para que a unidade linguística seja significativa, é preciso verificar
seu valor: “É o próprio valor que fará a delimitação; a unidade não é delimitada
fundamentalmente” (Saussure apud Depecker, 2012, p.74).
Admitir que o objeto estudado pelo linguista só pode ser definido em seu uso é
também admitir que é no plano discursivo que ocorrem todos os tipos possíveis de mudança
com a linguagem – tanto modificações no plano gramatical, quanto no plano fonético etc.
(Saussure, 2002, p.86). Nessas modificações também se incluem os neologismos, pois é
apenas se pensarmos na língua como uma linguagem discursiva – falada de improviso – que
se faz possível produzir formas novas.
É claro que podemos vislumbrar certa equivocidade de Saussure nesta formulação.
Assim, ao mesmo tempo em que podemos concluir que as entidades reconhecidas como
elementos da linguagem, simplesmente, não existem, por outro lado, em outras passagens,
esses elementos (conforme também está presente no CLG) são da ordem da mente –
significado e significante (traduzidos por “significação” e “signo”, Saussure, 2002, p.22) são
entidades presentes em nossa consciência. Nesse sentido, na seção “II. Antigos Item”,
Saussure escreve: “A frase só existe na fala, na língua discursiva, enquanto a palavra é uma
3 Doravante vou me referir à obra Investigações Filosóficas como IF.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 254
unidade que vive fora de todo discurso, no tesouro mental” (Saussure, 2002, p.105, grifo
nosso). Vemos que a segunda parte do seu desenvolvimento (ou seja, “enquanto a palavra é
uma unidade que vive fora de todo discurso, no tesouro mental”) parece contradizer a
discursividade que o linguista havia formulado anteriormente.
Para além dos sentidos contrários passíveis de serem interpretados aqui, entendo que o
interessante é vermos um Saussure que se coloca perguntas – antes de afirmar uma teoria da
linguagem. Na parte intitulada “Nota sobre o discurso”, Saussure faz uma afirmação e uma
pergunta numa mesma frase: “A língua só é criada em vista do discurso, mas o que separa o
discurso da língua ou o que, em dado momento, permite dizer que a língua entra em ação
como discurso?” (Saussure, 2002, p.237)
Ele próprio esboça uma resposta em que podemos vislumbrar o linguista pensando em
voz alta. Ele responde à sua própria pergunta afirmando que os conceitos estão revestidos de
uma forma linguística no sistema. Porém, há um jogo através do qual tais conceitos formarão
o DISCURSO – e aí vem a pergunta: qual é esse jogo (Saussure, 2002, p.237)?
A resposta de Saussure é que a língua não tem substância, não tem matéria. Daí que as
“entidades” linguísticas não têm um fundamento absoluto. As entidades linguísticas são, tão
somente, “LUGARES de diferença”. A linguagem não é essencial; nada nela é da ordem do
necessário. Antes, estamos no campo da antimatéria; estamos no campo das possibilidades.
Afinal de contas, como Saussure reconhece: a língua é um objeto por demais complexo.
Referências
BOUQUET, S; ENGLER, R. “Prefácio”. In: SAUSSURE, F. de. Escritos de Linguística
Geral. São Paulo: Editora Cultrix, 2002.
DEPECKER, L Compreender Saussure a partir dos manuscritos. Tradução de Maria Ferreira.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
DERRIDA, J. Posições. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
SAUSSURE, F. de. Escritos de Linguística Geral. Organizados e editados por Simon Bouquet
e Rudolf Engler. Tradução: Carlos Augusto Leuba Salum; Ana Lucia Franco. São Paulo:
Editora Cultrix, 2002.
______. Curso de linguística geral. São Paulo, Editora Cultrix, s/d [1916]
STONE, M. Wittgenstein on deconstruction. In: CHARY, Alice & READ, Rupert (Orgs.) The
new Wittgenstein. London: Routledge, 2000.
WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. Tradução: José Carlos Bruni. São Paulo:
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 255
Abril Cultural, 1975 (Coleção Os Pensadores).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 256
DA LIBERDADE MASCULINA: REFLEXÕES SOBRE KAREN
BLIXEN E ELENA FERRANTE [Voltar para Sumário]
Ana Paula Raposo (UFMG)
Na realidade editorial contemporânea, basta se folhear um livro para perceber que o
texto não se apresenta sozinho, existem aparatos textuais que o cercam. Esses aparatos se
encontram dentro e fora do livro, como aponta o teórico da Literatura Gérard Genette, em sua
obra Paratextos editoriais. Genette faz distinção de paratextos peritextuais e epitextuais: os
peritextos encontram-se na obra e os epitextos encontram-se fora da obra – geralmente, em
algum tipo de suporte midiático.
Neste ensaio, tento refletir sobre a imagem de escritora de Karen Blixen, a partir dos
epitextos, considerando também os postulados da crítica biográfica.
A sedução do arquivo
Durante anos, a crítica literária se ocupou em buscar o significado único e finito de obras
literárias. Até que o leitor ganhasse espaço nos estudos literários, as diversas correntes de
teoria e crítica literárias buscavam o sentido do texto tal que o autor desejava. Acreditava-se
então que o escritor guardava o segredo da obra.
Com o desenvolvimento de outros pensamentos teóricos, a pesquisa nos arquivos
mostra-se eficiente e sedutora. Sedutora, pois remete à promessa de se achar a origem da obra
literária, de se alcançar a 'real' intenção do autor, de se encontrar a verdade da obra literária,
desvendar o segredo que o autor guarda. A pesquisa nos arquivos será eficiente à medida que
tomarmos o arquivo como uma figura epistemológica, intercambiando outras práticas
disciplinares, como a arquivística, por exemplo.1
Para não cair na armadilha de desvendar os segredos do autor, é preciso estar ciente de
que o discurso que se contrói a partir deles não é linear, como deseja a historiografia. Dois
conceitos iluminam o caminho contrário ao caminho do discurso histórico: o conceito de ruína
1 MARQUES. O arquivo literário como figura epistemológica, p. 15.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 257
de Walter Benjamin e o conceito de resto de Giorgio Agamben, pois “constituem-se em
potência crítica do arquivo, evidenciando a não coincidência entre os fatos literários, os
documentos e materiais do arquivo, e as interpretações que se fazem dele”.2
Essencialmente, a crítica biográfica propõe o mesmo olhar crítico aos arquivos, para
que se evite a famosa questão: “A arte imita a vida? Ou a vida a imita a arte?”. Sobretudo nos
estudos do gênero biográfico, em que as discussões perpassam também pelos polos da
realidade versus ficção.3
Finalmente, é importante destacar que a pesquisa nos arquivos e nas fontes primárias
promove a interdisciplinaridade, além de problematizar “categorias canônica dos estudos
literários, tais como: texto, obra, autor, valor estético universal [...]”.4 A investigação dos
paratextos perpassa igualmente por essas categorias, é pensando nelas que oriento este ensaio.
O epitexto
Na década de 1980, Gérard Genette escreve Palimpsestos: a literatura de segunda mão, livro
em que cunha o termo paratexto. Nesta obra, Genette afirma que os paratextos “fornecem ao
texto um aparato (variável) e por vezes um comentário”5 e que são “espaços privilegiados da
dimensão pragmática da obra, isto é, da sua ação sobre o leitor – espaço em particular do que
se nomeia sem dificuldade, a partir dos estudos de Philippe Lejeune sobre a autobiografia, o
contrato (ou pacto) genérico.”6
Mais tarde, ao desenvolver o termo em Paratextos editoriais, Genette define o
paratexto como “aquilo por meio de que um texto se torna livro e se propõe como tal a seus
leitores, e de maneira mais geral, ao público”,7 constituído de nome de autor, título, prefácio,
ilustrações, notícias de jornais, resenhas etc. Mas não se trata somente de um lugar de
transição – se trata também de um lugar de transação em que se permite ao autor e ao editor
fornecer ao leitor informação e interpretação para “uma melhor acolhida do texto” e para
“uma leitura mais pertinente”.8 Esses limiares do texto – que convidam o leitor a manusear,
folhear e finalmente ler – abordam instâncias que são discutidas pela crítica literária.
2 MARQUES. O que resta nos arquivos literários, p. 199. 3 SOUZA. A crítica biográfica, p. 19-20. 4 MARQUES. O arquivo literário como figura epistemológica, p. 20. 5 GENETTE. Palimpsestos: a literatura de segunda mão, p. 13. 6 GENETTE. Palimpsestos: a literatura de segunda mão, p. 14. (grifo do autor) 7 GENETTE. Paratextos editoriais, p. 9. 8 GENETTE. Paratextos editoriais, p. 10.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 258
Enquanto o peritexto editorial se ocupa dos paratextos no livro, o epitexto “não se
encontra anexado materialmente ao texto no mesmo volume, mas que circula de algum modo
ao ar livre, num espaço físico e social virtualmente ilimitado.”9 Basicamente, os epitextos
públicos são os meios de que o leitor usa para tomar conhecimento de um livro, “uma
entrevista do autor – quando não por meio de uma resenha num jornal ou de uma
recomendação boca a boca [...]”. Tendo em mente que o paratexto adiciona comentário ao
texto e ajuda na circulação da obra, o epitexto talvez seja a potência que mais atinge o
público.
É preciso reconhecer que além dos epitextos públicos (entrevistas, conversas, debates
e colóquios etc.) Genette coloca outros elementos epitextuais como epitextos privados. O que
os distingue é a intenção de publicação, pois em razão do caráter íntimo dos diários e das
correpondências, elas não têm como destinatário final o público.
No epitexto público, o autor dirige-se ao público, eventualmente por meio de um mediador; no
epitexto privado, dirige-se primeiramente a um confidente real, percebido como tal e cuja
personalidade influi nessa comunicação, chegando a modificar sua forma e conteúdo.10
Dessa forma, a principal diferença é o destinatário dos epitextos. Nos epitextos
públicos, o destinatário nem sempre é o leitor, mas o público do veículo de comunicação em
que se publica a entrevista, por exemplo. Genette chama atenção para os fragmentos deixados
pelo autor nestes epitextos públicos, fragmentos de informação que adicionam comentário ou
modos de interpretação da obra. Uma afirmação do autor me parece relevante:
[...] o epitexto é um conjunto cuja função paratextual não tem limites precisos, e no
qual o comentário da obra se difunde indefinidamente num discuso biográfico,
crítico ou outro, cuja relação com a obra é às vezes indireta e, no caso extremo,
indiscernível.11
Os fragmentos encontrados no peritexto em que há reflexões do próprio autor sobre a
literatura e sobre processo de composição são os pontos fundamentais de que se vale a
pesquisa na crítica biográfica.12
Eneida Maria de Souza reforça essa ideia e afirma que este
tipo de pesquisa “desloca o lugar exclusivo da literatura como corpus de análise e expande o
9 GENETTE. Paratextos Editoriais, p. 303. 10 GENETTE. Paratextos Editoriais, p. 327. 11 GENETTE. Paratextos Editoriais, p. 305. 12 FREITAS. O escritor e seu ofício em busca da Teoria da Literatura, p. 190.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 259
feixe de relações culturais”13
, uma vez que a crítica biográfica está entre a teoria e a ficção,
documento e literatura.
Voltada aos aspectos editoriais, a teoria de Genette estima, por vezes, as circunstâncias
publicitárias. Destaco a entrevista, neste caso, colocada pelo autor como um “jogo social” em
que a necessidade de se “lançar” a obra ao público se torna presente. Por esta razão, as
entrevistas com autores têm caráter descritivo, há necessidade de se fazer leitura de partes da
obra, descrever o enredo etc. Assim, pelo mesmo motivo, é possível identificar “clichês
intercambiáveis, estoque de questões típicas para o qual rapidamente constituiu-se um estoque
de respostas típicas [...]”.14
Aos romancistas, se pergunta principalmente sobre os traços
biográficos da obra ou sobre a existência de chaves na obra, por exemplo.
Gostaria de salientar que, apesar do cunho editorial/publicitário que se tem na obra de
Gérard Genette, a matéria-prima é a mesma para os estudos da crítica biográfica. Essas fontes
primárias podem ser um meio de se investigar a literatura, problemas sociais, as ligações
externas da produção do escritor etc., como também podem intermediar a Teoria Literária e o
objeto de estudo. Se pensarmos no gênero da entrevista, as teóricas Eneida Maria de Souza e
Rachel Esteves Lima acreditam que, uma vez que ela está fora do espaço privado, como o da
correspondência, por exemplo, o entrevistado assume um aspecto “performático”, que
contribui para a imagem e os mitos da instância do escritor.15
A imagem do escritor
No começo do século XX, os formalistas russos tentaram afastar do texto literário
aspectos como o contexto histórico, social e biográfico de um autor com a intenção de, na
teoria literária, estudar o texto a partir de valores puramente estéticos. No final da década de
1960, Roland Barthes com "A morte do autor" e Michel Foucault com "O que é um autor?",
impulsionados pelo formalismo russo, colocam em discussão o conceito de sujeito/autor. O
desaparecimento do autor desdobrou-se em propostas de noções literárias como autor ideal,
autor-indivíduo, função-autor, autor como leitor, leitor como autor etc. No entanto,
posteriormente à publicação de “A morte do autor”, Roland Barthes reconhece “a presença do
autor não mais como ausente do texto, mas na condição de ator e de representante intelectual
13 SOUZA. Crítica cult, p. 111. 14 GENETTE. Paratextos editoriais, p. 318. 15 LIMA. A Entrevista como gesto (auto) biográfico, p. 41.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 260
no meio acadêmico e social.”16
Barthes recorre à psicanálise lacaniana, à semiologia e ao
teatro de Brecht para identificar o autor como sujeito crítico.
A partir do momento em que um autor assume a personagem de escritor, isto é, “uma
identidade mitológica, fantasmática e midiática”17
, as imagens deste sujeito são construída a
partir de diversas leituras, anacrônicas ou sincrônicas, aí incluídas também as imagens dos
autores ausentes ou mortos. O ponto central aqui é o deslocamento do autor, da assinatura de
uma obra para o escritor, figura intelectual e agente cultural. O autor constroi sua imagem
partindo do imaginário de escritor.
Me parece interessante somar à questão da imagem do escritor o uso de pseudônimo
pelos escritores, baseando-me na discussão que Genette promove no capítulo “Nome de
autor”. Acreditando ser o pseudônimo um possível espaço de criação de um escritor, Genette
afirma: “Claro está que o pseudônimo é uma atividade poética, e algo como uma obra. Se
você sabe mudar de nome, sabe escrever.”18
Portanto, para Genette, o pseudônimo pode ser
um modo de reforçar a autenticidade do autor, para enfraquecer ou contestar sua imagem. O
pseudônimo também atiça a curiosidade do leitor e Genette cita o estudo de Jean Starobinski
sobre o pseudônimo de Stendhal: “quando um homem se mascara ou adota um pseudônimo,
sentimo-nos desafiados. Esse homem se recusa a nós. E, em contrapartida, queremos saber.”19
Genette ainda sugere que o uso do pseudônimo pode ser um modo de distinguir a figura do
autor da figura do homem privado.
A contadora de histórias
Isak Dinesen é pseudônimo de Karen Blixen, escritora dinamarquesa que produziu ao
longo de sua vida uma série de contos e um livro de memórias, Out of Africa, que tem origem
nos anos em que a autora viveu na África, de 1914 a 1931. Hannah Arendt dedica um capítulo
à Blixen no livro Homens em tempos sombrios e sem delongas explicita que a condição de
escritora nunca foi de fato um desejo dela: “Ela ‘outrora nunca quis ser uma escritora’, ‘tinha
um medo intuitivo de ficar presa’, e qualquer profissão, por designar invariavelmente um
papel definido na vida, seria uma armadilha, escudando-a contra as infinitas possibilidades da
própria vida.”20
Enquanto Ezra Pound clama “Make it new!”21
, Blixen declara ser “uma
16 SOUZA. Notas sobre a crítica biográfica, p. 116. 17 SOUZA. Notas sobre a crítica biográfica, p. 116. 18 GENETTE. Paratextos editoriais, p. 53. 19 STAROBINSKI. Stendhal pseudonyme. Citado por GENETTE. Paratextos editoriais, p. 49. 20 ARENDT. Homens em tempos sombrios, p. 87. 21 COMPAGNON. Os cinco paradoxos da modernidade, p. 9.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 261
contadora de histórias e nada mais”,22
adotando técnicas romanescas, o que dificulta que seja
enquadrada em escolas literárias.
A entrevista que desenrola os fios investigativos de Hannah Arendt foi publicada pela
coletânea The Paris Review Interviews Writers, em 1977. À época desta entrevista, todas as
obras mais importantes já tinham sido publicadas nos Estados Unidos e em alguns países da
Europa, principalmente as duas obras que a estabelecem como escritora renomada: Seven
Gothic Tales (Sete Histórias Góticas) e Out of Africa (A fazenda africana).23
Usarei da
mesma entrevista, de Eugene Walters, para desenrolar meus próprios fios investigativos.
O entrevistador, Eugene Walters, abre a entrevista citando as lendas que surgiram nos
Estados Unidos da América acerca da escritora:
Ela é na verdade um homem, ele é na verdade uma mulher, ‘Isak Dinesen’ é na
verdade uma colaboração de irmã e irmão, ‘Isak Dinesen’ veio aos EUA na década
de 1870, ela é parisiense, ele mora em Elsinore, ela fica geralmente em Londres, ela
é uma freira, ele é muito hospitaleiro e recebe jovens escritores, ela é dificíl de se
ver e vive reclusa, ela escreve em francês, não, em inglês, não, em dinamarquês...24
Percebo que a especulação do, até então, misterioso escritor, também é agravada
devido ao pseudônimo. Enquanto os EUA criavam hipóteses, a imprensa dinamarquesa
procurava descobrir quem era o escritor dinamarquês que se recusava em escrever na língua
nativa. Destaco duas objeções relativas à recusa: a primeira, a recusa à imagem pública, nos
EUA; e a segunda, a recusa à identidade nacional, na Dinamarca. No caso de Isak Dinesen,
acredito que essas duas objeções tenham um fator comum: a possibilidade de liberdade de
escrita. Além disso, o pseudônimo masculino corrobora esta ideia. Principalmente ao
relacionar a recepção da primeira obra mais conhecida, Seven Gothic Tales, na Dinamarca: a
autora recebeu duras críticas como perversa e pervertida. 25
As formas narrativas de Dinesen se assemelham às formas de narrativas orais e,
pessoalmente, este é um dos aspectos mais encantadores em sua obra26
. Isak Dinesen escreveu
majoritariamente short stories, gênero que, de acordo com Walter Benjamin, “se emancipou
da tradição oral [...], que representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa
perfeita vem à luz do dia a partir das várias camadas constituídas pelas narrações sucessivas”
22 ARENDT. Homens em tempos sombrios, p. 88. 23 Seven Gothic Tales é publicada nos EUA em 1934 e Out of Africa em 1937. 24 WALTERS. Isak Dinesen, p. 4. (Tradução minha.) 25 THURMAN, A vida de Isak Dinesen, p. 295. 26 Conferir DINESEN, Isak. The Blank Page. In: GILBERT, Sandra M; GUBAR, Susan. The Norton anthology
of literature by women: the traditions in English. New York ; London: W. W. Norton, 1985.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 262
27. Toda a sua obra é influenciada pela contação de histórias e a autora muitas vezes é
chamada de “Sherazade dinamarquesa”. Em um de seus contos mais belos, é feita referência
às mil e uma noites: “Certamente, eu já contei muitas histórias, muito mais que mil e uma”.28
Na entrevista, Dinesen declara que:
Mas antes, eu aprendi como contar (grifo meu) estórias. Porque, veja só, eu tinha o
público perfeito. Os brancos não conseguem mais ouvir uma estória contada. Eles
ficam impacientes ou sonolentos. Mas os nativos têm um ouvido manso. Eu contava
estórias constantemente, de todos os tipos. E todos os tipos de bobagens. Eu dizia
“Era uma vez um homem que tinha um elefante de duas cabeças...” e aí eles ficavam
ansiosos para ouvir mais. “Mas Mem-Sahib, como ele encontrou o elefante e como
ele o alimentava?”. Eles amavam essas invenções. Eu os encantava fazendo rimas;
eles não têm rimas, sabe, nunca as tinham descoberto. Eu diria coisas como
“Wakamba na kula mamba” (“a tribo Wakamba come cobras”), o que na prosa os
teria enfurecido, mas os divertia na rima. Depois, eles diziam “Por favor, Mem-
Sahib, fale como a chuva!”, e então eu soube que eles gostavam, porque a chuva lá é
preciosa para nós.
Sirvo do ensaio de Walter Benjamin para elucidar a predileção pelas narrativas orais. Acredito
que esta predileção esteja vinculada à experiência e à vivência, aos moldes benjaminianos.
Em diversas passagens de Out of Africa, a narradora nos mostra a importância da contação de
histórias, do calor da lareira, dos ouvidos atentos e da experiência compartilhada neste
momento. Ser “uma contadora de histórias e nada mais”, é dar conselhos, é preservar a
memória, é ser humana.
Acredito piamente que, dentre os fatores analisados, Dinesen buscava enfraquecer sua
imagem de escritora, fugindo da responsabilidade de ser uma representante da cultura, uma
intelecual, criando sua imagem como uma ‘simples’ contadora de histórias. Paradoxalmente,
um contador de histórias carrega a responsabilidade da memória coletiva e cultural – logo,
pressuponho que a afirmação de Dinesen é um modo de se desviar da imagem ‘pedante’ de
escritora, mas assumindo as mesmas responsabilidades.
A outra contadora de histórias
Elena Ferrante é pseudônimo de uma escritora napolitana, que publicou na década de
1990 sua primeira obra. Após o sucesso da primeira obra, adaptada para o cinema italiano
ainda em 1990, a escritora passou mais de dez anos sem publicar outra obra, à espera de cair
no esquecimento. Não se sabe a idade da autora ou seu nome verdadeiro, e da mesma forma
27 BENJAMIN, Walter. O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, p. 221. 28 GILBERT; GUBAR. Isak Dinesen, p. 1391. (Tradução minha)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 263
que o pseudônimo masculino de Blixen gerou especulações, Ferrante tem gerado na grande
mídia especulações similares às da Dinamarquesa.
Outro ponto de contato entre as escritoras é o alcance mundial depois das publicações
em língua inglesa mas teve sucesso semelhante. Em 2012 foi publicada em inglês pela Europa
Editions. Enquanto a recepção italiana não tem dúvidas de que é um homem, julgando ser,
Domenico Starnone, o público americano tem certeza de ser uma mulher. O crítico literário
James Wood publicou no The New Yorker, uma resenha defendendo que “honestidade brutal”
na escrita de Ferrante é pertentencente a um feminino a que um homem dificilmente chegará.
Numa entrevista recente, no entanto, Ferrante admite ser uma mulher.
Como a dinamarquesa Blixen, mais do que escritora, Ferrante diz que se vê como uma
contadora de histórias, em outra entrevista, todas dadas por e-mail e por intermédio de seus
editores, a escritora diz que: “O que escrevo está cheio de referências a situações e
acontecimentos que são reais e verificáveis, mas organizados e reinventados como se nunca
tivesse acontecido”.
O editor italiano de Ferrante, negou a ideia de que, numa Itália obcecada por
celebridades, o anonimato de Ferrante foi uma inteligente jogada de relações públicas. Diz
ele: "Não ter um autor significa que ela não ir na TV, não vai a festivais, não coleta prêmios,
então você não pode entrar em sua neles, que tipo de estratégia de marketing é issa?”. Mas
para alguns teóricos, essa é uma grande estratégia, datando inclusive das primeiras tradições
de pseudônimos masculinos usados por escritoras na era vitoriana. Michel Foucault, em “O
que é um autor?”, já havia dito que “o anonimato literário não nos é suportável; nós não o
aceitamos senão a título de enigma”.
A teórica Catherine A. Judd expõe outro ponto de vista no ensaio “Male pseudonym
and Female Authority in Victorian England”. Com o advento do pós-estruturalismo e,
principalmente, das teorias de Michel Foucalt, Judd analisa o pseudônimo masculino a partir
da revisão de teorias literárias feministas, nos anos 1990. Esse movimento desloca o olhar da
situação social em que as escritoras se encontravam para a coragem de resistir ideologias
hegemônicas dentro do mercado literário. Desta forma, a autora argumenta que o uso do
pseudônimo é uma forma de manipulação e de criação de mito de autoria, um meio de ter
vantagem na carreira literária. A autora refuta, desta forma, três pontos disseminados por
teóritcas como Elaine Showalter, Susan Gubar e Sandra Gilbert. São eles: a) a crença que o
mercado literário era preconceituoso, sendo necessário o uso do pseudônimo masculino; b) a
necessidade de proteção da identidade, principalmente pela desaprovação da família de que a
mulher tenha uma carreira literária e c) o consenso iniciado no século XX de que o
Nas fronteiras da linguagem ǀ 264
pseudônimo marcava androgenia, para que a mulher se sentisse “masculinizada antes de pegar
na caneta ‘fálica’”.29
Não tenho dúvida de que o pseudônimo foi também uma estratégia editorial para
Karen Blixen, mas para Elena Ferrante ainda é cedo para dizer.
Referências
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BARTHES, Prefácio. In:______. Sade, Fourier, Loyola. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.
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29 JUDD. Male pseudonym and Female Authority in Victorian England, p. 251.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 265
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Nas fronteiras da linguagem ǀ 266
O USO DOS PROCESSOS EM TEXTOS LITERÁRIOS SOB A
ÓTICA DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL: UMA
ANÁLISE DA VOZ DO NARRADOR E DAS PERSONAGENS
EM CONTOS MODERNISTAS [Voltar para Sumário]
Anderson de Santana Lins (CELLUPE -UPE)1
Maria do Rosário B. da S. Albuquerque (CELLUPE -UPE)2
Introdução
O estudo científico da linguagem humana possui dois sustentáculos: o formalismo e o
funcionalismo. Para o eixo formalista, a língua é uma estrutura autônoma, fechada em si
mesmo; em oposição, o eixo funcionalista concebe a língua enquanto fenômeno social, sendo
influenciada por fatores pragmáticos. Trata-se, portanto, de um mesmo objeto de estudo
investigado sob lentes distintas.
A Linguística Sistêmico-Funcional faz parte da corrente funcionalista da linguagem.
Foi proposta pela Escola de Sidney por Michael K. A. Halliday e seguidores. Trata-se de um
quadro teórico-descritivo embasado no uso linguístico. Ou seja, para esta linha de
pensamento, a gramática da língua não é desprezada bem como os fatores externos a ela (tais
quais os diferentes contextos de uso). Assim, tal arcabouço teórico serve-nos para análise de
textos pertencentes aos mais variados gêneros através da qual nossa comunicação é
concretizada.
O presente artigo busca analisar contos brasileiros: “Um ladrão” de Graciliano Ramos
e “O ladrão” de Mário de Andrade, associando-os à teoria proposta por Labov (1972) que
propõe uma estrutura para a narrativa, baseada na oralidade. O objetivo é, pois, investigar tal
estrutura e sua relação com as escolhas léxico-gramaticais, inseridos no sistema de
transitividade proposto pela Linguística Sistêmico-Funcional.
1 Graduando em Letras (UPE Campus Mata Norte). Pesquisador do CELLUPE – Centro de Estudos Linguísticos
e Literários e do Projeto ‘Língua em Uso em diferentes contextos sociais’ (LINUS – CELLUPE). 2 Professora Ajunto da Universidade de Pernambuco, Campus Mata Norte. Líder do Grupo de Pesquisa –
Centros de Estudos Linguísticos e Literários da UPE(CELLUPE). Professora orientadora do Projeto ‘Língua em
Uso em diferentes contextos sociais’ e coordenadora do Laboratório de Língua em USO - LINUS.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 267
Assim, pretende-se investigar como as escolhas léxico-gramaticais representam o
narrador e as personagens nos contos em questão e qual a relação dessas representações com a
linguagem literária. Feito isso, nos é possível a identificação das atividades humanas
expressas no supracitado gênero literário e da realidade que se retrata na e pela linguagem,
afinal, é através da linguagem que falamos de nossas experiências, de pessoas, objetos,
abstrações, sentimentos e relações existentes em nosso mundo exterior e interior.
A Linguística Sistêmico-Funcional e Transitividade: estabelecendo conceitos
A Linguística Sistêmico-Funcional (doravante, LSF), é uma abordagem proposta por
Michael K. A. Halliday cujos estudos iniciaram-se na segunda metade do século XX, sob
influência das pesquisas antropológicas desenvolvidas por Malinowski, ainda no início do
referido século. Conforme lembram Fuzer e Cabral (2014, p. 17), foi a partir de tais
investigações que a concepção de língua enquanto manifestação cultural primária de um povo
passou a vigorar dentro dos estudos científicos da linguagem. Assim, evidenciou-se a
intrínseca relação entre língua e contextos de usos.
Fuzer e Cabral (2014, p. 19) explanam acerca da colocação dos “termos ‘sistêmico’ e
‘funcional’ que caracterizam essa abordagem.” Isso porque, para a LSF, a língua é uma
organização de sistemas interconectados cujas funções nos servem para a edificação de
significados, revelando o nosso mundo, seja ele externo (físico) ou interno (psicológico).
Cometemos – ao utilizar a língua – várias escolhas diante das probabilidades
oferecidas por tais sistemas linguísticos. No mais, é funcional porque “explica as estruturas
gramaticais em relação ao significado, às funções que a linguagem desempenha em textos.”
(Idem).
O privilégio dos estudos da LSF é, segundo Souza (2006, p. 37), com os “produtos
autênticos da interação social, aos quais ela [a LSF] chama de texto.” Afinal, Para Halliday &
Mathiessen (2004, p. 3):
When people speak or write, they produce text. The term ‘text’ refers to any instance
of language, in any medium, that makes sense to some one whok nows the language.
To a grammarian, text is a rich, many-faceted phenomenon that ‘means’ in many
different ways. It can be explored from many different points of view.3
3 As traduções são de minha responsabilidade: Quando as pessoas falam ou escrevem, produzem texto. O termo
"texto" refere-se a qualquer instância da linguagem, em qualquer meio, que faz sentido para alguém que conhece
a língua. Para um gramático, o texto é um fenômeno multifacetado e rico que "significa" de muitas formas
diferentes. Ele pode ser explorado a partir de muitos pontos de vista diversos.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 268
É importante ressalvar que, dentro dessa abordagem, um texto – seja ele oral ou escrito
– é inserido em dois contextos (cultural e situacional). Ou seja, é produto da interação entre os
contextos de usos:
O contexto de cultura é a soma de todos os significados possíveis de fazer sentido
em uma cultura particular. Dentro do contexto de cultura, falantes e ouvintes usam a
linguagem em contextos específicos, conhecidos na lingüística funcional como
contexto de situação. A combinação dos dois tipos de contexto resulta em
semelhanças e diferenças entre um texto e outro. Os textos que acompanham uma
compra de cereais não são os mesmos em uma cidade do interior e em uma capital,
por exemplo. (SOUZA, 2006, p. 37)
A LSF é, portanto, uma perspectiva teórico-descritiva gramatical que busca, por meio
de análises textuais, evidenciar como, onde, porque e para que o homem usa a língua e, sem
refutar o contexto no qual o sujeito falante está inserido.
Quando utilizamos a língua, realizamos, inconscientemente, três funções simultâneas,
conforme Halliday & Mathiessen (2004, p. 29-30): a ideacional, a interpessoal e a textual.
Isso significa dizer que toda língua natural, no quadro da teoria sistêmico-funcional, cumpre a
com a finalidade de traduzir toda a experiência do mundo humano (exterior ou interior).
Os citados teóricos afirmam que todas as línguas dedicam-se a esta função,
denominada ideacional. Por meio dela compreendemos a língua enquanto representação.
Subdivide-se em duas: experiencial, responsável pela materialização da representação do
mundo do sujeito falante; e lógica, cuja responsabilidade se dá através das “combinações de
grupos lexicais” (FUZER e CABRAL, 2014, p. 33).
O sistema de transitividade, à luz da LSF, encontra-se apregoado à metafunção
ideacional da linguagem. Diferentemente da noção de transitividade proposta pela Gramática
Tradicional, através da qual o verbo é caracterizado pela presença – ou não – de um
complemento, a transitividade, para as teorias desenvolvidas no campo da LSF, “constitui-se
como um recurso léxico-gramatical para representar ações e atividades, construídas na
gramática (...)”, conforme esclarece GOUVEIA (2009, p. 30).
Todas as experiências vivenciadas pelos seres humanos – seja ela de caráter
psicológico ou físico – só são transformadas em construções linguísticas devido ao sistema de
transitividade. É importante salientar que todas as atividades, atos ou estados que envolvem
estas experiências são organizadas, dentro do sistema linguístico, em seis tipos de processos:
materiais, mentais, relacionais, comportamentais, existenciais e verbais. Por razões espaciais,
apresento de forma breve os conceitos que os norteiam.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 269
Os processos materiais são responsáveis pela materialização das experiências de
mundo externo dos participantes – Ator e Meta. São os processos do fazer, do agir, isto é:
“dão conta de mudanças no mundo material que podem ser percepcionadas, comprovadas,
vistas.” (Ibdem, p. 31).
Os processos mentais explanam as experiências de mundo interno (psicológico),
indicando afeição, cognição, desejo ou percepção. Envolvem dois participantes –
Experienciador e Fenômeno.
Os processos relacionais são responsáveis por promover uma relação entre dois seres
que se diferem. Usamo-la para caracterizar esses seres de acordo com suas características.
Esse tipo de oração classifica-se em: intensivas, possessivas e circunstanciais. Todas se
subdividem em: atributivas e identificativas.
Os processos comportamentais são usados para definir o comportamento humano
fisiológico. Estão entre os materiais e os mentais. O participante é o Comportante, podendo
haver o Comportamento.
Quanto aos processos existenciais, estes são responsáveis por representar quaisquer
coisas que existam ou ocorram. O participante é chamado de Existente, podendo ser um
humano ou objeto ou até mesmo uma ação.
Os processos verbais, por fim, dão norte ao dizer humano, constituindo o discurso de
um indivíduo. Geralmente, envolvem quatro participantes: Dizente, Verbiagem, Receptor e
Alvo.
A estrutura da narrativa na visão laboviana
A estrutura da narrativa é outra base teórica utilizada nesta pesquisa. Desenvolvida por
Labov & Waletsky em 1967, a teoria discute sobre a estrutura das narrativas orais. O
propósito desta pesquisa é, pois, unificar tal abordagem, estudando a estrutura genérica do
conto literário moderno, com base nos citados teóricos. Afinal, sabe-se que há uma forte
ligação entre a oralidade e a ficção modernista brasileira.
Labov (1972, p. 354, grifo do autor) propõe um estudo aprofundado do que ele intitula
“narratives of personal experiencce, in which the speaker becomes deeply involved in
rehearsing or even reliving events of his past.”4. Ou seja, as narrativas de experiência pessoal
são compreendidas como um meio de resgatar eventos situados no passado do narrador.
4 Tradução: narrativas de experiência pessoal, nas quais o falante torna-se profundamente envolvido na narração
ou mesmo nos acontecimentos revividos de seu passado.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 270
De acordo com o autor, a experiência revivida se dá “by matching a verbal sequence
of clauses to the sequence of events which (its is inferred) actually occurred.” (Ibidem, p. 359-
360).5
No tocante à estrutura da narrativa, é de amplo conhecimento que não há um consenso
entre os estudiosos, como aponta Hanke (s/a, p. 118), na delimitação de aspectos obrigatórios
de um texto narrativo. Na concepção laboviana, porém, uma narrativa completa possui: a)
abstract; b) orientation; c) complicating action; d) evaluation; e) result or resolution; f) coda.
(Labov, 1972, p. 363). Em termos gerais, sintetiza-se assim a estrutura da narrativa:
Abstract (Resumo) “Do que se trata?”
Orientation (Orientação) “Quem? Como? Onde? Quando? O quê?”
Complication (Complicação) “O que aconteceu?”
Evaluation (Avaliação) “E daí?”
Result (Resultado) “Qual o desfecho?”
Coda “Então, o que aconteceu?”
Quadro 01: A estrutura da narrativa proposta por Labov e Waletsky (1967)
Análise e discussão dos resultados
Nesta seção encontram-se os resultados dos dados fornecidos através do programa
computacional WordSmith Tools: quantidade de processos e sua distribuição ao longo das
narrativas analisadas. Foram observadas as escolhas léxico-gramaticais que representam o
narrador e as personagens nos contos em questão e qual a relação dessas representações com a
linguagem literária contida nos textos modernistas.
As tabelas e os gráficos (ver Anexo) evidenciam com clareza algumas particularidades
dos textos analisados: “Um ladrão”, de Graciliano Ramos, e “O ladrão”, de Mário de Andrade
(doravante T1 e T2, respectivamente).
Um olhar atento às escolhas feitas pelos narradores de ambos os textos, ao tecerem
suas respectivas narrativas, revelam os processos materiais como, de um modo geral, os mais
recorrentes ao longo dos contos. Entretanto, a razão pela qual esse fenômeno ocorre é bastante
diferenciada, levando em conta as entrelinhas das narrativas.
No Resumo dos textos ocorre o seguinte: em T1, a maior frequência dos processos
materiais aponta para um narrador onisciente preocupado em mostrar ao leitor que um ladrão
5 Tradução: pela combinação de uma sequência verbal de orações com a sequência de acontecimentos (que se
infere) efetivamente ocorreram.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 271
precisa de habilidades para realizar seu ofício, deixando claro que o protagonista não as tem.
Estas habilidades, portanto, se materializam na linguagem por meio de processos responsáveis
pela tradução do mundo físico, do fazer humano: “acompanhar”, “aventurar-se”, “andar”,
“cometer”, “entrar”, “pisar” e “correr”.
Em T2, são os comportamentais que surgem com certa recorrência: isso nos faz crer
que o objetivo do narrador onisciente é enfatizar o desespero das pessoas ao tomarem
consciência de que algo errado estava acontecendo na vila onde ocorrem as ações da
narrativa, atribuindo-lhes comportamentos humanos e criando um suspense na trama,
envolvendo o leitor sem que este perceba.
Na Orientação, em T1, o resultado encontrado é coerente com o que se esperava
encontrar, pois é nesta seção da narrativa que o narrador apresentará as personagens, os
espaços e o tempo das ações. Assim, é por meio dos processos relacionais – os mais
recorrentes – como “havia sido”, “era”, “tinha” e “estava” que o narrador classifica, indica ou
caracteriza os participantes envolvidos na oração.
Além dos relacionais, os comportamentais e materiais exercem uma função importante
na Orientação do primeiro conto. Tais processos explicita o modo como o ladrão age diante
da situação em que se metera. Os exemplos típicos desses processos foram: “esconder”,
“escutar”, “fixar” e “enfeitar” (comportamentais); mas também “andar”, “passar” e “mexer”
(materiais).
Em T2, porém, o resultado foi diferente: os processos materiais, seguidos pelos
relacionais, se destacaram no que concerne à frequência no texto. Isso ocorre porque, à
medida que vão surgindo, as personagens estão em movimento, realizando algum ato: “(...)
porém da mesma direção do moço já chegavam mais dois homens correndo.” (ANDRADE,
s/a, p. 32, grifo meu). Esse fenômeno atribui ao texto de Mário de Andrade uma
particularidade: movimento. A quantidade de personagens é maior que o conto de Graciliano
Ramos, afinal, na ânsia de ajudar a capturar o ladrão, as personagens saem de suas casas,
assustadas, e são reveladas aos leitores.
A Complicação, em ambos os textos, apresenta uma maior concentração dos
processos. Nos dois casos, os materiais se sobressaem. Percebemos, com isso, o valor de tais
processos na constituição dos textos narrativos. Eles exercem extrema importância, afinal,
traduzem as ações das personagens, trazendo dinamicidade à narração.
Em T1, não poderia ser diferente: os processos materiais funcionam como a força
motriz catalisadora do desenrolar da narrativa. Porém, os comportamentais registraram uma
considerável ocorrência. Tal acontecimento denuncia a função primordial de tais processos
Nas fronteiras da linguagem ǀ 272
numa narrativa ficcional, “emprestando um traço comportamental” aos personagens
envolvidos. (FUZER e CABRAL, 2013, p. 78).
Com a mesma notoriedade surgem os processos mentais presentes na Complicação,
em T1: revelam a percepção, dentre outros fatores, que o ladrão possui do mundo ao seu
redor. O narrador nos mostra um personagem consciente de suas ações, dissecando suas
afeições, sues medos e desejos:
Encolheu-se mais, olhou a janela do prédio fronteiro, imaginou que por detrás da
janela alguém o espreitava (...). De repente sentiu grande medo, pareceu-lhe que o
observavam pela frente e pela retaguarda, achou-se impelido para dentro e para fora
do jardim, a rua encheu-se de emboscadas. (RAMOS, 1985, p. 24, grifo meu).
Porém na Complicação, em T2, há mais processos materiais, seguidos de mentais e
relacionais. Além disso, apresenta um significativo número de processos verbais que ajudam
o narrador durante verbalização das personagens. Processos como “dizer”, “contar”,
“perguntar”, “responder”, “insultar” e outros dessa natureza reforçam o discurso direto
presente na obra.
Os processos materiais mais recorrentes aqui foram: “correr”, “recuar”, “abrir”, “virar”
e “ir”. Eles reafirmam o caráter de agitação e alvoroço que acomete as personagens cujas
nuances psicológicas são pormenorizadas através dos processos mentais, sendo os mais
usados “ver”, “querer” e “saber”. Os processos existenciais aparecem aqui com mais
frequência do que no conto anterior. Os mais comuns são “haver” e “ter”. Estes cumprem a
função de representar a existência de algo, nesse caso, um suposto ladrão que amedronta a
vizinhança de uma vila.
Na Avaliação dos contos analisados, a distribuição dos processos diverge: em T1, os
materiais sucedidos pelos comportamentais, relacionais e mentais são os mais recorrentes; ao
passo que em T2, os materiais, seguidos pelos relacionais, mentais e comportamentais são os
mais frequentes.
É preciso ressalvar que os processos materiais, em ambos os contos, na Avaliação,
permanece como fio condutor. Revela a indispensável habilidade do narrador ao apresentar o
mundo marginalizado, esmiuçando-o através da linguagem. Outro ponto importante é que,
durante a Avaliação, o narrador busca responder à questão “por que a história foi contada?”,
“O que a narrativa em questão tem de extraordinária?” ou “Por que ele merece ser narrada?”.
Em T1, por exemplo, o narrador está sempre buscando enfatizar o quanto o
personagem central é despreparado, carente e solitário. Além disso, ele nos mostra a
cosmovisão do ladrão, apontando alguns valores sociais e religiosos do personagem. Para
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 273
isso, recorre aos processos comportamentais e relacionais. “Desconfiar”, “reconhecer”,
“ouvir” e “mastigar” são alguns dos exemplos de processos comportamentais; “ser”, “ter” e
“ficar” são exemplos dos relacionais que constroem o significado na Avaliação.
Na obra marioandradiana, em T2, a Avaliação ocorre por outro motivo: o narrador
onisciente procura caracterizar os vários personagens que compõem o conto. Atribuí-lhes
nuances, identifica-lhes em termos de espaço e tempo:
Chegava o entregador da “Noite”, batia, entrava. Ela fazia questão de não ter criada,
comia de pensão, tão rica! Vinha o mulato da marmita pois entrava! E depois diz-
que vivia sempre com doença chamando cada vez era um médico novo, que tinha
só... quinze? Dezesseis anos? entrava, ficava tempo lá dentro. O jornaleiro negava
zangado, que era só pra conversar, senhora boa, mas o entregadorzinho do pão dizia
nada, ficava se rindo, com sangue até nos olhos, de vergonha gostosa. (ANDRADE,
s/a, p. 39).
Isso significa dizer que os processos relacionais são, oportunamente, usados pelo
narrador. “Ser”, “ter” e “estar” foram os mais recorrentes.
No Resultado e Coda, o narrador finalizará sua narrativa. Os processos materiais,
portanto, são notórios. É preciso informar as ações finais: o que aconteceu e como terminou.
Para isso, o narrador recorre aos processos capazes de traduzir nossas ações externas. Em T1,
“girar”, “fazer” e “voltar” são alguns dos processos materiais encontrados.
Além desses, no conto de Graciliano Ramos (T1), destacam-se os processos mentais,
seguidos pelos comportamentais. O caráter psicológico do conto ganha ênfase no Resultado e
Coda. O personagem central é acometido por lembranças, sonhos e desejos tão intensos a
ponto de colocar tudo a perder. “Pensar”, “sentir” e “lembrar” traduzem as vivências internas
do ladrão.
Em T2, o Resultado e Coda apresentam – além dos materiais “trazer”, “ir” e “pegar” –
os processos comportamentais, sucedidos pelos relacionais, são importantes na tessitura
textual. O suposto ladrão que causara pânico nos moradores passa a ser uma dúvida. Escapa à
lente do narrador. O que resta são personagens que se veem presos a uma casual
confraternização. O narrador, portanto, apregoa-se a esta situação inusitada e revela-nos, por
meio da linguagem, usando os processos comportamentais – como, por exemplo, “rir”,
“reunir”, “despedir” e “olhar” – e relacionais – como “ter”, “ficar” e “estar”.
Em suma, a investigação do uso dos processos em contos modernistas revela a
imprescindível relação entre os processos materiais e textos narrativos. Evidenciou-se, porém,
que processos comportamentais, relacionais e mentais são igualmente indispensáveis a tais
textos, uma vez que corroboram para a edificação de significados.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 274
Considerações Finais
A partir da distribuição dos processos nos textos analisados, é possível afirmar que as
escolhas léxico-gramaticais evidenciam comprometimento social, típico do modernismo
brasileiro, presente nas obras. Se no texto de Graciliano o narrador nos revela o retrato da
sociedade dentro da casa esmiuçada pelo ladrão, o de Mário de Andrade revela-se nos espaços
sociais que norteiam a obra: a vila, os vizinhos, as casas, as personagens.
A análise dos contos ficcionais, sob a ótica da transitividade, à luz da LSF, nos permite
concluir que podemos ampliar nosso olhar diante dos fatos linguísticos e, dessa forma,
aprofundarmo-nos cada vez mais nos textos, buscando responder como, por que, para quê o
autor realizou uma determinada escolha léxico-gramatical, sem desprezar os diversos
contextos que levaram a sua produção.
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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 275
Anexos
Material Mental Comportamental Relacional Existencial Verbal Total
Resumo 07 - 03 04 - 01 15
Orientação 10 11 16 22 06 03 68
Complicação 189 60 79 29 08 05 370
Avaliação 72 31 50 39 06 08 206
Resultado 36 13 08 02 01 01 61
Coda 02 02 - 01 - 02 5
Quadro 01: Distribuição dos processos no conto "Um ladrão" de Graciliano Ramos
Material Mental Comportamental Relacional Existencial Verbal Total
Resumo 03 01 04 01 - - 09
Orientação 22 01 04 12 - 01 40
Complicação 164 50 31 48 11 19 323
Avaliação 44 24 22 30 06 11 137
Resultado 30 06 12 09 - 02 59
Coda 03 - 01 02 - - 06
Quadro 02: Distribuição dos processos no conto "O ladrão" de Mário de Andrade
Gráfico 01: Distribuição dos processos no conto "Um ladrão" de Graciliano Ramos
Nas fronteiras da linguagem ǀ 276
Gráfico 02: Distribuição dos processos no conto “O ladrão” de Mário de Andrade
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 277
GUERREIRO DO POVO BRASILEIRO?
CONTRADIÇÕES, DES/CONTRA/IDENTIFICAÇÃO,
RESISTÊNCIA E MEMÓRIA NO DISCURSO SOBRE
EDUARDO CAMPOS [Voltar para Sumário]
André Cavalcante1 (UFPE)
1. Situando a discussão
Em 2014, no Brasil, estávamos voltando a nossa atenção às eleições
presidenciais, os presidenciáveis, debates políticos, alianças políticas, etc, que
desencadeariam no futuro da nação. Porém, no dia 13 de Setembro desse mesmo
ano morre tragicamente, em um acidente aéreo, o então presidenciável Eduardo
Campos, ex-governador do estado de Pernambuco. Muito se foi falado sobre esse
fato, notícias em telejornais, jornais virtuais e impressos, além também do
surgimento de muitos discursos nas redes sociais. Tais discursos perdura(ra)m um
longo tempo e por ter ocorrido muito próximo das eleições e também por se tratar
de alguém que almejava ser presidente e “não desistir do Brasil2” esses discursos
sobre Campos são dificilmente desvinculados dos dizeres sobre as eleições
passadas.
Hoje, se digitarmos seu nome no buscador Google, encontramos
cerca de 57 milhões de resultados, além das páginas do Facebook e Twitter.
Nesses textos, tsão encontradas diversos sentidos, sobre um Eduardo político,
sobre um herói ou até mesmo um “novo Eduardo”, discursivizado algum tempo
após a sua morte.3 Não pretendo, neste trabalho, falar sobre o sujeito empírico
nem sobre discursos de determinados órgãos ou personalidades brasileiras, mas as
1 Mestrando em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE. É integrante do
Núcleo de Estudos em Práticas de Linguagem e Espaço Virtual (NEPLEV), também da UFPE e Bolsista
da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE). 2 Aqui parafraseio um dos slogans de Campos durante a fase que era um dos presidenciáveis. 3 Bem próximo da morte desse político, observei a repetição sobre um Eduardo Herói, que aparentemente
todas essas matérias diziam o mesmo e que a partir de um determinado tempo, a partir das contradições
inerentes à prática discursiva, esses dizeres sobre Campos ficaram mais diversificados. Nas análises,
aprofundarei esse tema.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 278
discursivizações sobre o ex-governador de Pernambuco quando do período
eleitoral de 2014. Focando nesses dizeres sobre esse sujeito, observarei
a construção discursiva que alça Eduardo Campos à herói, mas também outros
sentidos, contra/desidentificações, resistências a um sentido dominante, assim
como o funcionamento das noções Resistência e Memória, como são vistas na
Análise do Discurso de linha Pecheutiana. Portanto, faz-se necessário, explanar
brevemente sobre a teoria que nos dá suporte teórico-metodológico para esse
pesquisa.
2. Teorizações em torno da teoria materialista do discurso
O lugar teórico de onde falo, a AD, desde sua fundação, na França, por
Michel Pêcheux (1969), propõe uma nova forma de perceber a linguagem e traz
ao centro de suas discussões algumas noções deixadas de lado a partir do corte
saussureano: sujeito, sentido e história.
Uma vez que o paradigma dominante da época era o estruturalismo, essa
perspectiva teórica pretendia analisar a linguagem por outro viés que não a análise
conteudística, assim, o discurso torna-se o objeto de estudo dos analistas do
discurso. Portanto, para romper com os estudos acerca da linguagem na década de
60 do século passado, Pêcheux [1969 (2014, p. 79)] critica o modelo “reacional”,
representado pelo behaviorismo e ao modelo “informacional”, de Jakobson, e
define o discurso com “efeito de sentidos” (ib. idem, p. 81) entre interlocutores.
Visto que a ideologia que interpela os indivíduos em sujeitos do seu discurso, é
inevitável produzir discurso sem estar afetado por ela. É a ideologia que produz os
efeitos “lapalissade”, as evidências subjetivas e de sentido.
A evidência que constitui o sujeito é de base ideológica (via teoria
marxista) e inconsciente (psicanálise lacaniana). Através dos esquecimentos 1 e 2,
dos quais Pêcheux (1975 [2010, p. 161-162]) teoriza, o sujeito pensa ser origem
do seu dizer e que só existe uma forma de linearizar esse discurso. Essas são
ilusões necessárias para a prática discursiva, para tanto, também é produzida
impressão que o sentido é unívoco. Assim, a AD propõe que sujeito e sentido se
constituem mutuamente. Orlandi (2013) discutindo as bases da AD diz que
A ideologia [...] não é vista como um conjunto de
representações, como visão de mundo ou como ocultação da
realidade. Não há aliás realidade sem ideologia. Enquanto
prática significante, a ideologia aparece como efeito da relação
necessária do sujeito com a língua e com a história para que
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 279
haja sentido. E como não há relação termo-a-termo entre
linguagem/mundo/pensamento essa relação torna-se possível
porque a ideologia intervém com seu modo de funcionamento
imaginário. São assim que as imagens que permitem que as
palavras “colem” com as coisas. Por outro lado [...] é também a
ideologia que faz com que haja sujeitos. O efeito ideológico
elementar é a constituição do sujeito. Pela interpelação
ideológica do indivíduo em sujeito inaugura-se a
discursividade. Por seu lado, a interpelação do indivíduo em
sujeito pela ideologia traz necessariamente o apagamento da
inscrição da língua na história para que ela signifique
produzindo efeito de evidência do sentido (o sentido-lá) e a
impressão do sujeito ser a origem do que diz. Efeitos que
trabalham, ambos, a ilusão da transparência da linguagem. No
entanto, nem a linguagem, nem os sentidos nem os sujeitos são
transparentes: eles têm sua materialidade e se constituem em
processos em que a língua, a história e a ideologia concorrem
conjuntamente. (ORLANDI, 2013, p. 48)
Portanto, é a ideologia que guia toda a teoria do discurso, interpelando os
indivíduos à sujeitos e produzindo a impressão de sentido-lá, sentido posto.
Afetado por ela (a ideologia) é que ocorrem as discursivizações, mas para tanto é
necessário que os sujeitos inscrevam seus discursos em um domínio de saber, uma
Formação discursiva (FD), sendo ela “o que pode e deve ser dito” em uma
determinada conjuntura. (PÊCHEUX, 1975 [1990, P. 27]) A inscrição do dizer em
uma FD pode ocorre através de três tomadas de posição diferentes. Quais sejam:
A identificação plena (o bom sujeito): Quando há uma correspondência entre
o sujeito enunciador e a forma-sujeito da FD, o sujeito universal da FD, que
regula os dizeres que pertencem a esse domínio de saber; (PÊCHEUX, 1975
[2010 p.199])
A contra-identificação (o mau sujeito): ocorre quando “o sujeito da
enunciação ‘se volta’ contra o sujeito universal” (Idem, ibidem, p.199).
Ocorrendo, portanto, um questionamento, distanciamento, do sujeito
enunciador da Forma-Sujeito (Idem, ibidem. p. 199-200)
A desidentificação: nesta tomada de posição, o sujeito desidentifica-se
com a FD que estava inscrito para identificar-se com outra FD. Pêcheux diz
que não há dessassujeitamento, pois não há “fim das ideologias” (Idem, ibidem,
p.201).
Assim, o sujeito já, inconscientemente, produz sentidos que não são mais
permitidos na FD de onde ele enunciava anteriormente. No percurso da teoria,
essas noções foram revistas pelo próprio autor em uma fase de reconfiguração da
teoria. Na próxima sessão retornaremos à essa questão.
Nesse trabalho, iremos analisar, como já dito, como ecoam alguns sentidos
nos discursos sobre4 Campos, através da memória, assim como as tomadas de
posição e resistências dos sujeitos nas discursividades encontradas na rede. Uma
vez que foi apresentada brevemente nossa posição teórica, partiremos para
4 Aqui penso o “discurso sobre”, conforme Mariani. Irei apresentar essa noção nas análises.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 280
análise, lugar onde também teorizaremos outras noções que guiarão nossa
pesquisa.
3. O discurso sobre um herói ou a heroicização (temporária) ?
As discursividades que se materializam na rede surgem e desaparecem
com grande facilidade, e com pouco tempo outro assunto é o mais comentado do
momento. Por isso, nosso corpus está inserido numa temporalidade específica e
coincide com o período eleitoral para presidente do Brasil. Observaremos, como
já dissemos, o discursos sobre Eduardo Campos e as formas de se
contra/des/identificar com esses discursos, assim como o funcionamento da
memória nesses discursos e as possibilidades de resistência aos sentido dominante
sobre um (não)herói.
O discurso sobre foi trabalhado por Mariani em sua tese de doutoramento,
segundo a autora, eles
são discursos que atuam na institucionalização dos sentidos,
portanto, no efeito de linearidade e homogeneidade da
memória. Os discursos sobre são discursos intermediários, pois
ao falarem de um discurso de (discurso-origem), situam-se
entre este e o interlocutor, qualquer que seja. De modo geral,
representam lugares de autoridade em que se efetua algum tipo
de transmissão de conhecimentos, já que ao falar sobre transita
na co-relação entre o narrar, descrever um acontecimento
singular, estabelecendo sua relação com um campo de saberes
já reconhecidos pelo interlocutor [...] contribui na constituição
do imaginário social e na cristalização da memória do passado
bem como na constituição da memória do futuro. (MARIANI,
1996, p. 64)
No trabalho de Mariani, o corpus de análise são discursos jornalísticos
sobre o comunismo, que eram “autorizados” por uma instituição, situando o leitor
em relação aquele discurso, sedimentando uma memória do passado e do futuro,
cristalizando os sentidos sobre esse dizer. Em nosso trabalho, os discursos em que
tem Campos como herói, cujo efeito-fundador5 são os dizeres sobre ele, após sua
morte. Por um determinado tempo esses discursos apresentavam uma univocidade
5 Estamos chamando de efeito fundador as dicursivações produzidas a partir da acidente aéreo que
ocasionou a morte do Eduardo Campos, observando-o como um marco para os dizeres discursivizados a
partir de então. Aqui retomo a noção de discurso/ efeito fundador trabalhado por ORLANDI(1993),
porém, esse efeito não instaura efetivamente novos sentidos, mas reorganiza-os no fio do discurso como
um ponto de referência.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 281
de sentidos, provocados por uma repetibilidade de dizeres.
Nas sequências discursivas (SD) 1 e 2, traremos recortes de matérias sobre
esses discursos.
SD1. Eduardo Campos é enterrado aos gritos de "guerreiro do povo brasileiro"6
SD2.Mais de cem horas após o acidente aéreo que resultou na morte de Eduardo
Campos e de mais seis pessoas, o corpo do ex-governador de Pernambuco foi
enterrado há pouco ao lado do avô, Miguel Arraes, no Cemitério de Santo
Amaro, em uma sepultura simples, sem luxo, rodeada apenas de flores e placas de
mármore com identificação. Fogos de artifício e gritos de "Eduardo, guerreiro
do povo brasileiro" marcaram o encerramento da cerimônia. 7
Em SD1, título de uma matéria de um site, trazendo o discurso do outro
através das aspas, marca o olhar de alguns sujeitos em relação ao político
pernambucano, as identificações com seu discurso e muitas vezes uma filiação
àquela redes de sentidos produzidas por esse sujeito. Tal fato chamou a atenção da
grande mídia que cobriu várias matérias a esse respeito, muitos outros políticos
estavam presentes na cerimônia e a partir da morte dele, muitos discursos foram
produzidos, sobretudo, nas redes sociais. Muitos lastimosos e outros produzindo
sentidos outros, apagados pelo uníssono que ainda ecoava e produzia sentidos:
“Eduardo, Guerreiro do povo brasileiro.”. Esses discursos iam se repetindo, se
repetindo, até produzir um efeito de sentido único, mas que se ligava também a
outra memória, como em SD2.
SD2, além de ser produzida dentro de uma mesma formação discursiva
que SD1, FD18, repetindo também os gritos produzidos no velório de Campos,
como se fosse dizeres importantes a serem divulgados naquela época, também traz
6 Outras matérias de mesmo funcionamento. Eduardo Campos recebe em funeral homenagem de
'um guerreiro'postado em 18/08/2014 00:12 / atualizado em 18/08/2014 07:30 e Sob gritos de
"guerreiro do povo brasileiro", corpo de Campos é enterrado da
http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2014-08/sob-gritos-de-guerreiro-do-povo-brasileiro-
campos-e-enterrado-no-recife em 17/08/2014 18h55
http://jovempan.uol.com.br/noticias/brasil/politica/eleicoes2014/eduardo-campos-e-enterrado-aos-
gritos-de-guerreiro-do-povo-brasileiro.html 17/08/2014 18h43 - Atualizado em 17/08/2014 19h06 7 Recorte extraído de http://jovempan.uol.com.br/noticias/brasil/politica/eleicoes2014/eduardo-campos-e-
enterrado-aos-gritos-de-guerreiro-do-povo-brasileiro.html 17/08/2014 18h43 - Atualizado em
17/08/2014 19h06 8 Aqui, de forma metodológica, estamos chamando FD1 os sentidos produzidos sobre Eduardo Campos como herói.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 282
o nome do avô “Miguel Arraes”, evocando a memória do parentesco entre os dois
pernambucanos.
É importante distinguir memória da noção de interdiscurso, ambas
trabalhadas na AD, para tanto, traremos Indursky, refletindo sobre esses temas,
aponta:
A reflexão sobre memória sempre esteve presente no quadro da Teoria
da Análise do Discurso, muito embora, nos textos fundadores, esta
nomeação ainda não tivesse tido lugar. Pensava-se sobre memória,
mas sob outras designações, como, por exemplo, repetição, pré-
construído, discurso transverso, interdiscurso. Estas noções foram
formuladas no âmbito da Teoria da Análise do Discurso e encontram-
se reunidas em Semântica e Discurso (Pêcheux 1975[1988]). Todas
remetem, de uma forma ou de outra, à noção de memória. Mais
exatamente, trata-se de diferentes funcionamentos discursivos através
dos quais a memória se materializa no discurso. Portanto, a memória já tinha sido trabalhada em Les Vérités de la Palice
9,
porém pensada através do funcionamento de outras noções, ainda, para a mesma
autora, (idem, p. 70-71)
uma característica essencial da noção de memória tal como ela é
convocada pela AD: o sujeito, ao produzir seu discurso, o realiza sob
o regime de repetibilidade, mas o faz afetado pelo esquecimento, na
crença de ser a origem daquele saber. Por conseguinte, a memória de
que se ocupa a AD não é de natureza cognitiva, nem psicologizante. A
memória, neste domínio de conhecimento, é social. E é a noção de
regularização que dá conta desta memória. [...] se há repetição é
porque há retomada / regularização de sentidos que vão constituir uma
memória que é social, mesmo que esta se apresente ao sujeito do
discurso revestida da ordem do não-sabido. São discursos em
circulação, urdidos em linguagem e tramados pelo tecido sócio-
histórico, que são retomados, repetidos, regularizados.
Assim, pela repetibilidade de sentidos vindos do interdiscurso, eles são
regularizados no fio do discurso, constituindo uma memória social, sentidos são
retomados, a fim de constituir um imaginário cristalizado sobre algo, como
sempre estivesse presente. Podemos ver a memória do parentesco de Eduardo
Campos com Miguel materializada textualmente nos discursos sobre esse político,
Campos, na SD2 “enterrado há pouco ao lado do avô, Miguel Arraes”. Na
SD3, essa mesma memória é trazida, porém de forma imagética e verbal.
9 Tradução brasileira: “Semântica e Discurso”.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 283
SD3.
10
Aqui se trata de uma homenagem encontrada em diversas cidades de
Pernambuco em que há a fotografia do avô e do neto, ambos ex-governadores de
Pernambuco. Nessa SD, a posição das fotografias provoca uma impressão de
continuidade, como se um seguisse plenamente o passo dos outros, um sucedendo
o outro11
, e mesmo que eles tenha falecido, “os sonhos não morrem jamais”,
dando mais ima vez um efeito de que há algo a ser continuado, um sonho. Ainda
conforme Indursky, “se a memória discursiva se refere aos enunciados que se
inscrevem em uma FD, isto significa que ela diz respeito não a todos os sentidos,
como é o caso do interdiscurso, mas aos sentidos autorizados pela Forma-sujeito
no âmbito de uma formação discursiva” então, esses dizeres fazem parte do que se
pode/deve dizer na FD1. Quando um dizer não se inscreve em um domínio de
saber, a forma-sujeito não dá conta mais de regular todos aqueles saberes que
deveriam/poderiam ser enunciados, consistindo em outra tomada de posição, a
desidentificação, dessa maneira, esse sujeito-enunciador já se identificou
(inconscientemente!) com outra FD e sua respetiva forma-sujeito, como
percebemos em SD4.
SD4. Me assusta muito um cara como Eduardo Campos tornar-se mártir
politico agora... Muitos Brasileiros, principalmente os nordestinos, demonstram
uma grave incoerência no tratamento desta tragédia. Falando de politica e
10Imagem encontrada no Google imagens a partir da chave “Outdoor Eduardo Campos”. 11 Não é difícil encontrar eleitores que associam a figura de um ao outro, como se fossem semelhantes,
ambos heróis.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 284
administração publica, Pernambuco é um estado jogado as traças! Fora a orla e
poucos metros em entorno das avenidas praianas, que também não é nada além do
mínimo, medíocre e sujo, Pernambuco não tem nada! É um estado lindo por
natureza, porém carece de tudo! Não tem um serviço descente! Não tem
segurança, não tem educação, não tem saúde, não tem transporte, não tem
saneamento, nada.
Se você acha que em são Paulo tudo é ruim, pergunta pra quem morou lá como é
que funciona. Enfim: Também sinto muito pelas vidas que se perdem de maneira
tão trágica e entendo a repercussão, claro, devido a ilustre vitima: O
presidenciável Eduardo Campos. Mas, menos, menos... Bem menos Brasil... Não
se iluda meu povo. Guerreiro mesmo é você!
Neste comentário, comentário da matéria da SD2, além do sujeito
inscrever seu dizer em outra FD, a FD2, onde outros sentidos são permitidos,
sentidos que negam a imagem de Eduardo Campos como herói, percebemos
também a resistência, pois havia nesse restrito tempo, anterior a algumas notícias
sobre (possíveis) improbidades políticas de Campos surgirem, poucos resistências,
nas redes, à construção discursiva de heroicização desse político. Ao inscrever o
discurso em outra FD, há uma
possibilidade de, ao se dizer outras palavras no lugar daquelas
prováveis ou previsíveis, deslocar sentidos já esperados. É
resignificar processos interpretativos já existentes, seja dizendo
uma palavra por outra, seja incorporando o non sens, ou
simplesmente dizendo nada. (MARIANI, 1996, p. 24)
Os sentidos dominantes próximo do fatal acidente aéreo, repetiam sentidos
de um herói memorável, assim como o avô, Arraes. Os sentidos mais esperados
eram os que ratificavam esses dizeres, porém, outras discursividades rompiam
com esses dizeres, dizendo: “Me assusta muito um cara como Eduardo
Campos tornar-se mártir politico agora...” Ou, “Pernambuco não tem... um
serviço que preste.” Portanto, não se deveria iludir-se pois, “guerreiro é você
mesmo”. Essas marcas linguísticas, materializam sentidos outros e, como dito,
resistências, possíveis pelos furos/brechas na língua. Para Pêcheux,
Apreender até seu limite máximo a interpelação ideológica como ritual
supõe reconhecer que não ritual sem falhas; enfraquecimento e brechas,
“uma palavra por outra” é a definição de metáfora, mas é também o
ponto em que o ritual se estilhaça no lapso (e o mínimo que se pode
dizer é que os exemplos são abundantes, seja na cerimônia religiosa, no
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 285
processo jurídico, na lição pedagógica ou no discurso político...). (Idem,
ibidem, p.278)
Essas falhas na interpelação e a impossibilidade de uma forma-sujeito
homogênea, fazem Pêcheux produzir algumas retificações no percurso da teoria,
observando que as resistências ocorrem na/pela língua, através das “quebras de
rituais”, pelo “questionamento de uma ordem”, etc. (PÊCHEUX, 1990, p.17) Para
tanto, necessita-se duas coisas: “ousar se revoltar” e “ousar pensar por si mesmo”
(PÊCHEUX, 2009, p.281)
4. Tentativa de um efeito-fecho
Observamos, então, que um fato, em termos discursivos, pode ser
interpretado como efeito fundador, podendo produzir diferentes filiações de
sentidos. Assim,
O fundador busca a notoriedade e a possibilidade de criar um
lugar na história, um lugar particular. Lugar que rompe no fio
da história, um lugar particular. Lugar que rompe no fio da
história para reorganizar os gestos de interpretação.
(ORLANDI, 1993, p. 16).
Portanto, o acidente aéreo em que estavam envolvidos o ex-governador
pernambucano e outras pessoas foi marco histórico que pôde reorganizar vários
dizeres sobre esse político. Reorganizando os gestos de interpretação e de práticas
discursiva sobre o sujeito Campos. Porém, esses dizeres não podem ser
considerados novos, pois já estava inserido no interdiscurso e através da memória
é que eles foram regularizados no discurso.
Analiticamente, mobilizei duas FDs, em que alguns sujeitos estavam mais
identificados com a FD1 e outros com a FD2, sendo elas hetoregêneas, mas
antagônicas. Assim, ao inscrever seus dizeres nessas FDs, os sujeitos tinham uma
tomada de posição diferente, identificação, contra-identificação e
desidentificação. Nessas últimas maneiras de se relacionar com uma FD, é onde
podem ocorrer as resistências aos sentidos dominantes.
Alçar Campos a posição de herói, mesmo que por um
determinado tempo, é uma construção discursiva em que se foi necessário a ilusão
de sentido único, regularização da memória no dizer, não sendo possível escapar
das resistências e contradições inerentes ao discurso.
5. Referências
Nas fronteiras da linguagem ǀ 286
MARIANI, Bethânia. O comunismo imaginário: práticas discursivas da imprensa
sobre o PCB (1922-1989). Tese de doutorado. IEL/UNICAMP. Campinas, 1996.
ORLANDI, E. Análise de Discurso: Princípios e procedimentos. 11ª edição.
Campinas, SP: Pontes Editores, 2013.
______. (org.) Discurso fundador. Campinas, SP: Pontes, 1993.
PÊCHEUX & FUCHS (1975). A propósito da análise automática do discurso:
atualizações e perspectivas. In: GADET & HAK (orgs.). Por uma análise
automática do discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.
PÊCHEUX, M. (1969). Os fundamentos teóricos da análise automática do
discurso de Michel Pêcheux. In: GADET & HAK (Orgs) Por uma análise
automática do discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.
______. (1975) Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 3ª ed.,
Campinas: Editora da Unicamp, 2009.
______. (1982). Delimitações, inversões, deslocamentos. Trad. brasileira de José Horta Nunes. Cad. Est. Ling., nº 19, Campinas, jul./dez, 1990, p. 7 - 24.
______. A Semântica e o Corte Saussuriano: língua, linguagem, discurso. In:
BARONAS, R.L. Análise do discurso: apontamentos para uma história da noção-
conceito de formação discursiva. São Paulo: Pedro & João Editores, 2007.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 287
POESIA E MITO EM LUCILA NOGUEIRA [Voltar para Sumário]
André Cervinskis (UFPE)
O processo de personificação lírica desenvolvido por Lucila Nogueira inclui recursos
dramáticos monologais que navegam desde a atmosfera clássica a um contexto de
performance pós-moderna. Esse artigo analisará a voz mitológica e performática na lírica pós-
moderna de Lucila Nogueira, especialmente em seus livros Ilaiana (1997), Imilce (2000),
Amaya(2001) A Quarta Forma do Delírio (2002) e Estocolmo (2004).Se os três primeiros
tratam da raiz mítica da península ibérica, a partir tanto da Dama de Elche como da mulher
espanhola de Aníbal Barca, Imilce, e também da ficcionalizada galega ligada à ancestralidade
da autora, os dois últimos cuidam da mitologia celta e escandinava, igualmente a partir de
figuras femininas como a druidesa Veleda e a Völva rainha do lago Mälaren.
Voz e performance se conjugam para a enunciação mítico-feminista da autora, sendo
sua personalidade traço fundamental da sua poesia, muito especialmente nos livros analisados.
A autora segue a trajetória Oretania / Levante / Galiza / Bretanha / Escandinávia proposta
como fio condutor de busca da origem étnica e artística de Lucila Nogueira através das
figurações femininas alegóricas de que se utiliza na formação de vozes ancestrais e
contemporâneas a delinear a condição da mulher em várias épocas em confronto com o
arquétipo feminino vital matriarcal de diversas culturas, na busca obsessiva de uma geografia
mítica de si mesma.
Nesse sentido, percebemos também a forte questão de gênero que permeia toda esta
obra, quando a mulher é a protagonista de uma narrativa lírica em que a figura masculina é o
mito determinante, no caso, Aníbal Barca. Lucila usa como matéria-prima de sua obra o
universo feminino, em meio às guerras, do contexto da expansão romana, negando-o, já que
empresta vozes a essas mulheres que, em suas sociedades, não gozavam de nenhum tipo de
autonomia, muito menos a chancela da cidadania. Ela posiciona-se contra o Estado,
representado pelo Império Romano, e contra as guerras impetradas pelos homens, que rouba
das mulheres seus maridos e filhos, deixando-as numa situação de desamparo, num mundo
Nas fronteiras da linguagem ǀ 288
dominado pelo patriarcalismo. Seu discurso de Lucila constitui um contraponto à mudez
feminina do mundo clássico. Assim, ela retoma a tradição ocidental, pela via do desacordo
com o contexto ideológico romano e, pelo endosso textual, reatualiza a dicção grega em sua
obra.
A autora, Lucila Nogueira publicou mais de dezessete livros de poesia. Tem, entre
seus títulos mais conhecidos, Almenara (1979), com o qual ganhou seu primeiro prêmio
literário Manuel Bandeira, Governo do Estado de Pernambuco, 1978, premiação que obteria
novamente em 1986 com o livro, Quasar (1987). Seu livro Zinganares (1998) foi publicado
em Lisboa. Sobre este livro, foi elaborada e defendida uma dissertação na PUC-RS, pela
mestra Adriane Hoffmann. Foi escritora residente em Saint-Nazaire, França, em 1999, quando
escreveu o livro A quarta forma do delírio (2001). Ao lermos suas obras, percebemos a
influência inegável de diferentes culturas como elementos importantes em seu processo de
criação.
No caso específico desses livros, o discurso poético se sustenta a partir da
formulação mítica que desdobra a voz lírica em alegorias que passam a conviver como
estátuas vivas com o universo dos leitores desse fantástico imaginário da autora carioca
radicada no Recife. A linguagem poética, expressa por um uso seqüencial de unidades
submetidas a poucos paradigmas, insiste na representação dos mesmos elementos emotivos,
os quais se intensificam pelo espelhamento interno também do significante. A mimese interna
e ao aprofundamento da interiorização são especificações linguísticas e psicológicas
peculiares ao gênero lírico. A função poética da linguagem, que projeta o princípio de
equivalência do eixo da contiguidade, mostra que a estrutura do poema é uma das formas de
representação da existência, segundo José Guilherme Merquior (apud HOFFMAN, 2001, p.
23). O discurso narrativo-literário em Lucila Nogueira dá-se a partir do mito. Corroborando
essas assertivas e alargando um pouco o quadro lingüístico de performance e teatralização da
voz, Glusberg (1987) afirma que “a performance se perde na densidade do significado do
signo e se conserva o significante”. De fato, os pesquisadores têm se esforçado, sobretudo os
pesquisadores semiológicos, para detectar o sentido da performance.
Assim, o livro Imilce (2000), na verdade um poema em 4 vozes é um canto de
tristeza e desencontro das mulheres e filhos dos soldados que vão às guerras, em todas as
épocas. Fala também dos conflitos políticos que encadeiam tragédias humanas, como em
todas as guerras. As personagens são o próprio Aníbal, a sua mãe, seu filho e Imilce, esposa
dele. Interessante que somente os amantes têm seus nomes revelados. Como se a autora
quisesse destacar mesmo a dor e o dilema das mulheres que amam e esperam a volta dos
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 289
amados. As estrofes simetrizadas em torno do eixo vertical possibilitam ao leitor uma leitura
dupla, pois há a possibilidade de lerem-se os versos por inteiro, como normalmente se
procede, ou primeiro a sua metade esquerda e depois a metade direita.
Nesse livro, como que situando o enredo, a autora cita toda a extensão do Império
Romano e de Cartago; por isso, nomes de lugares como Creta, Tiro, Bitínia, Chipre, Espanha,
Cástulo, Marrocos, Pirineus, Alpes, Oretania, Malta, Alicante; e mesmo os povos antigos:
romanos, mouros, gregos, são freqüentes no texto. Cada lugar demonstrando o poderio do
Império Romano e o destino que o resultado das Guerras Púnicas infligiram ao mundo: o
domínio praticamente universal do Império Romano na antigüidade. Todo o texto, segundo
Durand (1989, p. 148), contém de forma subjacente, um mito. Imilce não possui nem de
forma subjacente, mas de forma emergente. Percebemos a referências às mitologias judaico-
cristã (ao pé do Líbano/ os homens de púrpura/ sidônios do deserto/ Canaã/ muros de Jericó)
e greco-romana (cabeleira de Vênus e Verbena - p. 48); mas há referências a outras
específicas, como a ibérica, dos ciganos mesmo de épocas específicas, como a inquisição e as
cruzadas: minha mãe viu fogueiras no caminho (...) e disse na loucura: inquisidores; viu
soldados diferentes (...) lutando/ contra os mouros do oriente/ e disse na loucura:/ são
cruzadas (NOGUEIRA, 2000). Imilce é poesia de fogo e de luz. Várias são as passagens em
que há uma referência implícita ou explícita ao fogo, ao sol, à luz: (voz de Imilce): o amor me
seca os lábios: tudo ferve (p.13); meu corpo é um braseiro de perfumes, meus lábios o Etna
e o Vesúvio; vem ver-me andar no fogo sobre as águas; eu desejava o mundo como um círio
ardendo); (voz do filho de Aníbal): os filhos são as cinzas de um naufrágio [...]; e os altares
acesos na comédia dos deuses; ... levando em cada mão um candelabro [...] era dia e era
noite/ e a chama acesa; minha mãe/ viu fogueiras nos caminhos... ;... não vive sem azeite
tanto fogo;... que minha mãe jogou dentro do fogo... (NOGUEIRA, 2000). O fogo de
Prometeu que iluminou Atenas, não obstante a ira dos deuses do Olimpo. Na mitologia
judaico-cristã, mais próxima de nossos dias, o fogo é usado para rituais de purificação: eles
sucumbirão/ depois de Cristo/ hebreu/ crucificado num calvário); [..].cavalguei/ minha
fantasia hebraica/na língua cananéia/ de meus pais [...]; leões crucificados de Cartago
(NOGUEIRA, 2000).
Como que situando o enredo, a autora cita toda a extensão do Império Romano e de
Cartago; por isso, nomes de lugares como Creta, Tiro, Bitínia, Chipre, Espanha, Cástulo,
Marrocos, Pirineus, Alpes, Oretania, Malta, Alicante; e mesmo os povos antigos: romanos,
mouros, gregos, são freqüentes no texto. Cada lugar demonstrando o poderio do Império
Romano e o destino que o resultado das Guerras Púnicas infligiram ao mundo: o domínio
Nas fronteiras da linguagem ǀ 290
praticamente universal do Império Romano na antigüidade. Desse modo, Imilce é poesia de
fogo e de luz. Várias são as passagens em que há uma referência implícita ou explícita ao
fogo, ao sol, à luz: (voz de Imilce): o amor me seca os lábios: tudo ferve (p.13); meu corpo é
um braseiro de perfumes, meus lábios o Etna e o Vesúvio; vem ver-me andar no fogo sobre
as águas; eu desejava o mundo como um círio ardendo); (voz do filho de Aníbal): os filhos
são as cinzas de um naufrágio [...]; e os altares acesos na comédia dos deuses; ... levando em
cada mão um candelabro [...] era dia e era noite/ e a chama acesa; minha mãe/ viu fogueiras
nos caminhos... ;... não vive sem azeite tanto fogo;... que minha mãe jogou dentro do fogo...
(NOGUEIRA, 2000). O fogo de Prometeu que iluminou Atenas, não obstante a ira dos deuses
do Olimpo. Na mitologia judaico-cristã, mais próxima de nossos dias, o fogo é usado para
rituais de purificação: eles sucumbirão/ depois de Cristo/ hebreu/ crucificado num calvário);
[..].cavalguei/ minha fantasia hebraica/na língua cananéia/ de meus pais [...]; leões
crucificados de Cartago (NOGUEIRA, 2000).
Por sua vez, Amaya (2001) é um dos livros da teatralogia ibérica, que inclui Imilce
(2000) e Ilaiana (1997). Nele, a escritora realiza um diálogo intercultural a partir de suas
raízes galeo-lusitanas. Em Amaya (2001) a autora, impressionada na vida real com a
descoberta de seu sangue galego, parte ao reconhecimento mítico e geográfico de si mesma.
Faz o percurso ao contrário de seus ancestrais, no rumo que vai do norte de Portugal à cidade
de Padrón, passando por outros sítios como Sanxenxo, Combarro, Finisterra. Imerge na
cultura galega cercada pela paisagem dos hórreos e eucaliptos que sempre povoaram seus
sonhos de infância, procura vivenciar o histórico e o psicológico da imigração dupla : da
Galiza a Portugal, da Lusitânia ao Brasil. Recorre à figura real de Teresa Susabila, que se
funde literariamente com a ficcionalizada Amaya, cuja personificação a autora chega a ponto
de incorporar bordando esse nome em seu casaco de uso diário.
Ilaiana - Enigmas de Elche, publicado em 1997, é um livro composto por quarenta
poemas, que relaciona aspectos temáticos, formais e epigráficos à origem histórica do título
da obra. Os versos são distribuídos em quatro quadras decassílabas e um dístico ao final.
Esses dois últimos versos que inauguram e concluem o poema, completando sua estrutura
cíclica e regressando à matriz temática (“A Dama de Elche”, mito da deusa-sacerdotisa da
região da Galícia, Espanha). Ilaiana (1997), que completa junto com Imilce (2000),
Ainadamar (1996) e Amaya (2001) a denominada tetralogia ibérica, em que a autora recorre
a mitos e temas culturais luso-hispânicos, trata do mito da “Dama de Elche”, deusa-
sacerdotisa do período pré-espanhol (celta). Com influências de mitos semelhantes, “em
pedra talhada ou policromada, ricamente vestida e adornada, ostentando uma toucada – suas
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 291
tranças?, elaboradíssima, ela tem o olhar fixo na eternidade. Preservada desde sua milenária
existência, anônima ela e anônimo o seu criador. Pergunta a voz poética: fui a deusa e o
touro subterrâneo/ Inanna Astarte Isis ou Cibele/ Uni Tanit fui Juno ou fui Demeter/ que
nome me chamavam os iberos? (NOGUEIRA, 1997). Dessa forma, a voz da Dama de Elche
perpassa toda obra, assumindo identidades múltiplas, traduzindo em versos o
interculturalismo de sua obra:
E eu contemplei atônita o semblante/ da moça igual à dama na estação/ desceu em
frente às águas de Alicante/ império de tartéssicas visões./ Mulher sacrificada na
pirâmide/virgem sacerdotisa que foi mãe/ nômade – proletária – navegante/ que céu
te despencou na corda vã? Grego ou cartiginês esse semblante/no trem com seus
dois filhos pela mão/grega cartaginesa ou babilônica são de Creta ou da Síria essas
feições? (Poema IV)[...] Foi aqui que eu plantei um CANDELABRO/ de Chipre e o
consagrei à luz da lua/ meu pente de marfim veio de Samos/ e os fóceos esculpiram
minhas tranças (Poema VIII) (NOGUEIRA, 1997, p. 18.22)
Mas a autora tem consciência plena de sua identidade, mesmo imiscuindo-se em
inúmeras culturas, como demonstram esses versos: Esta ilha de ferro é meu RECIFE/ com
seus guanches atlantes e tupis/ esta ilha é meu corpo e meu abismo/ meu poder de sonhar e
de existir (NOGUEIRA, 1997, p. 25)
Já A Quarta Forma do Delírio (2003) trata dos mitos celtas da Bretanha, como os
da Távola Redonda, Rei Artur e o Santo Graal. Resultado de uma residência artística realizada
pela autora em Saint-Nazaire (França), em 1999. Região anteriormente dominada pelos celtas,
o Norte da França, juntamente com a Ilha da Grã-Bretanha, desenvolveu toda uma cultura
miscigenada, com elementos pagãos e cristãos, resultado da incursão do cristianismo em
terras dos chamados “povos bárbaros’ na Idade Média. Com sensibilidade aguçada, a autora
vai perceber tais influências, visíveis nos seguintes versos: (Esta era a escada dos druidas/ e
eu sou a Veleda a druidesa/ meu canto tem poder/ de dissolver tempestade/ guardiãs do
santuário de Teutates/ ninfa celta/ sacerdotisa armoricana/ imagem de Bretanha (Fala de
Veleda); Ouve o canto da druida/solitária/ tu estás sob a minha/ proteção/ visão que eu
atraí/armoricana/ eu me chamo Merlin/ o Encantador (Fala de Merlin) (NOGUEIRA, 2003,
p. 41.44). Pois, como afirma Lourival Holanda na orelha deste livro:
Lucila cruza – no sentido fecundo – caminhos reais que agora dão uma outra
gravidade à memória de seu imaginário poético. O impacto da praia rochosa de Saint
Marc. Os caminhos imemoriais por onde nossas lembranças se cruzam: os índios
brasileiros que por ali Montaigne recebeu. Hoje, é Lucila recebendo os eflúvios
poéticos de celtas, de Carnac, da beleza bárbara da Bretanha.
(NOGUEIRA, 2003 – orelha)
Nas fronteiras da linguagem ǀ 292
Finalmente, Estocolmo (2004) vem representar o fechamento do ciclo Mítico
Performático, a partir de falas deambulatórias pelas ruas da capital sueca, que dialogam com
vários tempos e personagens do século XVIII, culturas arcaicas desde os livros de Odin sobre
as quais paira a alegoria da volva, figura emblemática que se confunde com a própria poesia
em seu uso de sibilas para profetizar. Ao mesmo tempo, verifica-se que é um porto de
chegada da autora, em sua odisséia pessoal, integrada nesse ano à comunidade sueca pelo
nascimento de seu neto Alexander. A filha e neta de portugueses e galegos que se torna mãe e
avó, no percurso de volta dos vikings que são referenciados em todo o livro, inclusive em suas
vestimentas e visual punk pós-moderno.
Assim, podemos dizer que o discurso narrativo-literário em Lucila Nogueira dá-se a
partir do mito. Corroborando essas assertivas e alargando um pouco o quadro lingüístico de
performance e teatralização da voz, Glusberg (1987) afirma que “a performance se perde na
densidade do significado do signo e se conserva o significante”. De fato, os pesquisadores têm
se esforçado, sobretudo os pesquisadores semiológicos, para detectar o sentido da
performance.
As vozes femininas, sejam elas celtas, galegas ou escandinavas se transpõem para os
livros de maneira tanto figurativa (metáforas e metonímias) quanto temáticas (vozes de mitos
ancestrais que ecoam no inconsciente coletivo). O fundamental é que esta passagem do
semântico para uma espécie de estado vital do significante, tal como a aparição de novos
signos, seja adotada em várias religiões e mitos de iniciação (GLUSBERG, 1987), ambos
bastante fortes em Lucila Nogueira. Já para Zaul Zumthor, autor canadense que aprofundou o
conceito de performance para a cultura e especialmente a literatura, afirma que, se houvesse
uma ciência da voz, ela não estaria centralizada em uma única forma de conhecimento, pois
deveria abranger, em princípio, a fonética e a fonologia, além da antropologia, da História e
da psicologia da profundidade. Em seu estudo, o teórico refere-se à voz do ser humano real, e
não à do discurso, uma vez que o texto literário é uma voz que está dentro de um suporte
escrito, portanto mediado ele já é uma representação.
Diretamente vinculada à voz poética, a performance é uma ação oral-auditiva pela qual a
mensagem poética é simultaneamente transmitida e percebida, no tempo presente, em que o
locutor assume voz, expressão e presença corporal (física), enquanto o destinatário, que não é
passivo, também se inclui como presença corporal dentro da performance.
A lírica de Lucila Nogueira, reverberando o eco ancestral de mitos, enseja-se nesse
panorama. Os cinco livros selecionados para o estudo desse artigo são repletos de elementos
identitários tão diversos quanto a cultura ibero-galego-celta-escandinava. Embora plenamente
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 293
enraizada no Brasil, suas inúmeras viagens a outros países ajudaram-na na concepção poética
das vozes mitológicas das culturas tão diversas que hoje convivem local e globalmente,
constituindo-se numa verdadeira geografia mítica pós-moderna.
Referências
ACADEMIA BRASILIRA DE LETRAS. Dicionário Escolar da Língua Portuguesa. São
Paulo: Cia. Ed. Nacional, 2008.
CERVINSKIS, André. De Imilce a Medellín: a poesia de Lucila Nogueira. Olinda: Livro
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DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. Lisboa: Presença, 1989.
FIORIN, José Luiz. Elementos da Análise do Discurso. Sâo Paulo: Contexto, 2005.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
HOFFMAN, Adriane Ester. A Moderna Lírica Mitológica em Lucila Nogueira. Olinda: Livro
Rápido, 2007.
MATTELART, Armand & NEVEU, Érik. Introdução as Estudos Culturais. São Paulo:
Parábola, 2004.
MIELIETINSKI. E. M. A poética do mito. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.
NOGUEIRA, Lucila. Amaya. Recife: Bagaço, 2001.
_______. Ilaiana. Recife: Cia. Pacífica, 1997.
_______. Imilce. Recife: Cia Pacífica, 2000.
_______. A Quarta Forma do Delírio. 2ª. Edição, Recife: Bagaço, 2003.
_______. Estocolmo, Recife : Ed.Livro Rápido, 2004.
GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987.
REIS, Carlos. Fundamentos y técnicas del análisis literario. Madrid, Ed. Gredos, 1981.
SILVA, Vitor Manuel de Aguiar. Teoria da Literatura. Coimbra: Almedina, 1986.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral. São Paulo: Ed. HUCITEC, 1997.
_______. Performance, Recepção, Leitura. Trad.: Gerusa Pires Ferreira & Sueli Fenericli.
São Paulo: Ed. HUCITEC, 2000.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 294
O ENUNCIADO COMO ZONA DE DIÁLOGO ENTRE VOZES
E VALORES: UMA ANÁLISE DA CONSTITUIÇÃO
JORNALÍSTICAS DA IMAGEM DE EDUARDO CAMPOS NO
PERÍODO PRÉ E PÓS MORTE [Voltar para Sumário]
Andre Cordeiro dos Santos (UFPE)1
1. Iniciando o diálogo
Toda enunciação efetiva, seja qual for a sua forma,
contém sempre, com maior ou menor nitidez, a
indicação de um acordo ou de um desacordo com
alguma coisa.
(Bakhtin, 2006, p. 109)
Nesse excerto, Bakhtin nos diz que toda enunciação efetivada comporta uma posição
valorativa do enunciador em relação ao objeto de enunciação e, consequentemente, já que
para o filósofo a enunciação é a unidade da comunicação real, que a linguagem carrega
sempre consigo posições avaliativas do sujeito. Nesse sentido, sempre que há uso de
linguagem, há posições valorativas que se constituem a partir de relações dialógicas. Portanto,
olhar a linguagem, nessa perspectiva, requer levar em consideração os valores que se fazem
constituintes dela.
As relações dialógicas, no entender dos integrantes do chamado Círculo de Bakhtin2,
dizem respeito a relações de sentido que se instauram na instância de discurso por meio de
diálogos que ocorrem dentro da enunciação, envolvendo diferentes aspectos que se fazem
determinantes de sentido. Esse diálogo é determinado, segundo Bakhtin (1993, p. 71), pelos
momentos básicos da constituição da linguagem que são o eu-para-mim, o eu-para-o-outro e
o outro-para-mim. Esses momentos constituem a base arquitetônica do pensamento
bakhtiniano que se foca principalmente no caráter dialógico da linguagem e este caráter
perpassa todos outros: o social, o histórico e axiológico.
1 E-mail: [email protected] 2 Grupo de estudiosos russos composto por Bakhtin, Volochinov, Medvedev e outros.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 295
Tomamos esses momentos dialógicos, apontados por Bakhtin, nos quais se põem em
diálogo e conflito locutores, discursos, valores, contextos, etc., que são definidores de
sentidos de enunciações, e, que fazem da enunciação eventos únicos, como pressupostos para
esse trabalho. Assim, procedemos a análise do fenômeno de mudança da constituição da
imagem do ex-governador do estado de Pernambuco e pleiteante a presidente do Brasil,
Eduardo Campos, no período pós-morte em relação ao período anterior a sua morte,
observado no jornal Diário de Pernambuco on-line.
Para tanto, adotamos a perspectiva da Análise Dialógica dos Discursos (ADD),
buscando reconstruir os fios dialógicos que dão sustentação aos dizeres e, consequentemente,
às imagens do político nas notícias do jornal, atentando para os momentos determinantes dos
valores na (e da) linguagem citados acima. Nesse intuito, trazemos à discussão os conceitos
basilares da ADD que se mostram necessário a esse empreendimento e, após isso, analisamos
as duas notícias. Passemos aos conceitos base da análise.
2. Alguns elementos conceituais do diálogo
Os integrantes do Círculo de Bakhtin, por tomarem o enunciado como base para o
estudo da linguagem e considerá-lo como evento único e irrepetível, buscaram evidenciar a
linguagem como resulto da interação de diferentes elementos. Em um desses estudos, no texto
Que é a linguagem?, Volochinov (2013 [1926], p. 141) propõe que “a linguagem [...] é o
produto da atividade humana coletiva e reflete em todos os seus elementos tanto a
organização econômica como a sociopolítica da sociedade que a gerou”, ou seja, a linguagem
mantém um diálogo com as condições sócio-político-econômicas.
Sendo assim, a linguagem está diretamente ligada e determinada pelo social e estudá-
la requer, antes de tudo, o reconhecimento dessa ligação. Adotando essa perspectiva,
iniciamos essa discussão trazendo à tona o que Bakhtin entende por esferas discursivas,
acreditando que esse conceito é relevante no entendimento do fenômeno que nos propusemos
a analisar, já que a compreensão dos gêneros do discurso passa pela compreensão das esferas
discursivas.
Para o Bakhtin (1997, pp. 227-326), as esferas discursivas são constituídas por
determinado grupo de pessoas que compartilha entre si práticas sócias/discursivas e um dado
ambiente social. Segundo ele, esse grupo utiliza determinadas práticas discursivas que se
fazem necessárias para a interação entre seus indivíduos e, assim, por compartilharem o
mesmo ambiente social, acabam por ter necessidades comunicativas semelhantes, em
Nas fronteiras da linguagem ǀ 296
condições, também, semelhantes, e isso gera a criação de formas linguísticas mais ou menos
padronizadas – ou “enunciados relativamente estáveis”, nas palavras de Bakhtin – que
cumprem determinadas funções comunicativas do ambiente social. São essas formas
linguísticas, que evidenciam ainda mais a relação de diálogo entre linguagem e sociedade, que
Bakhtin chamou de “gêneros do discurso”.
Os gêneros do discurso estão presentes em todas as esferas da comunicação humana,
pois sempre que fala, um sujeito se serve deles, obedecendo, mesmo que involuntariamente, a
determinadas “regras” de funcionamento dessas “formas de linguagem”. Além disso, sendo os
gêneros do discurso formas relativamente estáveis de enunciados, a posição valorativa que
compõe o enunciado da comunicação efetiva é, também, inerente aos gêneros, não havendo
nenhum gênero do discurso que se excetue da carga axiológica que acompanha a linguagem,
por mais que se busque atingir um ponto de neutralidade.
Em contrapartida a isso, temos algumas esferas da comunicação humana que utilizam
de certos gêneros do discurso que buscam atingir essa neutralidade, se eximindo das posições
valorativas, é o caso, por exemplo, da esfera jornalística, com as notícias que se propõem ser
unicamente um meio de transmissão de informações. No entanto, percebemos que não é bem
assim, pois mesmo nesses casos em que a “forma” de linguagem se propõe neutra, ela traz
consigo uma carga avaliativa em relação ao objeto do discurso que se evidencia a partir da
investigação dos seus fios dialógicos.
Vistas a isso, se a notícia, apesar de se propor neutra, não o é. A partir dela podem se
revelar valores que trabalham para a construção de discursos que se revelam em posição de
acordo ou desacordo com o objeto de enunciação. Desse jogo de valores que se instaura na
enunciação emergem imagens construídas como produto de um diálogo que reflete e refrata as
ideologias que circulam na esfera discursiva na qual a prática enunciativa se deu, nas palavras
de Bakhtin (2006, p. 31) “cada campo de criatividade ideológica tem seu próprio modo de
orientação para a realidade e refrata a realidade à sua própria maneira”.
Essa posição axiológica, que se mostra nos enunciados da comunicação real, no
entanto, pode não ser sempre semelhante dentro de uma esfera discursiva, posto que o
enunciado como evento único é sempre fruto de um diálogo singular, assim, também, as
posições axiológicas serão únicas em cada enunciado, podendo, a posição de um sujeito
distanciar-se de uma posição anteriormente assumida com o decorrer do tempo. Vemos,
assim, que o sujeito é ponto nodal para a compreensão desse fenômeno, por isso, mais a
frente, nos deteremos nessa questão.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 297
Nesse sentido, entendendo o enunciado como fruto de um diálogo único, acreditamos
que captar os valores, ou as avaliações, em relação ao objeto do discurso requer que se
investigue os fios dialógicos que dão sustentação aos dizeres. Cabe, pois, ressaltar que a base
arquitetônica mostrada acima resume de forma sumária o caráter dialógico da linguagem
(dialogismo amplo). Essa base se evidencia e pode ser percebida nos gêneros discursivos
através da orientação social, para o outro; da presença de diferentes vozes sociais que
dialogam ou se conflitam; da materialização do enunciado enquanto elo entre os já-ditos e a
presunção de respostas; da adequação ao contexto enunciativo; e das marcas axiológicas do
sujeito em relação ao objeto da enunciação.
Tomaremos essas formas de diálogo como ponto de partida para as análises desse
artigo. Antes, porém, acreditamos que seja relevante fazer algumas considerações sobre
sujeito.
3. Do sujeito do diálogo
Falar de sujeito dentro da perspectiva bakhtiniana de estudo da linguagem é algo que
requer atenção, posto que o sujeito não foi teorizado dentro dos estudos desenvolvidos pelo
Círculo. Nesse sentido, Segundo Teixeira (2006, p. 229), a visão sobre sujeito de Bakhtin
“emerge e se sustenta na enunciação, entendida como um processo em que o eu se institui
através do outro e como outro do outro, sendo pela inter-relação entre dialogismo e alteridade
que se pode tentar cerca a subjetividade em Bakhtin”. Desse modo, o sujeito, assim como o
enunciado, é fruto de um diálogo único em cada momento discursivo.
Partindo dessa visão, Dahlet (1997, p. 77 apud TEIXEIRA, 2006, p. 229) considera
que “o dialogismo bakhtiniano se fundamenta na negação da possibilidade de conhecer o
sujeito fora do discurso que ele produz” e Teixeira (ibidem) completa dizendo que esse é o
motivo pelo qual não há uma teoria do sujeito enquanto objeto, mas, sim, “uma teoria da
linguagem fundada na idéia de que a interação verbal é o modo de ser social dos indivíduos”.
Ou seja, para Bakhtin, não há sujeito sem linguagem.
Com isso, se servindo de pensamento de Dahlet (1997, p. 60) a respeito do sujeito
bakhtiniano, Teixeira (idem, p. 230) afirma que
Bakhtin relança a problemática do sujeito em uma concepção dinâmica de
enunciação, como produto de uma voz na outra, em que a significação é produzida
em direções diferentes, sob as pressões de um dialogismo que remete a ancoragem
do sujeito à realidade do discurso, entendido como uma ‘construção híbrida’,
(in)acabada, por vozes em concorrência e sentidos em conflitos” (grifos do autor)
Nas fronteiras da linguagem ǀ 298
É nesse sentido, que a compreensão do sujeito se faz relevante para a compreensão dos
valores que são inculcados nas palavras na interação verbal por meio de enunciações. O
diálogo de vozes e valores que se opera na linguagem, se opera a partir de um sujeito que se
institui pela linguagem e, por isso, é visto, assim como o enunciado, como evento.
4. Foco no diálogo
Nesta seção, iremos analisar as notícias a respeito do candidato Eduardo Campos do
jornal citado acima, a fim de buscar reconstruir os fios dialógicos que dão sustentação aos
dizeres, mostrando que esse diálogo que se instaura como único em cada momento discursivo
faz emergir imagens diferente do candidato no período pré e pós morte, sendo a sua morte um
fator determinante para a exaltação de sua imagem. Para isso, observaremos as questões
ideológicas que se evidenciam nos textos, levando em consideração o sujeito da enunciação,
visto que esse é o ser a partir do qual se refletem e refratam essas questões ideológicas, ainda
que o sujeito em uma das notícias não esteja identificado, uma vez que, a notícia é assinada
pelo próprio Jornal. Sabemos que mesmo nesse caso em que o sujeito não está identificado,
ele é peça chave, já que é a partir dele que o diálogo se instaura na enunciação e no caso que
trazemos a análise não seria diferente. Passemos à notícia.
Figura 1: Notícia do Diário de Pernambuco on-line anterior a morte de Eduardo Campos
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 299
Fonte: http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/politica/2014/07/08/interna_politica,514877/aliados-de-armando-
gostam-de-declaracoes-acidas-de-campos.shtml
Para contextualizar um pouco a notícia, convém situar o contexto, ainda que de forma
sumária, que gerou a notícia acima. No ano de 2014, Eduardo Campos se lançou como
candidato a presidência do Brasil pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). Como era um
candidato não muito conhecido, precisava angariar votos Brasil a fora para buscar a eleição e,
por isso, participou de comícios com seus aliados. Nesse ínterim, Campos buscou mostrar
suas propostas de governo apoiando-se no discurso de que o governo do momento era falho e
que, por isso, não deveria ser mantido, sendo ele uma melhor opção para o Brasil.
Desse quadro surge a notícia: Eduardo Campos, em ato político com seu “afilhado”
Paulo Câmara, teria dado declarações “ácidas” e, segundo os candidatos da oposição, esses
“comentários contraditórios e desrespeitosos” seriam um “sinal de desespero” do candidato.
Ainda, segundo a notícia, para o deputado federal Sílvio Costa, Eduardo “não foi feliz em
suas declarações”, pois teria chegado a chamar seus próprios aliados de “parasitas do poder” o
que seria, para Costa, um “sinal de desespero da frente popular”.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 300
Como defendido por Bakhtin, toda enunciação comporta uma posição axiológica e na
notícia acima não é diferente, já que a notícia se caracteriza como um tipo relativamente
estável de enunciado. Na notícia, percebemos um discurso de oposição a Eduardo Campos,
que é caracterizado através das críticas tecidas ao candidato – candidato em desespero, que
proferira comentários desrespeitosos e contraditórios e que desrespeita seus próprios aliados.
Dessa forma, ainda que a notícia atribua as críticas à oposição, um discurso, na perspectiva
bakhtiniana, sempre é proferido por um sujeito que, enquanto tal, reflete e refrata as
ideologias da sua esfera de comunicação, que se constitui na linguagem enquanto evento e
que trava diálogos com outras vozes, assim, esse discurso também é o discurso do sujeito
representado pelo jornal.
A notícia é um discurso do sujeito do jornal3 em relação ao objeto da enunciação,
ainda que dialogue diretamente com discursos outros, pois ele é resulto do diálogo e conflito
de vozes (discursos) da oposição e do próprio sujeito do jornal, pois como lembra Bakhtin
(1998, p. 86) toda enunciação encontra o seu objeto sobre o crivo de outrem, pois o objeto já
está também sobre a tônica do outro, por isso, por ser orientado para o objeto, o discurso
penetra um meio dialogicamente perturbado e tenso de discursos outros, ou seja, “ele (o
discurso) entrelaça com eles (discursos outros) em interações complexas, fundindo-se com
uns, isolando-se de outros, cruzando com terceiros”.
Desse modo, se mostra o diálogo entre as vozes de oposição e do próprio jornal,
evidenciando o dialogismo que é inerente à linguagem e, sendo tomado como momento base
da notícia e determinante de todos os seus valores. Esse diálogo trabalha para a construção de
uma posição axiológica que se instaurou e trabalha para a construção de Eduardo Campos
como um político de discurso contraditório, desrespeitoso com seus próprios aliado e em
desespero o que o caracterizaria como um candidato inapto a assumir o cargo ao qual se
propunha a assumir: presidente do Brasil.
Analisemos agora uma notícia do período pós-morte de Eduardo Campos afim de
mostrar que sua morte foi determinante no diálogo que se instaura no enunciado em questão,
resultando numa imagem do candidato diversa da anterior. Passemos a notícia:
Figura 2: Notícia do Diário de Pernambuco on-line posterior a morte de Eduardo Campos
3 Usamos sujeito do jornal porque o texto, embora tenha um autor, este não foi identificado, sendo assinado pelo
próprio jornal.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 301
Fonte: http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/politica/2014/08/14/interna_politica,522601/eduardo-campos-
aliava-programas-sociais-e-a-visao-de-mercado.shtml
Antes, de procedermos a análise, faremos uma descrição sumária do contexto geral no
qual foi produzido o texto. Em treze de agosto de 2014, Eduardo Campos foi vítima de um
acidente fatal, o avião no qual ele se deslocava para cumprir compromissos políticos caiu e
todos os tripulantes vieram a óbito. Após esse evento, os discursos que circularam a respeito
de Eduardo Campos foram discursos que exaltavam sua trajetória política e que o mostravam
enquanto um candidato que tinha uma proposta consistente de Brasil, como podemos ver no
texto acima. Assim, essa notícia, posterior a morte de Eduardo Campos, e o discurso que se
apresenta por meio dela são completamente diferentes do que se mostrou no texto anterior.
No texto, assinado por Paulo Silva Pinto, há a caracterização de Eduardo como um
político que conseguia unir em seu projeto de governo uma visão de mercado, que agradava
os empresários, e os programas sociais, exemplo seria o passe livre para os estudantes, o que
agradava também a população que se beneficiaria desse tipo de programa. Desse modo, o
autor da notícia compara Eduardo Campos ao ex-presidente da república Luiz Inácio Lula da
Silva em seu primeiro mandato, pois, segundo o autor, aquele, assim como este, era “um
político de esquerda, defensor de programas sociais e ao mesmo tempo alinhado com o
mercado”.
Desse modo, a imagem que se evidencia do candidato é de um político ideal, vistas ao
fato de se esperar que um presidente consiga desenvolver e trabalhar em prol de todos os
Nas fronteiras da linguagem ǀ 302
setores da sociedade. Percebemos um diálogo que trabalha para a construção dessa imagem
como fruto de ideologias socialmente difundidas: o discurso da esquerda politica; discurso do
bom político; discurso a respeito do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e etc. Desse
diálogo e conflito de vozes é que emerge a posição valorativa que se evidencia do autor em
relação ao objeto de enunciação, como defende Bakhtin (1998) ao dizer que os valores que se
mostram pela linguagem são frutos de um diálogo e conflito de vozes (discursos).
Assim, podemos dizer que a imagem, que outrora fora constituída, de um político em
desespero, com comentários controversos e ácidos foi substituída por uma imagem de um
político com proposta consistente de Brasil, isso como resultado do diálogo único que se
instaurou na enunciação.
Nesse momento enunciativo, é, também, inegável que a morte de Campos interferiu na
forma como a constituição de sua imagem política se deu, pois é uma prática social comum
exaltar a imagem de alguém após sua morte, lembrando apenas os pontos memoráveis de sua
trajetória. Essa voz (discurso de exaltação pós-morte) foi determinante para a construção do
diálogo que se instaurou por meio do enunciado em questão, sendo determinante de valores na
relação do eu (autor-sujeito) com o outro (Eduardo Campos).
Isso evidencia que, assim como defende Bakhtin (2003) os momentos que compõem a
base arquitetônica da linguagem são determinantes dos valores que estão presentes na
linguagem e que, assim como lembra Bakhtin (2006), em um enunciado sempre haverá a
indicação, ainda que velada, de um acordo ou desacordo em relação ao objeto de discurso.
5. Considerações finais
A partir da adoção da perspectiva bakhtiniana de estudos da linguagem que se detém
principalmente ao carácter dialógico como base para qualquer investigação dos fenômenos da
linguagem, vimos que a linguagem sempre se mostra como uma zona de diálogo e conflito
entre diferentes vozes e que esse diálogo é único em cada evento enunciativo. Vimos também
que as posições axiológicas assumidas podem mudar quase que completamente com o tempo,
em decorrência da inserção de alguma voz (discurso) que interfira diretamente no diálogo; e,
vimos que o sujeito e o ser que se mostra como evento, se constituindo em cada momento
enunciativo e sob influência diretas das ideologias das esferas discursivas da qual faz parte,
sendo esse ser elemento diretamente determinante da imagem do objeto de enunciação.
No caso analisado, percebemos que a morte de Eduardo Campos interferiu diretamente
na constituição jornalística de sua imagem pelo Diário de Pernambuco on-line: de político em
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 303
desespero a político com proposta consistente de governo. Essa mudança discursiva se mostra
como resultado de diálogos e conflitos complexos entre vozes que ocorrem na (e pela)
linguagem, e que refletem e refratam as ideologias de esferas discursivas por meio de um
sujeito. Em adição a isso, a sua morte fez com que se exaltasse os fatos memoráveis na
trajetória de Eduardo Campos.
Convém ressaltar que esta análise é apenas parte de uma pesquisa maior e representa
os primeiros gestos analíticos empreendidos na tentativa de sua compreensão. No entanto,
essas primeiras análises mostraram que houve mudança nos valores que se encontram nas
notícias, como fruto de diálogo e conflito de vozes, e isso ocasionou a mudança na imagem
constituída pelo jornal do político: o político que antes de sua morte era caraterizado como um
político em desespero, após sua morte, é caracterizado como um político que tinha uma
proposta consistente de Brasil.
A análise desse fenômeno confirma, assim como defendem os integrantes do Círculo
de Bakhtin, que a linguagem carrega sempre uma posição axiológica de um sujeito em relação
ao seu objeto de enunciação, resultando em um gesto, ainda que velado, de acordo ou
desacordo com esse objeto. E que esse gesto de (des)acordo pode ser mudado sob
interferência de fatores que compõem o diálogo único de cada enunciação. Por isso,
concluímos que qualquer empreendimento de tentativa de compreensão da linguagem deve ter
em conta todos os fatores que determinam os valores que são-lhe inerentes.
Referências
BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristovão
Tezza, para uso didático, com base na tradução inglesa de Michael Holquist e Vadim
Liapunov (“Toward a philosophy of the act”), publicada em Austin: University of Texas
Press, 1993.
_______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. Tradução de Maria
Ermantina Galvão G. Pereira.
_______. O discurso no romance, In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e estética. São
Paulo: Editora Unesp, 1998, pp. 71-210.
_______. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, Hucitec (10ª. ed.), [1979], 2006.
TEIXEIRA, Marlene. O outro no um: reflexões sobre a concepção bakhtiniana de sujeito. In:
FARACO, C. A.; TEZZA, C.; CASTRO, G. Vinte ensaios sobre Mikhial Bakhtin. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2006, pp. 227 – 234.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 304
VOLOCHINOV, V. A construção da enunciação e outros ensaios. São Carlos: Pedro & João
editores, [1926], 2013. Tradução: João Wanderley Geraldi.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 305
O LIVRO DE LITERATURA INFANTIL NA SALA DE AULA:
UM OLHAR PARA A ESCOLHA FEITA PELO PROFESSOR
DA EDUCAÇÃO INFANTIL E DO 1º ANO DO ENSINO
FUNDAMENTAL [Voltar para Sumário]
Andressa Silvestre Teixeira (UFRPE/UAG)
Leila Nascimento da Silva (UFRPE/UAG)
Introdução
A partir do contato com algumas escolas localizadas no município de Garanhuns foi
constatado, no cotidiano escolar, que há a leitura de textos literários. Normalmente, estas
leituras são realizadas pelo professor, assim como a escolha do material a ser lido. Ao
evidenciar tais fatos, nos indagamos quais os critérios adotados pelos professores Educação
Infantil e do 1º ano do Ensino do Ensino Fundamental para a escolha dos livros de literatura
infantil e de que forma esses critérios utilizados podem favorecer o letramento literário dos
educandos.
Consideramos o quanto é importante criar situações que induzam aos leitores a
interagir com o maior número possível de gêneros discursivos, pois este trabalho favorece a
formação profissional e desempenho como sujeito livre, ativo e social. No entanto, focaremos
nos gêneros literários, uma vez que estes, quando possuem um texto de qualidade, estimulam
o hábito da leitura, induzindo o leitor a explorar a realidade que o cerca de maneira
diferenciada, desenvolvendo sua imaginação criadora e ampliando significativamente o seu
universo cultural. Diante disto, realizaremos uma reflexão a respeito dos critérios de escolha
do livro literário lido em sala de aula. A partir do levantamento destes critérios, analisamos a
natureza dos mesmos buscando verificar em que esta escolha favorece a ampliação do
letramento literário dos educandos; verificamos também se estes critérios mudaram da
Educação Infantil para o 1º ano do Ensino Fundamental.
As escolhas docentes em relação ao livro de literatura trabalhado em sala
Nas fronteiras da linguagem ǀ 306
Para desempenhar bem o papel de leitor experiente e mediador, torna-se necessário
que o professor estabeleça os seus critérios para a escolha do livro de literatura a ser
explorado em sala de aula. Esse livro deve ser de qualidade e favorecer um bom trabalho de
compreensão textual.
Compreende-se que os primeiros livros contribuem significativamente, e são
determinantes quanto à iniciação literária contribuindo na aquisição de conhecimentos os
quais a escola trabalha. Sendo, por tanto, de extrema relevância que o processo de seleção
destes livros passe pelo clivo de um olhar criterioso por parte do professor, uma vez que esse
profissional também tem responsabilidades na formação de sujeitos leitores.
Brandão e Rosa (2010) elencam ao menos três critérios que podem ser adotados pelos
professores para a escolha do livro literário: O primeiro nos remete às afinidades estéticas do
professor; o segundo tem a ver com as preferências demonstradas pelas crianças e o terceiro
ao conhecimento do acervo, ao qual os estudantes tem acesso, seja dentro ou fora do ambiente
escolar.
Metodologia
O trabalho realizado possui natureza qualitativa. A pesquisa qualitativa, segundo
Richardson, et al (2008) “pode ser caracterizada como a tentativa de uma compreensão
detalhada de significados e características situacionais apresentadas pelos entrevistados, em
lugar da produção de medidas quantitativas de características ou comportamentos (p. 90)”.
Desta maneira não possuímos resultados padronizados. Realizamos uma reflexão com base na
escuta dos depoimentos docentes.
O estudo foi desenvolvido no município de Garanhuns, no qual foram selecionadas
três escolas públicas. Estas instituições de ensino foram sugeridas pela Secretaria de Educação
Municipal e possuíam ao menos um professor da categoria pesquisada (professores da
Educação Infantil e/ ou do 1º primeiro ano do Ensino Fundamental I).
O primeiro critério de seleção dos sujeitos da pesquisa consistiu em identificar, através
de uma conversa informal, aqueles que desenvolviam um trabalho com a literatura infantil.
Assim, foram selecionados cinco professores da Educação Infantil e cinco professores do 1º
ano do Ensino Fundamental que alegaram trabalhar em sala de aula a leitura de livros
literários.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 307
Aos sujeitos pesquisados não foi exigido a incorporação ao quadro efetivo da escola,
apenas a condição de ser regente da sala de aula em questão.
ETAPA QUE
ENSINA
FORMAÇÃO TEMPO DE
ENSINO
PROFª 1 Educação Infantil Curso de Licenciatura em Pedagogia.
Pós em psicopedagogia.
7 anos
PROFª 2 Educação Infantil Curso de Licenciatura em Pedagogia.
Pós em psicopedagogia.
7 anos
PROFª 3 Educação Infantil Curso de Licenciatura em Pedagogia.
Pós em psicopedagogia.
13 anos
PROFª 4 Educação Infantil Curso de Licenciatura em Língua
Portuguesa. Pós graduação em
Língua Portuguesa (relatou algo
sobre contos de fadas)
14 anos
PROFª 5 Educação Infantil Curso de Licenciatura em Pedagogia.
Cursando a pós graduação.
17 anos
PROFª 6 1º Ano Curso de Licenciatura em Pedagogia.
Pós- graduação em supervisão
pedagógica.
13 anos
PROFª 7 1º Ano Graduação em Língua Portuguesa.
Pós-graduação em psicopedagogia.
08 anos
PROFª 8 1º Ano Magistério. 28 anos
PROFª 9 1º Ano Curso de Licenciatura em Pedagogia. 10 anos
PROFª 10 1º Ano Curso de Licenciatura em Pedagogia.
Pós-graduação em administração
escolar e gestão pedagógica
10 anos
Foi empregada para coleta de dados a entrevista semiestruturada. Conforme Lakatos e
Marconi (2010), a entrevista é definida como: “[...] encontro entre duas pessoas, a fim de que
uma delas obtenha informações a respeito de determinado assunto, mediante a conversação de
natureza profissional” (p.178). Aos entrevistados foram esclarecidos somente os objetivos da
pesquisa e o roteiro da entrevista.
ROTEIRO DA ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA
• De que maneira você busca promover o acesso à literatura infantil aos seus
alunos?
• Você tem fácil acesso aos livros de literatura? Justifique sua resposta.
• Em caso de resposta negativa em relação à questão anterior, perguntar: A escola
não disponibiliza um acervo de livros de literatura, por que eles não chegaram ou por
que estão guardados? Justifique sua resposta.
• Com que frequência você ler livros de literatura infantil para seus alunos?
• Você considera essa frequência de uso boa ou gostaria de promover um maior
acesso aos livros? Justifique sua resposta.
• Quais critérios você geralmente utiliza para escolher os livros que leva para a
Nas fronteiras da linguagem ǀ 308
sala? Por que você usa esse(s) critérios e não outros?
• Relate uma situação de leitura de um livro de literatura realizada em sala,
detalhando desde o momento em que você escolheu o livro até o momento em que
você trabalhou em sala (não esqueça de dizer qual o livro escolhido). Após a resposta
perguntar: Qual critério você adotou nessa ocasião? Você conseguiu pensar antes em
como seria esse momento de leitura ou teve que resolver na hora como iria fazer, o que
iria explorar com os alunos?
As informações coletadas através dessa primeira seção de entrevistas foram tratadas à
luz da metodologia de análise de dados qualitativos denominada análise de conteúdo
(BARDIN, 2002), pois a consideramos uma via possível para a revelação (reconstrução) do
sentido dos nossos achados. Assim a análise de conteúdo se refere a:
[...] um conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando, por
procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens,
obter indicadores quantitativos ou não, que permitam a inferência de conhecimentos
relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) das mensagens.
(BARDIN, 2002, p. 160)
Uma das características, portanto, que define essa abordagem é a busca do
entendimento da comunicação entre os homens, apoiando-se no (re) conhecimento do
conteúdo das mensagens.
Resultados
Para a análise dos depoimentos docentes, nos apoiamos nos possíveis critérios para
escolha do livro de literatura apontados por Brandão e Rosa (2010). Realizamos a leitura das
entrevistas, buscando identificar se as docentes mencionavam tais critérios e quais outros, não
destacados pelas citadas autoras, haviam aparecido nos depoimentos de nossas professoras.
A partir dessa análise foi possível identificar cinco critérios. Alguns destes mais
mencionados que outros, como podemos evidenciar no quadro abaixo:
Quadro nº 2
Critérios elencados pelas professoras da Educação Infantil e do 1º ano do Ensino
Fundamental.
Critérios mencionados Professoras
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
1) As afinidades estéticas do
professor
X
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 309
2) As preferências
demonstradas pelas crianças
X X X X X X X X X X
3) Conhecimento do acervo X X X X X X X
4) Preocupação social no que
tange ao desenvolvimento de
valores
X X X
5) Diretrizes estabelecidas pela
Secretaria de Educação
Municipal.
X X X
Como pode ser visto houve uma variedade de critérios e estes se remetiam a aspectos
diferentes: ora o foco era na criança ora no conhecimento do professor ou nas orientações
oficiais para o seu fazer pedagógico. Também notamos que as professoras citavam critérios
diferentes ao mesmo tempo.
Abordaremos cada um desses critérios mencionados, apontando os mais recorrentes.
Apresentaremos alguns fragmentos das entrevistas realizadas, buscando melhor esclarecer
estes critérios e compreender as escolhas docentes com relação ao livro literário.
1) As afinidades estéticas dos professores
O primeiro critério abordado por Brandão e Rosa (2010) – As afinidades estéticas do
professor – leva em consideração as próprias exigências estéticas do professor. Este critério
considera a obra como um todo, isto é, o texto, as imagens, que despertam sensações e
produzem efeitos no momento da leitura. Apenas por uma professora. Vejamos abaixo:
Professora 6, do 1º ano do Ensino Fundamental:
Até eu mesma gosto de estar apreciando esses livros. Gosto muito de ler estes livros. Então
assim, esses livros. Eu sinto que eles percebem o meu gosto pela leitura, no dia a dia e eu vou
descobrindo com eles assim o agradável dessas leituras, os motivando, depois eles pedem: -
Professora deixa eu olhar, deixa eu olhar! É uma briga na sala, para depois cada um
manusear pessoalmente.
O depoimento da docente demonstra entusiasmo com relação à leitura. Como a própria
fala revela, esse entusiasmo reflete diretamente nos ouvintes que se mostram ansiosos para
manusear o livro e desfrutar de sua leitura.
Assim, reconhecemos que a professora 6 considera essencial à prática docente a
mediação da leitura, tendo como propósito a formação de novos leitores. Concebemos,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 310
portanto, que à medida que o leitor, melhor dizendo, que o professor leitor aprimora e
desenvolve suas estratégias de leitura, este também aperfeiçoa suas escolhas estéticas, de
modo que os livros escolhidos irão se adequar aos seus padrões eruditos estéticos.
Ao compartilhar suas afinidades estéticas, o professor acaba auxiliando no
desenvolvimento da sensibilidade das crianças.
2) As preferências demonstradas pelas crianças
Conforme mencionado acima, o segundo critério abordado por Brandão e Rosa (2010)
são as preferências demonstradas pelas crianças. Este critério leva em consideração a opinião
dos ouvintes, neste caso as crianças. Existe, portanto, uma preocupação em tornar o momento
de leitura agradável. Todas as professoras da nossa pesquisa percebiam bem a importância de
levar em consideração os interesses infantis na hora de selecionar o livro. Observaremos nos
depoimentos a seguir que, ao optar por este critério, a leitura se tornava mais interativa e,
consequentemente, mais proveitosa, facilitando a formação de leitores.
Este critério, como pode ser visto no Quadro nº 2, foi o mais citado pelas professoras
participantes desta pesquisa, visto que todas elas evidenciaram, ao menos uma vez em seus
depoimentos, a preocupação em tornar o momento de leitura agradável para os seus discentes.
Vejamos um dos depoimentos:
Professora 4 da Educação Infantil:
Eu adequo a história a o contexto deles e a faixa etária. A gente sabe que cada livro tem a
faixa etária adequada né?! Livros muito longos, ai se for muito longo eu divido a história, se
o livro for curtinho a história pequenininha com bichinhos porque eles estão na fase de livros
com bichinhos né?! História de animais que é o que chama a atenção. Com crianças que tem
um contexto de acordo com o deles, ai eu escolho assim. Geralmente a maior parte dos livros
que eu li até agora foram de animais, historinhas de bichinhos porque é o que chama mais
atenção.
A docente expõe claramente sua preocupação, seu critério de escolha do livro literário.
Em suas escolhas prevalece a leitura de histórias, porque estas “chamam” a atenção das
crianças, ou seja, existe o intuito de que o momento de leitura seja agradável para os seus
alunos. Ao observar a fala da professora 2, também da Educação infantil, encontramos mais
uma característica deste segundo critério – As preferencias demonstradas pelas crianças. Para
identificar as preferências dos seus discentes, as professoras expõem os mesmos ao acervo
escolar, como bem sugeriu Brandão e Rosa (2010):
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 311
Professora 2 da Educação Infantil:
Eu procuro sempre deixar eles à vontade na sala para escolherem que material eles querem
manusear, seja livros, seja revista e tem lá um armário, não tem portas o armário e os livros
ficam lá sempre, sempre a disposição deles. Então, entre uma atividade e outra sempre têm
aqueles que terminam a atividade com mais facilidade. Terminou a atividade: - Tia, posso
olhar uma revista? – Tia, posso olhar um livro? - Pode! Ficam bem à vontade.
Ao adotar esta atitude a professora proporciona uma maior interatividade das crianças
com os livros e aproxima os discentes do mundo literário, os auxiliando no desenvolvimento
de seus próprios critérios de escolha. Assim, ela pode identificar, através destes momentos, o
interesse demonstrado com relação a determinadas temáticas, bem como autores e gêneros
literários. Constatamos esta atitude, também no depoimento da professora 8 do 1 ano:
Eu me reúno com eles, e vou escolhendo aqueles que eles gostam mais, os de mais fácil
compreensão é o que a gente trás.[...] Porque tem que elevar informação para eles né, de
literatura que geralmente é esquecida né, geralmente, a gente conta, contava mais outras
histórias. Hoje não! A literatura tá inserida em sala de aula.
Através do depoimento da professora 8, constatamos uma preocupação em escutar a
opinião das crianças, utilizando estes momentos para obter e oferecer informações,
entendendo a importância de exercício do seu papel de mediadora literária.
No depoimento da professora 2, da Educação Infantil, também é exposto a
preocupação em identificar as preferências dos discentes como forma de estimular e
desenvolver o gosto pela leitura. Ao relatar como era realizada a escolha do livro literário,
perguntamos a docente os motivos que a levaram a adotar este critério:
Professora 2 Educação Infantil:
Acho que facilita para o aluno, como ele ainda não lê, eles se interessam muito por essa
parte visual do livro, pela parte tátil também. Aqueles livros que produzem sensações, que
estimulem os outros sentidos, não só a audição. Livros que eles possam tocar e sentir outra
textura, aqueles livrinhos musicais, aqueles livros grandes eles gostam muito. Quando você
chega com aquele livro enorme: - Que livrão! Eu acho que isso estimula muito eles.
Conclui-se que os livros que despertam um maior interesse a faixa etária assistida na
Educação Infantil são os que contemplam a necessidade de compreender o mundo. “Logo,
terão muito mais sentido para as crianças desta idade livros de borracha (infláveis e coloridos)
Nas fronteiras da linguagem ǀ 312
ou livros de pano (macios e bem costurados) que possam, por exemplo, ser manuseados pela
própria criança [...]” (KAERCHER, 2001, p.84).
3) Conhecimento do acervo a que os estudantes têm acesso (na escola ou fora dela)
O terceiro critério apontado por Brandão e Rosa (2010) é o conhecimento do acervo a
que os estudantes têm acesso (na escola ou fora dela). As autoras remetem-se aos Programas
Nacionais como PNBE – Programa Nacional Biblioteca na Escola, que tem distribuído uma
grande diversidade de livros de literatura para as escolas. Estes precisam ser conhecidos para
serem melhores utilizados no contexto escolar. É preciso que, nas formações continuadas, os
professores tenham acesso direto ao que chega à escola como material de leitura, podendo
avaliar e estabelecer os seus critérios em relação ao acervo disponível.
Com relação ao município de Garanhuns, em nossa pesquisa, evidenciamos a forte
referência ao PNAIC – Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, principalmente, por
parte das professoras do 1 ano. Várias docentes mencionaram o acervo disponibilizado para a
escola pelo programa e afirmaram conhecer os livros que compõe tal acervo. No entanto, ao
relatar o título de alguns livros utilizados nos momentos de contação de histórias, foi possível
identificar que o acervo, ao qual as docentes estavam se referindo advém do Programa obras
complementares na escola.
Estas Obras Complementares visam auxiliar a prática docente, principalmente, no que
diz respeito ao processo de alfabetização na perspectiva do letramento, e consequentemente a
ampliação cultural das crianças.
A seguir um dos depoimentos que se remete ao conhecimento desse acervo para a
tomada de decisão sobre qual livro trabalhar:
Professora 8 (1º ano)
O acervo do PNAIC dá essa liberdade da gente emprestar, mas são trinta livros, na verdade
eu tô com 48, vou retificar, a gente ganhou uma caixa com trinta e depois a prefeitura
disponibilizou outro acervo com mais 18 ai eu tô com 48, só que assim são textos longos, tem
alguns que são textos longos como eu tô com o primeiro ano eu creio que o ideal, seria
melhor textos mais curtos, que ai estimularia ainda mais a vontade deles, deixaria eles ainda
mais seguros uma quantidade menor de texto a ser lido.
Segundo Brandão (2006), o conhecimento do acervo disponível a escola, por parte do
professor, pode se caracterizar como uma importante estratégia para que os discentes tenha
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 313
acesso a um variado repertório de gêneros literários. Identificamos claramente o terceiro
critério no trecho abaixo, no depoimento da Professora 3, da Educação Infantil:
Agora, eu acho assim, que o acervo para a educação infantil, o que vem para as escolas,
deveria ser melhor, às vezes vem livros assim que eu acho de auto- entendimento, assim é
complicado para eles entenderem. Aí, esses que vem assim, eu sempre vou deixando para lá,
eu faço uma seleção não é?! Mas os que vêm mesmo assim para a escola, eu acho que
deveria para Educação Infantil ser livros de outra qualidade. Porque vem assim, tanto vem
para o Fundamental como vem para a Educação Infantil, tudo igual, né?! E deveria ser
selecionado, mas o professor faz esse trabalho. Acredito que todo professor ele seleciona o
que é melhor para a sua turma.
Como comenta a professora, o professor tem a responsabilidade de selecionar este
material, assim como avaliá-lo e escolhê-los antes mesmo de chegar na escola. Através do
depoimento evidenciamos o conhecimento da professora em relação ao acervo escolar, mas
também uma insatisfação com relação ao mesmo.
4) Preocupação social no que tange ao desenvolvimento de valores
O quarto critério – Preocupação social no que tange ao desenvolvimento de valores – foi
estabelecido a partir do depoimento de três das professoras pesquisadas, como podemos
evidenciar no quadro 2, sendo duas delas da Educação Infantil e uma do
1º ano do Ensino Fundamental. Este critério remete a função social da escola. Professora 4,
Educação Infantil:
Com relação à literatura que aborda temas de valores sociais, como relatado
anteriormente, Teberosky e Colomer (2003) alertam que os precisamos ter cuidado quanto ao
excesso destas leituras na sala de aula. Elas classificam esses livros como “livros
prescritivos”.
Porque na minha sala eles estão muito desobedientes e a gente sabe que contos de
fadas, desde que sugiram, foram inventados, criados pra tipo moldar as pessoas e
não era para crianças, era para adultos né. Ai como eles estão desobedientes, a pes-
soa fala eles não tão obedecendo na escola nem tão obedecendo em casa porque as
mães vem relatar. Ai eu contei a história de Chapeuzinho justamente para enfatizar
na hora a obediência, que precisa obedecer. Uma questão de moldar através da
história. (risos)
Nas fronteiras da linguagem ǀ 314
Considerando esta questão, Brandão e Rosa (2010) comentam que se corre o risco de ler
textos pouco atrativos para as crianças, mal escritos e que não despertem emoções, a
sensibilidade infantil, podendo ainda excluir obras clássicas que abordam sentimentos
humanos fundamentais.
5) Diretrizes estabelecidas pela secretaria de educação municipal
O quinto critério – Diretrizes estabelecidas pela Secretaria de Educação Municipal –
também foi construído a partir das entrevistas realizadas. A Secretaria Municipal realizou a
implantação de um projeto, que abrange da Educação Infantil ao 5º ano do Ensino
Fundamental. Este projeto intitulado “Despertar” foi estabelecido em todas as escolas
públicas de responsabilidade municipal.
O projeto “Despertar” determina uma rotina a ser seguida. Todo o projeto circunda
sobre temas geradores quinzenais, os quais devem ser vivenciados em sala de aula. Assim,
cabia a todas as entrevistadas a aplicação deste projeto durante todo o ano letivo.
A partir das entrevistas foi possível levantar alguns temas geradores trabalhados no
projeto. Vejamos o relato da Professora 5, da Educação Infantil:
[...]Tem dois temas, tipo... É... Teve a história de Garanhuns, tem é sobre bulling, essas
coisas . Então a gente procura histórias que falem alguma coisa alguma coisa a respeito
daquele tema que a gente tá trabalhando na quinzena, é por quinzena cada tema. A gente
trabalha fazendo isso.
Farias e Dias (2007) expõem que “As secretarias não têm o papel de elaborar
propostas pedagógicas, mas a responsabilidade de contribuir, subsidiando tanto as IEI1
públicas quanto as privadas de seu sistema nessa elaboração.” (p. 27). Assim, cabe às
secretarias o acompanhamento, a supervisão, bem como a avaliação do processo de
elaboração e implementação das propostas, de maneira a identificar necessidades e
desenvolvendo estratégias que possibilitem o avanço e a melhoria destas propostas.
No depoimento da Professora 10, do 1º ano, também identificamos a preocupação em
seguir as diretrizes do referido projeto:
Bem, o tema gerador tem que ser vivido, ele tem que ser aprofundado na sala, então o ideal é
que a gente não fique só fixado no cartaz que a gente leva. [...] E também relacionado com o
1 IEI – Instituições de Educação Infantil.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 315
tema gerador, como a gente não vai encontrar 15 dias livros sempre que tenha haver com
aquele tema ai eu vou intercalando.
Como pode ser visto, as professoras de certa forma ficam presas ao tema gerador e
como precisam seguir o projeto acabam, por vezes, utilizando como único critério de escolha
dos livros a serem oferecidos aos alunos, o fato destes tratarem algo sobre o tema da
quinzena.
Acreditamos que esse critério de escolha é limitador e pode não favorecer a ampliação
do letramento literário dos alunos. Os professores podem, ao se prenderem no tema,
esquecerem de observar outras questões importantes, tais como a qualidade dos textos e os
interesses dos alunos.
Por fim, nos parece que a leitura no 1º ano do Ensino Fundamental está muito mais
associada à exploração dos conteúdos estabelecidos para tal ano de escolaridade, ou seja, a
proposição de atividade de alfabetização, do que necessariamente a uma preocupação com a
formação de leitores ativos.
Com relação às professoras da Educação Infantil, identificamos uma maior
preocupação em tornar o momento de leitura o mais lúdico possível, fato que se dá porque a
prática da Educação Infantil está muito mais associada ao lúdico, entendendo-se que a
aprendizagem pode se dá através da brincadeira.
Referências
BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2002.
BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi; ROSA, Ester Calland de Sousa. A leitura de textos
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MACIEL, Francisca; COSSON; Rildo. (Orgs). Literatura: Ensino Fundamental. Coleção
Explorando o Ensino; v. 20. – Brasília : Ministério da Educação, Secretaria de Educação
Básica, 2010.
BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi; ROSA, Ester Calland de Sousa. Entrando na roda: as
histórias na Educação Infantil. In: BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi; ROSA, Ester Calland
de Sousa. (Orgs). Ler e escrever na Educação Infantil: discutindo práticas pedagógicas. Belo
Horizonte: Autêntica, 2010. (Língua Portuguesa na Escola; 2).
BRANDÃO. Ana Carolina Perrusi O ensino da compreensão e a formação do leitor:
explorando as estratégias de leitura. In: BARBOSA, Maria Lúcia Ferreira de Figueiredo;
SOUZA, Ivane Pedrosa de (Orgs). Práticas de leitura no Ensino Fundamental. Belo
Horizonte: Autêntica, 2006.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 316
FARIA, Vitória Líbia Barreto de; DIAS, Fátima Regina Teixeira Salles. Currículo na
Educação Infantil: diálogo com os demais elementos da Proposta Pedagógica. – São Paulo:
Scipione, 2007.
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LAKATOS, Eva Maria, MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de metodologia
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RICHARDSON, Roberto Jarry, et al. Pesquisa social: métodos e técnicas, 3ª ed.São Paulo:
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TEBEROSKY, Ana; COLOMER, Teresa. Aprender a ler e a escrever – Uma proposta
construtivista. Trad.: MACHADO, Ana Maria Neto. – Porto Alegre: Artmed, 2003.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 317
PEDRAS SOBRE RIOS: O LUGAR DO CORPO EM
RAKUSHISHA DE ADRIANA LISBOA [Voltar para Sumário]
Anne Louise Dias (PósLit/TEL/UnB)
Pensar o contemporâneo na literatura brasileira se presentifica como a tentativa de
lidar com uma urgência do escritor brasileiro em se relacionar com a realidade histórica,
muito embora ele reconheça a dificuldade de sua tarefa. Para Schøllhammer (2011), a
insistência do presente temporal, a “agoridade” com a qual se relaciona a literatura brasileira
fragmenta a produção contemporânea em diversos rumos, frutos de diferentes formas de
questionamentos da consciência história. Costumeiramente polarizadas, duas vertentes
surgiriam, uma primeira ligada a brutalidade do realismo marginal, e uma segunda que
“aposta na procura da epifania” (SCHØLLHAMMER, 2011, p.15), no mergulho do cotidiano
subjetivo. A oposição entre duas estéticas literárias é, entretanto, reducionista, e a literatura
que hoje trata de problemas sociais não exclui a dimensão pessoal e íntima, ao mesmo tempo
que a experiência subjetiva não ignora a turbulência do contexto social e global.
Por entre o embate estético, parece surgir na literatura brasileira um redesenho de
fronteiras e a mobilidade sobremoderna, a qual se referira Marc Augé, adentra suas
narrativas. Zilá Bernd (2007), aliás, anteriormente apontou e discutiu como a mobilidade
cultural caracteriza o imaginário das Américas, em particular a América Latina, uma
mobilidade tal que abre espaço para a aproximação de culturas através de processos
transculturais. O florescimento de inúmeros romances memorialistas e depoimentos
consistem, no Brasil, uma larga produção de biografias e relatos de estrangeiros que pleiteiam
suas vivências de deslocamento geográfico e cultural. O histórico brasileiro de imigração
permitiria que nossa literatura se preocupe com as diversas facetas do homem em contraste
com o outro, e o que se poderia chamar de literatura de imigração emparelha-se também com
a aproximação cultural com o Oriente, muito embora sejam esparsos os exemplos de versos
ou prosas que representem etnias orientais. Segundo o levantamento de Chiarelli1, poderíamos
1 Apud TAVARES, Zulmira Ribeiro. O puro amarelo do verão: “O japonês dos olhos redondos”.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 318
citar Oswald de Andrade e Mário de Andrade, os poetas Haroldo de Campos e Paulo
Leminski, e, na prosa contemporânea, Bernardo Carvalho e, finalmente, Adriana Lisboa.
Nascida no Rio de Janeiro, Adriana Lisboa escreve Rakushisha em 2007, obra fruto de
uma bolsa pesquisa da Fundação Japão. O romance entrecortado por fragmentos narrados
tanto em primeira quanto terceira pessoa mescla diferentes tempos e espaços desvelando
paulatinamente as histórias de Celina e Haruki. O encontro entre os dois protagonistas, não
por acaso em um metrô, faz surgir em meio ao contraste entre Brasil e Japão as memórias
túrgidas de um passado que se recusa a ser esquecido.
É a viagem ao Japão que os une e os põe em contato não apenas com a existência do
desconhecido, representado pela língua e os costumes japoneses, mas também com seus lados
mais íntimos. Muito pode ser dito sobre Haruki no que se refere à responsabilidade que sua
aparência japonesa atribui. Sem saber falar japonês e completamente afastado da cultura
nipônica, Haruki assume o papel de japonês no Brasil e de brasileiro quando no Japão.
Duplamente desterritorializado, ele se sente um corpo estranho (LISBOA, 2014, p. 20) dentro
da Embaixada do Japão. Para nós, no entanto, o choque cultural de Haruki com suas raízes
japonesas não se dará somente pelo seu entre-lugar identitário, mas fusionar-se-á às
escavações mnemônicas presentes em Rakushisha.
O romance de Adriana Lisboa faz do deslocamento Brasil-Japão o assunto e o mote de
seu enredo. É a quebra do cotidiano, o descolamento do chão que propulsionam os
acontecimentos de Rakushisha. É de nosso interesse, portanto, buscar quais implicações a
narrativa de viagem aporta a fim de acompanharmos a construção do sentido da experiência
subjetiva que, em Rakushisha, parte de um entrelaçamento imperfeito entre corpo, alma e
memória, e de um continuum entre passado, presente e futuro.
Por entre os fragmentos que documentam e desvelam as histórias de Celina e Haruki,
estão os escritos de Bashō, importante poeta japonês do período Edo no Japão. Como afirma
Cury (2012), esses fragmentos “mesclam-se na mesma busca, no mesmo caminho de
reconhecimento identitário do narrador, a produtividade das sendas propostas por Bashō”. O
livro de haicais serve ainda como um guia da narrativa: Haruki decide ir ao país de seus
ancestrais porque foi convidado a criar os desenhos de uma edição traduzida que sairia no
Brasil; Celina conhece Haruki porque ela se interessa pela quase comovente figura do japonês
que lia poesias japonesas – embora ele não soubesse ler em japonês - sozinho dentro do metrô
do Rio de Janeiro. Ademais, o livro sela o reencontro de Haruki com sua antiga amante
Yukiko – a então tradutora dos poemas – e se torna a bússola de Celina durante sua estadia
em Kyoto, que decide refazer o itinerário de Bashō.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 319
A introdução da poesia japonesa na narrativa de Rakushisha revela o quão importante
é o vasculhamento do passado. Os trechos do diário de Bashō, também relatos de uma
viagem, são extratos de sentimentos e memórias do poeta. O íntimo de seus relatos transborda
por sobre as próprias recordações de Celina e Haruki constituindo um romance consciente de
si, no qual o deambular de seus personagens representa o próprio desenvolver da narrativa.
Por entre as ruas labirínticas de Kyoto, para Celina, e Tóquio, para Haruki, vão se
materializando experiências passadas; o caminhar dos personagens se transforma aqui como
um longo processo de apropriação do sistema topográfico, nos termos de Michel Certeau, que
busca não apenas o reconhecimento físico das ruas, mas a criação de um espaço de
enunciação. A definição desse espaço é essencial para o desenrolar do romance e serve como
resposta aos sentimentos oblíquos e turvos de ambos os personagens, ambos perdedores e
perdidos – Haruki, porque perdeu sua amante; Celina, porque perdeu sua filha.
O ato da viagem repentina ao Japão, curiosa decisão que leva Haruki a se perguntar
“se ela [Celina] fugia, se corria, se acorria, se acudia, se esquecia, se lembrava, se fechava
os olhos, se os abria” (LISBOA, 2014, p.77), é, em verdade, o primeiro indício de um exílio
pessoal voluntário que, embora tenha tido supostamente o objetivo de fugir do passado, surge
como oportunidade de redefinição. As redes da cidade desconhecida, excludente ainda com
seus cinco sistemas de escrita distintos, vão pouco a pouco construindo as histórias múltiplas
dos protagonistas e desvelando seus fragmentos de trajetórias. Na lojinha de papel, tudo
começa, “comprei o caderno. O caderno se tornou um diário” (LISBOA, 2014, p.35). Celina
escolhe um pequeno manual de turistas para guiar seus passeios, e é com ele que ela percorre
ruas, lojas, pontos turísticos, reconhecendo sua própria história em rostos e muros
desconhecidos.
Como seria possível que se sentisse em casa ali, se não entendia nem mesmo as
inscrições nas placas ao seu redor? Se não tirava sentido das palavras ditas ao seu
redor?
Mas era uma casa. Era uma casa segura. Não havia o que temer em Kyoto, na
solidão que tinha em Kyoto, aquela afável solidão acompanhada. (LISBOA, 2014,
p.57)
Ultrapassado o abismo entre a clandestinidade primeira e a criação e consequente aceitação do
Japão como um espaço privado e amparador, uma casa segura, as imagens da cidade vão
trazendo à tona o que Celina não esperava lembrar.
O caminhar, afirma ainda Certeau, é ter falta de lugar, é o processo indefinido de estar
ausente e à procura de um próprio. Todo o romance de Adriana Lisboa parece fixar-se em
uma intuição singular de movimento. A importância à qual Celina atribui aos pés,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 320
mencionados quase obsessivamente ao longo da narrativa, sugere ainda uma concepção do
andar que ultrapassa o sistema físico-motor e refere-se ao um movimento cinético no qual a
carne – no caso específico do romance, os pés - é capaz de tornar o corpo presente no mundo:
Um dia Celina se deu conta de que o que mais lhe importava em seu corpo eram os
pés. Onde seus pés estivessem no momento estaria sua alma, ou como quer que se
chamasse, ela pensava, aquela parte do corpo que sempre ameaçava exceder o
próprio corpo. (LISBOA, 2014, p.29)
Quase como um esquema perfeito do que Merleau-Ponty afirmou ao estudar o espaço do
corpo, percebemos em Rakushisha que o corpo se caracteriza como uma condição de
possibilidade de percepção do estar no mundo, que se entrelaça à alma, ao intangível, e que se
complica e implica por entre vísceras:
Supõe-se que os músculos se encontrem todos no lugar, e os ossos por baixo deles, e
as sinapses transmitindo a intenção – a intenção não, a determinação, a ordem do
cérebro. Esse déspota. [...] Posso ir bem devagar, o meu devagar, porque estou
sozinha. Posso escolher o ritmo da minha dificuldade de caminhar, o ritmo do peso
das minhas pernas. (LISBOA, 2014, p.13)
A percepção do corpo e de seus componentes vai lentamente atrelando o lado material dos
músculos e dos ossos ao ato intáctil do viver – relação intermediada pelo cérebro, que, ainda
segundo Merleau-Ponty, constrói e encena o espaço do mundo. Ao centrar seu romance na
imagem dos pés, tanto em sua acepção literal quanto metáfora de viagens e do deslocamento
por entre as ruas, Adriana Lisboa poria em jogo uma personagem que, através do corpo,
confronta o mundo, seu passado, e também se faz parte dele. É por isso, talvez, que Celina
não compreenda como as japonesas costumavam equilibrar-se com seus tamancos geta e
conseguiam “caminhar daquele modo, com dezessete centímetros de distância entre sua pele
e o chão” (LISBOA, 2014, p.59). O corpo, a carne, inúmeras vezes colocados em posição
dicotômica à pureza da alma, deixa de ser visto como maquinaria e passar a ser analisado em
todas suas instâncias. Para Lisboa, existe uma espécie de justaposição de todos os campos do
corpo, e os pés sobre pés figuram uma metáfora adequada para o romance; uma metáfora que
propõe estabelecer e reunir no corpo feminino (com Celina, e também com Yukiko, a amante
de Haruki) o centro de toda a experiência do eu. A partir de uma percepção tríplice do
esquema corporal o corpo adquire três modos de representação, tal qual teorizara Bergson, a
carne, a imagem do corpo e o cérebro; os três de funcionamento diverso, mas
interdependentes.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 321
Dentro de uma narrativa de viagem é provável que pareça contraditória a necessidade
de colar-se ao solo, de manter-se ligada a uma estrutura fixa e imutável. Entretanto, a obra de
Adriana Lisboa é construída sobre um alicerce de pequenas e importantes dicotomias que,
longe de serem paradoxais, são complementares entre si. Se Celina deseja a união entre corpo
e chão, ela também não consegue superar a cisão imperfeita entre corpo e alma, instâncias
que, em Rakushisha, sobrepõe uma a outra. A interferência do que Celina considera alma é
também um peso, mas
Não era um peso de ossos, músculos, vísceras, gordura. Era um peso de peso. De
essência. A balança podia dizer 49 quilos: a balança não entendia nada de peso. Ali
dentro do estômago estavam pelo menos tantos outros, multiplicados por dez, por
cem. (LISBOA, 2014, p. 117)
Celina exibe um tipo de sensibilidade moderna, na qual o passado funciona como um fardo
para o presente e para o futuro. Mais do que isso, o peso do corpo permitia a reminiscência
contínua, pois se faz absolutamente, fisicamente presente, ao mesmo tempo em que
impossibilita a imagem do futuro. “O futuro não existia mais. O passado sim, embora fosse
esfumaçado e móvel. Mas o futuro não” (LIBSOA, 2014, p.29). Ironicamente, o passado é
movediço, o futuro imutável.
Longe de ser relicário, o passado é, em Rakushisha, um interventor. Ele se habilita a
transformar a viagem de Celina e Haruki, e moldado em memória, aparece em momentos
oportunos que engatilham uma ação de mão dupla: a memória é evocada pelo espaço da
narrativa, mas torna-se, em si, também lugar de enunciação e é capaz de mudar a forma pela
qual Celina e Haruki enxergam seus arredores. As bicicletas japonesas fazem Celina lembrar-
se simultaneamente de seu ex-marido e sua filha; Haruki, por outro lado, vê em Kyoto as
implicações da morte de seu pai e do fim de seu romance extraconjugal. É somente a partir
dessas considerações que os protagonistas do romance de Adriana Lisboa são capazes de
caminhar em direção a uma certa absolvição do passado.
Notemos, portanto, que corpo e cidade – por que não o corpo da cidade? –
possibilitam, em Rakushisha, o espaço do eu. Por um lado, o Japão oferece para os
personagens da trama a possibilidade de um caminho em branco, um canvas vazio que vai se
preenchendo concomitantemente das manchas do passado e dos temores do futuro. É por isso
que no primeiro dia de estadia de Haruki,
Ele dormia, na primeira tarde nesta cidade. Naquele momento não era de ninguém,
não era sequer de si mesmo, ele era antes uma reconstrução. Um romance. Uma
Nas fronteiras da linguagem ǀ 322
ficção por detrás dos olhos fechados. Havia uma dor guardada em algum lugar?
(LISBOA, 2014, p.69)
Erige-se ali a oportunidade da reinvenção, que se deseja atrelar ao próprio fazer narrativo.
O corpo dos personagens, por outro lado, não é exposto como uma tábua rasa, mas
está pleno. Encarnação de experiências passadas, o corpo carrega o que a alma sofre. E é por
isso que o toque, talvez tão mais do que a cidade, revira e faz ressurgir dentro da narrativa o
que nunca havia sido esquecido pela memória individual dos protagonistas. Embora Adriana
Lisboa tenha permitido pequenos indícios ao longo da trama sobre o que realmente teria
acontecido com a filha de Celina, o início da revelação última surge como pancada, como dor.
Ao preparar café, Celina esquece-se de checar a temperatura da chaleira e crava sua mão no
ferro quente. O intermédio é tão importante que existe uma demarcação 24 de junho, após a
queimadura (LISBOA, 2014, p.128) no diário de Celina. Demarcação justa, pois
Esse é o meu grande engodo. Minha dor é minha: marca na pele, feito a vermelhidão
da queimadura. Existe como uma visita na sala de estar. A dor, senhorinha sentada
no canto do sofá. (LISBOA, 2014, p.128)
É a marca vermelha na pele, o ardor quente da dor que faz com que Celina comece a
explicitamente contar como se deu o acidente de carro que matou sua filha, acidente causado
pelo próprio ex-marido. A memória é aqui mediatizada pelo corpo, e do corpo far-se-á surgir
as respostas.
O mesmo ocorre, aliás, durante a contemplação do corpo de Yukiko, a amante de
Haruki. Enquanto Celina imagina como deve ser a tradutora japonesa dos poemas, é a partir
de imagens corpóreas aparentemente insignificantes pelas quais ela vai re-montando a
presença de Yukiko. Aqui o corpo imaginado cria uma ponte, enquanto ele é marcado a ferro
pelas experiências passadas, essas marcas se tornam signos e supõem a existência atual de
cada um dos personagens. Não é, portanto, surpreendente perceber que Celina recria Yukiko
também através de uma imagem da dor, de mordidas de um cão que, talvez como Celina e
Haruki, só sabia viver mordendo.
Haruki, ele próprio, também se questiona sobre os limites do corpo ao implantar as
coisas do espírito dentro de cada uma de suas células:
Era possível fazer essa divisão entre as coisas do corpo e as do espírito, ou ambas
estavam (eroticamente) imbricadas, como a linha melódica de uma fuga? Mas o
espírito, Haruki pensava, morava nas células nervosas, e o corpo era substância
volátil, como álcool – apenas demorava um pouco mais para se volatilizar.
(LISBOA, 2014, p.78-79)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 323
A volatilidade do corpo poderia aqui imbuir um símbolo de morte, perfeitamente aceitável
dentro da narrativa, porém parece trazer consigo uma outra significância, tão importante
quanto. Não são raras as vezes em que Haruki não enxerga o corpo físico de Celina, mas a vê
como um holograma a ser recuperado (LISBOA, 2014, p.38), um fantasma.
A mulher já tinha nome. Celina. E, coerentemente com esse nome, parecia mesmo
alguma coisa volátil a Haruki. Talvez por dentro ela não tivesse ossos nem músculos
nem vísceras, mas ar. Um pedaço de céu recoberto pela fina epiderme humana. Um
pedaço de céu quase humano. Por fora, ela era o sorriso mais triste que ele tinha
visto nos últimos tempos. (LISBOA, 2014, p.25, grifo nosso)
A recorrência do adjetivo volátil associado à percepção do corpo de Celina não pode
ser ignorada, principalmente quando à luz das reflexões de Haruki, que transforma o corpo
como arcabouço da alma. Ousaríamos ir além e afirmar ainda que Haruki utiliza alma como
termo interdependente e semanticamente sinônimo à memória. Imbricada por entre células, é
a memória que pesa, que consome, que fragiliza.
A assinalação do erótico, também recorrente no romance, não é, ainda, sem propósito.
Enquanto carne e espírito se cruzam, a sexualidade é posta como o intermédio do eu – mas
um eu que se direciona ao outro e o contato entre corpos é também fonte da rememoração:
Sexo era outra coisa. Celina podia correr todos os riscos. Podia fechar os olhos.
Podia titubear e não saber onde estava, se no chão, se nas nuvens. Podia sentir, como
quem fura a onda gelada do mar, as mãos de Marco no seu corpo, pela primeira vez.
(LISBOA, 2014, p.45)
As memórias ligadas à sexualidade de Celina possuem importante papel ao longo da
narrativa. Elas existem na hesitação de Celina em tocar Haruki – e vice-versa -, na constante
recusa do ato por medo de trazer à tona a lembrança das mãos em si. No fim, o que Celina
procura escapar é o que a própria Adriana Lisboa nomeia memória do tato (LISBOA, 2014,
p.93). Uma memória que surge do tato, tal qual acontecera com a chaleira quente. Essa
memória encarnada permite, então, que Celina e Haruki reajam ao presente baseados em suas
ações passadas. É interessante notar que, em um certo momento da narrativa Celina tinha
dúvidas de que ainda soubesse andar de bicicleta. Aquele mito de se tratar de algo que nunca
se esquece não passava disso: mito. Quase tudo era passível de ser esquecido. (LISBOA,
2014, p.172); ela teme ter esquecido o pedalar, mas, mais a frente, vemos que ela anda
naturalmente de bicicleta, sem sequer notar. No corpo reside informações passadas e, posto
como centro de toda ação, ele é capaz de lembrar e modificar o presente. Adriana Lisboa
Nas fronteiras da linguagem ǀ 324
representa a matéria enquanto coabitação de forças múltiplas, lugar e filosofia materializada.
O corpo sabe ser feliz por conta própria. O corpo prescinde dessas bobagens da alma.
(LISBOA, 2014, p.139)
Essa multiplicidade se reuniria justamente no intuito de uma reconstrução da
existência em frangalhos. A ficção a qual se submete Celina e Haruki é um exercício de
retomada do passado, é um olhar que percorre estradas antigas e que ousa tocar na dor
esquecida. “Você ia ficar feliz, velho. Cutucar o passado com a ponta do dedo do pé. Para
constatar sua imobilidade?” (LISBOA, 2014, p.76), pergunta Haruki a seu pai já falecido.
Mas o cutucar do passado não é, em Rakushisha, mera contemplação. Parece-nos que, ao falar
da origem de seu sobrenome, Haruki revela a ideia central do romance de Adriana Lisboa.
Herança deixada por Ishikawa pai: a ideia frágil de um rio corrente sobre as pedras
silenciosas, passando, apenas, em meio a um mundo de sonhos.
Haruki sabia que um rio falava de dúvidas. Nunca se atinha a si mesmo. Nunca se
cristalizava na pedra que o acolhia. Ao mesmo tempo, a pedra, que parecia eterna, ia
se gastando e se deslocando da maneira mais contundente de todas – sem alarde,
sem aviso. (LISBOA, 2014, p.49)
A metáfora criada a partir de pedras e rios pela autora delineia e representa com
sutileza o cotidiano de seus personagens: imersos em dúvidas sobre o futuro, eles se veem
presos às pequenas pedras, aparentemente imutáveis, do passado e vão se descobrindo
correnteza. De inspiração quase heraclitiana, o trecho parece desdobrar o paralelo essencial
que Adriana Lisboa desenha com ele; que passado, presente e futuro se unem em um rio
corrente cujas pedras não mais tão silenciosas vão sofrendo a influência dessa singular
trajetória. O passado desloca sob a pressão das vivências futuras. Longe de ser, entretanto,
uma narrativa de superação, Rakushisha se impõe como uma tentativa de conciliação dos
personagens com suas histórias.
A sobreposição entre passado e presente, tão proeminente em Rakushisha, é portanto
uma mescla entre sombras passadas e desejos futuros, ambos inalcançáveis, mas circunscritos
dentro de uma irrefreável linha de progressão. O corpo, basilar nesse processo, seria o produto
de suas próprias fantasias2, objeto de recriação e ser recriador, e, uma vez unido ao processo
de rememoração, ele não seria um simples reservatório de memórias, mas uma totalidade das
disposições das personagens em relação tanto ao passado quanto ao futuro. A infusão entre a
matéria e as lembranças faz o corpo passar por um processo no qual ele suporta uma
2 FOUCAULT, M. O corpo utópico. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/38572-o-corpo-utopico-
texto-inedito-de-michel-foucault
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 325
memorialização que se mantém constantemente viva e transforma a existência em um
cenotáfio.
Tal qual a viagem, a narrativa de Rakushisha se propõe não como uma revelação
última – a menção ao acidente da filha de Celina sequer é inesperada para o leitor atento –
mas como um processo de caminhada. Como Celina e Haruki, o leitor descobre por entre as
linhas da cidade e as mágoas do passado o que já havia sido anunciado logo ao início do
romance:
Agora não dá tempo de te contar como aconteceu. E ainda não sei se andar equivale
a lembrar, se equivale a esquecer, e qual das duas coisas é o meu remédio, se
nenhuma delas, se nenhuma opção existe e se andar é o mal e o remédio, o veneno
que tece a morte e a droga que traz a cura. [...] Seja como for. É só colocar um pé
depois do outro. (LISBOA, 2014, pág.12)
Referências
ANDRIEU, Bernard. Le corps dispersé: une histoire du corps au Xxè siècle. Paris,
L'Harmattan, 1993.
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CERTEAU, Michel; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano: morar,
cozinhar. Vol.2. 7ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.
CURY, Maria Zilda Ferreira. Cartografias literárias: Tsubame, de Aki Shimazaki e
Rakushisha, de Adriana Lisboa. Interfaces Brasil/Canadá; v. 12, n. 1 (2012); p. 17-34
FOUCAULT, M. O corpo utópico. Disponível em:
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/38572-o-corpo-utopico-texto-inedito-de-michel-foucault
KOCH, S.; FUCHS, T.; SUMMA, M. Body Memory, Metaphor and Movement. Philadelphia:
John Benjamins Publishing, 2012.
OLIVIERI-GODET, Rita. Estranhos estrangeiros: poética da alteridade na narrativa
contemporânea brasileira. In: Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n.29, Brasília,
janeiro/junho, 2007, p.233-252.
LISBOA, Adriana. Rakushisha. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.
SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro:
Civilização brasileira, 2011.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 326
TAVARES, Zulmira Ribeiro. O puro amarelo do verão: “O japonês dos olhos redondos”. In:
DALCASTAGNÈ, Regina; DA MATA, Anderson Luís Nunes. (Orgs.). Fora do retrato:
estudos de literatura brasileira contemporânea. Vinhedo: Horizonte. 2012.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 327
A VOZ QUE AGORA FAL(H)A, OU A MEMÓRIA DE
PORTUGAL NO CORPO DO LIVRO E DO VELHO: UM
ESTUDO SOBRE A MÁQUINA DE FAZER ESPANHÓIS, DE
VALTER HUGO MÃE [Voltar para Sumário]
Annie Tarsis Morais Figueiredo (UEPB/PPGLI)
1. Considerações iniciais
O romance A máquina de fazer espanhóis (2011) do escritor afro-lusitano Valter Hugo
Mãe tem como narrador-personagem o barbeiro Sr. Silva de oitenta e quatro anos. Sr. Silva ao
perder sua esposa é colocado pela filha no asilo Lar da Feliz Idade, portanto além de sofrer
muito com a perda da esposa a qual dividiu quase toda a sua vida o idoso se sente abandonado
pelos filhos, é neste momento de perda e exílio da vida social que Sr. Silva passará a olhar e
analisar seu passado, bem como atentar para sua fraqueza no tempo do salazarismo.
Mister frisar que a memória individual do Sr. Silva ganhará uma dimensão coletiva,
uma vez que o acontecimento histórico traumático da ditadura foi vivido por sua geração que
agora se encontra no asilo, esses velhos são os protagonistas da História (esta mesma com H
maiúsculo), agora cabe pelo exercício de narrar-se quebrar o silêncio que tanto esteve
presente no Estado Novo.
Um ressentimento ronda a velhice do idoso, o de não ter lutado contra o longo regime
ditatorial instalado em Portugal em que as liberdades eram nenhuma. É na sua estadia do asilo
que descobre pela primeira vez o que é amizade, em meio aos seus amigos surge a ideia de
escrever um livro, sonho este que vinha desde décadas anteriores em que queria tornar-se
escritor.
Deste modo, o livro que temos em mãos é o livro de memórias do Sr. Silva, escrito em
primeira pessoa, de discurso indireto livre, sintaxe e entonações peculiares que acompanham
o ritmo do fluir da sua memória. Neste caso podemos dizer que A máquina de fazer espanhóis
(2011) se trata de uma autobiografia do Sr. Silva, em que contará em dois tempos que se
confluem, o passado ditatorial e o presente em que Portugal faz parte da União Europeia.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 328
Didaticamente o trabalho divide-se em dois pontos, o primeiro ponto analisaremos
como o corpo do idoso, a letra de seus escritos e a história se interligam com a política, a voz
e a memória. Para isso a noção de biopolítica, oralização da literatura e memória guiaram a
análise, atribuindo-se à vivência de Sr. Silva uma ampla dimensão sobre a época do Estado
Novo e contemporaneidade portuguesa.
O último e segundo ponto está centrado na oralização da literatura na obra, a
explicação deste termo e como ele aponta para novos olhares e caminhos teóricos sobre a
literatura atual, neste trabalho ela adquire o caráter de biopotência, instância que possui certa
força de vida e impulsiona a existência em meio aos poderes que se instalam sobre as
liberdades humanas.
A escrita destas análises aponta para as possibilidades de tecnologias da escrita que
neste caso está intrinsecamente ligado à memória e política, uma vida socius que visa a
relação de alteridade e construção de si, ou seja, uma correlação entre igualdade e
singularidade. Ao passo que Sr. Silva juntamente com os outros velhos vão rescrever
pontualmente, sob nova perspectiva, uma nova história crítica de Portugal, sendo
ironicamente a partir dos que não tem mais espaço e força na sociedade.
2. Corpo, letra e história ou política, voz e memória do barbeiro Sr. Silva
Falar sobre o corpo do velho, sua escrita e sua história é apontar para aspectos
biopolíticos do seu lugar, da sua voz e da sua memória, assim sendo, a dimensão da escrita do
Sr. Silva acaba por desenhar uma força ou potência que vai de encontro ao seu lugar ocupado
socialmente. Para isso, dividimos este ponto em três questões que se entrecruzam e se
dissolvem quando pensamos a escrita do barbeiro Sr. Silva, são estes: 1) corpo e política; 2) a
letra e a voz e 3) história e memória.
Começar pelo corpo afetado pelas forças do mundo é essencial, Sr. Silva que inicia
suas memórias com a reclamação sobre a fraqueza de seu corpo velho, mas que a cada falha e
ruga marcadas trazem um aprendizado pela vida e suas experiências, diz: “eu era apenas um
olhar, um modo de ver. e nessa altura tudo me escapava das mãos. eu a querer que fizesse
cuidado, mas nada me obedecia porque anda correspondia à lógica ilusória da minha cabeça”
(MÃE, 2011, p. 111) O corpo do idoso se configura como se fosse um corpo desgovernado,
sem mais o comando das ações voluntárias de antes, podemos verificar bem ao ler:
um problema com o ser-se velho é o de julgarem que ainda devemos aprender coisas
quando, na verdade, estamos a desaprende-las, e faz todo o sentido que assim seja
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 329
para que afundemos inconscientemente na iminência do desaparecimento. a
inconsciência apaga as dores, claro, e apaga as alegrias, mas já não são muitas as
alegrias e no resultado da conta é bem-visto que a cabeça dos velhos se destitua da
razão para que, tão de frente à mortem não entremos em pânico (MÃE, 2011, p. 33)
Sendo o corpo uma estrutura material e senciente que escolhe se é ou não afetado
pelos múltiplos estímulos que o atinge, o corpo acaba sendo antes de qualquer coisa o
encontro com outros corpos, tocar objetos e pessoas, relacionar-se com os outros é um ato
político na obra.
No totalitarismo, através do medo, as pessoas não podem entrar em contato efetivo
umas com as outras, embora por outro lado a sensibilidade do período traga um
aprofundamento nestas poucas relações. Escolher com quem eu converso e em quem acredito
é uma forma de estrategicamente burlar tais regimes, deste modo, Sr. Silva não teve amigo até
o momento do asilo.
A capacidade de se abrir ao novo é limitada no Estado Novo, o corpo é então de certa
impotência frente ao sofrimento, em momento último de sua vida é que o narrador idoso
aproveita para experimentar o que é a amizade e “com o tempo, começava a falar e criar afeto
pelos outros” (MÃE, 2011, p. 27), compreender o que é amar pessoas sem laços sanguíneos,
uma vez que se dedicou tanto à família, um dos ideais da tríade salazarista (junta à Deus e
pátria), como se o espírito de comunidade fosse útil até certo ponto, o de fortalecer o
nacionalismo e enfraquecer a força da união popular contra a política que imperava.
Percebemos em A máquina de fazer espanhóis (2011) que o corpo fala, cada uma de
suas rugas falam, pois marcam fatos da vida de Sr. Silva que serão rememorados pelo estado
que se encontra sua estrutura física e o tempo que a talhou.
Os pesadelos do idoso que acaba por compor-se uma matéria impalpável do indizível,
traz como elemento simbólico um abutre que ronda suas noites querendo devorá-lo, o abutre é
a materialização do seu remorso e covardia durante a vida, a de ser parte do rebanho calado
do regime e o de entregar a única possibilidade de amizade na época à PIDE (Polícia
Internacional e de Defesa do Estado) para fazer parte do número de desaparecidos
portugueses torturados e mortos.
Aos poucos o pesadelo com o abutre não vai se tornando mais assustador e
inconveniente, ao passo que o espantoso não o espanta mais, ele passa a compreender seus
sentimentos e a ave não mais o arranca pedaços, mas sim sobrevoa pacífica e
harmoniosamente seu ser. Aos poucos Sr. Silva vai encontrando lugares para colocar seu
passado e a explicação pelo instinto de sobrevivência do período são justificados pela
responsabilidade com seu filhos e esposa, embora a dor fosse grande, como pode-se ler:
Nas fronteiras da linguagem ǀ 330
éramos todos livres de pensar as coisas mais atrozes. isso não nos impedia de sermos
vistos pela sociedade como bons homens e de sairmos à rua dignos como os
melhores pais de família, um homem havia de ser medido pelos seus atos, pouco
importando se dentro de casa era feito daquela mariquice de acreditar em deus ou da
macheza cretina de se ligar aos malfeitores, estejam eles escudados numa igreja ou
num governo. éramos por igual todos cidadãos da mesma coisa. a andar para a frente
com os instintos de sobrevivência a postos como antenas. eis a emissão certa, a
propaganda que não podíamos dispensar, sobreviver, segurarmo-nos, e aos nossos, e
abrir caminho até morte dentro. essa é que era a essência possível da felicidade,
aguentar enquanto desse (MÃE, 2011, p. 118)
Ironicamente o idoso vai traçando o perfil dos homens da época, criticando a
hipocrisia em que se inseria nas relações sociais. Sabe-se que a dor do Sr. Silva é uma dor
coletiva sentida politicamente pelos portugueses, o tempo que surge como potência
reconfigura o medo em dor pelos sofrimentos vividos coletivamente, e mais, coloca essa dor
ligada à esperança.
A dor aqui está em outro plano que não o do corpo, mas sim na consciência geral das
pessoas, como na fala de Silva da Europa, outro personagem idoso do asilo diz: “eu sou
daqueles a quem a vida doeu e, mais cedo me possa estender a descansar, mais feliz me
ponho” (MÃE, 2011, p. 15), fala esta que pode ser atribuída a qualquer um indivíduo presente
no asilo.
A relação com si mesmo e a relação com os outros faz Sr. Silva reconciliar com a
solidão e a sociabilidade formas de externalizar a fala presa e contida pelo trauma, ganhando
esta singularidade de voz uma sensibilidade coletiva marcada por índices de lembranças e
esquecimentos sobre o dado momento histórico que acaba por ficcionalizar-se em meio às
vivências de Sr. Silva e dos portugueses.
A memória elabora da também pelo seu revés o esquecimento traz na vida atual do Sr.
Silva a História do povo português também na atual situação, a de dificuldade econômica, que
assentou no pós ditadura e na entrada de Portugal na União Europeia. Em dois tempos,
passado e presente, os testemunhos e falas dos idosos do asilo metaforicamente representam a
geração responsável por narrar o indizível de uma época visando a não repetição da
tragicidade anterior. Sobre o medo e o perigo do fascismo reminiscente ele pensam:
colega silva, ainda está cá dentro, é muito difícil tirarmos das ideias a educação que
nos deram de crianças. podemos ser todos inteligentes como super-homens, adultos
feitos à maneira e pensantes livremente, mas a educação que nos dão em crianças
tem amarras para a vida inteira e, discretamente, aqui e acolá os tiques fascistas hão
de vir ao de cima. (MÃE, 2011, p. 91)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 331
Contudo, percebe-se uma bifurcação no discurso, o de que alguns idosos denunciam a
ditadura, e outros já a defendem de forma saudosista em prol de uma ordem das coisas. O
perigo reside aí para Sr. Silva, no fascismo dos bons homens, que devido a educação
portuguesa todos carregam uma vontade estranha de ordenar as coisas, residindo o perigo da
falta das liberdades.
O corpo como elemento político, a letra como materialização de uma voz até o
momento silenciada, a memória como repositório histórico singular, são os três motivos
analíticos encontrados na obra de Valter Hugo Mãe, tendências contemporâneas atreladas à
metaficção historiográfica (Linda Hutcheon), que acaba por reescrever ficcionalmente a
história a luz de um homem ordinário como o barbeiro Sr. Silva, a voz dos muitos e comuns
que ecoam criticamente sobre determinado acontecimento.
Por fim, encontra-se na materialidade dos escritos do barbeiro uma vontade de
potência peculiar, a de resolver aspectos dolorosos de sua vida até o momento abafados e
escondidos, e o de contar sobre um mal coletivo em direção ao andamento adequado dos
direitos humanos e da comunidade. Então, Sr. Silva representa a voz dos portugueses que
temem o retorno do regime totalitário no país, aspecto que vem se alastrando pela Europa e de
forma nostálgica surge como esperança em meio ao caos político contemporâneo.
3. Oralização da literatura em A máquina de fazer espanhóis
Oralização da literatura ou oralização das técnicas de escrita, é uma ideia que aparece
em uma entrevista com Édouard Glissant, segundo Justino (2013), em Introdução à uma
poética da diversidade (2006) e, esta ideia é retomada por Jean Derive (2010) que defende tal
ideia no âmbito da literatura africana, que utiliza a oralidade como tática política.
Neste caso, é necessária a diferenciação entre oralidade e oralização. A primeira está
para a memória coletiva, a segunda está relacionada à hibridação e ruptura da escrita, como
diz Justino: ela tem um aspecto imaginário, cultural, semiótico em toda amplitude; e um
aspecto, diria, maquínico, tecnológico (2013, p. 16). Deste modo, a oralização que se conecta
ao passado de forma distinta, com aspecto de presentificação e criticidade e não de nostalgia
em relação ao passado.
A oralização se situa no contexto da escrita, como uma ponte entre a fala como
elemento presente da escrita, ao passo que ela é de produção simbólica, imagética. Em A
máquina de fazer espanhóis a escrita aparece como recipiente da voz que é a memória
Nas fronteiras da linguagem ǀ 332
localizada no legível e no visível, pois Sr. Silva cria uma entonação própria que nasce a partir
da dicção e sintaxe nascidas das vivências que vem desaguar finalmente no asilo.
Característica marcante na literatura atual é o aspecto de conversa que ganha a matéria
escrita, em que com determinada leveza assuntos profundos são tratados, essa tendência
caracteriza de certo modo a oralização da literatura, como podemos ler no trecho abaixo as
marcações orais na escrita ganha uma configuração distinta em que o presente é dilatado na
fala está confluindo com a avaliação sobre a história oficial fundando uma história alternativa:
como se o corpo dele fosse um poço profundo e ele estivesse longínquo a tentar
chegar cá acima. subitamente suspira. um suspiro muito fraco, muito triste, e deve
ser como se sente respirar subido dessa profundeza. parece que está agarrado por
dentro do corpo. eu levantei-me algumas vezes. acendi aqui o candeeirinho e fui vê-
lo ao pé. Eu juro que o homem quase se mexeu. a intensidade do seu olhar era de tal
modo que eu sabia que fazia um esforço para me dizer algo. e eu ainda lhe disse
umas quantas vezes que estava tudo bem, que ele devia sossegar, que estava tudo
bem. (MÃE, 2011, p. 125)
A oralização é uma estratégia utilizada pelo nosso personagem comum, o barbeiro e
idoso que potencializa sua escrita com sua memória grávida do contemporâneo, do presente,
que vive e não precisamente do passado que já não pertence mais a ninguém a não ser como
formulação discursiva, por isso a oralização não é estática, está de acordo com as mudanças e
caminhar do tempo, em outras palavras, com o devir.
Assim sendo, a oralização da literatura se delineia como novo arranjo da escrita,
aqueles que acabam aparecendo através do modo se subjetivação do personagem, em
específico do Sr. Silva agindo contra os dispositivos normativos e além disto irrompendo
elementos fantásticos e linguagem peculiar proveniente do cárcere no asilo e da velhice.
A presença da morte e ausência de liberdade faz com que o idoso conjure forças e um
dos métodos encontrados é pela escrita, esta que se assoma com o estado de ascese a que
chega o Sr. Silva, uma vez que rememorar é uma forma de atingir determinado nível de
resolução das suas questões interiores.
Com a forte memória afetiva da esposa e da ditadura em sua vida o idoso ao longo da
narrativa vai se desprendendo delas e chegando a um estágio de elucidação de seus anseios e
desejos. No momento do Estado Novo ele era gado, fazia parte de uma massa de gente que
tinha a liberdade tolhida e uma vida que se fosse ser analisada não valia ser vivida, a não ser
que com os artifícios criados pelo próprio governo, como o futebol, a Igreja, a arte, que
auxiliava a cegueira da multidão.
O avesso de tudo o que ele não pode fazer e contar é a memória, ela é a potência, a
linha de fuga o momento de reterritorialização. É quando o homem ordinário consegue
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 333
apropriar-se da linguagem criticamente e realizar uma ranhura na história. Daí a reinvenção
da noção do humano que mesmo em meio a banalidade do mal dos tempos totalitários
conseguiu traçar outro caminho em meio a cruel medida do biopoder.
A oralização da escrita está totalmente ligada ao corpo e suas pulsões, as criações
imagéticas sobre seus sentimentos acabam por originar “a dobra do corpo sobre si mesmo e
acompanhada por um desdobramento de espaços imaginários” (GUATARRI, 1992, p. 153),
em que a memória simbolicamente adquire um aspecto simbólico, a exemplo dos abutres de
seus pesadelos noturnos que representa o remorso e a consciência sobrecarregada do idoso.
Sobre o corpo e sua ligação com a escrita tem-se a noção da inelutável modalidade do
visível de que fala Didi-Huberman, em que “a visão se choca sempre com o inelutável volume
dos corpos humanos” (1994, p. 30), em meio à multidão de singularidades e explica o autor
dialogando com Joyce que o corpo é o objeto primeiro de todo conhecimento e de toda
visibilidade, o corpo é uma espécie de receptáculo orgânico em que sai e reentra sensações.
Deste modo, o corpo, o livro e a memória são três objetos constituintes da oralização
da literatura em A máquina de fazer espanhóis (2011). Operam essa tríade no que se entende
por novo e necessária maneira de escrita e subjetivação, não deixando de lado a natureza
individual e peculiar da memória e cosmovisão a ela atrelada. A respeito da ligação entre
corpo, escrita e política lê-se:
O que liga a supradeterminação do conceito de escrita ao pensamento de ligação
comunitária. O conceito de escrita é político porque é o conceito de um ato sujeito a
um desdobramento e a uma disjunção essenciais. Escrever é o ato que,
aparentemente, não pode ser realizado sem significar, ao mesmo tempo, aquilo que
realiza: uma relação na mão que traça linhas ou signos com o corpo que ela
prolonga; desse corpo com a alma que o anima e com os outros corpos com os quais
ele forma uma comunidade; dessa comunidade com a sua própria alma
(RANCIÈRE, 1995, p. 7)
Oralizar é tornar a escrita fecunda e viva em relação ao momento presente. É
encapsular momentaneamente uma vontade à revelia das difíceis situações vividas e mais,
tornar a fala um recurso extensivo da memória carregada de poder contra as injustiças e
desumanizações acometidas no período ditatorial. Portanto, o corpo, a fala e a memória de Sr.
Silva canalizam uma forma de empenho em buscar um lugar para seu ressentimento e espera.
Então, estudar essa propensão da literatura contemporânea é estender seu lugar de
atuação para outros discursos, como o da política e história, por exemplo. A memória de Sr.
Silva constitui uma interpelação ao modo de se olhar para o passado, colocando o presente
como meta a se organizar baseado em experienciações diversas.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 334
4. Considerações finais
Refletir sobre a condição de oralização da literatura é compreender os novos caminhos
e tecnologias da escrita, e esta configuração em A máquina de fazer espanhóis (2011) está
interligada ao uso crítico da memória. Por isso a necessidade em se falar do corpo do velho e
sua ligação política, falar da escrita quanto voz que agora conta o indizível e por último
discorrer sobre a memória e história, para assim abrir o caminho de discussão da oralização da
escrita e sua potência dentro da literatura contemporânea.
Usar a língua de modo potente em que constrói novas perspectivas sobre o passado e
presente de Portugal é o que constitui o cerne da oralização da literatura, artífice do narrador
Sr. Silva que tem o intuito de combater e esclarecer determinados pontos da sua vida e
paralelamente da coletividade de portugueses que viveram a mesma falta de autonomia.
Contar aos personagens secundários e futuros o que viveu no período ditatorial é o
objetivo do protagonista Sr. Silva, ir contra o fascismo iminente que já faz parte das
sociedades e transpor outra visão sobre o passado que antes não poderia ser externalizada.
Ora, momento melhor que o da liberdade que a velhice traz e o desgoverno do corpo que
juntos acabam por tecer um modo específico de se falar sobre o medo e a dor vividos.
A narrativa do barbeiro se dispõe contra qualquer tipo de saudosismo pela época árdua
e violenta em que os portugueses só trabalhavam, iam à missa e assistiam aos jogos de
futebol. Uma violência ao mesmo tempo silenciosa e falante, tal qual a letra e pulsão de
escrita do Sr. Silva, que em meio à mudez e ao dito expõe sua identidade sem medo da falta
de proteção que só a coragem da verdade e a aproximação da morte carregam.
O exemplo de Sr. Silva, este personagem tão bem construído por Mãe, deve ser
seguido, pois ao avesso do abismo e vazio que se instala em sua vida ele fabrica novos modos
de se superar a passagem difícil da sua vida. E múltiplas questões surgiram e algumas lacunas
ficaram, a necessidade do ponto final surge pela necessidade do fim deste texto, mas não das
discussões em torno dos aspectos abordados.
Referências
GUATARRI, Felix. Caosmose: um novo paradigma estético. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e
Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 1992.
HUBERMAN, Didi. A inelutável cisão do ver. Trad. Paulo Neves. In: O que vemos, o que nos
olha. São Paulo: Ed. 34, 1998.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 335
JUSTINO, Luciano Barbosa. Devir-brasil: oralização da literatura. In: Pontos de
Interrogação, v. 3, n.1, jan./jul. 2013, p. 11-21. Disponível em: <<
http://poscritica.uneb.br/revistaponti/arquivos/volume3-
n1/Luciano_Barbosa_Justino_REVISTAPONTI_VOL_3_N1.pdf >> Acesso em 14 de março
de 2015.
MÃE, Valter Hugo. A máquina de fazer espanhóis. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
RANCIÈRE, Jacques. O corpo e a letra. In: Políticas da escrita. Trad. Raquel Ramalhete. Rio
de Janeiro: Ed. 34, 1995, p. 7-102.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 336
O “ESPELHO BAÇO E ESCURECIDO”: REFLEXÕES SOBRE
A OBRA A HORA DA ESTRELA [Voltar para Sumário]
Antonia Gerlania Viana Medeiros1 (UERN)
Roniê Rodrigues da Silva2 (UERN)
O fragmento que descreve o momento em que Macabéa se olha no espelho serve como
apresentação e reconhecimento da personagem para o leitor, pois até então Rodrigo tinha dito
somente os seus argumentos para falar ou não da moça, porém, foi ao narrar a quase demissão
da jovem e a sua face em frente ao objeto que reflete, que passamos a saber como a nordestina
veio para essa cidade feita toda contra ela, o Rio de Janeiro.
Clarice Lispector consegue, por meio da sua linguagem metafórica, do narrador que
também é personagem e das imagens que delineiam em sua obra e na mente do leitor, falar de
uma “sociedade técnica”3, do contraponto de uma ideologia burguesa e da migração do
nordestino ao grande centro urbano do Brasil. A autora nos oferece um “espelho baço e
escurecido”, mas capaz de refletir uma crítica social nítida e coesa pelo o contexto que os
personagens viviam.
Instigados com a imagem que tentamos enxergar de Macabéa no espelho e diante do
primeiro rebaixamento sofrido pela personagem na narrativa, analisaremos os reflexos do
contexto social e da condição dos personagens na obra A hora da estrela, recorrendo aos
trechos do texto literário que narram esse momento, ao significado simbólico que o espelho
proporciona na cena escolhida e, principalmente, as características da escrita de Clarice
Lispector.
Segundo Nunes (1995), a obra A hora da estrela é constituída por três histórias, a
primeira conta sobre Macabéa, a segunda fala do narrador Rodrigo e a terceira é sobre a
própria narrativa. O autor identifica a elaboração da narrativa e a construção da personagem,
1 Aluna do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL), do Mestrado Acadêmico em Letras do
CAMEAM/UERN. 2 Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL), do Mestrado Acadêmico em Letras do
CAMEAM/UERN. 3 Termo empregado pela própria Clarice Lispector na obra, “Nem se dava conta que vivia numa sociedade
técnica onde ela era um parafuso dispensável” (LISPECTOR, 1995, p. 44)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 337
como um jogo de identidade. Nunes (1995, p. 169) nos lembra que o narrador da obra é
Clarice Lispector, “e Clarice Lispector é Macabéa tanto quanto Flauber foi Madame Bovary
[...] Clarice Lispector se exibe, quase sem disfarce, ao lado de Macabéa [...] A escritora se
inventa ao inventar a personagem. Está diante dela como de si mesma”. Clarice escreve a
história de Rodrigo que narra a história de Macabéa.
Essa relação autor, herói e obra é discutida por Bakhtin (1997), que diz que o autor
está inserido em um contexto e conhece e faz a criação verbal de maneira artística, o criador
da obra tem uma visão excedente em relação ao herói e toda a história. No decorrer da
narrativa percebemos o quanto o narrador criado por Clarice Lispector conhece toda a
história, tanto que na terceira página do romance Rodrigo S. M. revela “experimentarei contra
os meus hábitos uma história com começo, meio e ‘gran finale’ seguido de silêncio e de
chuva” (LISPECTOR, 1995, p. 27), ou seja, ele já adianta o final da história.
O romance é um dos gêneros onde podemos perceber com mais veemência essa
relação entre autor, personagem e obra, pois atenta-se a detalhes que se referem não somente
ao contexto que a narrativa enfatiza, mas ao do autor também. Watt (1990) trata em sua obra
Ascensão do romance sobre como esse gênero sofreu influências e aponta que o realismo foi
um dos propositores dessa mudança, ressaltando que o realismo não faz referência a uma
doutrina filosófica ou literária, mas a procedimentos narrativos que definiram o gênero
romance.
Um dos pontos enfatizados por Watt (1990), sobre as particularidades que o realismo
proporcionou ao romance, temos a importância dos nomes dos personagens na narrativa,
segundo o autor “os nomes próprios têm exatamente a mesma função na vida social: são a
expressão verbal da identidade particular de cada indivíduo. Na literatura, contudo, foi o
romance que estabeleceu essa função” (WATT, 1990, p. 19). Então, na obra clariciana
encontramos uma personagem cujo nome nos suscita várias indagações, inclusive para
entender o nome, “– Macabéa. – Maca – o que? – Bea, foi ela obrigada a completar. – Me
desculpe mas até parece doença, doença de pele” (LISPECTOR, 1995, p. 59). Além do mais,
a escolha do nome Macabéa, por Clarice Lispector, indica a intenção da autora em apresentar
a sua personagem como um indivíduo particular, característica dos romancistas ao escolherem
o nome, de acordo com Watt (1990).
A personagem principal da narrativa de Rodrigo é uma moça de dezenove anos, tola
“às vezes sorri para os outros na rua. Ninguém lhe responde ao sorriso porque nem a menos a
olham” (LISPECTOR, 1995, p. 30). O próprio Rodrigo S. M. descreve Macabéa como uma
“imagem feia”, como podemos observar nesses trechos: “[...] é o seguinte: ela (Macabéa)
Nas fronteiras da linguagem ǀ 338
como uma cadela vadia era teleguida exclusivamente por si mesma” (LISPECTOR, 1995, p.
32), “a sua cara é estreita e amarela como se ela já tivesse morrido” (LISPECTOR, 1995, p.
39), tinha “o corpo cariado” (LISPECTOR, 1995, p.51). Além de expor a “feiura” da moça, o
narrador ainda afirma que ela era “incompetente para a vida” (LISPECTOR, 1995, p. 39).
Deparar-nos com a situação da personagem, depois de ter sido enfatizada várias vezes
pelo narrador por sua falta de beleza e “de jeito”, sendo quase demitida pelo chefe da firma,
ratifica, por meio dos argumentos do senhor Raimundo Silveira, a despreparação que
Macabéa tinha para (sobre)viver a atmosfera industrial e capitalista que pairava na sociedade.
avisou-lhe com brutalidade (brutalidade essa que ela parecia provocar com sua cara
de tola, rosto que pedia tapa), com brutalidade que só ia manter no emprego Glória,
sua colega, porque quanto a ela, errava demais na datilografia, além de sujar
invariavelmente o papel. Isso disse ele. Quanto à moça, achou que se deve por
respeito responder alguma coisa e falou cerimoniosa a seu escondidamente amado
chefe:
- Me desculpe o aborrecimento. (LISPECTOR, 1995, pp. 39-40)
O senhor Raimundo é o primeiro personagem a rebaixar Macabéa, caso não
consideremos a maneira como o narrador Rodrigo caracteriza a moça no início da narrativa. O
ato de ser brutal no jeito que fala e demite a datilógrafa, reflete a posição que cada um
ocupava naquela firma, ele como o empregador (chefe) e ela como a empregada (datilógrafa)
passiva. Apesar de que, como a própria obra apresenta no decorrer da história, Macabéa era
um sujeito passivo em quaisquer condições de sua vida.
Medeiros (2009) analisou como a obra A hora da estrela é marcada pela estética do
feio e por características grotescas, entre elas, principalmente, o rebaixamento dos
personagens. O conceito do grotesco na literatura é colocado como aquele que a sua
comicidade e aspecto da sátira ficaram percebíveis nas obras literárias, principalmente pelo
aspecto do “feio”, do “rebaixamento” e do “cômico”. É compreensível o porquê de o grotesco
parecer “monstruoso”, “horrível” e “disforme”, pois ele é o oposto da estética do belo, nele o
que prevalece não é a beleza externa, mas a descrição diferenciada de um ser que gera
comicidade e “rebaixamento, isto é, a transferência ao plano material e corporal, o da terra e
do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado espiritual, ideal e abstrato”
(BAKHTIN, 1996, p. 17).
Quando falamos em rebaixamento estamos mencionando os estudos de Bakhtin (1996)
e a análise de Medeiros (2009), este último nos mostra o rebaixamento dos personagens na
obra objeto de análise. Não nos deteremos como esse rebaixamento atinge todos os
personagens, porém na própria narrativa a maneira como o narrador e os demais personagens
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 339
se descrevem e se comportam nos mostram que de fato essa característica do grotesco está na
narrativa.
A informação dada entre parêntese no trecho literário, que diz que Macabéa provocava
a brutalidade com “a sua cara de tola, rosto que pedia tapa” demonstra como a personagem é
colocada no posto de responsável por ser quase demitida, assim como por ser tão passiva
naquele momento. A atitude que a moça teve diante da situação foi pedir desculpas pelo
aborrecimento causado ao chefe, feito isso não para defender a si ou ao seu emprego, mas
porque achava que era respeitoso dizer algo depois de tudo o que ouviu.
Macabéa se mostra como uma empregada desqualificada para o seu serviço, pois o
seu chefe a culpa por errar as palavras na datilografia e por sujar os papeis. Observe que é
retirado da personagem, com essa fala do senhor Raimundo, o único “título” que a
aproximava da dignidade de ser gente, que era ser datilógrafa. “Por ser ignorante era obrigada
na datilografia a copiar lentamente letra por letra – a tia é que lhe dera o curso ralo de como
bater à máquina. E a moça ganhara uma dignidade; era enfim datilógrafa” (LISPECTOR,
1995, p. 29). Entretanto, não podemos julgar a moça por isso, afinal ela só tinha até o terceiro
ano primário, o que justifica o fato da jovem não aceitar que na linguagem duas consoantes
ficassem juntas em uma palavra. Por falta de conhecimento sobre a língua e a vida, é que
Macabéa errava, ou melhor dizendo, não acertava.
Souza (2006, p. 110) coloca que Macabéa representa o humano de forma caricatural e
hiperbólica, ao mesmo tempo que é desenhada como a negação do humano, “Macabéa,
dessemelhante no conjunto, separada dos homens pela barreira da arte, é convincente pelo
detalhe, enquanto resposta estética a indagações humanas”. São nas características isoladas da
personagem que reconhecemos o sujeito como ser social, é tão irreal que uma pessoa possa
ser assim, tal qual Macabéa, no entanto, ela, com o seu jeito e ações, se aproxima tanto do
real, aos olhos do leitor. De acordo com Lukács (2000, p. 60) o gênero romance “busca
descobrir e construir, pela forma, a totalidade oculta da vida”, ou seja, Lispector consegue,
por meio da sua narrativa, refletir sobre a sociedade.
Na realidade, não eram somente as palavras escritas que faltavam no vocabulário de
Macabéa, a fala também. Ela não sabia o que dizer, como e quando falar. A linguagem não
era algo plenamente dominado pela moça, ela somente repetia o que seu chefe mandava
escrever ou o que ela escutava no rádio-relógio. Na ocasião de ouvir o seu chefe proferir que
iria manter somente Glória na firma e que, consequentemente, isso significava que ela estava
demitida, a jovem disse “me desculpe pelo aborrecimento”, surpreendendo senhor Raimundo
com tal discurso.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 340
O senhor Raimundo Silveira – que a essa altura já lhe havia virado as costas –
voltou-se um pouco surpreendido com a inesperada delicadeza e alguma coisa na
cara quase sorridente da datilógrafa o fez dizer com menos grosseria na voz, embora
a contragosto:
- Bem, a despedida pode não ser para já, é capaz até de demorar um pouco.
(LISPECTOR, 1995, p. 40)
Atentemo-nos para o jogo nas palavras feitas por Rodrigo S. M. ao dizer que o chefe,
naquele momento, já tinha virado as costas para a moça, o que não indica só a posição
corporal do personagem, mas também sugere que ele não teria se importado com o que seria
da moça, o que aquela menina órfã iria fazer naquela cidade, qual outro emprego ela poderia
conseguir no mercado de trabalho, sendo ela tão despreparada? Macabéa, dar-se a entender na
obra, era uma mão de obra barata, mais uma nordestina que chegava ao sudeste na esperança,
dela e da tia, de viver melhor do que era em Alagoas, no entanto, nem sobre isso a
personagem pensa, faz-se entender almejar.
Então, Macabéa escuta do seu chefe que talvez não seja demitida, agora era ela que se
surpreendia com as palavras de seu Raimundo, mesmo que elas tenham sido ditas a
“contragosto”, pois recebia novamente a sua dignidade, voltava a ser datilógrafa, a ter um
emprego na “sociedade técnica” que ela fazia parte, mesmo sem ser consciente do que seria
essa sociedade.
Depois de receber o aviso foi ao banheiro para ficar sozinha porque estava
atordoada. Olhou-se maquinalmente ao espelho que encimava a pia imunda e
rachada, cheia de cabelos, o que tanto combinava com sua vida. Pareceu-lhe que o
espelho baço e escurecido não refletia imagem alguma. Sumira por acaso a sua
existência física? Logo depois passou a ilusão e enxergou a cara toda deformada
pelo espelho ordinário, o nariz tornado enorme como o de um palhaço de nariz de
papelão. Olhou-se e levemente pensou: tão jovem e já com ferrugem. (LISPECTOR,
1995, p. 40)
Passado o episódio de demissão e readmissão do emprego, Macabéa se dirige ao
banheiro, ainda atordoada com o que aconteceu e se olha no espelho. Mas nesse trajeto da
personagem visualizar o espelho, o narrador diz que ela “olhou-se maquinalmente ao
espelho”. Vejamos que esse olhar maquinal que Rodrigo S. M. faz referência pode ser
entendido pelo gesto repetido e comum, ao chegar no banheiro e se olhar um espelho, típico
das mulheres; como também pode ser entendido como uma crítica social que o narrador faz a
posição ocupada por Macabéa naquela firma, afinal, ela era apenas “um parafuso dispensável”
(LISPECTOR, 1995, p. 44), comparando-a com uma “máquina” daquela firma, daquela
sociedade moderna e técnica.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 341
Além disso, o narrador compara Macabéa a pia que é imunda, rachada e ainda cheia de
cabelos, evidenciando a “pobreza” que era vida de Macabéa, pois ela era “feia”, “suja” e
“rebaixada” a uma pia imunda. Ela e a pia pareciam existir com a finalidade de receber
passivamente o que os outros “despejavam”, como foi ao ouvir tudo o que senhor Raimundo
Silveira falou. A pia como recipiente de limpar as impurezas, é maculada com a sujeira dos
outros, enquanto que, a moça, sempre ouvia o que os outros tinham a “despejar”, bem como
sempre estava como a pia, suja.
Ao se olhar no espelho “baço e escurecido” Macabéa não viu sua imagem refletida, é
quando o narrador, que tudo sabe e tudo ver, questiona “Sumira por acaso a sua existência
física?” (LISPECTOR, 1995, p. 40). Ao fazer tal indagação sobre Macabéa, a narrativa nos
põe a prova se realmente é possível existir alguém tal qual a moça nordestina. A presença do
espelho nesse momento em que a personagem tenta se acalmar, tendo em vista estar atordoada
pelo o que ouviu do seu chefe, e se reconhecer na imagem que deveria refletir no espelho,
incentiva-nos a abordar também nessa análise, um pouco sobre o significado simbólico desse
objeto.
Chevallier e Gheerbrant (2009, p. 393), em Dicionários de símbolos, colocam que o
espelho, enquanto superfície que reflete, é “o suporte de um simbolismo extremamente rico
dentro da ordem do conhecimento”, ou seja, tal objeto pode proporcionar inúmeras
interpretações, pois além de tudo ele é revelador. Ainda acrescentam que “o espelho é, com
efeito, símbolo da sabedoria e do conhecimento, sendo o espelho coberto de pó aquele do
espírito obscurecido pela ignorância” (CHEVALLIER e GHEERBRANT, 2009, p. 394). O
espelho que Macabéa se olha está “baço e escurecido”, é como se a personagem por não saber
quem de fato era ela, sente a dificuldade de se enxergar, de se reconhecer. A sua existência
física não sumiu, como é questionado, mas a sua “ignorância obscurece” a visão de Macabéa
e não permite que veja o seu próprio reflexo.
Quando Macabéa consegue realmente se ver, ela enxerga “a cara toda deformada pelo
espelho ordinário, o nariz tornado enorme como o de um palhaço de nariz de papelão”
(LISPECTOR, 1995, p. 40), a personagem visualiza quase que uma caricatura do que ela é, “o
aspecto numinoso do espelho, isto é, o terror que inspira o conhecimento de si”
(CHEVALLIER e GHEERBRANT, 2009, p. 396), é como se o espelho fosse um instrumento
da psique, segundo os autores, e a própria Macabéa criou essa imagem dela mesmo. A
personagem vê o reflexo do espelho nela e não o reflexo dela no espelho, por isso é que ela se
olha e pensa “tão jovem e já com ferrugem” (LISPECTOR, 1995, p. 40), as marcas que
embaçam o espelho também estão nela, fazem parte do meio que ela vive.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 342
Macabeá é, na realidade, um reflexo da sociedade. De acordo com Chevallier e
Gheerbrant (2009, p. 395), “o homem enquanto espelho reflete a beleza ou a feiúra”, e a
personagem demonstra implicitamente um pouco dos sujeitos e da sociedade, transcendendo
tempo e lugar. O que é visto por Macabéa reflete a sociedade, o como somos vistos por uma
modernidade que o tempo nos obriga viver. Souza (2006, p. 117) analisa bem essa questão
humana e social abordada em seu trabalho sobre a obra A hora da estrela, quando diz que,
Macabéa tem um trabalho, talvez para lembrar o leitor, pelo intricado caminho da
ficção, que existe todo um contingente humano obrigado aos serviços mecânicos,
dos quais esses homens retiram apenas um soldo miserável e nenhum prazer,
nenhum conhecimento, nada que lhes dê a consciência de que são seres que
contribuem para fazer o mundo avançar em determinada direção.
A datilógrafa é só mais uma pessoa sujeita a abastecer a economia com o seu trabalho,
a garantir que a máquina que é a sociedade continue em movimento, mesmo sendo a
personagem um “parafuso dispensável”. Clarice Lispector ao escrever que a sua personagem
se enxerga com um nariz de palhaço, traz à tona, de maneira implícita, como a personagem
era tola e rebaixada ao cômico. Apesar de que Macabéa provoca o riso dos demais
personagens que tanto quanto ela fazem parte da narrativa para mostrarmos quem e como são
os sujeitos da sociedade técnica, são “os palhaços” para aqueles que detém o poder.
Foi Macabéa quem se olhou no espelho, mas por meio dela conseguimos ver os
reflexos sociais que Clarice quis apontar nos demais personagens nessa narrativa, pois a
imagem de Macabéa no espelho, é o reflexo daquela sociedade. Temos Olímpico, namorado
de Macabéa, que veio ao Rio de Janeiro após assassinar um homem, consegue um emprego
que nem ele mesmo sabe a utilidade, troca a namorada por sua amiga Glória, porque ela tem
uma posição social melhor do que a nordestina e no final, segundo as próprias palavras do
narrador, “no futuro, que eu não digo nesta história, não é que ele terminou mesmo deputado?
E obrigando os outros a chamarem-no de doutor” (LISPECTOR, 1995, p. 63), ironizando os
tipos de políticos que elegemos.
Sobre Glória, Souza (2006, p. 99) diz que a “loura oxigenada, cabelos crespos em
amarelo-ovo, um estardalhaço de existir, no dizer de Rodrigo, é a menos miserável na galeria
dos desvalidos de A hora da estrela”, isso porque além de trabalhar na mesma firma que
Macabéa e ter um namorado, ela mora na rua “General não-sei-o-quê”, é pertencente de um
“terceira classe burguesa havia no entanto o morno conforto de quem gasta todo o dinheiro
em comida” (LISPECTOR, 1995, p. 83), mas mesmo assim não deixava de ser mais um
reflexo da “sociedade técnica”.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 343
O médico, que não tem nome só função, e a cartomante Madame Carlota são
personagens periféricos que surgem na narrativa para, o primeiro - anular ainda mais Macabéa
e mostrar o descaso e descompromisso da sua profissão e, a cartomante – trazer para narrativa
um pouco de esperança para a Macabéa. No entanto, como coloca Souza (2006, p. 98) “essas
personagens representam segmentos recortados da sociedade que transforma seres humanos
em mercadoria”, pois basta analisarmos o comportamento do médico diante da sua profissão,
mostrando-nos que a sua prática na medicina é baseada no dinheiro e não ao atendimento dos
pacientes. Enquanto que madame Carlota apresenta, além de uma miséria moral, por ter sido
prostituta, cafetina e agora cartomante, essa sua sequência de funções só demonstram o que a
“sociedade pode fazer com o ser humano quando ele não serve mais como força de trabalho”
(SOUZA, 2006, p. 99).
Os personagens que dão vida e movimento a narrativa de Clarice Lispector, desde o
narrador Rodrigo, senhor Raimundo, os que agora analisamos e, principalmente, Macabéa
revelam o quanto a autora utilizou da sua melhor arma, a palavra, para nos mostrar como a
sociedade é e como ela utiliza dos que nela vivem. A escrita, para aqueles que a leem, pode
ser considerada um pouco “baça e escurecida”, assim como o espelho estava para Macabéa,
mas é com essa consciência de reconhecimento que analisamos como Clarice Lispector
consegue na obra A hora da estrela falar sobre a sociedade tão implicitamente e
explicitamente ao mesmo tempo.
Ainda sobre a maneira de Clarice Lispector escrever, Kadota (1997, p. 138) diz que na
obra A hora da estrela a experiência textual é “corroída” pela linguagem, e é marcada pela
inquietação social, segundo a estudiosa, a narrativa “inegavelmente indica o social”,
mostrando-nos que a escrita de Lispector percorre o social e não somente o intimista e o
subjetivo. Poderíamos ler a narrativa e simplesmente afirmar e atender ao pedido do narrador
quando ele disse,
De uma coisa tenho certeza: essa narrativa mexerá com uma coisa delicada: a
criação de uma pessoa inteira que na certa está tão viva quanto eu. Cuidai dela
porque meu poder é só mostrá-la para que vós a reconheçais na rua, andando de leve
por causa da esvoaçada magreza. (LISPECTOR, 1995, p. 33)
Não tomamos somente Macabéa para o nosso cuidado, mas junto com a personagem
olhamo-nos no espelho e identificamos o reflexo da crítica social na obra clariciana.
Analisamos como aquele momento em que Macabéa é quase demitida e a sua ida ao banheiro
é uma das partes que a autora nos mostra, por trás das personagens e da história, como de fato
é a sociedade. Salientemos, que desse episódio na firma é que conhecemos a história da
Nas fronteiras da linguagem ǀ 344
personagem nordestina, nessa ocasião de reconhecimento de Macabéa ao se olhar no espelho
é também para nós leitores o ato de conhecimento da moça, pois é quando sabemos quem é
ela, de onde veio e mora, o que faz, enfim, somos apresentados “pessoalmente” a Macabéa.
Portanto, vimos os reflexos do contexto social e da condição dos personagens
na obra A hora da estrela, ressaltando a crítica a “sociedade técnica”, o significado simbólico
que o espelho proporciona nos trechos analisados e as características da escrita de Lispector.
A maneira como a narrativa foi construída com os seus personagens, permitiu-nos uma
posição privilegiada para, mesmo com o “espelho baço e escurecido”, enxergamos como a
autora trata sobre o social em sua obra. Macabéa era só mais uma nordestina entre tantas, mas
nesse romance conseguiu destaque e vez ao grito, ela foi o reflexo da sociedade naquele
espelho.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
_______. A cultura popular da Idade Média e o renascimento: contexto de François Rabelais.
Trad. Yara F. Vieira. 3 ed. São Paulo: Hucitec, 1996.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos,
costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Tradução de Vera da Costa e Silva [et al.].
23 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
KADOTA, Neiva Pitta. A Tessitura Dissimulada: O social em Clarice Lispector. São Paulo:
Estação Liberdade, 1997.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 23 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000.
MEDEIROS, Antonia Gerlania Viana. Estética do feio: a presença do grotesco em A hora da
estrela. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Letras) – Departamento de Letras,
Campus Avançado “Profa. Maria Elisa de Albuquerque Maia”, Universidade do Estado do
Rio Grande do Norte, Pau dos Ferros, 2009.
NUNES, Benedito. O drama da linguagem. Uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo:
Ática, 1995.
SOUZA, Ana Aparecida Arguelho de. O humanismo em Clarice Lispector: um estudo do ser
social em A hora da estrela. São Paulo: Musa Editora, 2006.
WATT, Ian. A ascensão do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 345
O ENSINO DE PRODUÇÃO DE TEXTO À LUZ DA
CONCEPÇÃO DE ESCRITA INTERACIONAL [Voltar para Sumário]
Antonia Maria de Freitas Oliveira (UFRN)
Introdução
As discussões relacionadas a necessidade de se melhorar a qualidade da educação no
país, travadas nas últimas décadas, mantêm como foco o ensino de Língua Portuguesa-LP. No
Ensino Fundamental, o ponto de convergência dessa discussão aponta, principalmente, para o
eixo da leitura e da escrita, conforme afirma os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de
Língua Portuguesa do ensino fundamental do 6º ao 9º ano, (1996, p. 19).
As dificuldades que os alunos desse nível de ensino apresentam em compreender o
que leem e de se fazer compreendidos quando produzem textos escritos é uma evidência do
fracasso no ensino dessa disciplina, principalmente no desenvolvimento das capacidades
leitoras e escritoras dos alunos. Tendo em vista essa realidade é que constantemente
professores e pesquisadores da área da Linguística se empenham em buscar estratégias
teóricas e práticas que possam superar essa deficiência.
No que se refere ao ensino de produção de textos, inicialmente, é necessário que se
compreenda a complexidade que envolve o ato de escrever. Pois, além do domínio de
diversos conhecimentos como o linguístico, o enciclopédico, o interacional e o textual
necessários à construção de textos em qualquer que seja a modalidade, ainda há que se
considerar todas as características peculiares a situação de produção dos discursos construídos
na modalidade escrita da língua. Dentre estas, podemos considerar a ausência do leitor no
momento em que o texto está sendo produzido como um dos elementos que mais contribuem
para a dificuldade que circunda esse processo. A falta de interação instantânea entre autor-
leitor, que não é possível nos textos escritos, requer do autor um maior cuidado durante o
processo de elaboração do texto.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 346
A queixa mais comum entre os professores de LP em relação ao fracasso do ensino
aprendizagem da produção de textos é a desmotivação dos alunos no momento de atender as
atividades de produção textual que são propostas em sala de aula. Quem convive nesse
ambiente sabe da veracidade do que é alegado por esses profissionais. Há, de fato, uma
resistência por parte dos alunos em produzir textos. Porém, este fato torna-se contraditório
quando se observa que estes mesmos alunos que se mostram avessos a produzir textos em sala
de aula escrevem a todo instante em outros ambientes sem sentir nenhum pesar em fazer isso.
Os “bilhetinhos” que eles usam para se comunicar durante as aulas, as perguntas e respostas
aos “questionários coletivos” que eles mesmos produzem, as postagens escritas nas diversas
redes sociais, as listas de compras que fazem em casa, os e-mails que enviam a parentes e
amigos são apenas alguns exemplos de como os alunos gostam de escrever.
Dada essas duas realidades, contraditórias entre si no que se refere ao gosto do aluno
pela escrita, o propósito inicial deste artigo é analisa-las à luz de algumas das diversas
concepções de escrita a fim de apresentar uma resposta sobre o que causa tanta desmotivação
aos alunos na hora de escrever na sala de aula e que, por fim, torna as aulas de produção de
texto tão improdutivas. Em seguida, através da apresentação de um exemplo de prática de
letramento trabalhada em uma sala de aula, este artigo busca atender a um último propósito
que é o de mostrar estratégias de ensino de produção de texto que, de fato, contribuam para o
desenvolvimento de um aluno produtor de textos.
Para tanto, usaremos como respaldo teórico, principalmente, os estudos de Passarelli,
(2004 e 2012) e os de Koch e Elias (2009), que tratam, respectivamente, do ensino de
produção de texto sob a perspectiva da escrita processual e da escrita como atividade
interativa.
1. O que é a escrita para a escola? E para o aluno?
A forma como os alunos reagem às situações cotidianas que demandam o uso da
escrita e a maneira como se comportam diante das propostas de produção de texto na sala de
aula deixam transparecer a ideia de que escrever tem significados diferenciados para a escola
e para os alunos.
Nas aulas de produção de textos, o ensino dos conhecimentos gramaticais, ortográficos
e lexicais, ainda são colocados como prioritários. Desse modo, a ideia de escrita que é posta
para o aluno é a de que escrever bem é saber as regras da gramática, ter um vocabulário amplo
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 347
e saber grafar bem as palavras. Subjacente a essa ação pedagógica está a concepção de escrita
que mantém como foco a língua.
Para Koch e Elias, conceber a escrita desta forma, mantendo a língua como foco,
implica perceber o texto como um produto construído apenas por elementos de natureza
linguística cuja compreensão requer do leitor apenas o domínio desses mesmos elementos.
Visto desse modo, todo texto é objetivo, não sendo possível haver mais de uma interpretação
para o mesmo, uma vez que o seu sentido encontra-se apenas no código linguístico utilizado
(2009, p. 33).
Embora os conhecimentos linguísticos sejam indispensáveis à construção de textos, sozinhos
eles não dão conta de um processo tão complexo como esse. Pois, como dito anteriormente,
produzir textos demanda o domínio e a ativação muitos outros conhecimentos e estratégias
por parte do autor.
Essa compreensão de escrita acaba por orientar, não só o ensino mas também a
avaliação que é feita dos textos, conforme afirma Passarelli:
Temos assistido a procedimentos de rotina calcados em moldes de ensino que têm
como base a gramática normativa, tanto para o ensino de produção de textos como
para sua avaliação. Os estudos metalinguísticos roubam a cena de episódios de
produção de textos: protagonizam atividades voltadas a temas referentes ao que mais
fácil e acomodadamente se detecta na superfície textual. (PASSARELLI, 2012, p.
91).
Assim, os alunos são obrigados a escrever textos em que a obediência as regras da
língua deve ser a principal preocupação, uma vez que serão avaliados a partir desse
parâmetro. Por fim, produzir texto na escola resume-se a escrever seguindo um padrão de
correção linguística para ser avaliado pelo professor e atribuído uma nota proporcional ao
número de acertos ou de erros.
Uma ação pedagógica calcada por esses moldes está muito aquém do que se espera da
escola em relação ao letramento do aluno, uma vez que, segundo os PCN de LP, cabe a essa
instituição garantir que ao longo do ensino fundamental “cada aluno se torne capaz de
interpretar diferentes textos que circulam socialmente, de assumir a palavra e, como cidadão,
de produzir textos eficazes nas mais variadas situações” (BRASIL, 1996, p. 21).
No dia a dia, a escrita dos alunos adquire outras dimensões. O propósito deixa de ser a
avaliação do professor e passa a ser o de comunicar, de estabelecer uma interação com um
leitor real. A preocupação maior, neste caso, deixa de ser a de obedecer a regras gramaticais,
ortográficas e lexicais e passa a ser a utilização de conhecimentos e estratégias adequadas
Nas fronteiras da linguagem ǀ 348
para que as suas intenções se tornem mais compreensivas para o leitor. Nessa forma de
conceber a escrita o foco está na interação autor-leitor e o texto é “considerado um evento
comunicativo para o qual concorrem aspectos linguísticos, cognitivos, sociais e interacionais”
(BEAUGRANDE apud KOCH e ELIAS, 2009, p. 33). Bem diferente de como é visto e
tratado pela escola.
Aproximar as produções textuais que são feitas na escola daquelas que os alunos
praticam no dia a dia deles, é uma alternativa que parece bem positiva para que se supere o
fracasso que ao longo dos anos tem marcado o ensino de LP. Dessa forma, seria necessário
rever as antigas práticas pedagógicas voltadas para o ensino e produção de texto e pensa-las
de maneira que o seu ensino tomasse como ponto de partida a compreensão de escrita dos
próprios alunos. Embora as experiências que eles trazem sobre a escrita sejam cotidianas e
informais a escola poderá partir delas e expandir para contextos mais formais. Como diz
Passarelli (2012), a escola precisa aproveitar a predisposição dos alunos para escrever.
Produzir textos com o propósito, meramente, de ser avaliado por um professor,
referente, somente, ao emprego correto das normas linguísticas, como já foi posto
anteriormente, não estimula nenhum pouco o aluno a escrever. Tampouco oferece condições
para que o aluno se torne competente linguisticamente para interagir por meio da linguagem
em diferentes contextos, como se espera do ensino de LP.
A aproximação que se propõe, relacionando a escrita de sala de aula com o uso que é
feito dela em ambientes extraescolares, fazendo com que os alunos percebam algum sentido
naquilo que é ensinado na escola, como condição essencial para se mudar o ensino de LP,
requer uma mudança nas estratégias didático-pedagógicas adotadas em sala de aula que
deverão ser orientadas, sobretudo, por uma concepção de escrita diferente das que orientam
essas práticas improdutivas que aí estão, que, por sua vez, consideram o texto acabado, pronto
como objeto de avaliação. Essa visão que ora se tem, tanto de texto como de escrita descarta
todo o processo pelo qual o texto passa até chegar ao produto final. De acordo com Oliveira
(2010), “ O professor que vê a escrita apenas como produto tende a dificultar o
desenvolvimento da competência redacional dos alunos por não ajudá-los a se
conscientizarem que a escrita requer planejamento” (OLIVEIRA, 2010, p. 120).
Nos novos paradigmas de ensino de LP que se propõe, é preciso que o ensino e
avaliação da escrita tenha como base teórica a concepção de escrita como uma atividade
interativa que ocorre em função de um leitor e que se dá por meio de um processo que é
realizado por etapas. Vista desse modo, a escrita, incidirá uma mudança bastante significativa
sobre a forma como será ensinada e avaliada na sala de aula.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 349
Partindo dessa perspectiva, as atividades de produção de texto deverão sempre levar
em consideração que:
A escrita é um trabalho no qual o sujeito tem algo a dizer e o faz sempre em relação
a um outro (o seu interlocutor/leitor) com um certo propósito. Em razão do objeto
pretendido (para que escrever?), do interlocutor/leitor (para quem escrever?), do
quadro espacio-temporal (onde? Quando?) e do suporte de veiculação, o produtor
elabora um projeto de dizer e desenvolve esse projeto, recorrendo a estratégias
linguísticas, textuais, pragmáticas, cognitivas, discursivas e interacionais, vendo e
revendo, no próprio percurso da atividade, a sua produção (KOCH e ELIAS, 2009,
p. 36).
Daí as orientações para que o ensino de LP se dê a partir dos gêneros textuais.
Abandonando de vez o modelo de outrora que se baseava nas tipologias narrativas,
dissertativas e descritivas. Haja vista a materialidade dos gêneros textuais, usá-los como ponto
de partida para o ensino de línguas parece atender bem aos interesses dessa área. E para que
fique mais claro o entendimento sobre eles a definição dada por Antunes (2010), poderá
ajudar: “os gêneros é que constituem textos empíricos, é que constituem textos reais em
circulação [...] realizam-se com propósitos comunicativos determinados e facilmente
reconhecíveis pela comunidade em que circulam” (ANTUNES,2010, p. 72).
Como os gêneros textuais existem em uma quantidade quase que incalculável, no
momento de escolhe-los para trabalhar em sala de aula a prioridade deverá ser dada àqueles
que têm maior importância para o uso social do aluno ou o que melhor atender ao propósito
comunicativo do momento.
Outro aspecto a ser observado no ensino de produção de texto é a compreensão de que
um texto é o resultado de uma série de etapas e que a qualidade do produto final depende da
atenção que é dada a cada uma delas. E isto precisa ficar bem claro para o aluno, tanto quais
são os procedimentos específicos de cada uma delas como a importância de que elas sejam
cumpridas (PASSARELLI, 2004 e 2012). Levar os alunos à essa consciência poderá aliviá-los
dos pesares que ato de escrever provoca.
2. A escrita interativa: um processo que se realiza em etapas
As considerações apresentadas até aqui incidiram, basicamente, sobre a utilização da
escrita que feita pela escola e a que é feita pelos alunos em suas atividades cotidianas. Isso
tudo no sentido de se chegar a uma compreensão dos fatores que estão ligados ao fracasso do
ensino de produção de textos. O modo como a escrita é praticada nas duas situações deixou
Nas fronteiras da linguagem ǀ 350
claro que em cada uma delas subjaz concepções de escrita diferenciadas. Dessas concepções
analisadas a que pareceu mais adequada para subsidiar um ensino de produção de textos que
seja comprometido com o desenvolvimento da competência linguística do aluno foi a
concepção de escrita interacional.
Assim, neste item será abordado o resumo de uma proposta de produção de texto
realizada à luz dessa teoria. Essa proposta parte de duas premissas consideradas como base
em um ensino de produção de textos que se propõe a ser produtivo: a de que a escrita é uma
atividade interativa e a outra, que ela se realiza em etapas.
O entendimento de que o ato de escrever requer a utilização de diversos
conhecimentos e estratégias é muito importante no momento do professor planejar as suas
ações porque fará com que ele eleja apenas alguns aspectos para ser abordado de cada vez.
Essa seleção será favorável ao professor na hora da avaliação dos textos e ao aluno que terá
menos elementos com que se preocupar no ato da produção. Na proposta que será apresentada
os aspectos avaliados, foram, apenas, a qualidade dos argumentos e a organização deles
dentro do texto.
O contexto que motivou a atividade de produção de texto em questão foi um projeto
desenvolvido na escola sobre a temática a indisciplina na escola. No decorrer desse projeto,
foram criadas algumas regras e reforçadas outas já existentes, totalizando dez quesitos aos
quais os alunos teriam que obedecer enquanto estivessem nas dependências dessa instituição.
Dentre esses quesitos, o que causou maior descontentamento entre os estudantes foi a
proibição do uso do celular na sala de aula. Porém, a insatisfação não foi genérica. Os alunos
passaram a dividir opiniões sobre a aplicação dessa regra. Enquanto uns se colocaram a favor
achando que a proibição era favorável ao aprendizado deles, outros se colocaram contra
achando que a escola estava sendo demasiadamente radical. Diante dessa polêmica, os alunos
do 8º ano foram convidados a expressar suas opiniões sobre o assunto.
No primeiro momento da atividade foram colocadas as razões que levaram a escola a
proibir o uso do celular na sala de aula. Em seguida, os alunos tiveram a oportunidade de
expressar suas opiniões sobre o assunto colocando os porquês de estarem contra ou a favor da
medida em questão. Após esse momento, foram informados de que suas opiniões seriam
expressas em forma de texto escrito que deveriam ser postos nos murais da escola e que
apenas um deles seria publicado no blog da própria instituição. Foi esclarecido, ainda, que
essa atividade seria iniciada na aula do dia seguinte e que seria interessante a leitura de
materiais que versassem sobre o assunto para que assim se sentissem mais seguros das
opiniões que iriam defender.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 351
Na etapa seguinte foi discutido qual seria o propósito comunicativo do texto. Ficou
esclarecido, então, que a finalidade dessa escrita seria cada um defender o seu ponto de vista
sobre a questão da positividade ou negatividade do uso do celular na sala de aula procurando
ser persuasivo o suficiente para convencer, da sua opinião, aqueles que mantinham opinião
contrária. A consistência dos argumentos e a organização destes no desenvolvimento do texto
foi colocada como pontos centrais a serem avaliados. Esclareceu-se ainda que, uma vez que
seriam postos nos murais da escola e, pelo menos um deles, publicados no blog, todos os
alunos e funcionários da escola teriam acesso à leitura desses textos. Feitas essas
considerações, os alunos foram levados a chegar a uma conclusão a respeito de qual gênero
textual seria o mais adequado a construção do texto, tendo em vista os elementos
anteriormente discutidos. O artigo de opinião foi o gênero escolhido. Assim, considerando
que “a escolha de um gênero se determina pela esfera, as necessidades da temática, o conjunto
dos participantes e a vontade enunciativa ou intenção do locutor” (SCHNEUWLY, 2004, p.
23), o gênero escolhido, o artigo de opinião, foi bem pertinente.
Todo gênero textual possui uma forma preestabelecida que deve ser conhecida por
quem deseja utilizá-lo. Os gêneros que circulam em esferas mais formais e que não fazem
parte do cotidiano dos alunos, como é o caso do artigo de opinião, precisam de que seus
aspectos estruturais e estilísticos sejam ensinados na escola. Então, nesta etapa da proposta,
foi trabalhada as questões referentes a composição de um artigo de opinião. É importante
ressaltar que a dedicação a esse aspecto composicional se dá em virtude do conhecimento que
a turma possui a esse respeito. Sabendo que não existe gêneros que sejam mais adequados a
uma série/ano do que a outra, todos podem ser trabalhados em todas as séries, o que deve se
adequar é a profundidade que será dada a sua abordagem. É indicado que o professor, antes de
orientar a produção de um texto em um determinado gênero, sonde os conhecimentos prévio
que os aluno já possuem sobre ele.
A etapa seguinte foi o momento em que a primeira versão do texto começou a ser
escrita. É, geralmente, a hora mais tensa para os alunos. É quando eles começam a sentir as
reais dificuldades do ato de escrever. Nesse momento, o escritor, mesmo inconsciente, lança
mão dos diversos conhecimentos que adquiriu ao longo da sua vida escolar e doméstica. São
os conhecimentos que foram referenciados na parte inicial deste artigo, aos quais Koch e
Elias, (2009) chamam de conhecimento linguístico, conhecimento enciclopédico,
conhecimento de texto e conhecimentos interacionais. Embora a avaliação do gênero em
construção não tenha como foco especificamente nenhum desses conhecimentos, a qualidade
argumentativa inevitavelmente dependerá do bom uso de todos eles. Koch e Elias (2009, p.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 352
37) ressaltam a importância dos conhecimentos ortográficos no processo de produção de
textos e no alcance do propósito pretendido. De acordo com essas autoras, dentro de uma
concepção de escrita que tem como foco a interação:
Obedecer às normas ortográficas é um recurso que contribui para a elaboração de
uma imagem positiva daquele que escreve, porque, dentre outros motivos,
demonstra: i) atitude colaborativa do escritor no sentido de evitar problemas no
plano da comunicação; ii) atenção e consideração dispensadas ao leitor. (KOCH e
ELIAS, 2009, p. 37).
Uma ação pedagógica orientada pela concepção de escrita interacional não ignora, no
ensino e avaliação de produção de textos, a utilização adequada dos elementos linguísticos de
acordo com as regras da língua, porém não coloca esses aspectos gramaticais como foco dessa
ação, como ocorre com práticas orientadas por outras concepções.
Os outros conhecimentos mencionados contribuem igualmente para a elaboração do
texto. Como o próprio nome deixa claro, os conhecimentos interacionais se referem a natureza
da própria escrita, já que que o ato de escrever pressupõe uma interação. Conforme esclarece
Koch e Elias (2009, p. 44), esses conhecimentos nada mais são do que estruturas cognitivas
relacionadas as práticas interacionais. A atuação desses conhecimentos no momento da escrita
faz com que o autor selecione as estratégias que sejam mais adequadas para que a sua
intenção chegue ao leitor. No caso do conhecimento enciclopédico, é ele que vai garantir que
o escritor terá sobre o que discorrer quando estiver escrevendo. Assim, ele precisará ter um
certo repertório de informações adquiridas através de fontes variadas como leituras,
conversas, escutas e vivências. Desse modo, os alunos que produziram os textos sobre o uso
do celular na sala de aula posicionando-se sobre essa ser uma prática positiva ou negativa,
precisariam necessariamente saber o que é um celular e quais são as funções básicas e
acessória deste aparelho para poder julgar se o uso dele em sala de aula é prejudicial ou não
ao aprendizado do aluno, além de ter noção sobre o que são direitos e deveres da escola e do
aluno. Ao escrever, qualquer coisa que seja, o produtor já tem ideia do formato que terá o seu
texto. O escritor sabe qual o modelo de um bilhete, de uma lista de compras, por exemplo.
Quando o texto que vai produzir não lhe é comum ele precisa adquirir conhecimento sobre a
forma como se estrutura um texto dessa natureza. Esse tipo de conhecimento Koch e Elias
(2009), chamam de conhecimento de texto.
Considerando o roteiro proposto por Passarelli (2004), para ensinar o processo da
escrita, que prevê quatro etapas, nesta ordem: planejamento; tradução de ideias em palavras;
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 353
revisão e editoração, neste primeiro momento da proposta em questão, as duas primeiras
etapas foram cumpridas.
Concluída a primeira versão do texto, os alunos foram orientados a formar duplas para
a realização de uma atividade que consistia em cada um ler o texto do outro e procurar
identificar o ponto de vista que estava sendo defendido e os argumentos utilizados para
defende-lo. Feito isso, desfizeram-se as duplas e cada aluno foi analisar se o que o colega
entendeu como ponto de vista e argumentos, eram, de fato, compatíveis com as intenções que
tinha no ato da produção. Havendo compatibilidade ou não, a orientação, neste momento, era
para que o aluno visse aspectos que precisariam e os que poderiam ser melhorados no texto no
sentido de torna-lo mais claro, coerente e organizado. Terminada essa etapa, que Passarelli
(2004) chama de revisão, os textos foram recolhidos para serem analisados pela professora,
que faria as interferências cabíveis de acordo com os critérios que haviam sido estabelecidos
para a avaliação. Então, usando a avaliação não segundo critérios quantitativos, no sentido de
atribuir uma nota, mas usando no sentido de reorganizar suas práticas pedagógicas tendo em
vista a melhoria da aprendizagem do aluno, foram observados os pontos selecionados para a
avaliação, que como já foram mencionados, eram relativos a qualidade dos argumentos. A
partir dessa análise, os alunos foram orientados a fazer mais leituras relacionadas ao tema
sobre o qual estavam escrevendo, foram trabalhadas, também, a questão da organização dos
argumentos dentro do texto e o emprego dos operadores argumentativos.
A etapa final dessa proposta, que Passarelli (2004) denomina de editoração, foi o
momento em que os alunos “passaram a limpo” o texto fazendo os devidos “acabamentos” a
fim deixa-lo no formato necessário para tornar-se um texto público.
3. Considerações finais
O ensino e a aprendizagem de LP, segundo os PCN, é resultante da articulação de três
variáveis que são o aluno, a língua e o ensino. Dentro desta tríade, cada um desses elementos
representa um papel. O aluno é o sujeito da ação de aprender; a língua, o objeto do
conhecimento, e por último o ensino, que promove a mediação entre os dois anteriores. Se o
resultado do ensino e aprendizagem dessa disciplina não está sendo o esperado é porque não
está havendo uma articulação entre essas variáveis. E não está mesmo. O ensino,
materializado por meio de práticas pedagógicas não tem conseguido tornar viável o acesso do
aluno à língua.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 354
Uma mudança no sentido, de fazer com que o aluno domine os conhecimentos e
estratégias necessários a uma utilização satisfatória da língua nos diferenciados contextos
sociais, depende, basicamente, de uma modificação na forma de aborda-la em sala de aula.
A proposta de produção de texto que este artigo trouxe não teve a pretensão apenas de
ser um relato de uma prática, mas, sobretudo de se apresentar como uma sugestão de atividade
que poderá ser aplicada em qualquer turma e por qualquer professor. O que não se pode
perder de vista é que o ensino da escrita ou do texto tem que partir de situações concretas e
representar usos reais de linguagem, tem que se considerar a complexidade desse processo e
que não existe texto pronto, o que existe são apenas versões melhoradas. E, por fim, que a
avaliação que se faz da escrita seja menos voltada para a nota do aluno e mais voltada para a
orientar as práticas didáticas do professor.
4. Referências
ANTUNES, Irandé. Análise de textos: fundamentos e práticas. São Paulo: Parábola Editorial,
2010.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e
quarto ciclos do Ensino Fundamental: Língua Portuguesa/ Secretaria de Educação
Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997.
KOCH, Ingedore Vilaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e escrever: estratégias de produção
textual. São Paulo: Editora Contexto, 2009.
OLIVEIRA, Luciano Amaral. Coisas que todo professor de português precisa saber: a teoria
na prática. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.
PASSARELI, Líllian Ghiurro. Ensino de produção textual: da ‘higienização’ da escrita para a
escrita processual. In: CINTRA, Anna Maria Marques; PASSARELI, Líllian Ghiurro.
(Coord.) A pesquisa e o ensino em língua portuguesa sob diferentes olhares. São Paulo:
Blucher, 2012.
PASSARELI, Líllian Ghiurro. Ensinando a escrita: o processual e o lúdico. 4 Ed. São Paulo:
Cortez, 2004.
SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros e tipos de discurso: considerações psicológicas e
ontogenéticas. In: SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim. Gêneros orais e escritos na
escola. Trad. Roxane Rojo. Campinas: Mercado das Letras, 2004.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 355
INCONSCIENTE E SIMBÓLICO EM PERTO DO CORAÇÃO
SELVAGEM [Voltar para Sumário]
Antonielle Menezes Souza (UFS)
Marcio Carvalho da Silva (UFS)
Perto do coração selvagem é o romance inaugural da escritora Clarice Lispector,
sendo um dos mais importantes de sua carreira, livro extremamente elogiado pelos críticos de
sua época, denominando-o como a melhor novela escrita por uma mulher. Movido por uma
alta carga de densidade psicológica onde a autora aborda de maneira bastante complexa os
conflitos internos da personagem principal chamada Joana. Além de apresentar uma inédita
forma descontinua de narração e uma inovadora expressão verbal que levou o romance a obter
uma força poética imensamente relevante, característica que marca profundamente o
panorama da ficção brasileira da década de 40.
A referida obra é divida em duas partes, a primeira os capítulos se alternam entre a
Joana criança e a Joana mulher onde nos são expostos fatos e situações diárias, assim como
seus questionamentos, inseguranças, interrogações a respeito da existência humana e seus
conflitos cotidianos. Já na segunda parte do livro a autora nos apresenta a personagem Joana
em sua fase adulta repleta de questionamos, insatisfações e meditações altamente reflexivas a
cerca do seu cotidiano do mundo adulto e patriarcal.
É mister frisar a similaridade e estreitamento das técnicas abordadas e apresentadas
pela escritora Clarice Lispector com as da Virgínia Woolf e do James Joyce, quanto a
densidade psicológica empregada na narrativa. Apresenta, para a época, com sua nova
expressão verbal, a estreante aproximara-se, também, dos grandes transgressores, da até então
rotina literária, Mário de Andrade, com Macunaíma, e Oswald de Andrade, com Memórias de
João Miramar, onde obtiveram êxito ao expandir o domínio de palavras sobre regiões
complexas e inexprimíveis, ou seja, fazer ficção a partir do conhecimento do mundo e das
ideias.
A partir desse âmago mimético são construídos vários romances e contos da escritora
Clarice Lispector, sendo a experiência interior o seu primeiro plano, e mais intenso, de arte e
Nas fronteiras da linguagem ǀ 356
criação literária fatores fundamentais para o estudo proposto em questão, visto que o romance
Perto do Coração Selvagem acentua-se, generosamente, pelo viés introspectivo-reflexivo.
Clarice Lispector é indiscutivelmente uma das escritoras mais relevantes da Geração
de 45 no Brasil. Geração essa que despontou na poesia representada na obra de João Cabral de
Melo Neto, quando o seu processo de criação buscou “lapidar a palavra”, buscando a
expressão exata ao fazer do poema um exercício de denúncia das agruras sociais, a exemplo
de A educação pela pedra.
Além da poesia, a produção da prosa no período ocorreu de forma extremamente
fecunda, tendo como representantes Clarice Lispector e Lygia Fagundes Teles com uma densa
narrativa psicológica ao sondarem o mais íntimo das personagens, vasculhando as
profundezas da mente humana e suas angústias, medos e sentimentos. Ainda nesse período,
outro expoente na prosa foi representado pela reinvenção da linguagem, que mesmo sua
narrativa sendo ambientada no esmo do espaço do Sertão, desponta pelo exemplo de
universalismo das temáticas abordadas.
Possuidora de uma vasta e rica obra literária com características marcantes,
personagens densos e inadaptados ao mundo. Lispector nos apresenta uma escrita
completamente afastada das técnicas do romance tradicional. Promoveu a quebra da fronteira
entre a voz da narradora e dos personagens, construindo assim narrativas interiorizadas,
introspectivas. Com uma personalidade demasiadamente singular e intrigante, reconhecia o
valor do mistério e do silêncio. Dessa maneira, com sua áurea inatingível tentava
insistentemente compreender e traduzir a alma humana.
Na narrativa Perto do coração selvagem, o objeto do nosso atual estudo, a escritora
nos expõe uma personagem e uma alta densidade psicológica, demonstrando-nos fluxos de
consciência, e inquietações de sua vida interior, ou seja, os conflitos de natureza psicológica.
Notamos uma narrativa que oras mergulha no passado, em outros momentos no presente,
partindo sempre do fio condutor de sua memória.
Desse modo, notamos que a estreante inova ao apresentar uma escrita emergida à alta
densidade psicológica e ao arquitetá-la a subjetividade com tamanha maestria. É interessante
observar na narrativa Perto do coração selvagem mediante a ótica do professor Benedito
Nunes que:
[...] na obra de estreia de Clarice Lispector, acima de leve trama que ainda
acompanha uma ação romanesca já francamente interiorizada, a rede dos “pequenos
incidentes separados” que Virginia Wolf tanto valorizou e que fazem da sua maneira
de narrar uma convergência de momentos de vida vários e dispersos. Ora, o que liga
o romance de Clarice Lispector a esses autores é menos uma técnica ou
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 357
procedimento particular do que os processos comuns – o monólogo interior, a
digressão, a fragmentação dos episódios -, que sintonizam com o modo de apreensão
artística da realidade na ficção moderna, cujo centro mimétrico é a consciência
individual enquanto corrente de estados ou de vivências. (NUNES, 1995, p.13)
Notamos, então, que na referida obra uma necessidade intensa de investigar as
camadas mais densas da consciência e da inconsciência humana na procura, talvez, de
compreender o sentido da existência. Percebemos uma significativa proximidade dessa
narrativa com os estudos junguianos, visto que a ficcionista tenta dissecar a alma humana,
assim como, os conflitos mais íntimos.
Para a teoria junguiana tanto a palavra quanto a fala podem expressar o que se deseja
comunicar, visto que a linguagem é repleta de símbolos que muitas vezes são associados a
sinais e imagens que não são necessariamente descritivos. Para Jung:
O que chamamos símbolo é um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos
pode ser familiar na vida cotidiana, embora possua conotações especiais além do seu
significado evidente e convencional. Implica numa coisa vaga, desconhecida ou
oculta para nós. (JUNG, 2008, p.18)
Dessa maneira, a palavra, linguagem ou uma imagem é simbólica e implicará, segundo
as teorias junguianas, significados muito além dos imediatos. Logo, observamos que quando a
mente explora um símbolo ela, segundo Jung “é conduzida a ideias que estão fora do alcance
de nossa razão”.
Desse modo, através de uma aparente linguagem simples, a escritora mergulha no
amago do ser humano, mais precisamente da personagem Joana, revelando assim uma
permanente preocupação em alcançar a verdade escondida na aparente simplicidade das
palavras. É relevante verificar que na obra ficcional Perto do coração selvagem, acontece um
discurso direto alternado ao indireto, em inúmeros trechos, sobretudo na parte final do
romance, transformando-o constantemente em um monólogo onde a personagem ficcional
busca o autoconhecimento.
Observa-se a significativa e relevante contribuição da obra de Clarice Lispector na
literatura, sobretudo na produção de romances introspectivos, raridade entre nossa produção
literária. Grande exemplo dessa produção literária dar-se-á através da obra Perto do coração
selvagem, onde solicitará do leitor um preparo e bom conhecimento psicológico, já que em
um primeiro contato com a obra, observamos que a mesma causa certo estranhamento e
dificuldade na compreensão. Superada essa primeira etapa, é possível conhecer uma escrita
indefinível, uma mistura de prosa, confissão, discursos e reflexões internas.
Para Antônio Candido, a obra Perto do coração selvagem é:
Nas fronteiras da linguagem ǀ 358
“[...] uma tentativa impressionante para levar nossa língua canhestra a domínios
pouco explorados, forçando-a a adaptar-se a um pensamento cheio de mistério, para
o qual sentimos que a ficção não é um exercício ou uma aventura afetiva, mas um
instrumento real do espírito, capaz de nos fazer penetrar nos labirintos mais
retorcidos da mente.” (CÂNDIDO, 1970, p.126)
Desse modo, e a partir da leitura, e consequente reflexão a respeito da observação de
Antônio Candido, notamos que após esse âmago mimético são construídos vários romances e
tantos outros contos da escritora Clarice Lispector, sendo a experiência interior o seu primeiro
plano de arte e criação literária.
A prosa é bastante densa e discorre a partir da experiência interior da personagem
Joana que ainda menina é muito inquieta e questionadora, e enquanto mulher se apresenta no
decorrer da trama uma pessoa confusa e indecisa. Encontramos, também, indiscutivelmente, a
minúcia das descrições das múltiplas experiências psíquicas e de uma constante oscilação e
modificação interior uma tentativa constante de equilíbrio entre o ego e o “si-mesmo”. Porém,
para Jung “não importa até onde o homem estenda os seus sentidos, sempre haverá um limite
à sua percepção consciente”.
Dessa maneira, Jung nos apresenta as dificuldades encontradas pela mente humana
para obter a profunda percepção dessa parte obscura, não tão aparente, que é o nosso
inconsciente. Assim, notamos uma Joana perdida em um labirinto de memórias e autoanalise
em busca sempre o equilíbrio, a compreensão de suas atitudes e o reflexo delas em si mesma e
no outro.
Percebemos, dessa maneira, que a personagem transcende do plano psicológico para o
metafísico investigando e refletindo sobre a sua verdadeira essência.
Isso não é matéria de fácil compreensão, mas é preciso entendê-la se quisermos
conhecer mais a respeito da mente humana. O homem, como podemos perceber ao
refletirmos um instante, numa percebe plenamente uma coisa ou a entende por
completo. Ele pode ver, ouvir, tocar e provar. Mas a que distancia pode ser, quão
acuramente consegue ouvir, o quando lhe significa aquilo em que toca e o que
prova, tudo isso depende do numero e da capacidade dos seus sentidos. (JUNG,
2008. p.21)
Assim, observamos nítida e claramente que a percepção do ser humano limita-se
diretamente ao mundo à sua volta e às experiências adquiridas ao longo de sua trajetória.
Joana é definitivamente umas das personagens mais sensitivas e introspectivas da Clarice, e é
interessante observar que de modo geral, a noção de subjetividade privada, embasada na
distinção moderna entre público e privado, foi adulterada nos últimos quatro séculos, na
passagem do Renascentismo para a modernidade.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 359
No entanto, o sujeito da modernidade, centrado e soberano, já que se vê questionado
de certo modo desde sua constituição [...] Não é por acaso que justamente aí surge a
ideia e um sujeito descentrado. É o momento da conceitualização de outra
concepção de aparelho psíquico com Freud, que irá operar uma subversão do tópos
subjetivo, calcado na tríade eu/consciência/racionalidade. (HOMEM, 2012, p.67)
O sujeito moderno, como acontece com a personagem Joana, compõe-se nessa
passagem devido à própria magnitude da crise nas estruturas vigentes, sendo o Renascimento
sua inevitável ampliação de horizontes, onde propicia a sensação de perda de referências,
anteriormente revestidas na estruturação hierarquizada e divinizada da realidade.
No desenrolar da narrativa, mais precisamente, desde o princípio dela, percebemos que
o desejo “inconsciente” de encontrar a sua personalidade a fim de domar e, por fim, se libertar
do coração selvagem preenche por completo o ser de Joana, situação que se converteu em um
problema real ao ser intensificado na fase adulta. Visto que essa personalidade não fora
cultivada, e sim negligenciada inteiramente na infância, dificultado, assim, o seu
desenvolvimento, onde percebemos, segundo Jung, que:
“Ao chegar à idade escolar, a criança começa a fase de estruturação de seu ego e de
adaptação ao mundo exterior. Essa fase traz em geral um bom número de choques e
de embates dolorosos. Ao mesmo tempo, algumas crianças nessa época começaram
a sentir-se muito diferentes das outras, esse sentimento de singularidade acarreta
uma certa tristeza, que faz parte da solidão de muitos jovens. As imperfeições do
mundo e o mal que existe dentro e fora de nós, tornam-se problemas conscientes; a
criança precisa enfrentar impulsos interiores prementes (e ainda não
compreendidos), além das exigências do mundo exterior”. (JUNG, 2008, p. 218)
Notamos os conflitos de compreensão do meio social e as inquietações intimas da
personagem na narrativa ficcional em vários momentos. O mais significativo, dentre eles,
acontece na cena em que Joana, ainda menina, questiona a sua professora acerca do que se
conseguiria quando se fica feliz. “O que é que se consegue quando se fica feliz?” (Perto do
coração selvagem, p.29). A atitude deixa a professora totalmente desconcertada em classe e
sem respostas para aquela pequena garota. Observamos, dessa maneira, que “a personalidade
já existe em germe na criança, mas só se desenvolverá aos poucos por meio da vida e no
decurso da vida. Sem determinação, inteireza e maturidade não há personalidade.” (JUNG,
1993, p. 176).
Percebemos assim, a personagem Joana pré-disposta a uma determinada situação
cotidiana onde o universo da condição feminina de mulher e esposa, da relação do “eu” e o
“outro”, das falsidades humanas e da própria linguagem, sendo esta a única forma de
comunicação com o mundo como posturas constantemente questionadas. A realidade da
Nas fronteiras da linguagem ǀ 360
personagem é regida por meio de sua consciência individual, que originam monólogos
interiores, digressões e algumas fragmentações de episódios. Notamos no fragmento a seguir:
É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer.
Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não
exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo.
(Perto do coração selvagem, 1998, p. 21)
É mister salientar que nota-se claramente dois fragmentos do livro Perto do coração
selvagem, tanto em Joana Criança, quanto na adulta a presença real do arquétipo da mulher
selvagem, definido Pinkola da seguinte maneira:
Quando a mulher consulta sua própria natureza dual, ela está cumprindo o processo
de olhar, examinar e sondar o material que está para além do consciente, sendo,
portanto, muitas vezes surpreendente no seu conteúdo e no seu tratamento, e quase
sempre de imenso valor. (PINKOLA, 1994, p 164)
Outro fragmento teórico da psicóloga juguiana Clarissa Pinkola que reforçaria a
presença real do arquétipo da mulher selvagem desde os primeiros estágios da infância da
personagem Joana na narrativa ficcional clariciana, segue:
Qualquer um que seja íntimo de uma Mulher Selvagem está de fato na presença de
duas mulheres: um ser exterior e uma criatura interior, uma que habita o mundo
terreno, e outra que vive num mundo não tão previsível. O ser exterior vive à luz do
dia e é observado com facilidade. Muitas vezes é uma pessoa pragmática, aculturada
e muito humana. Já a criatura costuma chegar à superfície vindo de muito longe e
com frequência aparece e desaparece rapidamente, embora sempre deixe uma
sensação: algo de surpreendente, original e sagaz. (PINKOLA, 1994, p 164)
É neste panorama de dualidades que encontramos Joana, personagem ficcional, em
constante conflito buscando constantemente um realinhamento do ego com a sua totalidade do
self em uma retomada do processo de individuação. Citado por Jung da seguinte maneira:
O verdadeiro processo de individuação – isto é, a harmonização do consciente com o
nosso próprio centro interior (o núcleo psíquico) ou self – em geral começa
infligindo uma lesão à personalidade, acompanhada do consequente sofrimento.
Esse choque inicial é uma espécie de “apelo”, apesar de nem sempre ser reconhecido
como tal. (JUNG, 2008, p 219)
Na segunda metade do livro, mais precisamente no final da narrativa, Joana mitigada
de sentimentos é arrastada ao adultério onde busca, neste momento, o autoconhecimento e o
encontro com o seu self, promove, assim, um envolvimento em vários questionamentos acerca
da vida e da morte, do bem e do mal, do amor e ódio. Neste momento final Joana obtém êxito
ao culminar o processo de individuação, sendo ele, para Jung: O homem só se torna um ser
integrado, tranquilo e feliz quando (e só então) o seu processo de individuação está realizado.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 361
Quando consciente e inconsciente aprender a conviver em paz completando-se um ao outro.
(JUNG, 2008, p 213)
A sincronização ocorrida através de tais eventos psíquicos internos e externos onde o
arquétipo se aproxima e ocorrem momentos de passagens, mudanças, transições, sofrimentos,
dificuldades, provocam em Joana o renascimento e florescimento de si mesma “ela própria
nascendo sobre a terra asfixiada, dividindo-se em milhares de partículas vivas, plenas de seu
pensamento, de sua força, de sua inconsciência... Atravessando a limpidez sem névoas
lentamente, andando, voando...” (Perto do Coração Selvagem, p.192).
É neste momento em que a personagem Joana se desfaz de todas as cascas do passado
revigorando-se mediante suas dores, onde se fortifica utilizando os detritos deixados o longo
do caminho como adubo para que renasça como uma árvore frondosa. Para Cirlot, no
dicionário dos símbolos (1984, p. 99) “a árvore representa, no sentido mais amplo, a vida do
cosmo, sua densidade, crescimento, proliferação, geração e regeneração”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta perspectiva do universo do imaginário coletivo estabeleceremos um diálogo
entre o objeto de pesquisa e a problemática proposta, onde será possível vislumbrar na
narrativa o arquétipo da mulher selvagem a fim de esculpir da melhor maneira as questões da
alma feminina. Desse modo, é possível verificar a significativa importância do estudo para o
despertar da psique e do seu conhecimento, estes que norteiam às mulheres a interagir em
sociedade, logo o seu retorno ao introspectivo.
É relevante observar que se torna presente no romance Perto do Coração Selvagem, o
autoconhecimento sendo este o caminho para promover as necessárias quebras de padrões
comportamentais que embaraçam o processo de individuação da personagem fictícia Joana.
Notamos que o caminho de Joana dentro da narrativa, segue uma dinâmica,
aparentemente, descontinuada e desconexa, absolutamente assimétrico e incoerente sempre
em busca do seu Self.
Dessa maneira é notável e perceptível que o estudo e analise da obra Perto do coração
selvagem pela vertente junguiana associada à mitocrítica abrirá uma nova senda para a nossa
literatura, consoante a mimese centrada a consciência individual como maneira artística da
realidade. Assim, consideramos que o estudo mais aprofundado da referida obra contribuirá
Nas fronteiras da linguagem ǀ 362
para ampliar a compreensão no campo das narrativas introspectivas da literatura associadas
aos recursos psicanalíticos, mitológicos e imaginários.
REFERÊNCIAS
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Cidades, 1970.
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BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. Lisboa: Editorial Estúdios Cor, 1937.
DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix, 1988.
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da mulher selvagem. Tradução de Waldés Barcelos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
HOMEM, Maria Lucia. No limiar do silencia e da letra: traços da autoria feminina em
Clarice Lispector. São Paulo: Boitempo; Edusp, 2012.
JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2009.
______.Estudos psiquiátricos. Tradução: Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis, RJ: Vozes,
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______.Psicologia do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2008.
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2010.
LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
MIELIENTINSKI, E.M. A poética do mito. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.
NUNES, Benedito. O drama da linguagem: Uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo:
Editora Ática, 1995.
SHARP, D. Léxico Junguiano: Um Manual de Termos e Conceitos. 5. ed. São Paulo: Editora
Cultrix, 1997.
TURCHI, Maria Zaira. Literatura e antropologia do imaginário. Brasília: Universidade de
Brasília (UnB), 2003.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 363
O USO DOS SINAIS DE PONTUAÇÃO COMO MARCAS
DISCURSIVAS [Voltar para Sumário]
Antonio Cesar da Silva (UFAL/UNEAL)1
Cleide Calheiros da Silva (UFAL/IFAL)2
1. Língua, linguagem e gramática — perspectivas do ensino de língua escrita
As discussões em torno do ensino de língua materna, especificamente sobre as
estratégias e os métodos adequados que devem ser utilizados nos processos de ensino-
aprendizagem de Língua Portuguesa (LP), têm ocupado o centro das reflexões linguísticas nas
últimas décadas no Brasil. Um recorte pertinente dessa discussão é constituído pelas questões
que tratam dos aspectos do uso de recursos de língua escrita como forma de expressão da
linguagem.
As reflexões começam, por exemplo, quando se fazem pergunats tais como: Que
gramática ensinar? Ensinar gramática é o mesmo que ensinar língua? Aspectos da oralidade
devem ser tomados como temas de aula de LP? Como trabalhar fala, leitura e produção de
texto em sala de aula? Todas essas perguntas começaram a ser respondidas a partir da
elaboração e divulgação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s), que, entre muitas
outras coisas, apontam os caminhos que o ensino de LP deve percorrer na educação básica
para evitar o “fracasso” do ensino e da aprendizagem da leitura e da escrita. A distinção entre
escrita alfabética e linguagem escrita é o centro de uma aprendizagem significativa da escrita,
quer do modus scripsendi (a maneira como se processa a escrita), quer do modus operandi (a
maneira como se configura o escrito).
1 Mestrando pelo programa PROFLETRAS – UFAL. Especialista em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira
pela Universidade de São Paulo / Academia Alagoana de Letras (UNICID/AAL). Graduado em Letras pela
Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Professor substituto de Língua Latina na Universidade Federal de
Alagoas (2004 - 2206). Professor de Língua Latina e Língua Portuguesa na Faculdade de Formação de
Professores de Penedo (2003 - 2007). Professor de Língua Latina, Linguística e Língua Portuguesa na
Universidade Estadual de Alagoas (2009 - 2015). Professor do quadro de professores da Secretaria Estadual de
Educação de Alagoas (SEED) e do quadro da Secretaria Municipal de Educação de Maceió (SEMED). 2 Mestranda em Educação Brasileira – PPGE/CEDU/UFAL – Linha e Grupo de Pesquisa: Educação e
Linguagem. Professora do Instituto Federal de Alagoas (IFAL).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 364
A pertinente diferença entre as habilidades de grafar o texto escrito e a competência
para redigi-lo aponta as distinções entres esses dois processos que desfazem a crença de que a
capacidade de escrever esteja relacionada ao domínio do processo alfabético. É sobre essa
distinção que os PCN’s fundamentam-se, conforme o texto abaixo.
A compreensão atual da relação entre a aquisição das capacidades de redigir e grafar
rompe com a crença arraigada de que o domínio do bê-á-bá seja pré-requisito para o
início do ensino e nos mostra que esses dois processos de aprendizagem podem e
devem ocorrer de forma simultânea. Um diz respeito à aprendizagem de um
conhecimento de natureza notacional: a escrita alfabética; o outro se refere à
aprendizagem da linguagem que se usa para escrever. (PCN, 1997, p. 27).
No entanto, para essa discussão, a perspectiva de reflexão sobre a atividade de
escrever orienta-se pela análise das competências e domínios do código escrito, visto
enquanto resultado de processos que se fixam por usos circunscritos no tempo como, por
exemplo, a passagem de uma ortografia mais etimológica para uma mais fonêmica. As
reflexões também são guiadas pela análise do código escrito enquanto resultado de
convenções que justificam e orientam, por exemplo, a utilização de notações léxicas e de
sinais de pontuação.
Nesse sentido, as dificuldades em torno do ensino-aprendizagem do código escrito
apontam sempre na direção de fazer com que os alunos compreendam, durante todo o
processo de aquisição e desenvolvimento da escrita, que escrever requer habilidades e
competências específicas e distintas das que se utilizam na organização e elaboração da fala.
Por essa razão, ao longo do processo de aprendizagem, escreventes devem entender que a
escrita é “um espaço de convenções, um artefato elaborado de maneira consciente e, por isso
mesmo, submetido a um dirigismo deliberado”. (MARTIN, 2006, p. 53). O estudo das
manifestações de língua escrita, desconsiderando, no entanto, situações concretas de
interação, leva à abordagem de aspectos tangenciais do papel e da função da língua escrita.
2. Língua e linguagem — concepções da gramática normativa
Quando se fala no ensino de gramática, ou quando se pensa em obras de referência no
tratamento e apresentação de “regras” e de taxonomias gramaticais, tem-se em mente autores
como Napoleão Mendes de Almeida com sua Gramática Metódica da Língua Portuguesa,
que em 2009 chegou à 46º edição com mais de meio milhão de exemplares vendidos. Celso
Cunha & Cintra são nomes também bastante lembrados pela obra Nova Gramática do
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 365
Português Contemporâneo. Não menos relevante é Rocha Lima com a Gramática Normativa
da Língua Portuguesa, inclusive, importante personagem, junto com Celso Cunha, na
formulação do anteprojeto de simplificação e unificação da Nomenclatura Gramatical
Brasileira (1958).
Essa lista de autores de referência, no que diz respeito à elaboração de compêndios
gramaticais, encerra-se com Evanildo Bechara, sem dúvida, o mais conhecido
contemporaneamente entre estudantes de LP por sua Moderna Gramática Portuguesa, que em
2009 teve publicada sua 37º edição. Há muitos outros autores de compêndios gramaticais, os
citados aqui, no entanto, são representativos e fundamentais para as reflexões que se
pretendem apresentar.
Num primeiro momento, o interesse é analisar e refletir sobre as concepções de língua
e linguagem que são utilizadas por esses autores em suas gramáticas. A importância dessas
considerações para este trabalho reside no fato de serem essas obras — basicamente, mas não
exclusivamente — responsáveis pelos substratos conceituais encontrados nos materiais
didáticos de língua portuguesa do ensino básico (fundamental e médio). As concepções
encontradas nessas obras dizem muito sobre a forma de perceber a relação entre língua e
linguagem que fundamentam as definições, as classificações e as tipologias apresentadas no
estudo de LP nas escolas brasileiras. Na Gramática Metódica da Língua Portuguesa, por
exemplo, Almeida (1994) categoricamente explicita que a linguagem constitui-se como “dom
comum de todos os homens, nem todos eles se comunicam pelas mesmas palavras”. Essa é
uma definição que se insere dentro de uma perspectiva de linguagem como um sistema de
signos abstratos cuja função é a manifestação do pensamento e que deve encontrar respaldo
na realidade. Segundo Almeida,
Como todos os outros animais, nós agimos; mas, à diferença deles, manifestamos e
externamos nossa ação, mediante o dom que nos é próprio, a linguagem, que outra
coisa não é senão a propriedade que temos de, por meio de palavras, comunicar-nos
entre nós, exteriorizando o nosso pensamento (...). (ALMEIDA 1994, p. 17).
Essa concepção de linguagem influencia, consequentemente, toda a perspectiva de
ensino-aprendizagem de língua e de gramática, que, não obstante, passa a ser vista,
hermeticamente, como um conjunto de fatos e fenômenos disponibilizado pela própria
“natureza social” na qual o usuário da língua está habitualmente inserido. Nessa mesma base
de concepção, mas já com uma inclinação a ver a língua como um fenômeno social, Cunha &
Cintra definem língua como um sistema de sinais, quando afirma que
Nas fronteiras da linguagem ǀ 366
Língua é um sistema gramatical pertencente a um grupo de indivíduos. Expressão da
consciência de uma coletividade, a LÍNGUA é o meio por que ela concebe o mundo
que a cerca e sobre ele age. Utilização social da faculdade da linguagem, criação da
sociedade, não pode ser imutável; ao contrário, tem de viver em perpétua evolução,
paralela à do organismo social que criou. (CUNHA & CINTRA, 2008, p. 1)
Embora aponte para o aspecto social e mutável da língua, a definição acima
permanece presa à ideia de que a linguagem é um fenômeno de natureza abstrata,
manifestação da consciência: um ser de razão. Essa é uma maneira de perceber a língua —
aspecto concreto da linguagem — como consequência da atividade humana, como
instrumento da razão ou da racionalidade; não como força geradora e constituidora do
conhecimento. De modo geral, as perspectivas que orientam o entendimento de língua(gem)
nos compêndios de gramática, entendem-na como um instrumental periférico que manifesta
analogicamente realidades imateriais: o pensamento. Por essa razão, os manuais desembocam
em apresentações de estruturas fechadas e enquadradas em definições, regras e taxonomias.
Apesar de ter lampejos de uma concepção interacionista, a definição de Cunha &
Cintra aponta para uma relação unilateral do uso da linguagem, em que a mudança que se
verifica na língua é consequência de transformações da sociedade que cria a língua. Não se
afasta dessa percepção, a definição que diz que a “LÍNGUA é um sistema: um conjunto
organizado e opositivo de relações, adotado por determinada sociedade para permitir o
exercício entre os homens” (LIMA, 1992, p. 5).
Esses três autores, que estiveram presentes durante muito anos — direta ou
indiretamente — na formação escolar dos estudante de LP, revelam-se presos a uma
concepção de língua(gem) estruturalista, que é, por sua vez, um desdobramento da ideia de
sistema (um todo organizado) que se presta à análise. Em consonância com essa perspectiva,
Bechara em sua Moderna Gramática Portuguesa identifica a natureza da linguagem como
“sistema de signos simbólicos”; a sua percepção é mais significativa porque ele representa um
gramático contemporâneo e profundamente inserido nas questões e discussões promovidas
pelos estudos linguísticos das últimas décadas.
“Entende-se por linguagem qualquer sistema de signos simbólicos empregados na
intercomunicação social para expressar e comunicar ideias e sentimentos, isto é, conteúdos da
consciência”. (BECHARA, 2003, p. 28). Embora Bechara traga a ideia de intercomunicação
social em sua definição — nesse sentido, percebe-se a influência de perspectivas linguísticas
—, ele enxerga a língua como um sistema de signo em cuja construção de sentido
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 367
circunscreve-se nos limites das estruturas que são estabilizadas no próprio fenômeno
linguístico.
A pertinência de Bechara, na forma como define a linguagem, evidencia-se na maneira
como categoriza suas manifestações. Sobre isso, o teórico salienta que “a linguagem,
entendida como atividade humana de falar, apresenta cinco dimensões universais: criatividade
(ou enérgeia), materialidade, semanticidade, alteridade e historicidade”. (Idem). Dessas cinco
categorias, interessa para este trabalho aquilo que Bechara denomina de alteridade, que
consiste em entender que o “significar é originalmente e sempre um ‘ser com outros’, próprio
da natureza político-social do homem, de indivíduos que são homens juntos a outros e, por
exemplo, como falantes e ouvintes, são sempre co-falantes e co-ouvintes” (ibidem). Nesse
posicionamento, pode-se enxergar uma postura, em relação à natureza da linguagem, mais
próxima de uma perspectiva interacionista, que concebe a natureza da linguagem como
resultante das práticas sociais de seus usuários.
Embora Bechara não chegue a tanto, demonstra reconhecer a presença das relações
sociointeracionistas nos fenômenos da linguagem. Quanto a não ir além — ao cerne da
abordagem interacionista ou a de qualquer outra que compreenda a natureza da linguagem per
se —, percebe-se que não vai porque não parece ser seu objetivo.
3. A escrita — espaço de convenções
Uma abordagem moderna do estudo da linguagem na direção da modalidade escrita da
língua precisa partir do entendimento de que esta é resultante de convenções, mas não no
sentido de ela ser resultado de elaborações arbitrárias sem causas e motivações linguísticas
pertinentes e identificadoras da própria natureza da linguagem. De fato, na escrita encontram-
se manifestações da realidade social em que ela se insere e que contribui para a mútua
formação e transformação na relação escrita-sociedade-escrita.
Esse processo de atualização é possível porque a escrita constitui-se de modo
autônomo e consistente — enquanto código com natureza particular e individualizante —
como artefato social e justifica-se in tempore (no momento do uso). Ela é artifício (arte +
ofício), que imita o natural, isto é, algo resultante de uma elaboração humana motivada por
necessidades sociais, mas que tem sua identidade, sua essência, que a distingue
substancialmente daquela que é imitada. É óbvio que não se pode negar a anterioridade da
modalidade oral, “o código gráfico é uma criação em segundo nível (...).”. (MARTIN, 2006,
p. 53). Ainda segundo Martin,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 368
“O código gráfico é também um artefato pelo uso que dele se faz. Onde o oral flui
de maneira natural (com maior ou menor falta de habilidade...), o escrito solicita
constantemente a função epiliguística. No momento em que é produzido, o sinal
gráfico é logo percebido como um sinal, como um espaço de correções
(...)”.(MARTIN, 2006, p. 54).
Nesse sentido, a escrita aproxima-se da fala como uma modalidade de língua com vida
própria, mas se submetendo aos mais diversos processos de estruturação, transformação e
normatização. A aproximação entre o oral e o escrito não se dá enquanto este é
desdobramento daquele, as distinções entre escrita e fala permitem dizer que o código gráfico
não é uma transcrição do oral, as distinções são tão verdadeiras e diversas que permitem
“encarar a possibilidade de tornar autônomos os dois usos, como duas línguas diferentes que
partilham o mesmo nome (...). Uma tal posição tem a vantagem de romper com a ingenuidade
da ideia, de pura transcrição” (ACHARD, 2006, p. 65).
Naturalmente que falar em normatização, ao tratar de oralidade, é combater em
batalhas vencidas, uma vez que é consenso que a fala não se presta à regularizações ou
normatizações, mas a perspectiva é entendê-las como princípios linguísticos que mantêm,
conservam e identificam a natureza ôntica da língua enquanto manifestação do idioma. “É,
assim, lícito reportá-los [domínios oral e escrito] a uma mesma norma abstrata, isto é,
considerá-los como dois subdomínios de uma mesma língua” (ibidem).
A essência distintiva requerida pela escrita em relação à fala fundamenta-se na
percepção de que a escrita não é uma notação fonológica, não se constitui, necessariamente,
de fonogramas. As diferenças entre escrita e fala dão-se, sobretudo, nos níveis
morfossintáticos e prosódicos; em que as estratégias da escrita são mais prolixas, no caso da
morfossintaxe; absolutamente particular (sui generis) no caso da prosódia, uma vez que a
expressão escrita traz a presença de marcas de pontuação, que só existe na expressão escrita.
Isso possibilita deduzir que a escrita é uma outra língua substancialmente diferente da fala.
Para Achard,
“O fosso [entre escrita e fala] torna-se um rio quando nos interessamos pela
organização geral da cadeia significante. Como no escrito, a organização em frases
tem seu modo de fechamento, e como vem acompanhada de uma organização em
sintagmas bem delimitados, é mais do que uma norma externa. No oral, pelo
contrário, uma tal organização quase só pode ser observada em circunstâncias de
escrito oralizado”. (ACHARD, 2006, p. 66).
Pode-se ir mais longe nessa reflexão, se se entender que a formação do constructo
gramatical prende-se, essencialmente, à natureza da língua escrita, isto é, quando se fala em
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 369
normatização, faz-se referência à exteriorização ou à materialização de princípios linguísticos
da língua escrita. O transbordamento para o domínio da fala dá-se por processos ou
procedimentos análogos. Nesse sentido, “há, portanto, um evidente interesse em abordar o
estudo da língua oral abstendo-se de fazer referência a uma tradição gramatical que (...), em
linguística, se apresenta mais como preconceito do que como experiência acumulada”
(ibidem).
“Experiência acumulada” é o que se verifica quando se aborda, por exemplo, o
ensino-aprendizagem de LP a partir do conhecimento sistemático dos princípios linguísticos e
dos aspectos estruturais da língua. Quando alguém, ao dizer (ou escrever) a palavra “calção”,
faz referência a algo específico que, objetivamente, não tem relação com a ideia contida na
palavra “calça” e, em outra situação, usa o sufixo –ão para apenas adicionar uma noção
acidental (flexão), apontando o aumentativo (extensão) de um mesmo referencial semântico
como, por exemplo, na palavra “dedão”; evidencia-se a manifestação de domínios linguísticos
inerentes à estrutura linguística e assimilados naturalmente pelo usuário da língua.
A diferença de sentido e de aplicabilidade do elemento mórfico (o sufixo –ão), antes
de ser apresentada como um fenômeno resultante de relações normativas da língua, deve ser
refletida como um processo natural de um conhecimento adquirido com a prática e com o uso
social da linguagem. Num segundo momento, em situações específicas e especiais de
reflexão, podem-se estabelecer relações significativas e distinguidoras de seus usos e suas
aplicabilidades. Isto é, dizer que, em alguns casos, os sufixos podem promover um processo
de derivação — quando imprimem mudança de significado —, ou promover um processo de
flexão apenas, se conservar o núcleo semântico da palavra.
Explicitar esse processo, considerando os princípios linguísticos, não é normatizar o
uso dos sufixos, é, antes de tudo, descrever o funcionamento de princípios identificadores dos
fenômenos linguísticos e de efeitos fonológicos, morfológicos, sintáticos ou semânticos que
eles promovem. A escrita é um espaço de convenções, isto é, um ambiente de comunicação
em que os fenômenos linguísticos materializam-se de forma regulada por relações
sistemáticas e significativas que são aceitas, compartilhadas e, quando necessário,
transformadas.
A escrita vista como manifestação de língua distinta da fala gera inquietações
linguísticas, pois desfaz a perspectiva de que escrita e fala formem um continuum com as
mesmas possibilidades de formulação linguística e de manifestação social. Suas diferenças,
porém, não lhes conferem primazia nem maior ou menor grau de importância, pois “se há
alguma anterioridade entre fala e escrita isso se deve a aspectos cronológicos”.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 370
(MARCUSCHI, 2005, p. 26). No entanto, se fossem um continuum, os processos de aquisição
e de desenvolvimento das habilidades e competências que lhes circundam deveriam
manifestar-se de forma semelhante, isto é, a aquisição da escrita, por exemplo, deveria ter
qualquer coisa de espontâneo e, de alguma forma, apresentar-se como uma extensão da
aquisição e do desenvolvimento da fala.
Como proposta de equacionar o problema em torno da compreensão da escrita como
uma forma da língua essencialmente distinta da fala, pode-se ponderar e refletir a questão a
partir daquilo que Catach (2006) chama de plurissistemas, em que, considerando os conceitos
saussurianos de signo – significado – significante, propõe-se analisar se, na passagem da fala
para a escrita, verificam-se mudanças referencias (de significado), acidentais (de significante),
ou sígnicas (de essencialidade) —, ou tudo isso junto. Nesse sentido, vale a pena pensar
sobre que competências um falante adquire e/ou desenvolve ao se tornar um escrevente.
4. Marcas de pontuação — singularidade da escrita
Tradicionalmente, estabelece-se uma correspondência direta entre os fenômenos da
fala e suas representações gráficas na escrita. Essa necessidade sempre esteve presente porque
sempre se achou que para “escrever ou recitar, declamar ou cantar era preciso observar o
silêncio, que separa as expressões que formam um discurso; bem como, o tempo de respiração
durante a leitura”. (GRIMAREST apud CATACH, 1996, p. 35). No que diz respeito à
utilização dos sinais de pontuação, essa transposição de valores significativos da fala para a
expressão escrita é imperativa, porque se entende que “conexo com o problema ortográfico é
o da pontuação”. (HOUAISS, 1983, p. 90). Pode-se ir muito além dessa perspectiva
normativa no que diz respeito aos sinais de pontuação, pois as marcas de pontuação são aquilo
que há de mais singular na modalidade escrita, pensar em pontuação é, necessariamente, fazer
referência à expressão escrita.
5. A constituição das marcas de pontuação — do textual ao discursivo
Não se questiona que a relação e a influência da fala na estruturação e organização da
escrita devem-se, ao menos a princípio, à própria história de formação da escrita que ganhou
existência na perspectiva de ser falada, ou seja, originariamente os textos escritos eram
produzidos para serem lidos em voz alta.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 371
Vale lembrar que os gregos — sistematizadores da escrita — não conheciam a leitura
silenciosa, “e o leitor de um texto falava as palavras em voz alta, mesmo quando estava lendo
sozinho”. (TRASK, 2008, p. 232). Em razão disso, durante o processo de formação da escrita
grega, passou-se a acrescentar marcas (sinais) que fizessem o leitor lembrar (no momento da
leitura) onde se deveria fazer uma pausa ou elevar o tom de voz.
Esse aspecto histórico é uma das razões que fizeram com que a escrita sempre fosse
vista como uma materialização de aspectos da fala sem nenhum sentido lógico-gramatical,
indicando que a pontuação não passava “meramente de uma transmutação histórica de
aspectos oriundos da fala que se teriam, sistematicamente, reanalisado e recodificado,
dissociando-se de sua base generativa”. (MACHADO FILHO, 2004, p. 24).
Fica claro que as marcas de pontuação — até como parte do processo de formação e
desenvolvimento da escrita — caracterizam-se como uma tentativa de representação de
aspectos da fala. Mas “esse pressuposto teórico, além de bastante questionável, corre o risco
de enganar, pois deixa acreditar que o escrito compartilha parâmetros similares com o oral,
quando não parâmetros do próprio oral”. (DAHLET, 2006, p.24). A partir dessa observação, é
preciso considerar que o uso de sinais de pontuação tem motivações próprias e fundamentos
fincados na estruturação de aspectos textuais e/ou discursivos da própria escrita.
Modernamente, pode-se dizer que a existência das marcas de pontuação é de natureza
sintática e exprime também aspectos melódicos e entoacionais, enxergá-las assim não
interfere na sua legitimidade, embora esses aspectos não possam ser utilizados como critérios
absolutos de aplicabilidade.
Une unité syntaxique doit être comprise comme associant à la fois une suite de mots
(aspect constructif), un message (aspect actuel), une substance et une forme
intonatives (mélodie expressive e aspect intonatif) et un sens (contenu de message,
résultant de l’ensemble des données précédents). (CATACH, 1996, p. 48)
No entanto, o sistema de pontuação não pode ser visto apenas a partir da sintaxe da
frase e das relações que existem entre termos ou palavras de uma frase, muito menos pelos
efeito imprimem ao processo de leitura. A pontuação, que se aplica e a um texto, justifica-se
quando este é tomado como um todo, como uma grande unidade de sentidos e intenções. As
expressões (frases e orações, períodos e parágrafos) mantêm uma relação de imbricação, por
isso se dizem respeito e se articulam de forma discursiva.
Infelizmente, essa compreensão das marcas de pontuação — como verdadeiros signos
linguísticos autônomos — não perpassa as abordagens em aulas de LP e o que se vê, de modo
Nas fronteiras da linguagem ǀ 372
geral, é a apresentação desses sinais como algo de relações superficiais e essencialmente
convencionais que servem apenas para atender à elaboração sintática e para orientar a leitura.
O estudo e o ensino das marcas de pontuação, sobretudo, no ensino fundamental — período
em que o processo de aquisição e desenvolvimento da escrita é mais intenso e significativo —
precisam ser introduzidos de forma, metodologicamente, mais elaborada e relacionada com
seus usos concretos. Nesse sentido, faz necessário refletir sobre as formas e os métodos de
abordagem que possibilitem — respeitando-se as fases de desenvolvimento cognitivo dos
estudantes — uma aprendizagem das marcas de pontuação que considere o que é pertinente
na construção dos sentidos do que é escrito (dito).
O que dever ser tomado como objetivo, no que diz respeito ao tratamento dado às
marcas de pontuação, é que elas devem ser vistas — assim como todo signo linguístico
presentes no texto — como recursos preenchidos de sentido e de intencionalidades. Os
estudantes precisam desde cedo serem orientados a compreenderem que as marcas de
pontuação expressam muito mais que delimitações morfossintáticas e orientações ritmo-
melódicas. Como usuários da escrita, os alunos devem ser apresentados à carga comunicativa
inerente aos sinais de pontuação; reconhecendo que algumas, por exemplo, indicam,
necessariamente, intenções discursivas, que sua presença no texto não se justifica (dentro de
um raciocínio lógico-gramatical) por aspectos morfossintáticos e/ou rítmico-melódicos.
Isso é o que deve ser sublinhado quando os alunos (independentemente da fase de
escolaridade) estão diante de marcas de pontuação como as aspas, os parênteses ou os
travessões, que apontam uma intervenção no processo de leitura e, principalmente, de
compreensão daquilo que está sendo dito de outra ordem — sentidos pertencentes à esfera do
discursivo. A potencialidade comunicativa dessas marcas pode ser analisada no exemplo
abaixo, em que se perceberá, claramente, a mudança de postura enunciativa marcada pela
intercalação entre travessões.
No fragmento acima, pode se ter uma demonstração dos princípios de análise
linguística em que se fundamentam as motivações de escrita deste trabalho, que defende,
como forma de organização e de aplicabilidade das marcas de pontuação, a existência de duas
categorias básicas desses sinais: as marcas de pontuação sintáticas e as marcas de pontuação
discursivas. O papel linguístico destas últimas seria promover um “desengate enunciativo”
“A metrópole que menosprezou, sujou e soterrou seus cursos d’água agora quer — e precisa —
recuperá-los” (revista superinteressante, março de 2015, p. 60)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 373
(DAHLET, 2006, p. 51), em que a expressão intercalada manifesta-se claramente ser de outra
ordem discursiva em relação ao que está fora dos travessões.
Uma abordagem de estudo e de ensino das marcas de pontuação, como elemento
constituidor do texto e da textualidade, deve considerá-las sob a perspectiva de suas funções
discursivas, que revelam aspectos importantes na construção de sentido daquilo que está
escrito. Isto é, as marcas de pontuação apresentam funções multifacetadas que, diferentemente
da preocupação inicial de aponta recursos da fala ou aspectos organizacionais da estrutura
textual, intencionam materializar aquilo que não se verbalizar.
Referências
ACHARD, P. A especificidade do escrito é de ordem linguística o discursiva? In: Nina
Catach (Org.). Para uma teoria da língua escrita (coleção múltiplas escritas). São Paulo:
Ática, 2006.
ALMEIDA, Napoleão M. Gramática metódica da língua portuguesa. 39° edição. São Paulo:
Saraiva, 1994.
BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37 º edição rev. e ampl. Rio de
Janeiro: Lucerna, 2003.
CATACH, Nina. La punctuation: histoire et systeme (que sais-je). 2ª ed. Paris: Universitaires
de France, 1994.
CATACH, Nina. 2006.
CUNHA, Celso & CINTRA, Luís F. Lindley. Nova gramática do português contemporâneo.
5ª ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2008.
DAHLET, Véronique. As (man)obras da pontuação: usos e significações. São Paulo:
Associação Editorial Humanitas, 2006.
HOUAISS, Antonio. Elementos de bibliografia. São Paulo: Hucitec, 1983.
ROCHA LIMA, Carlos H. Gramática normativa da língua portuguesa. 31° ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1992.
MACHADO FILHO, Américo V. Lopes. A pontuação em manuscritos medievais
portugueses. Salvador: EDUFBA, 2004.
MARCUSCHI, Luiz A. Da fala para a escrita. São Paulo: Cortez, 2005
MARTIN, R. O escrito como espaço de convenções. In: Nina Catach (Org.). Para uma teoria
da língua escrita (coleção múltiplas escritas). São Paulo: Ática, 2006.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 374
PCNs, 1997. http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro01.pdf > Acesso em: 24 jan. 2015.
TRASK, R. L. Dicionário de linguagem e linguística (tradução ILARI, Rodolfo). 2ª ed. São
Paulo: Contexto, 2008.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 375
O HUMOR INTRANQUILO DE ANDRÉ SANT’ANNA [Voltar para Sumário]
Ari Denisson da Silva (UFAL/IFAL)
Pode haver futuramente quem veja no ano de 2014 algo de emblemático para a história
recente do Brasil. Ao menos se trata de um ano que ensejou diversas expectativas: a
realização em seu solo de uma Copa do Mundo de futebol amplamente contestada — o ano
anterior havia sido fértil em manifestações ferozmente contrárias à sua realização —, eleições
gerais que dariam continuidade a uma era de intensificação dos ânimos ao tratar do tema1.
E eis que entre os meses de março e abril deste mesmo ano o escritor André
Sant’Anna lançava seu mais recente livro de contos, O Brasil é bom. Grande parte da
compilação é composta, em verdade, por textos publicados anteriormente, sob encomenda, em
coletâneas temáticas, com uma ou outra modificação. É o caso, por exemplo, de “Use sempre
camisinha”, que já havia saído na coletânea 35 segredos para chegar a lugar nenhum:
literatura de baixo-ajuda, na qual o gênero que ganhou notoriedade nas mãos de Dale
Carnegie e Augusto Cury é macerado por vários escritores. Segundo o próprio Sant’Anna,
apenas um dos textos constantes de O Brasil é bom não saiu sobre encomenda2.
Nosso interesse em pesquisar as reflexões sobre nacionalidade e a condição nacional
empreendidas em nossa literatura nos levaram a voltar os olhos para a obra de André
Sant’Anna, a princípio fixando-se em seu romance O Paraíso é bem bacana, de 2007. Ao
lançarmos um olhar mais panorâmico sobre o conjunto de sua obra, pudemos perceber que o
tema Brasil e seus “penduricalhos” é abordado progressivamente. Ao vermos que, desde o
título, esta (não tão) nova obra trazia a reflexão sobre o Brasil num plano mais destacado,
resolvemos incluí-la em nossa pesquisa. Outro item que nos chamou a atenção foram os
1 Segundo Carlos Guilheme Mota e Adriana Lopez, “[n]as eleições de outubro [de 2014], esse quadro tornar-se-
ia mais nítido, com o país rachado ao meio” (2015, p. 1055) 2 Em entrevista a André Maleronka, ele esclarece essa relação entre escrita e as encomendas:
Quando eu tô com a ideia na cabeça, mas tô sem tempo, eu fico esperando uma
encomenda (rindo). Aí eu pensei nas histórias, vou fazendo as histórias e fechei
nessas cinco. Acabei a história da revolução [sic] no finalzinho, assim, pra ter mais
uma. Foi a única que foi feita sem ser por uma encomenda (2014).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 376
recursos humorísticos empreendidos nessa reflexão, e por isso resolvemos trazer algo deles à
tona.
Segundo Jan Bremmer e Herman Roodenburg,
[d]e Freud e Bergson a Mary Douglas, psicólogos, filósofos, sociólogos e
antropólogos têm se empenhado em encontrar uma teoria abrangente para o humor e
o riso. Uma falha comum a todas estas tentativas é o pressuposto tácito de que existe
algo como uma ontologia do humor, que humor e riso são transculturais e
anistóricos. Contudo, o riso é um fenômeno tão determinado pela cultura quanto o
humor” (2000, p. 15-16, grifo dos autores).
Parece-nos ponto pacífico, portanto, que elaborar “universais do humor e do riso” é uma
empreitada com grandes probabilidades de fracassar. No entanto, alguns conceitos clássicos
nos podem servir para esta análise: Henri Bergson, em O riso, reconhece o caráter social da
comicidade — “[s]e nos sentíssemos isolados seríamos privados do cómico” (BERGSON,
1993, p. 19) — mas generaliza como elemento comum às coisas risíveis certo automatismo:
“[o] que há de risível [...] é uma certa rigidez do mecânico onde deveria haver a maleabilidade
atenta e a viva flexibilidade da pessoa humana” (BERGSON, 1993, p. 22, grifo do autor).
Uma estratégia lúdica visível em praticamente toda a obra de André Sant’Anna é a
repetição como estilização (às vezes) exagerada de cacoetes linguístico-retórico-ideológicos
da fala informal de diversos grupos sociais brasileiros (ou estrangeiros, quando o Brasil é
objeto de suas reflexões). De fato, a repetição é observada como fenômeno, se não exclusivo
dos usos coloquiais do português brasileiro, pelo menos são mais frequentes:
As repetições não são exclusivas de linguagem oral, mas sua especificidade está no
seu grau de frequência e tipicidade. [...] [Observam-se também] torneios
pleonásticos típicos da língua falada, que podemos classificar como repetições de
conteúdo com forma diversa. Na língua falada, por exemplo, são normais estruturas
e informações circulares, ao passo que na língua escrita os temas e remas se
sucedem numa forma progressiva” (URBANO, 2000, p. 120-121).
E a repetição como elemento risível não escapa à observação de Bergson:
Aproximemo-nos ainda mais da imagem da mola que se encolhe, se distende e torna
a encolher. Tiremos dela o essencial. Vamos obter um dos processos mais usuais da
comédia clássica: a repetição” (BERGSON, 1993, p. 60, grifo do autor).
Talvez o traço mais destacado da repetição estilizada na obra de André Sant’Anna seja
a recusa aos termos ou expressões anafóricas que nos servem a um ideal de coesão formal.
Com isso, frequentemente termos que já foram mencionados anteriormente são
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 377
“remencionados” na íntegra, sem serem referidos por pronomes ou outras expressões que
apontariam para o termo supracitado3. Este recurso estilístico é observável desde sua primeira
obra publicada em livro, Amor:
Aquela rua escura e aquelas pessoas cruzando.
Uma rodoviária cheia daquelas pessoas e todas aquelas pessoas.
Uma rodoviária lá na Europa e todos aqueles europeus com seus problemas
europeus naqueles filmes europeus. Franceses.
[...]
Aquele cantor cantando. (SANT’ANNA, 2001, p. 24).
Em Sexo, sua segunda obra, a repetição como indicação de mecanicidade aparecerá de
forma mais evidente, ao descrever as ações repetitivas das personagens (sobretudo os “Jovens
Executivos”), que parecem ter saído de uma “linha de montagem”:
O Jovem Executivo de Gravata Vinho Com Listras Diagonais Alaranjadas e sua
Noiva Loura, Bronzeada Pelo Sol, entraram na casa dos pais da Noiva Loura,
Bronzeada Pelo Sol, Do Jovem Executivo de Gravata Vinho Com Listras Diagonais
Alaranjadas.
O Jovem Executivo de Gravata Azul Com Detalhes Vermelhos e sua Noiva Loura,
Bronzeada Pelo Sol, entraram na casa dos pais da Noiva Loura, Bronzeada Pelo Sol,
Do Jovem Executivo de Gravata Azul Com Detalhes Vermelhos (SANT’ANNA,
2007b, p. 243).
Na edição portuguesa de Amor — uma vez que a primeira edição, de curtíssima
tiragem, logo se esgotou — e em Inverdades, Sant’Anna acrescentou a sua obra narrativas
mais curtas, até surgir o contexto apropriado para a escrita de seu primeiro — e até então
único — romance:
O Paraíso é bem bacana, na verdade, foi o último projeto muito planejado, [no
estilo] vou escrever um romance. Coincidiu que eu fiquei doente: fiquei seis meses
internado no hospital por causa de pancreatite aguda. Aí saí do hospital e ainda tive
um ano de recuperação. Tive dificuldade, eu não conseguia atravessar a rua sozinho,
tive encefalite. Então, eu tinha a coisa mais sagrada para um escritor, que é tempo.
Ficava em casa, tinha muito tempo para escrever: consegui escrever um romance de
500 páginas. De lá para cá, você tem que ir se adequando. [...] [F]oi uma
encomenda da Companhia das Letras: eles estavam fazendo uma coleção que acabou
não vingando, mas era uma coleção de livros safados; assim, livros que tinham a ver
com sexo, alguma coisa. Chegou a sair o livro do Rubem Fonseca, saiu o do Henry
Miller (SANT’ANNA, 2014).
Em O Paraíso é bem bacana, a relação entre humor e reflexão sobre o país aparece na
trajetória da personagem principal, o adolescente Manoel dos Anjos (Mané), jogador de
futebol de Ubatuba que é transferido do time local para o Santos e de lá para o Hertha
3 Como, por exemplo, a expressão “termo supracitado” que acabamos de usar agora.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 378
Berliner Sport-Club, sediado na capital alemã. No clube da Vila Belmiro, Mané, por ter
dezessete anos, ser negro, subnutrido, de origem humilde e goleador, tem sua trajetória
inevitavelmente comparada à do maior craque já revelado naquela cidade: Edson Arantes do
Nascimento, o Pelé. No entanto, o jovem acaba vivenciando vários episódios constrangedores
e gerando estranhamento nos colegas e nas demais pessoas ao seu redor devido ao seu
comportamento excêntrico e a sua escandalosa idiotice, pressagiada por seu apelido: como
substantivo comum, a palavra “mané” significa tolo, idiota:
“Tá vendo? Fala igual retardado.”
“E aí, Mané? Você é igual o Pelé?”
“...”
“É ou não é? Os cara tão perguntando na televisão.”
“É ou não é? Fala, Mané!”
“...”
“Você é igual que jogador?”
“É o Pelé, é?”
“Renato Gaúcho.”
“?”
“?”
“?”
“?”
“?”
“?”
Rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá
rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá
rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá... (SANT’ANNA,
2007, p. 235).
A condição física, o talento futebolístico e o fato de jogar no Santos fazem com que se
despeje em Mané a expectativa de ser o novo Pelé. No entanto, sua estultícia, sua paixão pelo
Fluminense Football Club e o desejo de ser como o Renato Gaúcho, que é branco, é vista com
uma cruel gargalhada de desprezo pelos seus colegas. O riso aqui (a cuja perversidade o leitor
se vê inevitavelmente levado a aderir) se motiva pela falta de consciência de Mané a respeito
de como o mundo à sua volta funciona. Sua deficiência intelectual e social o leva a agir
“mecanicamente” e a interpretar o mundo em função de sua estupidez. Essa estupidez, aliada
à tensão entre o desejo de transar e a timidez debilitante, o leva a converter-se ao islamismo,
na esperança de, uma ver morto em nome da fé maometana, ir direto ao Paraíso e desfrutar da
eterna companhia de setenta e duas esposas virgens.
O choque cultural causado por essa noção de Paraíso além-tumba tão estranha a olhos
ocidentais, por sua não negação da carnalidade no pós-vida, gera também um efeito
humorístico, ainda que pautado numa noção hierárquica Ocidente/Oriente, cultura/natureza.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 379
Claro que para construir esse Paraíso “bem bacana”, Mané coleta e mistura as fontes mais
inusitadas: revistas masculinas, filmes pornográficos, traduções equivocadas do Alcorão.
E todo esse repertório o faz cometer um ato terrorista malsucedido: no hospital,
desacordado, com o rosto desfigurado, sem os membros e sem o pênis, Mané imagina-se um
“marte do Alá” priápico e feliz da vida, com os rios de vinho que não embebeda, a brisa que
refresca o mártir e as setenta e duas consortes.
Muecke observa que
as áreas de interesse que mais prontamente geram ironia são, pela mesma razão, as
áreas em que se investe mais capital emocional: religião, amor, moralidade, política
e história. A razão é, naturalmente, que tais áreas se caracterizam por elementos
inerentemente contraditórios: fé e fato, carne e espírito, emoção e razão, eu e o
outro, dever-ser e ser, teoria e prática, liberdade e necessidade (1995, p. 76).
Daí o potencial humorístico e, ao mesmo tempo, a delicadeza de mexer num vespeiro, uma
vez que tais itens mexem bastante com as suscetibilidades das pessoas que vivenciam essas
instâncias.
Quando uma pessoa se converte ao Islã, ela pode adotar um nome muçulmano, de
preferência se o nome antigo remete a uma palavra negativa ou à adoração a algum outro
Deus ou outro ser que não Alá. Mané é, então, “rebatizado” por seu companheiro do time de
juniores do Hertha, o alemão Hassan. Depois de discussão em mímicas e palavras
mutuamente não compreendidas em português e alemão, Mané recebeu simplesmente o nome
do Profeta, chamando-se, a partir de então, Muhammad Mané. O desleixo de deixar o nome
do Mensageiro de Alá próximo ao termo que pode significar tolo traz de igual modo um
componente lúdico, não apenas pelas razões que Muecke menciona e que estão citadas acima,
mas também porque o desleixo seria uma manifestação da mecanicidade que Bergson aponta
como critério para o cômico.
No plano da linguagem, a hiperanáfora que torna o texto de André Sant’Anna
facilmente identificável faz-se presente sobretudo nas falas de dois dos vários narradores que
dividem o espaço do romance para contar a história desventurosa de Muhammad Mané: um,
não identificado com nenhuma das personagens principais da história (o qual, por sinal, é
quem abre o romance):
O Mané podia ter dado uma porrada bem no meio da cara daquele gordinho filho-
da-puta.
Mas não.
O Mané ficou rodando em volta do gordinho filho-da-puta, olhando para os lados,
esperando que algum filho-da-puta logo apartasse a briga.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 380
Mas não.
Eles eram todos uns filhos-da-puta e queriam ver um filho-da-puta batendo no outro.
O Mané ainda não sabia que eram todos uns filhos-da-puta.
O Mané não tinha motivo para bater no gordinho filho-da-puta.
O Mané não sabia que o gordinho filho-da-puta tinha motivo para bater nele, no
Mané. (SANT’ANNA, 2007a, p. 7)
O outro é o próprio Mané, que compartilha conosco seu enlevo ao vivenciar as delícias (pra
ele) eternais:
É setenta e duas. E elas vêm vindo, tudo limpinhas, muito bonitas, e elas têm tanto
amor ni mim e gosta tanto de mim e me ama tanto e agora é tão bom que eu tô
sentindo tudo tão bem, tudo tão cheirosas, e elas vai ficando tudo pelada, bem
devagarinho, bem assim que nem filme que passa na televisão sábado de noite, com
aqueles biquíni tudo meio cor-de-rosa e com aqueles negócio peludo e cor-de-rosa e
vão tirando as parte de cima e fica com os peito, uns peitão todo cor-de-rosa e cheio
assim que parece que vai estourar e tem aqueles véu que nem naquela novela que
tinha os Marrocos que é de onde vem o Abud. [...]Agora eu sei que ficou valendo a
pena de verdade, que é setenta e duas mesmo e que elas faz tudo que eu gosto pra
mim e vão ficar fazendo sempre, tudo o que eu gosto de fazer com as mulher. E elas
depois vão falar coisas boa e engraçadas pra gente ficar rindo, tudo amigo e fazendo
essas coisa de sex (SANT’ANNA, 2007a, p. 9, 11)
A fala desarticulada, exageradamente repetitiva e repleta de barbarismos gera um efeito
humorístico controverso, uma vez que também pode facilmente incorrer no dualismo
natureza/cultura. Luciene Azevedo elabora a questão da seguinte maneira:
A voz narrativa assume também a função de um ventríloquo que se apropria das
falas do senso comum e expõe os preconceitos latentes.
Os riscos são claros: a negatividade da apropriação crítica pode resultar apenas em
rebeldia e desprezo, e a mímesis desconstrutiva pode descambar para a
cumplicidade, mas é característico da performance o equilíbrio precário entre a
crítica (quase moralista) e a reiteração de muitos preconceitos e estereótipos,
entrelugar que é condição de possibilidade de sua existência. (AZEVEDO, 2007, p.
86).
Ela ainda chama a atenção, ao se deter sobre O Paraíso é bem bacana, para os “resquícios
naturalistas e pendores moralistas que atravessam a narrativa de André Sant’Anna (e não
apenas nesse livro) (AZEVEDO, 2007, p. 88). No entanto, praticamente nenhum dos vários
narradores de O Paraíso é bem bacana usa a norma padrão do português brasileiro. Ela
aparece em itálico, como uma forma de indicar que naquele momento, aquela personagem
está falando em alemão (país onde se passa grande parte da trama).
Por fim, outro elemento que traz certa comicidade é a subversão dos diversos
conceitos de senso comum elaborados sobre o Brasil: em O Paraíso é bem bacana, chamam a
atenção os elaborados pelos não brasileiros a respeito do Brasil, como a enfermeira Ute: que
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 381
tem que cuidar de Mané mesmo odiando muçulmanos terroristas como ele: “Alguns
exemplos: a enfermeira Ute, que trabalha no quarto do hospital onde Mané está internado:
“Vocês são tão divertidos. Brasilien, samba, lambada, schöne Männer, Fussball!”
(SANT’ANNA, 2007a, p. 13, grifo do autor); Mechthild, a jovem alemã de dreadlocks e alta
desinibição sexual, que no Paraíso de Muhammad Mané é conhecida como Crêidi:
Você já fez amor com alemão? Alemão não sabe fazer amor. Agora eu só faço amor
com africanos e sul-americanos do Brasil. Negros. Existe essa história do tamanho
do pênis dos negros, mas não é isso que importa. É o modo de ser deles, o espírito
tropical, o sorriso. [...] O nome dele é Mané, Muhammad Mané. Eu nunca tinha
visto brasileiro turco antes, nem árabe, nem terrorista (SANT’ANNA, 2007a, p. 64,
grifo do autor).
Em O Brasil é bom, são os brasileiros, quase sempre de classe média, que passam a
refletir sobre si mesmos e sobre seu ideal de país. Os discursos das personagens costumam
basear-se num ideal questionável de superioridade brasílica:
Eu sou bom. Eu sou bom porque eu sou brasileiro. Os brasileiros não desistem
nunca. Os brasileiros sabem viver com alegria, mesmo tendo que enfrentar extremas
dificuldades. Os brasileiros são bonitos. A mulher brasileira é a melhor mulher que
existe. A mulher brasileira é a melhor mulher que existe porque a mulher brasileira
faz sexo muito bem e tem bumbum. (SANT’ANNA, 2014, p. 38).
Ou basear-se num discurso de elogio da violência de Estado como solução para determinados
problemas do país:
A culpa é toda do direitos humanos, que vem aqui se meter no Brasil e não cuida dos
problemas deles mesmo, desses países que se acha. Porque lá todo mundo faz o que
quer, faz terrorismo, fuma drogas, anda pelado com os seios de fora e até faz sexo
com homens do mesmo sexo (SANT’ANNA, 2014, p. 21)
Ora, não tem como homem fazer sexo com homem de sexo diferente. Esse falso lapsus
linguae é um recurso através do qual André Sant’Anna desqualificará os narradores que
empreendem esses discursos, como maneira de refletir sobre o “brasileiro médio”,
ideologicamente conservador, cuja opinião passou a se fazer ouvir mais nos últimos anos. Ao
fazê-los falar platitudes, atos falhos, barbarismos ou anacronismos, ele demonstra que essas
personagens sequer refletem a respeito do que falam. No entanto, é um tipo de ironia que
talvez não atinja aqueles que na vida real comunguem dessas crenças, uma vez que não se
verão parecidos com esse narrador. A ironia aqui é uma via de mão única, apontando para um
sentido que ocupa, na ficção sant’anniana, um posto axiológico hierarquicamente superior:
Nas fronteiras da linguagem ǀ 382
“[e]mbora o sentido pretendido não seja diretamente expresso, uma verdade é afirmada, há
uma mensagem a compreender, o que pode significar uma ideologia a exaltar ou defender”
(DUARTE, 2006, p. 31). O ironista aqui arrisca a credibilidade em nome da certeza de que
algo vai errado e, por isso, precisa ser consertado. Ou pelo menos é preciso reclamar.
Referências
AZEVEDO, Luciene. Representação e performance na literatura contemporânea. Aletria:
Revista de estudos de Literatura da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, v.
16, jul./dez. 2007, p. 80-93. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publica
coes_pgs/Aletria%2016/06-Luciene-Azevedo.pdf>. Acesso em: 25 ago. 2014.
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre o significado do cómico. 2. ed. Tradução de
Guilherme de Castilho. Lisboa: Guimarães, 1993.
BREMMER, Jan; ROODENBURG, Herman. Introdução: humor e história. In: ______. Uma
história cultural do humor. Tradução de Cynthia Azevedo e Paulo Soares. Rio de Janeiro:
Record, 2000, p. 13-25.
DUARTE, Lélia Parreira. Ironia e humor na literatura. Belo Horizonte: PUC Minas; São
Paulo: Alameda, 2006.
MOTA, Carlos Guilherme; LOPEZ, Adriana. História do Brasil: uma interpretação. 4. ed.
São Paulo: 34, 2015.
MUECKE, D. C. Ironia e o irônico. Tradução de Geraldo Gerson de Souza. São Paulo:
Perspectiva, 1995.
SANT’ANNA, André. Amor e outras histórias. Lisboa: Cotovia, 2001.
______. André Sant’Anna. Vice, São Paulo, 2 dez. 2014. Entrevista concedida a André
Maleronka. Disponível em: <http://www.vice.com/pt_br/read/andre-santanna-linguagem-
preconceito>. Acesso em: 3 mai. 2015.
______. O Brasil é bom. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
______. O Paraíso é bem bacana. São Paulo: Companhia das Letras, 2007a.
______, André. Sexo e amizade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007b.
URBANO, Hudinilson. Oralidade na literatura: o caso Rubem Fonseca. São Paulo: Cortez,
2000.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 383
A CASA DOS BUDAS DITOSOS: OS LIMITES DA
IRREVERÊNCIA [Voltar para Sumário]
Arturo Gouveia (UFPB)
1. O perfil da personagem
No romance A casa dos budas ditosos, de João Ubaldo Ribeiro, o enredo é a
transcrição de um manuscrito deixado na casa do autor, logo que se dissemina a notícia de
que ele foi incumbido por uma editora a escrever um livro sobre a luxúria (Ribeiro, 1999). A
distinção entre a autoria do texto, pertencente a uma mulher que não se identifica nitidamente
(apenas as iniciais CLB) ou ao autor empírico, cria uma ambiguidade cuja resolução acaba
pendendo para a primeira alternativa. No caso, se o romance é rigorosamente a transcrição do
material, pode-se afirmar que não há intervenção alguma do autor, nem este cria um narrador
próprio, cedendo espaço absoluto para a voz feminina depoente. A menos que se lance a
hipótese de a voz feminina ser, ela mesma, uma criação do autor, a responsabilidade pelos
conteúdos e pela forma da composição é dessa primeira voz frente à qual o autor não
estabelece nenhuma mediação artística. Nesse sentido literal, o romance nem sequer seria uma
expressão artística, porque a ficcionalidade estaria afastada de um material que não passaria
de documento.
Mas sabe-se que essa aparência de pura empiria, à margem de pretensões estéticas, é
uma das estratégias usadas por narradores ou autores que querem delegar a responsabilidade
dos escritos a outrem, quando essa transferência já é uma forma de demonstrar a parcialidade
da intervenção de uma segunda voz que, aparentemente, se deixa camuflar por uma primeira
voz, que passa a dominar o foco narrativo.
Nessa medida, a identificação dos fatos passa necessariamente pela identificação da
voz narrativa, tal como exposta no material. E um fato crucial no texto é que a narradora-
personagem não tem uma meta definida no presente, a não ser livrar-se em definitivo do
moralismo que tanto combatera no passado: “Ainda me restam alguns penduricalhos desse
legado imbecilóide, de que tenho de me livrar antes de morrer”. (Ribeiro, 1999: 15)
Nas fronteiras da linguagem ǀ 384
Quanto ao seu passado, há algo semelhante: ela sempre se empenha em cometer
transgressões morais, com comportamentos sexuais que vão desde mínimas ousadias de
menina até os gestos mais esdrúxulos e radicalmente reprováveis. Como exemplo do que seria
sua aspiração máxima, ela comenta sobre o que lera sobre a moral da Roma antiga, para criar
um contraste com o moralismo atual:
“Em Roma antiga, houve um tempo em que as noivas acariciavam a glande de
Príapo, ou se sentavam nela. Pelo que eu li, a glande mais usada, a glande pública,
por assim dizer, devia ser uma verdadeira poltrona”. (Ribeiro, 1999: 14)
Mas tudo o que a personagem diz romper e transgredir ocorre em ambiente privado.
Ela não se envolve em nenhuma questão social, não tem nenhum projeto, nenhuma causa,
nada que a ligue às instituições em relação direta e objetiva. Ela se diz empenhada em lutas
contra toda forma de hipocrisia social, principalmente as formas de retração do uso livre do
corpo, mas nunca transforma esse ideal em ação prática para além de quatro paredes. Em
função disso, confessa a satisfação de praticar o incorreto em espaço fechado:
“(...) a hipocrisia da época era mais agressiva, dava muito gosto a quem desfiava
seus mandamentos, acaba resultando num grande prazer, a transgressão era mais
satisfatória, melhor para o ego”. (Ribeiro, 1999: 33)
Apesar de seus propósitos de ruptura, ela sempre atua na clandestinidade, a exemplo
do que faz com o tio Afonso, em fazenda distanciada e quando as pessoas não estão presentes.
Com essas ações escondidas, pois, segregadas de um embate visível, sua postura reproduz o
próprio sistema condenado e mostra-se infrutífera para a conquista social de valores não-
hipócritas. Quando o tempo de sua experiência passa pelo regime militar, por exemplo, as
menções ao golpe e à ditadura são muito rápidas: ela não tem interesse em nada além de suas
aspirações individualistas, narcisistas e, como assume em alguns momentos, sádicas:
“Considero meu sadismo psicológico muito mais interessante, inclusive porque é
seletivo, é um prato feito para analistas. Exemplo desse meu noivo, muitos
exemplos, exemplo do tio Afonso, o pior de todos. Tenho certeza de que contribuí
substancialmente para o enfarte dele. Ele não valia de nada, de qualquer jeito, comia
a mulher do irmão, minha mãe (...) nunca fui a epítome da hipocrisia. Não, desculpa
esfarrapada, não convence. Estou aberta à crítica, eu mesma já pensei muito nisso,
de certa forma vivo pensando. Não acho nada demais o sujeito comer a mulher do
irmão, mas não concordo em que o irmão de meu pai tivesse comido a mulher do
irmão, meu pai. Neuroses. Por mais que me desgoste, sou obrigada a admitir.
Traumas da infância”. (Ribeiro, 1999: 82-83)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 385
Ela evita qualquer compromisso que venha a tomar-lhe um tempo individual quase
todo dedicado ao sexo. Inspira-se em exemplos dos mais esdrúxulos, subversivos e não-
aceitos socialmente, como a experiência da amiga Norma Lúcia, que busca todo tipo de
prazer, desde assistir à devoração de um pequeno animal por uma cobra até experiências com
animais de porte superior:
“Norma Lúcia não se aguentava de excitação diante desse espetáculo e se
masturbava horas seguidas. Muitíssimo mais tarada do que eu, incomparavelmente,
chegava a acariciar longamente os paus dos cavalos dela, com os olhos fechados e
quase em transe. E adorava ver cavalos trepando também”. (Ribeiro, 1999: 50)
Tomando Norma Lúcia como modelo ideal de vida, a personagem, contudo, sempre
age na relação fechada, individual ou grupal, sem propagação para além desses limites. Seu
discurso de transgressão e subversão, assim, só é coerente em seu âmbito particular – uma
negação prática de todo o seu ideal de mulher amoral.
2. O grau de problematicidade da protagonista
Conforme a visão de Lukács, o romance é um gênero moderno a cuja composição é
inerente a presença de duas naturezas incompatíveis, impassíveis de convergência, por causa
dos interesses que movem cada uma: a impossibilidade de reconciliação entre as partes é um
distintivo da representação simbólica do conflito histórico entre as aspirações individuais e a
irredutibilidade do mundo objetivo (Lukács, 2000). A subjetividade, sobretudo em suas
expressões mais alternativas às convenções, é rigorosamente negada e combatida por um
mundo objetivo absolutamente insensível a transformações. A primeira natureza, situada no
indivíduo, é abordada por Lukács como o locus de valores autênticos que questionam o
estabelecido e procuram superar os limites existentes no mundo moderno, no qual a reificação
tende a triunfar sobre todas as coisas e os sentimentos, submetendo a fracasso qualquer
tentativa de alteridade. A segunda natureza é esse espaço em que se insere, de forma
problemática e inquietante, essa primeira natureza não reconhecida e hostilizada pelo
conjunto das instituições petrificadas no mundo objetivo. A relação de divergência e mútua
incompreensão entre as duas naturezas potencializa toda a ação como componente substancial
do gênero. Os desejos subjetivos do herói, que funcionam como uma antítese em choque com
o sistema vivido, têm um movimento pendular que vai da manutenção dessa
incompatibilidade, em luta e resistência permanentes, até a integração parcial da subjetividade
Nas fronteiras da linguagem ǀ 386
às instituições objetivas, sem renúncia à autenticidade dos valores. Lukács, embasado em
pressupostos hegelianos, dá ênfase ao que a filosofia chama de primado da subjetividade,
elegendo como categoria central a interioridade do personagem. Mas a segunda natureza é
essencial à avaliação da permanência dos valores autênticos na prática do personagem. A
segunda natureza renega-se a absorver qualquer valor proveniente do personagem, uma vez
que a reificação da objetividade é imune a reflexões capazes de averiguar possibilidades de
mudança, inviabilizando diálogos progressistas. A primeira natureza, mesmo nessa absorção
necessária ao mínimo de equilíbrio social, não se sujeita a experiências que venham a
distorcer e deformar sua concepção de mundo.
Mas já é possível identificar, em muitos romances do século vinte (ou talvez de antes,
como As ilusões perdidas, de Balzac), uma perda significativa, em alguns casos a extinção,
desses valores autênticos dos personagens, apesar de eles continuarem sendo problemáticos.
Lukács demarca uma linha de ação em que o personagem se apresenta com tais valores e os
mantém, ainda que, em um certo grau, faça concessões ao mundo externo, como é típico do
personagem da maturidade viril. Em romances do século vinte, é possível constatar que
certos personagens, desde sua origem, não têm sequer esses valores. Eles têm valores, mas
não autênticos, o que faz deles uma reprodução passiva do próprio sistema que os oprime. Em
Cidade de Deus, de Paulo Lins, por exemplo, os personagens da boca de fumo e da linha de
montagem da droga, os bichos soltos e seus colaboradores, não demonstram nenhuma
oposição autêntica ao sistema capitalista, muito menos ideal de enfrentamento e superação –
eles são reificados desde sua origem, desde sua “carreira profissional”, de aviõezinhos a
senhores da droga. Não se trata de perder valores autênticos, como é a preocupação de
Lukács, mas de nunca os possuir ou procurar aspirar a eles. Nesses casos extremos, sequer se
pode falar de perda – perda esta que ainda poderia instigar o herói a uma busca por sua
reabilitação ou pela recuperação de seus princípios. Em casos assim, a segunda natureza é tão
enraizada nos personagens, que não se pode delinear nenhum gesto que irrompa originalmente
deles. É como se a primeira natureza, anulada pela segunda, não mais existisse como força
composicional do gênero, em termos de uma dialética capaz de dar prosseguimento a uma
ação potencialmente transformadora. Em termos adornianos, no que respeita à falência do
ideal do romance como epopeia burguesa, o triunfo da epopeia negativa reside nessas
condições de inércia da primeira natureza, reduzindo o personagem a pensamentos isolados,
enfermidades (loucura, por exemplo), ou simplesmente dominando-o e utilizando-o como
uma expansão subjetiva do sistema. (Adorno, 2003)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 387
No caso do romance de João Ubaldo Ribeiro, a dificuldade de classificação da
personagem está na forma como ela se comporta frente ao mundo externo. A personagem
parece não enfrentar uma “segunda natureza”. Na tradição romanesca, ou a segunda natureza
é um forte empecilho externo, objetivo e intransponível (Dom Quixote, de Cervantes), o que
se traduz em excesso de ações, ou está interiorizada como repressão e angústia pelo
personagem, o que se traduz no excesso de monólogos (A educação sentimental, de Flaubert).
O herói é problemático quando sua natureza (a primeira) revela uma subjetividade
prejudicada por um mundo externo desinteressado na assimilação de valores autênticos. Mas
esse conflito objetifica-se em ação nítida, de efeito negativo, ou mesmo em uma forma de
pensamento que tem algum desdobramento prático, a exemplo da visibilidade da loucura ou
da retração do personagem. No romance de João Ubaldo Ribeiro, a personagem não tem a
interioridade interrompida por nenhuma intervenção externa. Mesmo a morte do seu homem
mais sexualmente amado e gozado, o irmão Rodolfo, não a retrai, levando-a sempre em busca
de novas experiências de prazer, em escala crescente e desafios megalomaníacos aos outros e
a si mesma. Ela se demonstra resolvida, com a mente “dogmatizada” pela defesa de uma
sexualidade absolutamente livre, e lhe restaria apenas o mundo externo para enfrentamento.
Mas esse enfrentamento não ocorre. O conflito, na concepção hegeliana que fundamenta a
argumentação de Lukács, é necessário para que haja uma dinâmica na ação. Mas é justamente
essa dinâmica que falta à composição do enredo. No caso, o depoimento da narradora parece
suprimir esse componente imprescindível à forma romance, subordinando-o a comentários
críticos sobre as formas sociais de dissimulação de ações desejadas por todos e hipocritamente
proibidas:
“Em relação a irmão, posso dar meu testemunho pessoal, eu comi muito Rodolfo,
meu irmão mais velho, até ele morrer a gente se comia, sempre achamos isso muito
natural. Evidente que é natural, a maior parte das pessoas passa pelo menos uma fase
de tesão no irmão ou na irmã, só que a reprime em recalques medonhos. Nós não.
Norma Lúcia também não. Muita gente também não”. (Ribeiro, 1999: 53)
O impacto nulo de suas ações, do ponto de vista social, descaracteriza a
problematicidade da personagem no que concerne a uma ação exemplar (positiva ou negativa)
ou à irradiação de comportamentos não-reificados. Será que a problematicidade da
personagem estaria transferida para a relação depoimento/recepção, já na velhice? Sua busca
de exteriorização e embate social estaria, afinal, na relação entre a publicação do relato e os
efeitos morais derivados daí? Ela, como mulher, desenvolve uma habilidade de manipular os
homens, não se sujeitando, pois, a uma posição de personagem hostilizada ou com desejos
Nas fronteiras da linguagem ǀ 388
não realizados. Mas seria a publicação do relato, já na velhice, a evidenciação final de sua
conduta, residindo aí o caráter conflitivo de sua ação?
3. Um suposto Bildungsroman do sexo
A personagem, já em idade avançada, mostra seu passado inteiramente movido por
uma busca incessante de prazer sexual, para além das regras familiares, porém sempre de
forma velada. É o que ocorre desde a pré-adolescência, com o irmão Rodolfo, passando
depois pela intimidade com o negro Domingos, o tio Afonso, os dois noivos, entre outros. Ela
relata inúmeros casos com namorados, professores e outros amantes. Tomando a amiga
Norma Lúcia como paradigma inquestionável para suas ações, considera a si mesma e a
amiga como pertencentes a famílias de classe média, com uma certa tendência para a vida de
“porra-louca”, o que parece justificar, do ponto de vista moral, suas opções obsessivas.
Mas, apesar de sua procura por experiências radicais de prazer (posições não
convencionais, sexo coletivo, sexo animalesco, incesto, o gozo “por todos os buracos” etc.), a
narradora se mantém como personagem rasa – uma situação paradoxal frente ao que seria
uma aprendizagem ou uma formação em termos de domínio sexual. A isso corresponde,
estruturalmente, a predominância de sumários narrativos, em detrimento de focalizações
cênicas diretas. Não há nenhuma peripécia significativa na ação/rememoração da personagem.
Há um conjunto de experiências que tendem a delinear graus mais elevados de ousadia no uso
do corpo, mas nada que venha à tona como provocação e exemplo negativo a contrariar a
moral dominante, no que respeita a repercussões pragmáticas das atitudes. É preciso
desmistificar as pretensões de originalidade, autenticidade e ousadia da luxúria da
personagem, na medida em que tudo morre onde nasce, sem projeções efetivamente mais
arriscadas, sem risco de ameaças e reações violentas por parte de conservadores e retrógrados.
4. Algumas reflexões metalinguísticas
O romance apresenta uma divisão entre dois espaços: de um lado, os relatos de
rememoração, quase sem nenhuma cena direta; de outro, uma certa reflexão metalinguística,
que convém aqui comentar.
A questão da autoria impõe ao leitor uma interpretação a respeito da autenticidade e,
ao mesmo tempo, da camuflação da voz depoente, o que leva a uma suposição de dupla
autoria. A confusão entre o depoimento do autor, no prefácio, a autora dos manuscritos,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 389
ambos situados no mundo real, e a ficcionalidade do fato anunciado pelo autor, gera essa
incompletude que não se resolve ao longo da leitura. No caso, o autor permanece no plano
empírico, enquanto a autora já é uma categoria inerente à criação literária. Este
entrecruzamento de situações é elaborado de forma consciente, não uma acidentalidade, pois
compromete toda a lógica interna da composição do romance.
Outras tendências metalinguísticas da obra revelam-se nos comentários que a
personagem faz de sua carreira acadêmica, geralmente depreciando o mundo intelectual como
chato, redundante e velado sob aparência de grandeza. Segundo ela, toda a aparente
complexidade do discurso acadêmico, sobretudo nas ciências humanas, é um hermetismo
calculado para esconder incompetências. Com tais reservas céticas, ela deprecia, em ataques
rasos, ressentidos e espalhafatosos, pensadores como Lacan e obras radicais da modernidade.
As reflexões dela sobre a ininteligibilidade de Lacan e da intelectualidade francesa, por
exemplo, são extensivas à literatura do século vinte. Constituem uma poética contra as
técnicas herméticas de narrativa, como o fluxo da consciência. A adoção de uma linguagem
acessível corresponde a essa tomada de posição contra as modalidades narrativas mais
consagradas e inovadoras do século vinte, marcadas propositalmente pela secundarização do
enredo. Tal tendência é muito presente na década de setenta, no romance brasileiro, como
Zero, de Loyola Brandão, Avalovara, de Osman Lins, Fluxo-floema, de Hilda Hilst, e, do
próprio João Ubaldo Ribeiro, Sargento Getúlio. O propósito da narradora é o oposto, a
começar pela opção deliberada por pornografia e pela condenação aos eufemismos
linguísticos que sublimam ou distorcem expressões populares relativas a intimidades. Há
momentos de fluxo da consciência da narradora, mas muito simplificados, sem intenção de
sintagmas sincopados e fragmentação que venham a afetar a apreensão imediata do relato.
Em meio à predominância quase absoluta da rememoração das aventuras sexuais, há
exceções muito diluídas. Exceções que, conforme nos ensina Auerbach, devem apresentar
algum significado na leitura inversa ao exame da dominante do texto (Auerbach, 1987). Trata-
se de momentos da adolescência, da vida acadêmica em Los Angeles, do golpe militar de 64 –
tudo diminuído, como se não tivesse relevância alguma face às rememorações das
experiências sexuais. Percebe-se, nessa extrema desproporção de temas, a revogação da vida
comum do dia-a-dia, como se esta não passasse de uma vida vegetativa, indigna de figurar
num depoimento marcante e provocador. A leitura seletiva do passado restringe-se
exclusivamente ao que parece apelativo e distintivo de uma personalidade sádica e luxuriosa,
como se experiências não-sexuais não fizessem parte da existência. Trata-se, para usar outro
conceito de Lukács, da essencialização da contingência, porém sem efeitos satíricos (Lukács,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 390
2009). A personagem, em seu relato estritamente limitado a experiências íntimas
extravagantes, leva muito a sério, como propósito único de vida, essa conversão da exceção
em regra. O capítulo em que ela descreve suas práticas com o irmão Rodolfo é bem
representativo da enorme desigualdade entre lembranças sexuais e lembranças de coisas
simples: o que não é sexual reduz-se a umas poucas linhas.
Há outras declarações da narradora que são extensivas à literatura. A personagem não
parece ter nenhuma enfermidade psíquica, mas se autodenomina de “sádica seletiva”, sem o
menor constrangimento. Qual a relação entre a felicidade alcançada pela personagem e a
felicidade prevista no misticismo budista? A investigação do sentido irônico dessa relação
também é demonstrativa do grau de consciência do narrador no que respeita à elaboração e ao
controle do que se elenca para a ficcionalidade.
Em outra perspectiva de trabalho, seria preciso pesquisar sobre o Nirvana, no sentido
budista, e averiguar o significado disso retraduzido no título do depoimento (do sonho
proléptico da personagem aos excessos de prática sexual que, ao contrário do budismo,
elegem a vida carnal como fonte suprema de prazer e satisfação). Isso talvez possibilitasse
uma melhor compreensão do real das inversões do romance. O sentido da realização
alcançada no budismo prevê uma vida de absoluta diluição da individualidade e do egoísmo
em um “átomo primitivo” de onde tudo proveio. No caso, a descaracterização absoluta da
matéria é indispensável ao alcance da felicidade, não mais atribulada pelo sofrimento
resultante de desejos inquietantes. A casa dos budas ditosos tem um adjetivo relativo à
felicidade, mas desde o início os budas são descritos, em sua presença onírica, como seres que
se satisfazem sexualmente. Assim, a presença do corpo não apenas faz uma leitura distorcida
e avessa da placidez budista, como denuncia a mais recôndita instância psíquica da
personagem – o inconsciente – inteiramente dominada pela avidez sexual.
Essa obsessão pansexual estabelece e defende uma espécie de Nirvana do baixo-
corporal, com o intuito de liberar tudo o que foi reprimido e recalcado pela moral dominante
ao longo da história e justificar a existência unicamente por essa vida. Mas, como já apontado,
esse intuito radical não se expande socialmente, mantendo-se sempre às escondidas, o que
ainda revela, ironicamente, a presença de mecanismos repressivos em comportamentos
aparentemente libertos. Nessa medida, é a segunda natureza que isola a personagem e a
pressiona a hábitos retraídos, ainda que ela se sinta realizada nesse estado privado de exceção.
O enfoque dessa contradição é uma das marcas de qualidade do romance.
Referências
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 391
ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. Notas de literatura I.
São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003.
AUERBACH, Erich. Mimesis: A representação da realidade na literatura ocidental. 2. ed. São
Paulo: Perspectiva, 1987. (Estudos, 2)
LUKÁCS, György. Arte e sociedade: escritos estéticos (1932-1967). Rio de Janeiro: Editora
UFRJ, 2009.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000. (Coleção
Espírito Crítico)
RIBEIRO, João Ubaldo. A casa dos budas ditosos. São Paulo: Objetiva, 1999.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 392
A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO AUTORAL NAS OBRAS
DE VIRGINIA WOOLF: O ENSAIO COMO FORMA
LITERÁRIA E ESTRATÉGIA DE EMPODERAMENTO DA
AUTORIA FEMININA
[Voltar para Sumário]
Asenati Araújo de Melo (UNEB) 1
Juliana C. Salvadori (UNEB) 2
Mesmo uma mulher com um grande pendor para a literatura
fora levada a crer que escrever um livro significava ser
ridícula, e até mesmo mostrar-se perturbada.
(Woolf, 1922 p. 80)
1. Introdução
A proposta desse trabalho é observar como Virginia Woolf (VW), escritora inglesa
modernista, busca em seus ensaios, mais especificamente em Um teto todo seu, construir um
feminino autoral em meio as constrições de sua época, colocando em xeque as fronteiras entre
escrita e a leitura, o literário e a crítica.
A representação do feminino pela/na literatura tem sido tema de múltiplas discussões
da crítica e da teoria literária e feminista, como também da própria literatura, pautada pelos
aportes teóricos que os estudos culturais e pós-coloniais têm trazido à baila desde a década de
1960. Nesta linha, busca-se compreender como a literatura tem tanto refletido quanto
moldado um feminino idealizado, isto é constituído a mulher como indivíduo a partir do
século XIX, assim como suas funções/ papeis, como leitora e escritora, entre outros, para a
construção de uma identidade própria, sujeito social, político e simbólico (literário). Deste
1 Graduanda do 5º semestre em Licenciatura em Letras, Língua Inglesa e Literaturas na Universidade do Estado
da Bahia, Campus IV, Jacobina. Pesquisadora voluntária no Programa Institucional de Bolsas para Iniciação
Científica Entrando no bosque: mapeamento e formação de redes de leitura.Membro do grupo de pesquisa
Desleituras em série: da tradução como transcriação, adaptação, refração, diáspora
(dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/1792517921828602). 2 Professora Assistente da Licenciatura em Letras, Língua Inglesa e Literaturas na Universidade do Estado da
Bahia, Campus IV, Jacobina. Professora Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas e mestre
em Inglês e Literaturas pela UFSC. Coordenadora do projeto de pesquisa e extensão Entrando no bosque:
mapeamento e formação de redes de leitura. Líder do grupo de pesquisa Desleituras em série: da tradução como
transcriação, adaptação, refração, diáspora (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/179251792182 8602).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 393
modo, busca-se mapear as representações de feminino e sua relação com os papeis de leitura e
escritora que VW tece em seus ensaios, particularmente, assim como a repercussão disto nas
representações que seus leitores constroem sobre a obra da escritora.
É com base nessa representação e recepção contemporânea de Virginia Woolf que essa
pesquisa irá se desenvolver, focalizando no diálogo que a autora estabelece entre escritor (a)
/leitor (a); mais especificamente em seus ensaios, os quais centram-se na representação da
mulher e a posição das mesmas como artistas dentro de uma sociedade patriarcal. Neste jogo
de espelhamentos – literatura que reflete/representa/molda a vida que reflete/representa/molda
a arte, busca-se compreender como a escritora constrói sua identidade como autora a partir de
sua experiência como leitora. Dito de outro modo, busca-se compreender como Virginia
Woolf, "constrói” esse feminino autoral colocando em xeque a escrita e a leitura, o literário e
a crítica. O corpus selecionado será Um teto todo seu, dentre o qual, a autora, oferece
minibiografias de autoras e personagens mulher.
2. Tradição literária e a autoria feminina
A produção literária encontra-se inerentemente interligada a condição de gênero:
assim como Natalia Helena Wiechmann, em seu artigo sobre A crítica literária feminista e a
autoria feminina, podemos afirmar que a escrita é um ato criador e criativo. Para explicar
essa relação entre criador e gênero observaremos que a análise da tradição literária dar-se-á a
partir da paridade entre a autoria e a paternidade. Bailando através da cultura Ocidental,
podemos observar o estabelecimento de uma hierarquia entre os gêneros -Deus representação
masculina, cria o homem e tudo que existe no cosmo; da criação do homem Ele concebe a
mulher. Trazendo essa analogia para a criação literária, Gilbert e Gubar (1984), citados por
Wiechmann em seu trabalho, destacam que:
Na cultura patriarcal ocidental, por conseqüência, o autor do texto é um pai, um
progenitor, um patriarca estético cuja pena é um instrumento de poder generativo
como seu pênis. Além do mais, o poder de sua pena, como o poder de seu pênis, não
é apenas a capacidade de gerar a vida, mas o poder de criarn uma posteridade […].
(GILBERT; GUBAR apud WIECHMANN, p.6) (Tradução minha)3
3 No original: “In patriarchal Western culture, therefore, the text’s author is a father, a progenitor, a procreator,
an aesthetic patriarch whose pen is an instrument of generative power like his penis. More, his pen’s power, like
his penis’s power, is not just the ability to generate life but the power to create a posterity.” In: GILBERT,
Sandra; GUBAR, Susan. The Madwoman in the Attic: The Woman Writer and the Nineteenth-century Literary
Imagination. 2. ed. Londres: Yale University Press, 1984.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 394
Gilbert e Gubar ressaltam que a caneta, o instrumento associado à produção literária,
pode ser vista como a representação do falo. Dito isso, observamos que, partindo do ponto de
vista Criador, o poder criador através do intelecto faz parte da capacidade masculina,
relacionando a capacidade criadora feminina apenas a geração por meio do histero – o útero,
poder gerador/criador inferior ao intelectual porque físico. É válido ressaltar que até o século
XIX as mulheres pouco escreviam - ou pouco circulava sua produção – pelo fato da escrita
ser considerada como prática intelectual superior. Assim, o empoderamento autoral é restrito
ao homem, excluindo a mulher da possibilidade de criação artística e reduzindo-a a sua
capacidade a geração da vida por intermédio do útero: o poder criativo do papel/ escrita é do
homem. Essa identificação da mulher à maternidade é geralmente figurada na imagem da
mulher anjo/ Madonna. Essa representação angelical é retomada por Virginia Woolf em Um
teto todo seu (1990) publicado como A Room of One’s own em 1929, na qual define a mulher
de sua época como “subjugada” ao título “anjo do lar”, bem como a retratação do desejo de
superioridade masculino no que diz respeito ao Criador e o Criativo:
[...] É bastante evidente que, mesmo no século XIX, a mulher não era incentivada a
ser artista. Pelo contrário, era tratada com arrogância, esbofeteada, submetida a
sermões e admoestada. Sua mente deve ter sofrido tensões, e sua vitalidade foi
reduzida pela necessidade de opor-se a isso, de desmentir aquilo. Pois aí, mais uma
vez, entramos no âmbito daquele complexo masculino muito interessante e obscuro
que teve tanta influência no movimento feminista, daquele desejo arraigado não
tanto de que ela seja inferior, mas de que ele seja superior [...] (WOOLF,1990 p.
68).
Dessa forma, podemos observar que, para a mulher ser artista, mais especificamente
escritora até o século XIX, seria necessário que as mesmas escapassem de tais representações,
e superassem a ideia patriarcal sobre criação e superioridades masculinas, pois, como afirma
Woolf,[...] “Mas é óbvio que os valores das mulheres diferem, com freqüência, dos que foram
estabelecidos pelo outro sexo; isso decerto acontece. E, no entanto, são os valores masculinos
que prevalecem.” (1990 p. 91)
3. O Ensaio de Woolf e o feminino autoral
Como ensaísta, Virginia Woolf abordou insistentemente as questões femininas, não
especificamente as feministas – se formos considerar o termo no sentido político que foi
criado a partir dos anos 60 como movimento político e social sistematizado, p que seria uma
anacronia. De modo geral, a abordagem de VW esteve restritamente ligada ao direito a
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 395
capacidade intelectual e criadora no meio artístico, político e social bem, isto é, o
reconhecimento da capacidade intelectual para representação do mundo presente no feminino.
Em Um teto todo seu (1990), uma de suas obras ensaísticas, VW pontua a posição que
a mulher ocupa na sociedade do mesmo modo que aborda os obstáculos e restrições da mulher
como escritora. Nesta, VW afirma que:
Faça o que fizer, uma mulher não consegue encontrar nelas a fonte de vida eterna
que os críticos lhe garantem estar ali, não é apenas que eles celebrem virtudes
masculinas, imponham valores masculinos e descrevam o mundo dos homens; é que
a emoção de que esses livros estão permeados é incompreensível para uma mulher.
(WOOLF,1990 p. 124)
Nesse trecho VW discute sobre as obras mais renomadas, os ditos clássicos universais,
mas que, segundo a escritora, caem em ouvidos surdos: ela questiona que a “virilidade”
tornou-se consciente de si mesma, ou seja, os homens estão escrevendo a partir de suas
necessidades e de seu próprio intuito – essa universalidade, portanto, diz respeito à
experiência do masculino. Por ser essencialmente masculina, as mulheres que “ousam”
vivenciar a escrita como ato Criativo são estereotipadas como monstruosas – porque ousam se
apoderar/portar o falo/caneta. Acerca disso, Woolf pondera:
Que se pudesse encontrar algumas mulheres com essa disposição de ânimo no
século XVI era obviamente impossível. Basta pensar nos túmulos elisabetanos, com
todas aquelas crianças ajoelhadas, de mãos unidas, e em sua morte prematura, e ver
sua casa de cômodos escuros e abarrotados, para perceber que nenhuma mulher
poderia ter escrito poesia naquela época. O que se esperaria descobrir seria que,
talvez bem mais tarde, alguma grande dama tirasse proveito de sua relativa liberdade
e conforto para publicar algo com seu nome e arriscar-se a ser considerada um
monstro. (WOOLF,1990 p. 73)
Em outras palavras, é necessária coragem para transgredir o paralelo estabelecido
entre o mundo doméstico e o artístico e ter a ousadia para escrever. Ainda em consonância
com VW, “até mesmo uma mulher com um grande pendor para a literatura fora levada a crer
que escrever um livro significava ser ridícula, e até mesmo mostrar-se perturbada”.
(WOOLF,1990 p. 80).
É importante observar que Um teto todo seu (1990) é um ensaio cuidadosamente
estruturado, induzindo-nos a pensar a característica/estilo da escrita que VW escreve. Ela
chama a nossa atenção para uma de suas principais características estética “a representação
pluripessoal da consciência”, a que se refere Auerbach (1971) no seu famoso ensaio sobre a
escritora, intitulado “The brown stocking” (apud OLIVEIRA, 2013, p. 27). Essa característica
Nas fronteiras da linguagem ǀ 396
da escrita de Wolf, na obra ensaística citada, se incorpora na escolha de uma personagem para
narrativizar suas considerações/reflexões:
Assim, ali estava eu (chamem-me Mary Beton, Mary Seton, Mary Carmichael ou o
nome que lhes aprouver — isso não tem a menor importância), sentada à margem de
um rio há uma ou duas semanas, gozando a amena temperatura de outubro, perdida
em cogitações. (WOOLF,1990 p. 9)
Dessa forma, Woolf correlaciona a vida ficcional da personagem aos discursos do
“real’’ sobre o feminino nesse jogo de ficção e realidade. Em seu trabalho sobre A
representação feminina na obra de Virginia Woolf: Um diálogo entre o projeto político e o
estético, Oliveira, (2013) aborda essa voz narrativa no ensaio de VW, a partir da qual
apresenta seu principal argumento:
[...] A perspectiva da narradora parte do macro contexto, ou seja, da arquitetura
patriarcal da cidade de Londres (a universidade, a biblioteca e o museu), para o
micro contexto, os espaços vazios nos livros de história. Assim, o micro contexto
reflete o macro contexto e vice-versa. Ao perceber que o acesso a determinados
espaços lhe é negado, ou mesmo no pobre jantar que é servido para as mulheres, em
comparação com o jantar servido aos homens em Cambridge, Woolf estabelece o
argumento principal de seu ensaio: a mulher precisa de independência econômica e
de certa privacidade para escrever (OLIVEIRA, 2013 p. 27)
Quando Woolf afirma que a mulher precisa ter dinheiro e um teto todo dela se
pretende escrever ficção, a autora/escritora, de fato, destaca que a mulher precisa de
condições/ suportes que favoreçam tanto sua criatividade quanto sua liberdade para exercer
sua capacidade intelectual de forma criativa, sem as restrições comumente impostas aos seus
interesses.
4 O mundo das escritoras em Um teto todo seu
Como já foi mencionada, a obra ensaística de VW gira basicamente em torno da
(auto)afirmação de que toda escritora/criadora precisa ter “um teto todo seu” e 500 mil libras
por ano: esse foco na questão econômica é central para se pensar a constituição da
mulher/escritora como um indivíduo livre, emancipado de sua submissão à vida doméstica:
E, como se queixaria tão veementemente Miss Nightingale — "As mulheres nunca
dispõem de meia hora. . . que possam chamar de sua" —, ela era sempre
interrompida. Mesmo assim, seria mais fácil escrever ali prosa e ficção do que
escrever poesia ou uma peça. Exige-se menos concentração. (WOOLF,1990 p. 83)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 397
Woolf observa que a ficção, por ser uma “uma narrativa literária que menos exigia
concentração” (OLIVEIRA, 2013 p. 58), fez-se a forma mais convencional de escrita entre as
mulheres, pois, além de não haver um espaço que pudessem chamar de “seu” não dispunham
de um tempo restritamente “seu”; o romance, portanto, pela sua forma, era maleável e exigia
menos concentração. Dentre as mais variadas personagens de Um teto todo seu, podemos
destacar Judith Shakespeare, a famosa irmã de Shakespeare, personagem essa que devido às
imposições da época não teria a mesma oportunidade de Shakespeare:
[...] Enquanto isso, sua extraordinariamente bem dotada irmã, suponhamos,
permanecia em casa. Era tão audaciosa, tão imaginativa, tão ansiosa por ver o
mundo quanto ele. Mas não foi mandada à escola. Não teve oportunidade de
aprender gramática e lógica, quanto menos ler Horácio e Virgílio. Pegava um livro
de vez em quando, talvez algum do irmão, e lia algumas páginas. Mas nessas
ocasiões, os pais entravam e lhe diziam que fosse remendar as meias ou cuidar do
guisado e que não andasse no mundo da lua com livros e papéis. Com certeza,
falavam-lhe com firmeza, porém bondosamente, pois eram pessoas abastadas que
conheciam as condições de vida para uma mulher e amavam a filha. (WOOLF, 1990
p. 59-60)
Desconhecida de algum relato da escrita feminina na época de Shakespeare, Woolf
insere Judith como forma de representação as mulheres de dado período afirmando que
mesmo que ela tivesse tanta imaginação e audácia quanto seu irmão ela teria sido privada de
aprender a gramática ou conhecer Virgílio, sendo submetida a lidar apenas com os afazeres
domésticos. Tão talentosa quanto Shakespeare, suas tentativas em apropriar-se da cultura
escrita e dos fazeres criativos/intelectuais, seriam coibidas, levando-a ao desespero até
suicidar-se. Acordando com Woolf concluímos que:
É mais ou menos assim que se daria a história, penso eu, se uma mulher na época de
Shakespeare tivesse tido a genialidade de Shakespeare. De minha parte, porém,
concordo com o falecido bispo, se bispo ele era: nem pensar que alguma mulher da
época de Shakespeare tivesse o gênio de Shakespeare. Isso porque um gênio como o
de Shakespeare não nasce entre pessoas trabalhadoras, sem instrução e humildes.
Não nasceu na Inglaterra entre os saxões e os bretões. Não nasce hoje nas classes
operárias. Como poderia então ter nascido entre mulheres, cujo trabalho começava,
de acordo com o professor Trevelyan, quase antes de largarem as bonecas, que eram
forçadas a ele por seus pais e presas a ele por todo o poder da lei e dos costumes?
(WOOLF, 1990 p.61).
Percebe-se que o argumento de Woolf é amplo e continuamente reforça a questão
econômica e seu papel na constituição de um indivíduo livre: não poderia haver um
Shakespeare feminino naquele tempo, como não pode haver hoje, entre a classe trabalhadora,
porque estes não eram/são livres para poder se concentrar – considerando energia e tempo –
em atividades criativas. Desse modo, VW entrevê a liberdade feminina através da própria
Nas fronteiras da linguagem ǀ 398
“caneta”, que trará além de um teto todo seu, quinhentos mil libras por ano. Woolf citado por
Oliveira (2013) em seu trabalho sobre a representação feminina, afirma que:
Admitindo-se que a mulher da classe média tem agora algum lazer, alguma
educação, e alguma liberdade para investigar o mundo em que ela vive, não será
nesta geração ou na próxima que ela vai ter ajustado a sua posição ou dado uma
clara conta de seus poderes. "Eu tenho os sentimentos de uma mulher", diz
Bathsheba em Longe da Multidão, "mas eu tenho apenas a linguagem dos homens."
A partir desse dilema levantam-se confusões infinitas e complicações. (WOOLF
apud OLIVEIRA, 2013, tradução minha)4
Woolf, neste trecho, constata que não seria em sua geração ou na próxima, que a
mulher iria ter ajustado a sua posição e o seu empoderamento, pois, como vimos durante a
análise, era/é preciso de tempo para que se pudesse forjar na língua uma dicção feminina –
mesmo que a mulher se apodere da caneta, a linguagem ainda é a dos homens, isto é, a
representação ainda é masculina.
Considerações Finais
Iniciemos essas considerações finais por ressaltar a escolha do objeto – não os
romances ou obras ficcionais de Woolf, mas o ensaio Um teto todo seu, parte integrante de
um projeto de pesquisa maior, que pretende mapear a obra ensaística da escritora traduzida no
Brasil. Adorno (2003), em sua defesa do ensaio, aponta-nos o fascínio que o ensaio exerceu
nos românticos e exerce nos escritores-críticos justamente por seu caráter de fragmento, ruína,
na qual se inscreve e se abre o infinito leque de possibilidades interpretativas: ao elidir as
fronteiras entre forma e conteúdo, fundo e forma, o ensaio se aproxima da arte – embora
Adorno (2003) não aceite o pressuposto de que ele possa, também, ser arte. Segundo o autor,
então, esse apreço pelo detalhe, pelo fragmento é uma opção ética, de exercício da humildade
contra o desejo totalizador de se “esgotar” um texto. É essa própria forma do ensaio seu
grande trunfo, uma vez que guarda a memória do processo da escrita, isto é, não procura
apagar o árduo processo de tessitura no qual os conceitos se entrelaçam no próprio fazer da
experiência intelectual. Essa “memória” conservada pela forma apresenta uma outra lógica, a
da coordenação, não a da subordinação. Esse exercício de interpretação e escrita, logo, seria
4No original: “Granted that the woman of the middle class has now some leisure, some education, and some
liberty to investigate the world in which she lives, it will not be in this generation or in the next that she will have
adjusted her position or given a clear account of her powers. ‘I have the feelings of a woman,’ says Bathsheba in
Far from the Madding Crowd, ‘but I have only the language of men.” From that dilemma arise infinite
confusions and complications” (WOOLF apud Oliveira, 2013)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 399
uma escolha por uma ainda que não aparente coerência. Penso que a bela defesa de Adorno
(2003) diz do ensaio e de sua proposta epistemológica:
O ensaio, porém, não admite que seu âmbito de competência lhe seja prescrito. Em
vez de alcançar algo cientificamente ou criar artisticamente alguma coisa, seus
esforços ainda espelham a disponibilidade de quem, como uma criança, não tem
vergonha de se entusiasmar com o que os outros já fizeram. (...) Ele não começa
com Adão e Eva, mas com aquilo sobre o que deseja falar; diz o que a respeito lhe
ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, não onde nada mais resta a dizer:
ocupa, desse modo, um lugar entre os despropósitos. Seus conceitos não são
construídos a partir de um princípio primeiro, nem convergem para um fim último.
Suas interpretações não são filologicamente rígidas e ponderadas, são por princípio
superinterpretações, segundo o veredicto já automatizado daquele intelecto vigilante
que se põe a serviço da estupidez como cão-de-guarda contra o espírito. (ADORNO,
2003, 16-17)
Não por acaso, o ensaio ocupa papel relevante na produção de Woolf, espaço
retomando a temática acerca da ocupação/ superioridade masculina dos espaços de
representação simbólica e a transição, entrelugar, entre os papeis de leitora e escritora.
Rompendo com os modelos impostos, Woolf através de sua escrita, visa propor uma voz e
escrita toda sua, uma outra dicção, não masculina, em contrapartida ao discurso
falologocêntrico imposto no discurso literário: “[e]la coloca-nos frente à essa complexa
realidade e percebemos que apenas falar de gênero não soluciona nossos problemas, que são
tão múltiplos, mas leva-nos a reflexões e questionamentos [...]” (OLIVEIRA, 2013 p. 237). A
relevância de Woolf na contemporaneidade repercute na sua defesa do empoderamento
feminino pela via do simbólico, pelo apoderar-se da própria “caneta”, enfatizando sua
autonomia e individualidade – sua voz.
Referências
ADORNO, Theodor W. “O ensaio como forma”. In: Notas de literatura I. São Paulo: Duas
Cidades; Ed. 34, 2003. p. 15-45.
AUERBACH, E. Mimesis: A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo:
Perspectiva, 1971.
BRANDÃO, Izabel F. O.Virginia Woolf and the Essay under Feminist Eyes. Alagoas, 2013.
In: <http://www.litcult.net/revistamulheres_vol3.php?id=228>. Acesso em: 30 abril 2015.
OLIVEIRA, Maria Aparecida de.A representação feminina na obra de Virginia Woolf: um
diálogo entre o projeto político e o estético. UNESP – SP. 2013. In:
<http://base.repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/103691/oliveira_ma_dr_arafcl.pdf?s
equence=1>. Acesso em: 30 abril 2015
Nas fronteiras da linguagem ǀ 400
WIECHMANN, Natalia Helena. A crítica literária feminista e a autoria feminina. Vocábulo:
Revista de Letras e linguagens midiáticas.
In:http://www.baraodemaua.br/comunicacao/publicacoes/vocabulo/pdf/natalia.pdf. Acesso
em: 01 maio 015.
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo: Círculo do Livro, 1990.
In:<http://brasil.indymedia.org/media/2007/11/402799.pdf> Acesso em:28 abril 2015.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 401
USOS DA LÍNGUA(GEM) NA INTERNET: O QUE
ESTUDANTES DE GRADUAÇÃO PENSAM SOBRE AS
PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA NA COMUNICAÇÃO
VIA DISPOSITIVOS MÓVEIS? [Voltar para Sumário]
Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)
Amanda Cavalcante de Oliveira Lêdo (UFPE)
Introdução
A língua, artefato dinâmico, complexo, heterogêneo e variável (BAGNO, 2007), é
objeto de diferentes representações entre seus usuários, que a utilizam nas distintas práticas de
linguagem de que participam. Os diferentes usos que os falantes/escritores fazem da língua
estão imbuídos de valores e julgamentos sociais e adquirem status diferenciados que, muitas
vezes, são transferidos para os próprios usuários.
É amplamente reconhecido que, com o advento da internet, as práticas de leitura e
escrita se modificaram sensivelmente, tendo em vista os novos recursos permitidos pelo meio
eletrônico. A comunicação via internet, em especial no âmbito das redes sociais digitais, nas
quais os jovens figuram como protagonistas e usuários centrais, muitas vezes lança mão de
uma linguagem característica, conhecida como “linguagem da internet” ou “internetês”, que,
por se afastar significativamente do padrão gráfico da língua, tem sido objeto de intensas
discussões, tanto no âmbito acadêmico como na mídia e na sociedade em geral. Assim, a
comunicação ocorrida através das mídias digitais, a exemplo daquela mediada por
dispositivos móveis tais como smartphones e tablets, frequentemente inclui práticas de
escrita mais flexíveis que são estigmatizadas por se afastarem do modelo de grafia “correta”.
Diante do exposto, este estudo teve como objetivo investigar as concepções de alunos
de dois cursos de graduação a respeito de suas próprias práticas de escrita mediadas por
dispositivos móveis conectados à internet, a partir da análise das respostas desses estudantes a
um questionário sobre como usam/veem a escrita nesses suportes.
Na tentativa de alcançar seus propósitos, o artigo está organizado da seguinte maneira:
Nas fronteiras da linguagem ǀ 402
primeiro, abordamos as noções de língua, variação linguística e internetês que assumimos,
relacionando esses conceitos com as práticas de escrita mediadas pelas tecnologias digitais
móveis. Finalmente, apresentamos nossa análise das respostas dos estudantes, concluindo com
a discussão dos resultados nas considerações finais.
1. Língua e variação
Conforme Marcuschi (2008, p. 59), a língua pode ser vista a partir de diferentes
concepções: (a) como forma ou estrutura; (b) como instrumento de comunicação; (c) como
atividade cognitiva; (d) como atividade sociointerativa situada. Neste trabalho, partimos da
concepção de língua como atividade sociointerativa situada, assumindo que ela se constitui
como fenômeno histórico e cultural, como atividade sociocognitiva e como lugar de interação
social (MARCUSCHI, 2008).
Nesse sentido, a língua é também marcada pela heterogeneidade e constituída por um
conjunto de variedades, igualmente legítimas do ponto de vista linguístico, mas às quais são
atribuídos diferentes status do ponto de vista social. Essas variedades são utilizadas pelos
sujeitos em distintas situações de comunicação, de acordo com os diferentes contextos de
produção (quem são os interlocutores, qual o grau de formalidade, qual o gênero de texto
etc.). Dessa forma, a língua se apresenta como um organismo vivo e intrinsecamente
dinâmico, flexível e variável (BAGNO, 2007; 2014).
Um dos conceitos associados às variedades linguísticas é o de norma padrão, que
consiste em um ideal de língua representado por um conjunto de regras prescrito pela
gramática normativa. O conjunto de usos que mais se aproxima da norma padrão constitui a
norma culta1, que é formada pelas variedades urbanas de prestígio e “designa o conjunto de
fenômenos linguísticos que ocorrem habitualmente no uso dos falantes letrados em situações
mais monitoradas de fala e escrita” (FARACO, 2008, p. 73). Essa variedade recebe grande
valorização social e representa um instrumento de poder e status para os usuários que a
utilizam, como também um fator de exclusão e preconceito contra aqueles que não a
dominam. A supervalorização da norma padrão contribui para a disseminação de valores
1 Embora encontremos na literatura os termos norma padrão e norma culta como sinônimos, nesse trabalho
assumimos, com Bagno (2007), que a primeira noção corresponde a um modelo idealizado e ideologizado e a
segunda diz respeito a usos concretos/reais da língua. Além disso, concordamos com Faraco (2008) em que,
apesar de fazermos referência a uma norma culta (no singular), o que de fato ocorre é uma diversidade de
manifestações linguísticas que acarreta diferentes realizações da linguagem urbana culta. O estudioso também
defende a importância de se distinguir a norma culta falada da norma culta escrita. Tais reflexões sugerem ser
mais adequado pensar em “normas cultas”.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 403
autoritários e discriminatórios. Ela se torna elemento determinante da hegemonia e do
controle de um grupo de prestígio, se transformando em fator de exclusão sociocultural
(MONTEAGUDO, 2011).
A escola figura como um dos principais agentes de valorização, disseminação e
manutenção da ideologia da norma padrão. No contexto escolar, prevalece o discurso de
exaltação da norma, em detrimento das demais variedades, embora recentemente tenha
ocorrido a inserção do tema da variação linguística no currículo, até por força dos PCN.
Contudo, o tratamento dado à questão da variação ainda é incipiente e, muitas vezes,
estereotipado e preconceituoso, na medida em que a variação é tratada como um problema e
não como uma característica inerente à língua2.
A instituição escolar parece tentar se isolar das práticas sociocomunicativas
estabelecidas em outras instâncias, a exemplo das práticas de linguagem que acontecem
através das tecnologias digitais e que utilizam o internetês, sustentando que se utilize a norma
padrão sempre, sob o risco de o falante sofrer graves consequências pela sua infração: ser
julgado e discriminado por seu comportamento linguístico.
1.2. Imaginário social: variação linguística na oralidade e na escrita
Faraco (2011) destaca o poder que têm as imagens e significados que envolvem a
língua e compõem o imaginário social na construção do prestígio da norma padrão e da norma
culta diante das demais variedades linguísticas. Dentre as falácias que constituem esse
imaginário destacamos: (i) associação de língua (apenas) com a modalidade escrita e (ii) a
crença de que a escrita é homogênea.
O primeiro aspecto se relaciona, historicamente, com a eleição pelos estudiosos gregos
de um ideal de língua baseado na consagrada escrita literária clássica. É nesse contexto que
está a origem da gramática tradicional ou normativa, cujas regras têm o intuito de preservar a
maneira mais “correta”, “bela” e “culta” de utilização da língua (BAGNO, 2012). A língua,
nessa concepção, seria representada pela escrita, na medida em que essa modalidade
transportaria a língua do plano abstrato para uma realidade palpável (BAGNO, 2011).
Nesse processo de “corporificação”, a escrita perde o status de mera representação e
passa a ser concebida como a própria língua, a língua concreta (quando na verdade é uma das
modalidades em que ela se apresenta). Com isso, no senso comum, há a transferência das
2 Recomendamos a leitura de Bagno (2013) para uma discussão dos problemas relativos à abordagem da
variação linguística pelos livros didáticos de língua portuguesa.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 404
características dessa modalidade para a língua, ou seja, as pessoas passam a associar os
aspectos típicos de determinado modelo de escrita à língua, como se esta fosse monolítica. Tal
fato também está relacionado à dicotomia entre as duas modalidades da língua: a fala
(considerada desorganizada, informal, desregrada, popular) e a escrita (considerada
organizada, formal, regrada, culta). Se, como lembra Faraco (2011), tradicionalmente se faz
uma estreita vinculação entre “língua escrita” e norma padrão, isso significa que em geral se
toma a “língua oral” (fala) como lugar de variação linguística e a escrita como
intrinsecamente homogênea. Contudo, é importante ressaltar que, como modalidade semiótica
ou forma de representação da língua, a escrita efetivamente se manifesta em diferentes
variedades linguísticas, desde as mais valorizadas, como a norma culta, até aquelas que
recebem estigma social, a exemplo do internetês, do qual trataremos a seguir.
2. Língua(gem) da internet? Considerações sobre o internetês
No ambiente eletrônico, a leitura e a escrita são atividades fundamentais, visto que na
maior parte do tempo, a navegação nos sites requer que os usuários leiam e escrevam com
frequência. As práticas de leitura e escrita em questão se realizam por meio de diversos
gêneros textuais, provenientes das diferentes esferas sociais, aspecto que evidencia como a
linguagem utilizada na internet é igualmente múltipla, tanto do ponto de vista dos recursos
textuais, discursivos e semióticos como das variedades linguísticas. Dessa forma, é possível,
dependendo do gênero, encontrar a utilização de variedades mais ou menos prestigiadas na
rede, embora alguns trabalhos façam referência à “linguagem da internet”, como se fosse
única e homogênea (BEZERRA, 2013).
A fim de evitar generalizações e considerando que não existe uma linguagem única,
mas sim linguagens da/na internet (BEZERRA, 2013), ressaltamos que quando nos referirmos
à “linguagem da internet” ou “internetês”, estamos tratando das práticas
comunicativas/discursivas realizadas em contextos informais em determinados gêneros de
textos, presentes especialmente em sites de relacionamento, blogs e serviços de bate-papo
(chats). Ademais, essas práticas são responsáveis pela formação e manutenção das inúmeras
redes sociais que se constituem em torno desses recursos.
O internetês tem sido descrito como uma “forma grafolinguística” utilizada
tipicamente em textos encontrados em chats, blogs e outros mecanismos mediadores de redes
sociais (KOMESU; TENANI, 2009). Dentre suas principais características, costuma-se citar a
prática frequente da abreviação, a supressão ou acréscimo (repetição) de sinais de pontuação,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 405
a omissão de acentos gráficos, a troca, o acréscimo (inclusive repetição) ou a omissão de
letras. Parcialmente, pelo menos, trata-se de uma escrita simplificada ou reduzida, que parece
se orientar mais fortemente pelo princípio da economia, tendo em vista especialmente a
velocidade da interação.
No presente trabalho, o internetês é tomado como uma variedade linguística no
sentido sociolinguístico do termo (ARAÚJO, 2007), “uma nova, mas não absolutamente
inédita, variedade escrita de uso da língua portuguesa, que se constitui paralelamente à escrita
e à ortografia oficial do português brasileiro” (BEZERRA, 2013, p. 3). Essa variedade,
contudo, é desprestigiada socialmente e, muitas vezes, demonizada pelos discursos escolar e
midiático, responsabilizada por estimular os estudantes a “escreverem errado”. A valorização
das variedades cultas, em detrimento das variedades populares e do internetês (mais ligada ao
aspecto etário), encontra respaldo em discursos sobre a “preservação” da língua portuguesa,
sendo possível detectar preconceito linguístico contra o internetês inclusive da parte de
estudiosos da linguagem (FERREIRA; SHEPHERD, 2011). Dessa forma, o internetês é
constantemente confrontado com o ideal de escrita que é cobrado na escola e o não
reconhecimento dessa variedade leva à preocupação com a “degradação” da língua.
Dentre os recentes trabalhos que têm investigado o internetês, destacamos o de
Bezerra (2013), no qual o autor analisa os sentidos construídos pelo discurso acadêmico a
respeito das práticas de linguagem da/na internet, constatando como a “linguagem da internet”
é, muitas vezes, estigmatizada. Os estudos de Galli (2008), a respeito do imaginário sobre a
escrita a partir da análise de comunidades do Orkut, e de Bezerra (2014), sobre o
normativismo linguístico em páginas do Facebook, também verificam o enraizamento dos
discursos sobre preservação da língua na crítica do uso do internetês e constatam que,
contraditoriamente, os mesmos usuários que “defendem” a língua e pregam a escrita “correta”
transgridem tais normas quando escrevem. Tais exemplos permitem concluir que há
necessidade de mais pesquisas que contribuam para compreender com maior profundidade a
escrita realizada em suportes digitais e desconstruam os preconceitos contra os usos
linguísticos emergentes da/na internet.
4. Concepções dos estudantes sobre a escrita em dispositivos móveis
A fim de observar as concepções de língua escrita e seus usos em dispositivos móveis,
convidamos alunos de dois cursos de graduação, Licenciatura em Letras e Bacharelado em
Direito, de diferentes Universidades, para responder a um questionário com perguntas abertas
Nas fronteiras da linguagem ǀ 406
a respeito de suas práticas de escrita nesses suportes. O corpus que analisamos corresponde às
respostas de 20 estudantes, sendo 10 do 4º período de Licenciatura em Letras e 10 do 1º
período de Direito, durante o 2º semestre de 2014. Esses alunos cursaram ou estavam
cursando pelo menos uma disciplina em que se abordava a língua sob o ponto de vista de sua
heterogeneidade e variabilidade. Em nossa análise, discutimos as concepções de língua e
escrita subjacentes às respostas dos estudantes
4.1. Frequência de uso e preferências
Sobre a frequência com que os estudantes utilizam dispositivos eletrônicos como
smartphones e tablets para se comunicar, especialmente com amigos e familiares, no dia a
dia, cerca de 80% dos entrevistados afirmam que utilizam com muita frequência,
demonstrando que essas tecnologias fazem parte do cotidiano da maioria. Também segundo
os estudantes, os aplicativos que mais usam para participar de redes sociais através de
dispositivos móveis são o Whatsapp e o Facebook. Questionados sobre como avaliavam a
importância desses dispositivos e aplicativos para suas atividades diárias, a maioria dos
estudantes respondeu que eles são muito importantes e muito úteis, porque facilitam a
comunicação no seu dia a dia, e seu uso não se restringe a entretenimento, mas, segundo os
estudantes, é também essencial para a resolução de questões relacionadas a estudo e trabalho.
Considerando a diversidade de pessoas e propósitos com os quais os estudantes
utilizam esses dispositivos (comunicação com familiares, com amigos, com chefes, colegas de
faculdade, colegas de trabalho, enfim, pessoas com diferentes graus de instrução, diferentes
relações e proximidade com o estudante), é possível supor que sejam igualmente múltiplas as
formas como devem utilizar a língua. No entanto, como vamos perceber, ao menos
idealmente, para boa parte deles prevalece a preocupação em escrever de maneira “correta”.
4.2. Os estudantes e o “cuidado” com a língua
Em outra questão, quisemos saber se eles consideravam necessário ter algum cuidado
com o uso da língua portuguesa na comunicação por smartphones ou tablets e por quê. A
maioria deles (60%) respondeu que sim, que é necessário ter o devido cuidado com a escrita
ao usar esses dispositivos. Dentre as justificativas apresentadas, são recorrentes as ideias de
que: (i) o uso “incorreto” da língua passa a imagem de falta de conhecimento sobre ela; (ii)
como o uso desses meios e do internetês influencia o modo como escrevemos, devemos ter
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 407
cuidado para não escrever “errado” em uma situação formal; (iii) devemos escrever
“corretamente” para que a mensagem seja entendida.
É possível perceber, nas respostas dos estudantes, crenças provenientes do senso
comum, tais como o pensamento de que a norma padrão deve prevalecer em todas as
situações de que o usuário participar, especialmente na modalidade escrita; e que utilizar o
internetês influenciaria os estudantes a escreverem “errado” em outras situações. Tais aspectos
contrariam a noção de que o usuário da língua é capaz de adequar as diferentes variedades que
conhece às necessidades da situação comunicativa. Também constatamos a ideia de que, se a
escrita não estiver de acordo com a norma padrão, a compreensão não será possível, não será
comunicação em português (o internetês é frequentemente descrito como uma “nova língua”).
Entretanto, percebemos que a compreensão pode ser prejudicada (mas não impossibilitada)
apenas nos casos em que o usuário não adquiriu minimamente algum letramento nas práticas
digitais, o que não ocorre com os estudantes em questão, dada a frequência de uso dos
dispositivos móveis que afirmam manter.
Nessa questão, uma justificativa chamou nossa atenção: um estudante de Letras afirma
que todos devem ter cuidado com a língua portuguesa ao usar dispositivos móveis, mas
especialmente se for aluno desse curso, visto que se escrever “errado” será mais criticado.
Esse comentário revela a cobrança social sofrida pelo estudante de Letras para que “preze
pela língua”, ou seja, a expectativa de que sempre use a língua “corretamente”, o que significa
de acordo com a norma padrão. Podemos considerar que isso revela o quanto o estudante se
sente constrangido a utilizar essa norma em todas as situações. Ressalte-se que, em geral, tal
cobrança não é estendida com igual intensidade a qualquer pessoa que faça um curso superior.
Tal aspecto se relaciona com o imaginário social de que os estudantes de Letras, professores
de língua em formação, “dominam” (ou precisam “dominar”) a norma padrão.
Ainda sobre a necessidade de cuidado com o uso da língua portuguesa em dispositivos
móveis, 20% dos estudantes responderam que não e 20% responderam que depende,
apresentando justificativas similares para os dois pontos de vista. Dentre elas, é recorrente a
ideia de que a língua deve se adequar ao ambiente/situação/interlocutor. Tal pensamento está
relacionado ao reconhecimento de que há diferentes formas de se comunicar (variedades) e de
que essas formas devem ser usadas adequadamente, de acordo com as necessidades
comunicativas. É possível que essa ideia seja proveniente do contato dos estudantes com
disciplinas que enfatizem o ponto de vista descritivo/científico da língua.
Outro comentário defende que a preocupação em “seguir as regras gramaticais” (isto é,
a norma padrão) depende de, por exemplo, se a escrita fica disponível para a visualização
Nas fronteiras da linguagem ǀ 408
pública, para a exposição de si possibilitada pelas tecnologias digitais. Assim, seria
admissível, por exemplo, não “seguir as regras gramaticais” em uma mensagem de texto
(SMS) privada, mas não seria recomendável fazer isso em um comentário público no
Facebook. Percebe-se que há a preocupação do usuário em não criar uma imagem negativa de
si, associada a determinados usos da língua, menos prestigiados.
4.3. Avaliação dos usos da língua em dispositivos móveis
A respeito de como avaliam a maneira como a maioria das pessoas (conhecidas deles
ou não) utiliza a língua portuguesa ao usar dispositivos móveis para comunicação, parte dos
estudantes respondeu que a maioria das pessoas escreve com displicência, de forma errada,
com muitas abreviações e erros de concordância, com “uso excessivo do ‘internetês’ ou de
gírias”. Já outra parte avalia que as pessoas escrevem de maneira informal, “normal” e de
forma compreensível. No exemplo 01, apresentamos alguns comentários dos estudantes sobre
essa questão:
Exemplo 01: Avaliação dos estudantes sobre o uso da língua em dispositivos móveis
Estudante A: [Essa escrita é] Diferente de uma escrita formal, pois a linguagem utilizada nesses meios procura
ser a mais rápida e estratégica possível.
Estudante B: Eu particularmente não os julgo conscientemente, mas de alguma maneira tenho preconceito ou
ate me afasto de individuos que não se adequaram ao uso da língua em nivel basico por exemplo e tiveram
condições pra isso. Logo, por assumir isso, mesmo que no subconsciente, avalio como uma desconstrução da
língua, a forma como ela é usada.
Com base no exemplo, podemos perceber que existem diferentes graus de aceitação
das práticas de linguagem emergentes na internet e diferentes pontos de vista na avaliação que
se faz dessa escrita, que variam desde assumir que ela é adequada ao meio digital até a
depreciação dos usuários que a utilizam e se afastam da norma padrão (apesar de o próprio
estudante dispensar o uso do acento gráfico, tal qual acontece, de maneira geral, no internetês
que ele critica): o estudante A considera o internetês uma variedade adequada a situações
informais, que atende a uma demanda de escrita “rápida e estratégica” própria da
comunicação através desses dispositivos. Já o estudante B assume ter uma atitude
preconceituosa com as pessoas que não utilizam a língua “em um nível basico”, mas que a
“desconstroem”, posicionamento que defende a soberania da prescrição normativa da língua.
O julgamento depreciativo das atividades linguageiras menos prestigiadas esteve presente em
mais de um comentário e frequentemente foi transferido para os usuários, na imagem que o
estudante faz de si mesmo e do outro, baseados na sua (in)competência linguística. Além
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 409
disso, nota-se o impacto do preconceito linguístico nas relações sociais, na forma de exclusão
(“ate me afasto de individuos que não se adequaram ao uso da língua em nivel basico”).
Em outra questão, perguntamos também como esses estudantes avaliam a própria
maneira como usam a língua através dos dispositivos móveis. De maneira geral, dentre as
respostas mais recorrentes estão que eles consideram que: (i) usam a língua de maneira eficaz
(mas não esclarecem o que significa isso); (ii) escrevem de maneira informal; (iii) depende da
pessoa com quem estão conversando; (iv) procuram escrever respeitando a gramática, mas às
vezes têm preguiça de escrever frases longas ou querem demonstrar sentimentos (por
exemplo, utilizando “kkkk” para indicar risos); (v) tentam escrever da melhor forma possível,
a qual está associada a objetividade, clareza e obediência às regras ortográficas/gramaticais.
Assim, a autoavaliação dos estudantes sugere que a maioria se preocupa em escrever
seguindo as regras da gramática normativa, ainda que, eventualmente, por preguiça ou outra
razão, faça uso do internetês. Aparentemente, os estudantes percebem que existem diferentes
formas de falar e escrever e parecem transitar entre essas variedades conscientemente. Ainda
sobre essa questão, destacamos no exemplo 02 alguns comentários dos estudantes:
Exemplo 02: Avaliação dos estudantes sobre como utilizam a escrita em dispositivos móveis
Estudante C: Entre amigos abrevio as palavras, e quando preciso escrever de forma correta, fico me
perguntando qual a forma certa.
Estudante D: Tento não utilizar alguns termos como “concerteza” para não trazer isso para outras situações.
Em seu argumento, o estudante C considera que a abreviação de palavras que utiliza
quando interage em uma situação de baixa formalidade interfere em seu desempenho quando
necessita escrever segundo a norma padrão, na medida em que fica em dúvida sobre qual a
forma correta. No entanto, acreditamos que, provavelmente, a dúvida sobre a grafia da palavra
é anterior ou independente do uso do internetês e não em sua decorrência. Se, por exemplo, o
estudante escreve na internet “pq” (e isso é suficiente naquela situação), mas quando precisa
escrever segundo a norma padrão fica em dúvida sobre usar “por que”, “porque” “porquê” ou
“por quê”, esse problema é fruto do desconhecimento da regra gramatical pertinente e não
influência do internetês.
Já o estudante D afirma que em sua escrita através dos dispositivos móveis procura
evitar termos como “concerteza”. Nesse caso, parece que há uma confusão bastante comum
entre as pessoas e recorrente nas respostas dos estudantes entre o que seria a escrita típica da
internet (o internetês) e a escrita de outras variedades linguísticas na internet ou fora dela, ou
seja, confundem problemas de ortografia com internetês. Ao considerar que a grafia de
“concerteza” faz parte do internetês, o estudante não leva em conta que ela acontece com
Nas fronteiras da linguagem ǀ 410
frequência em suportes convencionais de escrita com ou sem relação com a internet.
Embora não seja, ao que tudo indica, responsável pelo surgimento de formas como
“concerteza”, o que a internet fez foi conferir maior visibilidade a problemas de aquisição da
grafia oficial que antes ficariam mais restritos a situações específicas de escrita. Esse fato,
antes de ser avaliado primordialmente como algo negativo, pode ser visto como uma
contribuição para um diagnóstico mais exato sobre desafios específicos para o ensino de
aquisição da escrita.
Considerações finais
Nosso objetivo, neste artigo, foi refletir sobre as concepções de alunos de graduação
sobre as práticas de escrita que realizam através de dispositivos móveis. Através da análise
das respostas dos estudantes a um questionário sobre como esses estudantes usam/veem a
língua quando se comunicam por meio de smartphones e tablets, buscamos investigar o
imaginário construído em torno da língua e da escrita.
Foi possível perceber que as tecnologias representadas pelos dispositivos móveis estão
presentes no cotidiano desses estudantes e que sua frequência de uso é acentuada. Entretanto,
como vimos, a maioria dos estudantes considerou ser necessário ter cuidado com a escrita,
apontando a necessidade de “escrever corretamente” nesses suportes, apesar de alguns
também mencionarem a adequação (à situação, ao meio, ao interlocutor) como fator decisivo
para a escolha de como utilizar a língua. Embora os estudantes fossem provenientes de
diferentes cursos superiores, de maneira geral suas respostas foram bastante próximas, exceto
quando alguns estudantes de Letras fizeram referência à expectativa social de que eles
deveriam sempre utilizar a língua “corretamente” devido à cobrança social que recebem em
decorrência do seu curso.
Foi recorrente nas respostas dos estudantes a identificação do valor social atribuído às
variedades linguísticas, juízos que são transferidos para o falante, julgando-o mais positiva ou
negativamente, bem como a preocupação diante da projeção da imagem de si e do outro
através do uso da língua. Acreditamos que os estudantes, assim como os usuários em geral,
têm uma concepção idealizada da própria escrita, seja por considerarem que ela está livre dos
problemas que encontram na escrita dos outros ou, ao contrário, por acharem que não sabem
escrever corretamente. Um desdobramento futuro da reflexão aqui apresentada seria observar
empiricamente as práticas de escrita realizadas efetivamente por esses estudantes em
dispositivos móveis.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 411
O internetês foi frequentemente associado ou confundido com problemas formais
como a ortografia (“concerteza”), a ausência de concordância e a pontuação. O internetês,
embora mais associado a uma faixa etária do que a uma classe social como é o caso das
variedades linguísticas mais estigmatizadas, entretanto compartilha com essas variedades
populares o estigma do “erro” e da não obediência às “regras gramaticais” (isto é, à norma
padrão, tomada como a única norma dotada de regras e de gramática).
Assim, de maneira geral, os posicionamentos estão polarizados basicamente em dois
pontos de vista: por um lado, os estudantes reproduzem o discurso escolar de hegemonia da
norma padrão e preocupação com a preservação da língua, sendo esse o ponto de vista mais
recorrente e, por outro, estão conscientes de que há usos mais ou menos adequados a cada
situação e ambiente. Nesse sentido, ora o internetês (especialmente, em relação à abreviação
das palavras) figura como um problema que deve ser evitado, sob o risco de influenciar a
escrita em situações formais, ora aparece como variedade justificada em virtude da
necessidade de rapidez na escrita ou do alto grau de informalidade, entre outras razões.
Referências
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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 413
O MEDO E A FÚRIA ― MOVIMENTOS DE UMA POÉTICA
DA PARTICIPAÇÃO [Voltar para Sumário]
Bianca Campello Rodrigues Costa (UFPE)
Bruno Eduardo da Rocha Brito (UFPE)
A palavra medo está carregada de tanta vergonha
que a escondemos. Enterramos no mais profundo de
nós o medo que nos domina as entranhas
(G. Delpierre)
O projeto artístico do escritor pernambucano Wellington de Melo tem se destacado
pela abordagem das experiências configuradoras da contemporaneidade, como a relação entre
o homem, realidade e virtualidade, assunto de seu [desvirtual provisório] (poesia, 2008), os
movimentos sociais e sua manipulação política, a homofobia e a pedofilia, alguns dos temas
de Estrangeiro no labirinto (romance, 2013). Dada essa característica, destaca-se entre seus
títulos o desafio auto-imposto pelo poeta de cantar o medo, decisão tomada em O peso do
medo: 30 poemas em fúria (2010). Afinal, mais que uma experiência humana atemporal,
trans-histórica, o medo, como lembra-nos Bauman (2008, p. 9), é uma sensação instintiva
primordial que os humanos dividem com as mais diferentes espécies do reino animal.
É a resolução dada pelo poeta a esse desafio que pretendemos evidenciar nesse estudo.
Para tanto, fundamentamo-nos em três questionamentos. O primeiro é: como se representou
historicamente o medo em literatura? O segundo é: há algo na vivência do medo que constitua
uma experiência identificável como uma forma contemporânea de sentir medo? O último,
consequência do questionamento anterior: havendo um medo específico da
contemporaneidade, que formas artísticas o poeta considerou como aquelas capazes de
expressar essa especificidade? As respostas a essas três indagações, esperamos, esclarecerão
o papel de O peso do medo na poética que seu autor vem erigindo, fundamentando tanto
novas leituras que visem a exploração desse livro como as que se debrucem sobre as demais
produções do escritor.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 414
Comecemos, então, pelo lugar do medo na literatura. A primeira constatação que
fazemos a esse respeito vem do título da abertura do estudo de Jean Delumeau (2009) sobre a
história do medo no Ocidente. Há um silêncio sobre o medo. E esse silêncio, alerta-nos o
historiador, é profundamente político. Da Era Clássica à Idade Moderna o medo foi
confundido com covardia, um sentimento de almas pusilânimes, indignas e incapazes de
ocupar as posições de liderança ― e, consequentemente, de exercer direitos privilegiados.
Fruto e fonte dessa interpretação da experiência humana, a arte representou essa
perspectiva exaltando a valentia e silenciando a representação dos temores. No domínio da
literatura, a coragem é o motor central da poesia épica, considerada elevada, das novelas de
cavalaria e dos romances históricos que a seguiram. Já o medo foi rotineiramente deformado
na covardia característica do vilão, palavra aqui usada em toda extensão da ambiguidade:
vilão-antagonista e vilão-homem da vila, homem comum.
Acrescentamos a essas observações, extraídas de Delumeau (2009), duas informações
importantes. A primeira ressalta que tanto já na era clássica, mas principalmente no período
entre o século XIV e o século XVIII, focalizado pelo historiador, vigoraram poéticas erigidas
ou digeridas dentro de normas hierarquizadoras. Ocorria nos gêneros literários aquilo que
ocorria na organização social dos homens: uma hierarquização que dividia o nobre do vil.
Nesse contexto, havia dois espaços artísticos para representar o medo, ambos inferiores. Num
o medo, deturpado em covardia e superstição, foi alvo da ridicularização que condena os
vícios, papel da comédia, da farsa, da sátira, do travestimento e da charge1. No outro, dá-se
legitimidade à representação do medo porque se representa a única forma de medo
desvinculada do estigma da covardia na sociedade europeia observada por Delumeau: o medo
da danação espiritual pelo pecado, representado pela poesia lírica de temática religiosa.
A segunda observação destaca uma presença oblíqua do medo na literatura clássica e
na literatura da sociedade aristocrática estudada por Delumeau: a do medo como efeito, já
previsto por Aristóteles no conceito de catarse. Aqui o medo se faz presença não como tópico,
mas como fonte de prazer psíquico que educa moralmente. Aqui justapomos à tragédia ática a
tragédia elizabetana e o romance gótico do século XVIII.
A constatação de que o medo foi recalcado pela arte pela sua íntima vinculação com a
estratificação dos regimes aristocráticos poderia sugerir que a suplantação desse modelo
social resultou em uma literatura mais aberta à representação dos medos humanos. No
1 O travestimento, transposição estilística que inverte as significações da obra original, e a charge, inversão do
texto original no campo da composição dos personagens e da ação, são conceitos desenvolvidos longamente por
Genette (2010).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 415
entanto, o advento da sociedade burguesa não foi mais receptivo ao medo. Assim foi porque
ideologicamente a divisão entre homens nobres e homens vis, fundamentada em princípios
diferentes, persistiu durante todo o século XIX. Em certo tempo, sua premissa foi a confiança
absoluta no gênio criador dos românticos, reflexo do entendimento de que alguns homens
eram seres de alma mais nobre que outros, sendo-lhes superiores por seus valores e
sensibilidades. Subsequentemente, na época da confiança absoluta na ciência, embora
igualados os homens por sua condição instintiva e animal, diferentes modalidades de
superioridade foram construídas, destacadamente aquelas proporcionadas pelo domínio da
ciência e aquelas erigidas pela aplicação perversa de ideias dessa mesma ciência: a que
hierarquizou os homens em raças superiores e inferiores e cujos resultados políticos extremos
marcaram a história do século XX. Não é a toa que uma das maiores tragédias humanas
modernas tenha se dado, como caracteriza Bauman (2008, p. 21), citando Jacques Attali,, pela
arrogância humana e seu desconhecimento do medo, e que tenha ocorrido justamente no
momento em que expirava a sociedade burguesa erigida nas bases do Positivismo: o naufrágio
do RMS Titanic.
Seguindo tal raciocínio, é possível que tenhamos encontrado o principal motivo para
que o medo tenha recebido maior atenção artística justamente quando se anuncia a falência
das ideias que sustentaram a sociedade ocidental do século XIX. Foi a partir da insurreição à
arte burguesa e às poéticas normativas das vanguardas que o medo efetivamente ingressou no
rol de temas da arte, tanto fazendo parte da psique dos personagens com os quais o público
relaciona-se empaticamente como sendo cantado em todas as suas manifestações pela poesia
lírica. A demolição das hierarquias de gênero e de temas foi capaz de elevar a angústia
existencial e os medos do cotidiano ― o medo da impotência, o medo da violência, o medo da
sujeição aos outros homens, o medo do isolamento ― a motivo de algumas das grandes obras
artísticas do século, como O grito, Guernica e A metamorfose. No acervo artístico brasileiro,
é Drummond quem canoniza a representação do sentimento em seu Congresso Internacional
do Medo.
Desenvolvido tal panorama, podemos iniciar a resposta das duas primeiras perguntas.
A representação do medo como uma emoção humana legítima, apesar da universalidade e
atemporalidade da experiência, é um fenômeno artístico recente. Tão recente, que,
considerando-se os paradigmas da história da arte, o cânone das letras nacionais, o poema de
Drummond, ainda pode ser considerado, em certos termos, contemporâneo. Tais termos, no
entanto, parecem-nos inadequados, visto que, embora a realização drummondiana tenha o
vigor da trans-historicidade das grandes obras artísticas, sua vinculação a um contexto
Nas fronteiras da linguagem ǀ 416
histórico específico, o da II Guerra Mundial, não deixa de cercar o medo drummondiano de
certa contingência irrelevante para a poesia de Wellington de Melo, produzida sessenta e
cinco anos mais tarde.
Aqui é importante um esclarecimento. A contingência da II Guerra é que é irrelevante
para a poesia de Wellington de Melo. O cânone drummondiano não só não é irrelevante como
ganha o espaço em dois poemas, o gabinete e um espelho. O primeiro é centrado justamente
na negação do medo drummondiano, caracterizado como aristocrático, partidário, de eventos
longínquos, de causas grandiosas, identificável. O medo identificado por Melo como sendo
seu medo, portanto, é o medo da coletividade da massa, apartidário, do cotidiano, das causas
banais e sem identidade. É um “medinho sem-vergonha” (2010, p. 40), e “medíocre”: o medo
da violência urbana, o “medo da bala”.
Portanto, há algo de especificamente contemporâneo na experiência do medo e, por
isso, algo que apenas a contemporaneidade literária poderia representar. Para Bauman (2008),
essa especificidade deve-se à liquidez de todas as certezas, de todas as seguranças que
caracteriza nosso momento histórico. Liga-se, também, a uma cultura que lucra com o medo,
que o explora e o divulga para alavancar a circulação da economia. A liquidez do futuro e da
felicidade do futuro alavancou, por exemplo, o uso cotidiano do crédito bancário, sob a forma
de cartões de crédito e de empréstimos consignados, uma cultura de vida a crédito que se opõe
à cultura da poupança (BAUMAN: 2008, p. 17) que caracterizou as práticas sociais até a
década de 1980. A consequência maior dessa liquidez para a experiência de medo da
contemporaneidade é a impossibilidade de redenção: os medos hodiernos “são incuráveis e,
na verdade, inextirpáveis: chegaram para ficar - podem ser suspensos ou esquecidos
(reprimidos) por algum tempo, mas não exorcizados” (BAUMAN, 2008, p. 43). E essa
incapacidade de exorcismo do medo é representada temática e estruturalmente por Melo em
sua obra. Em arte poética, texto de abertura do livro, que funciona como uma espécie de
proposição autônoma da poesia em desenvolver uma anti-épica, uma odisseia às avessas, não
heroica, o eu lírico (a própria poesia pós-moderna) estabelece que a empreitada de percorrer
os meandros do medo é vazia: o livro é “silêncio pó (...) máscara que se arrasta” (MELO,
2010, p. 14) e “abismo” (Ibid., p. 15). Em art r rog rio, poema que finaliza o volume, “não
acaba” repete-se em onze dos setenta e nove versos que realizam a capitulação ao tema ―
capitulação que se efetiva, num movimento derradeiro, ao mostrar que o ponto de chegada
dessa anti-odisseia, o “livros / de ventre / morto” é o mesmo da partida, “morto ventre de
livros”.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 417
Tendo respondido às duas primeiras indagações, cremos que de modo satisfatório,
daremos sequência ao terceiro questionamento: que formas artísticas são responsáveis pela
expressão do medo contemporâneo na perspectiva estética de Wellington de Melo? Sem a
pretensão de um estudo exaustivo, dado o caráter breve deste ensaio, abordaremos alguns
pontos que consideramos fundamentais.
O primeiro ponto que se destaca no conjunto do livro é a provocação ao leitor para a
construção do ritmo. Para Octavio Paz (2012, p. 58), o ritmo é a alma do discurso poético, a
estrutura organizadora de sua identidade e, mais que medida, “é visão de mundo” (Ibid., p.
66). Um ritmo confortável, estruturado de modo que a repetição dos padrões sonoros torne-se
previsível, seria característico de épocas em que há uma relação harmônica entre o homem e o
tempo. Já o ritmo dissoluto, que rompe padrões, torna imprevisível o rumo da organização
poética, é característico ou de épocas em que a vivência do tempo incorpora a noção de
velocidade e avanço ou de épocas menos confiantes no futuro. Não à toa é o ritmo do jazz e o
da poesia de verso livre do início do século XX.
Os ritmos dos poemas de O peso do medo não se encaixam nem no signo da
constância nem no da dissolução. Isso se deve a dois recursos: a ausência de versos na
estruturação de vinte e nove dos trinta textos e da organização das palavras nos textos. O
poeta usa largamente a elipse de forma a demolir a maior parte dos nexos hierárquicos entre
as palavras e prescinde de qualquer pontuação. Aqui está a primeira forma de participação
poética do livro: a participação do leitor na construção do poema. Se é uma obviedade
absoluta que a literatura só se realiza como leitura, como ação do leitor, é igualmente patente
que a maior parte dos escritores procura prevenir-se do poder dessa leitura, tentando
assegurar-se, pelos mais diversos expedientes, que a atividade do leitor seja controlada. O ato
da leitura de literatura costuma ser hierarquizado: o autor é o destemido que pega em armas
na luta contra as palavras, enquanto o leitor é alma pusilânime governada pelo bravo. Ao fazer
da poesia personagem que invoca sua persona literária para dar voz ao medo da
contemporaneidade, Wellington de Melo intui que o poeta e o leitor são iguais, homens
amarelos e medrosos, sendo incabível a quem escreve determinar como se lê aquilo que se lê,
sendo esse como o tudo da poesia.
Exemplifiquemos a questão com um estudo de caso. Em “o para-brisa” a sequência
“desaba sobre o para-brisa a tempestade o peso do medo afoga enfim o plástico sobre o para-
brisa desabam o caos o sol ramalhetes de pássaros acorrentados” pode ser organizada, entre
muitas outras possibilidades, das seguintes maneiras:
Nas fronteiras da linguagem ǀ 418
1) desaba sobre o para-brisa a tempestade / o peso do medo afoga enfim o plástico / sobre o
para-brisa desabam / o caos o sol ramalhetes / de pássaros acorrentados
2) desaba / sobre o para-brisa / a tempestade / o peso do medo / afoga enfim / o plástico sobre o
para-brisa / desabam / o caos / o sol / ramalhetes de pássaros / acorrentados
A organização das palavras no ato da leitura, privilegiando a oração, no primeiro caso,
privilegiando o sintagma, no segundo, cria diferentes ritmos e diferentes relações sintático-
semânticas. Na primeira possibilidade, um objeto representado metonimicamente pela
substância de que é feito, o plástico, parece estar isolado na paisagem; já na segunda, esse
objeto é levado ao para-brisa pela tempestade.
O confronto entre a constância e a dissolução do ritmo ao longo do livro pode ser
observada como a materialização mesma do campo de batalha que o medo – e a fúria que ele
engendra – estabelece dentro da linguagem, sobretudo a situação em que o medo se encontra
dentro da sociedade pós-moderna: aqui, o conforto e o bem-estar residem no anseio por
liberdade – liberdade essa que só pode ser alcançada dentro de um estado rigoroso de ordem e
fronteiras bem-definidas, facilmente abaláveis pelos movimentos tectônicos do exterior.
Wellington oferece em seu texto a “liberdade” de versos fluidos despidos que qualquer traço
de pontuação, o que gera no leitor a necessidade de “ordenar”, à sua maneira, o ritmo mutante
dos versos para que sua recepção seja alcançada. Essa suspensão do poema entre o constante e
o dissoluto, entre ordem e caos, delineia estruturalmente a dinâmica temática da obra em si:
um equilíbrio paranóico (como se isso fosse possível) entre a repulsa ao medo e o abraço ao
mesmo medo.
Essa dinâmica que o medo oferece à vida banal é refletida na própria estruturação da
obra em si. Dividida em três partes, “o medo a fúria a alcova”, “o medo a fúria o gabinete” e
“o medo a fúria a rua”, o poeta executa um movimento oposto a uma fuga esperada: ao invés
de buscar refúgio da ameaça externa à ordem ensimesmando-se, consolando-se na intimidade
que um quarto sobre o qual apenas ele pode exercer influência, em O peso do medo ele inicia
a sua jornada de dentro para fora, da alcova para a rua, como se seus medos mais íntimos se
sublimassem para o abstrato medo cotidiano e compartilhável.
A primeira parte, “a alcova”, remete imediatamente à parte mais íntima do lar, o
espaço mais interno e, consequentemente, de acesso exclusivo à família. Aqui vê-se o uso
constante da primeira pessoa do possessivo – o poeta assume e compreende, a cada poema, o
“meu” medo, a “minha” fúria, seus próprios pequenos terrores e indignações, e que tratam de
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 419
tudo o que é inalienavemente seu: seu corpo, sua casa, seu filho, sua criação. O exemplo
máximo aqui é, não surpreendentemente, o poema que leva seu nome, “Wellington de Melo”:
não não não não serás grande poeta porque letra não se faz com afago não se faz
com pena do amigo ou de seus alfarrábios não se faz culpando fúria de crítico
frustrado engolindo medo de ser culpado serás funcionário cinza de iniciativa
privada terás alguns belos fins de semana na praia e um ponto zero meio usado uma
vidinha classe média e uns poucos amigos sinceros (...) teu filho encaixotará teus
livros não vendidos num sábado funerário e te esquecerão não serás grande poeta
não não não (2010, p. 16)
Na segunda parte, “o gabinete”, o poeta se torna um observador, medindo e
confrontando seu medo com o de novos interlocutores que surgem nos poemas em
dedicatórias, epígrafes e menções, como o já mencionado contraponto entre os medos de
Wellingon de Melo e Carlos Drummond de Andrade em “um espelho”. As duas partes
possuem dois poemas análogos que esclarecem essa posição entre um “eu” e um “outro”:
“dois tygres” e “um cordeiro”, em clara referência a William Blake e suas Canções de
Inocência e Canções de Experiência. Em “dois tygres”, na Alcova, a Experiência do poeta,
que se desenvolve em sua relação com o “outro”, é personificada pelos tigres da Fúria e do
Medo: para não esquecer quem sou eu pesei minha experiência e plantei dois tygres em
minha retina (2010, p. 31). Já no Gabinete entra em cena “um cordeiro”. Nesse espaço de
confronto a inocência, que representa o “eu” do poeta, é destroçado pelos mesmos dois tygres
plantados pela experiência, ou o desejo de sobreviver ao tal “outro” que permeia essa segunda
parte do livro: para não esquecer quem sou eu pesei minha inocência eu procurei em meu baú
em vão meu cordeiro dos tygres devoram o cordeiro (2010, p. 44). Na cruel representação
especular dos dois terços do livro, o medo do inocente alimenta a fúria do experiente – que
não deixam de ser o mesmo cordeiro: o outro, o mesmo.
Quando o medo desce para a rua, na parte final, o confronto é deflagrado: na cidade,
“eu” e “tu” se tornam “nós” e “eles” e já não há distinção, uma vez que todos mergulham na
mesma turba, o mesmo organismo multicelular regido por ambos medo e fúria, prismados em
caos, em pânico. A paranóia estampada do “contacorpos” que atira ao cidadão, de hora em
hora, o pavor real e imediato de uma violência burra e cega e impessoal que destrói,
deliberadamente, o cordeiro e os dois tygres. Por fim, no poema “Art r Rog rio”, análogo ao
“Wellington de Melo” do começo do livro, a fúria parece arrefecer, e o texto tona pela
primeira vez no livro um formato reconhecível de versos e estrofes, como se agora o poeta
estivesse plenamente consciente do medo e em uma espécie de paz contemplativa, como se
resignado (embora suas últimas palavras, como já mencionadas, repitam as primeiras palavras
Nas fronteiras da linguagem ǀ 420
do primeiro poema, permitindo assim que a serpente morda sua própria cauda e o ciclo se
restabeleça, como o movimento cíclico do tempo platônico repetindo os mesmos astros do
céu). Ao alcançar a rua, Wellington se resigna, ou o medo cumpre sua função de alimentar a
fúria e restaurar o equilíbrio exigido pelo constante estado de alerta, de liberdade vigiada, de
segurança asséptica contra o estranho exterior, que tensiona o cidadão pós-moderno e que,
consequentemente, define quem ele é?
O medo é uma força complexa a exercer pressão sobre o cidadão, e mantém uma
origem exógena, irradiada daquele espaço alheio que se mostra como uma nódoa na tessitura
de normalidade, constância e padronização higiênica do mundo esperado. O medo gera a
fúria, a fúria gera o ódio: tal energia irradiará, assim, do objeto receptor do medo em direção –
a quem? A fúria, aqui, acaba por não achar um objeto de atração concreto, mas sim o próprio
medo, o que colabora e muito para o estabelecimento da fúria banal, mesquinha, beirando o
rotineiro e o entediante, longe da grandiosa boba atômica de Drummond: o medo e a fúria do
homem pós-moderno, do homem-consumidor, como Bauman o define, surgem bem definidos
em “minha fúria” (2010, p. 27):
(...) essa fúria bronca pesada essa fúria jornal nacional essa fúria top 10 fúria
sulanca-caruaru fúria brechó-cabeça fúria cocaína-daslu fúria terceiro de magistério
fúria ementa teoria três fúria trote de medicina fúria afogados da USP fúria
mendigos carbonizados no altar do senhor fúria emiliano zapata fúria beira mar fúria
papa doc fúria no penteado dos alternativos classe média fúria nas narinas brancas
dos porraloucas classe a é minha fúria crack na veia fúria legalize já é minha fúria
maconha-de-grife é minha fúria-glamour fúria chimbinha fúria maria gadú todos
contra todos (...)
Fúria, na realidade, contra medos que são apenas simulacros do que é realmente
temível: assim Wellington assume para si a posição do cidadão pós-moderno, temeroso (e
consequentemente furioso) contra tudo aquilo que perturbe a normalidade e o status quo, tudo
aquilo que possa causar um ruído à sua liberdade pessoal. Aqui se estampa a reação (de medo
e fúria) classe-média contra medos e fúrias alheias que não lhe dizem repseito – mas parecem
se forçar, pressurosamente: o incômodo da classe A, seja ela pequeno-burguesa ou hipster, ou
mesmo o medo que permeia o mundo real e que invade a normalidade por meio da televisão.
O terror representado por François “Papa Doc” Duvalier, sanguinário ditador do Haiti nas
décadas de 60 e 70, transmuta-se no fantasma de um terror pasteurizado que os telejornais
contrabandeiam para o lar casado-com-três-filhos-e-um-seminovo-na-vaga-do-
estacionamento, significando nada.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 421
Dessa forma, o peso do medo: 30 poemas em fúria compõe, sob a forma de um
mosaico, o retrato de uma sociedade que, deliberada e espontaneamente, nutre-se do medo
não com o objetivo de uma evolução e sobrevivência instintivos, ou como o estigma de
fraqueza e covardia condizente com períodos mais nobres e heróicos da humanidade – mas
sim, como um distintivo de orgulho culpado, como o combustível para manter permanência e
estabilidade em tempos pós-modernos, de identidades solidificadas e que, ao mesmo tempo,
têm ojeriza a tal solidificação – essa negação à solidez identitária não estaria ilustrada, nos
poemas de Wellington de Melo, na supressão de vogais nos diversos nomes próprios que
surgem ao longo da obra (com a sonora exceção de seu próprio nome?). Parafraseando a
leitura que Slavoj Zizek faz sobre o paradoxo lacaniano “se Deus está morto, nada é
permitido”, pode-se admitir que, na pós-modernidade, enquanto houver o Medo, toda a Fúria
é permitida.
Referências
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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 423
ENSINO DE ANÁLISE LINGUÍSTICA: REFLEXÕES DE BASE
SOCIOINTERACIONISTA [Voltar para Sumário]
Bruna Bandeira (UFPE)
Introdução
Na área da Linguística, a despeito de avanços teóricos acerca de uma nova concepção
de linguagem — a sociointeracionista, que toma a linguagem como prática social e discursiva
realizada entre sujeitos em contextos sócio-históricos específicos —, é lugar-comum a crítica
de que o ensino de análise linguística (AL)1 no Brasil permanece ligado a uma tradição que
concebe a linguagem como expressão de pensamento e a língua como sistema.
Não refutando nem corroborando tal crítica e considerando que se vive hoje um
momento de transição no ensino de língua portuguesa (LP), este artigo pretende verificar em
que medida as gramáticas escolares têm avançado no sentido de considerar a linguagem — e
consequentemente o uso da língua — como um processo de interação e construção
permanente de sentidos. Para isso, buscou-se analisar a Gramática Reflexiva, volume único,
de William Roberto Cereja e Thereza Cochar — uma das gramáticas escolares para o Ensino
Médio (EM) mais vendidas no País —, em sua primeira (1999) e quarta e última edição
(2013).
O foco de análise deste artigo são as seções Semântica e interação (da primeira
edição) e sua correspondente Semântica e discurso (da última edição), que aparecem ao final
dos capítulos O modelo morfossintático – o sujeito e o predicado, Termos ligados ao verbo:
objeto direto, objeto indireto, adjunto adverbial, Termos ligados ao nome: adjunto adnominal
e complemento nominal e Termos ligados ao nome: aposto e vocativo. A escolha pela
morfossintaxe e, dentro dela, pelo estudo dos termos da oração2 deve-se ao fato de que este é
1 O termo análise linguística foi cunhado por João Wanderley Geraldi, aparecendo pela primeira vez em 1981 no
texto Subsídios metodológicos para o ensino de língua portuguesa. Trata-se de uma inovação não apenas
terminológica, mas também metodológica. 2 Reconhecemos que termos da oração é uma expressão típica da gramática normativa, de cunho estruturalista,
mas seguiremos usando-a por falta de outra equivalente.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 424
um assunto em que normalmente os alunos demonstram certa dificuldade e que pode
facilmente ser problematizado à luz de uma perspectiva sociointeracionista.
Como este artigo parte do pressuposto de que a obra objeto de sua análise trata a
morfossintaxe diferentemente de gramáticas mais tradicionais, cabe aqui explicar que
abordagem estas vêm dando e como ela pode ser problematizada. A chamada gramática
normativa3 costuma propor uma hierarquia dos termos da oração. Assim, toma como “termos
essenciais”, por exemplo, o sujeito e o predicado. Como se explica, então, que possa haver
uma “oração sem sujeito” se este é um “termo essencial”? Seguindo essa hierarquização,
seriam “termos integrantes” os complementos verbais (objeto direto e objeto indireto) e
nominais e o agente da passiva e “termos acessórios” os adjuntos verbais e nominais, o aposto
e o vocativo. Mas por que chamar de “acessório” um termo como o adjunto adverbial ou o
aposto, que muitas vezes carreiam as informações mais importantes do ponto de vista da
intencionalidade do enunciador?
Percebe-se, portanto, o quanto essa hierarquia apenas faz sentido do ponto de vista
estrutural da gramática normativa. No discurso, essa “lógica” se perde. Ao analisar o ensino
de LP sob a perspectiva sociointeracionista, este artigo considera essenciais as contribuições
dos estudos que veem a língua como algo dinâmico, refletindo a relação instável entre a
estrutura e os sentido(s) que ela é capaz de construir.
A difícil superação do tradicional no ensino de análise linguística
Atualmente pode-se dizer que a grande maioria dos docentes de LP em atividade no
Brasil já teve algum tipo de contato com a ciência linguística, já que esta possui mais de cinco
décadas de existência. Mas então, se os professores já conhecem as novas teorias linguísticas
que colocam a interação e o processo de enunciação como centrais, por que permanece tão
difícil superar o tradicional ensino focado na gramática normativa ou descritiva?
Primeiramente, é importante ressaltar que se está falando de práticas seculares já
cristalizadas. Sabe-se o quanto a gramática normativa exerceu um papel de importante
embasamento nessa disciplina, acarretando um ensino focado na estrutura e, mais ainda, em
uma estrutura dada como definitiva e indigna de reflexão.
3 Esclarecimentos acerca dos tipos de gramática considerados relevantes para este artigo serão dados mais
adiante. Por enquanto, cabe esclarecer que os critérios de tipificação das gramáticas são diversos e que, ainda
dentro do mesmo critério, alguns autores divergem quando consideram, por exemplo, normativa tanto a
gramática prescritiva quanto a descritiva.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 425
Em segundo lugar, cumpre destacar que o sistema de ensino está fortemente enraizado
nessa tradição e, muito provavelmente, sozinho, o recém-formado professor se sente
intimidado para afrontar práticas já enraizadas. Entre os estudiosos da Linguística, há os mais
radicais, que defendem o abandono total do ensino da gramática e sua substituição por
“estudos da linguagem”, e os que questionam o rigor dos preceitos da gramática normativa e a
forma como ela vem sendo estudada, mas não a rejeitam por completo e geralmente abordam
uma perspectiva semântica, textual ou discursiva da língua. Assim, até agora o que se vê na
maioria das escolas não é exatamente uma mudança da prática pedagógica em ensino de LP, e
sim alterações pontuais na abordagem de alguns conteúdos gramaticais já estudados por esses
linguistas.
Uma rápida análise tanto de documentos orientadores — a exemplo das Orientações
Curriculares para o Ensino Médio (OCEM, 2006) e do Guia de Livros Didáticos do Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD, 2012) — quanto de livros didáticos de LP recentemente
publicados é capaz de demonstrar a tendência de um ensino de gramática contextualizado e
centrado no texto. Mas de que forma isso tem sido feito em muitas escolas? Cereja oferece
uma resposta bastante convincente a esse questionamento: “O que se notava, e ainda se nota
hoje, é o uso do texto como mero pretexto para o tradicional ensino da gramática da frase. [...]
O texto, como unidade de sentido ou como discurso, é completamente esquecido” (CEREJA,
2002, p. 156).
Mesmo entre os livros que fogem a essa prática, são poucos os que aproveitam a
oportunidade de relacionar a AL com as possibilidades de leitura, analisando como a língua é
utilizada em todas as suas dimensões para construir sentido(s) no texto. Ao seguir a
perspectiva sociointeracionista, o ensino de LP dá um “passo a mais” procurando
instrumentalizar o estudante para interagir eficientemente nas suas práticas discursivas:
Se os estudos de linguagem a partir de textos representam um avanço significativo
em relação à gramática normativa, a abordagem enunciativa representa um passo a
mais, uma vez que, além de examinar as escolhas lingüísticas responsáveis pela
construção de sentido, examina também os elementos externos ao texto, que [...]
interagem com os elementos internos e participam da construção de sentido global
do texto. (CEREJA, 2002, p. 159)
Algumas propostas de trabalho nesse sentido foram e vêm sendo desenvolvidas como
as de João Wanderley Geraldi e Luiz Carlos Travaglia.
Geraldi e Travaglia: duas propostas sociointeracionistas de ensino de AL
Nas fronteiras da linguagem ǀ 426
Para elaborar sua proposta de trabalho para o eixo de AL, o professor e pesquisador
João Wanderley Geraldi reflete sobre três tipos de atividades, que resumidamente poderiam
ser assim definidas: a atividade linguística remete à atividade da linguagem propriamente
dita, ou seja, aos usos que fazemos da língua nas circunstâncias cotidianas de comunicação; a
atividade epilinguística refere-se à capacidade que todo falante tem de, com a linguagem,
operar sobre ela, de maneira consciente ou não, fazendo retomadas, avaliando os recursos
expressivos de que se utiliza, realizando escolhas, corrigindo estruturas, etc.; e as atividades
metalinguísticas são as atividades que refletem, de modo consciente e sistemático, sobre a
linguagem, resultando em teorias e taxonomias. Entretanto, não se trata de uma distinção
classificatória de fenômenos linguísticos, afinal essas três atividades são realizadas
concomitantemente e devem ser consideradas no ensino de LP.
Para Geraldi (1997), a linguagem é entendida como uma sistematização aberta de
“recursos expressivos” cuja concretude significativa se dá na singularidade dos
acontecimentos interativos. Por isso, refletir sobre os próprios recursos utilizados é uma
constante em cada processo, ainda que isso se dê de maneira inconsciente. Feitas essas
ressalvas, o pesquisador embasa sua proposta no texto do aluno, tomando-o como “ponto de
partida e de chegada”.4 Considerando que, com a linguagem, falamos não só sobre o mundo,
mas também sobre o modo como falamos do mundo e que o estudante chega à escola já
dominando uma variedade de sua língua materna, qual seja sua gramática internalizada,
centrar o ensino na produção de textos é dar a palavra ao aluno e deixá-lo apontar que
caminhos deverão ser trilhados no aprofundamento da sua compreensão tanto dos fatos de que
fala quanto das estratégias que utiliza. Tal trabalho daria conta de processos e fenômenos
enunciativos, e não apenas de ordem estrutural.
Na verdade, o que o autor propõe é que as atividades epilinguísticas realizadas
intuitivamente pelos alunos sejam a ponte para a sistematização metalinguística. Ao comparar
diferentes formas de escrever textos, os alunos compreendem a existência de diversas
configurações textuais e variedades linguísticas e, no confronto destas, aprendem novas
configurações e processam a construção de nova variedade padrão. Depois dessas reflexões,
voltar aos textos dos alunos e fazê-los reescrevê-los não significa partir dos erros para mostrar
os acertos, mas antes partir do erro para a autocorreção e ampliação do saber. Nesse sentido,
a gramática seria usada como suporte, conforme explica o autor:
4 Como Geraldi analisa os três eixos de ensino de LP, propõe que o trabalho integral se inicie com o texto do
aluno, passe por leituras complementares e volte ao texto inicial do aluno para um trabalho de AL.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 427
Penso as atividades epilingüísticas como condição para a busca significativa de
outras reflexões sobre a linguagem. Note-se, pois, que não estou banindo das salas
de aulas as gramáticas (tradicionais ou não), mas considerando-as fontes de procura
de outras reflexões sobre as questões que nos ocupam nas atividades epilingüísticas.
(GERALDI, 1997, pp. 191-192)
Já o também professor e pesquisador Luiz Carlos Travaglia formula sua proposta
igualmente embasada na perspectiva sociointeracionista da linguagem, encarando o texto
como um conjunto de pistas que funcionam como instruções para o estabelecimento de
efeito(s) de sentido em uma determinada interação comunicativa. Dessa forma, considera que
o objetivo principal do ensino de língua materna é desenvolver a competência comunicativa
dos alunos e, para isso, defende um “ensino produtivo”, a fim de que eles adquiram novas
habilidades linguísticas. Travaglia não descarta o ensino descritivo e prescritivo da língua,
mas acredita que ele deva ter seu lugar redimensionado na sala de aula. Para ele, mais
importante do que ditar regras ou partir do uso da língua para estabelecê-las é refletir sobre a
linguagem.
A diferenciação que o autor faz de quatro tipos de gramática é fundamental para
compreender sua proposta. A gramática de uso (1) seria aquela não consciente, implícita e
ligada à gramática internalizada do falante. Para o ensino, ela seria útil nas atividades que
buscam desenvolver o uso automático das unidades, das regras e dos princípios da língua,
além dos recursos das suas diferentes variedades, mas sem que estes sejam explicitados
metalinguisticamente. Serviriam para esse fim exercícios estruturais, qualquer atividade de
produção e compreensão de texto, exercícios de vocabulário e atividades com variedades
linguísticas.
A gramática reflexiva (2) seria aquela que surge da reflexão com base tanto no
conhecimento intuitivo dos mecanismos da língua que o aluno já domina quanto no trabalho
com os conhecimentos linguísticos que ele ainda não domina. Para esse fim, haveria dois
tipos de exercícios: os que levam o aluno a explicitar fatos da estrutura e do funcionamento da
língua (em vez de dar a teoria gramatical pronta para o aluno, construir atividades que o
levem a redescobrir o que as ciências linguísticas já deram a conhecer) e os que focam nos
efeitos de sentido que os elementos da língua são capazes de produzir na interlocução. O autor
faz uma ressalva quanto ao primeiro tipo de exercícios: “Não há evidência de que o
conhecimento sobre esses aspectos mais estruturais da língua (dados por meio de várias
metodologias) tenha levado ao desenvolvimento da competência comunicativa”
(TRAVAGLIA, 2009, pp. 143-144). Esses exercícios serviriam como recurso auxiliar para
levar o aluno a conhecer a instituição social que é a língua, ensinando-o a pensar. O mais
Nas fronteiras da linguagem ǀ 428
importante, tendo em vista o objetivo de desenvolver a competência comunicativa dos alunos,
seria, portanto, o segundo tipo de atividades.
Já a gramática teórica (3) seria a gramática explícita, uma sistematização teórica sobre
a língua e os conhecimentos que se tem dela por meio de uma metalinguagem apropriada e
ditada por teorias e modelos das ciências linguísticas. Esta não deve ser confundida com a
gramática normativa, que tem mais um caráter de legislação do que de descrição. O
pesquisador não descarta o uso dessa gramática nas aulas de LP, mas defende que ela não seja
um fim em si mesma. O objetivo dessa sistematização seria munir o aluno das ferramentas
que lhe facilitem pensar cientificamente, desenvolvendo as habilidades de observação,
raciocínio, levantamento de hipóteses e argumentação. Para trabalhar com essa gramática, o
professor, além de ter bom-senso para selecionar as informações teóricas pertinentes, deve ter
espírito crítico, e não querer passar teorias prontas e acabadas, muitas vezes problemáticas,
aos aprendizes.
Finalmente a gramática normativa (4), como gramática do bom uso da variedade culta
e padrão da língua, também deve ser considerada no ensino/aprendizagem, mas, assim como a
teórica, não como um fim em si mesma e, ademais, com os seguintes cuidados: deixando
claro (i) que esta é apenas uma das variedades; (ii) que considerar esta como a única
variedade correta cria preconceitos de toda espécie e ignora os usos orais da língua; (iii) que é
importante conhecê-la para usá-la quando se tem que atender a normas sociais de uso em
situações formais; (iv) que os recursos ensinados são uma qualidade ou um problema não em
si mesmos, mas conforme o uso que o interlocutor faz deles na situação interativa específica.
Enfim, de forma resumida, o que o autor propõe é que:
o ensino da gramática seja basicamente voltado para uma gramática de uso e para
uma gramática reflexiva, com o auxílio de um pouco de gramática teórica e
normativa, mas tendo sempre em mente a questão da interação numa situação
específica de comunicação e ainda [que] o que faz da sequência linguística um texto
é exatamente a possibilidade de estabelecer um efeito de sentido para o texto como
um todo. (TRAVAGLIA, 2009, p. 108)
No entanto, como ele mesmo ressalta, os quatro tipos de gramática podem ou não ser
utilizados em um mesmo conteúdo para uma mesma turma em qualquer nível de ensino. O
que deve determinar isso é o conteúdo trabalhado, as condições dos alunos, o objetivo do
ensino, o tempo disponível e outros fatores que o professor julgar conveniente.
Análise da Gramática Reflexiva: construindo sentido(s) no e para o ensino
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 429
Diferentemente de gramáticas escolares tradicionais, a Gramática Reflexiva, desde sua
primeira edição, não fala em hierarquia entre os termos oracionais, tampouco usa as
denominações termos integrantes para os complementos verbais (objeto direto e objeto
indireto) e nominais e o agente da passiva e termos acessórios para os adjuntos verbais e
nominais, o aposto e o vocativo5. Em vez disso, destaca o sujeito e predicado colocando-os
logo no primeiro capítulo e chama a atenção para o elemento a que os demais termos se
ligam: se a um nome ou a um verbo.
Em toda abertura de capítulo, a Gramática Reflexiva (e o próprio título sugere isso)
parte de atividades que levam o aluno a tirar conclusões que irão ajudá-lo a construir os
conceitos. Trata-se do primeiro tipo de exercício da gramática reflexiva de Travaglia, que,
como dito acima, em vez de dar a teoria gramatical pronta para o aluno, constrói atividades
que o levam a redescobrir o que as ciências linguísticas já deram a conhecer. O foco desta
análise, no entanto, relaciona-se ao segundo tipo de exercício da gramática reflexiva de
Travaglia: os que se centram nos efeitos de sentido que os elementos da língua são capazes de
produzir na interlocução. Mais especificamente, serão analisados alguns exercícios desse tipo
presentes nas seções Semântica e interação (na primeira edição) e sua correspondente
Semântica e discurso (na última edição).
No capítulo O modelo morfossintático – o sujeito e o predicado, a seção Semântica e
interação da primeira edição da gramática traz uma tirinha de Dik Browne que mostra a
interação entre Eddie Sortudo e Hagar, em que o primeiro personagem fala “Veja! Posso
chutar minha cabeça! Aposto que você não pode!” e gesticula colocando os próprios pés na
cabeça, ao que o segundo personagem responde “Ah, é?!” e chuta a cabeça de seu
interlocutor. O primeiro quesito, ao elucidar o contexto de interação entre os personagens e a
intenção comunicativa de Eddie Sortudo, induz o aluno a perceber que o predicado implícito
da segunda oração (“chutar sua própria cabeça”) gerou uma ambiguidade, na qual o humor da
tira se constitui. Assim, o aluno consegue facilmente identificar o efeito de sentido do texto e
relacioná-lo ao objeto de estudo (predicado).
Já a seção Semântica e discurso da última edição traz uma notícia retirada da revista
Veja intitulada “Sopa de plástico” do Pacífico aumentou 100 vezes em 40 anos. As questões
sobre esse texto levam o aluno a perceber que nem sempre o sujeito é o agente da ação verbal
5 Embora a denominação termos essenciais para o sujeito e o predicado não seja usada na divisão dos capítulos,
ela aparece apenas na primeira edição e de maneira quase aleatória tanto na explicação que os autores dão a esses
termos quanto nos enunciados de alguns exercícios.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 430
e dos fatos e que a escolha pela omissão ou explicitação dos responsáveis por essa ação é
também uma forma de “manipular” o efeito de sentido do texto. A letra “b” do terceiro
quesito pergunta: “Na notícia lida, qual é o efeito da escolha pela omissão ou explicitação dos
responsáveis pela ação verbal?”. Para respondê-la, o aluno precisa voltar às questões
anteriores e perceber que, quando a ação é negativa (poluir o Pacífico), a escolha da revista é
omitir o ser humano como agente e colocar como sujeito as expressões “sopa de plástico”,
“acúmulo de plástico” e “enorme redemoinho de lixo plástico”, fazendo parecer que a
responsabilidade pelo aumento do lixo não é de ninguém; já quando a ação verbal é positiva
(mostrar, revelar, alertar para descobertas científicas), o texto opta por colocar cientistas e
pesquisas como sujeitos, valorizando esses estudiosos e conferindo maior credibilidade à
notícia.
No capítulo Termos ligados ao verbo: objeto direto, objeto indireto, adjunto
adverbial, Cereja e Cochar optam por colocar o adjunto adverbial como termo ligado ao verbo
embora façam a ressalva de que “Os adjuntos adverbiais de intensidade, além de acompanhar
o verbo, podem acompanhar substantivos, adjetivos e advérbios” (CEREJA E COCHAR,
1999, p. 225).
A seção Semântica e interação da primeira edição da gramática traz a história em
quadrinhos As férias de Peteca, de Glauco, que é formada por uma sequência em que os
quatro primeiros quadrinhos mostram a personagem principal, Peteca, em alguma capital do
Brasil, acompanhada de um garoto. As legendas dizem: “Em Salvador, fiquei com o
Rodolfinho! / Em Porto Alegre, com o Fredinho! / Em Floripa, eu fiquei com o Paulinho! /
No Rio, fiquei com o Rubinho!”. O último quadro surpreende com a imagem de um garoto
em cima de um edifício sozinho e uivando “Aúúúúú”. A legenda diz: “E o Bodi Pit, meu
namorado, ficou em Sampa, tadinho!”. Os exercícios referentes a esse texto focam nos
adjuntos adverbiais que indicam os lugares por onde Peteca passou; nos diferentes sentidos
que o verbo ficar assume dependendo de sua predicação; no uso do diminutivo nos nomes
próprios em função de objeto indireto nos quatro primeiros quadrinhos e no não uso deste no
último quadrinho; e na intenção de Peteca ao empregar aí a variedade linguística “tadinho”.
Além de usar a linguagem do jovem, esse exercício reflete sobre como as variedades
linguísticas reconstroem sentidos usuais (no caso, do verbo ficar) e sobre como o uso do grau
dos substantivos e adjetivos está relacionado não apenas ao tamanho ou à intensidade do
referente, mas também à marcação de intenções do locutor (no caso, mostrar simpatia, afeição
ou intimidade nos nomes próprios dos garotos com quem Peteca ficou ou dó, pena e ironia no
uso de “tadinho”).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 431
Já na seção Semântica e discurso da última edição da gramática traz o poema Morte de
Clarice Lispector, de Ferreira Gullar. O primeiro exercício e as letras iniciais do segundo,
mais estruturais, questionam sobre referente, função sintática, transitividade de verbos e
reconhecimento do sujeito. O questionamento sobre o porquê de o sujeito do verbo enterrar
não está explícito no verso “Enquanto te enterravam no cemitério judeu”, embora não use a
expressão intenção e os tipos de sujeito ainda não tenham sido apresentados, exige que o
aluno perceba que não há o interesse do enunciador em saber nem dizer quem enterrava a
escritora Clarice Lispector, por isso opta pelo sujeito indeterminado. Somente na letra “c” do
segundo quesito aparece mais claramente uma pergunta sobre a relação da estrutura com o
sentido do poema: “Que relação semântica é estabelecida no poema entre o sujeito da forma
verbal mostravam, o eu lírico e o restante do mundo?”. Referindo-se ao trecho do poema “as
pedras, as nuvens e as árvores / no vento / mostravam alegremente / que não dependem de
nós”, essa pergunta faz o aluno recuperar o sujeito “as pedras, as nuvens e as árvores”, pensar
na situação em que o eu lírico parece ter produzido o enunciado — por ocasião da sua ida ao
enterro de Clarice Lispector — e estabelecer uma relação de tudo isso com o mundo em que
vive. Assim, espera-se que ele chegue à conclusão de que se estabelece aí uma relação de
independência, pois a morte de uma pessoa e a tristeza de outra não impedem a alegria do
mundo. Ao relacionar os tópicos trabalhados a elementos contextuais do mundo que cerca o
aluno, a Gramática Reflexiva permite que se estabeleçam, em sala de aula, discussões ricas
sobre possíveis interpretações e opiniões dos alunos.
Com relação ao capítulo Termos ligados ao nome: adjunto adnominal e complemento
nominal, a seção Semântica e interação da primeira edição traz um anúncio da Honda
publicado na revista Caras e que é formado por duas partes: a primeira mostra o seguinte
texto na frente da imagem do Parthenon, na Grécia: “Há 250 anos na Grécia antiga nasceu
Hermes. Deus do vento, da velocidade e da liberdade. O único deus do Olimpo que não tinha
templo. Porque, como tinha asas nos pés, Hermes nunca parava em casa. Na Grécia nasceu o
desejo de liberdade. Nós só acrescentamos as cilindradas”. A segunda parte, com uma
imagem de um pé alado em grandes proporções, diz: “A mitologia grega explica o seu desejo
de vento, liberdade e velocidade”. O primeiro quesito explora a diferenciação semântica das
funções sintáticas em estudo no contexto específico desse anúncio. Assim, o aluno teria que
reconhecer que, em “Deus do vento, da velocidade e da liberdade”, as expressões destacadas
são adj. adn. porque cumprem a função de especificar, dar atributos a “Deus” e que, em
“desejo de vento, liberdade e velocidade”, as expressões em itálico são CN porque são alvo
do desejo. Tal exercício é importante porque faz o aluno perceber, em situações concretas de
Nas fronteiras da linguagem ǀ 432
uso, as diferentes funções dos termos estudados relacionando-as aos sentidos que constroem.
Os demais exercícios levam os estudantes a ativar seus conhecimentos prévios ao terem que:
reconhecer que o homem sempre teve, segundo o anúncio, desejo de voar; identificar o
público-alvo do anúncio, os consumidores de motocicleta, que, em geral, apreciam a
velocidade, a liberdade e o vento; elencar os prováveis valores explorados como estratégia
para persuadir o interlocutor: liberdade, independência, autonomia, autossuficiência.
Na seção Semântica e interação da última edição da gramática, aparece um anúncio da
Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero) publicado na revista Gol, que,
mostrando a imagem de uma esteira de raio-x no aeroporto com uma bandeja cheia de
medalhas e outros objetos pessoais, como chaves, caneta, moeda e celular, traz o texto
“Patrocinar o judô brasileiro é ter a certeza de duas coisas: que nossos atletas vão lutar nas
maiores competições do mundo. E que não vão voltar de mãos vazias”. O primeiro exercício
pede que o aluno identifique o anunciante e o público-alvo. O segundo explora a
diferenciação semântica das funções sintáticas em estudo no contexto desse anúncio. O
terceiro, destacando as certezas que o locutor tem, solicita que o aluno identifique os adj. adv.
que correspondem às circunstâncias em que ocorrerão as ações indicadas nas construções
verbais vão lutar e não vão voltar. O exercício segue perguntando sobre os adj. adn. que
especificam ou conferem atributo aos núcleos dos adj. adv. (“as, maiores, do mundo”/“as,
vazias”) e que sentido atribuem ao desempenho dos judocas brasileiros (o de que eles se
classificam entre os maiores do mundo). Esse exercício, além de revisar um termo já estudado
(adj. adv.), mostra que o adj. adn. pode estar presente em qualquer termo cujo núcleo seja um
nome e que sua função será a de especificar ou conferir atributos a esse nome. Finalmente o
último exercício pede que o aluno examine o conteúdo da bandeja na imagem e pergunta que
relação há entre a parte verbal e não verbal do anúncio, mostrando que ambas as linguagens se
complementam para construir o sentido global do texto.
No capítulo Termos ligados ao nome: aposto e vocativo, a seção Semântica e
interação da primeira edição traz uma charge de Adail et. alli que mostra duas mulheres
sentadas conversando, sendo que uma delas, descalça, carrega um bebê no colo e diz à sua
interlocutora: “Ah, minha filha, aqui nessa casa nunca faltou nada: meningite, escorbuto,
mononucleose, rubéola, coccideose, cólera, esquistossomose, sífilis, chagas, virose, amebas,
disenteria, brucelose...”. Os exercícios exploram o reconhecimento da classe gramatical e do
valor semântico da palavra “Ah”, a identificação do aposto e do vocativo, o campo semântico
dos substantivos que compõem o aposto, o significado do pronome indefinido nada no
enunciado e a explicação do humor da charge, nessa ordem. Portanto, somente depois de
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 433
responder a todas as perguntas, o aluno fica munido de informações e reflexões suficientes
para concluir que o humor reside na quebra de expectativa do leitor. Interessante é destacar
que o pronome indefinido nada, nesse contexto, significa seu oposto quando, depois dele,
vêm enumeradas “várias” doenças, corroborando a visão de que somente o ensino estrutural
(focado em nomenclaturas e classificações) não dá conta das inúmeras possibilidades de uso e
significado dos termos.
A seção Semântica e interação da última edição apresenta o poema Os confidentes (I),
de José Paulo Paes. Os dois primeiros exercícios focam na identificação do interlocutor do eu
lírico e sua função sintática (vocativo), no reconhecimento do emprego de expressões em
referência a Vila Rica, no papel semântico e na função dessas expressões (aposto), nessa
ordem. Ou seja, somente após fazer o aluno perceber o papel que desempenham (sua função)
e o valor semântico dos termos vocativo e aposto, os exercícios pedem sua nomenclatura. O
último exercício faz o aluno notar que algumas estrofes do poema cantam a vileza dos
habitantes de Vila Rica, enquanto outras descrevem a riqueza dessa cidade; o faz associar o
tema tratado ao fato histórico Inconfidência Mineira; e finalmente pede que ele troque ideias
com os colegas para concluir qual a função sintática do último verso “Vila Rica vil e rica”,
que resume todo o poema. Para este último questionamento, há duas possibilidades de
resposta dependendo da interpretação do poema: “Vila Rica vil e rica” pode ser um vocativo
servindo como interlocutor do eu lírico; ou, considerando-se o verbo ser subentendido —
“Vila Rica, (és) vil e rica” —, Vila Rica seria o sujeito e vil e rica, o predicativo do sujeito.
Considerações finais
Tendo-se em conta o lícito reconhecimento de que o ensino de LP precisa de
mudanças; de que se deve refletir cientificamente sobre a linguagem para “construir, e não
reproduzir conhecimentos”, como diz Geraldi; de que o que se deve buscar é o
“desenvolvimento da competência comunicativa dos alunos”, para usar as palavras de
Travaglia, podemos perceber que alguns caminhos já começaram a ser apontados.
Se o texto é único como enunciado, mas múltiplo enquanto possibilidade aberta de
atribuição de sentidos; se a escola deve garantir o exercício de uso amplo da linguagem no seu
espaço; e se há um interesse em renovar o ensino de LP, modificando, diversificando e
ampliando o ponto de vista sobre seu objeto de estudo, exercícios como os analisados neste
artigo — que priorizam a função dos termos estudados para somente depois chegarem às suas
nomenclaturas; que mostram a forma (o estilo do autor) reforçando o conteúdo; que convidam
Nas fronteiras da linguagem ǀ 434
o aluno a ser copartícipe do processo de construção de sentido(s) para o texto; que associam
os recursos linguísticos à sua capacidade de potencializar significados em uma situação
específica de interação; que refletem sobre como as variedades linguísticas reconstroem
sentidos usuais; que exigem que os alunos recuperem (ou criem) a situação em que
provavelmente os textos analisados foram enunciados; que mostram como a colocação dos
termos na frase não é aleatória, mas depende da intenção do locutor; que exploram a relação
“função sintática x sentido”; que relacionam os aspectos textuais aos contextuais; que
remetem ao conhecimento de mundo do estudante; que pedem justificativas semânticas para
um fato sintático; que dão margem a interessantes debates em sala de aula — parecem ser um
bom começo.
Referências
CEREJA, William Roberto. Ensino de Língua Portuguesa: entre a tradição e a enunciação. In:
HENRIQUES, C. C.; PEREIRA, M. T. G. (orgs.). Língua e transdisciplinaridade: rumos,
conexões, sentidos. São Paulo: Contexto, 2002, p. 153-160.
CEREJA, William Roberto; MAGAHÃES, Thereza Cochar. Gramática reflexiva: texto,
semântica e interação. São Paulo: Atual, 1999.
_______. Gramática reflexiva: texto, semântica e interação. 4. ed. São Paulo: Atual, 2013.
GERALDI, J. W. Portos de passagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática.
14. ed. São Paulo: Cortez, 2009.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 435
AS VOZES DISCURSIVAS NO DEPOIMENTO DE PEDRO
BARUSCO NA CPI DA PETROBRAS [Voltar para Sumário]
Brwnno Gabryel de Araújo Silva
Rosilene Felix Mamedes
Introdução
Este artigo tem como objetivo analisar o depoimento dePedro Barusco ( ex-gerente da
PETROBRAS), na CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) , em 10 de março de 2015.
Neste depoimento podemos perceber as várias vozes discursivas presentes nos enunciados e,
como a interação verbal apresenta-se de forma dialógica neste discurso.
Para este trabalho nos deteremos em fragmentos que têm como sujeitos da enunciação
o depoente Pedro Barusco, o Presidente da mesa e o Relator da CPI. Para isso, buscaremos
compreender o processo da enunciação a partir da óptica dialógica de Bakhtin em que a
linguagem é processada a partir de vários discursos, dialogando com o contexto enunciativo
refletindo e refratandodiscursos, que se materializam apenas e somente na enunciação
linguística.
Como marco teórico abordaremos as contribuições de Bakhtin, no que tange à noção
de sujeito discursivo, interação dialógica, responsividade entre os envolvidos na enunciação.
Como corpus para a nossa análise utilizaremos alguns fragmentos do depoimento de Pedro
Barusco, mais precisamente os fragmentos e as inconsistências na limitação do período em
que iniciou os repasses de propinas na PETROBRAS.
Para desenvolver este artigo elegemos como objetivo geral investigar como se
processa a interação argumentativa entre os sujeitos envolvidos (Pedro Barusco e os
parlamentares que fazem a sabatina na CPI da PETROBRAS. Os objetivos específicos serão:
Transcrever fragmentos do depoimento para análises discursiva; Capturar os discursos dos
sujeitos envolvidos na situação enunciativa e seus posicionamentos ideológicos partidários ou
não; Compreender como se processa a dialogicidade no processo enunciativo.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 436
Como percurso metodológico primeiramente optamos portranscrever o depoimento e,
em seguida delimitar os fragmentos para as nossas análises. Após este primeiro momento,
elegemos as categorias de análises epor último, confrontamos as nossas análises com as
categorias da análise dialógica de Bakhtin.
Tendo em vista a necessidade de constantes leituras e reflexões sobre interação verbal,
discurso e sujeitos, optamos pela teoria do dialogismo e interação verbal, alicerçando nosso
do aporte teórico, em Bakhtin e suas contribuições linguísticas.
Um olhar teórico
A linguagem e sua relação com o social teve espaço a partir da publicação de
Marxismo e filosofia da linguagem de Bakhtin/Volochinov, em 1929. Nesta obra podemos
encontrar, dentre outras questões, a teoria da linguagem sob a ótica da interação verbal em
que os discursos acontecem em situações concretas a partir de contextos situacionais e de
interações dialógicas. Ao delimitar a linguagem como objeto de estudo específico, Bakhtin
observa que os estudos linguísticos foram orientados durante décadas por duas correntes
principais, o subjetivismo idealista e o objetivismo abstrato. Dentre os conceitos-chaves de
Bakhtin, nos deteremos neste artigo a discutir os princípios da interação e do dialogismo a
partir do depoimento de Pedro Barusco, na CPI da lava-jato. No subjetivismo idealista o
indivíduo é autônomo e possui o poder de criar, partindo do interior para o exterior, assim, a
linguagem está situada no ato da fala, de modo que nesta perspectiva a interação na
linguagem é totalmente anulada. Já no objetivismo abstrato “é o domínio da estrutura
linguística sobre o sujeito”1, neste prisma a língua é acabada, dentro de si mesma.
Nesta óptica, os estudos da linguagem e do discurso alicerçados em Bakhtin têm uma
variedade de adequações, “porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório do
discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um
determinado campo”. (BAKHTIN, p. 262, 2006)
A palavra enquanto signo ideológico traz um caráter social impregnada de sentidos,
atribuindo aos sujeitos discursivos múltiplas possibilidades enunciativas. Sendo assim, “ as
palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as
relações sociais em todos os domínios”. (BAKHTIN, p. 42, 2006)
Desta forma, se perfaz presente tal adequação ao cenário jurídico, onde o discurso,
composto sempre por acusação e defesa, ambos na busca da aceitação de uma tese, finca-se
1 Revista Eletrônica do netlli, Vol: 2, 2013.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 437
em outros discursos das mais distintas esferas sociais, por meio de interações
sociodiscursivas, baseando-se em interações enunciativas. .
Assim, para Bakhtin (p. 123, 2006),
A verdadeira substância da língua é constituída, pelo fenômeno social da interação
verbal, realizada por meio da enunciação ou das enunciações. A interação verbal
constitui assim a realidade fundamental da língua.
Desta maneira, para o autor a língua (gem) passa a ser concebida como algo
essencialmente social, ou seja, a língua como faculdade humana só efetiva-se em momentos
reais de enunciação a partir de momentos de trocas dialógicas.
A partir da reflexão bakhtiniana sobre a linguagem, esta passou a ser vista como lugar
de interação social, sendo parte desta dialogicidade: as condições do discurso e as esferas
sociais que se inserem o enunciado. Da mesma forma, é de fundamental relevância a relação
entre o Eu e o Tu (outros), assim, para falar em discurso ou sujeito sob a óptica de Bakhtin é
necessário, antes de mais nada, levar em consideração as condições discursivas existentes.
Desse modo, os discursos estão sempre entrelaçados por outros discursos, pelo que espero do
outro, pelo que o outro agrega aos nossos discursos, sendo a dialogicidade uma cadeia de
interação que perpassa o diálogo apenas de complementação, como afirmaBakhtin “ a
palavra é prenhe de respostas...” Para ele a língua é “fenômeno social da interação verbal,
realizada através da enunciação ...” (BAKHTIN, 1929, p. 127). Sendo assim, na esfera
jurídica não é diferente, o discurso é moldado por um estilo próprio já que é uma das esferas
sociais, em que se insurge o contexto social somado ao uso concreto da língua, numa busca,
em que o meio de comunicação e a enunciação são essenciais para o alcance da interação
verbal, ora estudada no presente artigo. Observemos ainda, que na seara jurídica tal interação
e compreensão são imprescindíveis para criação de um contexto responsivo entre os
participantes.
Desta forma, a verdade perseguida é extraída através da interação verbal observada
entre os sujeitos enunciativos,em que o aspecto dialógico linguístico faz-se presente nas
colheitas de declarações, seja daquele que se encontra denunciado (réu- testemunha do caso
da CPI), no caso, o Srº Pedro Barusco, que tem a obrigação de externalizar a verdade. Nestes
enunciados é observada a diferença cultural, ideológica e intelectual existente entre as
testemunhas que instruem determinados processos judiciais, interagindo com o discursoe
contribuindo com o processo a partir de suas declarações.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 438
Diferentemente de Saussure, que optou pelo estudo da língua, concebendo os signos
como arbitrários, para Bakhtin, os signos são criados em ambientes sociais e estão
relacionados com o social. Em outras palavras:
Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e
refrata uma outra. Ele pode distorcer esta realidade, ser-lhe fiel ou apreendê-la de
um ponto de vista específico (BAKHTIN, 2006, p. 32).
Para o autor, o “signo” não é mais visto como algo inerte, estático, não mais abstrato;
a língua (gem) é dialética, viva e dinâmica. Para ele, “tudo que é ideológico possui um
significado e remete a algo situado fora de si mesmo” (BAKHTIN, 2006,p.32). Outro
conceito abordado por Bakhtin é a noção de consciência que é impregnada do conteúdo
ideológico. Em outras palavras, tudo que é ideológico é um signo. Ainda, sob esses princípios,
os signos estão intrinsecamente atrelados ao mundo exterior e tudo que os cercam. Desse
modo, em Bakhtin, o sujeito, o “eu”, relaciona-se com o “outro” por meio da interação social.
Essa relação social, também chamada de relação dialógica do eu-tu, apontada por Bakhtin.
Para Bakhtin (2006, p.16), a palavra é por excelência impregnada de ideologia, sendo
a responsável pelo registro das variantes sociais. Assim, se a língua é determinada por
ideologia/consciência, o pensamento é condicionado pela linguagem e modelado pela
ideologia. Para o autor um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural e social),
sendo assim, ele reflete e refrata outra realidade, que lhe é exterior.
Desse modo, a palavra é provida de supremacia dialógica, sendo “o modo mais puro e
sensível da relação social” (BAKHTIN, 2006, p.36). Assim, na dialogicidade, à medida que a
palavra é pronunciada pelo enunciador, ela sofrerá transformações realizadas a partir do meio
social em que esse enunciado está sendo emitido, logo, o seu valor ideológico também será
modificado.
A partir desse prisma percebemos que o meio social é de suma importância, para as
discursões sobre linguagem, tendo em vista que é exatamente neste âmbito em que a fala
(linguagem) sofre interferência de aspectos externos no gênero, que neste caso, destacamos o
depoimento como estrutura textual, com linguagem dialógica em que ao mesmotempo em que
o depoente faz as suas declarações, ele dialogo com o discurso no momento exato da
interrogação, bem como com os sujeitos envolvido no discurso, e ainda há o ato dialógica da
memória do ato enunciativo em questão.
“[...]a diversidade desses gêneros é determinada pelo fato de que eles são diferentes
em função da situação, da posição social e das relações pessoais de reciprocidade
entre os participantes da comunicação”. (BAKHTIN, p. 283, 2006)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 439
Neste caso, podemos perceber que o tom discursivo, entendido aqui, como o ato da
fala, marcará não apenas a enunciação, como a forma de dizer, como dizer, e principalmente
demarcará a posição do sujeito discursivo. Em outras palavras, a partir dessa perspectiva
dialógica da palavra, a teoria bakhtiniana dos gêneros discursivos coloca o texto/enunciado
discursivo como fator social, sendo cada vez menos propícia à individualidade da linguagem,
com exceção do gênero do discurso que exige uma forma padronizada em muitas
modalidades, como, por exemplo, os documentos oficiais de ordem militar. O autor ainda
acrescenta que os sinais individuais não fazem parte do plano discursivo “os enunciados e
seus tipos são, isto é, os gêneros discursivos, são correias de transmissão entre a história da
sociedade e a história da linguagem”. (BAKHTIN, 2006, p. 268).
A linguagem vista nessa perspectiva mostra-se como lugar de interação entre sujeitos,
estabelecendo entre eles relações de dialogicidade que favorecem o a interação discursiva
entre o Eu-Outrem. Assim para a análise do discurso jurídico, nos respaldaremos na terceira
concepção da linguagem, a qual possui uma maior relevância dentro das propostas dos
enunciados linguísticos, já que, nela, a língua é concebida como um fenômeno interacionista,
e a linguagem é entendida como um fenômeno dialógico passível de flexibilidade. Desta
forma, a linguagem é um fenômeno interacional em que os indivíduos se comunicam a partir
de determinadas escolhas linguísticas, tendo como foco a produção de discursos que
dependerá sempre do meio em que este será pronunciado. Ou seja, os discursos sofrerão
sempre influência do falante e do meio que este se insere, além da situação sócio-
comunicativa em que o discurso será produzido. Por este motivo, em todas as esferas sociais
comunicativas há um discurso próprio, que é moldado pelo meio, pelas ações externas a ele,
pelas ações individuais dos sujeitos,e pela própria condição enunciativa que exige discursos
mais ou menos formais, adequados às situações. Desse modo, no contexto sociodiscursivo
jurídico não é diferente, pois há uma estrutura fixa, com uma linguagem específica que
precisa ser seguida. Assim, na escolha do nosso corpus temos dois textos, que seguem a
estrutura fixa de dois gêneros distintos, porém seguindo a mesma esfera social, que é a
jurídica.
A respeito do domínio da estrutura enunciativa do gênero Bakhtin (1992, p.302)
afirma que:
“as formas da língua e as formas típicas de enunciados, isto é, os gêneros do
discurso, introduzem-se em nossa experiência e em nossa consciência
conjuntamente. (...) Aprender a falar é aprender a estruturar enunciados (porque
Nas fronteiras da linguagem ǀ 440
falamos por enunciados e não por orações isoladas e, menos ainda, é óbvio, por
palavras). Os gêneros do discurso organizam nossa fala da mesma maneira que a
organizam as formas gramaticais (sintáticas). Aprendemos a moldar nossa fala às
formas do gênero e, ao ouvir a fala do outro, sabemos de imediato, bem nas
primeiras palavras pressentir-lhe o gênero, adivinhar-lhe o volume (extensão
aproximada do todo discursivo), a dada estrutura composicional, prever-lhe o fim,
ou seja, desde o inicio, somos sensível a todo discursivo que, em seguida, no
processo da fala, evidenciará suas diferenciações. Se não existissem os gêneros do
discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no
processo fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a
comunicação verbal seria quase impossível.”
Segundo o autora linguagem reflete e refrata o social. Consequentemente, Bakhtin
atribui ao texto um patamar que passa a ser visto como um objeto concreto, partindo do uso
real que o falante faz da enunciação e do discurso como um todo.
Marcuschi (2008, p. 76) aponta que o texto é resultado de uma ação linguística cujas
fronteiras são em geral definidas por seus vínculos com o mundo no qual ele surge e funciona.
Para o autor, o texto é um tecido estruturado, uma entidade significativa, de comunicação e
um artefato sócio-histórico. O autor, ao retomar a teoria de Bakhtin sobre refração da
linguagem, por analogia, diz que o texto “refrata” o mundo que o “reordena e o reconstrói”.
Assim, o texto só fará sentido dentro de um contexto social, já que ele é o reflexo de uma ação
conjunta, sendo sempre passível de modificações, pois um texto nunca está acabado, o falante
sempre poderá reconstruí-lo, atribuindo-lhe um novo significado e reordenando-o de acordo
com o contexto enunciativo.
Assim, como afirma Bakhtin:
“a relação orgânica e indissolúvel dos gêneros se revela nitidamente também na
questão dos estilos de linguagem ou funcionais. No fundo, os estilos de linguagem
ou funcionais não são outra coisa senão estilos de gênero de determinadas esferas da
atividade humana e da comunicação2”(2006, p.266.)
Na citação acima, o autor afirma que os gêneros possuem características
“indissolúveis”, portanto o estilo está relacionado não apenas com o gênero, mas com as
condições estruturais e sociais por ele, estabelecidas. Assim, em nosso corpuspodemos
apontar que os discursos estão entrelaçados por várias outras vozes, que interferem
A seguir nos deteremos a fazer as análises do nosso corpus a partir da óptica da
interação verbal edo discurso apontados em Estética da Criação Verbal e Filosofia da
Linguagem de Bakhtin.
2Grifo nosso.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 441
Análise de dados: o discurso político-jurídico e linguagem
Para corpus do nosso artigo, escolhemos um auto de qualificação e interrogatório em
que tem como objetivo qualificar e descrever o objeto da acusação. Como forma de analisar o
corpus, iremos transcrevê-lo fragmento do discurso, para posterior análises.
Fragmento 1: PEDRO BARUSCO: Então vou falar um pouquinho da trajetória para chegar nesse
momento. Eu ingressei na Petrobras em 79 por concurso público. E sou engenheiro
naval de formação acadêmica, e eu fui, eu inicialmente optei, depois do curso de
formação, eu optei por trabalhar no centro de pesquisas. Onde eu fiquei por 15
anos.[...]. E no departamento de exploração e produção eu cheguei até gerente de
produção interino. Subi mais um grau na carreira. Fiquei interino durante uns seis
meses. E em 2003 eu fui convidado pra ser gerente executivo de engenharia na
diretoria de serviços.
No primeiro fragmento, podemos perceber a preocupação do depoente em se colocar
como um profissional qualificado, livre se suspeitas para indicações a cargos políticos, uma
vez que, segundo o depoente o seu cargo foi conseguido com esmero e qualificação
profissional. Ao final deste fragmento o Sr Pedro Barusco, afirma que “em 2003 eu fui
convidado pra ser gerente executivo de engenharia na diretoria de serviços.”A partir deste modo,
destacamos alguns fragmento que o depoente ao ser indagado, há a presença de distorções nas suas
afirmações, demonstrando oscilações nas suas afirmações e reiterações discursivas.
Ao longo da explanação do ex-gerente da PETROBRAS, nos deteremos neste
trabalho, a analisaras inconsistências do seu discurso em delimitar o período temporal do
início de quando começou a receber a propina. Vamos analisar o fragmento abaixo:
Fragmento 2:
PEDRO BARUSCO: Como faz parte do meu termo de colaboração, né? Eu
iniciei a receber a propina em 97/98, não é? Foi uma iniciativa pessoal minha
junto com o representante da empresa. Eu descrevo no meu depoimento esta
trajetória. E vou reiterar o que está dito no depoimento, né? Agora de uma forma
mais ampla, como vossa excelência mencionou, em contato com outras pessoas
da Petrobras, de uma forma mais institucionalizada foi a partir de 2004. 2003…
2004… eu não sei precisar exatamente a data, foi mais a partir dali.
RELATOR : Quer dizer que do ano de 97, quando você afirma que começou a
receber estes ilícitos, você era o único que recebia? Só…
...
PEDRO BARUSCO: Olha sobre esta questão existe uma investigação em
curso. Eu sou investigado. Então, eu até assim selecionei esta parte aqui do meu
depoimento. Eu acho que vou me deter ao depoimento. Eu não vou aprofundar
estas questões que estão no meu depoimento por está ocorrendo uma
investigação. Então, é… eu reitero o que eu já falei no depoimento da minha
colaboração com a justiça
Nas fronteiras da linguagem ǀ 442
No fragmento 2, observa-se que o Relator indaga o depoente sobre suas participações
na corrupção da Petrobras, buscando compreender o contexto histórico da gênese deste
fraude. Neste primeiro momento, o depoente se exime da reposta, alegando que isso já consta
do depoimento. Entretanto, mesmo demonstradoa fragilidade discursiva perante à veracidade
da sua resposta, claramente apresentada pelo modalizador “eu acho”, ao final do fragmento, o
depoente retoma a fala do Relator e confirma a afirmação que tudo começou em 97/98. Como
podemos ver em “Então, é… eu reitero o queeu já falei no depoimento da minha colaboração
com a justiça”
Ainda, sobre o fragmento destacamos o uso do “então, é...” como forma conclusiva, e
de modo que o sujeito do discurso mostra-se concordar com o que está sendo indagado,
entretanto, como valor semântico-discursivopercebemos que o sujeito encontra-se um tanto
perturbado com as indagações.
Fragmento 3: PEDRO BARUSCO: Agora nós estamos nos remetendo a um outro assunto,
que é a questão de sondas. Isto é fato. O serviço de perfuração na Petrobras, ele
sempre foi realizado por empresas de perfuração, muitas delas estrangeiras, mas
existem algumas brasileiras, e a Petrobras sempre contratou estas sondas. [...] E
o serviço de sondagem sempre foi dominado por estas empresas. Até o ponto, eu
acho que foi mais ou menos em mil. Não, 2007/2008. Até o ponto que, com a
crescente demanda, chegou uma demanda na diretoria executiva pra contratar se
eu não me engano. Se não estou errando com a memória. Dezoito sondas ao
mesmo tempo. Foi aí que isto chamou atenção. Porque até então as sondas
eram colocadas homeopaticamente...
Eu acho que ainda era a presidente Dilma a ministra de minas e energia. E
houve ação natural, ou uma ação contrária tentando fazer estas sondas no Brasil.
E isto foi a criação da Sete Brasil.
No fragmento 3, destacamos expressões modalizadoras “eu acho” e o “até então” como
formas imprecisas, deixando margens de dúvidas no seu discursos, mas no segundo caso, percebe-se o
oSr Pedro Barsuco, mais uma vez retoma o período histórico anterior a data que ele afirma.
Desta forma,o “sujeito discursivo” coloca o seu enunciado de forma dialógica não apenas com
as suas memórias e com a responsividade ideológica da linguagem, mas de modo que o “ eu acho”,
faz com o sujeito seja eximido na veracidade do seu discurso, gerando assim,
margens de dúvidas. Aqui, temos o caráter das modalidades discursivas, em que o marcador discursivo
marca o posicionamento do sujeito.
Após longo período do depoimento, o Relator mais uma vez retomao período em que
se iniciou as propinas na PETROBRAS, afirmado que estava em suas mãos a versão que foi
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 443
exposta pela mídia, e que era preciso o depoente, Sr Paulo Barusco se posicionar sobre o
assunto de forma oficial. Vejamos os fragmentosretirados do discurso.
Fragmento 4: RELATOR : Mas em relação, ainda voltando, às propinas recebidas em 97 ou
98 da empresa holandesa SBM, você reafirma que já naquele período estava
recebendo recursos ilegais dos contratas dos quais vossa senhoria fazia a
intermediação?
PEDRO BARUSCO: Não… olha… eu vou reiterar o meu depoimento…
RELATOR : Não, mas o que ocorre é o seguinte que o que temos é uma versão.
A versão não dar… porque não é um documento que chegou às nossas mãos
aqui oficialmente. É uma versão que está distribuída na mídia. A pergunta é se
você reafirma isto como verdade.
PEDRO BARUSCO : Ué, eu reafirmo. Está escrito aqui. Eu reafirmo. É a
minha versão. É a minha verdade. É o que aconteceu.
Nos fragmentos acima o Relator retoma o período que se iniciou as propinas recebidas
pelo Ex-gerente da PETOBRAS, Pedro Barusco, e afirma a necessidade de um
posicionamento oficial. O ex-gerente, por sua vez,reitera o seu depoimento, ou seja, afirma
com o seguinte fragmento “Ué, eu reafirmo. Está escrito aqui. Eu reafirmo. É a minha versão. É a
minha verdade. É o que aconteceu.”
Neste momento, da enunciação concordamos com Bakhtin, quando aborda a situação
social da enunciação, tendo vista, que mesmo havendo uma série de inconsistências em seu
discurso, que ora afirma um momento histórico, ora remota a período anteriores a era PT, o
que podemos afirmar é que essas inconsistências podem ter sido geradas ou por pressão
psicológica, causada pela própria estrutura enunciativa, em que o sujeito se sente acuado, ou
o sujeito ao tentar esquivar-se ou apontar culpados demonstra fragilidade e inconsistência nas
suas declarações, e por isso há lacunas e falhas enunciativas.
A situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam
completamente e, por assim dizer, a partir de seu próprio interior, a estrutura
da enunciação. Na verdade, qualquer que seja a enunciação considerada [...],
é certo que ela, na sua totalidade, é socialmente dirigida. (BAKHTIN, p.
113)
Fragmento 5
PEDRO BARUSCO: Não, eu já falei, eu comecei em 97/98. Uma atitude isolada,
né? Já detalhei até onde eu poderia detalhar sob já a investigação. E a partir de 2003
e 2004, houve uma fase onde estava institucionalizada este recebimento de propina,
tá? Eu só sei isto. Eu não sei mais nada. Eu não sei dizer quem participou. Quem
participou. Quem não participou.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 444
Para finalizar a nossa análise, buscamos um fragmento em que oex-gerente , Paulo
Barusco, retoma o período anterior, a era LULA (PT) , entretanto, diz que nesse período ele
era o sujeito (ativo) no processo das propinas de maneira individual, ou seja, aqui, o depoente
inocenta o partido do PSDB, representado aqui, pelo Ex-Presidente Fernando Henrique
Cardoso, e diz que de forma institucionalizada foi apenas após o PT na Presidência.
Considerações finais
Este artigo buscou discutir a importância da interação verbal, na esfera jurídica, a
partir da óptica de Bakhtin. Compreendemos que o quão é relevante a discussão sobre
linguagem, e como esta pode alternar-se e adaptarem-se nos mais diferentes contextos sociais.
Percebemos que ao analisar o nosso corpus encontramos inúmeras vozes intra ou
extra-discursiva, concordando com o que Bakhtin vai chamar de polifonia discursiva, assim,
há duas formas de dialogismo;Em nosso corpus temos a presença de várias vozes, sejam de
cunho políticos partidários, orientações políticas-ideológicas, diálogos com a responsividade
discursiva seja no âmbito temporal, ou com os discurso que é muito mais amplo, do que o
diálogo entre face a face.
Desse modo, para este trabalho analisamos a interação verbale o dialogismo
bakhtiniano em um corpus jurídico, buscando confrontar a situação comunicativa com a
dialogicidade discursiva, tanto nos aspectos endofóricos ( intra-textual) como no exofóricos (
extra-textual), aqui neste segundo aspecto é o que procuramos nos deter, pois nele, há relações
com discursos externos, retomadas de situações etc. Aqui, o diálogo perpassa o aspecto micro,
e concebe a linguagem como um fator social, sendo capaz de “refletir” e “refratar”. Por isso,
enxergamos este trabalho com um ponto de partida para discussões posteriores, de modo que
possamos compreender o discurso jurídico não apenas como algo estático, fixo, ou formal
(como estãodisseminado), mas como um discurso, regido por regras, com estilo próprio, mas
que contempla o fenômeno discursivo da interação verbal, apontado por Bakhtin.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 7ª ed. São Paulo: Hucitec, 1995
[1929].
_______. Estética da Criação Verbal. Campinas: Pontes, 2006.
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FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin.
São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
GERALDI, J. W. Portos de Passagem. 4ªed. São Paulo: Martins fontes, 2003.
_______. O texto na sala de aula: leitura e produção. São Paulo: Ática, 1999.
MARTELOTA, Mário Eduardo. (org). Manual de linguística. 1 ed., 1 reimpressão. São
Paulo: Contexto, 2008.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 446
A PERSONAGEM LIA DE MELO, DO ROMANCE AS
MENINAS, DE LYGIA FAGUNDES TELLES, COMO
RESISTÊNCIA FEMININA À DITADURA MILITAR
[Voltar para Sumário]
Caio Victor Lima Cavalcanti Leite (UPE)
Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)
Introdução
Quando se estuda a Literatura Brasileira escrita em meados das décadas de 60 e 70 do
século XX, é preciso ter consciência de que, embora ajam muitos literatos ativos, poucos
foram os que exprimiram o contexto social e político em voga no Brasil da época. As duas
décadas citadas atravessam um delicado momento no que concerne ao viés político e social,
com a instauração da ditadura civil-militar1, reverberando um sentimento de angústia por
conta da dura repressão. Essa mesma repressão atinge os movimentos artísticos que acabam
por ter sua liberdade restringida.
Foi nesse contexto que Lygia Fagundes Telles, romancista brasileira, deu vida à obra
As Meninas (1973), talvez seu romance mais emblemático. Nasce em 1973, época de forte
repressão, com o intuito (não muito explícito) de tocar nas feridas da sociedade daquele
período, entre essas, a denúncia ao regime ditatorial vigente. Trazendo três personagens
principais e femininas que personificam os perfis sociais daquele contexto, Telles enfrenta a
repressão e acaba por ser uma porta-voz, não apenas dos movimentos de contestação ao
momento político, mas também de movimentos como o Feminismo. Como diz, Candido,
o escritor, numa determinada sociedade, é não apenas o indivíduo capaz de exprimir
a sua originalidade (que o delimita e especifica entre todos), mas alguém
desempenhando um papel social, ocupando uma posição relativa ao seu grupo
profissional e correspondendo a certas expectativas dos leitores ou auditores.
(CANDIDO, 2011, p. 84)
1 Segundo Fausto (1995), a ditadura militar surge em 1964 e vai até o ano de 1984. Considerada uma coalizão
civil-militar, implanta um novo regime político financiado pela burguesia tendo como pano de fundo as Forças
Armadas. O autoritarismo era marca do novo regime o que acabou por gerar uma grande repressão dentro das
várias camadas sociais.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 447
O presente artigo divide-se em dois tópicos, o primeiro que traz conceitos que
fundamentam a posterior análise (literatura e sociedade); o segundo que possibilita
compreender a aplicação desses conceitos no decorrer da narrativa; além da inserção de outros
conceitos (gênero e feminismo) para que se concretize a análise requerida. Dentre os autores
referidos neste trabalho, tem-se Candido (2011); Moreira Alves (1981); Pitanguy (1981);
Zinani (2013); entre outros que colaboram nas várias concepções abordadas dentro de cada
temática.
2. Literatura e sociedade
A literatura, constituindo-se como um fenômeno artístico, é classificada pela crítica
sociológica como sendo um sistema simbólico de comunicação inter-humana. Ou seja, está
presente no contexto social e acaba por falar sobre/para a sociedade. Essa relação literatura-
sociedade vem sendo desenvolvida desde os primórdios da civilização, até mesmo com a
literatura oral.
“Neste ponto, surge uma pergunta: qual a influência exercida pelo meio social sobre a
obra de arte? Digamos que ela deve ser imediatamente completada por outra: qual a
influência exercida pela obra de arte sobre o meio?” (CANDIDO, 1965, p. 24). Ao levantar
esses questionamentos, abre-se uma discussão a respeito do papel da literatura na sociedade e,
ao mesmo tempo, da forma como sociedade é transposta para a literatura.
Segundo Candido (1965) o sociólogo moderno considera que a arte “depende da ação
de fatores do meio, que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação; e produz
sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção de mundo, ou
reforçando neles o sentimento dos valores sociais.” (CANDIDO, 1965, p. 30)
Desta forma, o meio exerce uma certa influência sobre a obra, porém, nos últimos
anos, os estudos sociológicos sobre a arte têm se voltado para a obra e sua área de influência
e intersecção. Candido (1965) explicita “este dinamismo da obra, que esculpe na sociedade as
suas esferas de influência, cria o seu público, modificando o comportamento dos grupos e
definindo relações entre os homens”. (CANDIDO, 1965, p. 85)
Observando que, se dentro de um romance ficcional há a inclusão de “fatos reais”,
deve-se estar atento ao fato de que as ações ali realizadas existem e se tornam vivas a partir
do momento em que o leitor as interpreta e os correlaciona com o meio em que vive.
A personagem vive o enredo e as ideias, e os torna vivos. [...] A personagem é um
ser fictício [...] Podemos dizer, portanto, que o romance se baseia, antes de mais
Nas fronteiras da linguagem ǀ 448
nada, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada através
da personagem, que é a concretização deste (CANDIDO, 2006, p. 52).
Logo, a literatura vai ser realizada a partir do momento que lida pelo público e cria
neste novas interpretações a respeito de si e da sociedade como um todo. Não é papel da
literatura falar sobre a sociedade, entretanto, ela acaba por atingir certos objetivos que
sucedem a intencionalidade do autor tornando-se, assim, a porta-voz de um determinado
grupo social que enxerga nela uma completa e importante representação.
3. A personagem Lia de Melo como representação feminina na luta contra a ditadura
militar
O romance As Meninas aborda em seu enredo o contexto político-social da ditadura
civil-militar vivenciado no Brasil em meados dos anos 70. A autora traz como representação
do perfil social da época três personagens protagonistas: Lorena Vaz, Lia de Melo e Ana
Clara. Por ter uma narrativa que oscila entre as três personagens e seus fluxos de consciência,
a autora nos faz conhecer e traçar um perfil de cada uma. Enquanto Lorena surge como
personificação da burguesia, acomodada, Ana Clara é apresentada como alguém que é mais
um reflexo do meio ao ser colocada como uma garota problemática, viciada em drogas e com
futuro duvidoso. É com a personagem Lia de Melo que percebe-se um tom de denúncia mais
direta àquele contexto político-social. Lia é estudante de Ciências Sociais e é simpatizante do
Partido Comunista, logo, ela procura denunciar a burguesia alienada e combater a repressão
causada pela ditadura. Além disso, namora um guerrilheiro que foi preso e lhe descreve
detalhes da tortura que sofreu em cárcere.
Telles faz parte de um grupo de escritores de ficção que se dedicou a denunciar o
sistema de repressão ocasionado pela ditadura. Com as várias restrições políticas, vieram
aquelas relacionadas aos livros publicados na época, logo
É interessante destacar que os dois primeiros livros a tratar da tortura tenham sido
obras de ficção, de autores já àquela época renomados. Certamente, isso se deu
pelas restrições políticas, ou seja, censura, que provavelmente seriam mais fortes em
relação aos livros de não-ficção. (MAUÉS, 2011, p. 53)
Por ter sido uma das primeiras obras a tratar da questão, As Meninas surge como
importante instrumento de análise do período ditatorial, inclusive por conter registros
detalhados do processo de tortura realizados pelos instauradores do regime,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 449
Ali interrogaram-me durante vinte e cinco horas enquanto gritavam “traidor da
pátria, traidor!” Nada me foi dado para comer ou beber durante esse tempo.
Carregaram-me em seguida para a chamada capela: a câmara de torturas. [...] Primeiro me perguntaram se eu pertencia a algum grupo político. Neguei.
Enrolaram então alguns fios em redor dos meus dedos, iniciando-se a tortura
elétrica: deram-me choques inicialmente fracos que foram se tornando cada vez
mais fortes. Depois, obrigaram-me a tirar a roupa, fiquei nu e desprotegido.
Primeiro me bateram com as mãos e em seguida com os cassetetes, principalmente
nas mãos. Molharam-me todo, para que os choques elétricos tivessem mais efeito.
Pensei que fosse então morrer (TELLES, 2009, p. 127).
Telles dá voz à personagem feminina como alguém que representa os grupos sociais
militantes da época. Entretanto, por muito tempo, a mulher foi marginalizada na literatura
ocidental. Seja ela autora, seja ela personagem. Foi apenas com o advento de movimentos que
lutam contra a opressão, como o Feminismo, que a mulher pôde ter vez e espaço nas variadas
esferas sociais.
Kolontai (2011) mostra um novo tipo de mulher, que veio se constituindo em meados
do fim do século XIX, que sofre com a pouca ou nenhuma representação na literatura.
Segundo Kolontai
A literatura evoluía, aperfeiçoava-se e seguia novos caminhos; enriquecia seus
meios de expressão com novos matizes e palavras. Mas, em compensação,
continuava obstinada em nos apresentar débeis criaturas enganadas, mulheres
abandonadas, entregues à dor, esposas ávidas de vingança, fêmeas sedutoras, [...]
(KOLONTAI, 2011, p. 64)
Com o surgimento do movimento feminista, a mulher passou a ser melhor
representada na literatura ocidental. Como Kolontai (2011) descreve, um novo tipo de mulher
surge e literatura precisou compreender isso e fazer essa inserção. Logo, o sujeito feminino
passa a ter maior espaço dentro da literatura. Já para Zinani
[...] é na literatura que se encontra o espaço da subjetividade gendrada, que
possibilita a constituição de uma posição não hegemônica pela emergência da
diversidade de discursos, situação essa que lhe confere um caráter privilegiado.
Esse mesmo caráter detém o discurso literário na relação saber e poder, uma vez
que essa modalidade de discurso possibilita a subversão e a desagregação dessas
redes pelo conteúdo emancipatório que a obra de arte carrega em si, na medida em
que desautomatiza a percepção do sujeito, promovendo a reflexão. (ZINANI,
2013, p.77)
Dito isso, percebe-se que os movimentos de cunho feminista enxergam a literatura
como aliada na propagação de suas ideias e exibição de uma nova realidade que se colocava
dentro da sociedade. Logo, ao inserir personagens femininas de comportamento inovador e, às
vezes, até transgressor em narrativas de ficção, os literatos contribuíram fortemente para uma
Nas fronteiras da linguagem ǀ 450
renovação no repensar da sociedade. Na época em que foi lançado o romance de Telles, o
movimento feminista se renova e o sistema patriarcalista começa a dar sinais de esgotamento,
pois
A década de 1960 caracterizou-se por intensa mobilização na luta contra o
colonialismo, a discriminação racial, pelos direitos das minorias, pelas
reivindicações estudantis. [...] É neste momento histórico de contestação e de luta
que o feminismo ressurge como um movimento de massas que passa a se constituir,
a partir da década de 1970, em inegável força política com enorme potencial de
transformação social. (MOREIRA ALVES, 1998; PITANGUY, 1998, p. 58)
A personagem Lia de Melo Schultz, dentre as três personagens principais, é a única
que se aproxima da militância política na luta contra a repressão ditatorial instaurada nos fins
dos anos 60 e início dos anos 70, além de ser posta como figura feminina que representa um
novo perfil de mulher, mais consciente da sua subjetividade e lugar. No romance, um dos
presos políticos é Miguel, namorado de Lia, que, após um tempo em cárcere, é exilado para a
Argélia.
O fato de ter saído da casa dos seus pais na Bahia, cursar Ciências Sociais em São
Paulo, ser uma figura engajada politica e socialmente falando, fazem de Lia uma personagem
que representa a mulher militante que surge na década de 1970, conforme Sarti,
sem uma proposta feminista deliberada, as militantes negavam o lugar
tradicionalmente atribuído à mulher ao assumirem um comportamento sexual que
punha em questão a virgindade e a instituição do casamento, "comportando-se como
homens", pegando armas e tendo êxito neste comportamento (SARTI, 2004, p. 03).
Nas primeiras linhas do romance, observa-se uma diferenciação entre as personagens
principais, ressaltada pela personagem Lorena, que, através de seu fluxo de consciência, nos
deixa a par do que pensa a respeito de sua amiga Lia:
Lião é capaz de limpar os sapatões em você mas pense no if dos lenços: a poeira é
tão digna quanto as lágrimas. Não será uma poeira lunar, tão branquinha, tão fina a
Poeira terrestre é da pesada, principalmente essa dos sapatos da minha amiga. Mas
não se importe não, seja lenço, solto no espaço. Abriu-se leve como um para-quedas
que Lião apanha impaciente. — Você está deprimida, Lião? Angústia existencial? — Exato. Existencial. Está furiosa comigo, ai meu Pai. Mudou tanto, coitadinha. Quer dizer que Miguel
continua preso? E aquele japonês. E Gigi. E outros, estão caindo quase todos, que
loucura. E se de repente ela? Ana Clara já viu um careta meio suspeito rondando o
portão, Aninha mente demais, é lógico, mas isso pode ser verdade. Sim, Pensionato
Nossa Senhora de Fátima, nome acima de qualquer investigação. Mas quando
aparece agora nome de padre e freira no horizonte, já ficam todos de orelha em pé.
(TELLES, 2009, p.15)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 451
Nesta passagem, constata-se que a crise existencial de Lia se deva pela fuga dos
padrões estéticos estabelecidos pela sociedade à época ao usar sapatos que não eram
usualmente usados pelas mulheres. Além do fato de seu namorado ainda se encontrar recluso
nas masmorras da ditadura.
Telles deixa explícitas as diferentes personalidades e características de suas
personagens, criando um momento caracterizador do espírito engajado de Lia que se
contrapõe à natureza branda e conformada de Lorena:
Examinou meio distraidamente o livro que Lia devolvera com várias páginas
marcadas de vermelho, tinha o hábito (péssimo) de assinalar o que a interessava não
só nos próprios livros mas também nos alheios. Deteve-se no trecho indicado por
uma cruz mais veemente: A Pátria prende o homem com um vínculo sagrado. É
preciso amá-la como se ama a religião, obedecer-lhe como se obedece a Deus. É
preciso darmo-nos inteiramente a ela, tudo lhe entregar, votar-lhe tudo. É preciso
amá-la gloriosa ou obscura, próspera ou desgraçada. Obedecer à Pátria como se
obedece a Deus? estranhou Lorena. Por que Lia grifara isso? Não acreditava em
Deus, acreditava? E a Pátria para ela não era o povo? (TELLES, 2009, p.61 – grifos
da autora)
Nota-se, no trecho citado, que Lia já se apresentava como detentora de consciência
política em relação à situação em que o Brasil vivia naquele momento, pois mimetiza aqueles
que buscavam questionar a conjuntura política daquele contexto ditatorial. Já Lorena, como
fiél personificação de boa parte da burguesia, de um perfil social conformado, mostrava-se
alheia aos conhecimentos políticos que sua amiga buscava compreender. Em várias outras
passagens da obra, Lorena mostra total desinteresse na busca do entendimento do contexto
sociopolítico pelo qual seu país atravessava naquele instante.
Lia fazia parte de um grupo militante de esquerda, interagindo com personagens
secundários, que buscavam debater e criar mecanismos para enfrentar a repressão imposta
pelo regime ditatorial. Em várias passagens do romance, Lia é mostrada nas inúmeras
reuniões do grupo que aconteciam em espaços diferentes, para evitar chamar a atenção das
forças ditatoriais, além de serem anônimas e secretas, tal como no trecho que segue:
Ele puxou a cadeira. Cavalgou-a. - Fiz a mudança sozinho, todo mundo dando ordens mas só eu camelei. Isto estava
um lixo, despejei três cestos e ainda sobrou este. Até rato, [...] - Quando saí ontem
do cinema me pediram os documentos. Que medo, Rosa. Você não tem medo? Lia passou a ponta da língua na unha roída. Demorou para responder. - Perfeito. Amanhã trago uma lâmpada mais forte. E uma folhinha sem anúncio de
Coca-Coca. De onde veio esta maravilha? [...] - Putz, o pátio interno. Você sabe o
que tem aí defronte? - Uma alfaiataria, falei com o velho quando cheguei. Legal, Rosa. Está vendo aqui
embaixo a rede de arame? Em caso de emergência, dá perfeitamente pra pular e ir
andando até a janela do velhinho.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 452
- Que é dedo-duro da OBAN. A gente enfia a cabeça na janela e ele agarra a gente
pelo pescoço, assim - fez ela puxando Pedro pela gola do pulôver. (TELLES, 2009,
p. 109)
Fica evidente o esforço da personagem em manter-se discreta quanto às reuniões que
ocorriam naqueles espaços, além da consciência de que seu grupo poderia ser denunciado e,
consequentemente, todos poderiam ser presos. Vale salientar que Lia usa outro nome quando
em reunião com grupo, mais uma tentativa de manutenção do anônimato e autopreservação.
Durante o trecho citado, há o uso da sigla OBAN que, segundo Joffily (2008),
significa Operação Bandeirante. Foi lançado no dia 1º de julho de 1969 e tinha por objetivo
reprimir e destruir os grupos de esquerda que estavam se organizando no país. Fica explícito,
diante do exposto, que autora assume, mais uma vez, através de sua personagem, um tom de
denúncia à realidade político-social daquele momento.
Em outra passagem do romance, Lia menciona aos companheiros do grupo de
esquerda o autoritarismo, a perseguição e as torturas característicos da ditadura, tal como se
pode observar em:
Outros colecionam selos, outro coleciona gravatas e lá adiante um entra na fila do
cinema. Maurício aperta os dentes que se quebram. Não quer gritar e então aperta os
dentes quando o bastão elétrico afunda lá no fundo. No desenho animado, o gato
leva trompaço e dentes e ossos se trincam. Mas na cena seguinte já se colam e o gato
volta inteiro. Seria bom se fosse como nos desenhos, Silvinha da Flauta. Gigi.
Japona. E você, Maurício? Quando o bastão entrar mais fundo, desmaia. Desmaia
depressa, morra. Devíamos morrer, Miguel. Em sinal de protesto devíamos
simplesmente morrer. "Morreríamos se adiantasse", você disse. Lembra? Eu sei,
ninguém daria a mínima. Arrancaríamos o coração do peito, olha aqui meu sangue,
olha aqui meu coração! Mas tem um tipo ao lado engraxando os sapatos, que cor de
graxa o cavalheiro prefere? (TELLES, 2009, p.15)
Nota-se um posicionamento de convicção aos seus ideiais revolucionários. No trecho,
ela esboça um pensamento de que daria sua vida lutando por aquilo que considera ideal, em
sinal de protesto.
Lia compara o desenho animado e a dura realidade enfrentada por seus colegas,
ressaltando que as dores enfrentadas pelos personagens do mundo da ficção não são reais
como as vividas pelos seus colegas, o que lhe causa revolta e compaixão simultaneamente.
Mais uma vez, conforme citação que segue, Lia relaciona as experiências de seus
companheiros perseguidos com personagens de ficção:
Eurico continua sumido, foi preso assim que desembarcou e até agora ninguém sabe
dele. Desapareceu como personagem de ficção científica, quando o homem metálico
emite o raio e o tipo se dissolve com revólver e tudo e fica no lugar uma manchinha
de gordura. (TELLES, 2009, p. 25)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 453
Vivendo em um pensionato de freiras em São Paulo, Lia, assim como as outras duas
personagens principais, tem uma íntima relação com as mulheres que ali trabalham. Num
dado momento do romance, Lia, que está destinada a viajar para a Argélia em auto-exílio,
conversa com Madre Alix, com quem mantém uma certa afeição,
- Boa noite, Madre Alix. Gostei muito de conversar com a senhora. - Toma cuidado, Lia. Não quero que você sofra, toma cuidado, eu peço. - Sou forte à beça. - Não, Lia. Vocês são frágeis, filha. Você, Lorena. Quase tão frágeis quanto Ana
Clara. Haja o que houver, não deixe de me dar notícias. Conte comigo. - Vou lhe mandar meu diário, Madre Alix. Ao invés de cartas, um diário de viagem!
Ela me acompanha até a porta. - Posso lhe dar uma epígrafe? É de Gênesis, aceita? - pergunta e sorri. Sai da tua
terra e da tua parentela e da casa de teu pai e vem para a terra que eu te mostrarei. É
o que você está fazendo - acrescentou. Hesitou um pouco: - É o que eu fiz
(TELLES, 2009, p. 128)
Observe-se que a freira demonstra respeito e compaixão pela situação da jovem, pois a
mesma, ainda que temerosa pelo futuro da jovem, mostra-se compreensiva e sugere que o
exílio pode significar algo positivo para Lia.
Lia decide sair do país após descobrir que seu namorado será exilado. Diferente dele,
ela não era uma presa política, mas seu apego por Miguel e também a opção de viver num
país com maior liberdade enchiam-lhe os olhos.
4. Considerações finais
Lygia Fagundes Telles, em As Meninas, consegue transpor com felicidade para a
narrativa ficcional o tom de denúncia ao contexto político-social vivenciado no Brasil nos
anos em que o regime ditatorial civil-militar atingia seu auge. O fato de ser uma das primeiras
narrativas de ficção a abordarem o tema da repressão de forma tão direta (o fazendo através
de depoimentos reais revestidos de ficção), já torna a obra singular. Além do fato de ser
escrito por uma mulher, que surgia como representante das novas concepções e pensamentos
a respeito do sujeito feminino naquele momento de mudanças.
A personificação da mulher engajada, da mulher militante política numa de suas
personagens fez de Telles uma das escritoras de ficção que melhor exprimiram os
acontecimentos da época. Ela trouxe aos muros da narrativa ficcional os anseios, medos,
dúvidas dos jovens militantes da época, algo muito pouco explorado pelos literatos desse
período, até então.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 454
Em suma, o romance assume, mesmo que implicitamente, um papel de denúncia que
leva o leitor à reflexão, além de servir como importante fonte histórica ao trabalhar um tema
que, até os dias atuais, é considerado polêmico e instiga discussões.
Referências
MOREIRA ALVES, Branca; PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo:
Brasiliense, 2003.
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Revista. São Paulo, Editora Nacional, 1976.
TELLES, L. F. As Meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
MAUÉS, Flamarion. Os livros de denúncia da tortura após o golpe de 1964 in Cadernos
Cedem da UNESP, vol. 2, n. 1, 2011.
SARTI, C. A. O feminismo brasileiro desde os anos 1970: revisitando uma trajetória. Estudos
feministas. Florianópolis, n.12, p. 35-50, mai. - ago., 2004.
ZINANI, C. J. Literatura e gênero:a construção da identidade feminina. Caxias do Sul:
Editora da Universidade de Caxias do Sul, 2013.
KOLONTAI, Alexandra. A nova mulher e amoral sexual. São Paulo: Editora Expressão
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OLIANI, N. G. As representações da mulher em As meninas, de Lygia Fagundes Telles.
2010. 107f. Relatório (Iniciação Científica). Universidade Estadual Paulista, São Josédo Rio
Preto, 2010.
FAUSTO, B. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1995.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 455
A INTEGRAÇÃO IBERO-AMERICANA: O DISCURSO A
FAVOR DE UMA IDENTIFICAÇÃO [Voltar para Sumário]
Camila da Silva Lucena (PPGL/UFPE)1
Situando a discussão
É comum vermos em diferentes continentes o surgimento de acordos que visam unir
os países em torno de questões culturais, econômicas ou políticas, tendo como objetivo,
principalmente, o favorecimento de seus mercados no cenário internacional. Atualmente,
dentre muitos acordos vigentes destacam-se, por exemplo, o MERCOSUL na América Latina
e na Europa, a União Europeia. Algumas dessas parcerias são favorecidas devido à
proximidade entre as nações interessadas a união, no que se refere a distintos aspectos, sendo
o espaço geográfico um deles, porém há parcerias que vão além das fronteiras dos continentes
aproximando realidades divergentes. Um exemplo desse tipo de parceria é a OEI
(Organização dos Estados Ibero-Americanos), organização da qual o Brasil participa como
membro efetivo.
Na América Latina, o que se observa é que a ideia de integração tem como discurso
legitimador a história de formação desses países, exaltando um passado em comum que os
aproxima e que favorece a união. Dentre as parcerias ou blocos econômicos dos quais o Brasil
e outros países da América Latina fazem parte, a OEI desperta interesse por ser uma união
que não é majoritariamente latina, visto que Espanha e Portugal estão entre os seus membros.
Contudo, o mesmo discurso que recupera uma memória em comum entre os países da
América Latina, também é usado para a legitimação dessa parceria, o que nos leva a
questionar, quais recortes dessa memória são atualizados ao aproximar a Ibéria do contexto
latino?
Sendo assim, entendemos que é relevante conhecer mais essa parceria. A OEI
configura-se como um organismo governamental de abrangência internacional, que tem como
1 Mestranda em linguística pela UFPE, e-mail: [email protected]
Nas fronteiras da linguagem ǀ 456
objetivo promover uma cooperação entre os países Ibero-Americanos, buscando um
desenvolvimento igual e efetivo no que se refere à educação, ciência, tecnologia e cultura. Ao
tomar a cultura como um dos princípios fundamentais para esta integração, em 2006, na
Cumbre de Jefes de Estado y Gobierno, em Montevidéu, foi aprovada a Carta Cultural Ibero-
Americana e, mais tarde, um documento de caráter político chamado Avanzar en la
construcción de un Espacio Cultural compartido. Desarrollo de la Carta Cultural
Iberoamericana (doravante Documento de desenvolvimento da carta). Este último,
desenvolve, teoriza e define metas, abrangendo o conteúdo da Carta, sendo assim, esses dois
documentos têm como objetivo favorecer a cultura da Ibero-América e criar condições para o
estabelecimento do que define como Espaço cultural Ibero-Americano, bem como do sujeito
Ibero-americano que o constitui.
Então, visando ser uma problematização inicial dessa temática2, este trabalho tem
como objetivo analisar o discurso pela integração da Ibero-América, pensando
especificamente quais sentidos são mobilizados diante da ideia de espaço cultural Ibero-
Americano observando como este discurso atua em favor de uma identificação, convidando
aos indivíduos desses países a se identificarem com essa proposta, tornando-se, pois, sujeitos
ibero-americanos. Partimos da hipótese de que essas construções apresentam o que chamamos
de discurso integracionista, que atua construindo “sentidos-outros” ao teorizar sobre o que
seria esse espaço e seu sujeito, mobilizando uma memória (COURTINE, 1999; PÊCHEUX,
1997) fragmentada e com isso apagando-se dizeres que não interessam a um discurso de
integração. Como este trabalho é uma exploração inicial, essas questões serão analisadas a
partir de um capítulo do Documento de desenvolvimento da Carta, cujo título é consolidar el
espacio cultural Iberoamericano.
Para fundamentar teoricamente este trabalho, recorremos à Análise do Discurso de
linha pecheuxtiana (AD), teoria que nos oferecerá os elementos necessários para trabalhar
com essa ideia de um imaginário (PÊCHEUX, 1997) ibero-americano, pensando teoricamente
o sujeito e os processos de identificação que o atravessam (ALTHUSSER, 1970;
INDURSKY, 2008) e como isso vai se marcando na materialidade da língua, através das
designações (GUIMARÃES, 2005), a fim de construir uma estabilização de sentidos.
2 Defino este trabalho como uma problematização inicial da minha pesquisa do mestrado, na qual me proponho a
pensar o discurso integracionista e o espaço cultural Ibero-Americano, considerando a cultura como motivadora
dos discursos pela integração da Ibero-América, a partir dos dois documentos citados acima.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 457
1. Sobre a teoria que nos sustenta
A carta cultural Ibero-Américana apresenta um discurso integracionista, que regula
toda uma série de saberes sobre o que é o Espaço Cultural Iberoamericano. Pêcheux (1997)
chama esta força que regulariza os saberes de formação discursiva e cabe a nós entender o que
seria e como funcionaria essa noção, para pensar os efeitos de sentidos possíveis a partir dela
na Carta.
Primeiramente, com a Análise do Discurso a ideia de que haja um sentido literal para
uma palavra é rechaçada. O que há, é um efeito de evidência que produz uma aparente
literalidade de sentidos para o discurso. Porém, esta evidência é o resultado do trabalho da
ideologia, que é inerente a todo processo discursivo. Segundo Orlandi (2007, p. 45), “a
evidência do sentido, que na realidade é um efeito ideológico, não nos deixa perceber seu
caráter material, a historicidade de sua construção”. Ou seja, o sentido de uma palavra é
construído ideologicamente, visto que está determinado pelas posições ideológicas nas quais
os sujeitos estão inseridos.
Poderíamos resumir essa tese dizendo: as palavras, expressões, proposições, etc.,
mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o
que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é,
formações idológicas nas quais essas posições se inscrevem. (PÊCHEUX, 1997, p.
60)
Portanto, os sentidos, ou melhor, os efeitos de sentidos são determinados pela
formação ideológica a qual pertencem. Cada formação ideológica carrega consigo uma ou
mais formações discursivas, que são definidas como uma matriz de saberes que regulam “o
que pode e deve ser dito a partir de uma posição dada numa conjuntura dada” (HAROCHE,
PÊCHEUX, HENRY, 2007, p. 26). Isto é, os sentidos mudam de acordo com a formação
discursiva na qual estejam inseridos. Não está na língua, mas sim na relação entre a língua, o
sujeito e as condições sócio-históricas e ideológicas.
Pensando na Carta Cultural Ibero-americana, este documento está fundamentado por
uma posição ideológica que defende a integração da Ibero-América. A favor dessa posição se
manifesta uma formação discursiva integracionista (doravante FD integracionista) que regula
os saberes que definem e representam na linguagem a formação ideológica correspondente.
Portanto,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 458
cada formação ideológica constitui desse modo um conjunto complexo de atitudes e
de representações que não são nem ‘individuais’ e nem ‘universais’, mas que se
relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas em
relação às outras. (HAROCHE, PÊCHEUX, HENRY, 2007, p. 26).
Desse modo, a FD integracionista pode ser definida a partir de alguns aspectos.
Podemos citar como exemplos: o discurso que recupera a memória das formações histórica
dos países desta região; o argumento da proximidade das línguas, dos problemas sociais e de
desenvolvimento; e o emprego da cultura como condição para o desenvolvimento social e
econômico. Com esta FD integracionista, a Carta tem como objetivo provocar uma
identificação nos indivíduos dessa região para que eles possam se reconhecer nesta posição e
a partir daí atuar efetivamente como um sujeito ibero-americano.
Então, o discurso pela integração da Ibero-América, com o objetivo de provocar uma
identificação no sujeito dessa região, tem como característica a convocação dos indivíduos
para assumirem a posição de sujeito ibero-americano, isto é, para compartilharem da FD
integracionista.3 Uma vez que assume uma posição, o sujeito estará regulado pelos saberes de
determinada formação discursiva, o que implica dizer que esses saberes determinam o que
pode e deve ser dito para ser condizente com a FD correspondente, sendo assim o discurso
não será seu e sim de um grupo ideologicamente representado. Assim que, “tal concepção
obriga Michel Pêcheux a declarar que o sujeito é ‘suscetível de esquecer’, ou seja, esse sujeito
interpreta mal ou absorve a ‘causa’ ou determinação de seu discurso, pensando ao contrário
ser seu criador, fonte e origem do sentido.” (BARONAS In BARONAS, 2007, p. 200).
Dessa forma, chegamos à noção de sujeito na AD pecheuxtiana, noção crucial para
entendermos a estratégia que a Carta cria ao convocar o indivíduo a compartilhar da FD
integracionista fazendo-o esquecer dessa anterioridade. O sujeito para AD pecheuxtiana é
constituído pela história e pela ideologia, de modo que estes dois fatores vão determinar
diretamente seu discurso. Isto é, o sujeito não é a origem do que fala, mas vive segundo essa
ilusão. Para Indursky (2008), ele é duplamente afetado:
Na constituição de sua psiquê, este sujeito é dotado de inconsciente. E, em sua
constituição social, ele é interpelado pela ideologia. É a partir deste laço entre
inconsciente e ideologia que o sujeito da Análise do Discurso se constitui. É sob o
efeito desta articulação que o sujeito da AD produz seu discurso. (2008, p. 10 -11)
3 Neste trabalho não temos como objetivo analisar se de fato ocorre ou não uma identificação. Entretanto,
procuramos entender como se funda esta estratégia, pois, de certa forma, é relevante para analisar como o sujeito
está representado, sendo esta uma questão interessante para este ou futuros trabalhos.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 459
O discurso de um sujeito, que foi interpelado ideologicamente, tem que estar inserido
segundo Pêcheux (1997) em uma formação discursiva, que representa na linguagem o
funcionamento das formações ideológicas. Então, quando o indivíduo é assujeitado
(ALTHUSSER, 1970), ou seja, quando a ideologia interpela os indivíduos em sujeitos, estes
são chamados a se identificar com determinada rede de discursos. Essa noção de sujeito
provocou e ainda provoca críticas até mesmo de outras perspectivas da Análise do Discurso.
O ponto alvo da crítica é esse assujeitamento, contribuição trazida de Althusser da obra
Aparelhos Ideológicos do Estado (1970). Muitos entendem esse assujeitamento como uma
falta de criticidade, como se o sujeito não soubesse de sua vinculação ideológica. Porém, não
é assim que entendemos. Consideramos que esse assujeitamento é inerente a todo indivíduo e
a partir dele, nosso interesse é analisar como o lugar que o sujeito ocupa na sociedade
influencia o seu dizer.
Pêcheux ainda define que “a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se
realiza pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina” (1997, p.
214). A partir dessas formulações podemos pensar na noção de identificação. Esta se
manifesta nesse movimento no qual o sujeito se cola a uma rede de discursos e então produz
sentido para o que fala. É um processo de construção do sujeito, enquanto sujeito no discurso.
A Carta Cultural Ibero-americana funciona a partir desta estratégia, de levar um
sujeito a se reconhecer ibero-americano. Assim que, partindo da FD integracionista faz uma
serie de representações do que é o Espaço Cultural ibero-americano e de como são os sujeitos
que atuam nesse espaço. Essas representações vão se marcando na materialidade da língua,
pela força do uso das designações Espaço Cultural Iberoamericano, sujeto iberoamericano e
cultura iberoamericana.
Quanto à designação, faz-se relevante defini-la em relação a outro fenômeno, o da
nomeação, tendo em vista o equívoco recorrente de tomar esses dois processos como
sinônimos. De acordo com Guimarães (2005, p. 5), a nomeação é “o funcionamento
semântico pelo qual algo recebe um nome”, isto é, pode-se dizer que a nomeação está mais
para classificar, ao determinar um nome para dado objeto. Já a designação estaria mais
voltada para significar, uma vez que, enquanto funcionamento simbólico, expressa a
significação de um nome remetida à história, ou seja, designar seria estabelecer sentidos
considerando os discursos pelos quais eles são historicamente formados.
Ao estudar a designação, entendemos que sua teorização passa pelas formulações de
Pêcheux (1997) acerca da noção de pré-construído. Ao retomar os estudos de Frege, Pêcheux
recusa a ideia de que os nomes tenham sempre uma denotação e vai reafirmar a sua posição
Nas fronteiras da linguagem ǀ 460
de que há sempre algo que pode ser dito e que se refere não a algo recuperável na estrutura de
uma formulação, mas que remete a um dizer outro que se constrói antes e independentemente
do enunciado proferido. Isto é, algo remetido à história, ao percurso do funcionamento
discursivo de determinada designação. Interessa-nos, então, a trajetória pela qual os sentidos
vão sendo construídos, refletindo sobre o porquê desse caminho, e a partir disso propor uma
compreensão fundamentada. Em seguida tentamos exemplificar um pouco como se dá esse
processo.
2. Da análise do corpus
Como apontado anteriormente, é possível perceber com esta análise inicial que na
Carta Cultural Ibero-americana predomina uma orientação discursiva, chamada por nós de FD
integracionista, que tem como objetivo regular os saberes em defesa da integração ibero-
americana. Esta FD integracionista é construída por um entrecruzamento de discursos, que
convergem ao determinarem que as semelhanças históricas, linguísticas e de desenvolvimento
social dessa região são fatores que favorecem a integração.
Centrada nessas questões, a FD integracionista representa na linguagem uma formação
ideológica (PÊCHEUX, 1997) de base econômica e cultural, a partir da qual se (re)define o
sentido de cultura, espaço y sujeito ibero-americano para este contexto. Permitindo, com isso,
o destaque de certos saberes e a exclusão de outros. Com isso, vai ser fundamental para a FD
integracionista recuperar a vinculação histórica dos países desta região. Nesse sentido, se
propõe a teorizar sobre as semelhanças que aproxima a cultura desses países como um dos
principais elementos para a integração.
SD1: Pensar que, mediante la cultura, es posible la integración de una región que
supera los seiscientos millones de habitantes forma parte de un ideal político. Al fin
y al cabo, esto solamente es posible si se parte de la configuración de un bloque
común, con memorias, tradiciones históricas, prácticas culturales y formas de
organización emparentadas y que coexisten con particularidades y diferencias.
Como aponta este fragmento da Carta, para que aconteça a integração é necessário
partir de algo em comum. A Ibero-América, então, teria um vínculo em comum que se
constitui por memorias, tradiciones históricas, prácticas culturales y formas de organización
emparentadas, que favorecem a integração. A exaltação dessas questões é constante na Carta.
Notamos, às vezes, quase um tom romântico que convida os sujeitos a compartilhar desse
ideal, para que assim percebam o “comum” que os aproxima Entretanto, observamos também
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 461
que logo este discurso pela cultura e essa romancização são substituídos por uma temática de
caráter econômico, ao expor fins e estratégias para o desenvolvimento da região.
A cultura a partir desse discurso parece ser (re)significada. Uma vez que é vista como
o resultado da vinculação histórica, também é considerada como una condición, un medio y
un fin para el desarrollo social. Isto é, mais que um elemento que tem que ser valorizado para
a preservação de uma memória, é concebida como uma ferramenta de reconhecimento e de
desenvolvimento econômico e social. Na FD integracionista presente nesse documento, é
possível afirmar essas duas faces da cultura, o que demonstra que esse é um processo que
ocorre ao mesmo tempo, colocando essas duas posições uma em função da outra.
Mais um elemento que define a FD integracionista é a referência a um Espacio
Cultural Iberoamericano, como destacamos nas SDs abaixo:
SD2: El espacio cultural es un entramado de aspiraciones comunes, redes,
bloques subregionales, sistemas de coordinación y de encuentro que, se unen en
torno a la creación, circulación y apropiación social de la cultura.
SD3: La mayor parte de la sociedad y la población iberoamericanas está compuesta
por jóvenes. Por tanto, el espacio cultural iberoamericano es un espacio de
juventud con todo lo que ello significa: dificultades laborales y proyectos
aplazados, tensiones educativas y exclusiones.
A Carta traz como um de seus objetivos a consolidação do chamado Espacio Cultural
Iberoamericano. Ao definir que este espaço é um entramado de aspiraciones comunes y
también de problemas comunes, dificultades laborales y proyectos aplazados, tensiones
educativas y exclusiones, termina criando uma homogeneização e apesar de afirmar que as
diferenças serão preservadas, isto parece não se realizar efetivamente. Porque, a partir de uma
análise inicial da Carta, entendemos que na tentativa de unificação o semelhante é valorizado,
enquanto o diferente, o minoritário é inevitavelmente esquecido.
Com isso, este Espacio Cultural Iberoamericano é construído a partir de uma
homogeneização que acaba definindo o sujeito ibero-americano e sua cultura. Outro elemento
da FD integracionista que unifica este sujeito ibero-americano a partir de uma homogeneidade
é a referência a uma herança linguística da Ibero-América:
SD4: Las lenguas son fundamentales para la existencia de un espacio
cultural común. El español cohesiona, junto con el portugués, desde hace
siglos, la existencia de una comunidad histórica, puesto que facilita la
narración, la representación y el intercambio, no solo de lo que nos es
más específicamente propio, lo que nos diferencia, sino también de aquellos
que nos acerca y no une.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 462
Além de ser representada por uma vinculação histórica, cultural e por problemas
semelhantes de desenvolvimento a Ibero-América é identificada também por uma base
linguística comum. O sujeito ibero-americano, segundo a Carta, fala português e espanhol,
línguas que geralmente são definidas como irmãs, então seriam irmãos também os países que
compõem esta região. E se isso acontece, por que não concretizar essa aparente vinculação
efetivamente? Isto é o que o documento se dedica a reforçar e cristalizar no imaginário ibero-
americano. Como sugere a Carta, estas duas línguas facilitam la narración, la representación
y el intercambio, e essas seriam condições perfeitas para uma integração.
SD5: Antes de alcanzar la integración económica y política,
Iberoamérica ha estado unida por sus lenguas, sus tradiciones comunes,
la proximidad de sus prácticas de consumo cultural y la cercanía de
expresiones artísticas que, como la música y la danza, el teatro y el cine,
forman parte de sus lazos más comunes y sentidos.
Este fragmento reforça mais uma vez os laços comuns desta região e traz um
funcionamento discursivo frequente na Carta, que é o discurso pela economia que às vezes
parece superar o discurso pela cultura. Isso representa a oscilação entre duas orientações
discurisvas: antes de alcanzar la integración económica y política, Iberoamérica ha estado
unida por sus lenguas, sus tradiciones comunes […], uma que sugere que o fato de haver
semelhanças é a razão para a união; e outra orientação que sugere que a união é conveniente e
as similitudes cooperam para essa integração. Esta oscilação se faz presente em todo texto da
Carta, apesar da tentativa de deixar apenas um espaço ao final para tratar mais
especificamente das estratégias econômicas.
Portanto, o sujeito se encontra entre duas posições que estão a favor de um mesmo
objetivo: a integração. Porém, a FD integracionista unifica essas duas questões tentando criar
um ambiente onde não haja dúvida, pois se o indivíduo é um sujeito ibero-americano faz parte
desse cenário de similitudes e compartilha também do desejo pela integração para alcançar o
desenvolvimento efetivo de seu país e região. O indivíduo é convidado enquanto sujeito a se
identificar com esta representação construída pela FD integracionista, que o coloca na posição
de ibero-americano, e uma vez nessa posição aceita tudo o que vem com a memória e história
dessa designação. Entretanto, essa memória é fragmentada apagando-se com isso dizeres que
não interessam a um FD integracionista. Essas questões, porém, serão assuntos para outros
trabalhos.
3. Considerações finais
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 463
Apesar de ser uma abordagem inicial, com este trabalho foi possível rastrear algumas
questões importantes acerca do funcionamento discursivo da Carta Cultual Ibero-americana.
Apresentamos pontos significativos que surgem com objetivo da integração de uma região tão
grande como é a Ibero-América, pontos estes que merecem uma análise mais atenciosa que
não pôde ser feita e nem era o objetivo desse trabalho.
Com a ideia de integração surge a necessidade de recuperar algo de semelhante para
provocar uma identificação no outro e servir, desse modo, de justificativa para essa proposta.
Como consequência a Ibero-América é definida como uma região de vinculações históricas,
culturais e linguísticas, além de ser jovem, e por isso também se aproxima quando se trata de
problemas de desenvolvimento. Essas questões fazem parte de uma FD integracionista que
passa a definir os saberes que devem ser recuperados e reatualizados, como também aqueles
que devem ser silenciados.
Com a FD integracionista ocorre a (res)significação de alguns saberes como a noção
de cultura, de Espaço Cultural Ibero-americano e de sujeito ibero-americano, que tomam
sentidos distintos de acordo com a formação ideológica da integração em um momento
bastante específico, no qual alguns países da região começam a ter destaque no quesito
economia. Assim que, é importante voltar o olhar para a Carta, pois este documento tem
como função servir de referência para as políticas culturais de cada país, como também
incentivar projetos compartilhados entre os países da ibero-América, buscando com isso o
desenvolvimento efetivo dessa região.
Entendemos que tais discussões nos permitiram observar a naturalização de certos
sentidos produzidos em torno desse espaço, observando uma tentativa de (re)atualização e
regulação no modo de ver e pensar a Ibero-América. Por fim, acreditamos, pois, que analisar
o modo como os países Ibero-americanos e a cultura desse grupo são representados através da
proposta de integração da OEI, nos coloca diante de discussões onde o discurso revela-se um
lugar privilegiado de análise, cabendo aos que se ocupam da linguagem compreender quais
são os mecanismos por meio dos quais se realizam tais construções.
4. Referências
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BARONAS, Roberto Leiser. Análise do Discurso: apontamentos para uma história da noção-
conceito de formação discursiva. São Carlos: Pedro e João Eds., 2007.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 464
Desarrollo de la carta cultural iberoamericana (2006). Disponible en: <
http://www.culturasiberoamericanas.org/>. Acceso en: 21 de enero de 2014.
GUIMARÃES, Eduardo. Semântica do Acontecimento: um estudo enunciativo da designação.
2 ed. São Paulo: Pontes, 2005.
HAROCHE, Claudine; PÊCHEUX, Michel; HENRY, Paul. (1971). A semântica e o corte
saussuriano: língua, linguagem, discurso. In: BARONAS, Roberto Leiser (org.). Análise do
discurso: Apontamentos para uma história da noção –conceito de formação discursiva.
INDURSKY, Freda. Unicidade, desdobramento, fragmentação: a trajetória da noção de
sujeito em Análise do Discurso. In: MITTMANN, S; GRIGOLETTO, E.; CAZARIN, E.A.
(Orgs). Práticas Discursivas e Identitárias. Porto Alegre: Nova Prova, 2008, p. 9 – 33.
_______. A memória na cena do discurso. In. INDURSKY, F. MITTMANN, S.; LEANDRO
FERREIRA, M. C. (Orgs.). Memória e história na/da Análise do Discurso. Campinas:
Mercado de Letras, 2011, p. 67-91.
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Pontes, 2007.
PÊCHEUX, M. (1975) Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 3. ed.
Campinas: UNICAMP, 1997.
_______. (1969). “Análise automática do discurso (AAD-69)”. In: GADET & HAK (org.).
Por uma análise automática do discurso. 3ª ed., Campinas: Ed. da Unicamp, 1997.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 465
AS MISSIVAS DA IMPRENSA NORTISTA: RETRATOS
LITERÁRIOS DA SECA [Voltar para Sumário]
Camila M. Burgardt (UFPB)
A cultura epistolar, por muito tempo, foi o principal modo de se comunicar a distância.
Mas essa escrita tão necessária deveria ter suas próprias regras que seriam do conhecimento
de quem precisava escrevê-las, apesar de ser uma escrita restrita aos letrados, para que seu
entendimento fosse, na medida do possível, claro. Alguns desses escritos eram tão
especializados, refinados e esteticamente tão bem feitos que se tornaram modelos para uma
escrita, por excelência, dos ‘homens de letras’.
Segundo Barbosa (2011, p. 332), essa escrita regrada por normas de escrita
antiguíssimas baseadas na oratória e na retórica é “um dos gêneros fundadores da escrita em
jornais e periódicos”, assim, mais do que arquivos de textos, as epístolas constituem um meio
privilegiado de acesso a atitudes e representações do sujeito, modelado enquanto um gênero
literário. Assim, também devido à diversidade de temas abordados Malatian (2009) afirma
que as epístolas assumiram uma dimensão educativa, sendo utilizadas na formação dos jovens
devido ao seu caráter instrutivo.
Como vimos, a eleição das cartas publicadas na imprensa nortista deve-se ao fato de
que percebemos que no século XIX a literatura epistolar presente nos periódicos selecionados
construíram as imagens da seca que, mesmo nos dias atuais, povoam os mais diversos tipos de
composições, tais como os romances e as artes em geral, como a produção de quadros ou
filmes. As cartas pertenciam a uma tradição retórica clássica, um gênero com prescrições
seculares que lhe são inerentes e que, no Brasil, foi amplamente difundido por meio de
manuais retóricos e de civilidade até fins do século XIX, como, por exemplo, o Secretário
Português, ou método de escrever cartas, de Francisco José Freire, publicado pela primeira
vez em 1745 e que teve inúmeras reedições, também tido como o segundo livro mais presente
em inventários e testamentos do Brasil Colonial (ARAÚJO, 1999).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 466
Um manual de civilidade muito conhecido é o Código do Bom-tom ou regras de
civilidade e bem viver no século XIX, de José Inácio Roquette (1997), publicado em 1845 e
que conta com um capítulo que trata somente das epístolas – “Das cartas”. Segundo Barbosa
(2011b, p. 02) em seu estudo sobre a adaptação de livros no século XIX, os autores
“Desconhecendo a ideia de originalidade, [...] se pautavam pela cópia, compilação, extração e
adaptação de autores e títulos consagrados, que são atualizados tanto pelas formas editoriais
como pela comunidade de leitores que deles se apropriam.” Assim, um ano depois, o padre
Roquette transformou o capítulo “Das cartas” em um compêndio epistolar que, em sua
terceira edição, apresentava-se como o Novo Secretario Português ou Código Epistolar, de
1860.
Podemos perceber com Barbosa (2011; 2011a; 2011b), que a produção dos manuais
epistolares esteve articulada a um projeto mais amplo de práticas de civilidade, através de
estratégias textuais e práticas epistolares que, desempenhando funções tão variadas quanto às
motivações que a geraram, longe de refletirem o que de fato aconteceu, demandam esforço
interpretativo. E, ao oferecerem os mais variados modelos de cartas para todas as
circunstâncias, os manuais epistolares retratam maneiras de narrar e imaginar o passado,
expressando um modo de escrita, ratificando modelos normativos e estéticos.
Assim, compreender as diferentes práticas de escrita e leitura, seus múltiplos usos,
funções e formas em que foram expressos e os modos pelos quais foram revelados nos diz
muito sobre o que mudou no mundo da escrita ao longo do tempo, bem como os diferentes
comportamentos associados à vida cotidiana, as mudanças que a escrita tem para aqueles que
a usam e as diferentes formas de apropriação dos escritos. Logo, como bem afirma Pécora:
Compreender adequadamente os efeitos propiciados por determinado gênero letrado,
aqui, significa determinar as marcas temporais desses efeitos, pois estes não são
permanentes, no sentido de funcionar em qualquer período histórico, nem
demonstram a mesma qualidade, do ponto de vista da variedade de recursos
utilizados, da intensidade do impacto afetivo produzido ou da posição relativa no
conjunto dos empregos de mesmo gênero. (PÉCORA, 2001, p. 15-16, grifos do
autor)
Assim, ao pensarmos nos escritos sobre a seca de 1877-79, por exemplo, também
pensamos, em grande medida, nos periódicos do século XIX e mergulhamos numa série de
textos inerentes àquela época, alguns já esquecidos da história da literatura, que compõe o
suporte jornal, com seus mais variados gêneros textuais.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 467
Os jornais do Norte, provavelmente, foram os primeiros a publicarem as notícias da
seca e de suas mais diversas consequências à vida cotidiana dos sertanejos1, constituindo-se
no grande elaborador dos discursos que temos atualmente sobre esse fenômeno climático, pois
nesse período, 1877-79, todos os jornais aos quais tivemos acesso2, de uma maneira ou de
outra, da simples nota embutida nas notícias gerais de uma localidade ao principal tema
abordado por um poema, carta de notícias, incendiária, panfletária ou mesmo de caráter
político, observamos os diversos modos de se tratar a questão da seca, principalmente como
um objeto político com suas variadas consequências.
Nos jornais, observamos que a seca e suas implicações servem de pretexto para, por
exemplo, atacar o atual governante, enquanto um periódico de oposição ao regime vigente,
nesse sentido é interessante notar a atuação do periódico cearense conservador Pedro II. A
administração conservadora acaba no governo do Conselheiro João José Ferreira de Aguiar,
em 21/02/1878, e a administração liberal começa com o presidente de província Dr. José Júlio
de Albuquerque e Barros, em 08/03/1878. Nossa análise na fonte começa no dia 03/01/1878 e
até fins do mês de fevereiro o jornal trata a questão da seca como algo natural, no qual o
governo está se empenhando em tudo oferecer aos flagelados, a partir de então percebemos
que a situação dos flagelados e retirantes piora drasticamente, como notamos no trecho de
carta que segue:
Aquiraz. O estado atual d’esta vila é digno de dó! O povo está morrendo á fome! Os
emigrantes passam cotidianamente aos centos para essa capital, tão faltos de forças
para caminharem, que já alguns aqui tem morrido! Não há um punhado de farinha
do governo que se dê a estes famintos, para aliviar a 67 fome de jejum de 2, 3 dias,
que trazem do Aracaty a esta vila! A caridade particular já não pode acudir a tantos,
que pedem pão! Mísero povo! Deus nos acuda.
Dizem aqui que alguns liberais, mal intencionados, desta vila, mandaram ao
diretório liberal da capital uma lista das pessoas, que deveriam ocupar os cargos de
autoridades policiais, entrando nela o nome de um tal Alfredo M. de S. Leão para
delegado, ou 1º supplente do mesmo; além da seca, e moléstias que acabrunhão o
povo Aquirense, não nos podia vir maior mal maior! O tal de Alfredo não só é bem
conhecido aqui, como na capital, e em todas as partes, por onde tem andado; sem
habilitação alguma, sem predicado que o recomende, sem saber bem ler e escrever,
como se poderá ver na secretaria do governo, quando lá esteve engajado, pouco
tempo, que inutilizou alguns registros; diz em toda a parte, que logo, que chegar sua
nomeação, se há de vingar e perseguir a estes, e aqueles, uns por não lhe querer
prestar dinheiro, outros por reprovarem seus disturbios e desatinos etc.; pedimos,
portanto, ao justo administrador, que por sua ilustração e moralidade não consinta
em tal nomeação, podendo ser nomeado, qualquer liberal que gose de alguma
consideração, respeito e moralidade neste lugar, e não a um homem que não serve
nem para inspector de quarteirão.
1 O termo é entendido aqui no seu sentido mais amplo em que, exceto o litoral, todo o restante da província na
década de 1870 era considerado sertão. 2 Os jornais cearenses A Liberdade (1877); Eco do Povo (1879); O Cearense (1879); O Retirante (1877); Pedro
II (1878); e o jornal paraibano A Opinião (1877).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 468
Este mesmo pretendente já foi demitido, por incapaz, de alferes do corpo de polícia,
e de adido a secretaria do governo.
Apontaremos aqui liberais dignos de ocupar semelhante cargo, por gozarem de
estima e consideração – Os Srs. Jose Pereira Façanha, Alcides Brazil de Mattos,
Simões Branquinho, Dr. José Ladisláo e João Alves de Carvalho, que prestou bons
serviços na secretaria do governo, onde S. S. o Dr. José Julio foi secretario, e outros
que tambem gozam de bons predicados; esperamos, pois, que o Exm Sr. Dr. José
Julio, escrupuloso e moralizado como é, não nos dará aqui mais este flagelo.
Aquiraz 27 de fevereiro de 1878.
O Justo. (PEDRO II, 24/02/1878, n.16, p. 04)
Esta missiva foi publicada na Coluna “A Pedido” do jornal Pedro II, uma carta
política que é classificada como carta moral e de conselhos, ou exortatórias, com o intuito de
convencer e/ou aconselhar, mas quando essas sugestões não são consideradas elas acabam
sendo escritas “no ardor impetuoso de sua paixão, arrebatado pela violência de seus
movimentos; quando chamado por outros assuntos de sua consideração, não tem o tempo
suficiente para refletir sobre o que lhe aconselha, ou enfim se estes chegam depois que
inutilmente os há dado outra pessoa.” (ROQUETTE, 1860, p. 29).
Na carta, o leitor-escritor compara os males da seca com a nomeação do Alfredo M. de
S. Leão, para isso usa de alguns recursos para qualificá-la, como o uso das exclamações, o
enunciado pictórico “Não há um punhado de farinha do governo que se dê a estes famintos”,
altamente imagético; e de outros recursos para desqualificar Alfredo, como o uso do
pleonasmo “... maior mal maior!”, o uso repetitivo do conectivo “sem” na apresentação das
características, bem como na enumeração gradativa dos atributos negativos do sujeito. Na
tentativa de convencer o grande público e mesmo o presidente da província, o destinatário
implícito da carta, de que a nomeação do Sr. Alfredo seria uma espécie de “flagelo” para a
região e, ao mesmo tempo, de aconselhar o presidente da província, o Sr. José Julio, de que há
outros “... liberais dignos de ocupar semelhante cargo, por gozarem de estima e consideração”
(PEDRO II, 24/02/1878, n.16, p. 04). Para corroborar com o objetivo da carta o leitor-escritor
confere alguns predicados ao presidente da província como – justo administrador, ilustrado,
escrupuloso e moralizado – também com o intuito de reforçar a mensagem, pois seria um
paradoxo um presidente com esses predicados nomear um sujeito como Alfredo para um
cargo de autoridade policial.
A missiva é assinada pelo pseudônimo “O Justo” e dá início a uma série de cartas que,
ligadas ao tema da seca somam um total de vinte epístolas de denúncia contra a gestão do
presidente da província e da corrupção do governo vigente, na pessoa do Sr. Dr. José Júlio de
Albuquerque e Barros, Barão de Sobral, questionando a administração pública em vários
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 469
aspectos. Esse pseudônimo específico – O Justo – ou seja, aquele que procede com justiça,
também funciona como um argumento retórico em favor da mensagem do leitor-escritor.
O trecho que segue é de uma carta publicada na coluna “A Pedido” do jornal Pedro II,
com o título “Ao Exmo. Sr. Presidente da província”, mais uma vez o leitor-escritor da
missiva trabalha com o objetivo de sensibilizar o leitor e estabelecer certos efeitos de sentido:
Os socorros públicos que até então se distribuíam n’esta cidade, e que bem ou mal
iam mantendo a vida de tantos infelizes, embora famintos e nus, cessaram e desde
então para cá as calçadas das ruas que serviam para o trânsito público,
transformaram-se em leito de dor dos infelizes famintos, que ao exalarem o último
suspiro, preferem um bocado a voz santa do sacerdote lembrando-lhes o nome Deus!
O número de mortos nas calçadas, becos e estradas já sobe a trinta por dia, sendo
que já se encontram cadáveres dispersos pelos campos em estado de putrefação, sem
que uma alma caridosa lhes dê uma sepultura!
É um horror! A miséria tem atingido ao desespero n’esta época de calamidade, tem
varrido dos corações humanos seus mais sagrados sentimentos – amizade, dever e
gratidão não ha mais quem os revele, tudo extinguiu-se; os maridos abandonam suas
mulheres, os pais, os filhos, estes a aqueles, os irmãos uns aos outros, tudo isto pela
fome, e em cada ângulo d’esta cidade encontram-se infelizes abandonados, aqui um
morto, ali um agonizando, sempre o mesmo quadro! (PEDRO II, 22/03/1878, n.22,
p. 03)
A princípio o autor afirma que a ajuda antes chegava e não chega mais a localidade e
para marcar as consequências da falta de alimentos usa de construções imagéticas para chocar
o leitor e culpar a administração pública como em “famintos e nus”. Ao mesmo tempo, a
composição mostra-se poética e abstrata: “transformaram-se em leito de dor dos infelizes
famintos”; “que ao exalarem o último suspiro”; “tem varrido dos corações humanos seus mais
sagrados sentimentos”. Metaforicamente as ruas transformam-se em hospitais e abrigos para
os necessitados e os mortos são banalizados e tratados como animais que perecem a vista sem
serem socorridos. Imagens que impactam a sensibilidade, com sua força comovente e
evocativa, devido ao seu caráter enfático, contundente e direto.
A hipérbole, cujo significado figurado é bem maior ou menor que o próprio, não se
apresenta com o intuito de enganar – já se encontram cadáveres dispersos pelos campos em
estado de putrefação (PEDRO II, 22/03/1878, n.22, p. 03) -, mas de levar a própria verdade, e
de fixar, através do que ela diz de estranho, aquilo em que é realmente preciso acreditar
(RICOEUR, 2000).
As consequências da seca transformam as pessoas em seres desprovidos de valor,
aquilo que nos distingue dos animais irracionais, assim “os maridos abandonam suas
mulheres, os pais, os filhos, estes a aqueles, os irmãos uns aos outros” (PEDRO II,
22/03/1878, n.22, p. 03). Essa linguagem que parece simples, natural e clara afirma que a
Nas fronteiras da linguagem ǀ 470
seca, naquele momento, era falar de seres humanos que se portavam como animais, mas não
mostrando uma relação evidente de causa e efeito, justo pelo uso de uma escrita trabalhada e
portadora de efeitos de sentidos que procuravam fixar na memória uma história regular e
repetitiva – “sempre o mesmo quadro!” (PEDRO II, 22/03/1878, n.22, p. 03).
A missiva política termina com o seguinte pedido: “Longe de mim o pensamento de
fazer uma insinuação a V. Exc. para o triste estado de meus infelizes conterrâneos, que já
nadam com a morte estampada no rosto, e pedir a V. Exc. que se condoa d’eles dando as
providências que o caso exige. Creia V. Exc. no que venho te dizer.”. É assinada por “L.
Cabral”, e atualmente um nome desconhecido, mas com esse sobrenome era provavelmente
conhecido entre o próprio grupo político e assim demarcava uma posição entre os seus
companheiros de partido.
Outra implicação para se tratar da seca é a corrupção dos agentes nomeados para a
distribuição de socorros, ou seja, dos gêneros alimentícios enviados, pelo governo, aos
flagelados. A denúncia de roubos por parte dos comissários da seca ou o pedido de
restauração da honra e explicações com relação aos víveres são constantes. O periódico Eco
do Povo fez tremenda guerra aos comissários, veremos mais detalhadamente a seguir, mesmo
tendo vindo à luz já no fim da seca, 24/06/1879, publicando muitas matérias e cartas
denunciando a corrupção e o mau uso dos alimentos enviados pelo governo, como podemos
observar na notícia e na carta que segue:
Mortos á fome. – Morreram de fome, dentro do abarracamento do 1.º distrito, d’esta
cidade: José Joaquim Vem-vem, casado, natural da Telha, Maria Filomena, solteira,
natural do Icó, Joana Batista de Oliveira, viúva, natural da Telha, e Henriqueta
Maria de Jesus, solteira, natural do Limoeiro!!!
É vergonhoso registrar-se hoje óbitos d’esta ordem, quando se gasta rios de ouro e
os armazéns do governo se acham recheados de víveres!!
Chamamos a atenção do Sr. Dr. José Júlio, para um fato tão sério quanto grave.
(ECO DO POVO, 16/07/1879, n.04, p. 03)
Aos comissários do Aracati.
Os emigrantes d’esta cidade para que os seus ecos se ergam mais alto, vem por meio
da imprensa perguntar inofensivamente aos Srs. comissários Drs. Francisco
Fernandes Vieira e Antônio Gomes Tavares, qual a razão de fazer essa comissão
maiores despesas e deixando a morrer a fome, ao passo que a ulterior gastava menos
e de nós cuidava mais?
Responda-nos.
Aracati, 27 de setembro de 1879.
Os emigrantes. (ECO DO POVO, 18/10/1879, n.13, p. 06)
A primeira citação, uma notícia, informa a respeito de mortes ocorridas no
abarracamento, lugar onde se reuniam os necessitados em busca de abrigo e alimentos do
governo e, ao mesmo tempo, questiona a distribuição de víveres por parte dos comissários,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 471
clamando a atenção do presidente da província numa denúncia que espera ser apreciada e
investigada. Já na segunda parte, uma carta publicada na coluna “A Pedido”, também
questiona os procedimentos de determinados comissários, comparando-a a anterior e
intimando-a a responder também pelo jornal, numa tentativa de coagir os comissários.
Ambas as composições, a notícia e a carta, colocam em evidência a morte de pessoas
devido à fome e eram muito comuns nos jornais, como podemos observar em alguns
exemplos: “Até hoje ainda não tivemos a mais pequena chuva, e o pobre povo já começa a
morrer á fome.” (A LIBERDADE, 08/03/1877, n. 19; p. 02-3); “Já cinco pessoas foram
arrebatadas pela voracidade da fome!!...” (O RETIRANTE, 16/09/1877, n. 13; p. 02); “O
morticínio ocasionado pela fome, continua; sepulta-se diariamente no cemitério publico, nas
estradas e até nos cemitérios onde sepultaram-se em 1862 os coléricos, de 18 a 30 pessoas!”
(PEDRO II, 02/02/1878, n. 10; p. 03); “Há pais que por sua miséria tem abandonado seus
filhos, de sorte que as ruas vivem cheias de meninos e meninas no estado mais pungente que
se pode imaginar. Há mulheres que vivem nuas e morrendo á fome!!” (A OPINIÃO,
01/11/1877, n. 53; p. 02-3).
A violência da fome e de suas consequências no corpo humano são explorados em
seus mínimos detalhes de modo a causar o maior impacto possível no grande público, a
notícia do Eco do povo coloca lado a lado duas descrições bem diferentes – a de mortos e de
um armazém “recheado de víveres” -, esses enunciados são pictóricos, uma vez que se
prestam a ser representados visualmente, com detalhes significativos que colocam em
evidência dois lados opostos – a dos necessitados e daqueles que podem ajudar, mas não o
fazem. Assim, mesmo em uma notícia, verificamos que o editor usa da palavra trabalhada,
como na metáfora “quando se gasta rios de ouro” (ECO DO POVO, 16/07/1879, n.04, p. 03),
que também podemos considerar pictórica, pois gera a imediata produção de imagens que
enriquecem a mensagem e produzem maiores efeitos de sentido sobre os leitores.
Esse e os exemplos de cartas vistos anteriormente revelam o poder enfático da palavra
escrita em seus detalhes significativos, como no uso do ponto de exclamação, apropriado na
identificação de sentimentos fortes, com a função de representar, na escrita, a entonação de
exclamação de um enunciado, o que confere mais sentidos a composição.
O artifício retórico utilizado pelo autor da missiva é o anonimato, com o uso do
pseudônimo “Os emigrantes”, o que garante a liberdade de expressão e, nesse caso, o escrito
ganha uma dimensão coletiva de cobrança dos poderes públicos, uma vez que coloca a
pergunta na boca do povo de modo informal e a questão de autoria perde a importância, pois a
Nas fronteiras da linguagem ǀ 472
quantidade de emigrantes era grande e mesmo as pessoas de posses costumavam migrar para
as grandes cidades. A identificação dos autores das cartas não é um trabalho fácil, pois:
Uma das razões, a mais óbvia talvez, diz respeito à necessidade de proteção, seja da
autoridade, seja da reputação, ou até mesmo, no caso das mulheres, de algum pai ou
marido ciumento. Por isso o uso mais sistemático do artifício encontra-se em
escritos amorosos, políticos, em debates e contendas pessoais. (BARBOSA, 2007,
p.33)
Ao mesmo tempo, o uso do pseudônimo como uma regularidade prática e discursiva,
pelo seu uso sistemático, também pode ser compreendido como sendo o suporte jornal o
responsável pela credibilidade e confiança naquilo que é publicado, pois ainda de acordo com
Barbosa (2011a, p. 272) “os pseudônimos dos periódicos brasileiros traduzem com bastante
propriedade a posição destes em relação ao presente histórico, aos acontecimentos políticos e
sociais, bem como a linha do jornal”.
Nas cartas do periódico A opinião, com relação às missivas sobre a seca, encontramos
os pseudônimos “L.”, “Justus” e “O Sertanejo”. As outras cartas desse tema são extratos
geralmente apresentados como sendo de “um amigo”, o que, como vimos, também confere
credibilidade ao escrito. Já no jornal O cearense, contamos três pseudônimos: “Um
Observador”, “Um pacatubano” e “Um lancheiro”. No Eco do Povo, temos “Um
pernambucano”, “M. F.”, “Os emigrantes”, “Um do povo”, “Lelê”, “Um vigia da estação”,
“A.”, “Um emigrante de Arronches”, “O sentinela”, “Malacaba”, “Os retirantes”, “Os amigos
do povo”.
Segundo Carvalho (2012), o Brasil passava por um intenso momento de construção da
nacionalidade, em que cabia a elite brasileira a tarefa de construir o novo Estado, nesse
momento a imprensa funcionava como uma espécie de arena política, uma vez que a grande
maioria das folhas era vinculada a partidos ou políticos. Desse modo, o uso desses
pseudônimos, marcadamente populares, conferiam determinadas características a esses jornais
e, consequentemente, ao programa político ao qual o periódico era associado, o que surgia
como uma prerrogativa da preocupação do partido com o povo, embora naquele momento o
país não possuía um povo no sentido de povo político.
Também podemos perceber que o uso dos pseudônimos manifesta-se como um
artifício retórico, segundo Lausberg (2004), como uma das estratégias da dissimulation, que
se apresenta de muitos modos, pois a probabilidade de uma carta ter sido escrita, de fato, por
algum emigrante é a mesma de ter sido escrita, por exemplo, pelo editor do jornal. Podemos
perceber uma aparente unidade nos pseudônimos acima apresentados, uma vez que as cartas
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 473
da seca são, geralmente, de notícias sobre as consequências da seca com pedidos de ajuda.
Notamos que os autores conferem uma nova configuração aos seus escritos através dessas
assinaturas, estabelecendo um lugar – a posição de retirante, de uma pessoa do povo, e, por
consequência, daquele que necessita da ajuda governamental; instituindo um grupo – os
emigrantes, os retirantes; e, por fim, dando voz a essas pessoas que, de modo geral, estão
abandonadas.
As cartas e matérias dos jornais sobre a seca de 1877-79, clivadas pelo olhar tanto dos
editores quanto dos leitores-escritores dos periódicos, que “... descrevem a sociedade tal como
pensam que ela é, ou como gostariam que fosse” (CHARTIER, 2002, p. 19), produziram
diversos sentidos com os mais diferentes objetivos, principalmente políticos, econômicos e
sociais. Desse modo, estudar as cartas em sua estrutura narrativa acarreta conhecer suas partes
discursivas, considerando seus significados, buscando sua temática, objetivos, impactos,
sentidos, entre outros aspectos.
Entender as cartas sobre a seca em seus mais diversos desdobramentos como a questão
da falta de água, de gêneros alimentícios e das epidemias decorrentes dessas carências, bem
como a questão dos retirantes e da violência, em parte na busca da sobrevivência do mais
forte, apenas como documentos informativos desprezando seus conceitos teóricos seculares é
muito crítico, pois deixa de se levar em consideração uma série de elementos fundamentais
para a compreensão de um discurso historicamente datado, que deve estar ciente dos “[...]
contrastes no campo da linguagem, dos estilos de pensar, dos modos de discurso, das práticas
retóricas.” (CARVALHO, 2000, p. 127)
Mas, de acordo com Silva (2009), a tendência de nossa crítica é a de relegar a carta
simplesmente para o campo da informação, não a identificando como um gênero, mas como
uma impressão dos acontecimentos, um testemunho ambíguo e controverso da história e não
como uma operação que busca compreender “como a relação entre um lugar (um
recrutamento, um meio, uma profissão, etc), procedimentos de análise (uma disciplina) e a
construção de um texto (uma literatura)”, devem estar atrelados ao presente de sua
enunciação, numa “combinação de um lugar social, de práticas científicas e de uma escrita”.
(CERTEAU, 2006, p. 66, grifos do autor)
Pécora, no prefácio do livro A arte de escrever cartas, de Emerson Tin (2005), afirma
que a compreensão das cartas como mera fonte de informação é mentirosa, pois desconsidera
as disposições que tomam os
Nas fronteiras da linguagem ǀ 474
[...] documentos epistolares, muitas vezes lidos ainda ingenuamente como
informação direta neutra, de conteúdo denotativo e referencial simples, como se as
prescrições de gênero, algumas delas seculares, fossem apenas transparências frágeis
facilmente penetradas pelo olhar superior do crítico contemporâneo. Nada mais
enganoso. (PÉCORA in TIN, 2005, p. 12)
Assim, não podemos pensar numa pretensa naturalidade e simplicidade da escrita
epistolar, como se ela não fosse carregada de uma teia de significados em que a própria forma
estrutural da missiva não seja significativa de sentidos, que excedem seu aspecto visual, e
culminam em conteúdos definidos historicamente através de sua retórica.
Considerações
As cartas analisadas e observadas nas nossas fontes – os jornais acima mencionados -
apresentam modificações daquelas prescritas pelos manuais, desenvolvendo novos padrões de
escrita epistolar, que começam a se delinear por se encontrarem neste suporte em específico.
Mesmo assim, segundo Barbosa (2011a, p. 277) “as regras da retórica, entre elas a da escrita
epistolar como atividade regrada e artificial, que prevê um auditório, não está totalmente fora
de propósito e permanece, com mudanças próprias aos gêneros, nos periódicos.”.
Desse modo, graças ao caráter mutável do gênero dinâmico e versátil que eram as
epístolas nas mais diferentes situações e contextos, podemos observar nos periódicos como
essa escrita moldou-se as necessidades de uma época, selando um comprometimento da
linguagem das folhas com o presente de sua enunciação, bem como com sua comunidade de
leitores, por meio dos artifícios retóricos e da linguagem figurada como um modo de escrever
e de se ler de uma época no suporte jornal.
Nesse sentido, o próprio tema da seca tornou-se, a partir do fenômeno de 1877, um
grande tema, uma Tópica retórica que, segundo Barthes (1985), é uma reserva de estereótipos,
de temas consagrados, colocando-se como tema obrigatório, acompanhado de um tratamento
fixo, do mesmo modo que a Tópica da paisagem ideal, devendo da mesma maneira basear as
provas na natureza do lugar em que se passara a ação e “[...] a paisagem destaca-se do lugar
[...] a paisagem é o signo cultural da Natureza.”, tornando-se um tema reificado. (BARTHES,
1985, p. 69)
A seca também serviu de tema para se discutir ou se levantar uma série de outras
questões ligadas a esse momento específico, como o caso das comissões de socorros públicos,
que lidavam diretamente com o que era enviado pela ajuda governamental – alimentos e
dinheiros, por exemplo. O fenômeno climático também serviu de base para a criação de um
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 475
periódico específico – O retirante, que se dizia um órgão em benefício das vítimas da seca.
Mas o discurso epistolar sobre esse fenômeno não é heterogêneo, pelo contrário, esse discurso
é múltiplo, complexo, controverso e, por essa razão, é na dispersão das regularidades práticas
dessa escrita que a invenção da seca no século XIX obteve sucesso.
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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 477
O REGRESSO AO PASSADO E AS RAÍZES MÍTICAS NA
OBRA O SÉTIMO JURAMENTO [Voltar para Sumário]
Camilla Rodrigues Protetor (UPE)
Amara Cristina de Silva e Barros Botelho (UPE)
Introdução
O sol brilha e despeja seus raios ardentes sobre nós,
A lua surge e sua glória.
A chuva cairá novamente e novamente o sol brilhará,
E por sobre tudo passam os olhos de Deus.
Nada escapa a Sua Vista.
(canção tradicional dos Iorubás.)1
O presente artigo tem como um dos objetivos a apresentar o macro projeto intitulado:
Gênero, identidade e a expressão do saber feminino no regresso aos mitos na obra
moçambicana O Sétimo Juramento, desenvolvido no Grupo de Pesquisa – Centro de Estudos
Linguísticos e literários da UPE.
Neste trabalho tem-se a pretensão do estudo do mito enquanto retorno as raízes
culturais e religiosas de Moçambique, analisados através dos personagens principais e dos
ritos de passagem que se entrelaçam junto ao enredo.
Sem que seja possível uma dissociação entre oralidade, escrita, identidade e mito com
a cultura e religião local, pois esses fatores se interdependem, o presente artigo fará um
sincretismo destes tópicos. Os escritores se valem de uma língua privilegiada, neste caso o
português, para mostrarem a cultura que muitas vezes é marginalizada.
A preferência por destacar a tradição oral no romance, que traz em si lendas, mitos e
contos como marcas, levantam também a questão da identidade e cultura moçambicana. Estes
1 Canção encontrada em Davis (2015, p. 546-547) in: DAVIS, Kenneth C. A Origem da África: Os Mitos da
África Subsaariana. In:______.Tudo o que precisamos saber, mas nunca aprendemos sobre mitologia. 1ª ed.
Rio de Janeiro: DIFEL, 2015. p. 535- 578.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 478
mitos fazem uma analogia com os problemas sociais presentes nesta sociedade, que Chiziane
(2008) ousou destacar.
No que diz respeito à identidade e mito, são pontos onde estão apregoados os
costumes da localidade, logo, vale salientar que religião e cultura entram como forma análoga
a observação de tais fatores.
Observando a convergência dos pontos citados, com ênfase na analise mítica, será
dissertado acerca das designações que regem as teorias desses pontos – oralidade, escrita,
identidade, mito, cultura e religião.
Será feita uma observação sucinta acerca do contexto histórico, referente a pratica
romanesca e social de Moçambique, da prática escrita e sua íntima relação com a oralidade e a
identidade deste país, onde religião e cultura se condensam.
Os teóricos utilizados como base para identidade, cultura, escrita, oralidade e mito são
Eliade (1972), Duarte (2012), Leite (2012), Appiah (1997). Outros como Armstrong (2005) e
Rosário (2010) darão apoio e complementaram as demais teorias.
2. Contexto histórico-social moçambicano e O Sétimo Juramento
Considerando a variabilidade da cultura étnica africana, é de suma importância um
estudo acerca das obras literárias desse território. O continente africano tardiamente veio a
adquirir sua independência colonial, em decorrência disso, sua literatura sofre grande
influência de outras línguas, mas possui o caráter único, em relação a outras literaturas,
devido ao envolvimento com as raízes ali presentes. A recente atividade romanesca aos
poucos vem ganhando força e notoriedade.
A obra aqui tratada faz parte da literatura feminina moçambicana – O Sétimo
Juramento – foi escrita por Paulina Chiziane (2008), considerada a primeira mulher negra e
moçambicana a escrever e ter reconhecimento nacional como romancista.
A narrativa retrata uma Moçambique inquietada pelos males do pós-colonialismo na
qual os vitimados são os proletários moradores dos subúrbios. Em sua maioria, as obras
escritas por Paulina Chiziane revelam problemas sociais envolvendo arduamente a imagem
feminina. Em O Sétimo Juramento, a autora apresenta uma família burguesa vítima da
feitiçaria. No romance, cabe as personagens femininas o desempenho de papéis decisivos para
o desfecho da narrativa. Entrelaçadas pelos mitos e presas as raízes do passado, as
personagens transitam entre o sagrado e o profano, entre o real e o mítico.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 479
No século passado, Appiah (1997) concluiu que as composições africanas eram um
campo novo e pouco explorado, logo se tratava de uma literatura em desenvolvimento. Ele
ressalta que o processo de identidade não está solidamente composto, mas está se
desencadeando para a formação, desta forma, se observados numa perspectiva visionária, os
escritores africanos exercem forte influência para formulação e aceitação de uma identidade,
vale salientar, que para ele, os escritores estão “entre a busca do eu e a busca de uma cultura.”
(APPIAH, 1997, p. 113)
O desempenho da romanesca moçambicana está ligado à oralidade, recurso este que
está intimo e indissociável da cultura e da identidade deste território. A influência da cultura
ocidental é uma grande marca de interferência cultural, pode se dizer que a escolha da língua
do colonizador tornou-se a mesma do campo literário devido ao seu prestígio e a oralidade é
marca forte no romance por trazer em si o resgate às raízes nacionais. Sendo assim, “Cresce a
consciência de que a preservação do pluralismo cultural é a única forma de garantir que a
nossa arte, a nossa literatura com os outros elementos que definem a nossa identidade cultura,
posam se manifestar e florescer no espaço que lhes é próprio.” (CHAVES e MACÊDO, 2006,
p. 20).
Os principais desafios moçambicanos estão ligados ao desenvolvimento, seja ela
social, educacional, político entre outros. Tendo seu regimento presidencialista, Moçambique
alcançou sua independência no ano de 1975.
Este país multicultural, por si próprio, será aqui representado por uma visão literária e
sob a ótica do romance O Sétimo Juramento, que permeia veredas históricas no decorrer do
enredo. A partir dele, será tratada a visão sociocultural, mítica e religiosa dos cenários
descritos no romance.
Literaturas emergentes como a africana cultivam temas ligados à resistência, como:
emigração, antievasão, o papel da mulher, a significação da terra, mito, crenças,
como forma de preservar que tanto as fontes da cultura popular quanto as raízes
nacionais, autênticas determinantes da busca de identidade (DUARTE, 2011, p. 80).
3. Oralidade: a linguagem literária da identidade cultural moçambicana
A oralidade representa forte aspecto na construção da africanidade. Essa questão nos
remete a figuras conhecidas como o griots que é “[...] um especialista, escolhido ou por
linhagem, ou por profissão, só ele detendo o conhecimento dos textos mais longos e especiais,
como a epopéia [...]” (LEITE, 2012, p.24).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 480
Muitas vezes, a oralidade é utilizada como recurso de aproximação entre escritor e
leitor, porém no caso de Moçambique e de tantas outras literaturas nacionais africanas, o
artifício da oralidade é usado como forma de valorização a cultura local. Esse recurso – oral –
também espelha um território tomado pelas mazelas sociais e políticas. Chiziane ao escrever o
romance dando um tom de oral, trazendo não somente passagens da Moçambique urbana, mas
retratando mitos e rituais de norte a sul e, através da mistificação da voz a moçambicanidade
representada pelos espíritos.
Desta forma, vale salientar que Moçambique não é apenas um país multiétnico e
multicultural, mas também multilinguístico por apresentar uma forte associação e aceitação
das línguas impostas pelo colonizador.
Muito se discute acerca da dissociação entre oralidade e escrita, vertentes estas que se
tornam presentes na romanesca moçambicana. Ainda nas concepções propostas por Leite
(2012), ela levanta pontos cruciais sobre a tendência que têm algumas críticas de partirem do
pressuposto de que a oralidade é um fator histórico e a escrita é um artifício totalmente novo,
algo que os escritores ou a população africana não dominam, ou seja, têm se o oral como
imutável e inteiramente dominante nessas populações.
Ela retrata duas vertentes para a literatura africana moderna, devido ao fator da
afinidade com a oralidade, que seria “[...] a escrita é européia, a oralidade africana [...].”
(LEITE, 2012, p.19). Ela ainda ressalva que:
[...] uma vez que essas literaturas, além desse enquadramento, são escritas na
maioria dos casos na língua do colonizador, semelhante a “colagem” levou por vezes
a análises tendenciosas paternalistas e a encarar a produção literária africana como
uma espécie de produto neocolonial. (LEITE, 2012, p.16).
Sendo assim, Moçambique tem a tendência dessa vertente moderna, devido ao fato da
África durante séculos ter sofrido a influência dos costumes do colonizador europeu, que
interferiram na sua cultura, religião e língua. A independência relativamente recente provocou
mudanças nas línguas nativas, além de que foram impostas aos colonizados como sendo a de
prestígio. Este fator está atrelado à prosa africana, na qual as marcas de oralidade são
fortemente predominantes na escrita. Sobre está influência linguística pode se dizer que:
A imposição da escrita numa sociedade de tradição oral é um elemento de
desequilíbrio. A escrita aqui não é um produto da evolução histórica normal e
responde a uma necessidade imposta pelo exterior. Por outro lado, a desvalorização
das formas de cultura indígenas, que caracterizou a política colonial de assimilação,
contribuiu para a descaracterização e rasura dos valores ancestrais. (LEITE, 2012, p.
83)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 481
Por não ter desenvolvido uma língua nacional de prestígio, os prosadores
moçambicanos valem-se da cultura linguística do colonizador, sendo assim, o português é a
língua mais usual para tais obras, sendo também considerada como a oficial do país, vale
salientar, pois, que ela não domina todo território nacional.
Deste modo, é possível afirmar que esse fator de certa forma interfere na identidade
daquela localidade como acentua Appiah (1997) acerca de identidade:
Toda identidade humana é construída e histórica; todo mundo tem seu quinhão de
pressupostos falsos, erros e imprecisões que a cortesia chama de “mito”, a religião
de “heresia”, e a ciência de “magia” [...] afinidades culturais vêm junto com toda a
identidade; (APPIAH, 1997, p.243).
Leite (2012) expõe outra teoria para predominância oral na África, sendo está tratada
como algo preexistente, social e histórico:
A predominância da oralidade em África é resultante de condições materiais e
históricas e não uma resultante da “natureza” africana; mas muitas vezes esse fato é
confusamente analisado, e muitos críticos partem do principio de que há algo de
ontologicamente oral em África, e que a escrita é um acontecimento disjuntivo e
alienígena para os africanos.( LEITE, 2012, p.24.)
Devido a tantas imposições do colonizador na cultura moçambicana, a forma que os
autores locais acharam de reaver a cultura nacional foi aproximar a escrita da oralidade, neste
romance Chiziane (2008) vale-se da forma de contação de histórias para tal aproximação. Este
recurso serviu para fazer denúncias sociais presentes no país tomado pelo pós-colonialismo, e
a presença do passado e presente, o que contribuiu muito para a volta dos valores ancestrais e
míticos.
Segundo Rosário (2010) o papel da oralidade no mundo globalizado moçambicano vem
perdendo espaço entre os mais jovens, embora muitos ainda recorram a esse sistema como forma de
ligar-se a tradição e costumes. Ele ainda aponta que a cultura moçambicana oral vem se adaptando a
evolução do mundo, fato que esta acarretando no esquecimento de um patrimônio cultural e autêntico
do território nacional e que na maior parte territorial a população está sendo regida pelo modelo
governamental. Para ele, “A tradição oral é um sistema social, econômico [sic] e cultural, não é apenas
um conjunto de contos, lendas e mitos.” Diz (ROSÁRIO, 2010, p. 142).
Assim, pode-se constatar que a afirmação da identidade coletiva torna-se substancial e
inevitável na produção literária moçambicana.
4. O mítico e o sincretismo religioso
Nas fronteiras da linguagem ǀ 482
Trabalhar mítico no romance moçambicano O Sétimo Juramento é um processo árduo,
devido à escassa teoria existente sobre este aspecto. O mito faz parte da história viva da
África e o regresso ao passado torna-se uma vereda para explicar os atuais acontecimentos.
Essas tendências estão marcadas, quase como, uma predestinação que não se pode ignorar na
composição das narrativas ali produzidas, pois constituem se como um fator hereditário
cultural e sócio-histórico. Em suma o mito não só em Moçambique, mas no território africano,
“fornece os modelos para a conduta humana, conferindo, por isso mesmo, significação e valor
à existência.” (ELIADE, 1972, p. 6).
Baseado, ainda, nas concepções teorizadas por Mircea Eliade (1972),
O mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e
interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares.
[...] o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no
tempo primordial, o tempo fabuloso do "princípio”. [...] É sempre, portanto, a
narrativa de uma "criação": ele relata de que modo algo foi produzido e começou a
ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente.
(ELIADE, 1972, p.9).
O mito funciona como uma ponte que separa o sagrado do profano, a aceitação de
algo, isso é tão verdade, que nas sociedades arcaicas ele estava ligado a fatos divinos, a ritos
de passagem e de criação. Porém, muitas vezes, não se consegue dissociar a palavra mito de
algo não verdadeiro.
Em O Sétimo Juramento há um forte sincretismo entre o religioso e as raízes do
passado apresentados no quadro cotidiano moçambicano. (ARMSTRONG, 2005, p.20), faz
alusão a essa associação onde o mito “[...] não era apenas um exercício de nostalgia. Seu
propósito primordial era mostrar às pessoas como elas podiam retornar a esse mundo
arquetípico, não apenas em momentos de enlevo visionário, mas também nas tarefas regulares
de sua vida cotidiana.”
Tanto para Eliade (1972) como para (ARMSTRONG, 2005, p.9), o mito “[...] é
inseparável do ritual. Muitos mitos não fazem sentido separados de uma representação
litúrgica que lhes dá vida, sendo incompreensíveis num cenário profano.”
Para as sociedades arcaicas, como os indígenas, o mito é separado dos contos e
fábulas, pois como já dito anteriormente, o mito representa algo sagrado, cósmico e as fábulas
narram histórias que aconteceram, mas que não necessariamente interfere no costume do
povo.
[...] para o homem arcaico, o mito é uma questão da mais alta importância, ao passo
que os contos e as fábulas não o são. O mito lhe ensina as "histórias" primordiais
que o constituíram existencialmente, e tudo o que se relaciona com a sua existência e
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 483
com o seu próprio modo de existir no Cosmo o afeta diretamente. (ELIADE, 1972,
p.13)
Assim como nas sociedades arcaicas, o mito é importante para revelar uma expressão
sócio-cultural e histórica da religião presentes em Moçambique, na qual Chiziane se vale de
entidades locais para desenhar a importância do mito religioso como salvação para uma
família condenada pela feitiçaria.
Acerca do mito e da influência dele na cultura e literatura em Moçambique Leite
(2012) ressalva:
Foi com o mito que a história humana sempre e em toda parte começou; Foi através
do mito que os vocábulos, os símbolos originários, tomaram a sua primeira forma –
e cada nova história os redescobriu à sua maneira. Ora, como se sabe, o processo
cultural de onde a literatura moçambicana emerge(aliás como a maioria das
literaturas africanas) tem grande parte das suas raízes mergulhadas no mito,
vivificado o cotidiano e presente na visão religiosa e religadora do homem à terra
e ao transcendente. (LEITE, 2012, p. 46, grifos das autoras)
O sincretismo mítico e religioso abordados por Chiziane (2008) vêm como forma de
explicar o presente através de pactos passados como ocorrência hereditária. Sabe-se que a
presença e representatividade dos orixás é forte e indissociável da cultura religiosa
moçambicana, suas normas regem, muitas vezes, as condutas da população local, como as
vistas n’O Sétimo Juramento, mesmo sendo as personagens já corrompidas por um sentimento
cristão ocidental. Desprendimento da religiosidade local fica evidente em,
– Esta noite, a esta hora, gostaria de consultar um adivinho, mas não posso. Por
causa da posição do meu marido. Por causa de compromissos de fé com religiões
que nada tem a ver com a minha origem. [...] Benditas sejam todas as religiões
que dão liberdade para invocar o deus sol, o deus nuvem e o deus
trovão.”(CHIZIANE, 2008, p.62, grifo das autoras)
5. O mítico em O Sétimo juramento
A prisão espiritual é o mais severo de todos os cárceres.
Paulina Chiziane2
O romance aqui trabalhado gira em torno do sagrado e do profano, Paulina Chiziane
(2008) detalha a vida cotidiana de uma família burguesa de Moçambique que vive uma
problemática num país pós-colonial. Após vivenciar uma forte crise econômica na empresa
em que trabalha, David, o patriarca da família, decide fazer um pacto com forças ocultas da
2 Trecho encontrado Chiziane (2008, p.94) in: CHIZIANE, Paulina. O Sétimo Juramento. 3ª ed. Desonhecido:
Caminho, 2008.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 484
magia, para tanto precisa realizar uma serie de ritos, afim de adquirir uma estabilidade na
empresa diante dos grevistas. Assim, num monologo, Chiziane (2008) revela as pretensões de
David,
A conversa que parecia bizarra, hoje se revela necessária. Nos mortos está a minha
esperança. No feitiço está a minha segurança. Preciso de resgatar a minha sombra
perdida para me defender da fúria dos operários. [...] não tenho protecção na igreja,
nem na lei, nem na sociedade, nem na família. Os brancos foram feitos para o céu,
para as nuvens e deuses celestes, mas os negros foram feitos para os defuntos, para
as raízes e deuses terrestres. A magia negra é o único caminho que me resta.
(CHIZIANE, 2008, p. 74, Grifo das autoras)
Após ter-se iniciado na vida da feitiçaria David põe em risco a segurança e moral de
sua família. Sua mulher Vera começa a vivenciar os mitos que escutava no passado. Avó Inês,
a sogra de Vera, e os adivinhos funcionam como a vereda que liga a família às raízes
ancestrais moçambicanas. “– Estou apenas a rever memórias do tempo antigo. A reprodução
de tudo o que vivi e vi.” (CHIZIANE, 2008, p.59), complementando a ideia proposta por
Chiziane (2008), Eliade (1997) pensa a respeito dessa ligação próxima entre real e mítico, no
qual “Neste sentido, os mitos e os ritos arcaicos ligados ao espaço e ao tempo sagrado podem-
se reduzir, ao que parece, a outras tantas recordações nostálgicas[...].” (ELIADE, 1997, p.
504.)
No desenvolver da prosa, David faz outros pactos, dentre eles o ‘lobolo’, casamento,
no qual David desposa uma mulher espírito. Neste rito de passagem fica clara a relação entre
sagrado e profano, pois o rito é regrado de orgias, termo usado por Chiziane (2008), e álcool o
qual ela retrata, dizendo: “Lobolo é mhamba [sacrifício], é união entre vivos e mortos, os
deuses maiores e menores. O lobolo é um cerimônia religiosa por excelência. A
transformação do religioso em profano é um processo universal.” (CHIZIANE, 2008, 91).
Assim Eliade (1972) diz,
Numa fórmula sumária, poderíamos dizer que, ao "viver" os mitos, sai-se do tempo
profano, cronológico, ingressando num tempo qualitativamente diferente, um tempo
"sagrado", ao mesmo tempo primordial e indefinidamente recuperável. (ELIADE,
1972, p.17)
Chiziane utiliza-se do artifício mítico, do “conhecimento esotérico e o culto, da
tradição religiosa e cultural: práticas de magia, feitiçaria, rituais de morte e [...] de iniciação
sexual” diz (LEITE, 2012, p.201), todos esses elementos num sincretismo perfeito conduzem
a obra, a critica moral da família burguesa moçambicana e dos antigos costumes afetados pelo
presente cristão e profano.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 485
Para compor o enredo, Paulina ainda toma a metáfora dos espíritos Ndaus e Ngunis,
que simbolizam a rivalidade entre pai e filho, sendo um pertencente à magia branca e outro a
feitiçaria. Ainda na atualidade estes clãs de espíritos representam uma rivalidade social e
política, ressalta Rosário (2010):
O mundo do feitiço e dos mitos esteve sempre ligado ao comportamento sócio-
cultural da maior parte dos intervenientes activos na nova história social de
Moçambique, ricos e pobres, urbanos e camponeses, instruído ou analfabeto, o
moçambicano, de uma forma ou de outra, conhece e, às vezes, enreda-se nele.
(ROSÁRIO, 2010, p. 131-132)
A escolha por detalhar cada ritual e entrelaçar o leitor no enredo é de uma maestria
singular, desta forma, Chiziane traz o real como forma ficcional para dentro da obra e o
mítico como sobrevivência da identidade cultural de Moçambique.
Considerações finais
O presente artigo versou sobre o estudo dos aspectos míticos e os artifícios – da
oralidade, da escrita, da identidade e da cultura – em um romance moçambicano, que relata,
como foi visto, a trajetória de uma família que retorna ao passado como modo de adquirir,
pela força da magia, o equilíbrio financeiro. Além disso, também reflete a coleta de dados, a
análise e o conhecimento cultural e literário acerca da realidade moçambicana pós-
colonialista.
O Sétimo Juramento mimetiza a visão da autora acerca dos acontecimentos sociais e
histórico do país. Daí este trabalho abrir espaço também para futuras investigações sobre os
aspectos sociais da sociedade moçambicana pós-colonial, em que o real e o mítico, o profano
e o sagrado refletem simultaneamente os primitivos rituais em confronto com a realidade do
presente.
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NARRATIVAS HOMOERÓTICAS NOS COMPÊNDIOS DE
HISTÓRIA LITERÁRIA BRASILEIRA [Voltar para Sumário]
Carlos Eduardo Albuquerque Fernandes (UFRPE/UFPB)
Considerações iniciais
Um dos grandes debates da moderna crítica literária do final do século XX e início do
XXI tem sido a discussão das formulações basilares das tradições literárias em cada língua e a
consequente revisão dos critérios e valores que elegeram as obras literárias a serem lembradas
e consagradas ao longo do tempo. Na maioria das vezes, essa pauta desencadeia num embate
entre tradicionalistas e a denominada “escola do ressentimento1” (Cf. Bonnici, 2011;
Crystófol y Sel, 2008), entre a exclusão ou a inclusão da contribuição das minorias culturais
na formação da literatura de uma cultura.
Um dos apontamentos mais recorrentes, segundo Bonnici (2011), parte da percepção
de que existiu (e existe) um privilégio implícito para autores brancos, heterossexuais e
pertencentes a segmentos sociais mais favorecidos para compor o elenco dos “grandes
escritores, das valiosas e universais obras” na formação do cânone.
Por essa razão, Crystófol y Sel (2008) aponta duas orientações importantes para a
sucinta reflexão que desejamos estabelecer: a primeira é a de que é relevante estudarmos o
cânone sempre relacionado à censura, que segundo a autora são “la cara y La cruz de uma
misma moneda” (p. 191); a segunda é o questionamento do âmbito “universal” para a
formulação do cânone, este é sempre regional, concentrado na valorização de obras de uma
determinada cultura.
A emergência dos Estudos Culturais, de perspectivas teóricas pós-estruturalistas e do
maior envolvimento dos grupos de minorias culturais com a literatura e seu sistema2,
1 Expressão utilizada, principalmente pelo crítico estadunidense Harold Bloom, para se referir a grupos de
pesquisadores que defendem a ideia de uma inclusão no cânone e que criticam a postura tradicionalista em
relação à consagração de autores e obras.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 488
possibilitou a reflexão sobre o cânone e as relações de poder vinculadas a ele,
problematizando esses valores universalistas e a censura instaurada ao longo do tempo.
Ao fazer essa reflexão no âmbito da cultura brasileira e rever diacronicamente a
formação do cânone, não podemos deixar de perceber os critérios excludentes que formaram a
“sagrada” história da literatura brasileira. Não é preciso revisar toda a crítica e história
literária, para se ter noção de que a formação de nosso cânone literário baseou-se, sobretudo,
numa abordagem homofóbica e misógina, branca e econômica na seleção e inclusão de
autores e obras. (Cf. Kothe, 1997).
Nesse sentido, objetivamos percorrer 4 compêndios historiográficos da literatura
brasileira, a saber A literatura no Brasil (2004 – 6 vol), de Afrânio Coutinho, História
Concisa da Literatura Brasileira (2006), de Alfredo Bosi, A Literatura Brasileira através dos
textos (2007), de Massaud Moisés, História da Literatura Brasileira (1997), de Luciana
Stegagno Picchio, evidenciando as possíveis relações entre narrativas que focalizam a
diversidade sexual e o cânone literário, problematizando o silenciamento dessas obras ao
longo do tempo e a forma de inclusão delas na história de nossa literatura.
Escolhemos esses compêndios em detrimento de outros também bastante difundidos
nos cursos de letras, porque eles possuem um alcance temporal que abarca do Quinhentismo
às tendências contemporâneas (que geralmente descrevem algumas obras até o início da
década de 1980), o que não ocorre, por exemplo, com obras como Formação da Literatura
Brasileira (2006), de Antonio Candido, A literatura no Brasil (1995), de Luiz Roncari e
História Literatura Brasileira (1998), de José Veríssimo cujo alcance chega apenas até a
literatura produzida no século XIX.
Cânone, história literária e literatura homoerótica
Existe uma vagueza semântica em relação ao conceito de cânone, segundo Cunha
(2006). As formas de ele ser descrito, caracterizado, conceituado alicerçam-se em idéias que
nos soam como se ele fosse invisível, impalpável. Esta discussão parece, muitas vezes, recair
numa abstração de manifestação do poder, embora detentora do controle sobre o corpus
oficial da literatura brasileira. O principal critério de inclusão de uma obra no cânone,
geralmente alegado por seus defensores, é o fator estético, sobre o qual Cunha (2006)
argumenta ser bastante relativista após tantas transformações culturais e literárias e, por isso,
insuficiente para determinar a inclusão ou exclusão de obras e autores nos compêndios de
literatura.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 489
Kothe (1997), sobre este tópico, e de forma bastante radical, afirma que o valor
estético é, na verdade, o que menos importa na seleção de obras canônicas no Brasil, porque
os fatores político e ideológico são decisivos para definir ou não a entrada de um autor e de
uma obra no cânone: “O cânone é formado por textos elevados à categoria de discurso, [...] o
fundamento de sua poética é, no entanto, política” (p. 108).
Podemos sintetizar que o cânone literário é um sistema simbólico e material de
valorização exacerbada de obras literárias e documentais que se concretiza através das listas
de obras que são divulgadas para o público (segundo Kothe (1997), nem sempre são literárias
as obras escolhidas como canônicas). Canônicos são os textos e autores que constam na
grande maioria dos livros de historiografia literária estudados nas graduações e pós-
graduações na área de letras; são os textos que constam nos livros didáticos do ensino
fundamental e médio; sobre os autores dessas obras, publicam-se a maior quantidade de
antologias, de traduções e de estudos críticos que solidifiquem sua hegemonia. Subjaz ao
cânone uma relação de poder, na qual hierarquicamente ele é superior aos que foram omitidos
e/ou excluídos dele, o que nos leva ao apontamento feito por Crystófol y Sel (2008) de que a
censura está sempre associada ao cânone.
Geralmente, os manuais de história da literatura mais divulgados entre os cursos de
letras mantém uma mesma quantidade de obras, de seleção de autores, mesma atribuição
valorativa aos textos, formando uma rede através da qual se reforça, segundo Kothe (1997),
que o cânone literário brasileiro seja visto e/ou estudado nos compêndios de nossa história,
indubitavelmente, de forma a não considerar possibilidades de revisão/alteração, mantendo
estabilizados discursos de sustentação de determinadas ideologias que marginalizaram textos,
temas e autores da arte literária brasileira.
Na contramão desse argumento, analisamos os referidos manuais no intuito de
percebermos os modos de narrar dos historiadores quanto às questões homoeróticas em suas
relações com os autores e com as obras, quando evidenciadas, de algum modo, no tecido
discursivo.
Um primeiro objetivo traçado foi o de verificar se há menção da temática homoerótica
em obras da literatura brasileira e, depois, que tipos de comentários são tecidos sobre o autor,
o tema ou sobre as personagens homoeróticas inseridas nas narrativas.
É comum não encontrarmos menções a obras de temática homoerótica nesses
compêndios ou, quando a obra é mencionada, há a omissão do tema, como ocorre com
Coutinho (2004) ao comentar um dos romances mais valorizados na literatura brasileira,
Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. No texto ficcional, dentre tantos conflitos
Nas fronteiras da linguagem ǀ 490
abordados, está presente, do início ao fim da obra, o desejo homoerótico (não concretizado)
entre Riobaldo (protagonista) e Reinaldo/Diadorim (amigo, parceiro de seu bando).
Coutinho (2004) dá ênfase à inovação linguística rosiana e ao mito do Fausto
(encontro/pacto de Riobaldo com o diabo) que também é aspecto muito forte no romance,
tangenciado pelo conflito amoroso com Diadorim. O mesmo faz Alfredo Bosi (2006) ao
mencionar que “Riobaldo é um homem que busca, no vaivém de suas memórias e reflexões,
negar a existência real do demônio [...]” (p. 432). Massaud Moisés (2007) escreve um
pequeno resumo da obra no qual sugere o sentimento de Riobaldo por Diadorim:
Em monólogo, Riobaldo conta sua odisséia de jagunço, empenhado tão a fundo na
vingança do grande Joca Ramiro, que estabelece pacto com o Diabo. Além do
sentimento de fidelidade, impele-o uma estranha afeição por Diadorim,
companheiro de luta [...] (Moisés, 2007, p. 567, itálicos nossos).
É curioso perceber o modo como o historiador narra a “estranha afeição por
Diadorim”, permitindo entender o desejo homoafetivo como um tabu, fato que parece impedi-
lo de se expressar abertamente sobre esse tema na obra, algo que não pode ser dito, reiterando
o aforismo de Oscar Wilde sobre o “amor que não ousa dizer o nome”, logo, distante da
interpretação do olhar canônico e, talvez, por isso, a escolha do termo “estranho” para definir
e valorar o sentimento de Riobaldo. Esse é o único momento que Moisés (2007) menciona
essa aproximação entre as personagens, numa espécie de amnésia intencional que exclui de
sua visão todo o conflito vivido pelo jagunço Riobaldo que se declara a todo o instante
afeiçoado afetivamente por Reinaldo, outro jagunço do bando.3 Luciana Stegagno Picchio
(1997) também faz referência ao mesmo sentimento, quando resume o romance que, para ela,
é a maior obra de Guimarães Rosa:
Riobaldo narra em blocos diferentes, cada um com seu sinal e sentimento, a aventura
de sua vida, o pacto com diabo (Riobaldo-Fausto), o sertão percorrido por bandos
inimigos sedentos de vingança, a camaradagem ambiguamente afetuosa com
Diadorim, o misterioso rapaz de olhos verdes: que se revela só no final, em sua
morte, donzela. (Picchio, 1997, p. 609, itálicos nossos).
Picchio (1997), de forma semelhante a Moisés (2007), usa um modo não direto,
sobretudo impreciso, para narrar o afeto entre as personagens em tela; na expressão
“camaradagem ambiguamente afetuosa com Diadorim” infere-se uma espécie de insinuação,
3 Sobre essa questão, ver o ensaio de SILVA, A.P.D. Desejo Homoerótico em Grande Sertão: veredas. In.:
Revista ANPOLL, Vol. 1, N. 24, 2008. Disponível em
http://www.anpoll.org.br/revista/index.php/revista/article/viewArticle/25.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 491
no entanto, esta forma sinuosa de narrar omite o real conflito em que se insere o sujeito
protagonista do romance: o do desejo homoerótico, o da masculinidade posta em xeque a
partir de um sentimento afetivo e do não querer admitir o desejo por um seu igual. Os demais
historiadores que não optaram por um resumo da obra, não mencionam a personagem
Diadorim e preferiram tratar, de forma generalizada, da mitopoética e da inovação linguística
em Guimarães Rosa, deixando de narrar, a partir do expediente da ficção, as relações afetivas
entre sujeitos do mesmo sexo, isto é, castrando as personagens, invisibilizando as imagens
construídas, tornando o discurso sobre a obra com um foco que caminha apenas em via de
mão única, a do discurso hegemônico e higiênico.
Além desta omissão, outro modo de narrar recorrente entre os historiadores citados é o
fato da temática (homoerótica) das obras ser concebida negativamente, como ocorre com a
narrativa Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha, considerado o segundo romance em nossas letras
a narrar o erotismo entre pessoas do mesmo sexo. Até os dias atuais o tema da obra, de forma
genérica, parece sobreviver sob a égide de uma recepção negativa, sobretudo em
determinados setores tradicionais da crítica.
Alfredo Bosi (2006), ao se referir ao autor, afirma que ele possuía gosto por temas
“escabrosos” (p. 193), termo que admite o significado de “indecente” (Cf. Houaiss & Villar,
2004); em outro trecho, o historiador evidencia que “O Bom Crioulo [...] resiste ainda hoje a
uma leitura crítica que descarte os vezos da escola e saiba apreciar a construção de um tipo, o
mulato Amaro, coerente na sua passionalidade que o move, pelos meandros do
sadomasoquismo, à perversão e ao crime.” (Bosi, 2006, p. 194, itálicos nossos). As duas
palavras em destaque (sadomasoquismo, perversão), a nosso ver, foram usadas de forma
aleatória, pois não nos parece, no caso da primeira, que a obra permita uma leitura sob este
aspecto, e a segunda (pervesão, segundo Houaiss e Villar (2004), é “devassidão, depravação,
indecência”), nessa mesma linha de racioncínio, deixa claro que o termo carrega consigo,
semanticamente, uma apreciação moralista em relação ao tema homoafetivo na obra e,
considerando-se que se trata de uma visada crítica, pode-se notar o quanto este tipo de
concepção canônica, ainda presente no discurso de alguns críticos da geração dos
hostoriadores aqui em estudo, lança uma visão não afirmativa e discriminatória quanto ao
tema das subjetividades homoeróticas representadas na ficção literária brasileira.
Em Coutinho (2004), o romance gay mais conhecido e antigo do Brasil recebe a
seguinte descrição:
Nas fronteiras da linguagem ǀ 492
Três anos depois do aparecimento de A normalista, Adolfo Caminha publica Bom
Crioulo. E deixa neste novo romance o melhor testemunho de sua grande vocação
de romancista. A revolta da província é substituída em Bom Crioulo por uma
audácia mais firme e ampla, que não mais se restringe aos estreitos horizontes da
cidade pequena: tomando como tema um caso de homossexualidade, vai os limites
da transposição literária dessa degenerescência, com um requinte de minúcias que
constrange e repugna. (Coutinho, 2004, p. 87, itálicos nossos).
O fato da obra agregar-se culturalmente à “degenerescência”, que “constrange e
repugna”, talvez seja uma questão de leitura bastante subjetiva e discriminatória de Coutinho
(2004), porque construída, infere-se, sob visões pessoais. Todavia, utilizar esses termos numa
escrita historiográfica que serve de baliza a leitores que porventura a consultem para obter
informações sobre a literatura no Brasil está longe de ser entendida como uma crítica literária
séria, como um pensamento ou ideia capaz de ser levada adiante por leitores que convivem
com a diversidade sexual, com as diferenças de gênero, com as políticas em favor de minorias
gays, lésbicas, trans (transgênero, travesti, transex, transhomem, transmulher, translésbica e
outras).
O que se percebe, a partir dessa apreciação de Coutinho (2004), é uma espécie de
censura que, como já afirmamos, é atitude comum na constituição do cânone (Crystófol y Sel,
2008). Nos textos dos demais historiadores investigados, o que se lê é a reiterada omissão do
aspecto homoerótico que é visivelmente protagonizado na narrativa romanesca de Adolfo
Caminha: Picchio (1997) sequer menciona Bom Crioulo entre as obras de Adolfo Caminha
(obstaculiza a autoria pela invisibilização do texto), já Moisés (2007) dá ênfase a outro
aspecto da obra (tornando-a menor, ao invisibilizar o tema homoerótico): afirma que o
romance “focaliza o problema da escravidão” (p. 270), deixando de lado o que se relaciona ao
homoerótico, ao desejo gay.
De acordo com o pensamento de Thomé (2009), um dos maiores clássicos da literatura
brasileira do século XX é o romance Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso,
publicado em 1959 e em cuja estrutura narrativa um dos núcleos temáticos é protagonizado
pela travesti Timóteo, que transgride a norma dos papéis de gênero, vive trancado em um
quarto, vestido de mulher, fato que desencadeia todo um desconforto nos demais sujeitos
ficcionais do romance cardosiano.
Ainda segundo o mesmo crítico (2009, p. 189), essa personagem “subverte o cânone”,
modifica a visão das personagens homoeróticas na literatura. Talvez por esse motivo, nem
essa personagem travesti, nem tampouco o viés homoerótico do romance de Lúcio Cardoso
emergem como possibilidade de leitura nos compêndios historiográficos. O autor sequer é
mencionado nas obras de Moisés (2007) e Picchio (1997) e, apesar de exaltado por Coutinho
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 493
(2004) e Bosi (2006) quanto ao modo introspectivo, intimista de abordar os conflitos das
personagens, sobretudo Timóteo, o caráter subversivo quanto às questões de gênero e de
sexualidades de uma de suas principais personagens não é citado. A indiferença, nestes
termos, parece constituir, mais uma vez, uma profunda censura que silencia, torna invisível a
obra em seu aspecto temático e quanto ao seu valor estético observado de forma mais ampla.
O discurso canônico desvia um tema central, e importante, da obra para defender uma
crítica que cala aquilo que é provocador do ponto de vista da construção do enredo, da
performance da personagem, dos valores agregados à cultura representada.
Depois da obra de Lúcio Cardoso, a única que possui a temática homoerótica com uma
travesti como protagonista (estudada pela crítica especializada) e que é mencionada nos
compêndios de história da literatura brasileira, vem a ser Stella Manhattan, de Silviano
Santiago. O romance é citado apenas por Picchio (1997), dentre os demais historiadores
consultados, o que reitera o modus operandi da construção do discurso canônico, segundo
leitura nossa em consonância com outros críticos, de que questões de gosto pessoal, de
identificação com o autor ou a obra são critérios postos em primeiro plano para narrar as
obras e os autores canonizados:
[...] um ‘profissional da literatura’ como Silviano Santiago (n. 1936) que,
essencialmente crítico e ensaísta, se afirma também como contista e romancista:
([...] Stella Manhattan, 1985, em que, numa Nova York cosmopolita, as relações
sexuais entre minorias étnicas são vistas através dos olhos de um brasileiro
homossexual; e Keith Jarrett no Blue Note, improvisos de Jazz, 1996, quando mais
de dez anos depois as temáticas da sexualidade gay e da vida no exterior
reaparecem, dessa vez na forma de cinco contos). (Picchio, 1997, p. 645, itálicos da
autora).
Como se vê, o modo de narrar autor e obra é orientado por uma economia de ideia,
atendo-se ao gesto de apreciar a pessoa, tornando secundária a discussão em torno das
“temáticas da sexualidade gay”. Mesmo quando a autora registra as produções de Caio
Fernando Abreu – autor deveras conhecido pela abordagem do tema homoerótico em suas
narrativas –se distancia das questões centrais em que estão envolvidas as personagens de Caio
F.:
Encontraremos também um ficcionista refinado e discreto como Caio Fernando
Abreu (1948-1996) que, na sua breve vida de escritor marginalizado, nos deu um
reduzido ciclo de obras-primas “urbanas” com personagens isoladas no mundo e
prisioneiras delas mesmas. Contos e romances de formação, como ritos de
passagem, eles possuem uma dimensão surrealista em que mais evidente se torna o
conflito entre indivíduo e sociedade (Morangos mofados, 1981; Quem tem medo de
Nas fronteiras da linguagem ǀ 494
Dulce Veiga4?, 1990; e póstumo, Bem longe de Marieband, 1996). (Picchio, 1997,
p. 636, itálicos da autora).
Nestes trechos, percebemos que a autora menciona, de forma en passant, o caráter
homoerótico nas obras de Silviano Santiago; o que falta ao narrar Caio Fernando Abreu,
embora ela cite Morangos mofados e Bem longe de Marieband, obras de temática gay, é a
atitude mais crítica e racional quanto ao tratamento a ser dado a autores e obras que se tornam
autores, na perspectiva foucaultiana (2009), pelas ideias desenvolvidas e pelas quais saem do
anonimato. No caso de Caio F., marcadamente em suas narrativas estão os conflitos, os
desejos, as tensões das subjetividades homoeróticas constantemente rasurando os lugares da
cultura, as fronteiras de gênero e de sexualidades. Esta leitura, apesar de os manuais de
história da literatura serem contemporâneos de autores como Guimarães Rosa, Silviano
Santiago (ainda vivo) e Caio Fernando Abreu, não é contemplada por parte da crítica
especializada do momento (ainda hoje) que opta por silenciar este aspecto, talvez, como na
visão de Coutinho (2004), constrangedor. Isto demonstra que a obra da brasilianista Luciana
Stegagno Picchio, assim como os demais, possui limitações histórico-interpretativas. Nos
outros manuais consultados, nem Caio Fernando Abreu, nem Silviano Santiago são citados
como autores.
De todos os manuais consultados, o que mais diverge quanto ao modo de abordagem,
quando comparado aos demais e possui maior alcance temporal no aspecto ‘descrição de
obras’ (chega a descrever textos da década de 1990), é o de Picchio (1997); ainda assim, não
registra os romances de Cassandra Rios5, que tiveram grande repercussão desde a década 40 –
com a publicação do seu primeiro livro A volúpia do pecado, lançado em 1948 – até as
décadas de 1970 e 1980 com seus romances mais conhecidos. Nestes, a construção sem
pudores de situações afetivas e sexuais entre personagens hetero ou homoeroticamente
orientadas provocou o sucesso de público, quando chegou a vender mais de cem mil
exemplares em um ano e, por outro lado, a censura do regime militar proibiu 36 das quase
cinquenta obras da escritora (Cf. Almeida, 2014).
Cassandra Rios, hoje maior ícone da literatura homoerótica feminina, também não é
mencionada nos demais compêndios que analisamos, sendo excluída por uma crítica
4 Destaque-se o equívoco da autora ao mencionar o título da obra de Caio F que, na verdade, intitula-se Onde
andará Dulce Veiga? 5 Veja-se, inclusive o fragmento de nota sobre a escrita de Cassandra encontrada no Dicionário crítico de
escritoras brasileiras, de Nelly Novaes Coelho (2002, p. 112): “Cassandra Rios cria uma terrível galeria de seres
prisioneiros da animalidade sexual, na maioria dos casos, contida ou reprimida sob uma aparência serena, normal
e pura. [...] O que avulta é o avesso, o mal (que deveria ser extirpado), as aberrações, as taras, o patológico...
uma total ausência de grandeza interior. Trata-se de homens reduzidos à animalidade sexual e totalmente
conscientes disso. Daí a obscenidade inerente à matéria romanesca.”
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 495
especializada que torna desimportante o impacto de venda das obras dela, bem como a
construção de um público leitor, o aquecimento de uma parte do mercado editorial quase
sempre restrita a uma tiragem e vendagem de poucos exemplares. Por que Cassandra Rios não
foi discutida como uma autora de Best Seller à brasileira?
Em outro momento, Fernandes (2009), discutimos a necessidade de atualização da
história literária no Brasil quanto aos aspectos aqui em discussão. No entanto, também
compreendemos as limitações epistemológicas de abarcar tudo o que foi silenciado no cânone
brasileiro, ao longo do tempo, cabendo, portanto, à crítica especializada (mas não imbuída de
preconceito e discriminação) resgatar, discutir e tornar visível obras específicas que
problematizam questões de minorias culturais, como tem ocorido com a literatura feminina,
com a literatura negra e com a literatura homoerótica. Neste último caso, nosso esforço se
caracteriza por uma contribuição quanto aos modos de ver e de narrar dos historiadores da
literatura brasileira, sobretudo àqueles que se posicionam contrários à manifestação e
efetivação da literatura de temática homoerótica, cabendo, por extensão, um resgate
específico de obras de temática homoerótica que foram invisibilizadas no cânone pela crítica
canonizante.
Considerações Finais
A revisão aqui proposta dos registros de narrativas homoeróticas pelos compêndios
de história da literatura brasileira pode produzir algum impacto se as considerações sobre a
literatura brasileira de temática homoerótica forem levadas a sério como devem ser; se as
obras forem lidas por uma crítica especializada que, ao invés de estabelecer juízos de valor
fundados no tão somente gosto pessoal, perceba os rumos da literatura brasileira e interprete a
produção ficcional na esteira do que pensa Josefina Ludmer (2010), quando lançou a ideia de
“literaturas pós-autônomas” como aquela produção distante de uma estruturação das obras
canônicas e tradicionais, porque rompe com a linearidade das ações, projetando outras formas
de se fazer dizer determinadas dinâmicas culturais.
A discussão em torno das representações de autores e obras da literatura homoerótica
nos compêndios da literatura brasileira funciona como uma advertência aos leitores no sentido
de que percebam, como diz Kothe (1997), os gestos semânticos de poder que tornam autores e
obras “ventrílocos” da literatura, um repetindo o outro e, neste repetir, de acordo com a
ideologia do momento (que parece ser a mesma, apesar do tempo transcorrido entre as
gerações), alcançam lugares na memória nacional.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 496
Percebemos que os manuais de história da literatura brasileira consultados, quando
fazem referência aos textos de temática homoerótica, em alguns casos omitem a apresentação
desta temática mesmo quando ela é aspecto central na obra e, assim, acabam, nesses
momentos, cometendo desvios interpretativos ao tentar direcionar a descrição ou narração do
texto para um tema que não é central, mas tangente. Nesse sentido, as relações possíveis entre
o cânone literário e a literatura homoerótica no Brasil têm sido, na maioria das vezes
conflituosas, quando não impossíveis.
Referências
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Nas fronteiras da linguagem ǀ 498
A METACOGNIÇÃO NA LEITURA E AS INFERÊNCIAS
SOCIOCULTURAIS: UMA EXPERIÊNCIA COM ACADÊMICOS DO
CURSO DE TURISMO DA UNEB.
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César Costa Vitorino1
Para início de conversa
Compreender um texto é um ato de afirmação social, uma interação com outros
indivíduos e uma atividade situada num contexto sócio-histórico. Pretende-se, neste artigo,
apresentar reflexões a partir de atividades iniciais com discentes do curso de Turismo e
Hotelaria , na disciplina Comunicação, Linguagem e Turismo, semestre 2015.1, turno
vespertino, da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), DCH /campus I, na cidade de
Salvador – Bahia.
A leitura é uma habilidade que envolve atividade cognitiva e metacognitiva e discutir e
aplicar teorias cognitivas e metacognitivas da leitura e da escrita, para os acadêmicos melhor
compreenderem o modo como se dá a relação leitura e compreensão textual constitui-se o
objetivo geral desta pesquisa. Pereira (2010), detalhando o entendimento sobre processamento
ascendente e descendente, afirma que o ascendente se realiza das unidades menores para as
maiores, quando a atenção do leitor está focada para as pistas visuais do texto. Esse tipo de
processamento é utilizado em situações em que o leitor apresenta poucos conhecimentos
prévios sobre o conteúdo ou sobre a linguagem do texto. O processamento descendente
acontece de forma “inversa”, isto é, se realiza das unidades maiores para as menores, quando
o leitor se apoia nas informações extratextuais, a exemplo de quando o leitor tem muitos
conhecimentos prévios sobre o assunto e sobre a linguagem empregada no texto. Pereira
(2009) enfatiza que para a compreensão do texto são necessários: a) objetivo de leitura; b)
conhecimento prévio do conteúdo e das condições de produção do texto; c) observância ao
1 Doutor em Linguística pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), linha de
pesquisa: Teorias e Uso da Linguagem. Professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e da Fundação
Visconde de Cairu (FVC), Salvador – BA. Coordenador do Núcleo de Estudos Africanos de Línguas e
Culturas (NGEALC)/UNEB.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 499
tipo de texto e d) estilo cognitivo do leitor. A leitura não depende somente do enfoque
linguístico, psicológico, social ou fenomenológico, depende também do grau de generalização
com que se pretenda defini-la. Possenti (2001, p. 12) diz: “ Devemos ser contrários,
evidentemente, àqueles que dizem que o sentido do texto é fixo. Acho que nenhum autor chega a
afirmar isso”.
Vários estudos ( CALDERÓN – IBÁÑEZ &QUIJANO - PEÑUELA, 2010; SANTOS,
SUEHIRO, & OLIVEIRA, 2004; SILVA &WITTER, 2008) ratificam que a compreensão
leitora dos universitários está aquém do que seria desejável para a formação acadêmica no
ensino superior. É, de certo modo, comum nós, educadores, encontrarmos um número
expressivo de estudantes que não conseguem abstrair de forma satisfatória a informação lida.
É salutar pensar que
O ensino de estratégias cognitivas e metacognitivas de leitura necessita ser
realizado desde os primeiros anos de formação escolar para que o aluno aprenda
desde cedo a fazer uso da metacognição, tendo em vista uma compreensão leitora
mais competente e eficaz. A contribuição da universidade é fundamental no sentido
de capacitar professores dos ensino fundamental e médio, bem como minimizar as
diculdades encontradas pelos alunos por meio da implementação de programas que
viabilizem o desenvolvimento da habilidade leitora. (RODRIGUES, et al ,
2014,p.188.)
Rodrigues et al (2014) comungam com a ideia de que a compreensão leitora é
essencial para uma formação acadêmica de qualidade. Na pesquisa avaliaram o efeito de um
programa dirigido a promover o desenvolvimento de estratégias cognitivas e metacognitivas
de leitura, do qual participaram 11 alunos do curso de Psicologia, bolsistas do Programa de
Educação Tutorial, os quais foram pré e pós- avaliados por meio da escala de estratégias
metacognitivas de leitura – formato universitário. Para obtenção do resultado foram
necessários 12 encontros semanais, num total de 24 horas, tendo como base a conjugação de
três pilares de estratégias metacognitivas – AIM, K-W-L e K-W-L PLUS. Encontraram-se
médias superiores na pós-avaliação, com resultados significativos para os três fatores que
compõem a escala (global, suporte e solução de problemas), assim como para o escore geral.
Os dados sugerem aprimoramento da utilização de estratégias cognitivas e metacognitivas de
leitura após a intervenção, realçando a importância de estudos dessa natureza com
universitários.
Metacognição ou gestão do pensamento?
Nas fronteiras da linguagem ǀ 500
Metacognição, termo utilizado inicialmente por Flavell (1976), diz respeito ao
conhecimento que se tem sobre os próprios processos cognitivos e produtos ou qualquer coisa
relacionada a eles, isto é, o aprendizado das propriedades relevantes da informação ou dos
dados. Na verdade, sabemos que a atividade de gerir o próprio pensamento no momento de
realização de uma tarefa, quer dizer, momento de guiar, avaliar, corrigir e regular o processo
de resolução de problemas, envolve, na grande maioria das vezes, o uso de estratégias
cognitivas. Percebemos, então, que a gestão do pensamento ( metacognição) permite a
compreensão e a explicitação das relações existentes entre os procedimentos que foram
adotados, o objetivo e o desempenho obtido.
Entender a metacognição é extremamente relevante no processo de escolarização
inicial de acadêmicos de curso superior, neste caso particular de discentes do curso de
Turismo e Hotelaria da UNEB, campus I, Salvador – Bahia. Tal postura se justifica porque é
por intermédio da metacognição que é possível alcançar várias metas intelectuais (quase
sempre associadas às metas afetivas) como:
construir conhecimentos e habilidades capazes de maior possibilidade de sucesso e
de transferência; aprender estratégias de solução de problemas passíveis de serem
auto-reguladas; adquirir autonomia na gestão das tarefas e nas aprendizagens, auto –
regulando-se e auto-ajudando-se; construir uma auto-imagem de aprendiz produtivo
e, com isso, obter motivação para aprender. (cf. DAVIS, 2006, p. 3)
A metacognição na leitura trata do problema do monitoramento da compreensão feito
pelo próprio leitor durante o ato da leitura. É fato que a leitura é elaborada em circunstâncias
diversas, é produzida diferentemente, variando de pessoa para pessoa, e acontece exatamente
quando o leitor interage com o texto, por essa razão devemos considerar a leitura como um
processo interativo entre indivíduos socialmente determinados e que ela (a leitura) está
vinculada a estruturas socioculturais. Para considerar a produção de sentidos é preciso aceitar
que o leitor desempenha um papel ativo e que as inferências são, de fato, um processo
cognitivo relevante para esse tipo de atividade.
Estratégias metacognitivas de leitura e o ponto de vista de Flavell e outros estudiosos
Estudos realizados por Flavell (1979), Bolívar (2002) e Mokhtari e Reichard (2002),
para citar apenas alguns, verificaram que há procedimentos metacognitivos que auxiliam a
resolução de problemas de compreensão denominados estratégias metacognitivas de leitura.
Tais estratégias, por sua vez, permitem ao leitor compreender um texto com maior eficácia
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 501
desde que se invista no planejamento, na monitoração e na regulação dos próprios processos
cognitivos envolvidos nessa tarefa, visando tanto o processo quanto o produto da leitura. As
estratégias incluem atenção seletiva dos leitores frente às dificuldades de compreensão,
habilidade para julgar as demandas cognitivas requeridas pela tarefa e o próprio conhecimento
acerca das necessidades impostas pelas características do texto, situação de leitura e as
próprias habilidades cognitivas do leitor.
Flavell (1976) defende o seguinte: o auto-questionamento sobre um texto funciona não
apenas para aumentar o conhecimento do leitor (função cognitiva), mas também para o
monitorizar (função metacognitiva). Esta afirmação demonstra a inter-relação das funções
cognitivas e metacognitivas, isto é, uma determinada atividade pode ser compreendida como
uma estratégia (olhar para os pontos principais), possuir uma função de monitorização (uma
atividade metacognitiva), e ser uma reflexão sobre o conhecimento (também uma atividade
metacognitiva) ( cf. BROWN , 1987).
Flavell (1979) apresenta um modelo de monitorização cognitiva que é defendido a
partir de quatro aspectos inter-relacionados, a saber: 1) conhecimento metacognitivo (que
aglutina os componentes sensibilidade e conhecimento das variáveis da pessoa, da tarefa e da
estratégia) - diz respeito ao conhecimento ou crença que o aprendiz possui sobre si próprio,
sobre os fatores ou variáveis da pessoa, da tarefa, e da estratégia e sobre o modo como afetam
o resultado dos procedimentos cognitivos; 2) experiências metacognitivas - através
delas o aprendiz pode avaliar as suas dificuldades e, consequentemente, desenvolver meios de
superá-las; 3) objetivos - impulsionam e mantêm o empreendimento cognitivo e podem ser
impostos pelo docente ou selecionados pelo próprio discente e, 4) ações (ou estratégias) -
correspondem, sobretudo , às estratégias utilizadas para potencializar e avaliar o progresso
cognitivo. Elas podem ser compreendidas como estratégias metacognitivas, produzindo
experiências metacognitivas e resultados cognitivos.
Como os estudos no campo da metacognição contemplam operações que envolvem
consciência e perpassam pelas áreas da Psicologia, da Linguística e da Psicolinguística,
concordamos, pois, com Gombert (1992, p. 9) “ toda consciência é necessariamente meta do
ponto de vista do observador”. A consciência, portanto, além de inserir-se primeiro no campo
de estudos da Psicologia tem sido focada também em pesquisas relacionadas à
Psicolinguística da leitura. Para os psicólogos cognitivistas há 4 (quatro) questões
relacionadas à consciência: 1) consciência dos processos mentais superiores – capacidade do
ser humano de remeter os pensamentos à consciência; 2) supressão do pensamento – quando
há dificuldade em eliminar algumas informações da consciência;3) questão cega – representa
Nas fronteiras da linguagem ǀ 502
visão sem percepção, ou seja, as pessoas, de modo geral, podem executar uma tarefa cognitiva
com bastante exatidão, sem qualquer tomada de consciência que seu desempenho seja
exato;4) inconsciente cognitivo – informações processadas fora da percepção consciente e o
tratamento científico é dificultado pela falta de evidências de seu funcionamento. Estudos na
linha freudiana, na maioria das vezes, fazem menção ao inconsciente cognitivo (cf. MATLIN,
2004).
Silva (2014) nos oferece a oportunidade de ter acesso a uma obra reflexiva
“Compreensão da leitura sob a lente da metacognição”, onde destaca a metacompreensão e as
estratégias metacognitivas de leitura, manifestando a sua preocupação com os aspectos
pedagógicos e o papel da escola diante das dificuldades de muitos estudantes. Na obra o autor
nos auxilia a revisar consagrados modelos de desenvolvimento da leitura, alertando para
questões fundamentais, tal como a reação entre fluência e compreensão. Com o autor
devemos concordar:
não basta que o aluno seja preciso em seu julgamento metacognitivo para que ele
apresente um bom desempenho, é necessário saber converter esse recurso
metacognitivo em estratégias cognitivasque o auxiliem na busca de soluções para
aprimorar a sua cognição. [...] ( p. 97).
Considerando a reflexão apresentada acima, lembramos também da ponderação
feita por Smith (1994) que considera a compreensão como a obtenção de respostas às
perguntas que são colocadas pelo leitor durante o processo de leitura. Ele admite que quanto
mais informações não-visuais (conhecimento prévio) estiverem disponíveis para o leitor, de
menos informações visuais ( do próprio texto) ele precisará para compreender o texto.
Reforça-se, neste contexto, que: “a partir da interação entre o insumo advindo do texto e o
conhecimento prévio, acionado durante a leitura, o leitor consegue compreender o texto lido”.
(cf. GERBER e TOMITCH, 2008, p.139).
A pesquisa: os acadêmicos põem no papel o que pensam Participantes
Participaram da pesquisa 29 discentes do curso de Turismo e Hotelaria (2015.1) da
UNEB, turno vespertino, 18 (dezoito) do sexo feminino e 11 (onze) do sexo masculino, com
média de 17 a 44 anos de idade.
Instrumento e materiais
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 503
Utilizamos a entrevista retrospectiva de Tomitch (2003 – com adaptação), composta
por 10 itens, sendo duas (questões 3 e 10) do tipo escolher apenas uma alternativa de resposta
e 8 questões discursivas (abertas) (1,2,4,5,6,7,8 e 9). O texto recomendado para leitura foi
“Escutatória ou o silêncio como alimento” (RUBEM ALVES, 2010) , apenas uma página,
publicado na Revista Educação, ano13, nº 160, agosto/2010, p.74. Para as questões abertas,
intencionalmente, foram colocadas duas linhas, mas alguns discentes ultrapassaram o espaço
para completar a resposta. Em relação à questão 1, todos os informantes (sexo masculino e
sexo feminino) disseram “Sim”, concordando, portanto, que a leitura do texto fluiu bem.
Na questão 2, todos os informantes disseram “Não”, justificando, assim, que o texto
não era difícil, mas caberia uma explicação diante do questionamento no final da questão:
“Por quê?”. Como exemplo temos: “ Não, porque esclarece os fatos de maneira altamente
compreensível” (PHOS, 18 anos, masculino), “ não. pois traz pouco conteúdo cientifico e que
seja inflexível de se interpretar. é visível a reflexão pessoal”. (TSV, 26 anos, masculino), “
Não, a linguagem é acessível, cotidiana como já foi dito”. (ANG ,39 anos, masculino), “ Não.
Como dito acima, tem uma linguagem clara e simples”. (MMTS, 17 anos, feminino), “ Não.
Por sua linguagem simples e objetividade”. (JSS, 28 anos, feminino), “ Não. Porque o autor
consegue nos prender ao objetivo que ele prõe no título.” ( ABP, 44 anos, feminino). Embora
a organização sintática apresente-se diferente para cada sujeito respondente, as justificativas
dão conta que o/a autor/a do texto utiliza uma linguagem simples e consegue prender a
atenção do leitor.
Na questão3a – classificar o texto numa escala de 1 a 10 como muito fácil, no sexo
masculino variou de 4 a 10 e no sexo feminino variou de 5 a 10. Já na questão 3 b - classificar
o texto numa escala de 1 a 10 como muito difícil, no sexo masculino variou de 1 a 5 e no sexo
feminino variou de 1 a 6. Observamos, então, que a variação no que diz respeito a achar o
texto fácil ou achar o texto difícil, tanto do sexo masculino quanto o sexo masculino manteve-
se com uma certa proximidade na escala apresentada para avaliação.
Na questão 4 – “Você diria que o texto está bem escrito? Por quê?”, eis algumas
respostas: “ Sim. Está de acordo com a norma”. (RE, 18 anos, masculino), “ Sim, porque
soube argumentar, e mostrou exemplos”. (IAM, 20 anos, masculino), “Sim. É um texto de
leitura rápida, que flui sem problemas. Palavras de facil entendimento e acessível a uma
maioria.” (LSJ, 23 anos, masculino), “ Sim. Porque o autor consegue transmitir seus
pensamentos facilmente”. ( IJOS, 18 anos, feminino), “ Sim. O autor explica de maneira fácil
e direta o assunto abordado”. (MAAS, 19 anos, feminino), “ Sim. Obedece as regras,
gramaticais e sitaxe, e a exemplificação da um dinamismo a ele, tornando a compreesão mais
Nas fronteiras da linguagem ǀ 504
fácil”. ( JSR, 20 anos, feminino). A questão da norma apresentada por uma das pessoas
inqueridas fica subentendida norma da gramática normativa e outra informante também dá
ênfase à gramática normativa quando afirma que o texto obedece regras gramaticais e sintaxe
( embora na escrita da informante apareça sitaxe).
Precisamos, diante das ponderações feitas pelos discentes , concordar com Kleiman
(1996) quando reconhece que o processamento da leitura começa pelos olhos, uma vez que
eles (olhos) possibilitam a percepção do material escrito, que passa a uma memória de
trabalho que o organiza em unidades significativas. Acontece que essa memória seria ajudada
nesse processo por outra intermediária que tornaria acessíveis, como num estado de alerta,
aqueles conhecimentos considerados como relevantes para a compreensão do texto dentre
todo o conhecimento que estaria organizado em nossa memória de longo prazo (também
chamada de memória semântica, ou memória profunda).
A questão 5 – “Como você acha que o autor organizou as ideias no texto? Você notou
algum tipo de organização? Caso positivo, como você descreveria essa organização?”
Algumas respostas: “ Sim. Ele organiza o texto de uma forma fluente e simples para
que o leitor não se perca durante a leitura”. (DRVOS, 18 anos, masculino) e de uma forma
mais sucinta: “ Sim, claro.” (LSM, 21 anos masculino), “ uma possível organização ao trazer
no inicio uma opnião pessoal, seguida de citações de outros autores e de um exemplo de
experiência vivida...” (TSV, 26 anos, masculino). E o que significam as reticências?, Se as
orientações apresentadas por Tomitch (2003) fossem seguidas rigorosamente , sem
adaptações, ou seja, se tivéssemos questionado e gravado a justificativa do acadêmico sobre o
uso das reticências no final teríamos como explicar o uso das reticências. Na voz feminina,
ultrapassando o limite de linhas temos: “ Sim. Introduziu tema falando sobre a idéia central,
desenvolveu dando exemplos para uma melhor compreensão e finalizou demonstrando como
ele próprio foi convencido, da importância do tema central do texto".”(JSS, 28 anos,
feminino).
A questão 6 – “Qual foi o objetivo do autor ao escrever o texto? Você acha que ele
conseguiu alcançar esse objetivo?”
Encontramos como repostas: “Sim. O autor passou a mensagem de que se deve falar
menos e se escutar mais”. (HIS, 23 anos feminino), “ O objetivo do autor foi representar o
silêncio e dar o direito da palavra ao próximo. Praticar o silencio. Sim”. (TOMP, 23 anos,
feminino).
Na questão 7 perguntou-se: “Você considera o texto como sendo completo? Por quê?”
e daí temos as argumentações: “Na questão informativa sim, pois a idéia é recebida pelo
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 505
leitor. Já na questão gráfica há um espaço para que se conclua o que foi dito”. ( IJOS, 18 anos,
feminino), “Sim. Porque o objetivo do texto foi devidamente alcançado”. (PSLG, 19 anos
feminino), “ Não. Acredito que há muito mais a se discorrer sobre o assunto. E, sim, dentro do
que acredito ter sido a sua proposta”. (JSS, 28 anos, feminino), “Sim. Pois o autor conseguiu
explanar seu pensamento de forma clara e organizada”.(NVRS , 24 anos, masculino ). Há,
portanto, muitas justificativas.
A questão 8 – “ O que tornou sua leitura desse texto fácil ou difícil? Por quê?”
Numa linguagem estilo telegrama (quando se faz economia de palavras) temos:“
Línguagem, abordagem”. (APJA, 19 anos, feminino), “A forma como ele foi escrito. Foi bem
explicativo”. ( AVSU, 19 anos, feminino), “ O que facilitou a minha leitura foi o fato de ter
outras revistas que tem uma abordagem semelhante a esse texto”. ( LSJ, 23 anos, masculino),
“ A linguagem clara e a organização das idéias”. (FRTG, 28 anos, masculino). Vemos aí uma
justificativa apresentada brevemente que denominamos linguagem escrita estilo telegrama e
também o depoimento que leituras de outras revistas com estilo similar ao texto Escutatória
ou o silêncio como alimento facilitou o entendimento do texto.
A questão 9 - “A maneira como o assunto foi abordado no texto lhe foi familiar?”
Atentemos, pois, para algumas respostas: “ Razoalvelmente sim, por se tratar de uma
situação comum, o termo liturgia porém, não conheço sua definição”. (PHOS, 18 anos,
masculino), “Sim. Pois abordou fatos cotidianos”. ( ANG, 39 anos, masculino), “Sim. Pois
nota-se que o autor escreve como se estivesse contando um fato há um velho amigo”. (
PSLG, 19 anos, feminino), “ Minha familiaridade com o texto esta em sua objetividade e
admirável clareza. E assunto do texto é algo que busco praticar”. (JCA, 21 anos, feminino).
A autenticidade das respostas , demonstrando sinceridade em não ter conhecimento de
uma palavra ( significado empregado em um dado contexto) faz com que o docente na sua
ação diária de mediador de conhecimento seja sensível e ,sempre que possível, e contribua
para ajudar na formação de alunos - cidadãos - críticos .
Na questão10 a – classificar o texto numa escala de 1 a 10 como totalmente familiar ,
no sexo masculino variou de 2 a 9 e no sexo feminino variou de 5 a 10. Já na questão 10 b -
classificar o texto numa escala de 1 a 10 como totalmente desconhecido, no sexo masculino
variou de 1 a 7 e no sexo feminino variou de 1 a 5. Nestas questões houve, possivelmente,
muita sinceridade ao informar se o texto era familiar ou desconhecido.
Apoiado em Tomitch (2003) ,como já dito anteriormente, atentamos para: a) as
perguntas foram suficientes para obtenção dos dados; b)evitamos ferramenta de coleta muito
longas em que os participantes são vencidos pelo cansaço; c) enunciados das perguntas foram
Nas fronteiras da linguagem ǀ 506
objetivos e claros, não deixando margem para interpretações diferentes; d) os dados foram
coletados através do preenchimento formulário de pesquisa pelo participante.
(In) conclusão
O nosso entendimento é que à medida que se compreende um texto, inferências
fundamentadas em um contexto sociocultural são geradas, ao que poderíamos chamar de
inferência sociocultural, que representaria a informação nova, inserida num novo contexto,
possivelmente extraída de uma informação de base anterior. Como cada indivíduo traz
compreensões qualitativamente diferentes para um mesmo texto, é necessário ser receptivo à
ideia de que trabalhar com o processo de inferência na leitura significa ativar os
conhecimentos individuais preexistentes no momento da leitura.
Das reflexões apresentadas, principalmente pelos os informantes da pesquisa, talvez a
maior lição é que se o leitor pretende compreender um texto, é necessário construir uma
representação mental de uma mensagem, sendo necessário conectar as informações durante a
leitura, ou seja, tanto no nível mais local das orações (microestrutura), quanto no nível mais
global dos parágrafos ou partes do texto (macroestrutura). Sendo assim, as inferências geradas
pelo leitor, no momento da leitura, têm papel de destaque na construção de significado, uma
vez que essas inferências possibilitam as conexões que integram as informações oriundas do
texto, possibilitando, inclusive, que o leitor construa um modelo mental sólido que possa
auxiliá-lo na compreensão, na retenção e no acesso posteriormente à memória das
informações lidas.
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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 509
SOBRE O SAGRADO E O PROFANO EM BALADA DE SANTA
MARIA EGIPCÍACA, DE MANUEL BANDEIRA [Voltar para Sumário]
Cícero Émerson do Nascimento Cardoso (UFPB)
1 – introdução:
Este trabalho se pauta numa leitura do poema Balada de Santa Maria Egipcíaca1, da
obra Ritmo dissoluto (1924), de Manuel Bandeira, a partir da dicotomia sagrado/profano.
A legenda de Santa Maria Egipcíaca, cujos feitos inspiraram autores como Manuel
Bandeira, Cecília Meireles, Rachel de Queiroz, Raquel Naveira e Antônio Callado – se
considerarmos a personagem Maria do Egito, da obra Quarup, que, em decorrência do
contexto em que está inserida, passa a prostituir-se ainda muito jovem –, traz em si, seja pelo
teor poético que comporta, seja pelo teor moralizante que apresenta, aspectos polissêmicos
que nos possibilitariam realizar uma leitura a partir da concepção de sagrado e profano
proposta por Mircea Eliade (1992).
Manuel Bandeira colheu essa legenda da hagiografia católica que, segundo Naveira
(2002, p. 33), constaria no Flos Sanctorum. A este respeito, ela afirma que:
As hagiografias, ou coletâneas da vida dos santos reconhecidos e canonizados pela
Igreja romana, surgiram em Portugal em meados do século XVI. A mais importante
dessas compilações é o Flos Sanctorum, de que houve dois textos em português,
mandados imprimir por D. Manuel I, em 1513.
Raquel Naveira (ibidem, p. 38 – 42) apresenta duas versões da legenda de Santa Maria
Egipcíaca. Faremos um resumo da versão de 1704, de Pedro de Ribadeneyra, colhida pela
autora na Biblioteca Mário de Andrade e, segundo ela, apresentada com algumas adaptações.
De acordo com esta versão, Maria Egipcíaca teria contado sua história a um monge
que a encontrara caída no deserto da Palestina. Ela teria dito que nascera no Egito e, forçada
pelos pais, fora para a Alexandria no início da adolescência – neste lugar teria vivido como
1 BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira – poesias reunidas. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.
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prostituta por muitos anos. Vendo, certa vez, o povo ir de barco para Jerusalém, por ocasião
de uma festa religiosa, ela entrara no barco e, destituída de posses, teria pagado a passagem
com o próprio corpo. Estando em Jerusalém, ao tentar entrar na igreja fora retida por uma
mão invisível que a impedira de entrar no recinto sagrado. Ela teria considerado este fato
como uma punição por ela dedicar-se a uma vida pecaminosa e, ao fazer orações, arrependida
da vida de devassidão que levava, decidiu isolar-se do mundo – fugiu, desta feita, para o
deserto.
Conforme aponta Affonso Romano de Sant’Anna (1993, p. 212), Maria Egipcíaca “já
era prostituta na famosa Alexandria, cidade que com Cartago e Corinto constituíam os
grandes centros de devassidão da Antiguidade”. Manuel Bandeira, ao desenvolver sua versão
dessa história, teria promovido uma “atualização” do “mito arcaico” da prostituta e da santa
que se fundem na imagem da “prostituta sagrada”. Ele a retoma, portanto, em forma de
balada e, em versos livres, reconta a história dessa santa que teria usado o próprio corpo
como meio através do qual poderia finalmente fugir de uma vida de promiscuidades.
Sobre o gênero balada, D’Onofrio (2000, p. 100) afirma que: “Em suas origens,
durante a Baixa Idade Média, a balada era uma forma poemática composta para ser musicada
e cantada com acompanhamento coreográfico nas festas de vindima e de outras colheitas do
campo”.
Do ponto de vista formal, D’Onofrio completa:
Tratava-se de uma forma primitiva de poesia, de origem autóctone, e cada região
apresentava sua forma peculiar. [...] O que distingue essa forma poemática é a
confluência dos três gêneros: o lírico, por ser expressão de sentimentos; o narrativo,
porque balada é uma canção-história, contém em seu bojo uma pequena fábula; o
dramático, porque a substância factual não é contada nem por um narrador
onisciente nem pelo eu poemático, mas é revelada pelo diálogo entre as
personagens.
Manuel Bandeira, como nos propõe Sant’Anna (ibidem, p. 207), teria travado na obra
Ritmo dissoluto uma luta entre os valores tradicionais e os valores modernos da poesia e,
dessa forma, teria enfatizado “um dos tópicos mais dramáticos de nossa cultura: o conflito
entre o amor erótico e o misticismo”.
Sant’Anna, ao discorrer sobre o teor erótico paradoxalmente impregnado de aspectos
místicos nessa obra, relaciona a personagem Maria Egipcíaca ao mito da Ninfa e do Fauno, e
faz alusão, também, ao fato de que o sexual e o espiritual, que se fundem sobretudo nessa
figura melancólica, são recorrentes nessa obra e dão a tônica da poética produzida por esse
autor.
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Passemos, a seguir, para uma leitura do poema acima citado de modo a observar, num
primeiro momento, os pormenores do texto e, em seguida, a presença do sagrado e do profano
conforme nos apresenta Mircea Eliade.
2 – Balada de santa maria egipcíaca: uma legenda atualizada
Além de dispor de um conteúdo fabular, e ser predominantemente narrativo, o poema
Balada de Santa Maria Egipcíaca apresenta um perceptível viés dramático. Podemos afirmar,
portanto, que por ser dotado desses três elementos este poema traz em si, de fato, as
características que seriam pertinentes à balada – embora com uma nova roupagem advinda de
propostas modernistas.
Para melhor compreender a discussão a que nos propomos, façamos a leitura do
poema:
Balada de Santa Maria Egipcíaca
Santa Maria Egipcíaca seguia
Em peregrinação à terra do Senhor.
Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de mártir...
Santa Maria Egipcíaca chegou
à beira de um grande rio.
Era tão longe a outra margem!
E estava junto à ribanceira,
Num barco,
Um homem de olhar duro.
Santa Maria Egipcíaca rogou:
– Leva-me à outra parte do rio.
Não tenho dinheiro. O Senhor te abençoe.
O homem duro fitou-a sem dó.
Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de mártir...
– Não tenho dinheiro. O Senhor te abençoe.
Leva-me à outra parte.
O homem duro escarneceu: – Não tens dinheiro,
Mulher, mas tens teu corpo. Dá-me teu corpo, e vou levar-te.
E fez um gesto. E a santa sorriu,
Na graça divina, ao gesto que ele fez.
Santa Maria Egipcíaca despiu
O manto, e entregou ao barqueiro
A santidade de sua nudez.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 512
Jolles (1976, p. 30), ao definir uma das formas que seriam produzidas “na linguagem”
e propaladas pela “própria língua”, como é o caso da legenda, a apresenta como “compilações
[...] que reúnem as histórias e depoimentos sobre a vida e os atos dos santos, desde os
primeiros séculos de Cristianismo”. A este propósito, Jolles indaga-se sobre o que viria a ser
um “santo”, e como este passaria a ser considerado possuidor de “santidade”. Ele afirma que a
“santidade está, pois, vinculada à instituição eclesiástica”, e a resposta para a pergunta sobre o
que viria a ser um santo somente faria sentido “a partir desse vínculo”. O que poderia tornar,
desta feita, um indivíduo santo? A instituição eclesiástica seria a legitimadora dessa santidade
– isto teria sido viabilizado por meio de um processo de canonização estipulado a partir do
papa Urbano VIII.
Jolles (ibidem, p. 54) considera, sobre a vida dos santos, posteriormente, que não é
incomum “um santo começar a existência como contra-santo”. Nesta perspectiva, ele aponta
para o fato de que alguns santos, antes de serem considerados como tal, cometeram inúmeros
pecados e, justamente por isto, por serem capazes de mudar de vida – sendo tão frágeis quanto
qualquer mortal – estes serviriam de exemplo para o ser humano que vê, também em si,
possibilidades de mudança.
A este respeito, Jolles (ibidem, p. 54) afirma que:
A igreja católica não estabeleceu para os anti-santos, grandes ou pequenos, um
procedimento correspondente ao processo de canonização. A contracanonização
efetua-se na comunidade, fora da autoridade constituída; e o seu instrumento, a
linguagem, redundou geralmente na criação de legendas, só raramente de Vidas.
A legenda de Santa Maria Egipcíaca é retomada, nessa obra moderna, e dá-nos a
conhecer a vida dessa mulher cujo comportamento de “contra-santo” revela-se, no texto
poético, com seus vieses polissêmicos que justificariam inúmeras abordagens.
Ao atualizar a legenda dessa santa – figura cuja vida, seja por seu teor dramático, seja
por seu teor lírico, tem inspirado autores brasileiros a retomá-la em obras de qualitativo
conteúdo literário –, Manuel Bandeira a expôs de modo a instigar no leitor uma suposta
compaixão que a isentaria de ser considerada por um viés moralizante. Ela, embora se
disponha a realizar um ato considerado tradicionalmente impuro, o faz sem necessariamente
demonstrar intenções pecaminosas, pois sua entrega representaria um sacrifício último em sua
peregrinação à vida espiritual que a redimiria de seus pecados.
Esse poema tem início in medias res, com a chegada de Maria Egipcíaca – evocada
como santa no título e retomada como tal já no primeiro verso – à margem de um rio que
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representava um obstáculo que ela deveria superar para dedicar-se, definitivamente, ao seu
novo ideal de vida.
Temos nos primeiros versos, por meio de um narrador observador que recorre a verbos
no pretérito imperfeito, a informação de que a santa deslocava-se para a “terra do Senhor” –
Jerusalém. O cenário em que ela se encontra é descrito no verso seguinte – verso que se repete
novamente na quinta estrofe do poema – e aponta para o teor antitético e lírico do texto, bem
como sugere as mudanças que a personagem vivencia. A imagem do crepúsculo remete-nos à
oposição dia/noite, claridade/escuridão e, consequentemente, ao comportamento
pecaminoso/santo da personagem que vislumbra possibilidades de mudança.
Na imagem do “triste sorriso de mártir” temos uma oposição de ideias que já nos
remete a um paradoxo: há um sorriso, que seria supostamente caracterizador de um estado
emocional que representaria bem-estar, mas este sorriso é adjetivado como triste – imagem
reforçada pela locução adjetiva “de mártir”, que prenuncia o sacrifício que será empreendido
pela personagem.
Em seguida, o narrador diz que a santa chegou à beira de “um grande rio”. O rio, que é
adjetivado como grande, aponta para o desafio com que a personagem se depara: ela teria que
atravessar o maior dos obstáculos para concretizar seu objetivo de entregar-se de vez à vida
espiritual almejada. O verso seguinte enfatiza o conflito que se apresenta diante dela: a outra
margem mostra-se longínqua e, aparentemente, intangível.
Como perceberemos em versos seguintes, Maria Egipcíaca não dispõe de posses
materiais que viabilizem sua passagem para a outra margem do rio. Como fazer para custear,
portanto, sua viagem até a outra margem?
Surge, na sequência dos versos, outra personagem: um homem “de olhar duro” que
estava num barco junto à ribanceira. O adjetivo “duro” que o caracteriza surge, enfaticamente,
três vezes ao longo do poema. Este vocábulo poderia sugerir, dentre outras possibilidades
semânticas, a índole do barqueiro que, como um fauno sádico, detém em si a condição sine
qua non para que Maria Egipcíaca chegue ao seu destino. Esse adjetivo poderia indicar, desse
modo, a virilidade, a força física, a detenção do poder e o péssimo caráter do barqueiro e
poderia, também, remeter ao comportamento erotizado dele que vê, na vulnerabilidade de sua
interlocutora, uma possibilidade de explorá-la sexualmente.
Na quarta estrofe do poema, dá-se o primeiro diálogo entre as personagens: Maria
Egipcíaca pede ao barqueiro que a conduza ao outro lado do rio, mas não deixa de expor que
não dispõe de dinheiro para realizar o pagamento pela travessia. Ela conta, apenas, com a
solidariedade do barqueiro. Ele, no entanto, destituído de uma índole que o possibilitaria
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realizar um ato de bondade, sugere, com sarcasmo, após duas sequências de pedidos
desesperados da santa, que esta entregue seu corpo como pagamento.
O barqueiro faz um gesto, que deve indicar um chamado para a consolidação do ato
sexual, e a santa sorri – certamente sorri com seu “triste sorriso de mártir”, pois, ironicamente,
para chegar ao mundo sagrado que tanto anseia ela precisa submeter-se à prostituição e
retomar o comportamento profano que ela havia desprezado após sua conversão. O ato sexual
a que ela se permite, porém, não mais representaria uma disposição para fins pecaminosos,
mas um sacrifício que poderia torná-la mais próxima de seu ideal de santificação.
O barqueiro exerce sobre a santa/prostituta o poder conferido ao sexo masculino por
visões tradicionalistas. Ele, motivado por visões misóginas que conferem à mulher uma
condição de inferioridade em relação ao homem, se apropria de um discurso de superioridade
e vê no corpo dela um objeto disponível a seu bel-prazer e seu sadismo. Ela, por sua vez,
convertida e disposta a tudo para entregar-se definitivamente à vida espiritual, não vê outra
solução senão entregar-se, num último gesto de sacrifício, ao barqueiro. Sant’Anna (ibidem, p.
211), a este respeito, afirma que: “A santa lhe teria dado o corpo, num desprendimento das
coisas terrenas e materiais, e seguiu com sua alma mais pura (por causa do martírio) para seu
destino”.
A entrega do corpo por parte da santa, como possibilidade de realizar sua travessia,
coaduna com o que Eliade (ibidem, p. 84) afirma a respeito da simbologia do corpo. Para ele,
o corpo “apresenta ou pode apresentar uma “abertura” superior que possibilita a passagem
para um outro mundo”. Por meio desse gesto de abnegação, e não menos de martírio, o
espírito poderia, de fato, libertar-se do mundo profano e ressignificar-se por meio da solidão,
do jejum, da oração e do encontro com a divindade.
Santa Maria Egipcíaca entrega ao barqueiro, ao despir seu manto, não apenas seu
corpo, mas “a santidade da sua nudez”, ou seja, o ato sexual não representou, senão, a
confirmação da mudança de conduta dessa personagem que vê em seu gesto um total
desprendimento de seu corpo como posse material. Para ela, a partir de sua conversão,
importava revestir-se da presença do ser divino que a retirara de um mundo profano e inferior.
Ela, por seu gesto, teria permanecido intacta quanto ao pecado que realizara. Como na
conhecida trova que apresenta a Virgem Maria como uma mulher que, apesar de ter
concebido um filho, Jesus Cristo, teria permanecido pura, Maria Egipcíaca gozaria de um
privilégio parecido, por sentir-se pura apesar da efetivação do ato sexual que ela experimenta
como um último sacrifício e condição sine qua non para ela libertar-se do mundo profano em
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que se encontrava: “No ventre da Virgem bela / O verbo encarnou por graça / Entrou e saiu
por ela / Como o sol pela vidraça”.
Após esta breve explanação, discorreremos sobre os aspectos constitutivos do texto em
pauta com a intenção de observar, de modo mais pormenorizado, como podemos
compreender a personagem Maria Egipcíaca a partir do paradoxo comportamental que nos
remeteria à dicotomia sagrado/profano proposta por Mircea Eliade.
3 – O sagrado e o profano segundo mircea eliade
Ao discorrer sobre o sagrado, Mircea Eliade (ibidem, p. 13) afirma que: “O homem
toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente
diferente do profano”. O sagrado seria revelado por meio de uma hierofania –
etimologicamente, este termo significa: manifestação do sagrado.
Para Eliade, a história das religiões seria constituída de diversas ocorrências de
hierofanias, e a experiência do sagrado seria marcada por uma revelação fundada na
descoberta de um espaço tido como sagrado. Este espaço traria em si, também, a
representação simbólica da criação do mundo – este seria um “centro”, um “ponto fixo” em
que o indivíduo, após passar pela revelação, teria as bases para a vivência do sagrado.
Eliade (ibidem, p. 18) aponta, por outro lado, para a manifestação da experiência
profana. Neste caso, “o espaço é homogêneo e neutro: nenhuma rotura diferencia
qualitativamente as diversas partes de sua massa”.
Essa distinção entre o espaço sagrado e o espaço profano é determinante para que
compreendamos o que caracteriza a oposição que estabelecemos no comportamento da
personagem do poema de Manuel Bandeira.
Percebemos nesse texto a ocorrência de dois espaços que se opõem, e que poderiam
remeter à mudança de comportamento da personagem: de um lado há o espaço profano
representado pela cidade de Alexandria, do outro há o espaço sagrado representado pela
cidade de Jerusalém. Há, entre um espaço e outro, para utilizarmos um termo empregado por
Eliade (ibidem, p. 19), um limiar: “O limiar que separa os dois espaços indica ao mesmo
tempo o limite, a baliza, a fronteira que distinguem e opõem dois mundos – e o lugar
paradoxal onde esses dois mundos se comunicam, onde se pode efetuar a passagem do mundo
profano para o mundo sagrado”.
No poema em discussão, esse limiar seria representado pelo rio que separa a vida de
prostituição e pecaminosidade de Maria Egipcíaca, e a vida de devoção e sacrifício que esta
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pretende para si após sua conversão – diferente do que ocorre na legenda anteriormente
apresentada, Manuel Bandeira sugere que Maria Egipcíaca teria vivenciado a conversão antes
de atravessar o rio, portanto a entrega do corpo como pagamento para atravessá-lo seria mais
um ato de sacrifício do que um ato pecaminoso.
A propósito, Eliade (ibidem, p. 19) aponta para o fato de que o limiar traria em si
“grande importância religiosa, porque se trata de um símbolo e, ao mesmo tempo, de um
veículo de passagem”.
Localizamos, nesse poema, os dois lados espaciais que, para Eliade, constituiriam o
espaço sagrado e o espaço profano; também localizamos na imagem do rio a fronteira que a
personagem precisaria atravessar para que a experiência religiosa fosse efetivada. Ela
precisaria, no entanto, para alcançar seus objetivos, dispor de algo que lhe desse
possibilidades de passagem – no caso de Maria Egipcíaca, ela dispõe, já que lhe falta posses
materiais, do corpo oferecido como pagamento para que assim pudesse chegar à outra
margem do rio.
Eliade (ibidem, p. 19) diz que: “O limiar tem sempre seus “guardiões”: deuses e
espíritos que proíbem a entrada tanto aos adversários humanos como às potências demoníacas
e pestilenciais”. Ele diz, ainda, que: “É no limiar que se oferecem sacrifícios às divindades
guardiãs”.
Associando ao texto, o barqueiro figuraria como o guardião do limiar que Maria
Egipcíaca precisaria enfrentar para conseguir, finalmente, ir para Jerusalém e dedicar-se à
vida de santidade. Enfrentá-lo seria, desse modo, deparar-se com a necessidade de oferecer
um sacrifício – neste caso, o sacrifício do próprio corpo.
Além disso, Eliade (ibidem, p. 65), ao discorrer sobre o simbolismo aquático – que
apreendemos do poema pela imagem do rio que a personagem precisa atravessar – afirma
que: “As águas simbolizam a soma universal das virtualidades: são fons et origo, o
reservatório de todas as possibilidades de existência; precedem toda forma e sustentam toda
criação”. Por este viés, as águas precedem a nova experiência existencial que a personagem
busca.
De acordo com a crença judaico-cristã, por exemplo, a água é utilizada para o ritual do
batismo e representa, como Eliade (ibidem, p. 66) subscreve, que: “O “homem velho” morre
por imersão na água e dá nascimento a um novo ser regenerado”. Eliade (ibidem, p. 65)
apresenta, ainda, a ideia de que: “O contato com a água comporta sempre uma regeneração:
por um lado, porque a dissolução é seguida de um “novo nascimento”; por outro lado, porque
a imersão fertiliza e multiplica o potencial da vida”.
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No poema não ocorre uma imersão direta por parte da personagem, mas a simbologia
das águas através das quais ela precisa passar – para alcançar o espaço considerado, por ela,
sagrado – traz forte representação quanto à mudança de comportamento que esta vivencia
tendo na simbologia da água uma possibilidade de renovação, de purificação, de mudança
completa de vida.
Isso coaduna com o que Eliade (ibidem, p. 66) afirma: “Em qualquer conjunto
religioso em que as encontramos, as águas conservam invariavelmente sua função:
desintegram, abolem as formas, “lavam os pecados”, purificam e, ao mesmo tempo,
regeneram”.
A propósito da simbologia do corpo – que no poema representa a posse material a que
a personagem acorre para alcançar seus objetivos –, Eliade (ibidem, p. 84) afirma que: “É
importante [...] enfatizar que cada uma dessas imagens equivalentes – Cosmos, casa, corpo
humano – apresenta ou pode apresentar uma “abertura” superior que possibilita a passagem
para um outro mundo”.
A retomada dessa legenda – da santa que se converte e precisa abandonar uma vida
entregue ao que é profano, e que busca regenerar-se e, para tal, precisa atravessar um
obstáculo que a impede de entregar-se completamente à vida sagrada e, por isto, vê-se
motivada a submeter-se a um último sacrifício, parece-nos comportar uma pertinente relação
com o que Eliade concebe em sua discussão sobre o sagrado e o profano.
Por fim, Naveira (ibidem, p. 50) diz que: “Balada de Santa Maria Egipcíaca é um
poema forte, místico e erótico”. Concordamos com a autora e ampliamos o que ela afirma
dizendo que esse poema é, sobretudo, rico em polissemia – ele possibilitaria leituras diversas
pelo valor estético que comporta. Ao dizer isto, justificamos a aplicação da concepção de
Mircea Eliade sobre o sagrado e o profano, como suporte para uma leitura como a que
propusemos aqui, ao mesmo tempo em que comprovamos que esse texto, produzido por um
dos mais criativos poetas da nossa Literatura, poderia nos render muito mais discussões para
trabalhos futuros.
Referências
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira – poesias reunidas. 3. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1973.
D’ONOFRIO, Salvatore. Balada. In: Teoria do texto 2: Teoria da lírica e do drama. São
Paulo: Ática, 2000.
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ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo:
Martins Fontes, 1992.
JOLLES, André. Legenda. In: Formas simples. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo:
CULTRIX, 1976.
NAVEIRA, Raquel. Maria Egipcíaca. Campo Grande – MS: UCDB, 2002.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Manuel Bandeira: do amor místico e perverso pela santa
e a prostituta à família mítica permissiva e incestuosa. In: O canibalismo amoroso: o desejo e
a interdição em nossa cultura através da poesia. 4. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
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DE GÊNESIS A SHAKESPEARE: MISTICISMO E
SIGNIFICAÇÃO DO NÚMERO SETE [Voltar para Sumário]
Clara Mayara de Almeida Vasconcelos (UFPB)
Eveline Alvarez dos Santos (UEPB)
Introdução
A relação entre cinema, e outras linguagens não-verbais que são análogas ao cinema
como é o caso do seriado, e a literatura estabelece relações estreitas. Não se trata apenas de
uma comparação entre dois tipos de linguagens que têm como categoria analítica um tema em
comum. Além do intercâmbio de informações entre elas, devemos considerar também os
inúmeros signos e significações que podem ser [re]construídos a cada vez que lemos esses
textos.
Ao colocarmos um elemento em termos de outro surgirão novos signos com infinitas
possibilidades de interpretação, fazendo com que possamos estabelecer inúmeras relações de
significação entre os novos elementos e entre esses e os já existentes. Assim se dá a tradução.
A partir disso, analisaremos nesse trabalho as relações estabelecidas entre os textos: a peça
Hamlet e o seriado Som e Fúria.
Entre o texto verbal e o audiovisual percebermos que existe uma relação diagramática.
A narrativa da peça shakespeariana não está presente no seriado de forma “integral” no
seriado, ao ter o seu enredo narrado de forma linear da mesma forma que está contido no texto
dramático. Entretanto, em meio aos diversos signos que se aglutinam na narrativa do seriado,
entre eles estão outras peça shakespearianas, perceberemos que as relações estabelecidas entre
os personagens possuem em sua constituição as características de diversos personagens
shakespearianos em que faz o telespectador reconhecer no seriado uma passagem da peça “As
you Like It”: All the world’s a stage, and all the man and women merely players: they have
their exits and their entrances; And one man in his time plays many oarts, his act being seven
ages. (SHAKESPEARE, 2012, p.27)
Nas fronteiras da linguagem ǀ 520
A partir disso utilizaremos a Teoria Geral dos Signos de Charles Sanders Peirce para
construir o argumento necessário para justificar as significações apresentadas pelo número
sete na narrativa, não apenas no seriado, mas o que também está inserido no texto literário
através da convenção que esse signo adquiriu a partir dos vínculos que a sociedade criou para
que o simbolismo desse número estivesse atrelado a algo “concreto” nos termos dos laços
sociais. Sendo assim, discutiremos o que é a Tradução Intersemiótica e o seu lugar na
Semiótica Peirceana, além da sua aplicação para explicar a transposição de signos do meio
verbal para o audiovisual.
O lugar do símbolo na tradução intersemiótica
Neste trabalho, abordaremos a Tradução Intersemiótica da peça shakespeariana Hamlet
para o meio audiovisual. Para isso utilizaremos a Teoria Geral dos Signos de Charles Sanders
Peirce que tem como objeto de estudo a significação como um signo resultante de uma
relação triádica entre o objeto, o representâmen e o interpretante. Este último, por sua vez, é
um novo signo o qual representa a interpretação dos outros dois elementos.
A tríade proposta por Peirce não se restringe a apena esses três elementos. Há três níveis
de relações estabelecidas entre os elementos supracitados que organizam os signos em mais
três outras classificações. A ideoscopia peirceana é dividida em Primeiridade, Secundidade e
Terceiridade a partir da relação entre: o signo em si; signo e objeto; signo e interpretante. Na
relação signo em si está os qualissignos, sinssignos e os legissignos. Na relação signo e objeto
estão o ícone, índice e símbolo. Na relação signo e interpretante estão o rema, dicissigno e
argumento.
Entretanto, faremos um recorte na teoria e na microssérie para que essa abordagem seja
possível. Como já foi mencionado no tópico introdutório deste trabalho, será analisada a
significação/simbologia do número sete. Na teoria, abordaremos a primeiridade e terceiridade
que estão contidas na secundidade, ou seja, o ícone e o símbolo. No que concerne ao ícone é o
signo icônico diagramático, o qual representa a tradução intersemiótica por estabelecer uma
relação de analogia interna entre os elementos em comparação, entre a peça e a microssérie.
No que diz respeito ao símbolo, este será abordado para explicarmos a função do número na
narrativa, tanto do texto literário quanto do audiovisual, para que possamos compreender a
representação geral que este signo pode fazer de hábitos, por exemplo, que são vinculados à
cultura ocidental como é o caso do caráter místico que ele possui.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 521
A partir desta relação de representação em que um elemento em relação com um segundo
produz um terceiro, podemos apreender que o processo tradutório intersemiótico nada mais é
do que a representação de um signo verbal por um outro sistema sígnico, neste caso
audiovisual. Uma linguagem sofre um processo metamórfico e se transforma em outra,
contendo em sua essência os signos de sua anterior.
A Tradução Intersemiótica é uma relação diádica entre o signo e o que ele representa para
isso esse signo em questão é um símbolo, pois ele precisa ter uma convenção para que as suas
qualidades possam ser reconhecidas na outra linguagem. Embora a relação diagramática entre
esses elementos seja icônica. Pois se estabelece uma relação de equivalência entre as partes,
em que uma possui as características pertencem à outra. Para podermos entender o porquê do
símbolo ser o signo envolvido nesses processo de interpretação, recorramos a Santaella para
elucidar essa questão:
Note-se que, por isso mesmo, o símbolo não é uma coisa singular, mas um tipo
geral. E aquilo que ele representa também não é um individual, mas um geral. Assim
são as palavras. Isto é: signos de lei e gerais. [...] O objeto representado pelo símbolo
é tão genético quanto o próprio símbolo. Desse modo, o objeto de uma palavra não é
alguma coisa existente, mas uma ideia abstrata, lei armazenada na programação
linguística de nossos cérebros (1995, p. 14).
Perceberemos que interpretar o número sete como um dos signos que compõem a
narrativa da microssérie possui toda uma significação vinculada aos costumes da sociedade
ocidental desde a bíblia, tradição da hatha-ioga, passando pelo período medieval e chegando
até os nossos dias mesmo que não percebamos, mas estes signos atuam em nosso pensamento
ainda que não nos dermos conta que estamos pensando.
Ao traduzirmos, estamos transpondo os elementos que compõem uma linguagem em
outra. A imagem se traduz no “signo pensamento”, havendo, segundo Peirce no livro
“Semiótica” da coleção estudos (2003, p. 11), “uma relação de razão entre o signo e a coisa
significada”. Para tanto, todo a significação produzida pelos signos em seus vários níveis
(primeiridade, secundidade e terceiridade) atuaram em conjunto para que possamos perceber
as característica, relações factuais/indexicais e seus ajustes/combinações de acordo com o
período e lugar para que possam ser contextualizados de acordo com os conceitos que os
envolvem.
O simbolismo e o número sete: uma relação diagramática
Nas fronteiras da linguagem ǀ 522
A iconografia do crânio se apresenta como um legisigno icônico de morte, do resgate do
gênero humano por Jesus e de renascimento. As profecias do Antigo Testamento já
estabeleciam a sua correlação com a ressurreição, aparecendo também nos trajes dos monges
eremitas e aos pés de Maria Madalena para significar a morte para o mundo e o seu amor a
Deus. Assim aparece em Som e Fúria, quando Oliveira pega a fotografia (figura 1) na parede
do camarim de Elen, na qual ele está ao centro e beijando o crânio utilizado na apresentação
de Hamlet, significando um prenúncio do que lhe acontecerá após a apresentação de Sonho de
Uma Noite de Verão.
Figura 1. Fotografia tirada após a apresentação de Hamlet
O crânio implica em uma série de atributos inteligíveis que podem estar vinculados a
interpretações de caráter místico ou não. Uma das interpretações, que ela pode apresentar, diz-
nos que a vida é algo efêmero e volátil ao mostrar que não se pode escapar da morte.
O crânio de acordo com Chevalier (2009, p.298) representa a "sede do pensamento”,
assim como o Rei Hamlet nunca saiu do pensamento de seu filho, o mesmo acontece com
Dante e Oliveira e isto é reforçado a todo o momento durante a minissérie, mesmo antes de
Oliveira morrer, quando este está assistindo à encenação de Sonho de Uma Noite de Verão
junto com Naum (Gero Camilo) quando passa na televisão uma reportagem na qual Dante
está sendo preso porque não pagou o aluguel do teatro. Daí em diante, Oliveira aparece na
vida de Dante como um fantasma do passado e que mesmo depois de ter morrido, ele não o
abandona. Servindo assim para expressar a relação do ser humano com a vida e a morte.
O crânio que em Hamlet é de Yorick, na minissérie ele é apresentado como o crânio de
Oliveira, essa relação é mantida, pois de acordo com Harold Bloom, o bobo Yorick aparece na
peça como um segundo pai para o príncipe dinamarquês, fato este que já fora explicado
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anteriormente e o enterro de Ofélia foi transmutado para a minissérie sob a forma do funeral
de Oliveira. Vejamos:
Figura 2. Preparativos para o funeral de Oliveira
Da mesma forma que na peça há dois coveiros e que um canta enquanto abre a sepultura
para Ofélia, em Som e Fúria há dois agentes funerários que após embalsamar o corpo de
Oliveira, tocarão acordeom e violino no momento em que Dante chega para se despedir do
amigo.
É nessa relação de Oliveira com Yorick e o prenúncio de sua morte (imagem 16) tendo a
fotografia com uma função anafórica ao mostrar o crânio nas mãos da personagem que
apresenta a “sua função de centro espiritual, o crânio é muitas vezes comparado ao céu do
corpo humano” (CHEVALIER, 2009, p. 299), estabelecendo uma relação de troca entre o céu
e a terra, na qual as personagens de pai, na peça e na minissérie, criam um caminho como uma
escada entre dois mundos através da identificação do filho com o seu genitor.
A palavra crânio em Hamlet é mencionada sete vezes, é uma alegoria que representa
pensamentos, ideias e qualidades sob forma figurada, mas que em cada elemento funciona
como disfarce dos elementos da ideia representada, do seu estado de espírito de acordo com a
forma a qual ele reage com o espectro de seu pai, assim também é Dante. Enquanto a
personagem literária escreve o quinto ato e ao mesmo tempo em que vive o seu dilema
familiar, ele não deixa de interpretar o próprio papel que ele escreveu, quer dizer, é difícil
saber quando o príncipe não está encenando. Sendo assim metalinguística, uma peça dentro de
outra em que todos são meramente atores, encenando sua peça/vida em cinco atos. É nesse
contexto de alegoria que aparece o número sete nessa conjuntura mística da peça em que
Nas fronteiras da linguagem ǀ 524
também há a aparição de espectros e esse número está presente no início da minissérie, logo
após o surto de Dante na imagem a seguir:
Imagem 3. Sete anos após o desastre da apresentação de Hamlet
Este número proporciona um interessante debate sobre o caráter simbólico de sua
presença na tragédia em que a sua aparição de forma explícita acontece com Lates:
Oh, fogo, consome meu cérebro! Lágrimas sete vezes salgadas, queimem a função e
o valor dos meus olhos! Juro pelos céus, tua loucura será paga em peso até que o
braço da balança penda para o nosso lado. Ó rosa de maio, virgem amada, boa irmã,
gentil Ofélia! (SHAKESPEARE, 2012, p. 592).
Este número está relacionado com a trindade (pai, filho e espírito santo) e com os quatro
elementos (terra, fogo, água e ar), se observarmos com atenção, a referência ao divino que é
feita quando Laertes jura pelos céus, ou seja, jura pela divindade. Os elementos da natureza,
por sua vez, são mencionados nas palavras fogo, lágrimas (referência à água), céus (podendo
ser abstraído como o ar) e rosa (a qual está vinculada a terra). Além disso, está relacionado à
criação do universo, os sete dias da semana, a relação do divino com o terreno (espectro do
Rei Hamlet e sua aparição para o filho e a de Oliveira para Dante), por fazer parte do ciclo
que consiste em perdoar para ser perdoado, atuando como o olvido total das ofensas, sendo
sincero e generoso com quem o ofendeu, tal qual faz Dante com Oliveira.
Percebe-se que esse simbolismo em torno do número sete está presente nos textos
bíblicos: Caim é amaldiçoado sete vezes. Lameque, por sua vez, é castigado setenta vezes
sete. Adão tem outro filho que se chama Sete e que veio no lugar de Abel. Este número, de
acordo com o ocultismo, algumas religiões e seitas, estabelece uma relação entre o divino e o
humano.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 525
Ser divino ou ser humano? Eis a questão. Como o pecado está relacionado ao humano e o
perdão ao divino, nota-se um ciclo em que começa com o pecado cometido por Caim, depois
o de Lameque e ele conclui com o nascimento de Sete para ocupar o lugar de Abel, assim
como Fortinbrás ocupa o de Hamlet, que começou a invocar o nome do Senhor. Sete vai
reunir em si a relação bem versus mal, humano/divino, pecado/perdão, pois ao “assumir o
lugar de Abel” como se fosse a sua reencarnação, ele é o elo entre todos os acontecimentos. O
pecado e o perdão. Assim como acontece com o Rei e Oliveira, aos quais todos os
acontecimentos estão relacionados.
Mas há também as correlações implícitas com este número, como por exemplo, a
quantidade de solilóquios de Hamlet que se assemelha a quantidade de súplicas do Pai Nosso.
Súplicas:
Santificado seja o Vosso nome;
Venha a nós o Vosso reino;
Seja feita a Vossa vontade, assim na Terra como no Céu;
O pão nosso de cada dia nos dai hoje;
Perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem de ofendido;
Não nos deixeis cair em tentação;
Livrai-nos do mal.
Solilóquios:
O espírito de meu pai! E armado! Nem tudo está bem;
Oh, que esta carne tão, tão maculada, derretesse, (...)
Agora estou só. Oh, que ignóbil eu sou, que escravo abjeto!
Ser ou não ser – eis a questão.
Agora chega a hora maligna da noite, (...)
Eu devo agir é agora; ele agora está rezando.
Todos os acontecimentos parecem me acusar, (...)
Esse número tão presente na obra literária também possui seu papel de destaque na
minissérie, ao começar com o período que Dante passou fora do teatro e pela última produção
de Sonho de Uma Noite de Verão de Oliveira, a qual era o seu sétimo sonho que, assim como
na tradição da hatha-ioga que busca alcançar os sete chacras que é considerado a perfeição.
No panorama da Europa Medieval, o número sete possuía grande relevância como os sete
dons do Espírito Santo, as sete virtudes, as sete artes, as sete ciências, os sete sacramentos, os
sete pecados capitais e as sete petições expressas no Pai Nosso. É nessa relação de
transformação, concebendo a expressão do indivíduo para identificar o misticismo, na
Nas fronteiras da linguagem ǀ 526
constante busca de Hamlet pelo conhecimento através de seus questionamentos infindáveis
que se desenvolve a peça, por possuir ideias únicas e incompreendidas na obra. Mostrando
para o leitor e telespectador que as personagens Hamlet e Dante, ao contrário das outras, estão
em constante evolução enquanto os outros aparecem acabados/completos, os quais estão
inseridos em um grande circuito em que tudo é transitório.
É com esse aspecto metamórfico que Hamlet se apresenta durante a sua trajetória,
perceptível também a sua evolução nos solilóquios como se marcassem o amadurecimento da
personagem de acordo com a convivência que ele possui com as pessoas que traíram o seu pai
e agora o trai, que a personagem se apresenta para o leitor como se ele mesmo estivesse
escrevendo a peça, além de aparecer duas vezes na própria história como o Rei Hamlet dá
início à história, mesmo estando morto, e o seu filho a conclui como se fossem uma única
pessoa a observar as atitudes dos que o cercam. Nesse momento entra em cena, mais uma vez,
o número sete, assim como uma missa de sétimo dia para o Rei que já morrera, as
verbalizações em primeira pessoa de Hamlet com a sua própria consciência iniciam e
concluem com um mesmo tema morte. E, como não é de se espantar, todas as pessoas que
tramaram contra Hamlet morrem ao final, fechando um conjunto de sete mortes Polônio,
Ofélia, Guildenstern, Rosecrantz, Laertes, Gertrudes e Cláudio.
Conclusão
Parecemos ser una especie que es llevada por el deseo de hacer significados: sobre
todo, de seguro que nosotros somos Homo significans – es decir, creadores - de
significados. Y es esta creación-de - significados que está em el corazón de las
preocupaciones de los semióticos. Em la semiótica, los ‘signos’ son unidades
significativas que toman la forma de palabras, de imágenes, de sonidos, de gestos o
de objetos. Tales cosas se convierten en signos cuando les ponemos significados1.
[Fidalgo]
Ao término deste trabalho, chegamos à conclusão que tudo a nossa volta tem um
significado que é resultado de associações ou convenções que nós mesmos fazemos para que
possamos ligar o significado de uma coisa à outra, tendo em vista o contexto social. A partir
disso se torna possível colocar um elemento em termos de outro e compará-los.
1 Aparentemente, somos uma espécie que é movida pelo desejo de produzir sentido: acima de tudo, estamos
certos de que o homo sapiens - ou seja – criador de significado. Esta criação é, portanto, o cerne das ponderações
semióticas. Na semiótica, os "signos" são unidades dotadas de sentido que tomam a forma de palavras, imagens,
sons, gestos ou objetos. Estas unidades tornam-se signos quando as preenchemos de significados. (Tradução
nossa)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 527
Esses elementos podem ser imagens, gestos ou objetos, como Fidalgo exemplifica na
citação acima. Esses signos tornam possível comparar dois tipos de linguagem, como fizemos
nesse trabalho, e compreender que o argumento, a terceiridade da terceiridade na Teoria Geral
dos Signos de Charles Sanders Peirce, por nós construído advém do compartilhamento de
características que peça Hamlet e a microssérie Som e Fúria apresentam, além dos símbolos
presentes em ambas que possibilitaram ampliar a leitura dos dois textos.
Referências
ANDREW, J. D. As principais teorias do cinema: uma introdução. Tradução de TerezaOttoni.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2002.
CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos.Trad. De Vera Costa e Silva.
Rio de Janeiro: J. Olympio, 2009.
FERRAZ JÚNIOR, E. Semiótica aplicada à linguagem literária. João Pessoa: UFPB, 2012.
FIDALGO, A. Semiótica: A Lógica da Comunicação. Portugal: UBI. 1998.
FIDALGO, A.; GRADIM, A. Manual de Semiótica. Portugal: UBI. 2004.
NÖTH, W. Panorama da semiótica: de Platão a Peirce. 3. ed. São Paulo: Annablume, 2003.
PEIRCE, C. S. Semiótica. São Paulo: Perspectiva.3. ed., 2003.
PLAZA, J. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.
SHAKESPEARE, W. Shakespeare: Obrasescolhidas. Tradução de Millôr Fernandes. Porto
Alegre: L&PM, 2012.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 528
ENSINO, ESCRITA E AUTORIA: A CONSTITUIÇÃO DO
SUJEITO-AUTOR NO CONTEXTO ESCOLAR [Voltar para Sumário]
Cleide Calheiros da Silva (UFAL/IFAL)1
Antonio Cesar da Silva (UFAL/UNEAL)2
1. Concepções de autoria no espaço-escola – um recorte histórico
Realizar uma reflexão acerca dos processos de autoria dentro da escola é de grande
relevância para o trabalho de todos os professores – especialmente para o trabalho dos de
língua materna. Os professores de língua portuguesa, por vezes, ao realizar as leituras das
produções de seus alunos, têm a nítida impressão de já ter lido determinado texto em outra
oportunidade. Tem de fato a impressão de estar lendo o mesmo texto mais uma vez. Esse
efeito de reconhecimento acontece sempre que o autor não trabalha o seu como dizer no
processo de construção textual.
Não se evidencia aí o fato de o aluno não saber discutir temáticas relevantes que lhe
são propostas em sala de aula ou que as discutam de forma extremamente previsíveis. Ao
contrário disso, pois se bem observadas as produções textuais elaboradas pelos alunos, no
período escolar, fica evidente a competência deles quanto ao conteúdo abordado. Ou seja,
definitivamente, o problema não é de conteúdo.
Então, por que existe o encantamento por determinados textos e por outros não? O que
faz com que um texto seja interessante para o leitor? De onde se origina o efeito de
1 Mestranda em Educação Brasileira – PPGE/CEDU/UFAL - Linha e Grupo de Pesquisa: Educação e
Linguagem. Professora de Língua Portuguesa do Instituto Federal de Alagoas (IFAL). 2 Mestrando pelo programa PROFLETRAS – UFAL. Especialista em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira
pela Universidade de São Paulo / Academia Alagoana de Letras (UNICID/AAL). Graduado em Letras pela
Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Professor substituto de Língua Latina na Universidade Federal de
Alagoas (2004 - 2206). Professor de Língua Latina e Língua Portuguesa na Faculdade de Formação de
Professores de Penedo (2003 - 2007). Professor de Língua Latina, Linguística e Língua Portuguesa na
Universidade Estadual de Alagoas (2009 - 2015). Professor do quadro de professores da Secretaria Estadual
de Educação de Alagoas (SEED) e do quadro da Secretaria Municipal de Educação de Maceió (SEMED).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 529
singularidade de que certos textos são constituídos? Essas são questões bastante relevantes
para quem se propõe a trabalhar com textos produzidos no ambiente escolar, pois elas
remetem às noções de autoria e de singularidade. A materialidade discursiva dá a
oportunidade de desvendar os processos de constituição da autoria. E dos processos vem
sempre à tona um sujeito que, inscrito no discurso, relaciona-se com ele de diversas maneiras,
tomando como base as regras sociais em que o discurso acontece.
Pensar o sujeito produtor de textos, dentro de um contexto escolarizado de língua
materna, é pensar nele na perspectiva dos diferentes modos de dizer presentes no processo de
produção textual, assim como o fizeram os autores acima citados. Isso nos impulsiona a
discutir questões acerca da natureza do que é o autor e de que forma a autoria se faz presente
nos mais diversos gêneros trabalhados dentro do universo escolar. Desta forma, pensar no
processo de produção de texto é pensar de que forma se configura a autoria e de que forma o
sujeito-produtor-de-texto adquire a posição de autor.
Por se tratar de um assunto muito importante para o entendimento da relação
aluno/produção textual/autor(ia), inúmeros são os questionamentos acerca dessa temática, tais
como: O que é de fato um autor? Como o autor se constitui no espaço escolar? É autor apenas
quem funda discursividades? Como se dá o processo de autoria dentro da escola? A escola
desenvolve o processo autoral dos alunos-produtores-de-textos? Que critérios existem para se
identificar um texto autoral na escola? De que forma os alunos se apropriam cada vez mais de
sua condição de sujeito-autor no ato da produção de texto na escola? De que maneira a escrita
autoral pode ser entendida como a consolidação de um processo? E esse processo pode se
configurar tomando como base as marcas subjetivas do autor? Quais seriam e como poderiam
ser organizados os indícios de autoria em textos de alunos? Enfim, como identificar a
presenca do autor – como encontrar autoria num texto, como distinguir textos com de textos
sem autoria?
Quando o sujeito se deixa perceber em seu próprio dizer, o texto – evidentemente –
aponta para o seu autor. E é exatamente nesse processo que o sujeito ora minimiza a
intensidade de sua presença, ora se deixa perceber de forma mais incisiva. Diversos estudos já
demonstraram que há vários indícios que indicam a presença do sujeito-autor nos enunciados
que produz, tais como:
a. A partir da escolha de determinadas marcas linguístico-discursivas usadas pelo
sujeito na construção de seus textos, pode-se encontrar sua inscrição na linguagem;
b. O fato de o aluno realizar a adequação à norma gramatical padrão da língua
portuguesa em seus textos, ou seja, o uso do registro linguístico mais adequado às
Nas fronteiras da linguagem ǀ 530
expectativas do gênero textual empregado dentro de uma situação institucional
formal traz grandes informações a respeito do processo de autoria do aluno;
c. A exatidão do vocabulário escolhido no contexto de enunciação também denuncia
que o aluno faz uso do vocábulo mais apropriado para verbalizar sua intenção
enquanto autor ciente do seu dizer;
d. O uso competente dos elementos de coesão e dos operadores argumentativos na
construção dos textos, articulando uma relação gramatical e/ou argumentativa dentro
deles;
e. A presença de verbos e de advérbios modalizadores e suas respectivas locuções;
f. O uso comedido dos adjetivos elogiosos e o ato de fazer a inserção de pronomes
pessoais (primeira pessoa do singular ou do plural) no texto evidenciam também a
presença do autor;
g. A criação de expressões nominais para individualizar determinados referentes de
modo bem característico dentro da construção textual, num claro exemplo de
inventividade do autor quando realiza a recategorização de referente já presente na
cadeia do discurso – e quando da produção de paráfrases, por se tratar de um
procedimento de retomada de um conjunto de enunciados pronunciados por sujeito e
repronunciados pelo autor de maneira própria, mantendo, contudo, o mesmo
conteúdo semântico dos enunciados de origem;
h. A inclusão de informações diferenciadas, de subsídios novos difundidos pelo
autor, capazes de transformar o enfoque a respeito da temática em discussão e
surpreender o leitor pelo elevado nível de inovação e o intento de dar resposta ou
sugerir solução a uma situação-problema, a uma provocação ou a uma questão no
processo de interação mostra-se, assim como nos casos citados anteriormente, como
indícios de autoria.
Os sujeitos precisam, no entanto, se dar conta disso, para que possam cada vez mais
instaurar sua “identidade linguística” naquilo que escrevem. Trata-se de uma maneira de
demonstrar o que pensa acerca do assunto em discussão e de, ao mesmo tempo, trazer a
responsabilidade do discurso para si mesmo também. É preciso analisar os dados, por meio de
um mecanismo de apreciação e de interpretação, para compreendê-los na constituição de
textos com autoria. As escolas – mais especificamente os professores de língua portuguesa –
precisam desenvolver no aluno a consciência do papel que ele tem de sujeito-autor, ao
escrever seus textos/discursos.
A prática de produção de texto tem de absorver a noção de autoria que vê o aluno
como sujeito-autor daquilo que enuncia. Esse entendimento dará condições para o aluno
assumir uma escrita autoral e para os interlocutores dos seus textos encontrarem a inscrição
desses sujeitos na linguagem de uma forma mais factual. A partir dos anos 60, muitos
pensadores, tais como Roland Barthes (2012), Michel Foucault (1992), Bakhtin (1992; 2011)
e Sírio Possenti (2001; 2002) vêm significando e ressiginificando o conceito de sujeito-autor e
de autoria. Para que o processo de escrita autoral ganhe espaço na escola, faz-se
imprescindível compreender como a noção de autor e de autoria se constituiu ao longo da
história.
2. A morte do autor – escrita rápida e irrefletida
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 531
Barthes, em 1968, escreveu o polêmico e notável texto “A Morte do Autor”. Nele,
deixou evidente que a noção de autoria, como difundida na modernidade, vivia seu declínio.
No texto, é enfático ao dizer que o autor é um sujeito social e instituído de acordo com a
história. O sujeito-autor, para ele, não existe fora da linguagem nem muito menos existia antes
dela, ele é fruto da ação de escrever. Para o teórico, o autor só se faz autor quando escreve.
Para confirmar sua tese, o filósofo trazia à tona algumas teorias que colocavam o conceito de
autor dentro de uma visão restrita do termo.
Barthes fortaleceu seu pensamento mostrando que teóricos já tinham se colocado acerca
da questão da autoria e, com isso, tinham apontado sérias limitações. Ele se apoiou também
no Surrealismo, que trabalhava com uma escrita rápida e irrefletida, para ponderar sobre a
presença ou a ausência da autoria nos textos. E, finalmente, para o teórico, a Linguística veio
mostrar que os enunciados são construções vazias e funcionais. Ele era mais um dentre tantos
autores que criticavam a noção de autor ligada à ideia de um sujeito que escrevia de forma
singular para extravasar suas demandas interiores.
Segundo Barthes (2012), o afastamento do autor daquilo que escreve é um fato
histórico ou um ato de escritura, pois, quando da leitura de um texto, não se perde a presença
do autor. Para Barthes, um texto é um espaço de diversas dimensões. Nesse espaço – de
convergências e divergências – não há originalidade nas escrituras, já que o texto é um tecido
emaranhado de citações, provenientes das múltiplas culturas. Barthes (2012) ainda nos diz
que o escritor, no seu processo de escritura, imita sempre um gesto anterior, nunca original,
tendo como poder apenas a possibilidade de entrelaçar as escrituras. Dessa forma,
Sucedendo ao Autor, o escritor já não possui em si paixões, humores, sentimentos,
impressões, mas esse imenso dicionário de onde retira uma escritura que não pode
ter parada: a vida nunca faz outra coisa senão imitar o livro, e esse mesmo livro não
é mais que um tecido de signos, imitação perdida, infinitamente recuada.
(BARTHES, 2012, p.62).
Uma vez afastado o autor, a pretensão de “decifrar” um texto se torna totalmente inútil,
para Barthes (2012). Para ele, dar ao texto um autor é impor-lhe um travão, é prevê-lo de um
significado último, é fechar a escritura. Essa concepção convém muito à crítica, que quer dar-
se então como tarefa importante descobrir o autor (ou as suas hipóteses: a sociedade, a
história, a psiquê, a liberdade) sob a obra – encontrado o autor, o texto está “explicado”, o
crítico venceu; não é de admirar, portanto, que, historicamente, o reinado do autor tenha sido
Nas fronteiras da linguagem ǀ 532
também o do crítico, nem tampouco que a crítica (mesmo a nova) esteja hoje abalada ao
mesmo tempo que o autor. Para Barthes (2012),
Assim se desvenda o ser total da escritura: um texto é feito de escrituras múltiplas,
oriundas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em
paródia, em contestação; mas há um lugar onde essa multiplicidade se reúne, e esse
lugar não é o autor, como se disse até o presente, é o leitor: o leitor é o espaço
mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é
feita uma escritura; a unidade do texto não está em sua origem, mas no seu destino,
mas esse destino já não pode ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem
biografia, sem psicologia; ele é apenas esse alguém que mantém reunidos em um
mesmo campo todos os traços de que é constituído o escrito. (BARTHES, 2012, p.
64).
Na escritura múltipla, conforme Barthes (2012), com efeito, tudo está para ser
deslindado, mas nada para ser decifrado; a estrutura pode ser seguida, “desfiada” em todas as
suas retomadas e em todos os seus estágios, mas não há fundo; o espaço da escritura pode ser
percorrido, e não penetrado; a escritura propõe sentido sem parar, mas é sempre para evaporá-
lo: ela procede a uma isenção sistemática do sentido.
3. Apagamento do sujeito versus surgimento do autor
Michel Foucault (1969) levantou a polêmica questão em relação à morte do autor. Para
o teórico, a morte do autor é bastante questionável e complexa, já que sua existência é real,
mesmo depois de sua morte. Para ele, o que define exatamente o autor é a sua relação com
uma obra ou com uma discursividade. Assim, Foucault abriu imensas possibilidades – ao
contrário de Barthes – de investigação acerca desse assunto. O entrave existente em sua teoria
está no fato de como compreender a autoria em textos que não sejam reconhecidamente uma
obra ou uma discursividade. Ou seja, para Foucault, só existe autor quando existe uma obra
que possa – indiscutivelmente – ser associada a esse autor.
É, portanto, a figura do autor que dá unidade a uma obra, de acordo com Foucault.
Porém, é importante salientar que, para o teórico, a noção de autor é discursiva, porque a
construção deste se dá por meio de um conjunto de textos que lhe é atribuído, levando-se em
consideração uma série de fatores inerentes ao que produz e enuncia. É por isso que fica tão
evidente, nos estudos de Foucault, a distinção entre autor (aquele que é reconhecido pelo
modo como seus discursos são vistos e considerados em distintas épocas em cada sociedade)
e escritor (aquele que escreve).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 533
Depois de pouco tempo, Foucault, em seu texto “O que é um Autor?”, avoluma o
pensamento de Barthes acerca do apagamento do sujeito enquanto autor do que escreve.
Foucault afirma que a escrita, na contemporaneidade, é marcada pela prática, não pelo
resultado, não importando, assim, quem de fato escreve. O teórico é categórico ao dizer que a
escrita se distanciou da questão da expressividade, pois ela se identifica com sua própria
aparência, com aquilo que lhe é exterior. Foucault salienta que
Um nome de autor não é simplesmente um elemento em um discurso (que pode ser
sujeito ou complemento, que pode ser substituído por um pronome etc.); ele exerce
um certo papel em relação ao discurso: assegura uma função classificatória; tal
nome permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los, deles excluir
alguns, opô-los a outros. Por outro lado, ele relaciona os textos entre si.
(FOUCAULT, 1992)
O fato de existir um nome de autor, para Foucault (1992), portanto, indica que o
discurso não é aleatório, indiferente, transitório, mas constituído de uma forma que lhe dá o
devido status. O teórico vai mais adiante ao dizer que o nome do autor manifesta a existência
de uma diversidade de discursos e de sua singular forma de ser. Para o autor, a função-autor é
característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no
interior de uma sociedade. Um discurso portador da função-autor, para Foucault (1992), deve
possuir as seguintes características: a) inicialmente, elas são objetos de apropriação; b) a
forma de propriedade da qual elas decorrem é de um tipo bastante particular; c) ela foi
codificada há um certo número de anos.
Barthes e Foucault dão conta, em suas teorias, do desaparecimento do sujeito-autor,
especialmente, porque acreditavam também que seu aniquilamento ocorreu devido à ideia de
que ele existia para cumprir um lugar dentro da composição discursiva. Foucault (1992), em
seu texto "O que é um autor?", relata que na antiguidade os textos circulavam sem que seus
autores precisassem ser identificados, pois se acreditava até então que as narrativas, as
epopeias, as tragédias, os contos e as comédias já possuíam garantia satisfatória de
autenticidade. Sobre isso, Foucault diz que
O nome do autor funciona para caracterizar um certo modo de ser do discurso: para
um discurso, o fato de haver um nome de autor, o fato de que se possa dizer "isso foi
escrito por tal pessoa", ou "tal pessoa é o autor disso", indica que esse discurso não é
uma palavra cotidiana, indiferente, uma palavra que se afasta, que flutua e passa,
uma palavra imediatamente consumível, mas que se trata de uma palavra que deve
ser recebida de uma certa maneira e que deve, em uma dada cultura, receber um
certo status. (FOUCAULT, 1992)
Nas fronteiras da linguagem ǀ 534
Isso não quer dizer que o autor não existe para Foucault, quer dizer que “o autor deve se
apagar ou ser apagado em proveito das formas próprias ao discurso”. (FOUCAULT, 1992).
Para o teórico, o preceito do apagamento do escritor ou do autor consente expor o jogo da
função-autor, a definição de como se desempenha tal função, em quais circunstâncias, em que
campo e as condições nas quais é plausível que um indivíduo preenchesse a função do sujeito,
enfim.
4. O autor-criador bakhtiniano
Já para Bakhtin, em seu texto “O autor e o herói na atividade estética”, o autor-pessoa [a
pessoa física] é diferente do autor-criador [função estética e formal engendradora da obra]. O
autor-criador é, segundo o filósofo, parte integrante do objeto estético, ou seja, é o sujeito-
criador que dá suporte ao produto composicional arquitetônica e esteticamente produzido. O
autor-criador é uma posição estética e formal que torna palpável uma determinada relação
axiológica com o herói e seu mundo. Faz-se imprescindível destacar que uma posição
axiológica não é um constituinte único e homogêneo. E é essa posição axiológica que dará
forma ao conteúdo. Conteúdo este que poderá ser trabalhado a partir de múltiplas
perspectivas. Para Bakhtin,
O autor-criador nos ajuda a compreender também o autor-pessoa, e já depois suas
declarações sobre sua obra ganharão significado elucidativo e complementar. As
personagens criadas se desligam do processo que as criou e começam a levar uma
vida autônoma no mundo, e de igual maneira o mesmo se dá com o real criador-
autor. (BAKHTIN, 2011, p. 6)
Quando o autor-criador materializa o conjunto, consequentemente, apropria-se da
linguagem, não como código somente, mas – e especialmente – como enunciado concreto nas
mais variadas significações axiológicas. A materialidade da arte, para o teórico, deve ser
sempre superada, pois deve ultrapassar a questão da norma em si, a transposição automática
dos enunciados concretos para atingir a língua em uso para um outro modelo de valor. Dessa
forma, para Bakhtin, o autor-criador é – ao mesmo tempo – uma posição que se constitui a
partir de uma posição axiológica delineada pelo campo de valor do autor-pessoa; e, por meio
dessa posição axiológica do autor-pessoa, é que os eventos da vida se constituem. Para o
Círculo de Bakhtin, é bom lembrar que os procedimentos semióticos – concomitantemente –
refletem e refratam o mundo. Para Bakhtin,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 535
O autor deve estar situado na fronteira do mundo que ele cria como seu criador
ativo, pois se invadir esse mundo ele lhe destrói a estabilidade estética. [...] O autor
ocupa uma posição responsável no acontecimento do existir, opera com elementos
desse acontecimento e por isso a sua obra é também um momento desse
acontecimento. (BAKHTIN, 2011, p. 177)
Não é a forma externa do texto que lhe dá, essencialmente, a uniformidade, conforme os
estudos de Bakhtin. Esta lhe é dada – no momento da criação – por meio de um variado
agrupamento de relações valorativas que estão presentes na hora da produção. Olhar para o
texto é, por conseguinte, olhá-lo a partir de uma visão macro. É olhá-lo a partir de suas inter-
relações de dialogia e de axiologia para lhe dar uma resposta, uma vez que o ato da
compreensão é por natureza responsivo. É de grande importância, de acordo com Bakhtin,
não analisar um texto de forma abstrata (meramente linguística, por exemplo), já que é nas
relações de dialogia e de axiologia que ele se constitui enquanto texto. Para Bakhtin (1998), o
discurso assinala uma relação de alteridade, pois
[...] Qualquer discurso da prosa extra artística – de costumes, retórica, da ciência, –
não pode deixar de se orientar para o “já-dito”, para o “conhecido”, “para a opinião
pública” etc. A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio de todo
discurso. [...] Para o discurso humano, concreto e histórico, isso não é possível: só
em certa medida e convencionalmente é que pode dela se afastar (BAKHTIN,
[1975], 1998, p. 88).
São inúmeros os sistemas que margeiam a vida do sujeito, em seu cotidiano. Isso nos
consentiria pensar, a princípio, que seu livre-arbítrio estaria comprometido, já que as pressões
são múltiplas. Mas, ao contrário disso, é fato que ainda existem silêncios para que ele possa
preenchê-los a partir de suas atitudes e opções verbais, ao elaborar seus discursos e suas
tomadas de decisão. É preciso esclarecer que o texto, enquanto evento polifônico, admite a
presença do outro na essência do seu próprio discurso, as vozes dos outros se combinam com
a voz do sujeito-autor. Essas vozes são de natureza social, para Bakhtin.
Não é tarefa fácil para o sujeito ter autonomia discursiva diante de estruturas tão
arraigadas socialmente. Porém, necessariamente possível, ao contrário do discurso ensaiado
nos mais distintos espaços de educação do país, quando o professor, especialmente o de
língua portuguesa, ao dizer que o aluno é um mero reprodutor dos discursos que consome
socialmente e que dificilmente se liberta deles em seus escritos, por causa da grande alienação
a que são submetidos diariamente.
Os sujeitos conseguem fugir desse estigma quando, diante de um universo de
elementos alegóricos e de recursos linguísticos, selecionam um em detrimento de outro para
produzir seus discursos. Trata-se do exato momento em que o sujeito, nessas construções e
Nas fronteiras da linguagem ǀ 536
desconstruções, subverte a linguagem, com o objetivo de se distanciar do discurso “enlatado”
estabelecido pelas esferas econômica, política e social. Ao contrário disso, em muitas
situações, o sujeito tem de adequar o seu dizer e o seu fazer às limitações que lhe são
impostas, nas mais distintas situações do cotidiano. O que muitas vezes faz com que o sujeito
não expresse o que realmente gostaria de dizer.
5. A autoria que abre aspas para a singularidade
Ao contrário de Barthes e Foucault (mais próximo de Bakhtin), Possenti – em
inúmeros trabalhos – oferece aos seus leitores um novo olhar para a noção de autoria. Este
propõe uma redefinição da noção de autoria, a fim de que ela possa ser vista não somente em
textos que fazem parte de uma obra ou de uma discursividade, mas também em outros textos.
Por isso mesmo, Possenti (2002) aponta o fato de a nova noção de autoria estar diretamente
atrelada à noção de singularidade, que, por sua vez, já remete à noção de estilo – que para ele
trata-se de uma determinada forma de organizar uma sequência de qualquer tamanho,
deixando evidente que o que se faz de relevante nesse processo é como se efetiva a relação
entre a organização e o efeito de sentido que será produzido a partir disso.
Possenti (2002) diz, portanto, que “é impossível pensar na noção de autor sem
considerar de alguma forma a noção de singularidade, que, consequentemente, não poderia
escapar de uma aproximação com a questão do estilo”. Trata-se, dessa forma, de tornar prática
essa noção – quem sabe detectável em descrições, em indicativos, como os riscos de que isto
seja percebido como uma proposta que se alcance ao enumerar traços imprescindíveis e
satisfatórios. Para o autor,
Os elementos fundamentais para repensar a noção, imagino, são os seguintes: por
um lado, deve-se reconhecer que, tipicamente, quando se fala de autoria, pensa-se
em alguma manifestação peculiar relacionada à escrita; em segundo lugar, não se
pode imaginar que alguém seja autor, se seus textos não se inscreverem em
discursos, ou seja, em domínios de “memória” que façam sentido; por fim, creio que
nem vale a pena tratar de autoria sem enfrentar o desafio de imaginar verdadeira a
hipótese de uma certa pessoalidade, de alguma singularidade. (POSSENTI, 2001, p.
15-21)
O que fica evidente, nos estudos de Possenti, é que textos com autoria são aqueles em
que os sujeitos – ao arquitetarem um projeto de dizer – fazem-no de uma forma que se torna
possível apreender a presença marcante de um autor. E isso é possível graças ao fato de o
sujeito realizar um trabalho bem particular no seu dizer, ao manipular os elementos
linguísticos de que dispõe em seu repertório. Possenti ainda esclarece que o sujeito-autor, ao
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 537
realizar seu trabalho com a linguagem – de maneira consciente ou não – constrói seu texto de
forma bem singular. O que se pode concluir – a partir da noção de autoria expressa por
Possenti – é que um texto com autoria é um texto bem produzido. E com efeito de
singularidade. Ao contrário dos textos sem autoria – totalmente previsíveis.
Ao escrever, o sujeito deixa marcas que podem ser encontradas desde as primeiras
palavras do seu texto/discurso até a última. Podemos perceber o sujeito produtor de sentidos,
dentro das suas construções verbais, simplesmente pelo fato de que sua presença é concreta.
Por isso, faz-se imprescindível, o quanto antes, que o aluno tenha consciência disso, a fim de
que ele possa, no decorrer da sua história de escrevente, ir aperfeiçoando essa condição que
lhe é inerente: a de produtor de textos, nas mais distintas modalidades e situações de uso,
consciente de sua presença naquilo que escreve.
A apropriação das concepções de Possenti sobre autoria evidencia de que forma se
deve enxergar o efeito de singularidade presente nos textos dos alunos. E não só isso: os
estudos do autor permitem ir além do enxergar. Eles oportunizam a compreensão – não
somente da forma como os efeitos de singularidade são produzidos, bem como da produção
de outros efeitos, a exemplo da imposição de uma determinada leitura, de uma certa forma de
ver e refratar o mundo – já que os sujeitos-produtores-de-textos, ao exercitarem a autoria nos
seus escritos, eles utilizam-na de uma determinada posição, desenhando, dessa forma, aquilo
que dá a conhecer ao leitor.
Conduzir o aluno a se apropriar dos indícios de sua presença dentro dos textos que
produz, consequentemente, é competência da escola, que deve, em seu planejamento,
descobrir qual a melhor estratégia para conduzi-lo a essa assimilação de forma consciente. É
importante ressaltar que textos bem escritos, para Possenti, não são os que obedecem a
exigências de ordem textual ou gramatical. Não é assim que se constrói um texto de autor.
Para o teórico, o autor se faz autor quando assume duas atitudes: dar voz a outros
enunciadores e manter distância em relação ao próprio texto. Para o autor,
Locutores/enunciadores constituem-se enquanto tais em boa medida por manterem
sua posição em relação ao que dizem e em relação a seus interlocutores. Se, numa
conversa, suspendem “o que estão dizendo” para explicar-se, diante de alguma
reação do outro, visível ou imaginável, é disso que se trata (o locutor diz, por
exemplo, “não pense que estou exagerando”, “e olhe que não sou bairrista” etc.).
(POSSENTI, 2002, p. 173)
Nesse sentido, fica claro que o sujeito, fruto da inter-relação do social com o
ideológico, não constrói seu discurso sozinho. Seus enunciados constituídos dentro de uma
Nas fronteiras da linguagem ǀ 538
realidade histórica determinada/determinante são também de sua responsabilidade, pois o
movimento dialógico que estabelece com outros sujeitos lhe dá as condições necessárias para
ser atuante naquilo que escreve. Dessa forma, ao se comunicar, o sujeito põe em evidência o
caráter diversificado da língua, devido ao fato de ela ser suscetível às transformações
históricas, sociais e culturais.
6. A escola a caminho da “autoria”
Cabe à escola, a partir da mediação direta do trabalho pedagógico do professor,
apontar aos sujeitos os caminhos para que eles se apropriem da condição de autor daquilo que
enunciam, com o claro objetivo de compreender que nos enunciados que constroem há uma
margem não preenchida que pode ser habilmente descoberta e linguisticamente bem
aproveitada por eles, a fim de que produzam discursos cada vez mais autônomos – autorais.
Isso dará ao aluno maior competência para dizer de forma inventiva o que desejar
dizer. O trabalho criativo que se realiza com as formas da língua emerge, na verdade, quando
o dito é dito de uma forma bem singular. Na escola, são encontrados textos que são
verdadeiramente um celeiro do empenho do aluno no uso das formas linguísticas de maneira
competente e bem particular.
Quando o sujeito toma consciência das possibilidades de trabalhar a linguagem de
maneira criativa e subversiva, seus escritos passam a ser produzidos de forma bem singular, a
partir das inúmeras situações que a língua lhe oferece para realizar seu trabalho com grande
competência. Assim, nesse movimento de produção de sentidos autônomo, o sujeito se
constitui como autor do seu dizer.
O sujeito se torna autor quando manipula as formas linguísticas a fim de produzir
discursos singulares, não o é porque simplesmente cria o texto, mas porque o cria a partir de
todo um trabalho particular com a linguagem, utilizando-se, para essa construção, dos
elementos disponíveis no sistema. A função de autor que norteia este trabalho está voltada
para uma noção de sujeito-arquiteto-do-seu-dizer.
A autoria, portanto, neste trabalho, está ligada à noção de autor como sujeito
discursivamente constituído por seu dizer autoral. O sujeito-autor é aquele que produz seu
discurso de forma bem particular. Não se trata de entender esse processo de criação como
algo nunca visto antes, muito menos lido em qualquer lugar do mundo. Trata-se de textualizar
seus enunciados, instituindo neles critérios como a coesão, a coerência e o princípio da
unidade, com singularidades próprias do seu dizer. Quanto mais os alunos se apropriam da
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 539
competência autoral, mais deixam marcas da sua subjetividade, de si mesmo enquanto autor,
nos textos que produzem.
Referências
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Estética da criação verbal. (Prefácio à edição francesa
Tzvetan Todorov; introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. – 6ª ed. – São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2011)
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. de Michel Lahud e Yara Frateschi
Vieira. 6. Ed. São Paulo: Hucitec, 1992.
BAKHTIN, M. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: Editora de
Unesp/Hucitec, 1998.
BARTHES, Roland. O rumor da língua. 5.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2012.
FOUCAULT, M. O que é um autor? Trad. António Fernandes Cascais e Eduardo Cordeiro. 3
ed. Portugal: Veja, 1992.
POSSENTI, S. Enunciação, autoria e estilo. Revista da FAEEBA, Salvador, n. 15, 2001.
POSSENTI, S. Indícios de autoria. Perspectiva, Florianópolis, v. 20, n. 1, p. 105- 125,
jan./jun. 2002. Disponível em: <www.
Periódicos.ufsc.br/índex.php/perspectiva/article/view/10411>. Acesso em: 23 jan. 2014.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 540
FERDINAND DE SAUSSURE E EUGÊNIO COSERIU:
PROPOSIÇÕES SOBRE O TEXTO [Voltar para Sumário]
Clemilton Lopes Pinheiro (UFRN)
1. Introdução
O nome de Ferdinand de Saussure é associado à fundação da linguística geral
moderna. Mas ele também desenvolveu pesquisas sobre as lendas germânicas (a epopeia dos
Nibelungos e as aventuras de Tristão) e sobre os anagramas. Essas pesquisas compõem o
vasto corpus de manuscritos de Saussure que se encontra no departamento de Manuscritos da
Biblioteca de Genebra. Alguns pesquisadores interpretam essa atividade a partir de uma
perspectiva textual, e postulam uma abordagem do texto nos estudos de Saussure.
Eugênio Coseriu utilizou o termo “linguística textual” pela primeira vez em meados
dos anos 1950 em um artigo que escreveu em espanhol: Determinación y entorno. De los
problemas de una linguística del hablar. Mais tarde, no início da década de 1980, o
pensamento de Coserio sobre o texto foi apresentado na obra Textlinguistik. Eine Einführung,
editada por Jörn Albrecht, a partir de um curso ministrado na Universidade de Tübingen. O
livro, traduzido para o italiano e para o espanhol, é dedicado inteiramente ao texto. Em suma,
trata-se de uma investigação sobre o texto concebido como tal, na década de setenta na
Alemanha, em uma época de transição entre o período de formação e consolidação de uma
ciência do texto.
Considerando que Coseriu é um dos maiores continuadores de Saussure, neste
trabalho, nós nos propomos a realizar um levantamento de questões epistemológicas e
metodológicas dos trabalhos sobre texto dos dois linguistas. Nosso objetivo é realizar um
debate teórico exploratório, identificando e relacionando posicionamentos no que diz respeito
à abordagem do texto. Para atingir esse objetivo, procedemos uma análise interpretativa da
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 541
proposta de Coseriu para o estudo do texto (COSERIU, 2007) e de partes dos manuscritos de
Saussure especificamente sobre as lendas germânicas (TURPIN, 2003)1.
2. Saussure e Coseriu: dois eminentes linguistas
O suíço Ferdinand de Saussure, nascido em Genebra, em 1857, é, indiscutivelmente, o
nome mais frequentemente evocado quando se trata da Linguística do século XX. Seus
primeiros trabalhos publicados ainda no século XIX trataram da gramática comparativa das
línguas indo-europeias, conforme o paradigma linguístico hegemônico na época. Em 1878,
ele publicou, em Leipzig, Mémoire sur le système primitif des voyelles dans les langues Indo-
Européennes (Estudo sobre o sistema primitivo das vogais nas línguas indo-europeias),
quando tinha apenas 20 anos de idade. Em 1881, ele publicou sua tese de doutorado De
l’emploi du génitif absolu en sanscrit (Do uso do genitivo absoluto em sânscrito). Após uma
temporada na Alemanha, ele foi a Paris para continuar sua formação na École Pratique des
Hautes Études. Em Paris, ele realizou uma bela carreira. Em 1892, voltou para Genebra e
passou a ensinar na Universidade de Genebra sobre os temas: gramática comparada das
línguas germânicas, do grego e do latim, além de sânscrito e linguística geral. Ele faleceu na
cidade de Vufflens, em fevereiro de 1913.
Por meio de uma exploração das notas de aula de alguns alunos dos três últimos cursos
que Saussure ministrou sobre linguística geral, na Universidade de Genebra, no período de
1907 a 1911, Charles Bally e Albert Sechehaye organizaram o livro Cours de linguistique
générale (Curso de Linguística Geral – CLG), publicado em 1916 (SAUSSURE, 1978). Essa
obra deu a Saussure o respeitável título de “fundador da linguística moderna” e se tornou um
texto base para a área.
Seguindo de perto o CLG, a divulgação das ideias de Saussure focalizou a
apresentação de dicotomias ou oposições (langue/parole, sintagma/paradigma,
forma/substância, significado/significante, sincronia/diacronia) em torno das quais foi
delimitado o objeto de estudo primordial da Linguística: a língua, entendida como um sistema
de signos que deve ser estudado nele mesmo, por ele mesmo. É assim que o CLG representa
um momento decisivo na história da Linguística como ciência. “Ele permanece, enfim, ainda
1 Os manuscritos de Saussure sobre as lendas estão divididos em três lotes: 8 cadernos, 383 folhas (BGE Ms. fr.
3958/1 a 8), 10 cadernos, 228 folhas (BGE Ms. fr. 3959/1 a 10) e 228 folhas avulsas (BGE Ms. fr. 3959/11). Há
apenas edições parciais desse material. Uma das mais completas é a de Turpin (2003).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 542
hoje, um texto de introdução à Linguística nos inúmeros cursos universitários no mundo
inteiro” (COLOMBAT, FOURNIER e PUECH, 2010, p. 25)2.
Algumas reservas ao trabalho de Bally e de Sechehaye como uma reconstrução,
baseada em fontes heterogêneas e fragmentadas, do pensamento de Saussure, foram mesmo
apresentadas por alguns dos seus antigos alunos, mas permaneceram sem eco durante muito
tempo (BOUQUET, 2010). Os trabalhos críticos de Godel, Engler e De Mauro, a partir de
fontes manuscritas, principalmente os cadernos dos alunos, começaram também a mostrar
alguns problemas relacionados à reinterpretação e à apropriação do pensamento saussuriano
apresentado por ele mesmo.
Em 1996, durante trabalhos na antiga residência da família Saussure em Genebra, foi
encontrado um conjunto de folhas manuscritas pelo próprio Saussure. Esse material, doado à
Biblioteca de Genebra, integrou outras obras já existentes e foi publicado como Escritos de
linguística geral (SAUSSURE, 2002). A partir daí, começou a se desenvolver uma revisão
fundamental de muitos pontos abordados no CLG e consequentemente da imagem que até
então se tinha de Saussure. Instaura-se um intenso debate, diríamos até uma grande polêmica,
envolvendo o CLG e o conjunto das fontes manuscritas.
Eugenio Coseriu não conquistou a mesma celebridade de Saussure, mas não deixa de
ser menos importante para o pensamento linguístico moderno. Ele nasceu em 1921, numa
pequena cidade romena chamada Mihileni. Depois de seus estudos na Romênia e Itália, ele se
tornou professor de Linguístca Geral e indo-europeia, na Universidade de Montevidéu. Em
1963, é nomeado professor de linguística romana e geral, em Tübingen, Alemanha. Durante
os anos 70, a escola coseriana de Tübingen tornou-se uma das mais prestigiosas em linguística
românica, exercendo uma grande influência, principalmente no domínio da linguística geral e
da filosofia da linguagem.
Seu interesse pela linguística nasceu do amor pelas línguas e suas literaturas durante
os anos em que estudou filologia românica e eslava em Roma. Ele aprendeu muitas línguas,
porque queria ler os textos literários na língua original. Ele dominou o romeno, o italiano, o
espanhol, as línguas eslavas, o alemão, o inglês, o grego, e, já na velhice, ainda aprendeu
japonês (KABATEK, 2004).
Coseriu desenvolveu os princípios fundamentais de sua teoria da linguagem com base
ainda na linguística estrutural, mas dominou quase todas as áreas temáticas da linguística
geral e uma quantidade notável de estudos filológicos de línguas particulares. Não se trata de
2 Texto original em francês. Tradução nossa.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 543
uma afirmação exagerada, nem de retórica elogiosa. A lista de suas publicações abrange quase
todos os setores da linguística: a filosofia da linguagem, a teoria da linguagem, a metodologia
da linguística, a fonologia, a teoria gramatical, a semântica, a linguística de texto, a
dialetologia, a sociolinguística, a estilística, a história da teoria da tradução, a política
linguística, a história da linguística. A extensão temática de sua obra é uma manifestação
externa de sua concepção pessoal acerca do que é a linguagem e a própria linguística. A
proposta de Coseriu visava compreender toda a realidade da língua e integrá-la
sistematicamente em um modelo epistemológico funcional.
Segundo Kabatek (2004), Coseriu é frenquetemente visto como um puro estruturalista,
porque boa parte de sua obra fundamental, principalmente a dos anos 50, provém de um
confronto com as ideias de Saussure (as ideias presentes no CLG, talvez seja bom frisar). No
entanto, Kabatek assinala que os trabalhos de Coseriu sempre seguiram dois tipos de
objetivos.
De um lado, o de levar a sério a linguística estruturalista em toda sua extensão, ou
seja, recobrir todos os domínios da língua; de outro lado, o de mostrar seus limites,
pois, para Coseriu, o estruturalismo oferece apenas uma visão parcial da linguagem,
deixando entre parênteses uma série de fatos (excluídos pelas célebres “sete
distinções”) para alcançar seu objeto. O dever da “linguística integral” é, então, ir
também para além do estruturalismo e reintegrar tudo o que ele exclui. (KABATEK,
2004, p, 487)3
3. Saussure e Coseriu: as proposições sobre o texto
O ponto de partida de Coseriu para o estudo do texto é a sua proposta de que a
linguagem apresenta três níveis autônomos: 1) o nível universal ou nível do falar em geral; 2)
o nível histórico das línguas; 3) o nível individual dos textos (COSERIU, 1980, 2007).
O nível universal diz respeito aos fenômenos comuns a todas as línguas. A primeira
propriedade universal das línguas é seu caráter sígnico, ou seja, a possibilidade de referir-se a
algo que não se identifica com ela mesma. A comparação entre as línguas fornece uma
evidência para essa propriedade: diferentes línguas correspondem a configurações distintas
para uma mesma realidade extralinguística. Algumas atividades relacionadas à linguagem,
como a tradução, por exemplo, só são possíveis a partir do pressuposto de que diferentes
línguas podem referir-se a uma mesma realidade e o fazem de forma diferenciada. A segunda
propriedade que Coseriu atribui ao nível universal da linguagem é a faculdade universal de
falar, não determinada historicamente. “Trata-se de um saber falar que não coincide
3 Texto original em francês. Tradução nossa.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 544
simplesmente com o saber falar alemão, francês etc., mas que vale para toda língua e para
todo falar” (COSERIU, 2007, p. 131)4. O segundo nível autônomo do falar é o nível histórico
das línguas. Cada língua particular dispõe de um léxico estruturado de forma diferente, possui
sua própria gramática e seu sistema fonológico.
Para sustentar a autonomia do nível dos textos em relação ao nível universal e ao nível
histórico das línguas, Coseriu assinala, principalmente, o fato de que as regras da língua
podem ser suspensas no texto sem provocar rejeição, e de que os textos são influenciados
pelos universos de discurso - o que não acontece com as línguas - e têm tradições particulares,
diferentes das tradições das línguas históricas.
Coseriu procura formular os princípios de uma Linguística do Texto consistente com
essa concepção dos níveis da linguagem. Como os três níveis são considerados autônomos, a
Linguística do Texto está associada ao terceiro nível, o nível individual, e é caracterizada
como uma Linguística do sentido, que objetiva a hermenêutica do sentido dos textos e se
fundamenta em uma teoria da interpretação. Ao adotar essa posição, Coseriu tem clareza de
que sua concepção de Linguística do Texto é consideravelmente diferente dos trabalhos
dominantes na área, mas faz questão de enfatizar que é a “verdadeira” e “própria” Linguística
do Texto. (COSERIU, 2007, p. 156).
Nessa proposta, Coseriu distingue, portanto, dois conceitos de texto: o texto como
nível autônomo da linguagem e o texto como nível de estruturação idiomática, superior à
oração, ao sintagma, à palavra e aos elementos mínimos portadores de significado.
Consequentemente, o autor também delineia duas formas de Linguística do Texto, para ele,
cientificamente legítimas: a que concebe o texto como nível da linguagem em geral e a que
concebe o texto como um nível de estruturação das línguas. Ambas as modalidades não são
nem contrárias nem excludentes, mas complementares e integradas, pois se encontram em
distintos planos do linguístico: o propriamente idiomático e o individual.
Inicialmente, dois tipos de linguística de texto podem ser distinguidos. O objetivo do
primeiro são os textos como um nível autônomo da linguagem, independente da
língua em que se expressa. Essa linguística do texto seria a linguística do texto
propriamente dita (...). O segundo tipo de linguística do texto toma como objeto o
texto enquanto nível de estruturação idiomática. Por isso, e também em benefício da
clareza terminológica, se denominará gramática do texto ou gramática trans-
oracional (também análise trans-oracional ou transfrástica) (COSERIU, 2007, p.
116-17).
4 As citações originais de Coseriu (2007) estão em espanhol. Tradução nossa.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 545
A Linguística do Texto como ciência do nível individual do falar consiste, para
Coseriu, como já frisamos, antes de tudo, na explicação do sentido de cada texto, isto é, uma
hermenêutica do sentido. Por sua vez, a Gramática do Texto deve estudar os procedimentos
estritamente idiomáticos para a construção dos textos.
Coseriu assinala que, no âmbito dessa “linguística do texto idiomática”, muitos
trabalhos relevantes têm sido desenvolvidos nos últimos anos, mas reconhece também que “o
elevado nível técnico da investigação realizada nem sempre corresponde a uma delimitação
téorica suficientemente clara do objeto que se deseja investigar” (2007, p. 306)5.
Concretamente, nos dois tipos de Linguística do Texto, o texto é o mesmo, apenas é
considerado de modo distinto: nível autônomo da linguagem (Linguística do Texto
propriamente dita) ou nível de estruturação idiomática (Gramática Textual).
Ao comprovar e justificar o sentido dos textos particulares, a Linguística do Texto
propriamente dita só pode chegar a um tipo de generalização: a identificação de universais
empíricos, ou seja, de características comuns a vários textos (ou até mesmo a todos os textos).
Ao buscar as generalizações acerca das formas que o sentido assume nos textos, essa
Linguística do Texto pode ser identificada com a teoria da investigação das classes de textos.
Essa abordagem não coincide simplesmente com a dos gêneros, mas a engloba.
Como exemplo de sua abordagem do texto, Coseriu apresenta a análise da novela Dom
Quixote desenvolvida por Leo Spitzer com algumas alterações. A análise de Spitzer aponta
como característica fundamental do texto a instabilidade dos nomes dos personagens, que é
tomada como um indício importante para o sentido global. Coseriu argumenta que essa
análise capta apenas o sentido parcial do texto, porque toma como ponto de partida apenas um
indício, sem analisar os diversos estratos da articulação do sentido. A teoria hermenêutica
deve considerar que o sentido dos textos, assim como o sentido das frases, não é
simplesmente a soma do sentido de suas partes.
Para Coseriu, portanto, a busca do sentido da novela Dom Quixote deve partir da
articulação hierárquica do sentido das diversas partes. A instabilidade dos nomes é um entre
os vários fatores que contribuem para o sentido, e deve ser compreendida em sua conexão
5Paralelamente à proposta de Coseriu, a noção de uma gramática do texto foi o ponto de partida de alguns
pesquisadores que buscaram estudar estruturas transfrásticas, tais como cadeias referenciais e relações entre
orações. Naturalmente, a motivação desses estudos, diferente da de Coseriu, foi a constatação de que existiam
fenômenos linguísticos cuja explicação no nível da oração não era suficiente. Daí surgiu o postulado teórico de
que é o texto, e não a oração, a unidade básica da língua. Desenvolveu-se, portanto, uma série de estudos
teóricos com o objetivo de descrever e explicar os princípios universais e as regras específicas subjacentes à
constituição do texto. Blühdorn e Andrade (2005) apresentam um balanço da situação dessa “Linguística
Textual” na Alemanha e no Brasil em que fazem uma boa retrospectiva da questão do surgimento das gramáticas
textuais. Um “estado da arte” dos estudos do texto no contexto francês é também apresentado por Adam (2010).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 546
com as demais características do texto. O sentido resulta da análise integrada do sentido de
partes do texto: os nomes dos personagens são instáveis, o entusiasmo de Dom Quixote ao
falar da liberdade, a atividade de Dom Quixote de libertar várias personagens, o governo de
Sancho Pança.
A conclusão, após o levantamento dessas características, é a de que Dom Quixote é
“um poema sobre a liberdade” (COSERIU, 2007, p. 269). No conjunto do texto, a
instabilidade dos nomes pode também ser interpretada como um momento de liberdade: as
pessoas são livres para nomear as coisas e todo nome corresponde a uma forma determinada
de ver as coisas. A parte trágica reside no fato de que as possibilidades de luta pela liberdade
são limitadas, ligadas à demência do herói, e abandonadas quando ele é vencido e curado da
loucura.
Em Saussure, não há explicitamente alusão a uma perspectiva teórica de abordagem
textual6. Se há alguma, ela é apenas inferida nas análises que ele desenvolveu sobre as lendas
e os anagramas. Segundo Rastier (2009), essas análises “testemunham um verdadeiro
pensamento da textualidade” (2009, p. 18), “buscam as normas de composição das lendas, a
compreensão das suas transformações gerais, sem neglicenciar o problema das suas raízes
históricas, pelo viés da sua relação com a linguística externa” (2009, p. 21). Para Rastier, a
textualidade corresponde a uma relação semiótica fundamental e é um dos eixos dos estudos
textuais, “que relaciona a palavra, a passagem, o texto e o corpus” (2009, p. 21)7.
De fato, a leitura dos manuscritos de Saussure sobre as lendas não deixa dúvida de que
estamos diante de uma análise textual.
A teoria das cenas parece se aproximar da teoria dos motivos, porque nos dois casos
arranja-se um texto dado de alguma forma com o que o cerca. (Ms. fr. 3959/2 -
TURPIN, 2003, p. 408).
Sem dúvida, há aqui uma verdadeira confusão de termos ou de ideias sobre o que
constitui o documento. Porque um documento é em geral um texto, imagina-se que
isso não é fazer uma operação anti-crítica de decidir o que deve ser comparado de
um texto a outro. (Ms. fr. 3959/11 - TURPIN, 2003, p. 426).8
É evidente também que Saussure não aborda o texto como nível de estruturação
idiomática, ou seja, não há indícios nos manuscritos de questões relativas a regras de
constituição idiomática das lendas. Não há, ao menos de maneira explícita, um tipo de
aproximação da análise de Saussure com as pesquisas sobre os elementos de que dispõe uma
língua particular para a construção do texto legendário. De fato, não se trata de uma
6 Sobre algumas interpretações dessa atividade de Saussure, ler Pinheiro (2014) 7 Citações originais em francês. Tradução nossa. 8 Os excertos do manuscrito de Saussure editado por Turpin (2003) estão em francês. Tradução nossa.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 547
abordagem do texto tal como é desenvolvida pela Gramática Textual ou por algumas
correntes da Linguística Textual contemporânea. Ao contrário, parece que Saussure aborda o
texto da lenda como tal, independente de uma língua particular.
Um assunto bastante recorrente nos manuscritos é a relação entre a lenda e os eventos
históricos. Saussure assinala que não há critérios para comprovar a correspondência direta
entre lenda e história, apesar das consideráveis coincidências. Além disso, a identificação
dessas relações seria importante apenas para o historiador, não para o analista da lenda.
Não é errado supor uma perfeita coincidência entre a lenda e a história, se
tivéssemos as provas mais certas de que foi um grupo definido de eventos que lhe
deu origem. O que se faça, e por evidências, nunca é mais que um grau de
aproximação que pode intervir aqui como decisivo ou convincente. Mas vale muito à
pena considerar as escalas desses graus. Ver se, sim ou não, uma outra concentração
histórica que não tentamos seria igualmente capaz de explicar a lenda nos seus
elementos, é uma prova extremamente interessante para nossa tese, uma das que, na
ausência de toda demonstração rigorosa possível em certo domínio, pode passar ao
menos por um gênero de verificação natural e não negligenciável (Ms. fr. 3958/1 –
TURPIN, 2003, p. 360).
É muito importante para os historiadores tentar identificar...
De modo algum para os legendistas. (Ms. fr. 3958/1 – TURPIN, 2003, p. 361).
Considerando, portanto, essa problemática, Saussure recusa a proposta corrente à
época de analisar as lendas pelo viés da história, pelo viés da veracidade ou falsidade dos
fatos reais. Isso leva à consideração de que a lenda é um fato semiótico, e como tal é sujeita a
transformações ao longo do tempo.
- A lenda é composta por uma série de símbolos em um sentido a precisar.
- Esses símbolos, sem dúvida, são submetidos às mesmas vicissitudes e às mesmas
leis de todos as outras séries de símbolos, por exemplo os símbolos que são as
palavras da língua.
- Todos eles fazem parte da semiologia.
- Não há nenhum método para supor que o símbolo deve permanecer fixo, nem que
ele deve variar indistintamente, ele deve provavelmente variar dentro de certos
limites.
- A identidade de um símbolo nunca pode ser fixa a partir do instante em que ele é
símbolo, ou seja quando é vertido na massa social que fixa a cada instante o seu
valor. (Ms. fr. 3958/4 – TURPIN, 2003, p. 367).
Assim, é possível estabelecer uma aproximação entre essa noção de lenda e a
concepção de texto como nível autônomo da linguagem. Como já dissemos, segundo Coseriu
(2007), o objeto fundamental de uma Linguística que concebe o texto como nível autônomo
da linguagem são os procedimentos de compreensão do sentido. Para o autor, o sentido diz
respeito ao conjunto de conteúdos que só existem como conteúdos de textos, e têm um caráter
particular e individual. “A designação e o significado, isto é, o que os signos linguísticos
designam e aquilo que significam em uma determinada língua, formam juntos no texto a
Nas fronteiras da linguagem ǀ 548
expressão de uma unidade de conteúdo superior de natureza mais complexa: o sentido”
(COSERIU, 2007, p. 153). A partir da distinção entre significante e significado, estabelecida
no CLG (SAUSSURE, 1978), para o signo linguístico, Coseriu propõe uma distinção análoga
para o “signo textual”: “O significado e a designação constituem juntos o significante, ao
passo que o sentido é o significado do signo textual” (COSERIU, 2007, p. 153).
Se aceitarmos essa hipótese, poderíamos afirmar que, para Saussure, a lenda é um
texto ou discurso particular cujo sentido, único em cada caso, é preciso compreender,
considerando a interferência de diferentes fatores.
São então os atos da personagem, ou sua característica, ou o seu meio, ou { } ou o
que ainda constitui o critério da identidade? É um pouco tudo isso e nada disso <
porque tudo pode ter sido ao mesmo tempo transformado e transportado de A a B. >
Quanto mais se estuda a coisa mais se verá que a questão não é realmente saber em
que reside a identidade, mas se há um sentido qualquer para se falar. (Ms. fr.
3959/11 – TURPIN, 2003, p. 427)
Uma personagem, por exemplo, é a soma das características atribuídas pela lenda.
Cada uma dessas características pode ser passada de uma personagem a outra, até ao ponto de
se desfazer qualquer possibilidade de identificação. Em outras palavras, a personagem não é
mais que uma associação de traços combinados. Assim, a instabilidade dos nomes das
personagens é um dos fatos, entre outros, que deve ser compreendido por meio da conexão
com as demais características da lenda importantes para a interpretação do sentido.
Entre um estado de uma lenda e o que toma o seu lugar em trezentos quatrocentos
anos de distância, não há ao contrário nenhum elemento fixo, ou destinado a ser
fixo. Nem uma personagem: (Ms. fr. 3959/11 – TURPIN, 2003, p. 428)
Ao buscar entender as condições de surgimento, circulação e estabilização das lendas
Saussure parece destacar a importância do que é singular na linguagem. Nesse sentido, é
possível interpretar essa análise como uma tentativa de também desenvolver uma
hermenêutica do sentido dos textos.
4. Conclusão
As questões apontadas por Saussure em seus manuscritos e as formulações de Coseriu
para o estudo do texto parecem ter em comum o olhar para o texto em sua individualidade,
como um acontecimento singular, e a tentativa de explicar fatos relativos ao seu sentido.
Nessa perspectiva, o texto não é considerado um fato de língua como sistema, historicamente
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 549
determinado. Esse raciocínio nos conduz a pensar, como Coseriu (2007), que, para bem
compreender a linguagem, é necessário precisar aspectos diferentes e disciplinas diferentes.
Segundo Bronckart, Bulea e Bota (2010, p. 7), apesar de todo o reconhecimento e
celebridade, a obra de Saussure ainda não está bem compreendida, e “sua dimensão
propriamente revolucionária ainda é largamente ignorada”9. Podemos estender um raciocínio
semelhante em relação a Coseriu. O grande potencial de desenvolvimento dos seus trabalhos
não recebeu, sobretudo no Brasil, a atenção merecida.
Na nossa opinião, retomar as proposições de Saussure e Coseriu constitui um
empreendimento fundamental para a ampliação e o aprofundamento dos estudos textuais. Não
se trata apenas de recuperar a história do pensamento desses autores, mas descobrir as suas
raízes, tendo em vista os alcances e os limites de suas ideias no desenvolvimento de novas
perspectivas teóricas e metodológicas sobre o texto.
Referências
ADAM, Jean-Michel. L’émergence de la Linguistique Textuelle en France: entre perspective
fonctionnelle de la phrase, grammaires et linguistiques du texte et du discours. Investigações,
vol. 23, n. 2, 2010, 11-47.
BLÜHDORN, Hardaric e ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de Oliveira. Tendências recentes
da Linguística Textual na Alemanha e no Brasil. Filologia e Linguística Portuguesa, n. 7,
2005 p. 13-48.
BRONCKART, Jean-Paul, BULEA, Ecaterina & BOTA, Cristian. Pour um réexamen du
projet saussurien. In: ______ (éds). Le projet de Ferdinand de Saussure. Genève, Droz, 2010,
p. 07-21.
BOUQUET, Simon. Du pseudo-Saussure aux textes saussuriens originaux. In:
BRONCKART, Jean-Paul, BULEA, Ecaterina & BOTA, Cristian (éds). Le projet de
Ferdinand de Saussure. Genève, Droz, 2010, p. 31-48.
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le langage et les langues. Paris: Klincksieck, 2010.
COSERIU, Eugenio. Lições de linguística geral, Tradução de Evanildo Bechara. Rio de
Janeiro: Ao Livro Técnico, 1980.
COSERIU, Eugenio. Lingüística del texto. Introducción a la hermenéutica del sentido
(édition et annotation d’Oscar Loureda Lamas). Madrid: Arco/Libros, 2007.
9 Texto original em francês. Nós realizamos a tradução.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 550
KABATEK, Johannes. Eugenio Coseriu (1921-2002). Estudis Romànics. Vol. 26, 2004, p.
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PINHEIRO, Clemilton Lopes. Les études de Saussure sur les légendes: un rapide parcours à
travers quelques interprétations. In: 4o. Congrès Mondial de Linguistique Française, 2014,
Berlin. Actes - 4o. Congrès Mondial de Linguistique Française. Paris: EDP Sciences, v. 8,
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RASTIER, François. Saussure et les textes - de la philologie des textes saussuriens à la théorie
saussurienne des textes. Texto!, XIV, n. 3, 2009, 01-27.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística geral. São Paulo: Cultrix, 1978.
SAUSSURE, Ferdinand. de. Écrits de linguistique générale. Édition par Bouquet, S. et
Engler, R. Paris: Gallimard, 2002.
TURPIN, Béatrice. Légendes et récits d´Europe du Nord: de Sigfrid à Tristan. Cahiers de
l’Herne – Saussure, 76, 2003, 351-429.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 551
DISCURSO E IDENTIDADE: ASPECTOS DA CONSTRUÇÃO
POÉTICA EM PATATIVA DO ASSARÉ [Voltar para Sumário]
Dalva Patricia de Alencar (URCA)
Romão Alisson de Almeida Morais (URCA)
Introdução
Através das leituras realizadas e das pesquisas bibliográficas e teóricas sobre a poesia
de Patativa do Assaré, este trabalho surge como fruto de uma análise acerca do discurso
poético e da espontaneidade com que produzia seus versos, definidos pelo próprio como
“poesia matuta”.
O poeta era dono de uma musicalidade e ritmos únicos, além de possuir um
vocabulário riquíssimo que vai desde o dialeto da linguagem sertaneja até clássicos da língua
portuguesa. Estudando a vida e a obra de Patativa, traçamos como foco principal averiguar a
complexidade de seus poemas, buscando compreender como o mesmo transitava em
universos tão distintos, sem permitir porém que sua poesia perdesse a essência da denúncia e
da reflexão.
Pretendemos também conhecer e analisar sua capacidade poética e inegável
sensibilidade e indignação diante das injustiças sociais. Além da facilidade que ele encontrava
para traduzir sua revolta através de sua poesia, transformando-a num fenômeno universal.
Para compreender a linguagem poética de Patativa do Assaré nos debruçamos nos
processos que permeiam a Análise do Discurso, e no uso de pesquisas científicas através de
autores consagrados na área da Linguística e da Literatura.
Do menino que virou pássaro
O cenário é a Serra de Santana, sítio localizado na região centro sul do Ceará, a
aproximadamente 18 quilômetros da cidade de Assaré. Um ambiente tipicamente rural como
tantos outros sertões nordestinos, não fosse o fato de ter como protagonista Antônio
Nas fronteiras da linguagem ǀ 552
Gonçalves da Silva, que mais tarde viria a ser reconhecido como Patativa do Assaré, apelido
que ganhou após uma viagem feita por volta de 1928 ao Belém do Pará.
O Assaré do Patativa que etimologicamente significa atalho e era o antigo desvio do
caminho das boiadas dos Inhamuns para o Piauí, foi também para o poeta um atalho, mas um
atalho para o mundo, um acesso rápido à universalidade da sua poesia.
Antônio Gonçalves da Silva nasceu no dia 5 de março de 1909, filho dos agricultores
Pedro Gonçalves da Silva e Maria Pereira da Silva (D. Mariô). O segundo de cinco filhos,
desde cedo teve que assumir muitas responsabilidades juntamente com os irmãos, devido a
morte de seu pai que deixou como herança para sua família apenas o ofício da agricultura e
uma pequena parcela de terra.
Patativa frequentou a escola por apenas seis meses, quando tinha em média doze anos
de idade. O próprio reconhece que seu professor mesmo sendo atencioso e dedicado, era
precariamente letrado e mal sabia ensinar a pontuação. E é justamente dessa maneira que
Patativa aprende a ler: sem ponto ou vírgula, sendo guiado apenas pelo ritmo das palavras.
Segundo Sylvie Debs (1999) “esta estranha aprendizagem, em realidade, é apenas a expressão
profunda da oralidade que caracteriza a cultura popular e a tradição dos poetas-repórteres”.
Apesar das adversidades e do pouco acesso à educação, Patativa do Assaré tornou-se
leitor voraz e assíduo de grandes autores como Olavo Bilac, Bocage, Castro Alves e Camões,
passando por leituras que vão dos poemas românticos às composições em linguagem cabocla,
o que leva suas poesias a possuírem não só um conteúdo referente às suas recordações
pessoais como também ao uso que fez das leituras clássicas.
O mundo do poeta era a Serra de Santana. Lá Patativa tinha o sertão e suas
adversidades como fonte inspiradora, sendo impossível dissociá-lo do seu cotidiano de
agricultor pobre. Costumava compor seus versos enquanto trabalhava sozinho na roça e por
mais longo que fossem os seus poemas, ele só transcrevia para o papel depois de o ter
lapidado totalmente na memória.
Este sentimento de apego à terra se estende por toda a sua vida evidenciando a
identidade que o poeta criara com a realidade ao seu redor e da qual fazia parte desde que
nascera. Tanto que só passa a morar na cidade de Assaré por volta dos sessenta anos, após um
pedido de sua esposa Belinha, que era muito religiosa e queria ficar perto da Igreja.
Mesmo morando em Assaré não se desligou da sua Serra de Santana a quem chamava
carinhosamente de “Paraíso”. Toda semana pagava um carro para ir até lá ver a família e
aproveitar as tardes para os encontros que mantinha com seu sobrinho Geraldo Gonçalves de
Alencar, o Geraldo Poeta. Destas tardes prazerosas surge o livro “Ao pé da mesa” (2001).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 553
Eu nasci na Serra de Santana
Hoje a mesma está muito diferente
Mas a tenho guardada em minha mente
Toda hora e minuto da semana (ASSARÉ, 2001)
A divulgação de sua obra passa a se concretizar a partir de 1954, através do Rádio, em
programas apresentados pela professora Tereza Siebraa Lima. Na oportunidade, Patativa foi
convidado para um encontro com Arraes de Alencar. A partir desse encontro nasce o livro de
Patativa “Inspiração Nordestina”, no ano de 1956, articulado e patrocinado por Arraes de
Alencar (apud ASSARÉ, 1956) que faz o seguinte registro no prefácio do livro:
Recitando-me inúmeras poesias de sua lavra e declamando ágeis improvisos e
repentes, impressionou-me imediatamente, pela delicadeza e arrojo das imagens,
pela suavidade lírica de muitos temas, pela mordacidade cortante de algumas
composições, pela profunda filosofia que ressumbra de quase toda a sua obra, e,
ainda, pelo fenomenal poder de sua memória. (ALENCAR, apud ASSARÉ, 1956)
Patativa publicou ainda diversos livros durante toda a sua trajetória poética. “Patativa
do Assaré, novos poemas comentados” em 1970 com apresentação e comentários de
Figueiredo Filho, o então presidente do Instituto Cultural do Cariri. Em seguida, no ano de
1978 surge o livro “Cante lá que eu canto cá”, publicado pela editora Vozes e que
proporcionou o reconhecimento nacional do poeta segundo José Valente Filho (2002). Em
1988 surge uma nova antologia intitulada “Ispinho e Fulô”, sob a direção de Rosemberg
Cariry, composta por textos de Patativa publicados em folhetos, jornais, revistase discos.
Além da publicação de seus livros, o poeta contou ainda com inúmeros estudos
nacionais e internacionais a seu respeito. Desde livros como “Patativa e o universo fascinante
do sertão”, do professor Plácido Cidade Nuvens, editado pela Unifor, até dissertações de
mestrado e doutorado.
A obra poética de Patativa tem sido alvo de acurados estudos em universidades tanto
no Brasil como no exterior, principalmente na França, onde estudiosos se sentem motivados
pela curiosidade e pela necessidade de conhecer a temática, o processo criativo e os valores
que envolvem a poesia de Patativa do Assaré.
Aos 93 anos de idade dedicados à agricultura, ao seu povo e à poesia popular, no dia
oito de julho de 2002 Patativa do Assaré vem a falecer em sua terra natal. O poeta deixa de
legado à cultura popular um número considerável de rimas e versos e uma diversidade
linguistica que garantem ao poeta autenticidade e estilo próprio.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 554
Pelos caminhos da Análise do Discurso
A análise do discurso (AD), corrente desenvolvida, em maior parte, na França, em
meados do século passado, propõe o estudo da língua em seu processo histórico-social,
encaixando-se a uma perspectiva não-imanentista, isto é, pragmática e informal da linguagem
que não só preconiza as circunstâncias de produzir e receber o texto, mas também os seus
efeitos de sentido.
A AD tem proposto, aos estudiosos, uma grande discussão em relação à definição do
que é discurso. Chama-se de discurso toda e qualquer forma de interação entre falantes,
dependendo do contexto em que se insere e da maneira como se é posto, ou seja, as ideias
encontradas em um discurso são estabelecidas e influenciadas pelo contexto político-social
em que o seu autor está inserido, com isso, pode-se inferir que o estudo vai além do texto,
chegando a uma análise da formação do discurso. Sendo assim:
O discurso é uma forma de materialização ideológica, como identificaram os
marxistas em outras instâncias sociais. O sujeito é um depósito de ideologia, sem
vontade própria, e a língua é um processo que perpassa as diversas esferas da
sociedade. (PÊCHEUX, 1961)
Vale-se ressaltar que a Análise do Discurso possui uma relação direta com o texto,
pois conforme Focault, um texto só receberá essa denominação se o interlocutor tiver a
capacidade de perceber o seu sentido, e que essa responsabilidade é do autor do texto, pois
deve escrever preocupado com a emissão, recepção e compreensão das ideias contidas no seu
discurso.
O principal foco da AD é perceber os distintos procedimentos da reprodução
linguística no âmbito social, levando-se a considerar que o sujeito não tem posse sobre seu
discurso, mas é assujeitado por/a ele por quesitos epistêmicos como: o aparelhamento social,
proposto pelo materialismo de Louis Althusser (2001), em que afirmava que a base para
qualquer relação social é influenciada por interesses ideológicos; a intervenção do
inconsciente, abordado por Jacques Lacan, em que certifica que o sujeito é atravessado e
estruturado pela linguagem do outro indivíduo e que não tem liberdade sobre as significâncias
e as possíveis enunciações do próprio discurso, ocupando um lugar histórico que lhe permite a
produção do texto como uma resposta a um exercício ideológico e sem consciência; e ao
estruturalismo, postulado por Ferdinand Saussure, em que afirma que a língua não é
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 555
comprendida no seu relacionamento com o mundo, porém tal qual uma política fechada sobre
si, podendo ser apreendida.
Assim, o que se destaca na AD é a maneira como os indivíduos compartilham ideias
pela expressão dialética, dando foco a linguagem de prática social, com uso concreto e que
considera a produção do sentido discursivo o resultado da prática da interação social.
Construção do Discurso Poético em Patativa do Assaré
Ao longo de sua trajetória poética Patativa criou poemas com linguagem tanto na
forma padrão culta quanto na variante regional, também conhecida como linguagem matuta,
capacidade essa oriunda da sua natureza de autodidata.
Diferentemente de outros autores eruditos nordestinos que convertem a matéria-prima
da tradição oral em literatura, Patativa do Assaré fazia o inverso: utilizava-se da literatura
erudita para enunciar a linguagem popular.
A diccção matuta do poeta não implicava afirmar que Patativa não compreendia ou
não sabia produzir poemas na forma erudita. Leitor assíduo e curioso de autores consagrados
como Camões, José de Alencar, Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Machado de Assis,
Castro Alves pelo compromisso social e Olavo Bilac pelo seu manual de versificação,
Patativa passa por múltiplas leituras que fazem dele um poeta universal.
É interessante destacar ainda que Patativa fazia uso da linguagem regional como uma
maneira de dar voz ao sertanejo, que mesmo sofrendo com as desigualdades sociais tem
consciência dessas injustiças, bem como das diferenças existentes entre a sua cultura e a
cultura dos grandes centros urbanos.
Aliando a leitura da palavra à leitura do mundo, Patativa tornou-se um fenômeno da
poesia. Como afirma Nuvens (2002, p. 95) “Patativa é um poeta – criador, um poeta que
inventa a verdade, ao mesmo tempo, que denuncia os dramas do cotidiano nordestino.”
Através de sua poesia Patativa deixa de ser do Assaré para ser do mundo. Sua obra é uma
espécie de fala que existe como alicerce para traduzir o universal.
O lirismo presente nos versos do poema dedicado à sua mãe de criação intitulado
“Mãe Preta”, por exemplo, apresentam uma densidade poética inerente apenas aos que cantam
com a pureza da alma, como podemos apreciar no trecho abaixo:
Mamãe com todo carinho,
Chorando um bêjo me deu
E me disse - meu fiinho,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 556
Sua Mãe Preta morreu!
E ôtras coisa me dizendo,
Sinti meu corpo tremendo,
Me jurguei um pobre réu,
Sem consolo e sem prazê,
Com vontade de morrê,
Pra vê Mãe Preta no céu.
A grandiosidade e a arte no manejo e construção de seus versos tranformaram Patativa
do Assaré num fenômeno, desses que só aparecem a cada século, quando muito.
“Patativa é maior porque sua dimensão é épica. Não a poesia dos grandes feitos
heroicos, dos mitos fundantes ou dos gestos memoráveis, mas de um cotidiano que
assume essa conotação na aceitação e valorização de um povo, a sua gente.”
(CARVALHO, 2002 p.9)
O uso da linguagem na poesia de Patativa é revestida por um profundo conhecimento
na arte da versificação. Ele é um poeta que não pertence à estirpe de repentistas, cantadores e
violeiros, seus versos são escritos, muitas vezes, nos moldes camonianos com padrões de rima
e métrica bem definidos, porém se apropriando de uma linguagem simples e acessível ao
leitor, quase um dialeto, pelo qual se comunica com o homem comum, como nos versos de
um de seus poemas preferidos entitulado “O inferno, o Purgatório e o Paraíso”, que ressalta as
relações e as divisões entre as classes sociais, conforme o trecho abaixo:
Pela estrada da vida nós seguimos,
Cada qual procurando melhorar,
Tudo aquilo, que vemos e que ouvimos,
Desejamos, na mente, interpretar,
Pois nós todos na terra possuímos
O sagrado direito de pensar,
Neste mundo de Deus, olho e diviso
O Purgatório, o Inferno e o Paraíso.
Este Inferno, que temos bem visível
E repleto de cenas de ternura, (sic)
Onde nota-se o drama triste horrível
De lamentos e gritos de loucura
E onde muitos estão no mesmo nível
De indigência, desgraça e desventura,
É onde vive sofrendo a classe pobre
Sem conforto, sem pão, sem lar, sem cobre.
(...)
Mas acima é que fica o Purgatório,
Que apresenta também sua comédia
E é ali onde vive a classe média.
Este ponto também tem padecer,
Porém seus habitantes é preciso
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 557
Simularem semblantes de prazer,
Transformando a desdita num sorriso.
E agora, meu leitor, nós vamos ver,
Mais além, o bonito Paraíso,
Que progride, floresce e frutifica,
Onde vive gozando a classe rica.
Este é o Éden dos donos do poder,
Onde reina a coroa da potência.
O Purgatório ali tem que render
Homenagem, Triunfo e Obediência.
Vai o Inferno também oferecer
Seu imposto tirado da indigência,
Pois, no mastro tremula, a todo instante,
A bandeira da classe dominante.
(...)
Já mostrei, meu leitor, com realeza,
Pobres, médios e ricos potentados,
Na linguagem sem arte e sem riqueza.
Não são versos com ouro burilados,
São singelos, são simples, sem beleza,
Mas, nos mesmos eu deixo retratados,
Com certeza, verdade e muito siso,
O Purgatório, o Inferno e o Paraíso.
(ASSARÉ, 1992)
Através desses versos é possível perceber como em outros poemas de Patativa, a
valorização da vida a restauração dos valores da humanidade, a interferência da religiosidade
e principalmente a preocupação e a consciência critica diante de uma realidade inóspita e
desigual.
As relações feitas entre as três classes sociais comparando-as aos elementos
simbólicos da religião resultam da visão de mundo do poeta e da sua tentativa de colocar a
poesia a serviço da tradução da vida.
“Dualidade como natureza e cultura, vida e morte, sagrado e profano, verdade e
mentira, rico e pobre, homem e mulher, valente e medroso, popular e erudito
emprestam-se à percepção de Patativa como pano de fundo de muitas situações,
muitas histórias, muitos personagens. Para cada uma dessas relações, Patativa se
coloca como interlocutor. Às vezes, apenas narrando, noutras vezes mediando ou
tomando partido.” (FEITOSA, 2003 p. 236)
Outro traço que marca a profundidade poética é a oralidade que, no universo de
Patativa, atua num processo constante de produção de seus textos que vão sendo inventados e
geridos por uma série de instituições que circundam o homem, o sertão e o poeta. É
justamente nesse espaço que as suas poesias se concretizam. Vivendo num ambiente rural e
rústico durante as primeiras décadas do século XX, em que a maior distração eram as
Nas fronteiras da linguagem ǀ 558
conversas nas calçadas ao som das cantorias e dos cordéis, com isso o poeta não poderia fica
indiferente à musicalidade que o cercava. O seu mundo era oral. Portanto, participou e sofreu
tanta influência desse processo que o mais interessante era que suas composições eram feitas
na mente, num diálogo incessante entre o poeta e o agricultor.
Dessa feita, em toda a obra poética de Patativa, canto, linguagem e oralidade se
confundem para definir as marcas de sua identidade de poeta que teve como escolha a roça, a
vida, o sofrimento e as privações.
Considerações Finais
Patativa do Assaré não está livre das classificações que etiquetam sua poesia e
escondem o real valor estético de sua obra poética, mas sem dúvida o que faz da poesia de
Patativa universal é esta relação indestrutível que o poeta cria entre sua produção e o público
leitor.
Não se pode considerar como suficiente para simplificar Patativa apenas a criatividade
com que ele produzia seus versos, tampouco o modo como ele tratava as injustiças e o
descaso com seu povo. É necessário observar Patativa como um todo. Como um poeta
universal.
Através da sua poesia, Antônio Gonçalves alia a emoção e a consciência de mundo, as
lutas e esperanças do sertanejo, os conflitos e a indiferença dos governantes a uma linguagem
clássica, porém acessível, que narra o cotidiano dos mais humildes e dá voz aos que sempre
foram classificados de incultos e despreparados.
Segundo Gilmar de Carvalho (2002, p. 6) “Patativa é puro deleite. Ele é maior do que
qualquer tentativa de interpretação. Seu vigor nos desautoriza. Diante dele somos meros
arremedos de uma análise que se pretende distanciada. Patativa, ao contrário, é pura emoção,
com a sabedoria de quem diz o mundo através das palavras e desvenda segredos.”
A partir desta clara definição do poeta, o que podemos empreender através deste
estudo é a compreensão de Antônio Gonçalves da Silva, hoje mundialmente conhecido como
Patativa do Assaré, nos seus diversos sentidos, nas suas múltiplas interpretações e leituras de
mundo de um sujeito plural que se molda perfeitamente ao público que deseja atingir,
apresentando uma obra rica e que facilmente se confunde com a sua própria vida.
Referências
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 559
ALENCAR, José Arraes de. “prefácio” in. Inspiração Nordestina. Rio de Janeiro: editora
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ASSARÉ, Patativa do. e ALENCAR, Geraldo Gonçalves de. Ao pé da mesa: motes e glosas.
São Paulo: terceira margem, 2001.
CARVALHO, Gilmar de. Patativa do Assaré: pássaro liberto, Fortaleza, 2002.
CARVALHO, Gilmar de. Patativa do Assaré. Fortaleza: Demócrito Rocha,2000.
DEBS, Sylvie. Patativa do Assaré: uma voz no Nordeste. Trad. Ana Maria Skinner
FEITOSA, Luiz Tadeu. Patativa do Assaré: um clássico. Crato: A Província, 2002.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: edições Loyola, 2001.
PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso. In: GADET, F. HAK, T (Orgs.). Por
uma análise automática do discurso – introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas:
Unicamp. Pp 61 – 161, 1990.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 560
FORMA E SUBSTÂNCIA: REFLEXÕES SOBRE LÍNGUA,
ORALIDADE E ESCRITA A PARTIR DE SAUSSURE E DE
HJELMSLEV [Voltar para Sumário]
Dayanne Teixeira Lima (UFAL)
Introdução
A publicação do Curso de Linguística Geral em 1916, de Ferdinand de Saussure, é
tradicionalmente considerada um marco da linguística do século XX. Lançar mão do
pensamento saussuriano presente no CLG1 implica considerarmos, entre outras questões, a
particularidade de sua publicação: a de ser obra de um autor que nunca a escreveu, uma vez
que foi baseada em anotações de alunos que participaram de três cursos ministrados por
Saussure em Genebra nos anos de 1906-1907, 1908-1909 e 1910-1911. Reunidas e
organizadas por Charles Bally e Albert Sechehaye, com a colaboração de Albert Riedlinger,
discípulos de Saussure, a autoria da obra foi atribuída ao genebrino.
A publicação dos manuscritos de Saussure, dos anos 50 até mais recentemente, final
dos anos 90, tem movimentado diversas pesquisas sobre a questão da fidelidade ou
infidelidade dos editores na difícil tarefa de apresentar um pensamento tão complexo e
inacabado. Ademais, assumimos com Normand (2009) a legitimidade do Saussure que nos foi
apresentado por seus discípulos. Destacamos, ainda, o papel seminal do CLG na medida em
que estabeleceu novos rumos para a linguística e para outras áreas do conhecimento.
Atentemos, agora, para o tratamento dado à escrita na área. Se na linguística
comparatista a escrita alcançou um lugar privilegiado, tendo em vista ser a reconstituição do
indo-europeu dependente de documentos escritos antigos, na escola neogramática ela foi
fortemente rejeitada, sendo estes os primeiros a denunciar seu caráter ilusório e a “[...]
elegerem os sons como verdadeiros objetos de suas análises” (PAVEAU & SAFARTI, 2006,
p. 31). Esse caráter ilusório associa-se à noção de representação da oralidade pela escrita,
1Manteremos a sigla CLG para nos referirmos ao Curso de Linguística Geral (2006[1916]).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 561
sustentada pelo argumento da anterioridade da primeira (natural) em relação à segunda
(artificial).
Saussure (2006[1916])2, linguista de formação neogramática, também exclui a escrita
da linguística. Dedica um capítulo do CLG para abordar a representação da língua pela
escrita, sustentando a tese de que a escrita é “estranha ao sistema interno” (ibid., p. 33) e que é
necessário conhecer “[...] a utilidade, os defeitos e os inconvenientes” (ibid., p. 33) desse
processo no qual a língua é representada. Porém, segundo ele, o estudo dessas “deformações
fônicas” não pertence à Linguística, mas a outro compartimento denominado “casos
teratológicos” (ibid., p. 41), por não resultarem do funcionamento natural da língua.
No entanto, a partir da noção saussuriana de valor, apresentada no capítulo O valor
linguístico, a escrita é submetida a uma nova abordagem, vinculando-a ao funcionamento
linguístico como uma possibilidade de manifestação da língua, ao lado da materialidade
sonora, sem qualquer submissão ou exclusão de uma em relação à outra. O valor pressupõe
que os signos sejam estabelecidos não pela positividade de suas propriedades, mas pelas
relações de oposição e diferença com os demais signos: “[...] o valor de qualquer termo que
seja está determinado por aquilo que o rodeia” (ibid., p. 135).
Essa aparente contradição em Saussure é explicada por Derrida (2008 [1973]) e, mais
recentemente, por Endruweit (2008) ao associarem a exclusão da escrita presente no CLG
como resultado da filiação de Saussure a uma tradição filosófica que concebe o som como o
“significante natural”; além disso, Endruweit destaca o compromisso de Saussure com a
delimitação do objeto da linguística que correspondesse ao modelo de ciência positivista.
Ao definir a língua como um sistema de signos cujo funcionamento é regido
unicamente por valores, Saussure afirma, categoricamente, já no último parágrafo do capítulo
supracitado, que “[...] a língua é uma forma e não uma substância.” (2006[1916]., p. 141,
grifos em itálico no original). Esta afirmação foi fundamental para o linguista dinamarquês
Louis Hjelmslev (2013[1943]), que, com a colaboração de Udall, fundou a Glossemática.
Assumindo todas as consequências dessa máxima saussuriana, Hjelmslev propõe, em
seus Prolegômenos, uma teoria da linguagem que “[...] busca o conhecimento imanente, ou
seja, que se baseia em si mesmo, da língua, considerada como uma estrutura específica”
(FIORIN, 2003, p.6). Em razão disso, Hjelmslev ressignifica os conceitos de forma e
substância de tal forma que, acreditamos, foi ele capaz de trazer uma contribuição original
para o estudo da oralidade e, sobretudo, da escrita. Para abordarmos tais conceitos,
2Utilizamos a convenção [ano] para indicar, sempre que for conveniente, o ano da publicação original.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 562
recorremos aos Prolegômenos, especialmente ao capítulo Linguagem e Não-Linguagem, e à
Faria (2013).
O objetivo deste trabalho é, então, retomar os conceitos de valor em Saussure e de
forma e substância em Hjelmslev, a fim de questionarmos a relação elementar de
representação do oral pelo escrito. Para dar suporte à discussão empreendida, faremos uma
breve análise de um texto, veiculado na Internet, que apresenta letras e números misturados.
Se à escrita cumpre o papel de representar a oralidade, como explicar o fato não esperado de
números se misturarem às letras assumindo com elas o papel de escrita alfabética?
A escrita no CLG
No capítulo IV da introdução do CLG, Saussure aborda as imperfeições da
representação da língua pela escrita, sobretudo pelo sistema de escrita fonético. A partir de
exemplos de diversas línguas, especialmente do Francês, ele insiste no desacordo entre grafia
e pronúncia, destacando os efeitos nocivos deste para o estudo da língua. Esse capítulo é
carregado de um teor depreciativo à escrita, exemplificado a partir termos tais como “grafias
irracionais”, “ortografias flutuantes”, entre outros.
Depois de definir o objeto da linguística, Saussure inicia, podemos dizer, um trabalho
de “limpeza” da língua, a fim de separar todos os elementos que lhe são externos. A escrita é
um deles. O anúncio dessa atitude excludente aparece logo nas primeiras páginas do capítulo
supracitado:
Língua e escrita são dois sistemas distintos de signos; a razão de ser do segundo é
representar o primeiro; o objeto linguístico não se define pela combinação da
palavra escrita e da palavra falada; esta última, por si só, constitui tal objeto.
(2006[1916], p.34, grifo nosso).
Destacamos dois pontos neste trecho: o fato de Saussure equiparar a escrita a um
sistema de signos, ainda que numa posição inferior em relação à língua, e o esclarecimento
quanto à independência da língua (de tradição oral), que existe em função da “palavra falada”
e não da “palavra escrita”.
Embora o primeiro ponto mereça uma atenção maior, teceremos alguns comentários,
ainda que iniciais. O signo saussuriano é definido como “[...] uma entidade psíquica de duas
faces” (ibid., p. 80), ou seja, o significante e o significado. Quando Saussure atribui à escrita o
status de sistema de signos, a letra é potencialmente tratada como signo. Sendo o signo uma
entidade psíquica, imaterial, incorpórea, como poderia a letra representar a língua/som? Nem
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 563
mesmo o som confunde-se com a língua, como o próprio Saussure afirmou: “[...] é impossível
que o som, elemento material, pertença por si à língua. Ele não é, para ela, mais que uma
coisa secundária, matéria que põe em jogo.” (ibid., p. 137).
Pensamos, portanto, que essa ideia de representação da língua/som pela escrita
associa-se mais ao segundo ponto que destacamos, ou seja, à insistência de Saussure no fato
de a língua possuir uma tradição oral que independe da escrita. A isto subjaz a lógica da
anterioridade da oralidade em relação à escrita (rebatida, posteriormente, por Hjelmslev);
segundo Saussure, “[...] acabamos por esquecer que aprendemos a falar antes de aprender a
escrever, e inverte-se a relação natural” (2006[1916], p. 35).
O capítulo IV da segunda parte do curso3 atenta-se à explicitação do conceito de valor
linguístico. É este conceito que, dentre outros aspectos, justifica a língua enquanto sistema e
abala a ideia de representação da oralidade pela escrita.
Saussure afirma que “[...] o valor de qualquer termo que seja está determinado por
aquilo que o rodeia” (ibid., p. 135). Na escrita, por exemplo, a letra a é definida não por ser a,
mas por não se confundir com b, c, d, etc., se considerarmos as letras do alfabeto; o a pode
opor-se, ainda, ao para, ao de, ao com, etc., se considerarmos as preposições da língua
portuguesa. É nesse sentido que, na concepção saussuriana, o signo não é, mas vale.
Para explicar a concepção de valor atribuída ao aspecto material, Saussure recorre à
escrita, mais uma vez referindo-se a ela como um sistema de signos, e afirma:
1º os signos da escrita são arbitrários; nenhuma relação existe entre a letra t e
o som que ela designa;
2º o valor das letras é puramente negativo e diferencial; assim, a mesma
pessoa pode escrever t com variantes [...]. A única coisa essencial é que este
signo não se confunda em sua escrita, com o do l, do d etc.;
3º os valores da escrita só funcionam pela sua oposição recíproca dentro de
um sistema definido, composto de um número determinado de letras [...];
4º o meio de produção do signo é totalmente indiferente, pois não importa ao
sistema [...]. Quer eu escreva as letras em branco ou preto, em baixo ou alto
relevo, com uma pena ou com um cinzel, isso não tem importância para a
significação (ibid., p. 138-139, grifos em itálico no original).
Desta feita, o autor aponta para o reconhecimento do valor puramente negativo e
diferencial do fonema e da letra. O que vincula um ao outro não diz respeito à positividade de
suas propriedades, já que, em função da noção de valor, elas inexistem, não sendo possível
representá-los com relação a si próprios ou um pelo outro (FARIA, 1997, p. 104).
3Concordamos com Silveira (2009) ao apontar este capítulo como central na teorização saussuriana.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 564
Há uma forma que põe em jogo as unidades linguísticas na medida em que, mantidas
as relações de oposição, as variações de ordem substancial são irrelevantes. É o caso, por
exemplo, das variações na grafia da letra t que não comprometem o que lhe é essencial: o fato
de não confundir-se com l, d, etc.
Como compreender essa aparente contradição em Saussure que submete a escrita ora
ao encargo de representar a língua (falada), ora ao funcionamento linguístico?
Derrida (2008 [1973]) aponta-nos um caminho. Em seu projeto de desconstrução da
tradição ocidental, denominada por ele como logofonocêntrica4, o autor encontra em Saussure
uma filiação a essa tradição e a exclusão da escrita como consequência disso. Nesse sentido,
Mota (1997) afirma:
Com relação a Saussure, Derrida aponta a fidelidade deste às concepções clássicas
sobre a escrita. No Curso de Linguística Geral, a partir dos mesmos pressupostos e
princípios que nortearam o pensamento sobre a linguagem escrita na tradição,
Saussure atribuiria a ela, apenas uma função estrita e derivada (p.64, grifos em
itálico no original).
A função estrita e derivada da escrita, segundo Derrida, diz respeito à representação da
oralidade: a voz seria o significante primeiro, representação natural e imediata do sentido,
sendo a escrita secundária, “[...] o fora, a representação exterior da linguagem ou deste
pensamento-som” (2008 [1973], p.38).
Ademais, Derrida destaca que o signo em Saussure é linguístico, isto é, ele não
representa ideia ou coisa, e conclui que a tese do arbitrário do signo rege as relações entre
significante e significado, assim como entre fonema e grafema5.
Endruweit (2008), ao abordar, mais recentemente, o movimento de exclusão da escrita
no CLG, também aponta filiação saussuriana à tradição filosófica, especialmente ao
pensamento de Rousseau, assim como fará Derrida. Além disso, reconhece no linguista a
preocupação com a delimitação do objeto da “nova” ciência linguística. Ao analisar a
metáfora sobre os flutuadores de cortiça utilizada por Saussure para exemplificar o papel da
escrita em relação à língua, afirma Endruweit:
4Essa tradição baseia-se na filosofia do ser como presença. Ou seja, o signo linguístico seria “representativo do
sentido presente no pensamento ou da coisa mesma” (BORGES, 2006, p. 71). O privilégio da voz seria o de se
encontrar mais próximo do pensamento, sendo a palavra sonora o mais ideal dos signos.
5Dubois et al (1998[1973]) definem grafema como sendo o “[...] elemento abstrato de um sistema de escrita que
se realiza por formas chamadas alografes cujo traçado depende dos outros elementos do sistema [...]”(p. 312).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 565
Igualmente a escrita é acessória em relação à oralidade, essa, sim, essencial à língua.
Se acessória, é porque sobra, pode, tal qual os flutuadores, ser retirada sem afetar o
que realmente faz diferença. Esse é, pois, o próprio conceito de escrita como
representação da fala. (2008, p. 5-6)
A autora defende que a ideia de representação da oralidade legada à escrita é inviável
se considerarmos características do signo, apresentadas no capítulo sobre o valor, atribuídas,
também, à letra, tais como a arbitrariedade, a linearidade e a imaterialidade.
Os signos são: imotivados, tendo em vista que não há nenhuma relação entre a letra t e
o som relacionado a ela; são dispostos linearmente; e, por fim, são imateriais, incorpóreos, ou
seja, não se confundem com o suporte (sonoro ou visual) no qual são materializadas as regras
do sistema. Nesse sentido, Endruweit conclui:
Essa noção de escrita como representação, como símbolo, não poderia ser sustentada
no decorrer do Curso pela própria tese da arbitrariedade do signo. [...] A prioridade
do oral em relação à escrita está relacionada com a precedência temporal do
primeiro em relação ao último, isto significaria, portanto, entender a escrita como
representação da fala. (2008, p. 22)
A partir de Derrida e de Endruweit, constatamos que Saussure repete e, ao mesmo
tempo, inova a concepção de escrita fundamentada na representação do som pela letra. O
valor linguístico submete letra e som ao funcionamento simbólico da língua; ambas
relacionam-se, igualmente, à língua enquanto forma. Resta, ainda, considerarmos o caráter
natural atribuído à oralidade em função de sua anterioridade em relação à escrita. Nesse
sentido, recorremos a Hjelmslev que, sob os efeitos do CLG, contribui para o estudo da
relação entre oralidade e escrita.
Forma e substância em Hjelmslev e um lugar para a escrita
O pensamento de Louis Hjelmslev não poderia ser apresentado em sua totalidade e
rigor teórico, tendo em vista os limites desse trabalho. Centramos nossa atenção aos conceitos
de forma e substância6 e alguns dos desdobramentos destes que coloquem em evidência a
relação entre oralidade e escrita sob o viés da representação.
Segundo Ducrot (2001 [1972]), “[...] a teoria GLOSSEMÁTICA se apresenta como a
explicitação das intuições profundas de Saussure.” (p. 31, grifos no original). O pensamento
hjelmsleviano, baseado nas ideias saussurianas, trouxe novas contribuições para a linguística
do século XX, sobretudo para a Semiótica francesa.
6Consideramos, neste trabalho, as noções de forma e substância somente no plano da expressão, que compreende
a oralidade e a escrita como substâncias da expressão.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 566
A Glossemática pressupõe analisar a língua de forma imanente. Por imanente entende-
se o tipo de conhecimento “[...] que se baseia em si mesmo, da língua, considerada como uma
estrutura específica.” (FIORIN, p. 6, 2003). Isso significa dizer que a forma é independente da
substância, ou, como afirma Hjelmslev, que “[...] a ‘substância não pode em si mesma definir
uma língua”7 (2013 [1943], p. 110, grifos em itálico no original). Como conceber, nessa
perspectiva formal de língua, a oralidade e, especialmente, a escrita?
Hjelmslev posiciona-se contra a ideia de que há uma substância natural, e isto muito
interessa ao nosso questionamento sobre a escrita representar a oralidade. No capítulo
Linguagem e Não-Linguagem, ele abre uma discussão sobre a concepção tradicional de
linguagem natural, compreendida até então como a língua falada. Afirma o autor:
Acreditou-se que a substância da expressão da linguagem falada devia consistir
exclusivamente de ‘sons’. Tal como os Zwirner ressaltaram recentemente, com isso
se negligenciou o fato de que a fala é acompanhada pelo gesto e pela mímica, com
algumas de suas partes podendo mesmo ser substituídas por estes [...] (ibid., p. 110-
111)
Prossegue o autor destacando o fato de a mesma forma linguística poder manifestar-se
por outras substâncias que não sejam exclusivamente sonoras. É o caso, por exemplo, de a
escrita fonética manifestar a língua: “trata-se, aqui, de uma ‘substância’ gráfica que se dirige
apenas ao olho e que não precisa ser transposta em ‘substância’ sonora a fim de ser percebida
ou compreendida” (ibid., p. 111).
Com isso, Hjelmslev questiona a ideia de uma escrita derivada da oralidade,
eliminando a concepção de uma substância “natural”. Faria (2013), ao discutir os conceitos de
forma, substância e matéria, afirma ser a assunção de que não há uma substância natural ou
absoluta um dos pontos da reflexão hjelmsleviana mais relevantes para pensarmos a oralidade
e a escrita.
Segundo a autora, assumir, com Hjelmslev, a língua enquanto uma entidade autônoma
significa reconhecer ser esta constituída essencialmente de dependências internas; como
consequência, afirma ela, Hjelmslev nega a existência de uma substância absoluta ou de
realidade que independa das relações estabelecidas pela forma. Nesse sentido, a escrita “[...]
7 Nos Prolegômenos, Hjelmslev trata a substância como um elemento extralinguístico. Posteriormente, ele
percebeu que a substância poderia ser semioticamente formalizada e acrescentou o termo matéria para se referir
ao extralinguístico. Para unir os três níveis, Hjelmslev propôs a noção de manifestação: “[...] a substância é a
manifestação da forma na matéria.” (DUCROT, p. 33, 2001[1972]). Não abordaremos, nesse trabalho, a inclusão
do termo matéria.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 567
não é derivada da oralidade, uma vez que esta perde seu lugar de substância primeira/natural.”
(FARIA, 2013, p. 3).
Para responder à objeção de a escrita ser derivada da oralidade, Hjelmslev é, na
opinião de Faria, mais radical ainda ao assumir, com Russel, “a ausência de qualquer critério
para decidir qual é o mais antigo meio de expressão do homem, se a escrita ou a fala”
(HJELMSLEV, p. 111, 2013[1943]). Além disso, ele apoia-se em Saussure para defender que
“as considerações diacrônicas não são pertinentes para a descrição sincrônica.” (ibid., p. 112).
Para corroborar com a argumentação de Hjelmslev, Faria recupera a constatação saussuriana
de o fato diacrônico ser um acontecimento que existe em função de si mesmo e que, por isso,
as consequências sincrônicas dele derivadas lhe são totalmente estranhas.
Interessante considerarmos, a partir do contra-argumento de Hjelmslev, que a
sincronia, em termos saussurianos, pressupõe que as relações oriundas do sistema simbólico
da língua aconteçam ao mesmo tempo. É o caso, por exemplo, de quando uma criança, em
fase de aquisição de escrita, aprende a ler. As letras deixam de “representar” os sons, ou seja,
de existirem coladas à oralidade, e começam a se relacionarem umas às outras. É um
processo irreversível, ainda que não recuperemos seu começo, temos convicção de que se dá
de uma única e só vez8.
Hjelmslev insiste na autonomia da forma em relação à substância, seja ela de qualquer
natureza (sonora, gráfica, gestual, etc.). Conforme destaca Ducrot, se, na concepção
hjelmsleviana, a língua é forma e não substância, o é “[...] na medida em que suas unidades
devem definir-se pelas regras segundo as quais é possível combiná-las, pelo jogo que elas
autorizam.” (2001[1972], p. 32).
Para explicar a relação entre a forma e a substância, Hjelmslev propõe a noção de
manifestação, que, nesse primeiro momento, corresponde a “uma seleção na qual a forma
linguística é a constante e a substância, a variável.” (2013[1943], p. 113). Isso significa dizer
que a língua pressupõe uma estrutura manifestada ou manifestável em qualquer substância,
desde que o jogo simbólico seja mantido.
8Segundo Lévi-Strauss apud S. Auroux: "Toda coisa só tem sentido no interior daquilo que tem sentido. Isso é o
que C. Lévi-Strauss exprime perfeitamente, justamente a propósito da origem da linguagem: 'Quaisquer que
tenham sido o momento e as circunstâncias de seu aparecimento na escala da vida animal, a linguagem só pode
ter nascido de uma vez só. As coisas não podem ter começado a significar progressivamente. Na sequência de
uma transformação cujo estudo não cabe às ciências sociais, mas à biologia e à psicologia, ocorreu uma
passagem de um estágio no qual nada tinha sentido a outro no qual tudo fazia sentido'" (Auroux, Sylvain.
Filosofia da linguagem. São Paulo: Parábola, 2009. p.28)
Nas fronteiras da linguagem ǀ 568
Para finalizar, faremos uma breve análise de uma mensagem veiculada na internet para
que possamos dar suporte à discussão empreendida, a saber, a) a do valor linguístico; b) a da
língua enquanto forma manifestada na(s) substância(s) e, em detrimento desses conceitos,
sustentarmos o enfraquecimento da concepção de escrita que representa a oralidade.
A forma da língua em evidência
A imagem abaixo corresponde a um print do site de humor Insanos9:
Nela, podemos observar um texto, aparentemente enigmático, que apresenta letras,
números e alguns sinais de pontuação. Esse “enigma” se desfaz quando somos capazes de ler
o seguinte
Esta mensagem serve para provar como nosso cérebro pode fazer coisas
maravilhosas! Coisas surpreendentes! No começo foi difícil mas agora, nessa linha,
seu cérebro já consegue ler automaticamente. Parabéns! Apenas algumas pessoas
conseguem ler. Compartilhe se você conseguiu!
O sucesso desta mensagem que circula na internet comprova que os falantes
alfabetizados em língua portuguesa conseguem ler o texto, embora haja o estranhamento
inicial. Por que isso foi possível? Guardadas nossas habilidades cerebrais, há uma forma
subjacente que autoriza a leitura desse texto, ainda que as substâncias (letras e números)
sejam, a priori, tão diferentes.
9 O endereço eletrônico do site é www.insanos.com.br.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 569
Ademais, quando lemos, não lidamos com as letras e os números isoladamente, mas
em conjunto, como num sistema de valores. Se não relacionássemos os elementos (letras e
números, neste caso) uns aos outros em cadeia, a leitura seria inviabilizada. Não descartamos
o fato de os números 1,3,4,5,6 apresentarem certa semelhança com a grafia das letras i, e, a, s
e g, respectivamente. Ainda assim, o princípio do valor se mantém tendo em vista que as
possíveis variações no traçado das letras, bem como o meio material de que o sujeito se sirva
para grafá-las, são irrelevantes, desde que a relação de oposição entre elas permaneça.
Sendo a língua uma forma autônoma, constituída apenas por dependências internas, é
possível que a substância na qual essa forma se manifeste seja variável, mesmo que
concomitantemente, como é o caso desse texto, que reúne letras e números. É na própria
definição de língua enquanto forma que reconhecemos ser possível a coexistência entre
substâncias, sejam elas orais, gráficas, numéricas, etc, como defende Hjelmslev.
Afetadas pelo sistema, as substâncias passam a funcionar simbolicamente,
independente de suas origens. Como supor que o número, originalmente associado a
grandezas matemáticas, pudesse servir de substância para uma língua? São detalhes que a
concepção de escrita como derivada da oralidade não explica. Além disso, há características
exclusivas da escrita, tais como o espaçamento entre as palavras, a disposição em parágrafos,
o nome das letras do alfabeto, etc., que, em razão de a forma linguística abrigar possíveis
deslizamentos entre as substâncias, podem aparecer também na oralidade, e vice-versa.
Considerações finais
No início desse artigo, denominamos a concepção de representação da oralidade pela
escrita de elementar, tecendo argumentos, desde a publicação do CLG, a partir da noção de
valor linguístico, até as noções de forma e substância ressignificadas por Hjelmslev em seus
Prolegômenos, além da pequena análise feita sobre um texto retirado da internet que
enfraquecem uma relação biunívoca e hierárquica entre o oral e o escrito, bem como a ideia
de representação do primeiro pelo segundo.
Esperamos ter cumprido nosso objetivo, embora salientemos que a discussão aqui
pretendida não esteja esgotada. Há muito que investigarmos sobre, por exemplo, como se dá a
seleção da substância pela forma, bem como o papel do sujeito nessa seleção, questões
apontadas por Faria (2013). E, ainda, pensando no ambiente escolar, quais seriam as possíveis
implicações pedagógicas oriundas de uma concepção formal da escrita, chamemos assim, que
Nas fronteiras da linguagem ǀ 570
concebe oralidade e escrita não como representação de um pelo outro, mas como substâncias
igualmente acessíveis ao sujeito através da língua.
Referências
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SILVEIRA, E. M. “A teoria do valor no curso de linguística geral”, in: Letras & Letras
(UFU), v. 25, p. 39-54, 2009.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 571
A EXPERIÊNCIA DO ENFRENTAMENTO NO ESPAÇO DA
INTIMIDADE: UMA LEITURA DO ROMANCE A PAIXÃO
SEGUNDO G.H. [Voltar para Sumário]
Daysa Rêgo de Lima (PPGL/UERN)
A paixão segundo G.H (2009) é uma obra de um viés filosófico e psicanalítico que
coloca o leitor em contato com situações antagônicas, a saber: grotesco e belo, inferno
paraíso, amor e ódio, dentre outras. Mas ao mesmo tempo é uma obra tocante, pois permite
uma frequente procura do eu. Ela é considerada por muitos críticos como o grande romance
da escritora Clarice Lispector, pois marca a literatura brasileira por tratar de um
acontecimento trivial, voltado a uma perspectiva humanística. Nesse sentido, a partir do
momento que a personagem G.H. encontra a barata, ela inicia uma transformação em seu
estado de espírito que a faz desenvolver uma profunda reflexão desde sua essência até a sua
realidade. Essa transformação se enaltece quando a personagem esmaga o inseto, e defronta-
se com conflitos existenciais que causam um desconforto em sua vida, levando-a a comer a
barata. “É o animal que a leva a dar o passo no caminho da desordem, da desorganização e da
tragédia. Sem ele jamais alcançaria o clímax de sua existência, dividida entre as preocupações
artísticas e alguns casos de amor” (NUNES, 1995, p. 61).
A personagem G.H. é uma mulher independente, de vida tranquila, estável, situada
no topo da hierarquia social (por morar num apartamento da cobertura), possui um senso de
ordem, da beleza, do bom gosto, além de ser muito organizada. Seu nome, no entanto, é
desconhecido, assim, como sua descrição física, sabemos apenas as inicias por algumas pistas
deixadas na obra. No entanto, a barata – personagem que protagonizará com G.H. no romance
– possui descrições minuciosas, a saber: os olhos, a boca, seus bigodes, os cílios, a possível
idade e a própria cor “Ela era arruivada. E toda cheia de cílios. Os cílios seriam talvez as
múltiplas pernas” (LISPECTOR, 2009, p. 55).
Compreendemos que o romance é um componente importante nos estudos literários,
por essa razão, Lukács (2000) em seu ensaio “A teoria do romance” enfatiza que questões
filosóficas e históricas tornaram-se um padrão estético do romance contemporâneo, bem
Nas fronteiras da linguagem ǀ 572
como o monólogo interior e o fluxo de consciência. O crítico estabelece as epopeias, histórias
de grande esplendor, graça e perfeição onde o herói luta pelo desejo coletivo, como as
primeiras manifestações que caracterizaram esse novo romance. A escrita de Clarice
corrobora com essa concepção de romance estabelecida pelo autor, visto que suas obras
também possuem esses traços, assim, chega a ser convidativa a forma como ela contempla
diversos modos de caracterizar esse nova concepção e/ou estilo literário.
Lukács ainda destaca que, como marca da subjetividade do sujeito humano, o
romance moderno vem se desenvolver em meio aos conflitos experienciados pelo homem, e
com sua forma de se ligar/unir ao mundo. O autor apresenta também a diferença entre a
epopeia e o romance, em que o primeiro vai enfatizar os fazeres heroicos e históricos dos
homens, enquanto o segundo vai tratar da busca de identificação com o mundo, a partir da
singularidade e individualidade do ser.
Auerbach (1976) em sua discussão sobre o romance moderno vem apresentar as
mudanças sofridas no passar dos anos, destacando desde as transformações do narrador até as
temáticas referente à criação artística, em que acontecimentos banais, triviais ganharam
espaço e ares de método. Ele destaca o desaparecimento do narrador, o movimento de
consciência dos personagens, dentre outras questões que farão parte ao romance
contemporâneo. Observa-se que, assim, como a vida evolui, desde as transformações sociais
até as paisagísticas, com a narrativa não foi diferente. O modo de narrar conforme Adorno
(2003) também vai se modificando, a prova disso está nas narrativas do século XX em que
coisas e acontecimentos banais passaram a ser objeto de análise, como pedras, aspirinas,
cidadezinhas, bem como a representação do anti-herói, muito comum nos personagens de
Clarice. O romance vai se modificando com o passar dos tempos, e desenvolvendo uma
relação com o “palco italiano”. O leitor sai de uma posição fixa e mais cômoda, e passa a agir
e refletir.
Por tudo isso, estudar Clarice Lispector tornou-se possível, sobretudo, pelos
rompimentos e adaptações das narrativas com os modelos tradicionalmente estabelecidos. Ela
que desenvolve uma literatura existencialista, numa perspectiva humanista, com alienações,
conflitos existenciais, dentre outras características semelhantes à escrita de Virginia Woolf e
Kafka. Sua obra caracterizada por estruturas diferentes, devido à ausência de diálogos, e em
contrapartida, a notável frequência de monólogos, dentre outras particularidades que fazem
parte do romance moderno, bem como narrativas com finais não felizes, marcada pela
epifania permitindo o (des)encontro dos personagens consigo mesmo, são alguns dos traços
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 573
que influenciaram para que Clarice se tornasse uma autora memorável e se enquadrasse nessa
estética literária contemporânea.
Dentre as diversas categorias analíticas que podem ser estudadas na obra
lispectoriana, acreditamos que o espaço, vai desenvolver maior relevância no romance A
paixão segundo G.H., pois ele vai influenciar diretamente o desenvolvimento da história, e
marcá-la de forma singular, devido o apartamento e, mais precisamente, o quarto da
empregada ser esse espaço, onde as reflexões da personagem serão desenvolvidas.
No que diz respeito ao espaço literário, seja ele no romance, no conto ou em qualquer
outro gênero, é uma categoria analítica que como destaca Dimas (1985) “é um dos múltiplos
recursos à disposição do romancista para compor o seu universo ficcional”. Por ser
fundamental na construção literária, sobretudo, por ser nele onde ocorre a ação da narrativa,
ele ainda desempenha diversas funções, a saber: caracterização/definição dos personagens,
localização geográfica, determinação de posicionamentos e da própria ação da narrativa,
motivação de comportamentos (inibindo ou estimulando), dentre outras. Isso nos leva a
compreender sua pertinência, este que, costumeiramente, se apresenta através de três espaços
principais: o físico, o social e o psicológico, em que cada um possui suas características e
particularidades.
Bachelard (2008) em sua obra a poética do espaço vai apresenta no capítulo da casa
que “Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades
do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma. É o primeiro mundo do ser humano”
(BACHELARD, 2008, p. 26). Por essa razão, a casa é fundamental para o sujeito humano, é
de fato seu alicerce, um abrigo cultural, habitado desde o início dos tempos, seja nas cavernas,
nas choupanas, nos palácios, pois todos nós, desde o nascimento, precisamos de um lugar para
chamar de nosso, para nos defender, esconder, crescer e abrigar.
Frente ao exposto, o espaço no romance A paixão segundo G.H. se desenvolve no
apartamento e mais especificamente no quarto da empregada, esse espaço se apresenta em
oposição à personagem G.H, pois enquanto que os outros cômodos do apartamento eram
alegres, arrumados, sofisticados, o quarto da empregada era de fato o oposto. E nesse lugar
era onde estava tudo o que desequilibrou a vida e rotina de G.H. – a barata.
O quarto como a própria personagem descrevia era como se fosse um cômodo
isolado, que não pertencesse ao apartamento, por isso ela não encontrava nada que a
identificasse com aquele ambiente, “O quarto divergia tanto do resto do apartamento que para
entrar nele era como se eu antes tivesse saído de minha casa e batido a porta. O quarto era o
oposto do que criara em minha casa, o oposto da suave beleza que resultara em meu talento de
Nas fronteiras da linguagem ǀ 574
arrumar [...]” (LISPECTOR, 2009, p. 41). Esse aposento desacertava todo espaço agradável
da casa de G.H, para ela aquele cômodo era o bas-fond de sua casa, (espaço marginalizado),
primeiro pelo fato de ser o abrigo da antiga empregada, e segundo pela personagem presumir
que lá estaria sombrio, sujo e desorganizado, o que para sua surpresa, estava “inteiramente
limpo”.
A partir do momento que G.H. passa a visitar aquele novo ambiente, sua vida
começa a se transformar, mesmo com pequenas indagações que posteriormente a levarão a
um fluxo de consciência, “Naquela manhã, antes de entrar no quarto, o que era eu? Era o que
os outros sempre me haviam visto ser, e assim eu me conhecia. Não sei dizer o que eu era.”
(LISPECTOR, 2009, p. 22-23). A personagem compreendeu quão impactante foi esse
encontro, que embora para muitos pudesse parecer banal, mas que para ela foi chocante, pois
o contato com a sua própria casa gerou uma série de reações que colocaram a prova sua
existência e identidade, e em breve marcaria sua vida para sempre.
O encontro de G.H. com a barata no quarto desencadearam profundas análises
relacionadas à sua existência, desde o primeiro momento que a viu “[...] bem próximo de
meus olhos, na meia escuridão, movera-se a barata grossa.” (LISPECTOR, 2009, p. 46). Até o
momento da comunhão “Crispei minhas unhas na parede: eu sentia agora o nojento na minha
boca, e então comecei a cuspir, a cuspir furiosamente aquele gosto de coisa alguma [...]”
(LISPECTOR, 2009, p. 166-167). O quarto agora, tornara-se pior, pois naquele lugar ela
havia presenciado um encontro doloroso e que ela comungou de tudo que questionava. E após
todos os acontecimentos, sobretudo, sua experiência negativa ela volta a sua rotina e as coisas
permanecem iguais, mas ela não é mais a mesma.
De acordo com Adorno, a alienação é provocada por um fluxo de narrar. O
desligamento da natureza humana, ou melhor, a desconexão com a realidade faz com que o
homem se esclareça. Nesse sentido, a personagem, desde então, passou a viver em função do
esclarecimento da própria existência. Lukcás corrobora com a concepção do autor, e afirma
que “[...] a forma interna do romance é a peregrinação do indivíduo problemático rumo a si
mesmo, o caminho desde o opaco cativeiro na realidade simplesmente existente, em si
heterogênea e vazia de sentido para o indivíduo, rumo ao claro autoconhecimento.”
(LUKÁCS, 2000, p. 82). Dessa forma, o quarto foi o passaporte da personagem rumo a essa
alteração espiritual e social vivenciada em seu apartamento de luxo.
Em meio a tantas indagações quanto a sua existência, a personagem nos surpreende,
e afirma:
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 575
O apartamento me reflete. É no último andar, o que é considerado uma elegância.
Pessoas de meu ambiente procuram morar na chamada “cobertura”. É bem mais que
uma elegância. É um verdadeiro prazer: de lá domina-se uma cidade. Quando essa
elegância se vulgarizar, eu, sem sequer saber por que, me mudarei para outra
elegância? Talvez. Como eu, o apartamento tem penumbras e luzes úmidas, nada
aqui é brusco: um aposento precede e promete o outro. Da minha sala de jantar eu
via as misturas de sombras que preludiavam o living. Tudo aqui é a réplica elegante,
irônica e espirituosa de uma vida que nunca existiu em parte alguma: minha casa é
uma criação apenas artística. (LISPECTOR, 2009, p. 23, grifos nossos)
A partir da afirmação de G.H. o apartamento me reflete vemos que a personagem se
identificava com o seu lar, existindo naquele espaço uma relação de espelhamento, um
reluzia, comple(men)tava o outro, era como se o apartamento fosse uma extensão da
personagem. Embora, ela estivesse vivendo em meio a um paradoxo, entre o que apreciava e
o que a causava repúdio. É notória à identificação da personagem com a estrutura física do
apartamento, pois há uma associação do espaço da casa com a personagem G.H, sendo esse o
seu espaço íntimo. Devido o apartamento a refletir, pelo seu aspecto físico limpo, arrumado,
organizado, dotado de bom gosto, ele acaba em consonância com a personagem que era
escultora, por isso, sofisticada, amante do refinamento e do belo. Esse espaço pode ser
comparado ao espaço do ninho em Bachelard, em que a personagem G.H. ganhava de certa
forma a configuração, o contorno desse apartamento, tão sofisticado quanto seus móveis e
suas obras de arte, era como se ela fosse um complemento daquele espaço, tal qual o corcunda
em meio as esculturas na catedral de Notre-Dame.
Dimas corroborando com a concepção de Bachelard no que diz respeito à casa,
apresenta que ela semanticamente denota a concepção de “[...] proteção, sossego,
concentração, estabilidade ou o seu contrário” (DIMAS, 1985, p. 45, grifo nosso). Essa
descrição levantada pelo autor evidencia a realidade da personagem G.H, uma vez que seu
apartamento (casa) era exatamente sua zona de conforto, aquele espaço que a refletia, visto
que ele era uma extensão dela, e de tudo que a personagem apreciava. No entanto, o quarto da
empregada, que ainda fazia parte da sua residência, embora mais parecesse outro lugar,
desorganizou o seu conforto, por ser oposto a tudo que ela admirava, e passou a ser então
contrário a tudo que o seu lar estimava.
Além dessa constatação, Bachelard destaca também o ninho como um esconderijo,
refúgio, dentre outras acepções, visto que as criaturas prezam por refugiar-se em um local,
independente do requinte, “O ninho, como toda imagem de repouso, de tranquilidade, associa-
se imediatamente à imagem da casa simples” (p. 104). Assim, ele é um espaço de aconchego e
acalanto semelhante ao estimado apartamento de G.H. Todavia, Dimas ainda acrescenta:
“Desse modo, Bachelard lembra que o ninho não evoca apenas proteção e segurança, mas
Nas fronteiras da linguagem ǀ 576
também precariedade e fragilidade” (DIMAS, 1985, p. 45, grifos nossos). Tal qual a casa, o
ninho também pode se resignificar, ter uma nova conotação, devido alguma mudança que
acarrete esse desmoronamento ou desestruturação. Em A paixão segundo G.H. verificamos
essa transformação a partir de uma “[...] confissão de uma experiência tormentosa, motivada
por um acontecimento banal” (NUNES, 1995, p. 58). Assim, embora a casa e ninho tenham
denotação de paz, sossego e abrigo, eles podem surpreender, e foi isso o que aconteceu com
eles quando G.H. entrou em contato com o antigo espaço íntimo da empregada. Essa
concepção se desestruturou metaforicamente, e tornaram frágeis e contrários esses espaços,
costumeiramente, representantes da paz e sossego.
Mediante isso, inferimos que o espaço é um grande caracterizador e instigador para o
romance, pois norteou toda a narrativa, com as reflexões de G.H. seguida da comunhão com a
barata. Vemos um espaço que a princípio foi estereotipado, por abrigar a empregada, em que
a própria G.H. chegou a imaginá-lo imundo, e se surpreendeu. Em seguida, esse espaço volta
a ser marginalizado por abrigar o ser que modificou a vida da personagem e,
consequentemente, estimulou seus conflitos existenciais. Passou também a ser visto como um
cômodo isolado, uma vez que para chegar a ele, G.H. imaginava que saísse de sua casa para
poder entrar nele. E por fim, foi o espaço onde a personagem entra em comunhão com inseto.
No entanto, apesar da visão negativa depositada a ele, no fim da narrativa
verificamos que esse espaço modificou a personagem, pois descortinou a vida de G.H, de
modo que ela pudesse compreender sua existência a partir de um processo doloroso, pois
precisou arrancá-la de seu conforto para que ela pudesse compreender que sua existência vai
além de uma vida luxuosa em um apartamento de cobertura. Assim, a personagem precisou
descer desse edifício, e presenciar o feio, a dor e conflitos existenciais, pois só essa queda
possibilitou uma profunda análise arraigada em uma viagem a sua primitividade. O confronto
com a barata permitiu a personagem libertar suas alienações sociais de uma vida automática,
de modo a se desligar do mundo para religá-lo novamente, pois “Pela repugnância, G.H. saíra
de seu mundo e pela repugnância retorna à normalidade do cotidiano” (NUNES, 1995, p. 65).
E mesmo esse momento epifânico tendo cessado, permitindo que ela voltasse a sua rotina,
mas, jamais G.H. foi à mesma.
Referências
ADORNO, T. W. Notas de Leitura I. São Paulo: Editora 34, 2003.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 577
AUERBACH, E. Mimeses. A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo:
Perspectiva, 1976.
BACHELARD, G. A casa. Do porão ao sótão. O sentido da cabana. In: A poética do espaço.
São Paulo: Martins fontes, 2008, p. 23 – 53.
BACHELARD, G. O ninho. In: A poética do espaço. São Paulo: Martins fontes, 2008, p. 103
– 116.
DIMAS, A. Espaço e romance. São Paulo: Ática, 1985.
LUKÁCS, G. A teoria do romance. São Paulo: Duas cidades, Editora 34, 2000.
LISPECTOR, C. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.
NUNES, B. O itinerário místico de G.H. In: O drama da linguagem. São Paulo: Ática, 1995,
p. 58 – 76.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 578
DISCURSO CRONÍSTICO; IDEOLOGIA E
MARGINALIZAÇÃO ÉTNICO-RACIAL. REPRESENTAÇÕES
DISCURSIVAS EM ACD – VAN DIJK E ALTHUSSER. [Voltar para Sumário]
Dayvison Bandeira de Moura1 (UA-PY)
Cacilda Rodolfo de Andrade2 ( UA-PY)
Edair Gonçalves3 (IFECT-SP)
Introdução
Em meio às oportunidades que foram vivenciadas por nós, em ambientes institucionais
onde pudemos refletir sobre as implicações advindas das ações do racismo. Bem como,
analisar suas consequências marginalizadoras.
Haja vista, as muitas obstruções ao acesso e exercício de direitos sociais que são,
indispensáveis, para a existência, de fato, de pessoas vítimas do preconceito. Nossas
experiências ocorreram em militâncias em favor da aquisição de direitos sociais diversos.
Sobretudo, o direito à escolarização. Não apenas, seu ingresso em ambientes que o
ofertassem, mas também, que criassem condições para a permanência daqueles e daquelas que
parcialmente, foram, e, via de regra, são incluídos, por meio de suas matrículas em diversos
estabelecimentos para suscitar a aprendizagem.
Momento em que nasce a necessidade do encontro entre os saberes típicos dos
currículos habituais, na escola. Mas, em face, de sua reinvenção seguindo moldes
ressignificadores de direitos e, mais ainda, de pessoas. Assim, deveria a escola sistematizar os
legados legítimos de seus então, educandos. Todavia, essa assertiva, tem se mostrado um
verdadeiro desafio, frente a já comum, exclusão de indivíduos que foram e têm, ainda, sido
1 Dayvison Bandeira de Moura: Doutorando em Ciências da Educação – UA – PY; Especialista em Práticas
Discursivas na FAFIRE, 2010; Especialista em Ensino de EJA - PROEJA - IFPE, 2014; Graduação: Letras
Vernáculo – FAFIRE, 2003; Magistério, 1998; Professor secundarista de Língua Portuguesa da SEDUC- PE 2 Prof.ª Cacilda Rodolfo de Andrade, Mestranda em Ciências da Educação – UNIBE – PY. 3 Edair Gonçalves3: Mestrando em Ciências da Educação – UTIC – PY. Instituto Federal Educação, Ciência e
Tecnologia de São Paulo.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 579
segregados em virtude de sua cor de pele. Ou, melhor dizendo, de suas origens étnicas.
Mesmo que caiba ao currículo e a escola, bem como seus atores, combater as ações
excludentes. E esta perspectiva, deve e precisa ser manifesta por meio de inúmeras
estratégias. Percebamos:
O currículo não é o elemento inocente e neutro de transmissão desinteressada do
conhecimento social. O currículo está implicado em relações de poder, o currículo
transmite visões sociais particulares, e interessadas, produz identidades individuais e
sociais particulares. O currículo não é um elemento transcendente e atemporal – ele
tem uma história, vinculada as formas específicas e contingentes de organização da
sociedade e da educação. (MOURA, 2013, p.119 Apud MOREIRA; SILVA, 2005,
p. 8).
Neste artigo, pretendemos focalizar uma delas: o trabalho de leitura crítica acerca dos
elementos lexicais, considerados, neste estudo, relevantes. Especificamente, as locuções
adjetivas e as locuções adverbias, à saber “De rua”, “De família”, “Na rua”. Mediante o
contexto ao qual se subordina à crônica: De que são os meninos de rua? De Marina Colasanti,
publicado em 1985. Ação que permite aos leitores uma análise apurada não apenas sobre o
fato. Mas, sobretudo sobre o que o fato nos revela. Assim como também, como este se liga a
uma tradição excludente, marginalizadora que obstruiu, e, pode obstruir, demais, o acesso à
uma existência social, cidadã de qualquer meninos de rua. Mais ainda, se forem negras.
O que é discurso cronístico?
Ressaltemos, inicialmente, que se pode relatar apenas, ou comentar. A primeira deve
girar em torno de uma descrição dos acontecimentos relatados, havendo uma relativa
“neutralidade”, no desenvolvimento dos acontecimentos. Quanto ao segundo há a descrição,
porém esta passa a ser entrecortada pelo comentários manifestos ou tácitos do enunciador do
texto jornalístico. Conforme assinala Charaudeau (2009) no livro: Discurso das Mídias.
Momento em que ele reflete sobre a relação intrínseca entre relatar e comentar,
apregoando que ambas refletem interfaces de uma “discursivização”. Em suas palavras: “Na
verdade, essa dupla atividade discursiva empreende a mesma busca: conhecer o porquê dos
fatos, dos seres e das coisas, e, com essa finalidade, comenta-se contando ou conta-se
comentando.” (CHARAUDEAU, 2009, p.175).
“Tudo é argumentação” (apud: DUCROT, CHARAUDEAU, 2009. p. 175). Tendo em
mente a análise que faremos da crônica de Marina Colasanti, corpus que tomamos como
análise para esse estudo, preferimos então, agregar, também, a este estudo o pensamento supra
Nas fronteiras da linguagem ǀ 580
mencionado. Esta assertiva é desenvolvida por Charaudeau quando ele explícita parte de suas
considerações:
Espera-se, assim, do sujeito enunciador do propósito, que ele produza argumentos
em apoio às proposições. Pode-se dizer que a problematização baseia-se três
atividades mentais: emitir um propósito (o tema que se fala), inseri-lo numa
proposição (o questionamento) e trazer argumentos (persuadir). (CHARAUDEAU,
1992, p. 177).
As teorias crítico-reprodutivistas: Teoria da escola enquanto aparelho ideológico de
estado (AIE).
Há duas dessas teorias elencadas e explicitadas por Demerval Saviani em seu livro:
Escola e Democracia. Onde ele aborda tais conceitos dessas, bem como suas implicações para
inclusão de qualidade proposta, em tese, pela escola, para os educandos assistidos por esta.
Saviani trata da Teoria do sistema de ensino enquanto violência simbólica, concebida
por Pierre Bourdier e J. C. Passeron (1975). Feito isto, reflete sobre a teoria de Luis Althusser
que intitula essa etapa do artigo. Sua concepção acerca dos Aparelhos Repressivos de Estado,
que é composta pelo Governo, a Administração, o Exército, a Polícia, os Tribunais, as Prisões
e etc.), delas emergem os Aparelhos Ideológicos de Estado, os (AIE). Dentre vários citados
por Althusser, faremos algumas reflexões a respeito do AIE escolar (o sistema das diferentes
escolas públicas e particulares) e o AIE familiar (ALTHUSSER, 1977).
A distinção entre ambos assenta no fato de que o aparelho Repressivo de Estado
funciona massivamente pela violência e secundariamente pela ideologia enquanto
que inversamente, os Aparelhos Ideológicos de estado funcionam massivamente
pela ideologia e secundariamente pela repressão. (SAVIANI Apud
ALTHUSSER,1977, p. 43-44).
Nesse sentido, para esse estudo, apropriamos a ideia de que a escola concebeu por
muito tempo um estereótipo de estudante que não se adequava aos egressos das classes
marginalizadas. Vítimas do empobrecimento que se deu ao longo da história exploratória
pertinente ao período da Colônia, da República e, do seu entreposto, o Estado Novo...
“estabelecido pela Constituição em 1824, no artigo 179, parágrafo 32, logo após a dissolução
da Assembléia constituinte de 1823: a instrução primária era gratuita a todos os cidadãos.”
(GONDRA, 2008, p. 30). Entendamos que os escravizados, os libertos (alforriados), os
indígenas não eram cidadãos. Portanto, não portadores de direitos.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 581
Esse quadro de negação de direitos e marginalização e exclusão social eram
combatidos por inúmeras ações para pleitear ao Estado, e consequentemente, à sociedade
cidadã. Como podemos ver:
É importante destacar que lutas e protestos em torno das definições da cidadania
imposta na Constituição de 1824, inclusive entre negros e mestiços, assim como
houve disputas pela delimitação do público-alvo das escolas e pelo alargamento dos
direitos à educação escolar ao longo de todo o Oitocentos, abrangendo as propostas
para civilizar índios, libertos e rever a instrução oferecida às mulheres. (GONDRA,
2008, p. 30).
Além de ações para buscar a legítima identidade africana negra, e, ou afrodescendente
desde o período Colonial, como algo, indispensável, a ser conquistado erigido, forjado.
Lembremo-nos da importâncias dos Quilombos na busca de uma liberdade, ampla e
igualitária, já à época a todas as etnias perseguidas, pela ocorrência de sua não legitimidade
humana. Vejamos, outro dado, que a nosso ver nesse estudo é seguramente, um
contextualizador histórico e social do abandono que acaba a resultar em um conjunto de
marginalizações sociais a qualquer etnia, sobretudo, aos negros africanos e afrodescendentes.
O período Regencial (1831 -1840), na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, assistiu
à proliferação de pasquins exaltados e radicais, como O Homem de cor, O Brasileiro Pardo, O
mulato e o Cabrito, os quais lutavam por igualdade de direitos entre os cidadãos brasileiros,
independentemente da origem étnica. Para a Bahia, as pesquisas de João Reis (1989) e
Grinberg (2000) demostraram o quanto estas questões ainda eram debatidas, mesmo após a
regulamentação legal da Constituição. As disputas sobre os significados do que consistia ser
brasileiro e os limites para a cidadania derivam das próprias disposições legais. (GONDRA,
2008, pp.30-31).
Assim como, as concepções típicas da eugenia e xenofobismo que elidiu do exercício
efetivo, de direitos, os que eram “diferentes” das etnias eurocêntricas que desfrutavam de
privilégios sociais, como o acesso à escola, aos direitos civis, o acesso ao emprego formal
com carteira assinada, à moradia digna, à saúde de qualidade, serem vistos como gente...
Dentre outros direitos que só seriam previstos em lei, nas legislações mais recentes,
como é o caso, da reformulação da constituição federal, para a formação de um novo Brasil, a
de 1988. Onde inúmeros direitos foram consolidados aos antes “marginalizados”. Neste
século, o XXI, a emergência da lei 10.639/03. Medidas que comprometeram a antiga
sociedade brasileira, a reconhecer, a forçada, inclusão de direitos, ainda que em tese, às
maiorias excluídas. Neste texto, nos restringiremos as reflexões acerca das etnias negras
Nas fronteiras da linguagem ǀ 582
africanas e afrodescendentes. Dedicamos, exclusivamente, uma etapa desse artigo ao gênero
feminino, em função de marginalizações ainda maiores.
Mas, é necessário pensarmos também, nas exclusões ainda mais antigas, sofridas pelos
indígenas do território “descoberto por Cabral, ou “Pinzon”, se preferirem pensar situar desse
modo.
Note que nos propusemos fazer apenas, alguns recortes sobre os aparelhos ideológicos
de Estado, a escola e a família. Para que pudéssemos situar a agressão sofridas por estes
setores, à medida que atuavam consciente e inconscientemente, na disseminação de ideologias
para a dominação social, e para a reiteração do lugar-comum, típico da negação, como sendo
um reflexo do destino a que estas subclasses estavam subordinadas. Pois, “a ideologia tem
uma existência material” (SAVIANI, 1988, p.33). “Isto significa dizer que a ideologia existe
sempre radicada em práticas materiais reguladas por rituais materiais definidos por
instituições materiais.” (Apud: SAVIANI: ALTHUSSER, 1977, s.d..88-89). Algo que bem
parafraseia a epistemologia marxista do materialismo histórico e dialético, concebido por
Marx.
Como não entender que fora materialmente, que instituições representaram, por quase
todos, os últimos 50 anos do século XX, no Brasil, a existência de instituições públicas e
privadas como a escola e a família que reiteravam em suas práticas a concepção da exclusão e
marginalização em ações típicas para a civilização por amordaçamento e “despertencimento”
étnico? Ao escolhermos e avaliarmos o corpus selecionado, ele nos direcionou ainda mais
nesta direção. Uma que estamos há anos flertando.
Entendemos que se a ação da escola, dadas as exceções, atuou na preferência daqueles
que podiam ingressar na educação básica. E, estes eram tipicamente os de pele branca, e, não
pobres. Imaginem os muitos miseráveis radicados em diferentes lugares do Brasil, onde os
processos de marginalização eram mais austeros do que em outras regiões. Pensemos nas
antíteses e paradoxos perpetrados de maneira ainda mais dilacerante e obstrutiva, se
começarmos a pensar nestes acontecimentos ocorrendo na região Sudeste, em contraste com
sua ocorrência ainda mais nociva, nas regiões Nordeste e Norte. Mais ainda, longe de suas
capitais? Será que então, diante disso não conseguiremos refletir o quanto as ideologias de
reprodução para a dominação, marginalização e amordaçamento se deram neste país, gerando
os atuais cenários de marginalização e desigualdade social?
Não podemos, contemporaneamente, falando, não efetuarmos uma análise de um
gênero textual que nos permite suscitar o olhar flagrante do ou da cronista, a serviço de que
nossos educandos assumam uma visão crítica, também, fruto de uma leitura crítica dos
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 583
contextos que produziram desigualdades política e historicamente, neste país. Prática
assumida pelo Estado, gerando obstruções, entraves para a legitimação de direitos sociais, aos
muitos tipos de excluídos. E, saibamos que coube à escola e à família aturarem, ainda que
com exceções, para a disseminação de ideologias racistas, xenofóbicas, eugênicas. Algo que
vitimou de inúmeras maneiras nossas crianças, meninos e meninas. Esta ação tornando-se
uma tradição e cultura más, ainda que nocivas à vida e à dignidade.
Voltaremos a aspectos desta teoria no momento em que estivermos realizando alguns
recortes na crônica de Marina Colasanti que atua como corpus para as práticas discursivas,
decorrentes da leitura de gênero em sala de aula, como algo necessário. Algo que corrobora a
importância da leitura deste gênero sob o olhar da ideologia numa perspectiva da Análise
Crítica do Discurso.
Conceito de ideologia, conforme a ACD.
Neste estudo buscamos delinear a ideologia subjacente à crítica feita pela cronista, por
meio dos recursos prosaicos das quais autora lançou mão. Numa demonstração dos recursos
delineados por Patrick Charaudeau ao analisar os elementos que compõem o texto midiático.
Fizemos algumas já antes mencionadas e, agora passaremos a tratar de outros aspectos
elencados por Dijk (2008), acerca das implicações da ideologia no discurso. E neste caso, para
este estudo o “cronístico”, ou seja, o da crônica.
Convém explicitar que análise crítica do discurso, ou ACD:
é um tipo de investigação analítica que estuda principalmente o modo como o abuso
de poder, a dominação e a desigualdade são representados, reproduzidos e
combatidos por textos orais e escritos no contexto social e político [...] os analistas
críticos do discurso, adotam um posicionamento explícito e, assim, objetivam
compreender, desvelar e, em última instância, opor-se à desigualdade social. (DIJK,
2008, p. 113).
Diante do explicitado iremos compreender como esta concepção teórica pode ser
aplicada ao estudo que faremos do corpus.
Desde o título da crônica nos pareceu evidente a relação entre o dito por Charaudeau,
ao se apoiar no pensamento de Ducrot, quando classificam como argumentativos os relatos ou
comentários apresentados pelo enunciador. Pois segundo os mesmos independe da forma que
o enunciador midiático desenvolver sua crítica manifesta ou tácita. Ele a faz no sentido de
seduzir, convencer seus interlocutores acerca da “dominação e a desigualdade são
representados, reproduzidos” (DIJK, 2008, p. 113).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 584
Podemos observar isso desde o título: “De quem são os meninos de rua?” Notemos
que essa forma de construir o título pressupõe uma posição ativa, crítica, sobretudo, por parte
dos leitores. A pergunta evoca a busca por uma resposta. Uma que o texto não deixará de
oferecer subsídios linguístico-discursivos para enredar os leitores na tessitura “cronística”.
A relato entrecortado de comentários críticos à uma ideologia cultural que remonta um
comportamento adotado por muitos à época, na década de 80. Para tanto, Colasanti opõe o
significado da expressão “meninos de rua”, a expressão “meninos na rua”. A utilizar este
recurso ela direciona seus leitores, interlocutores, a refletir cognitivamente, em âmbito
semântico, estilístico e discursivo para os efeitos de sentidos que essas expressões geram no
imaginário popular. Visto que estes estiveram habituados, com a aparente designação da
primeira expressão. Isto como uma maneira de se isentarem de suas responsabilidades sociais,
frente ao quadro político de reimplantação do conceito de democracia. Uma social, ou seja, de
todos.
Em sua análise explicita, ou seja, manifesta, ela explica que a primeira expressão
denotaria a ideia incoerente, de que houvesse “meninos nascendo diretamente dos
paralelepípedos, das calçadas e não de famílias”. Ao realizar essa explicitação a autora
reflete sobre o fato de os meninos estarem na rua, em virtude de haver pais e mães que os
colocaram lá. Ou seja, os abandonaram.
Desenvolve assim, uma linha de análise marcada por uma análise implícita, ou seja
tácita, sobre os elementos políticos, históricos que refletem ideologias de Estado, que só ai se
enraízam como práticas sociais, decorrentes das práticas de exclusão do Estado. E, por sua
vez, adquirem ações sócias que reiteram tais práticas que transformam em muitos causos as
vítimas em algozes. Ou seja, os homens e mulheres pais e mães, vitimados pelas
marginalizações. Por conseguinte vitimam. Entra em cena, neste caso, uma cadeia cíclica
marginal.
Este ciclismo é camuflado, atenuado, “eufemizado” por expressões promotoras das
muitas marginalizações que encontram significado popular em vários níveis da sociedade,
como em: “meninos de rua” (...). Tais níveis denunciadores podem ser claramente, notados
em outras sequências da crônica que aqui, por uma questão de economia acadêmica, frente ao
gênero aqui desenvolvido, teremos que realizar. Vale pensarmos acerca do exposto
anteriormente:
O poder dos grupos dominantes pode estar integrado a leis, regras, normas, hábitos e mesmo a um consenso
geral, e assim assume a forma do que Gramsci denominou “hegemonia” (Gramsci,1971). A dominação de
classe, o sexismo e o racismo são exemplos característicos dessa hegemonia. (DIJK, 2008, p. 118, grifo nosso).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 585
No momento de manifestar a relação como os gêneros: masculino e feminino como
vítimas da marginalização que excluiu meninos e meninas, apesar de, a nosso ver, essa
expressão aglutinasse, à época os dois gêneros. Mas, acreditamos, não restar dúvidas,
Colasanti recorre de modo intertextual a estória de João e Maria. Com esse recurso manifesto
agrega-se à tessitura do relato a ideia do abandono de filhos, ambos os gêneros, em função da
falta de condições financeiras que acometeu ao pai lenhador. Que apesar de relutar à ideia da
madrasta, em algumas vezes, tolera o abandono de seus filhos à própria sorte na floresta
densa. A fim de que os mesmos não pudessem encontrar o caminho de volta à sua casa. Logo,
o retorno ao seio familiar.
Marginalização étnico - racial, no Brasil.
É verdade que a crônica tomada como corpus para a análise que estamos
desenvolvendo explicitamente, não se refere a esta ou aquela etnia, ou a qualquer grupo
étnico. Todavia, a título de buscamos sugerir o lugar da leitura e estudo desse gênero no
espaço da sala de aula. E, por nossas pesquisas se debruçarem a respeito das marginalizações
promovidas contra a dignidade dos povos africanos, no Brasil, assim como aos
afrodescendentes. Traremos à baila, alguns dados que explicitam o quanto a conscientização,
a busca por responsabilizar a todos que passariam a integrar a sociedade brasileira em “épocas
de República”, como também as autoridades do Estado brasileiro na promoção de medidas
eficazes que pudessem enfrentar às práticas do racismo institucional e do preconceito de cor
ou étnico, que vitimaram, segregaram os negros, Os colocando quase que totalmente, na
condição de ostracismo social austero, por séculos neste país.
Como a crônica trata de “meninos de rua”, e na nossa concepção analítica aqui
enfronhada pela intertextualidade manifesta, na ocorrência de João e Maria, para nós, então é
evidente, a relação contígua entre crianças e jovens. Sendo assim, reflitamos:
A violência contra a população negra no Brasil segue sendo uma grave questão
nacional. Conforme o Mapa da Violência 2013: Homicídios e Juventude no Brasil,
nos últimos dez anos, persiste a tendência de aumento das mortes por homicídio na
população negra (30,6%) e de queda no número de homicídios na população branca
(26,4%). Isso se verifica de forma mais acentuada na população jovem, revelando a
seletividade geracional e racial da violência letal no país. (CONFERÊNCIA
NACIONAL DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL, 3, 2013, p. 62).
Isso reflete uma cultura que vitima meninos de rua, ou melhor meninos sem família.
Ou ainda, meninas vitimadas por modelos de famílias desajustadas, empobrecidas, ao longo
Nas fronteiras da linguagem ǀ 586
da história do Brasil. Ainda com forte presença, no país. Sobretudo, nas regiões Nordeste e
Norte, os as condições de vida são subumanas.
Como não relacionarmos as práticas do abandono de meninos e meninas Na rua, ou
em outros lugares, onde se tornam vulneráveis, aos meninos e meninas negras. Vale dizer
também, que quando estas são meninas negras a face do abandono se torna ainda pior. Isto
nos faz perceber a necessidade de ações contra o racismo, o abandono e o preconceito não só
na dimensão subjetiva e, familiar de cada um, mas sobretudo, se faz necessário ações do
Estado. Como vemos:
Sob a coordenação da Secretaria Geral da Presidência da República, através da
Secretaria Nacional da Juventude (SNJ) e da SEPPIR, o Plano está organizado em
quatro eixos, que reúnem ações de dez ministérios: (i) Desconstrução da Cultura de
Violência; (ii) Inclusão, Emancipação e Garantias de Direitos; (iii) Transformação
de Territórios; e (iv) Aperfeiçoamento Institucional, as ações federais são pactuadas
com os governos estaduais e municipais, sendo sua execução acompanhadas por
outras iniciativas que envolvem as organizações juvenis, o sistema de justiça e o
parlamento. (CONFERÊNCIA NACIONAL DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE
RACIAL, 3, 2013, p. 62).
Saber disso deve nos levar a assumir uma posição em apoio ao combate de práticas
que reiterem racismo, inclusive o institucional, o preconceito e, evidentemente, o abandono de
nossos meninos e meninas. Isto porquê: “Uma pessoa negra, assim como qualquer outra de
qualquer grupo racial ou étnico, tem como base o seu desenvolvimento como ser humano, a
partir de referências próprias à história e à cultura de seu grupo.” (CONFERÊNCIA
NACIONAL DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL, 3, 2013, p. 69).
Assim será interessante nos responsabilizarmos por nos tornarmos agentes para
conduzir, em alguns casos, já em outros em reconduzir os meninos e meninas ascenderem à
condição de pessoas com direito à uma identidade étnica, social educativa e que as forje como
cidadãos emancipados, dignos. E um mecanismo para isso, compõem as reflexões acerca dos
princípios constitucionais legitimados no artigo 5% da Constituição Federal. Legalidade que
embasa a seguinte questão:
Em 2009, o MEC por meio da então secretaria de Educação Continuada, Alfabetização
e Diversidade (SECAD), e a SEPPIR elaboraram o Plano Nacional de Implementação das
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação para as Relações Étnico-raciais e para o
ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Seu objetivo é contribuir “para que
todo o sistema de ensino e as instituições educacionais cumpram as determinações legais, com
vistas a enfrentar todas as formas de preconceito, racismo e descriminação, para garantir o
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 587
direito de aprender e a equidade educacional, a fim de promover uma sociedade mais justa e
solidária”. (CONFERÊNCIA ..., 3, 2013, p. 55).
No entendimento que gostaríamos de compartilhar com nossos interlocutores, por
meio desse artigo, é encontremos elementos para desenvolvermos uma adoção de estudo e
análise de práticas discursivas que possam, dentre outros elementos, situar a análise de
temáticas relevantes, tanto quanto a temática étnico racial que em virtude de
desconhecimento, podemos nos tornar passivos à perpetuação daquilo que desenvolve as
várias frentes de preconceitos e discriminações. À medida que celebrarmos gêneros
discursivos comprometidos com uma proposta crítica e produtora de uma ação social, cidadã
promotora de emancipação tanto dos meninos, das meninas, dos adultos quanto de nossos
idosos. Em verdade, de todos aqueles que são vítimas, neste país, de marginalizações. Fato
que, destaca enquanto vítimas, à população negra, afrodescendente, afro-brasileira.
E, o gênero crônica, seguramente é comprometido com um olhar flagrante por meio de
análises que fazem o interlocutor refletir. Tomar uma posição sobre fatos sociais inaceitáveis.
Reagindo assim, aos abandonos e suas implicações. Já na década em que a crônica fora
concebida. Assim como, em nossos dias, numa época de louvarmos a diversidade étnica, por
meio de ações afirmativas, contra qualquer forma de marginalização do Estado, da escola, das
famílias... Enquanto ainda, persistam a disseminar ideologias correspondentes ao conceito de
Aparelhos Ideológicos de Estado - AIE, conforme assinalou Althusser.
Análises textuais discursivas – representação discursiva
Esta perspectiva aborda: “a dimensão semântica do texto, focalizando uma das
principais noções utilizadas pela Análise Textual e Discursiva [...] a representação
discursiva.” (ADAM, Jean-Michel, 2009, p. 173). Nessa linha de análise buscamos visibilizar
o “microuniverso-semântico, constitui uma representação discursiva mínima” (opcit.).
Vejamos como isso ocorre no corpus. “Talvez, não fosse um Menino De Família”,
“mas também, não era um Menino De Rua”, Menino De Família é aquele bem-vestido com
tênis da moda e camiseta de marca, que usa relógio...”, “Menino de rua é aquele que quando a
gente passa perto segura a bolsa com força...” (Colasanti, 1989) Nesses trechos fica evidente a
reconstrução discursiva, situadas no gênero crônica. Mas, para estabelecer uma oposição entre
a imagem social predominante, naquela sociedade. E, por sua vez, colocar o ideal coletivo em
oposição aos elementos sociais que contextualizam o fato a ser analisado: o abandono.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 588
Fato que propõe uma expectativa frente ao intento da cronista a ser revelado, mediante
as muitas reiterações que fará construindo um quadro analítico que revelará aos interlocutores
do gênero, circunstâncias sociais que não apenas responsabilizará instituições e autoridades.
Mas, a todos os indivíduos sociais, colocando o fato, do abandono como um problema social
de todos. Exigindo assim, uma ação para redimensionar o quadro que ela via construindo.
Seguindo seu intento discursivo, vai lançando mão de estruturas lexicais que
apresentam, para que o interlocutor assuma uma postura de algo que está fora da superfície do
texto. Na verdade, os recursos lexicais utilizados refletem uma tomada de consciência para o
reconhecimento de uma realidade fatídica que esse encontra fora da materialidade do texto.
Contudo imersa, num contexto social, via de regra, ignorado, relegado à invisibilidade.
Observemos outras representações: “uns nascendo de Fa-mília, outros nascendo De
Rua” (Colasanti, 1985). Isto em nesta análise sugere: “uma representação discursiva é
habitualmente composta por um conjunto – uma rede – de proposições e uma rede lexical
[...]” Estabelecendo “a semântica lexical” (ADAM, 2009, p. 174).
Diante dessas considerações optamos por classificar estas situações, neste estudo
como a aspectualização. Isto porque refere-se as características ou propriedades tanto dos
referentes como das predicações. Haja vista que as predicações refere-se ao reconhecimento
da presença de processos delineados nem em trechos como os destacados no parágrafo
anterior. Quantos outros termos utilizados ao longo dos parágrafos e por sua vez, do texto cria
uma cadeia semântica que retoma específicos aspectos do texto.
Mas, seguindo uma lógica coesiva coerente, obedece a uma lógica que põe em
evidência aspectos que são indispensáveis, essenciais, à construção do sentido no texto.
Obviamente, aquele que se deseja defender lógico-argumentativamente. Posto que oferece ao
texto um nível de progressão que vai concebendo à tessitura do texto. Uma rede. De maneira
a envolver de tal maneira os interlocutores do texto a fim de que sejam seduzidos à crítica
posta na crônica. Identificando com isso o sentido pretendido.
Podemos então, perceber que há predicações: “Como se a rua [...] os tivessem gerado,
sendo eles filhos diretos dos paralelepídos e das calçadas.” [...] “Na verdade, não existem
meninos De Rua. Existem meninos Na Rua.” (Colasanti, 1989) Seguramente, podemos notar
o quanto essas relações promovidas pela ocorrência das predicações alteram
significativamente, a concepção prévia, antes estabelecida, anterior à leitura e reflexão à luz
das análises léxico-semânticas e discursivas, construídas neste gênero.
De maneira, que a leitura de um texto, seguindo estas perspectivas não poderia
prender-se a uma metalinguagem apenas, daquilo que significa o gênero pelo gênero. Antes
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 589
necessitaria de uma leitura crítica que levasse em considerações as estratégias discursivas,
semanticamente situadas, que construíram o sentido para atender uma proposta, que carece ser
alcançada.
Considerações finais
Cabe ainda explicitar: desenvolvemos nesse breve estudo, análises com base em
aspectos lexicais, relacionando-as com a seguinte concepção:
[...] interessa-me aqui considerar as unidades do léxico [...] mas como unidades de
texto, peças com que se constrói a materialidade significante posta em sua
superfície. São, portanto, unidades lexicais co-textualizadas, constitutivas de uma
unidade de significado, para fins de um propósito comunicativo qualquer.
(ANTUNES, 2009, p. 144).
Exatamente o propósito comunicativo, situado à década de 80, assim como adequação
da leitura da crônica tomada como corpus para este estudo. E, também sua adequação para um
trabalho relacionado à concepção de práticas discursivas. Ambientadas à concepção dos
gêneros textuais e discursivos. Seguindo as indicações presentes nos Parâmetros Curriculares
de Língua Portuguesa para o Ensino Médio de Pernambuco. Mas, também, nos embasando na
remissão que o estudo dos gêneros possuem como indicados: “no quadro1, pelo Manual do
Professor de Linguagens no Século XXI, de autoria de Heloísa Takasaki. Onde se pode
perceber a indicação do gênero crônica nas 3 séries do fundamental II.” (Takasaki, 2007, p.
46-47).
Além disso, concernente aos gêneros reiterando uma metalinguagem sobre
características dele que não devem ser o centro da atenção. Cabe a alerta, há “elementos do
contexto sociohistórico mais amplos e aspectos linguístico discursivos importantes para a
compreensão do texto em determinado gênero não são levados em consideração, pois a ênfase
é, comumente na análise das características textuais.” (Takasaki, 2007, p.52).
Diante do exposto, percebemos também, a possibilidade de encontrar o lugar para a
Análise Linguística que é essencial no trabalho com os gêneros textuais e, é claro discursivos.
Pois, “possibilita uma análise sistemática e consciente sobre o que há de especial em cada
gênero na sua relação com as práticas sociais de que fazem parte” (Takasaki, 2007, p. 73).
Neste caso, a análise linguística “seria um meio para os alunos ampliarem suas
práticas de letramento” (Takasaki, 2007, p. 74). Também, “a construção de efeitos de sentido
como o ponto central das discussões a serem efetivadas em sala de aula.” (Takasaki, 2007, p.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 590
75). Ainda, “as escolhas linguístico-discursivas presentes num dado gênero não são
aleatórias, mas ali estão para permitirem que um gênero funcione socialmente.” (Takasaki,
2007, p. 77).
Vemos que o trabalho sobre aspectos lexicais está contido no referido trabalho com a
análise linguística que não pode ser confundido num trabalho com a gramática tradicional.
Elucidemos isto nas seguintes considerações: “a articulação (a coesão) que promove a
unidade semântica do texto (a coerência) é conseguida também com os recursos das unidades
lexicais presentes na sua superfície.” (ANTUNES, 2009, p. 145.).
Diante do exposto acima e mediante o acarretamento, a referenciação, e as retomadas
que fizemos ao evocar diferentes concepções teóricas como a das Teorias Reprodutivistas
como a Bordier, e a utilizada de Luis Althusser quando trata dos Aparelhos Ideológicos de
Estado. No momento em que situa o papel de agentes reprodutores de Ideologias do Estado
que eram, e podem ainda ser, disseminadas pela escola e pela família acerca de práticas que
podem gerar a marginalização e exclusão social. Algo que segrega, crianças, jovens, adultos,
idosos que deveriam ser assistidos por estas, em manifestação de práticas que gerassem a
inclusão social. E, logo, a cidadania emancipatória. À medida que valoriza as subjetividades,
historicamente situadas.
Ao mesmo tempo que enfronhamos o olhar sob à presença de ideologias
apassivadoras, como bem denuncia Van Dijk por meio da Análise crítica do Discurso – ACD.
De maneira que percebemos a relação desta com a concepção teórica de Luis Althusser, com
os Aparelhos Ideológicos de Estado – AIE. Ambas, em nossa ótica são complementares, e à
serviço da identificação de discursos marginalizadores, excludentes. Logo, precisam ser
reconhecidos e combatidos. Já que não há neutralidade quando tratamos de discurso como
afirma Bakhtin.
Como é caso, nesse estudo analisado, dos legados africanos e afrodescendentes. Em
cumprimento, de um currículo que atenda aos novos paradigmas educacionais para um Brasil
nacional, seguindo as orientações da Constituição de 1988, da LDB 9394, da lei 10.639/03.
Com essas conquistas, decorrem vários textos para a orientação do pensar para legitimar à
diversidade étnica como uma nova cultura e tradição, neste país. A exemplo do que versa as
Diretrizes Curriculares Nacionais Étnicas para uma educação nacional. Que legitimaram, no
campo legal, o compromisso das instituições públicas e privadas contra quaisquer ações de
discriminação racial, étnica, pré-conceitos, produtoras de exclusão, e por conseguinte, de
segregações. De maneira a dar instruções de como e quando elaborar e pôr em práticas ações
afirmativas.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 591
Por isso, mesmo buscamos fazer um recorte na crônica de Marina Colasanti, De quem
são os meninos de rua? Para delimitarmos representações discursivas que apresentam uma
“perspectivização” (ADAM, 2010, p. 172-187), que nos neste estudo delimitamos por
categorias lexicais, obedecendo uma linha de análise semântica. Assim como também,
situando a relação entre a enunciadora, a cronista, em seu discurso cronístico. Numa estratégia
de se referir a fatos sociais ambientados no mundo real.
Isto fazendo, por meios de um discurso manifesto e tácito que evocou a
responsabilidade de instituições e indivíduos, que naquela ocasião: “Em dias de República”
(COLASANTI, 1989), pelo menos, em tese, passariam a desfrutar de direitos sociais que os
responsabilizava.
Então, como não dizer, que isso não nos responsabiliza enquanto atores, mediadores
de processos que propiciem uma leitura, estudo de gêneros, incluindo a crônica, numa
perspectiva, não tradicional, crítica e produtora da inserção dos leitores por nós mediados, em
busca de uma tomada de consciência, fruto de uma “leitura do mundo” (FREIRE), e, de si.
Uma capaz de colocá-lo como cidadão gerador de cidadania.
Por fim, ressaltamos que nos despertamos para identificar ideologias exclusivistas ou
marginalizadoras devem ser combatidas pela escola e pelo currículo e por sua vez, pela leitura
de gêneros que possam ambientar nas aulas uma possibilidades de efetivarmos uma prática
que inclua um olhar sensível às práticas discursivas e suas implicações para que seja possíveis
aos atores envolvidos na escola, a descoberta deles mesmos. Ao agirmos assim,
possivelmente, possamos somar forças a um conjunto de ações que tem ocorrido no país
desde a sua invenção, para darmos legitimidade a tudo aquilo que se refira à construção de
nossa identidade nacional, perpassando pelos legados das muitas etnias que construíram o
ideal de um país que de fato, torne o povo soberano. Fato que envolverá a inclusão das muitas
etnias excluídas marginalizadas.
Nesse sentido, nos cabe combater os discursos explícitos, implícitos, manifestos ou
tácitos que ainda atuem como interdiscursos racistas, discriminatórios, preconceituosos. Ao
invés disso, assumamos a necessidade, inadiável de fazer a escola, não apenas em tese, mas,
em suas práticas uma propositora da cidadania popular. Por meio das ações que podem e
devem gerar múltiplas faces da interação verbal discursiva.
Referências
Nas fronteiras da linguagem ǀ 592
ADAM, Jean-Michel. Análises textuais e discursivas: metodologias e aplicações.
HEIDMANN, Ute (org.). São Paulo: Cortez, 2010.
ANTUNES, Irandé. 1937 – Língua texto e ensino: outra escola possível. São Paulo: Parábola
Editorial, 2009.
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das Mídias. São Paulo: Contexto, 2009.
COLASANTI, Marina. "Eu sei, mas não devia". Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996.
CONFERÊNCIA NACIONAL DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL, 3, 2013.
Secretaria de Políticas da Igualdade Racial- SEPPIR-BR.
DIJK, Teun A. van. Discurso e Poder. In: HOFFNAGEL, Judith; FALCONE, Karina (org.).
São Paulo: Contexto, 2008.
MOURA, Dayse Cabral de (org.). Educação e relações raciais em escola públicas: o que
indicam as pesquisas? Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2013.
GONDRA, José Gonçalves. Educação, poder e sociedade no Império brasileiro. São Paulo:
Cortez, 2008. (Biblioteca básica da história da educação brasileira).
SAVIANI, Demerval. 1944- Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara,
onze teses sobre educação e política. – São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1988.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 593
OS SERTÕES DE EUCLIDES DA CUNHA: RETRATO
SÓCIOANTROPÓLOGICO DO SERTANEJO NORDESTINO E
DA GÊNESE DE ANTÔNIO CONSELHEIRO COMO LÍDER
MESSIÂNICO [Voltar para Sumário]
Deividy Ferreira dos Santos1 (UPE)
Introdução
Atualmente, o livro “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, vem sendo uma das maiores
e mais discutidas obras por especialistas no âmbito da Literatura, da História e da Sociologia,
entre outras áreas nos últimos anos. Há quem se sinta a vontade para descrever, defender e
analisar uma das maiores obras da nossa literatura.
Ancorados em aspectos basilares, o livro “Os Sertões”, tem um caráter e um valor
histórico, social e cultural indiscutível na história, na formação e na cultura de nosso país,
apresentando uma análise da realidade nacional articulada com fundamentos da mudança
social (REZENDE, 2001). Nessa visão unificadora de retratar os aspectos meramente
estruturais de nosso país, Euclides da Cunha buscou tratar essas mudanças por meio de uma
concepção Naturalista, adotando a percepção do historiador francês Hippolyte Taine, que
concebia a história a partir de três fatores: o meio, a raça e o momento, isto é, seu enfoque
centra-se no Determinismo Social: o meio determina o homem e da interação entre homem e
meio resulta a guerra.
O crítico literário Massaud Moisés, em seu livro História da Literatura Brasileira,
salienta que Os Sertões é um “retrato social brasileiro que explica a difícil crueldade da nossa
realidade e do sertanejo nordestino”.
1 É graduando em Licenciatura Plena em Letras e suas Literaturas pela Universidade de Pernambuco (UPE),
Campus Garanhuns, onde participa dos Grupos de Pesquisas: ARGILEA e DISCENS. Atualmente está inserido
em projeto de Iniciação Científica como Bolsista do CNPq (PIBIC/CNPq/UPE), é professor de Português –
Interpretação de texto e Gramática – no Programa de Línguas e Informática UPE – PROLINFO. E-mail:
Nas fronteiras da linguagem ǀ 594
“Seja como for, Os Sertões anunciavam o término do ciclo romântico de nossa
visão idílica da história pátria. Iniciava-se a hora da verdade, com a derrocada ‘de
um falso idealismo, que era a pior das idealizações, porque era a idealização dos
aspectos inferiores da nossa natureza’. Na sua visão do mundo, o Brasil
nacionalizava-se ao tomar consciência do seu ego dividido, e ao exprimir-se ‘pela
linguagem mais épica que ainda se escreveu em prosa portuguesa’, indicava a
superação, ainda que parcial, dos vínculos com a Literatura Portuguesa. Vazado ‘em
estilo brasileiro, com a ênfase, a truculência, o excesso, a exuberância, o brilho, o
arremesso, a prodigalidade, a magnificência, que nos autorizavam e talvez nos
singularizem no mundo’, preludiava, na sua denúncia, o romance social dos anos 30:
a revolução literária de 1922, inaugurando a modernidade, começa em 1902, com Os
Sertões.” (MOISÉS, 1984, p.572).
Moisés coloca em xeque, como percebemos algumas ideologias perceptíveis em Os
Sertões quando tenta explicar ao mesmo tempo os diferentes tipos regionais que abarca a
obra, ou seja, mostra-se um sertão esquecido pouco receptivo ao homem e outro adiantado,
litorâneo, fazendo ao mesmo tempo um ligamento com as rudezas da época.
Nesse sentido, para clarificar melhor essa ideia, tomemos como exemplo a seguinte
passagem:
O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços
neurastênicos do litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista,
revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempenho, a estrutura
corretíssima das organizações atléticas.
[...] Este contraste impõe-se ao mais leve exame. Revela-se a todo o momento, em
todos os pormenores da vida sertaneja – caracterizado sempre pela intercadência
impressionadora entre extremos impulsos e apatias longas (CUNHA, 2004, p.92-
3). (Grifos nossos).
Sob certo prisma ou ponto de vista, Euclides da Cunha ao descrever o sertanejo
nordestino, apresenta como contraditórios certos aspectos de sua constituição física e seu
comportamento, isto é, por um lado o sertanejo mostra-se forte e impulsivo; por outro,
mostra-se frágil, fisicamente, e apático.
Esses aspectos contraditórios devem-se, no entanto, à caracterização da natureza onde
vive o sertanejo, pois, no sertão nordestino, a natureza mostra-se rude, seca e pouco receptiva
ao homem.
À primeira vista, a Guerra de Canudos começa a ganhar contornos históricos e sociais
quando se teme a possibilidade de haver um levante contra a República recém-fundada e
também porque o arraial liderado por um religioso fanático Antônio Conselheiro, pretendia
romper com a autoridade eclesiástica. O que aconteceu foi que os seguidores de Antônio
Conselheiro já não obedeciam mais aos feitos dos coronéis, o que acabou culminando em uma
guerra, esta, por sua vez, refletida nos sertanejos locais, travada por empecilhos como
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 595
desamparo oficial, à miséria, a ignorância, o fanatismo religioso (advindo das duas primeiras)
e a marginalização política.
Cunha ao escrever Os Sertões é importante ressaltar que ele não tinha como
preocupação central apenas contar o que presenciara no sertão, pelo contrário, munido das
teorias científicas vigentes - determinismo, positivismo e conhecimentos de sociologia e
geografia natural e humana -, pretendia também compreender e explicar o fenômeno
cientificamente. Apesar das pesquisas, estudos e discussões cada vez mais frequentes acerca
da obra, ainda é notório as interrogações postas entre vários estudiosos e especialistas acerca
de Os Sertões, ou seja, discute-se a sua classificação.
Trata-se, portanto, de uma obra híbrida que transita entre a literatura, a história e a
ciência, ao unir a perspectiva científica, de base naturalista e evolucionista, à construção
literária, marcada pelo fanatismo trágico e pela exuberância das imagens. Apresenta
características de tratado científico (com longas páginas dedicadas à análise das características
do solo do sertão nordestino, por exemplo); de investigação sócioantropológica (facilmente
identificável no cuidado com que Euclides procura apresentar o sertanejo); de matéria
jornalística (exemplificada pelo minucioso registro dos embates entre as tropas oficiais e os
revoltosos); e, evidentemente, de texto literário (captando, em suas descrições, a sinceridade
da alma simples e leal do sertanejo, pronto a seguir um líder e a morrer combatendo a seu
lado).
Desta maneira, (GALVÃO, 1980, p.36) afirma que, ao tentar da conta dos
acontecimentos de Canudos no calor da hora, ele (Euclides da Cunha) se viu obrigado a
“explicitar por tentativas um quadro teórico”. Neste estavam presentes, principalmente, as
influências de Buckle, Taine, Spencer e Darwin, que segundo a especialista e crítica literária
Walnice Nogueira Galvão, entretanto, é a partir desse quadro teórico, ou apesar dele, que Os
Sertões se coloca como um livro precursor, posto na raiz do desenvolvimento das ciências
sociais brasileira nos anos 30 e 40. As interpretações gerais que surgem nos anos 30 apontam
para a coexistência de dois países – um litorâneo e adiantado, o outro interiorano e atrasado –
lições aprendidas em Os Sertões e que mais tarde será radicalizada em contradição ferrenha
substituindo a noção de coexistência. Corroboramos com Walnice Nogueira Galvão quando a
mesma afirma que:
“Decididamente era indispensável que a campanha de canudos tivesse um objetivo
superior à função estúpida e bem pouco gloriosa de destruir um povoado dos sertões.
Havia um inimigo mais sério a combater, em guerra mais demorada e digna. Toda
aquela campanha seria um crime inútil e bárbaro, se não aproveitassem os caminhos
abertos à artilharia para uma propaganda tenaz, contínua e persistente, visando
Nas fronteiras da linguagem ǀ 596
trazer para o nosso tempo e incorporar à nossa existência aqueles rudes
compatriotas retardatários.” (CUNHA, 2004, p.405 e 47). (Grifos nossos).
A autora conclui que Euclides da Cunha critica a guerra em si e afirma que outra
“guerra mais demorada e digna” deveria ser travada. Na verdade, o que ele pretende nos dizer
é que deveria surgir outra guerra, porém outra que visasse trazer o sertanejo para a
civilização; incorporá-lo à vida do país.
Diante desta perspectiva de pensamento, este artigo está organizado da seguinte forma:
primeiramente, farei algumas considerações à tela da escrita de Euclides da Cunha em Os
Sertões desenvolvendo uma inter-relação/intertextualidade com o Pré-Modernismo; a seguir,
analisarei a interpretação de Euclides da Cunha e a Revolta de Canudos em uma análise sócio
histórica de nosso país. Em seguida, será realizada uma análise da(s) ideologia(s) de Antônio
Conselheiro desde a Revolta de Canudos à Guerra do Contestado: uma releitura na Literatura
e na História. Finalmente, apresento as considerações finais sobre o trabalho.
1. A escrita de Euclides da Cunha em Os Sertões: uma inter-
relação/intertextualidade com o Pré-Modernismo
Podemos afirmar que o Pré-Modernismo é uma época de nacionalismo temático: um
nacionalismo crítico, questionador.
Nesse quadro, a literatura passa a ser concebida como um instrumento e ação social:
ela nos permite conhecer mais profundamente a realidade e assim aumentar nossa capacidade
de convivência, nossa competência para organizar um mundo mais fraterno.
Essa concepção de literatura não era a que mais agradava aos governantes do país, que
preferiam um nacionalismo mais ufanista e uma literatura mais bem-comportada, ou seja, uma
literatura que atuasse como o “sorriso da sociedade”, para usar a expressão de um autor da
época. O Brasil vivia então a sua Belle Époque, expressão francesa que designa o período
entre 1885 e 1918, no qual Paris exportava cultura e modelos de comportamento, e o dinheiro
da cafeicultura patrocinava algumas reformas urbanísticas embelezadoras no Rio de Janeiro,
então capital do país. As classes sociais mais favorecidas podiam seguir a moda parisiense e
divertir-se passeando pelas avenidas e fazendo compras nos magazines da capital federal.
Uma literatura que preferia tematizar as enormes diferenças sociais do país ao invés de
louvar o “progresso” nacional era, sem dúvida, um desagradável empecilho à propaganda
oficial, que procurava transmitir a sensação de que a República, recém-consolidada pela
chamada “política do café com leite”, que era a aliança entre os produtores de café paulistas e
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 597
os criadores de gado leiteiro de Minas Gerais, era efetivamente um caminho modernizador e
democratizante para o país.
A descoberta do Brasil não oficial foi, dessa forma, o grande mérito da prosa pré-
modernista. Por meio dela, o nacionalismo crítico e progressista conseguiu exprimir-se,
combatendo o nacionalismo conservador oficial, que, à análise dos problemas sociais, preferia
o palavreado muito eloquente sobre a “grandiosidade da pátria”. Os tipos humanos
marginalizados, como o sertanejo nordestino, os habitantes dos subúrbios cariocas, o “caipira”
paulista, ganharam espaço nas obras literárias e com eles as realidades de que faziam parte. O
Brasil encontrou-se com os diferentes “Brasis” nesse trabalho de investigação e análise da
realidade nacional.
Ao lado dessa renovação temática, o Pré-Modernismo produziu também uma
renovação na linguagem literária, enriquecida pela incorporação de elementos de origens
muito diversas: enquanto alguns autores optaram pela poetização da linguagem científica,
outros preferiam a utilização de regionalismos, de formas da linguagem popular ou de um
estilo simples e despojado, capaz de aproximar a literatura da linguagem jornalística.
Diante dessa perspectiva, podemos concluir que o Brasil do início do século mantém
basicamente a mentalidade do final do século XIX, pós-republicana, positivista e liberal.
Entretanto, um quadro político tenso põe em risco o poder das oligarquias civis, provenientes
dos setores rurais. Uma burguesia industrial nascente, ligada à produção e exportação do café
no eixo Rio-São Paulo-Minas Gerais começa a ascender. A urbanização e a imigração,
decorrentes do crescimento industrial, trazem à cena ideologias progressistas que conflitam
com o nosso tradicionalismo agrário.
As pressões de outros segmentos da população interessados numa mudança política,
por exemplo, os profissionais liberais, a pequena classe média, alguns setores militares, o
proletariado manifestam-se através de movimentos como a Revolta contra a vacina
obrigatória, a Revolta da Chibata e as duas greves gerais de operários. No meio rural, por sua
vez, as tensões se expressam na proliferação de grupos de cangaceiros e em movimentos
messiânicos relacionados à emanação de eventos de grande repercussão política, como a
Guerra de Canudos, ocorrida na Bahia, a Revolta do Contestado e o Levante de Juazeiro, que
teve o Padre Cícero como um dos protagonistas.
Notoriamente, parece vislumbrar “dois brasis” em estado de confronto, ao longo da
Primeira República: aquele agrário, tradicionalista e conservador, que detém o poder, e este
que anuncia a virada do século um país industrial, urbano, em busca da modernização.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 598
Além disso, o Pré-Modernismo não constitui uma escola literária, porque não chegou a
formar um grupo de autores com os mesmos valores estéticos, mas apenas uma
tendência/momento de transição surgida na literatura do início do século XX de denúncia dos
problemas estruturais da sociedade brasileira, de modo bem menos determinista que os
naturalistas e privilegiando temas regionais.
Euclides da Cunha assim como os demais escritores pré-modernistas, elenco: Augusto
dos Anjos na poesia; Lima Barreto, Monteiro Lobato, Graça Aranha e o próprio Euclides da
Cunha na prosa; tinham a preocupação e uma abordagem e estilos próprios, específicos, tais
prosadores se aproximam por anunciarem a grande temática que ocupará nossa primeira
geração modernista: a redescoberta dos valores brasileiros, expressa por um nacionalismo que
muitas vezes retoma a vertente regionalista, da literatura brasileira de modo crítico, polêmico,
problematizador.
Cunha ao fazer em Os Sertões um retrato do que presenciara na Guerra de Canudos
discorre em sua narrativa da presença de algumas figuras de linguagem como as antíteses, as
personificações e as metáforas. É importante frisar que não apenas para dá um sentido
“conotativo”, figurado as suas reflexões, mas, principalmente, para emblemar/amplificar os
empasses entre suas reflexões acerca da guerra em compará-las com sua clara e recorrente
ironia.
Consoante SEVCENKO, a escritura de Cunha caracteriza-se por:
“[...] uma linguagem elevada, selecionada, elaborada, altamente metafórica e
imagística, de comunicabilidade mediatizada, dotada de efeitos elocutivos,
escoimada de clichês, rebarbativa, áspera, carregada, homogênea, praticamente sem
variação sociolinguística, isenta de paródia ou prosopopeia, reveladora e enérgica.
Uma linguagem altamente coerente com o conteúdo transmitido, na medida em que
procurava evidenciar uma dignidade superior da cultura científica e filosófica e
revelar a sua capacidade de perceber erros e injustiças, ao mesmo tempo, que
expunha a verdade última presente no movimento profundo das forças naturais. Um
discurso de revelação e verdade, que perderia o seu poder de demonstração se
oscilasse de acordo com os vários níveis da realidade que aborda; fato que
sintomaticamente também ocorre com a linguagem científica.” (SEVCENKO, 1989,
p.135).
Teoricamente, a discussão aqui proposta se assenta na concepção de que Euclides da
Cunha recorreu a algumas figuras de linguagem para a composição do seu texto não apenas
para dá sentido conotativo as suas reflexões, mas também para dá expressividade, intensidade
as suas ideias.
Cunha utilizou, na sua análise, uma linguagem científica, para explicar os
acontecimentos que observava. Registrou, no seu texto, muitas palavras desconhecidas e
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 599
incompreensíveis para a maioria do público leitor. Podemos assim afirmar com veracidade
que a obra euclidiana foi escrita com inteligência no sentido mais específico da palavra, (não
me refiro ao sentido geral da palavra) e sensibilidade, à medida que o livro avança e os
detalhes nos são passados minuciosamente sem perdemos o “fio” da narrativa.
2. A interpretação de Euclides da Cunha e a Revolta de Canudos em uma análise
sócio histórica de nosso país
Nas últimas décadas do século XIX uma série de condições contribuiu, para o
esfacelamento de milhares de sertanejos do nordeste: o declínio da produção açucareira, as
constantes secas, a prepotência dos coronéis-fazendeiros e os novos rumos políticos do país,
com a república.
Foi nesse contexto de opressão e desesperança sociais, durante o mandato do
presidente Prudente de Morais, que Antônio Vicente Mendes Maciel, apelidado Antônio
Conselheiro, encontrou ambiente propício para suas pregações político-religiosas.
Desconsiderando certas mudanças surgidas com a república, Conselheiro declarava-se, por
exemplo, contra o casamento civil e, por isso, foi identificado por seus adversários como
fanático religioso e monarquista.
Antônio Conselheiro tinha 65 anos quando, em 1893, chegou a uma velha fazenda
abandonada no sertão baiano, situada às margens do rio Vasa- Barris, onde liderou a formação
do povoado de Canudos. Desde 1870, fazia pregações que atraíam crescente número de
pessoas do sertão nordestino. Um de seus lemas era: “A terra não tem dono, a terra é de
todos”.
Milhares de pessoas mudaram-se para Canudos: sertanejos sem-terra, vaqueiros, ex-
escravos, pequenos proprietários pobres, homens e mulheres, perseguidos pelos coronéis ou
pela polícia. Buscavam paz e justiça em meio à fome e à seca do sertão. Em pouco tempo, o
povoado transformou-se numa das localidades mais populosas da Bahia, reunindo entre 20
mil e 30 mil habitantes.
Comandada por Antônio Conselheiro, a população de Canudos vivia, segundo alguns
pesquisadores, num sistema comunitário em que as colheitas, os rebanhos e o fruto do
trabalho eram repartidos. O que restava era vendido ou trocado com os povoados vizinhos. Só
havia propriedades privada dos bens de uso pessoal, como, por exemplo, roupas, móveis, etc.
A prostituição e a venda de bebidas alcoólicas eram proibidas. O povoado tinha normas
próprias, representando uma alternativa de sociedade para os sertanejos que fugiam da
dominação dos grandes coronéis.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 600
Em 1896, num arraial formado à beira do rio Vaza-Barris, norte da Bahia, onde viviam
cerca de 25 mil pessoas lideradas por Antônio Conselheiro, ocorreu o mais trágico episódio da
jovem República brasileira. O beato Conselheiro fazia uma pregação que concorria com a
igreja tradicional, arregimentava a antiga mão-de-obra de fazendeiros e, por não atender a
separação entre Igreja e Estado, aprovada na Constituição de 1891, atacava a República. A
repressão, estimulada por fazendeiros e religiosos, partiu do governo baiano, que teve suas
forças derrotadas.
O ocorrido ganhou contorno federal (era entendido como um “foco monarquista”) e
tropas do Exército intervieram; lutando nas caatingas, que foram igualmente derrotadas.
Diante deste exposto, observemos uma passagem de Os Sertões que fundamenta esta
hipótese: “Canudos não se rendeu” (CUNHA, p. 497).
Fechemos este livro. Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história
resistiu, até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão
integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos
defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos
e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.
(CUNHA, 2004, p.497).
No trecho apresentado, é narrado o fim da luta entre as tropas do exército e os quatro
últimos defensores de Canudos no dia 5 de outubro de 1897. No dia 6, houve a derrubada das
casas e a exumação do cadáver de Antônio Conselheiro.
No interior da Bahia, o arraial de Canudos, essas populações foram fanatizadas por
Antônio Conselheiro, que foi considerado perigoso monarquista pelo governo central. Para
combatê-lo foram mobilizadas forças federais. Essa guerra durou de 1892 a 1896 e Canudos
foi exterminada, após fortes resistências, com a morte do líder.
Diante disto, corroboramos com Roberto Ventura em Canudos como cidade ilustrada:
Euclides da Cunha urbs monstruosa, quando ele afirma que:
Euclides da Cunha interpretou a Guerra de Canudos a partir de fontes orais, como os
poemas populares e as profecias religiosas encontradas em papéis e cadernos nas
ruínas da comunidade. Baseou-se em profecias apocalípticas, que julgou serem da
autoria de Antônio Conselheiro, para criar, em Os Sertões, um retrato sombrio do
líder da comunidade. Esses poemas e profecias foram o ponto de partida de sua
visão de Canudos como movimento sebastianista e messiânico, vinculado à crença
no retorno mágico do rei português D. Sebastião, para derrotar as forças da república
e restaurar a monarquia.
[...]
Foi além da narração da guerra, ao construir uma teoria do Brasil cuja história seria
movida pelo choque de etnias e culturas.
[...]
O conflito entre Canudos e a república resultou, para Euclides, do choque entre dois
processos de mestiçagem: a litorânea e a sertaneja. O mestiço do sertão, apresentaria
vantagem sobre o mulato do litoral, devido ao isolamento histórico e à ausência de
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 601
componentes africanos, que tornariam mais estável sua evolução racial e cultural.”
(VENTURA apud ABDALA, 1997, p.89-93).
Notamos evidentemente o comentário que Roberto Ventura levanta acerca de Os
Sertões ao mencionar os movimentos sebastianistas, ou seja, ao movimento político
saudosista que preconiza a volta de D. Sebastião, rei de Portugal, desaparecido, ou morto, na
batalha de Alcácer- Quibir, contra os mouros, em 1578. O fato de o corpo não ter sido
encontrado possibilitou que se criasse o mito da volta do rei, que seria o salvador do povo e
do país.
3. A ideologia de Antônio Conselheiro desde a Revolta de Canudos à Guerra do
Contestado: uma releitura na Literatura e na História
A situação de pobreza e abandono em que vivia boa parte da população brasileira
durante a República Velha fez com que milhares de pessoas buscassem amparo junto a líderes
messiânicos que se diziam porta-vozes do mundo divino na Terra. Dois movimentos
messiânicos se destacaram: o de Canudos, na Bahia, e o do Contestado, no Sul do país.
Perseguido pelas autoridades, Antônio criticava a República e elogiava a monarquia,
prometendo o retorno do rei de Portugal dom Sebastião, morto no norte da África em 1578.
Atraídos por sua pregação, dezenas de milhares de sertanejos fixaram-se na região, onde
passaram a viver da agricultura de subsistência. Muitas pessoas exploradas pelos fazendeiros
fugiam para Canudos em busca de uma vida melhor.
Acusada de monarquista, a comunidade começou a incomodar a oligarquia estadual, o
governo federal e a hierarquia da Igreja. Para reprimi-la, em 1896 o governo enviou a
Canudos uma expedição militar com pouco mais de cem homens. Fustigada pelos
seguidores do Conselheiro, a improvisada tropa foi derrotada. Até o final de 1897, mais três
expedições seriam enviadas. Só na última, composta de mais de 8 mil soldados, o Exército
sairia vitorioso.
Assim como no sertão baiano, a miséria era grande na divisa do Paraná com Santa
Catarina. Essa região, onde viviam cerca de 60 mil pessoas, era conhecida como Contestado
(disputado), por ser reivindicada pelos dois Estados desde o Império. Em meio à miséria, a
população buscou refúgio nas palavras do “monge” José Maria. Dizendo-se um eleito de Deus
e prometendo o advento de um reino de justiça, que muitos identificavam com a monarquia, o
beato passou a ser seguido por milhares de fiéis. Seu assassinato por forças policiais em 1912
não enfraqueceu o movimento. Morto José Maria, seus adeptos passaram a seguir as palavras
de moças virgens que diziam ser videntes.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 602
A partir de 1913, por várias vezes tropas dos governos estadual e federal lançaram
ataques contra os redutos rebeldes. Usando armamentos pesados, os soldados tiveram de
enfrentar encarniçada resistência da população local, munidos de velhas espingardas, foices e
facões. Somente em janeiro de 1916, o último líder dos sertanejos foi preso e a Guerra do
Contestado chegou ao fim. Estimativas apontam que por volta de 20 mil pessoas, entre
mulheres, crianças, homens e idosos, morreram no conflito.
Em meio a esse clima inóspito e destoante, faz-se necessário ainda o movimento
messiânico O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, ocorrido nas terras do Crato, no Ceará. A
comunidade do Caldeirão era liderada pelo paraibano, José Lourenço Gomes da Silva, ou
simplesmente o beato José Lourenço, como era mais conhecido. No Caldeirão, os romeiros e
imigrantes trabalhavam todos em favor da comunidade e recebiam uma quota da produção. A
comunidade era pautada no trabalho, na Igualdade e na Religião.
Corroboramos a luz do pensamento de Francisco Edésio Batista, quando o mesmo
ressalta que:
Governo, Igreja e Sociedade deram as mãos para destruir o Caldeirão. Ainda não
existiu no Brasil governo bom para os pobres. O conflito ocorreu no Estado Novo,
em pleno governo Getúlio Vargas, o pai dos pobres. Na realidade não se pode falar
em conflito. O que houve foi o massacre puro e simples de uma comunidade
camponesa desarmada. (BATISTA, 2002, p. 36).
Percebemos a partir da reflexão de Batista, que as palavras nesse caso se
metamorfoseiam para um sentido de que quando se trata da luta pela terra no Brasil os pobres
não têm pátria, e nem mesmo o acolhimento da religião oficial, o catolicismo romano.
Considerações Finais
A obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, se insere dentro de um quadro histórico em
que ainda se vivia o Brasil antes da Semana de Arte Moderna. Deste modo, foi à busca de
uma resposta à pergunta: “Que país é este?”, que marcou a arte brasileira do século XX e que
perdura até hoje. Já no Pré-Modernismo - período que antecedeu à realização da Semana de
Arte Moderna e que se estendeu de 1902 a 1922 -, percebia-se a preocupação de alguns
autores em denunciar a realidade brasileira, descortinando um país não oficial, dos
marginalizados, desde o sertão nordestino até os subúrbios cariocas, passando pelas áreas
rurais do estado de São Paulo.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 603
A primeira obra que negava o Brasil idealizado pelos autores românticos foi Os
Sertões, de Euclides da Cunha, publicada em 1902. A partir do relato da Revolta de Canudos,
liderada pela figura mística de Antônio Conselheiro, o autor escancarou os contrastes entre o
Brasil europeizado, que “vive parasitariamente à busca do Atlântico” e aquele outro Brasil,
dos “extraordinários patrícios” do sertão nordestino.
Em tese, notamos em Os Sertões, de Euclides da Cunha, que apesar de todo o levante
político destacado ao longo do trabalho, fica indubitável que os canudenses lutavam pela
monarquia apenas porque eram esmagados pela República. Se fosse o contrário, seriam
republicanos. Logo, em outros termos, o que estavam tentando fazer era apenas sobreviver às
condições adversas e à inépcia do governo.
Referências
BATISTA, Francisco Edésio. O Caldeirão do Beato José Lourenço, Crato/CE, Academia dos
cordelistas do Crato, 2002.
CORDEIRO, Domingos Sávio de Almeida. Memórias e Narrações na construção de um
líder, Beato José Lourenço. Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de
Ciências Sociais e Filosofia do Programa de Pós-Graduação em Sociologia na Universidade
Federal do Ceará, Fortaleza, 2002.
_____. Um Beato líder – Narrativas Memoráveis do Caldeirão. Fortaleza, Imprensa
Universitária da UFC, 2004.
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 2ª. Ed. São Paulo: Ática, 2004.
_____. (1966a) Contrastes e Confrontos. In: _____. Obra Completa I. Rio de Janeiro,
Aguilar, p. 101-219.
GALVÃO, Walnice Nogueira. (Org). (1980) Euclides da Cunha: história. São Paulo, Ática,
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MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 5ª. Ed. São Paulo: Cultrix, 1998.
_____. História da Literatura Brasileira. São Paulo, Cultrix, 1984.
REZENDE, Maria José de. Os Sertões e os (des) caminhos da mudança social no Brasil.
Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 13(2): 201-226, Novembro de 2001.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação da cultura na
Primeira República. São Paulo, Brasiliense, 1989.
VENTURA, R. (1996) Euclides da Cunha e a República. Estudos Avançados, 10(26): 275-
291, Janeiro-Abril.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 604
_____. Canudos como cidade ilustrada: Euclides da Cunha urbs monstruosa. In: Abdala Jr.
Canudos: palavra de Deus, sonho da terra. São Paulo, Senac/Boitempo. Editorial, 1997. P.
89-93.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 605
PROCESSO DE RETEXTUALIZAÇÃO EM SALA DE AULA:
UM CAMINHO DE APROPRIAÇÃO NA ESCRITURA DE
GÊNEROS TEXTUAIS [Voltar para Sumário]
Dennys Dikson (UFRPE/UFAL) 1
Wanessa Gomes Teixeira Maciel (UPE) 2
1. Introdução
Apresentaremos neste trabalho questões relativas ao processo de Retextualização em
ações práticas dentro da aula de Língua Portuguesa em Anos Iniciais do Ensino Fundamental.
A questão mais relevante é apresentar, dentro de um contexto escolar, a importância desse
processo de mutabilidade textual – especificamente quando trabalha atividades com os alunos
com o intuído de se passa um determinado gênero textual escrito para outro gênero textual
também escrito.
As aulas de Língua Portuguesa – quando o trabalho ativo com gêneros textuais é
realizado a contento – se tornam muito mais consistentes quando a estratégia de retextualizar
entra no jogo de aprendizagem. Isso porque essa prática de escrita instiga a entrada dos alunos
nas características e estruturas textuais, seja do texto retextualizado ou daquele que se quer
retextualizar. Quanto mais se mergulha na formatação seja de qual for o gênero textual,
melhor é o aprendizado da leitura e escritura, aumentando consideravelmente as questões
relativas à reflexão crítica, compreensão daquilo que se lê e capacidade de escrever melhor –
o texto, então, se mostra como o eixo mais relevante quando se trata de ensino e
aprendizagem de leitura-escrita.
1 Professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco, Unidade Acadêmica de Garanhuns – UFRPE/UAG.
Doutorando em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística (PPGLL) da Universidade
Federal de Alagoas (UFAL). Mestre em Linguística pela mesma Instituição. Membro-pesquisador-discente do
Laboratório do Manuscrito Escolar (L’AME), sediado no PPGE-UFAL. Integrante do grupo de pesquisa
Escritura, Texto e Criação (ET&C-PPGE/UFAL). Contato: [email protected] 2 Graduada em Licenciatura em Letras pela Universidade Federal Rural de Pernambuco – Unidade Acadêmica
de Garanhuns (UFRPE - UAG). Pós-graduanda em Ensino de Língua Portuguesa e suas Literaturas pela
Universidade de Pernambuco (UPE). Contato: [email protected]
Nas fronteiras da linguagem ǀ 606
No decorrer deste trabalho, trataremos rapidamente de questões acerca de Gêneros
Textuais e as relações existentes entre os textos, seja escrito-escrito ou escrito-oral.
Abarcaremos, outrossim, o conceito de Retextualização (MARCUSCHI, 2004;
DELL’ISOLA, 2007) e quais os aspectos que estão envolvidos neste processo de
transformação de um texto em outro, modificando a estrutura do gênero textual, sem perder o
tópico apresentado no do texto-base.
Analisaremos uma atividade escolar, a partir das noções e pontos principais da
Retextualização, que foi desenvolvida com alunos dos Anos Finais do Ensino Fundamental.
Vamos observar os processos que rodeiam o trabalho dos alunos quando estão retextualizando
em sala de aula, durante as aulas de Português – práticas estas que devem favorecer a
compreensão de textos, a formação de leitores críticos e bons produtores textuais.
2. Falando um pouco sobre os Gêneros Textuais
Para tornar possível a comunicação em diferentes contextos e suprir as necessidades
de utilização da linguagem humana, surgem os gêneros textuais. Qualquer pessoa é capaz de
reconhecer, instantaneamente, o gênero a que está sendo submetido – desde que esteja nele
inserido previamente –, sendo possível “ajustar-se” ao contexto de interação, pois nossa
comunicação e interrelação humanas só é possível ocorrer através de gêneros que se
manifestam por textos.
Isto é o que nos afirmam Dolz, Schneuwly & Haller, quando dizem que: “(...) os
gêneros podem ser considerados instrumentos que fundam a possibilidade de comunicação (e
de aprendizagem). (...) é um instrumento para agir linguisticamente”. E, por serem
considerados instrumentos que “permitem realizar ações em situações particulares” (DOLZ,
S2004, p. 171) é que eles se tornaram objetos análise, de discussão, de reflexão e de ensino.
Quando estamos em uma situação de comunicação, é primordial a escolha ou
adaptação a um determinado gênero textual para que a significação possa ser produzida. As
situações de comunicação são diferentes e os gêneros também o são, é o que nos afirma
Dell’Isola, acrescentando: “Assim, a cada situação, em cada lugar, através de cada meio, para
cada interlocutor, as pessoas se expressam de maneiras diferentes, produzem gêneros
distintos.” (2007, p. 11)
O trabalhado eficaz e reflexivo em sala de aula a partir de gêneros textuais, que projete
os alunos a perceberem a real ligação com a vida em sociedade, é um caminho interessante de
ser trilhado no campo pedagógico do ensino de Língua Portuguesa. É mister que os
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 607
professores, ao trabalharem os gêneros, definam bem as atividades e seus objetivos,
contextualizem com os alunos, mostrem como e quando utilizar este ou aquele gênero,
expliquem aos alunos o porquê daquela atividade e para que o gênero em questão serve.
Para Dolz, Schneuwly & Haller, os gêneros que devem ser estudados em sala de aula
são os de comunicação pública formal.
Já que o papel da escola é sobretudo o de instruir, mais do que o de educar, em vez
de abordarmos os gêneros da vida privada cotidiana, é preciso que nos concentremos
no ensino dos gêneros da comunicação pública formal. (...) cujo grau de formalidade
é fortemente dependente do lugar social de comunicação, isto é, das exigências das
instituições nas quais os gêneros se realizam (rádio, televisão, igreja, administração,
universidade, escola etc.). (2004, p. 147)
Devido ao fato dos alunos geralmente já dominarem os gêneros do cotidiano, é que se
deve trabalhar os gêneros de comunicação pública. Para Dolz, Schneuwly & Haller (2004)
estes últimos apresentam maiores restrições impostas pelo exterior, e por isso, necessitam de
um controle mais consciente para dominá-los.
Os autores também afirmam que para se levar um gênero para sala de aula, é preciso
observar o que este gênero tem de relevante para ser ensinado. Quanto mais realizações
textuais este gênero permitir que sejam feitas, melhor ele será para o ensino. Ao entrar na
escola para ser ensinado, o gênero irá se transformar para atender as necessidades daquele
meio.
É necessário que ao se ensinar um gênero de comunicação pública, o professor
observe o que este gênero irá trazer de contribuição para o estudante, pois, a partir do
momento que um gênero migra de seu contexto tradicional e começa a ser utilizado como
objeto de ensino na escola, este gênero muda, se transforma para poder suprir as necessidades
da sala de aula. Ao migrar para o meio escolar, é preciso que o gênero esteja dentro dos
conformes de ensino que são estabelecidos previamente pela escola, porque só assim ele vai
poder ter relação com o que será trabalhado em aula.
À guisa de exemplificação, alguns dos gêneros que não fazem parte do contexto
escolar, mas que podem ser trabalhados pelos professores em sala de aula, são as notícias de
jornais, os noticiários de televisão, as entrevistas, os testemunhos, dentre outros. Entretanto,
para se trabalhar tais gêneros de maneira eficiente, primeiramente é preciso apresentar a
situação que será trabalhada, comentar com os alunos o que será feito, refletir com eles a
respeito do trabalho que será realizado e, a partir daí, solicitar a atividade – situação
contextual que dificilmente é realizada.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 608
3. Retextualização
Trataremos aqui das transformações de um texto de uma modalidade (escrita
ou falada) para outra, ou seja, a Retextualização. Segundo Rodrigues, este termo
retextualização foi empregado pela primeira vez por Travaglia (1993) para fazer
referência à tradução de uma língua para a outra. Abaurre (1995) acrescenta a ideia
de refacção ou reescrita de um texto, e Marcuschi (2001) trata da transformação de
textos orais em textos escritos, especialmente. (RODRIGUES, 2010, p. 119)
Para Marcuschi (2004) a retextualização não é um processo mecânico, pois envolve
algumas operações complexas que interferem tanto no código como no sentido. As
retextualizações são comuns em nosso dia a dia, nas mais diferentes atividades diárias.
Podemos perceber o uso delas ao repassarmos uma informação a alguém, por exemplo, pois,
ao fazermos tal processo, nós estamos transformando o que nos foi dito anteriormente. A este
respeito, Marcuschi nos traz que “Toda vez que repetimos ou relatamos o que alguém disse,
até mesmo quando produzimos as supostas citações ipsis verbis, estamos transformando,
reformulando, recriando e modificando uma fala em outra.” (2004, p. 48 – grifos do autor).
Essa transformação não significa dizer, porém, que a retextualização é a organização
de um texto mal elaborado ou mal organizado, pois não o é. Retextualizar não é passar um
texto que esteja numa forma de caos para uma forma mais elaborada, pois cada texto possui
sua própria formulação. Retextualizar é um outro movimento, é uma “adaptação”
(MARCUSCHI, 2004) de textos, pois transforma-os de uma modalidade para outra, às vezes
utilizando-se de gêneros textuais muito diferentes, o que faz com que sejam envolvidas
estratégias diversas neste processo de retextualização. Ao considerar fala e escrita, o autor nos
afirma que são possíveis quatro tipos de combinações no processo de retextualização, são
elas: da fala para a escrita; da fala para a fala; da escrita para a fala; e da escrita para a escrita.
As atividades de retextualização podem ocorrer de modos muito variados, pois é
possível adequá-las a qualquer gênero textual. Para se produzir uma retextualização,
necessário se faz que haja uma compreensão do texto-base, observando seus tópicos
principais de ideias. Se não houver essa estratégia compreensiva do que será retextualizado, a
atividade será prejudicada. Marcuschi (2004) afirma que muitos problemas que ocorrem nas
retextualizações são causados exatamente por essa falta de compreensão e o problema
aumenta quando se passa de um gênero para outro. Ele afirma que:
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 609
(...) para transformar é necessário compreender o texto. Contudo, uma não-
compreensão não impede a retextualização, mas pode conduzir a uma transformação
problemática, chegando ao falseamento. (2004, p. 86 – grifos do autor)
A retextualização é também chamada por Marcuschi (2004, p. 52) de “adaptação, que
já é uma transformação na perspectiva de uma das modalidades”. As modalidades de que o
autor está tratando aqui seriam a fala e a escrita ou vice-versa e de uma modalidade a outra.
Desta feita, podemos dizer que retextualizações são as transformações que ocorrem
nos textos, seja na modalidade oral ou na modalidade escrita, são mudanças que ocorrem no
interior dos textos, quando da sua reescritura ou (re)oralização. Tais transformações ocorrem
tanto no plano da expressão como no plano do conteúdo, dependendo da complexidade no
momento de retextualizar e também das intenções daquele que está produzindo o texto.
Retextualizar não é uma atividade simples, pois trata de transformar um texto em outro
tendo que manter a essência do texto-base. Mesmo no dia a dia, nós, usuários da língua
portuguesa, realizarmos constantemente retextualizações e não paramos para refletir o quão
complexa é esta atividade. E quando a questão vai à sala de aula, então fica ainda mais
complexo o trabalho. Caso o professor não conduza bem a atividade e o aluno não possua a
habilidade de entender os textos a partir da leitura, a retextualização vai ficar comprometida
devido à suposta má interpretação do texto-base que possa ocorrer.
Marcuschi ainda frisa que
(...) toda atividade de retextualização implica uma interpretação prévia nada
desprezível em suas consequências. Há nessa atividade uma espécie de tradução
endolíngüe que, como em toda a tradução, tem uma complexidade muito grande.
(2004, p. 70 – grifos do autor)
Ao transformar um texto de uma modalidade para outra e, principalmente de um
gênero para outro, o aluno é levado a pensar e refletir em como o texto-base foi estruturado e
como o texto final será escrito. Neste processo, o aluno exercita a leitura, compreensão e
escrita do texto retextualizado. Se a atividade de retextualização for bem selecionada e
preparada pelo professor, é possível desenvolver no aluno as habilidades de leitura e escrita,
fazendo-o refletir acerca dessas duas competências, além de, ao colocá-las em prática, haver
um exercício constante da interpretação ou compreensão dos textos.
4. Atividade de Retextualização
Nas fronteiras da linguagem ǀ 610
4.1. Aspectos envolvidos na Retextualização
Como pontuamos mais acima, a atividade retextualizada para análise é referente a
gêneros escritos, e foi realizada nos Anos Finais do Ensino Fundamental, numa Escola
Municipal de Saloá/PE.
Ao se fazer uma retextualização, vários aspectos estão envolvidos neste processo.
Dentre esses processos, Marcuschi (2004) menciona a eliminação, a completude, a
regularização, o acréscimo, a substituição, a reordenação, o tratamento da sequência dos
turnos, a inferência, a inversão e a generalização. Alguns destes aspectos também são tratados
por Verceze & Nogueira (2005). Os autores mencionam a inferência, a substituição, a
reordenação, a ampliação/redução de estilo, a reformulação, a inversão, o tratamento de
turnos, dentre outros.
No próximo item, ao analisarmos as Retextualizações feitas com os alunos,
destacaremos alguns destes aspectos que podemos encontrar nas atividades, tentando
compreender se o trabalho de refeitura de textos auxilia na apropriação dos gêneros que estão
em questão, tanto como texto-base, como texto-fim.
4.2. Análise da atividade
No momento da retextualização, geralmente ocorrem mudanças no conteúdo do texto-
base, entretanto, tais mudanças não devem nunca modificar a temática e a veracidade que esse
texto primeiro carrega. O texto retextualizado deve sempre manter as informações e tópicos
principais do texto original.
As atividades de retextualização permitem que, ao elaborar um novo texto, os alunos
trabalhem estratégias textuais e discursivas. Para elaborar um novo texto em um outro gênero,
o aluno precisa conhecer o gênero que será escrito para assim escrever dentro do contexto
daquele, e da proposta que foi pedida. As atividades devem criar condições para que os alunos
conheçam diferentes gêneros, seja da esfera oral ou da esfera escrita, e, assim, desenvolvam
suas competências para utilizar eficientemente a Língua Portuguesa. O trabalho ancorado nas
retextualizações permite, também, ao professor, desenvolver um trabalho de grande
relevância, interativo e produtivo. Para tanto, necessário se faz que o docente selecione
atividades com textos reais e de uso no cotidiano, pois são por estes textos que os alunos
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 611
demonstram mais interesse, e são com estes textos que o aluno vai apreender seu uso em
sociedade.
Dell’Isola nos afirma que as atividades de retextualização são um “excelente recurso
para o trabalho com o gênero”. (2007, p. 11). Além de trabalhar a leitura, compreensão e a
escrita, as retextualizações permitem o conhecimento e o trabalho com diversos textos
diferentes e seus funcionamentos nos mais variados lugares sociais.
Através do uso dos gêneros, em consonância com as atividades de retextualização, os
alunos poderão produzir diversas possibilidades de textos a partir de reflexões acerca do uso
destes gêneros e das características que os constituem. Como nos diz Marcuschi, “quando
dominamos um gênero textual, não dominamos uma forma linguística e sim uma forma de
realizar linguisticamente objetivos específicos em situações particulares diferentes” (2008, p.
154).
A atividade de Retextualização aqui analisada tinha como objetivo principal fazer com
que os alunos entendessem e apreendessem um determinado poema, transformando-o em
outro gênero escrito, num gênero da esfera do narrar, ficando os alunos à vontade para
escreverem sejam histórias inventadas ou contos ou fábulas ou crônicas ou outro que pudesse
trazer os traços narrativos como característica principal.
Antes de iniciarmos a atividade de retextualização, foi feita uma discussão acerca do
que seria a “retextualização”, como ocorre esse processo, para que serve, quando utilizamos a
retextualização, qual sua finalidade, tudo isto com o intuito de aprofundá-los no conceito do
assunto, mostrando tal prática é muito mais comum em nosso dia a dia do que se imagina.
Ao finalizar a discussão, entregamos aos alunos o poema intitulado “Eu e a árvore”3,
de Martins D’Alvarez, e fizemos juntamente com eles a leitura do texto para poder discutir e
entender. Ao fim da leitura, começamos a fazer perguntas referentes ao texto para que a
compreensão do texto-base fosse desenvolvida. Após este momento, solicitamos que os
alunos produzissem um texto narrativo sem especificar qual o gênero. A grande maioria dos
textos produzidos mostraram-se muito proveitosos e interessantes.
Apresentaremos dois recortes de retextualizações que foram produzidos pelos alunos
referente à primeira estrofe do poema. Segue abaixo a primeira estrofe do poema “Eu e a
árvore” e, logo depois, os recortes:
Quando nasci, papaizinho
Plantou, em nosso quintal,
3 Fonte: http://www.pragentemiuda.org/2008/09/poesia-eu-e-rvore.html (Acesso: 04/11/2013)
Nas fronteiras da linguagem ǀ 612
Uma arvorezinha esguia,
Para ver qual de nós duas
Cresceria mais depressa
Qual mais alta ficaria.
Primeiro recorte:
4
Analisando sinteticamente esta produção escrita de um aluno, vamos observar o
seguinte:
a) existe a compreensão do texto-base a contento, pois, como se observa, os tópicos ou ideias
centrais estão mantidos (o pai que planta uma árvore no quintal para observar se a filha ou a
árvore ficaria mais alta);
b) há a eliminação do caráter narrativo a partir da menina como está no poema, ocorrendo a
substituição do narrador para a terceira pessoa no texto escrito;
c) a completude textual é alcançada, por haver uma narrativa com início, meio e fim;
d) observam-se diversos acréscimos, como o tempo (4 anos passados, e 8 meses de gestação),
uma gravidez, a compra da árvore, dentre outros; e
e) também vê-se a inferência em alguns instantes, como a possibilidade da gravidez e
nascimento de um bebê, a decisão de se comprar árvore e o trato que o pai fez com a esposa.
O segundo recorte:
4 Transcrição: Bom Essa história aconteceu a 4 anos atraz uma mulher estava gravida de uma menina ela já
estava com 8 messês de gestação um certo dia o marido da mulher decidiu comprar uma árvore é plantou no
quintal da sua casa. Dias se passaram é chegou o dia da mulher ter o bebê então assim que a criança nasceu o
pai plantou a árvore e fez um trato com a esposa “vou plantar uma árvore no quintal, pra ver quem cresce
primeiro a menina ou a árvore
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 613
5
Sobre este segundo trecho de um outro aluno, vemos:
a) assim como o anterior, a compreensão do texto-base também ocorreu dentro do previsto, pois
as marcas tópicas principais foram devidamente mantidas;
b) houve eliminação do caráter narrativo de primeira pessoa conforme traz o poema,
modificando a uma narrativa em terceira pessoa;
c) a completude textual também é alcançava, introdução, meio e final estão bem postos;
d) há vários pontos de acréscimo, como: esposa cuidava da menina, o homem cuidava da árvore,
a menina só engordava, a menina só crescia dos lados, a menina só alcançava a janela, a
menina sobre nos galhos da árvore, entre outros;
e) e sobre a inferência, vemos: o homem que tinha acabado de ser pai, a árvore que só crescia,
etc.
É interessante notarmos em ambos os trechos dos textos dos alunos também ocorre
aquilo que Marcuschi (2004) chama de “falseamento”, pois há certas “invenções” que não
constam no texto-base. Os alunos, na verdade, realizam a retextualização, fazendo acréscimos
que estão fora do que foi dito no texto primeiro. Mas é interessante ressaltarmos que as
retextualizações foram devidamente realizadas, e o “falseamento” não desmerece nem
invalida a produção textual, trata-se apenas de mais uma características que pode ocorrer
5 Transcrição: No poema deu para entender que tinha um homem que tinha acabado de ser pai então ele teve a
ideia de plantar uma árvore no quintal para ver qual das duas cresciam mais rápido e qual ficaria maior. A
esposa desse homem cuidava da menina o homem cuidava da árvore, eles cuidava delas a toda hora, mais
enquanto a árvore crescia a menina só engordava, a àrvore crescia cada vez mais para o alto e a menina só
crescia dos lados. A árvore bate no telhado e a menina só alcança a janela, a menina por vingança por não ter
ficado da altura da àrvore a menina sobe em seus galhos até ficar mais alta do que ela.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 614
durante o momento que se faz essa troca de um gênero ao outro, para que a adaptação seja
menos complexa de realizar por aquele que retextualiza.
5. Algumas considerações finais
Quando analisamos atentamente os trechos em tela, vamos observar como é relevante
para o ensino de leitura-escrita em sala de aula esse processo de retextualização. Os alunos
compreenderam dentro do esperado o que o texto-base traz em seu bojo principal e
produziram outros dois textos retextualizados com caráter narrativo, através de histórias
inventadas, a partir do poema apresentado em aula.
É interessante ressaltar que, além desse entendimento do que o texto primeiro traz, os
alunos utilizam inúmeras outras estratégias em suas produções escritas. Construir eliminação,
acréscimos, substituições, ordenações e referências numa produção escrita, a partir de outro
texto, é algo que carrega uma larga complexidade reflexiva textual-discursiva, pois o trabalho
não se restringe a entender o texto-base, mas refazê-lo, mantendo as ideias, em outra
modalidade de gênero.
Isso significa que essas tarefas escolares de retextualizar precisam mais e mais constar
como obrigação por parte dos docentes dentro da sala de aula, em especial em Língua
Portuguesa; pois, infelizmente, esse recurso é um instrumento ainda pouco utilizado, não
sabemos se por desconhecimento dos professores ou por conta dos famosos “conteúdos” que
enchem a pauta das aulas, não sobrando espaço para o que realmente é importante.
Está claro, apenas a partir desses dois trechos (agora imaginemos em textos maiores e
bem mais elaborados!), que a desenvoltura textual e escritural dos alunos são afloradas e
instigadas, o que permite falar que retextualizar é um relevante caminho de entrada e
apropriação das características textuais tanto do texto-base quanto no texto-fim. Atividades
semelhantes carecem de mais lugares e olhares, precisam entrar nas salas de aula porque
nossos alunos ainda sofrem muito quando se trata de compreensão de texto e de escrita de
gêneros textuais. O que esperamos é que estas rápidas análises possam fazer com que nós
docentes reflitamos atentamente e pensemos com mais objetividade nossas ações
pedagógicas, e que o retextualizar seja mais um importante instrumento para tentar modificar
esse quadro tão triste que circula nossos alunos, especialmente no que pertine à leitura,
escritura e reescritura de textos em ambiente escolar.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 615
Referências
D’ALVAREZ, Martins. Eu e a árvore. Disponível em:
<http://www.pragentemiuda.org/2008/09/poesia-eu-e-rvore.html>. Acesso em: 04 nov. 2013.
DELL’ISOLA, Regina Lúcia Péret. Retextualização de gêneros escritos. Rio de Janeiro:
Lucerna, 2007.
DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernard & HALLER, Sylvie. O oral como texto: como
construir um objeto de ensino. In: ROJO, Roxane & CORDEIRO, Glais Sales (orgs.).
Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Editora Mercado de Letras, 2004.
KOCH, Ingedore Villaça. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Editora Contexto,
2000.
MARCUSCHI, Luiz Antonio. Letramento e oralidade no contexto das práticas sociais e
eventos comunicativos. In: MARCUSCHI, Luiz Antonio & SIGNORINI, Inês (orgs.).
Investigando a relação oral/escrito e as teorias do letramento. Campinas: Editora Mercado
das Letras, 2001.
_______. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Editora Cortez,
2004.
NEVES, Maria Helena de Moura. Ensino de língua e vivência de linguagem: temas em
confronto. São Paulo: Editora Contexto, 2010.
RODRIGUES, Maria Coeli Saraiva & BIASI-RODRIGUES, Bernardete. A Retextualização
em Aulas de Língua Portuguesa do Ensino Superior. Revista Expressão. Mossoró: v. 41, n. 1,
p. 117-130, 2010. Disponível em:
<http://periodicos.uern.br/index.php/expressao/article/view/7>. Acesso em: 02 jan. 2015
STUBBS, Michael. In: MARCUSCHI, Luiz Antonio. Da fala para a escrita: atividades de
retextualização. São Paulo: Editora Cortez, 2004.
VERCEZE, Rosa Maria Aparecida Nechi & NOGUEIRA, Erik Sanchez. Fala versus escrita:
atividades de retextualização. Revista Zona de Impacto. IBCT: v. 4, Ano VIII, Novembro,
2005. Disponível em: < http://www.albertolinscaldas.unir.br/falaversusescrita.htm>. Acesso
em: 26 dez. 2014.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 616
ANÁLISE DE GÊNEROS DA ESFERA JORNALÍSTICA NO
CURRÍCULO DE PORTUGUÊS PARA O ENSINO
FUNDAMENTAL DO ESTADO DE PERNAMBUCO [Voltar para Sumário]
Diana Pereira Costa Alves1 (UPE)
Ecia Mônica Leite de Lima Freitas2 (UPE)
Introdução
São inúmeras as inquietações trazidas pelos educadores quanto ao ensino de gênero na
escola. Este artigo busca principalmente examinar como se dá a proposta de trabalho com os
gêneros da esfera jornalística e qual a concepção de gêneros adotada no Currículo de
Português para o Ensino Fundamental no Estado de Pernambuco.
Quando se trata do trabalho com gêneros na escola é muito comum surgirem
inquietações sobre o que ensinar, como e que práticas educativas são mais eficazes para que o
trabalho obtenha êxito. Tais afirmações se baseiam em diversas pesquisas realizadas no Brasil
como, por exemplo, os estudos de Bonini (2011), Rojo e Barbosa (2013), Assis (2010) e Melo
e Assis (2013). Por outro lado, indagações sobre a eficiência do currículo para atender as
necessidades dos estudantes na apropriação dos gêneros, aparecem constantemente nos
estudos de Rojo (2000), Moreira (2007), e Jesus (2008) através dos quais embasamos esse
trabalho.
O corpus da pesquisa foi construído a partir da elaboração dos seguintes critérios: a)
identificar a concepção de gênero adotada no Currículo de Português de Pernambuco para o
Ensino Fundamental (anos finais); b) investigar se há um equilíbrio entre as expectativas de
aprendizagem com a compreensão e produção do gênero da esfera jornalística; c) verificar se
os eixos oralidade, leitura e escrita encontram-se interligados no ensino dos gêneros textuais
da esfera jornalística em cada ano escolar.
1 Mestranda do PROFLETRAS da Universidade de Pernambuco - Campus Garanhuns e professora da rede
municipal de Garanhuns-PE. 2 Mestranda do PROFLETRAS da Universidade de Pernambuco - Campus Garanhuns. Professora da rede
municipal de Garanhuns e da rede estadual de Pernambuco.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 617
A partir desses critérios analisamos criticamente a presença dos gêneros da esfera
jornalística no Currículo de Português para o Ensino Fundamental do Estado de Pernambuco e
como se articulou com a concepção de gênero subjacente ao documento. Assim sendo, a
discussão foi organizada a partir dos seguintes tópicos: ‘O Currículo na escola e sua
influência no ensino’, ‘A esfera jornalística: aspectos teóricos’ e, por fim, apresentamos a
análise propriamente dita, intitulada ‘Os gêneros da esfera jornalística no Currículo de
Português de Pernambuco: analisando o documento’.
O currículo na escola e sua influência no ensino
O Currículo é uma proposta, cuja função é orientar a prática pedagógica do professor.
De acordo com Jesus (2008), entre as décadas de 1960 a 1970, ocorreram alguns estudos
sobre currículo, caracterizando-o em três níveis: o currículo real, o currículo oculto e o
currículo formal. O currículo real é aquele que acontece no dia a dia de sala de aula como
resultado de um plano de ensino; o currículo oculto trata de todo aprendizado que permeia a
vida do estudante, decorrente das práticas sociais a que esteja submetido; e o currículo formal
é aquele institucional, construído pelos sistemas educacionais para ser vivenciado em sala de
aula.
O currículo formal deve considerar a complexidade do processo de ensino-
aprendizagem e não pode estar desvinculado das interações sociais, necessitando assim, de
um contínuo processo de reflexão que envolva os principais autores do processo educativo e
assegure os direitos culturais, políticos e sociais dos indivíduos (MOREIRA, 2007). Tal
reflexão deve preceder a própria elaboração do documento, pois é em sua construção que os
meios devem ser viabilizados para assegurar os principais direitos dos indivíduos. Vale
ressaltar que o currículo também deve estar atrelado aos contextos e práticas dos estudantes
possibilitando o processo de ensino-aprendizagem. Comungando com esse pensamento
Sacristán afirma que
O currículo é a ligação entre a cultura e a sociedade exterior à escola e à educação;
entre o conhecimento e cultura herdados e a aprendizagem dos alunos; entre a teoria
(ideias, suposições e aspirações) e a prática possível, dadas determinadas condições (SACRISTÁN, 1999 apud JESUS, 2008, p.2640).
Conforme Moreira (2007), o currículo deve atender os seguintes pontos: Os conteúdos
para aprendizagem, a vivência dos conhecimentos adquiridos, os planos didáticos, as
expectativas de aprendizagem e os processos de avaliação. Em relação a isso e baseado nos
Nas fronteiras da linguagem ǀ 618
estudos de Rojo (2000), é possível prever algumas tensões que podem ocorrer entre uma
determinada proposta curricular e a sua execução em sala de aula, dentre elas podemos citar:
a) desconhecimento ou não aceitação, por parte dos docentes, dos discursos teóricos
atualizados; b) propostas desvinculadas das necessidades sociais, culturais e políticas do
público a que se destinam; c) objetivos de aprendizagem acima ou abaixo dos níveis de
escolarização previstos.
Dessa maneira, interessa-nos ainda acrescentar qual a influência do currículo de
Língua Portuguesa no que se refere ao trabalho com os gêneros textuais na escola. Importa-
nos inicialmente lembrar que o conhecimento da língua materna é essencial para a construção
e o desenvolvimento humano, tão necessário para as práticas sociais, históricas e culturais em
que estejam inseridos. Ademais, sendo a língua o principal meio de acesso aos diversos
conhecimentos essenciais aos indivíduos, evidencia-se a importância do Currículo de Língua
Portuguesa.
O Currículo de Português deve, pois, sempre se adequar às diversas abordagens que
estão em constante atualização, procurando atender as diversas transformações culturais e
sociais, dentre elas, o trabalho com os gêneros textuais que permeia as diversas esferas
sociais, como é o caso das esferas de circulação científica, esfera literária, esfera jornalística,
entre outras. É possível citar, por exemplo, que a partir da inserção tecnológica no mundo
atual, houve uma necessidade de se incluir nos currículos de Português o ensino dos gêneros
digitais, com o objetivo de desenvolver nos estudantes métodos eficazes para a escrita e a
leitura de textos eletrônicos, assim como a necessidade de inclusão dos textos literários com
função estética e não meramente pedagógica.
A esfera jornalística: aspectos teóricos
As pesquisas atuais na área do ensino de língua materna têm sugerido que um ensino
efetivo de leitura e produção de textos deve ser direcionado por meio de uma diversidade de
gêneros textuais (BARBOSA, 2000). Dessa forma, várias esferas das práticas sociais são
contempladas no currículo de Português, dentre elas, a esfera jornalística.
Um dos estudiosos dos gêneros do jornal, Adair Bonini (2011), ressalta a grande
relevância social dos estudos dos gêneros jornalísticos como subsídio não só para a formação
do profissional (jornalista ou professor de língua), mas também como importante para a
educação e a formação do cidadão crítico que saiba lidar com as manifestações difundidas
pelo meio jornalístico, uma vez que toda sociedade é afetada por elas.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 619
Ao tratar da esfera jornalística, Rojo e Barbosa (2013) apontam que os propósitos
dessa esfera são em geral informar e formar opinião, classificados como jornalismo
informativo e jornalismo opinativo. De acordo com Assis (2010), essa divisão também foi
conceituada por Melo em 1985, no entanto, referida como gênero informativo e gênero
opinativo, e considerada hegemônica no jornalismo.
Assis (2010) destaca que no âmbito do jornalismo brasileiro os autores
representativos, José Marques de Melo e Manuel Carlos Chaparro, apresentam teorias
díspares desse assunto. Enquanto Melo expõe um estudo voltado para a intencionalidade do
material jornalístico, Chaparro tem o foco na estrutura linguística do discurso. Nesse sentido,
é perceptível também uma diferenciação de conceitos e nomenclaturas entre as áreas de
comunicação e linguística no que tange a esfera jornalística. Melo e Assis (2013) associam
“gênero” a agrupamento, que por sua vez está coligado a outros elementos refletidos e
traduzidos em nossa vida social por meio de textos, programas e materiais com diferentes
características, denominados de “formato”.
Por conseguinte, os formatos são distribuídos nos gêneros, de acordo com Melo (2009
apud MELO e ASSIS, 2013) da seguinte forma: gênero informativo (nota, notícia,
reportagem, entrevista); gênero opinativo (editorial, comentário, artigo, resenha, coluna,
caricatura, carta, crônica). O primeiro, tem por objetivo revelar “a sucessão exata dos fatos
que estão inter-relacionados e suas causas, limitando-se a uma simples exposição” (PEURCE
2002, p.202 apud ASSIS, 2010, p.18); já no segundo, a opinião “é uma função psicológica
pela qual o ser humano, informado de ideias, fatos ou situações conflitantes, exprime a
respeito seu juízo” (BELTRÃO 1980, p.14 apud ASSIS 2010, p.20).
Essas duas dimensões da esfera jornalística são bem presentes nos currículos escolares
de Língua Portuguesa com o intuito de colaborar na formação crítica do estudante, seja a
partir da leitura, compreensão e produção de gêneros do jornalismo informativo ou do
jornalismo opinativo. Mesmo existindo uma preocupação quanto à leitura, compreensão e
produção de textos, conforme Rojo e Barbosa (2013), os indicadores nacionais vêm
mostrando resultados negativos quanto à formação de leitores e produtores de texto; e no que
se refere à formação de leitores de periódicos o resultado é o mesmo. Segundo as autoras, isso
acontece porque a escola trabalha com os gêneros de forma desvinculada das práticas e da
esfera em que o gênero se insere.
A inclusão dos gêneros da esfera jornalística no currículo escolar é importante, mas é
preciso como em qualquer outra esfera que seu ensino seja o mais contextualizado possível,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 620
mesmo que seja uma situação simulativa, permitindo assim uma compreensão e produção
eficiente dos mesmos.
Os gêneros da esfera jornalística no currículo de português de Pernambuco: analisando
o documento
O Currículo de Português para o Ensino Fundamental é um documento baseado nos
Parâmetros Curriculares de Pernambuco (PCPE) e tem por objetivo auxiliar o professor no
que concerne à divisão de conteúdos por anos e bimestres. O documento evidencia o ensino a
partir da natureza social e interacional da linguagem e apresenta o texto como objeto central
de ensino destacando as práticas de uso da linguagem na escola. Dessa forma, o Currículo de
Português segue a estrutura dos PCPE quanto aos eixos de ensino: análise linguística,
oralidade, leitura, letramento literário e escrita. Atrelado aos eixos de ensino estão as
expectativas de aprendizagem que indicam os objetivos para cada conteúdo.
Atendendo ao primeiro objetivo desse artigo que é identificar a concepção de gênero
adotada no Currículo de Português de Pernambuco para o Ensino Fundamental, constatamos
que a concepção de gênero textual apresentada explicitamente nos PCPE e consequentemente
no Currículo de Português, é de base Bakhtiniana, uma vez que compreende a atividade
comunicativa a partir de enunciados padronizados de estrutura relativamente estável e
socialmente determinados (BAKHTIN, 1997), mas também o documento alinha a essa teoria
a concepção de gêneros textuais de outros autores (MARCUSCHI, 2003; SCHNEUWLY,
2004; SCHNEUWLY e DOLZ, 2004).
Em se tratando da presença de gêneros da esfera jornalística no Currículo de Português
de Pernambuco, podemos encontrar a seguinte distribuição:
Gênero 6º ano 7º ano 8º ano 9º ano
Notícia X X X X
Reportagem X - X X
Entrevista X X X X
Defesa de ponto de vista3 X - X -
Texto de opinião3 - X - -
Artigo de opinião - - X X
Editorial - - X X
3 Nomenclatura utilizada como gênero por Dolz e Schneuwly (2004).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 621
Carta do leitor - X X X
Fonte: elaborada pelas autoras baseada no Currículo de Português para o Ensino Fundamental do Estado de Pernambuco
Identificados os gêneros da esfera jornalística no documento, analisaremos desse
ponto em diante simultaneamente o segundo e terceiro itens de análise que são: investigar se
há um equilíbrio entre as expectativas de aprendizagem e a compreensão e produção do
gênero da esfera jornalística, especificamente do jornalismo informativo e do jornalismo
opinativo4; verificar se os eixos oralidade, leitura e escrita encontram-se interligados no
ensino dos gêneros textuais da mesma esfera em cada ano escolar.
No 6º ano os gêneros encontrados são predominantemente os do jornalismo
informativo: notícia, reportagem e entrevista. Apenas a defesa de ponto de vista é
representativa do jornalismo opinativo, considerando-o como gênero conforme Scheneuwly e
Dolz (2004).
Observa-se no documento que as expectativas de aprendizagem para esses gêneros se
concentram apenas no eixo da oralidade. Assim sendo, as expectativas de aprendizagem para
a notícia, a reportagem e a defesa de opinião se direcionam para produzir relatos e textos
expositivos orais e produzir textos argumentativos orais. Já para a entrevista, as expectativas
de aprendizagem, mesmo sendo apenas no eixo da oralidade, expandem um pouco a
possibilidade de trabalho com o gênero em questão, ainda que não indique sua produção oral:
reconhecer os efeitos de sentido em decorrência do uso de diferentes recursos coesivos na
produção de textos orais e oralizar textos escritos utilizando ritmo e entonação adequados às
situações discursivas.
Diante disso, é possível tratar da seguinte inquietação: tendo como base o PCPE que
apresenta uma proposta interacionista, verificamos que ao pensar a língua como recurso para
realizar ações, nesta série, o documento não preocupou-se em ampliar as expectativas de
aprendizagens, no intuito de levar o estudante a refletir sobre os usos sociais do gênero. Dessa
forma, embora o documento base PCPE proponha um modelo de ensino que desenvolva
capacidades nos eixos leitura, oralidade e escrita, isso não ocorre nesse ano escolar. Ao
mesmo tempo que o PCPE sugere um ensino através da interligação entre os eixos, ele expõe
o procedimento “sequência didática” postulado por Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004) em
que no seu último critério de organização dessa sequência, destaca que ao se trabalhar um
4 Optamos por utilizar as expressões em destaque de Rojo e Barbosa (2013), ao invés de gênero informativo e
opinativo proposto por Melo (2006) por considerarmos mais adequadas aos estudos teóricos atuais sobre
gêneros.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 622
mesmo gênero em mais de um ano escolar, deve-se propor objetivos diferentes conforme as
etapas de escolarização.
Em relação ao 7º ano escolar, os gêneros da esfera jornalística são assim apresentados:
notícia, entrevista, texto de opinião e carta do leitor. A notícia agora é elencada apenas no
eixo da escrita com a seguinte expectativa de aprendizagem: produzir textos que circulam nas
diferentes esferas da vida social considerando os interlocutores, o gênero textual, o suporte e
os objetivos comunicativos. Nessa expectativa de aprendizagem é possível perceber traços da
teoria de Bakhtin (1997) que trata das condições específicas e as finalidades de produção dos
gêneros de cada esfera de comunicação. Por se tratar da escrita de um gênero, consideramos
importante que o documento trouxesse também expectativas de aprendizagem no eixo da
leitura, uma vez que é imprescindível a leitura para a identificação das características
inerentes ao gênero em estudo, subsidiando assim o momento da escrita. Essa indicação da
leitura do gênero antes da escrita pode ser comprovada nos estudos de Dolz, Noverraz e
Schneuwly (2004).
A carta do leitor, da mesma forma como no gênero textual notícia, se apresenta apenas
no eixo da escrita, mostrando-se discrepante com a perspectiva teórica, exposta anteriormente.
Para esse gênero em questão, as expectativas de aprendizagem se mostram um pouco
confusas, pois propõem que o estudante expresse opinião na produção de gêneros textuais que
requeiram o uso de estratégias de convencimento do leitor (propagandas, resenhas, cartas de
leitor, editorial, artigo de opinião, debate), ou seja, embora o conteúdo seja “carta de leitor”, a
expectativa de aprendizagem abrange outros gêneros que não foram citados no conteúdo. Isso
mostra uma quebra de expectativa, uma vez que esperava-se uma aprendizagem relativa ao
gênero carta de leitor.
Assim como a notícia e a carta de leitor que aparecem em um eixo apenas, ainda no 7º
ano, observa-se a indicação de trabalho com o texto de opinião no eixo da leitura, objetivando
identificar as especificidades do gênero de um texto, seu objetivo comunicativo (propósito),
seus interlocutores previstos e suas condições de produção; identificar o gênero de um texto,
considerando a situação discursiva; reconhecer efeitos de sentido decorrente de escolha do
vocabulário; identificar o tema de um texto; inferir o sentido global ou ideia central em
determinados gêneros. Apesar de constar em apenas um eixo, várias expectativas de
aprendizagem foram enumeradas de forma pertinente considerando os diversos aspectos de
um gênero que podem ser abordados na leitura.
O gênero textual mais completo do 7º ano no que se refere à distribuição nos eixos de
ensino é a entrevista, pois é especificada nos eixos da oralidade, leitura e escrita. Em nossa
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 623
avaliação, essa conexão em mais de um eixo no mesmo ano escolar possibilita um trabalho
mais significativo de compreensão e produção de um gênero.
No 8º ano do Ensino Fundamental os gêneros do jornalismo opinativo são assim
distribuídos: no segundo bimestre, a carta de leitor nos eixos leitura e escrita; no terceiro
bimestre, além da carta de leitor, o artigo de opinião e o editorial estão presentes também nos
eixos leitura e escrita; no quarto bimestre eles não aparecem em nenhum dos eixos. Já os
gêneros do jornalismo informativo, a entrevista é apresentada no 1º, 2º e 3º bimestres nos
eixos da oralidade, leitura e escrita; a notícia e a reportagem, somente são propostas no final
do quarto bimestre no eixo da escrita.
O PCPE, base do Currículo de Português, adota uma concepção de língua enquanto
ação e interação social. Dessa forma, no trabalho com os gêneros textuais espera-se que as
expectativas de aprendizagem para cada eixo de ensino, tendo como foco a interação,
apresentem como prioridade os seguintes pontos: os propósitos comunicativos, os
interlocutores pretendidos e os contextos sociocomunicativos do texto ou para o texto. Ao
analisar o documento, especificamente o eixo leitura e escrita, onde aparecem os gêneros da
esfera jornalística, é possível verificar que as expectativas concentram-se em grande parte na
observação dos referidos aspectos discursivos. No eixo da leitura, dentre as expectativas
podemos citar as seguintes: identificar o gênero de um texto, considerando a situação
discursiva; e identificar as especificidades do gênero de um texto: seu objetivo comunicativo
(propósito), seus interlocutores previstos e suas condições de produção. No eixo da escrita,
encontramos, por exemplo: produzir textos que circulam nas diferentes esferas da vida social,
considerando os interlocutores, o gênero textual, o suporte e os objetivos comunicativos.
Por fim, no 9º ano, seis gêneros da esfera jornalística são contemplados. No jornalismo
informativo: a notícia, a reportagem e a entrevista e no jornalismo opinativo: o artigo de
opinião, o editorial e a carta do leitor. Ao contrário do que ocorre no 7º e 8º ano, de um
gênero se apresentar em mais de um eixo, agora eles voltam a aparecer em apenas um. A
notícia, a reportagem e a entrevista são elencadas apenas no eixo da oralidade; já a carta do
leitor, o artigo de opinião e o editorial constam no eixo da escrita.
Reafirmando o que dissemos anteriormente, consideramos mais efetivo um ensino de
gênero textual em que se articule mais de um eixo de ensino por série, porém, o gênero
notícia, por exemplo, que se apresenta em todos os anos escolares tem como foco apenas um
eixo de ensino. No 6º ano oralidade, no 7º ano escrita, no 8º ano escrita e no 9º ano oralidade,
enquanto que a leitura não aparece em nenhum momento.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 624
Percebemos ainda que mesmo sendo este um ponto negativo no documento, as
expectativas de aprendizagem poderiam ir se modificando ano após ano passando de uma
forma mais simples até uma mais complexa, refletindo-se assim em níveis de atividades
diferenciados conforme o público escolar. No entanto, observando a repetição dos gêneros por
ano no Currículo de Português, constatamos que as expectativas de aprendizagem nem sempre
vão progredindo quanto à passagem de uma simples a uma mais complexa, garantindo uma
continuidade coerente do ensino. Exemplo disso, o mesmo gênero notícia no eixo da oralidade
parte de uma expectativa de produzir textos orais no 6º ano para a expectativa de
reconhecer no 9º ano os gêneros específicos da fala. Não achamos, pois, que haja uma
progressão significativa nas expectativas de aprendizagem; ao contrário, nesse exemplo
especificamente, parece-nos que parte-se de uma expectativa mais complexa para uma mais
simples. Passagens como essas são comuns nos demais anos escolares.
Diante das orientações curriculares expostas e analisadas até aqui, é possível
identificar aspectos positivos, como a própria disposição dos gêneros da esfera jornalística ao
longo do documento, uma vez que esses devem proporcionar ao estudante uma maior
reflexão dos assuntos que permeiam o meio social; como também aspectos negativos no que
concerne à distribuição dos eixos de ensino por série e consequentemente a escassez de
expectativas de aprendizagem que em nosso entendimento atrapalha a apropriação efetiva do
gênero.
Considerações finais
Ao analisar o Currículo de Português para o Ensino Fundamental do Estado de
Pernambuco, verificamos que a teoria presente de gêneros textuais tem como principal
representante Bakhtin e o grupo de autores de Genebra, Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004).
Diante dos resultados analisados, verificamos que os gêneros do jornalismo
informativo são mais presentes do 6º ao 9º ano do que os do jornalismo opinativo, exemplo
disso é a notícia e a entrevista. O fato de haver repetição de gêneros ao longo dos anos, não é
um ponto negativo, no entanto, a falta de progressão das expectativas de aprendizagem de um
ano para o outro pode gerar um fracasso na apreensão de um gênero textual. Além disso, a
falta de alinhamento entre os eixos da oralidade, leitura e escrita ou em pelo menos em dois
desses eixos para o ensino, também desfavorece uma compreensão mais consistente do gênero
em estudo.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 625
Foi possível perceber ainda a ausência do gênero textual ‘resenha’ que deveria estar
presente por ser um dos gêneros da esfera jornalística capaz de desenvolver a criticidade dos
estudantes. Tais constatações nessa pesquisa apontam para a necessidade de repensar a
proposta do Currículo de Português de Pernambuco, com vista ao desenvolvimento dos
estudantes nos eixos leitura, escrita e oralidade, pois, para uma efetiva participação social é
essencial a apropriação da linguagem em seus diversos usos.
Embora reconheçamos haver pontos conflituosos no documento, não podemos negar a
importância dele para a educação do estado de Pernambuco, que nos últimos anos vem
tentando melhorar seus índices educacionais, principalmente no quesito leitura, compreensão
e produção de texto.
A presente análise permite-nos também afirmar que só a construção desses
documentos não garantirá o avanço significativo nos índices educacionais, mas pode ser um
bom começo se for acompanhado por capacitações mais pontuais para os professores por área
específica de ensino. De forma que todos possam falar a mesma linguagem e compreender as
teorias que são discutidas nos documentos oficiais, não ficando esse entendimento apenas
para os elaboradores dos mesmos. Além disso, a participação mais efetiva dos professores na
construção do currículo viabilizaria uma melhor adequação deste com a sua prática de ensino.
Importa-nos informar ainda que o currículo em análise organiza-se apenas em torno
dos conteúdos e expectativas de aprendizagem, porém conforme afirma Moreira (2007), além
dos conteúdos e objetivos, no currículo devem constar os modos de aprendizagem, planos de
ensino e as formas de avaliação, sempre com o intuito de desenvolvimento de capacidades
que permitam uma apropriação efetiva dos conhecimentos necessários para a atuação do
indivíduo em sociedade. Ademais, desejamos que ao compartilhar esse estudo, bem como
algumas inquietações trazidas, não tenhamos esgotado as possibilidades de análise, mas,
sobretudo tenhamos motivado outros profissionais da área de educação a entender o currículo
como um documento que deve ser objeto de reflexão contínua, uma vez que é através dele que
podemos legitimar o conhecimento e validar o processo de ensino aprendizagem.
Referências
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11 - n.21 - p. 16 a 33 - jul./dez. 2010.
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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 627
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Nas fronteiras da linguagem ǀ 628
ENSINO DE LITERATURA EM WEBQUEST: O
IMAGINÁRIO E O CRIATIVO EM ALICE NO PAÍS DAS
MARAVILHAS
[Voltar para Sumário]
Diego Paulo da Silva (IFAL)
Nádia Mara da Silveira (IFAL)
I. Introdução
"I hear and I forget. I see and I remember.
I do and I understand."
(Confucius)
Ensinar literatura na escola em meio ao avanço da tecnologia tem se tornado um
grande desafio tanto para professores de língua materna quanto de língua estrangeira, em
virtude dos impasses com as quais se deparam ao abordar conteúdos de literatura em sala de
aula. Entendemos que é realmente desafiador atrair a atenção dos alunos para a leitura de
livros literários quando estes apresentam mais entusiasmo em desenvolver atividades estando
conectados à internet.
Por conta disso, não é raro ouvir os estudantes se queixarem que a linguagem do texto
literário é complicada, enfadonha e que estudar literatura é chato porque não se discute
assuntos “legais”, que atraem os jovens ou, ainda, porque consideram não ter relevância
alguma, pois supõem que os textos literários não dão espaço para discutir temas atuais que
dialoguem com a realidade deles.
Desse modo, acabam demonstrando menos interesse em realizar atividades de leitura e
discussão de textos literários por se valer da ideia de que a literatura só trata ou discute
“coisas antigas” e/ou desinteressantes. Por outro lado, há alunos que compartilham
experiências interessantes adquiridas ao ler literatura, algumas na escola outras fora dela,
entretanto, esses alunos estão, na maior parte das vezes, em menor número.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 629
Mesmo com a visão construída em seu imaginário, os alunos pensam em formas de
tornar o estudo de literatura escolarizada mais interessante, recorrendo à internet e aos
recursos tecnológicos como instrumentos para a aprendizagem de literatura, integrando-a nas
diversas tecnologias disponíveis. Sendo assim, recorrem a dispositivos tecnológicos que
entrecruzam várias formas de expressão, dentre elas o som, a imagem e o movimento e
facilitam a aprendizagem por estabelecer diálogos com outras formas de linguagem.
Pensando nisso, propomos a inserção da metodologia webquest como forma de
articular os elementos da informática ao ensino, no intuito de fornecer outros conhecimentos e
proporcionando “novos” caminhos para a aprendizagem. Com isso, pretendemos inserir a
tecnologia no ensino de literatura, na pespectiva de contribuir para as reflexões feitas acerca
dos textos literários e estimular a imaginação e a criatividade dos alunos, incentivando-os a
desenvolver as múltiplas inteligências (cf. GARDNER, 1994) em sala de aula.
Como proposta, utilizaremos a obra Alice’s Adventures in Wonderland (2005/1865),
traduzido como “Alice no País das Maravilhas”, que estabelece uma abordagem intertextual1
com a narrativa fílmica “Alice in Wonderland” (2010), desenvolvido por Tim Burton, numa
leitura cinematográfica da obra de Lewis Carroll, na perspectiva de traçar diálogos entre a
língua materna (português) e a estrangeira (inglês).
II. Web o quê? A metodologia Webquest como instrumento de aprendizagem
As formas de aprender têm sofrido muitas mudanças em virtude da revolução
tecnológica com a qual nos deparamos nas últimas décadas e não se pode negar os efeitos de
seu surgimento no âmbito da educação, sobretudo, no que se refere à aprendizagem e ao
ensino. Isso nos faz notar que as formas de aprender têm mudado com o surgimento/advento
das tecnologias, portanto, é preciso que as formas de ensinar também mudem. (MORAN,
[2000] 2010).
Com isso não queremos dizer que fazer essa mudança seja algo simples, pelo
contrário, temos total consciência das dificuldades com as quais os professores se deparam na
tentativa de integrar recursos tecnológicos nas atividades pedagógicas, principalmente, no
desafio de desenvolver práticas baseadas na aprendizagem cooperativa (Mercado, 1999), quer por
1 Nesta pesquisa consideramos o termo intertextualidade com base nos estudos propostos por Julia Kristeva
(1969), a partir de discussões feitas por Mikhail Bakhtin. Valendo-se dos estudos bakhtinianos, a autora define
intertextualidade com a seguinte citação: “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção
e transformação de outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade instala-se a de intertextualidade, e a
linguagem poética lê-se pelo menos como dupla” (KRISTEVA, [1969] 2005, p. 68).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 630
falta de intimidade com eles quer por não saber como utilizá-los de maneira eficaz em sala de
aula. No entanto, também é importante entender que “muitas formas de ensinar hoje não se
justificam mais”. (MORAN, [2000] 2010, p. 11)
Para responder as indagações e os questionamentos dessa natureza o professor e
pesquisador Bernie Dodger, da Universidade de San Diego, na Califórnia, em parceria com
Tom March, ainda na década de 90, desenvolveram um estudo metodológico que visava
capacitar professores para aplicar recursos do âmbito da informática na sala de aula como
suporte, no intuito de promover uma aprendizagem significativa e inteligente utilizando a
internet.
Tratava-se, pois, da metodologia Webquest, que Dodge ([1995] 2001, p. 1) definiu
como sendo “uma atividade investigativa, em que alguma ou mesmo toda a informação com
que os alunos interagem provém da Internet2”. A Webquest, enquanto metodologia de ensino,
começaria a romper alguns paradigmas, sobretudo os que supunham que o professor seria o
detentor do saber e os alunos apenas receptáculos. (MERCADO, 1999).
A metodologia Webquest dialoga com a teoria sociointeracionista de Vygotsky
([1989] 1998) porque propõe uma aprendizagem colaborativa, entendendo que o
desenvolvimento se dá numa relação de trocas de experiências por meio da interação e
mediação, isto é, evidencia a aquisição de conhecimentos pautada em processos de interação
entre o sujeito e o meio.
Desse modo, as Webquests permitem “a interatividade e a aprendizagem colaborativa”
(SANTOS, 2005, p. 114), uma vez que proporciona aos estudantes a possibilidade de
desenvolver pesquisas e atividades em grupo, em pares e/ou individuais se valendo dos
conhecimentos partilhandos nas experiências de sala de aula. A Webquest, para Santos (2008,
p. 6), “precisa agregar elementos que incentivem: a pesquisa como princípio educativo; a
interdisciplinaridade e a contextualização entre conhecimento científico e a realidade do
aprendente”.
Nesse sentido, a presença do professor é essencial porque medeia a situação de
aprendizagem de forma dialógica na articulação desses elementos para que os alunos
transformem as informações contidas na internet em conhecimento, atuando como “facilitador
e organizador da aprendizagem de forma a colaborar com o desenvolvimento da autonomia do
aluno” (LEFFA, 1988, p. 233), o que para Behrens ([2000] 2010) se configura como o mais
novo desafio no âmbito educacional.
2 “Is an inquiry-oriented activity in which most or all of the information used by learners is drawn from the Web”
Esta e todas as outras traduções para o português apresentadas neste trabalho são de autoria deste pesquisador.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 631
Essa possibilidade de trazer contribuições significativas para o ensino faz da webquest
uma metodologia que se apropria das tecnologias da informática potencializando “os espaços
de convivência e aprendizagem, principalmente, quando levamos em consideração o uso de
interfaces interativas, mídias digitais”. (SANTOS; SANTOS, 2014, p. 41), em que são
atravessadas diversas linguagens.
Os benefícios do trabalho com a webquest são amplos, pois acionam vários
mecanismos da aprendizagem que, estando intimamente relacionados, se entrecruzam gerando
a aprendizagem colaborativa por envolver
a interação de cinco tipos, ou dimensões, de pensar: (1) atitudes positivas e
percepções sobre aprendizagem, (2) pensamento envolvido na aquisição e integração
do conhecimento, (3) pensamento envolvido em extensão e refinamento do
conhecimento, (4) pensamento envolvido na utilização de conhecimentos de forma
significativa, e (5) os hábitos produtivos da mente3. (MARZANO, 1992, p. 7)
Para esse autor, os pensamentos são formas de estabelecer sentido e contribuem para
que os alunos experienciem uma aprendizagem construtiva por meio de investigação,
executando, encorajando e estimulando uma experiência de aprendizagem mais eficaz, na
qual todos possam intervir para a construção coletiva de sentidos.
Corroborando com essa perspectiva de aprendizagem estruturada em processos
interativo-cooperativos, Moran assegura que é necessário estimular os estudantes a buscar
maneiras de realizar as atividades de forma interativa, considerando e respeitando os saberes
de cada um para integrá-los de forma a atingir um só objetivo comum a todos os aprendentes,
visto que
é importante educar para a autonomia, para que cada um encontre o seu próprio
ritmo de aprendizagem e, ao mesmo tempo, é importante educar para a cooperação,
para aprender em grupo, para intercambiar ideias, participar de projetos, realizar
pesquisas em conjunto. (1995, p.13).
Estimular o trabalho colaborativo é um dos principais objetivos da Webquest
interativa, uma vez que por meio dela pretendemos contribuir para que os alunos aprimorem
e/ou despertem habidades através de atividades interativas nas quais todos colaborem entre si
para resolver um determinado problema.
3 “The interaction of five types, or dimensions, of thinking: (1) positive attitudes and perceptions about learning,
(2) thinking involved in acquiring and integrating knowledge, (3) thinking involved in extending and refining
knowledge, (4) thinking involved in using knowledge meaningfully, and (5) productive habits of mind.”
Nas fronteiras da linguagem ǀ 632
Enfatizamos que as WebQuests devem ser utilizadas em sala de aula para trabalhar
conteúdos envolvendo atividades interdisciplinares que provoquem discussões incentivadoras
de aprendizagem. Desafiar os alunos a criar histórias, enredos, montar um cenário são formas
de estimular a capacidade criativa, pois é a partir do incentivo que os alunos poderão perceber
seu potencial na realização da pesquisa/tarefa/atividade.
Dessa forma, será possível que os professores apliquem as WebQuests na perspectiva
de dar aos alunos uma tarefa que lhes permite usar a sua imaginação e as habilidades de
resolução de problemas, utilizando suas próprias habilidades de pensamento criativo e de
resolução de problemas para poderem sanar problemas dos mais diversos.
Segundo Marzano (1992, p. 7) é imprescindível que os alunos se tornem aprendizes de
maneira construtiva e que tenham “capacidade de assumir uma maior responsabilidade pela
própria aprendizagem, com o conhecimento de como avaliar o seu próprio crescimento4”, pois
isso os ajudaria a aprender a lidar com desafios do cotidiano e contribuiria para a contrução da
autonomia por despertar neles a capacidade de resolver seus problemas.
Sendo assim, o uso da webquest é pertinente, pois se constitui como metodologia de
ensino que, mediada pelo professor, pode auxiliar no desenvolvimento dos alunos, ajudando-
os a despertar a produção criativa para lidar com diversas situações-problema, gerando a
possibilidade de articular os saberes adquiridos na escola para utilizá-los na vida prática.
III. Literatura: um passeio mundo das maravilhas
A materialização da literatura se dá por meio da linguagem. Essa concepção nos
permite, por exemplo, compreender que as formas de manifestação da literatura são
diversificadas, uma vez que se pode estabelecer relações com elementos de outras expressões
artísticas, não podendo, portanto, ter sua compreensão associada unicamente à linguagem
verbal.
A literatura deriva, por excelência, da capacidade humana de imaginar. O artista
imprime suas impressões de mundo, construindo imagens que representarão sua
individualidade. No entanto, essas imagens são mutáveis, incompletas e adquirem sentido por
meio do olhar e das experiências do outro.
Por sua natureza dialógica, a literatura vem sendo confrontada com outras formas de
linguagens e, mais recentemente, as que envolvem outras mídias. Nesse sentido, trazemos
4 “capacity to take increased responsibility for their own learning, and with the knowledge of how assess their
own growth.”
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 633
uma proposta de atividade que pretende contribuir para que se promova novas experiências
com o ensino-aprendizagem de literatura por meio de uma webquest utilizada em sala de aula.
A WebQuest proposta se apresenta num entrecruzamento entre a linguagem da
narrativa cinematográfica Alice no País das Maravilhas (2010) e a obra literária de Lewis
Carroll, de mesmo título. A partir dessa abordagem, pretendemos dar aos alunos
possibilidades de construir sentidos por meio do diálogo entre o filme produzido por Tim
Burton e a obra de Carroll. Discutindo a relação que existe entre o livro e a adaptação
cinematográfica, Culler ressalta que os elementos que compõem a linguagem do cinema se
valem de diálogos com outros trabalhos pré-existentes, pois
[...] retomam, repetem, contestam, tranformam. Essa noção às vezes é conhecida
pelo nome imaginoso de ‘intertextualidade’. Uma obra existe em meio a outros
textos, através de suas relações com eles. (CULLER apud THIEL; THIEL, 2009, p.
46).
A imbricação entre a narrativa fílmica e o livro de Lewis Carroll, discutida por meio
de uma WebQuest, nos dá diversas possibilidades de leitura, uma vez que nos permiti
(re)construir a todo momento a história de Alice, estimulando nossa imaginação e criatividade
por meio do contato com o texto e com outros elementos, tais como o som e a imagem, que
unidos provocam uma relação de movimento e de envolvimento. No próprio livro, Alice faz
uma reflexão acerca da importância da presença da imagem na interpretação de um texto.
Alice começava a enfadar-se de estar sentada junto à irmã e não ter nada o que fazer:
uma ou duas vezes espiara furtivamente o livro que ela estava lendo, mas não tinha
figuras nem diálogos, “e de que serve um livro” – pensou Alice – “sem figuras nem
diálogos?” (CARROLL, 2005, p. 41).
Quando lemos estabelecemos diálogos e construimos significados, isto é, atribuímos
sentido ao que lemos e relacionamos as informações que o texto nos dá ao conhecimento que
foi adquirido no decorrer de nossas experiências de vida. Essa interação ocorre também ao
articularmos as imagens e os sons ao assistirmos a um filme, uma vez que a visão e a audição
se integram na interpretação(ões) das imagens de um texto fílmico. (THIEL; THIEL, 2009).
Tanto o filme quanto o livro explorados na WebQuest estão repletos de elementos que
evocam o que Todorov ([1975] 1981) classificou como fantástico, maravilhoso e estranho. De
acordo com esse autor, o fantástico se manifesta como aquilo que não se consegue definir
como real, ganhando corpo no terreno do incerto, do duvidoso. O maravilhoso, por sua vez, é
compreendido num espaço de questionamento em que não há explicação real que justifique
Nas fronteiras da linguagem ǀ 634
determinados acontecimentos, uma vez que eles se estruturam no âmbito do sobrenatural, pois
“não se explica de maneira nenhuma” (TODOROV, [1975] 1981, p. 31). Já o estranho ocorre
na impossibilidade de uma explicação racional para determinado acontecimento. Dito de outra
forma, é o momento em que o real não consegue fundamentar uma justificativa válida que
explique determinado fenômeno.
(...) de súbito um Coelho Branco de olhos róseos passou perto dela [...] quando o
Coelho tirou um relógio de bolso do colete e deu uma espiada, apressando-se em
seguida, Alice levantou-se sem demora, pois assaltou-a a idéia de que jamais vira na
sua vida um coelho de colete e bolso, e muito menos com um relógio dentro
(CARROLL, 2005, p. 41).
No trecho percebemos a presença do elemento fantástico se constituindo na incerteza
do momento em que o coelho branco surge trajando um colete no qual mantém um relógio de
bolso e Alice duvida da possibilidade de sua visão real, quando raciocina e não encontra
espaço na realidade para explicar o que acabara de ver.
Na narrativa de Burton, assim como na de Carroll, Alice se depara com situações
inusitadas que estimulam a nossa criatividade e impulsionam a nossa imaginação, tal como no
momento em que ela, após ter adentrado a toca do coelho, bebe um líquido que a faz diminuir
de tamanho e depois quando come o bolo que a faz crescer, atingindo mais de três metros de
altura. Esses e outros elementos caracterizam essa obra como parte da literatura fantástica.
A literatura nos dá a chance de embarcar no universo fantástico de Alice, permitindo-
nos explorar, (re)criar, (re)construir e (res)significar o mundo das maravilhas por meio de
nossa criatividade. Através desse universo, transferimos a imaginação do âmbito literário para
que os alunos leitores possam ter contato com a fantasia de modo a associá-la às suas
experiências e aos seus conhecimentos de mundo. (MCKAY, 1982)
Por conta disso, é essencial promover e desenvolver atividades nas quais os alunos
experienciem o contato com a literatura e possam reiventar os textos criando outras histórias e
registrando seus sentimentos, impressões e opiniões geradas a partir do contato inicial que
tiveram as narrativas.
Matos (1987, p. 20) assegura que o “ensino da literatura é, em rigor, impossível, pela
simples razão de que a experiência não se ensina. Faz-se. Mas podem e devem criar-se as
condições para essa experiência”. Duff e Maley (2003, p. 6) corroboram com essa afirmação
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 635
quando enfatizam que “o texto literário dá acesso a um mundo de experiências pessoais que
cada aluno possui.”5
As experiências adquiridas com a webquest utilizando o texto literário, por meio do
livro, do filme ou de ambos, são de extrema importância para o estudo da literatura. Por sua
capacidade de se correlacionar a outras disciplinas, a literatura se mostra extremamente
importante no estudo da língua em virtude das várias contribuições que ela pode oferecer para
o ensino-aprendizagem.
O trabalho com a literatura por meio da Webquest pode nos trazer benefícios de
natureza linguística, literária, cultural e estética. Ao utilizá-la em sala de aula podemos fazer
comparações entre os elementos que compõem a língua e a cultura de um povo, incitando
reflexões acerca das relações que se estabelecem entre a língua materna, nesse caso a língua
portuguesa, e a língua estrangeira (inglês) articulando tanto as questões culturais quanto as
linguísticas entrelaçadas ao ensino de literatura (COLLIE & SLATER, 1987), tal como
propomos com o texto de Alice, por exemplo.
Nesse sentido, o texto literário se apresenta como meio de explorar diversos aspectos
da linguagem, pois se configura como material autêntico, ou seja, faz uso de situações
concretas e contextualizadas, haja vista que o “texto literário provê exemplos de linguagem
tomados de uso real, que podem ser enfatizadas em contextos ativos na interação e no
trabalho de significação com e da linguagem.” (BRUNFIT & CARTER, 2000, 15).
São esses tipos de experiência que procuramos promover ao defendermos o ensino de
literatura tendo como suporte metodológico a webquest. A ideia é que o aluno-leitor possa
relacionar as discussões feitas com as diferentes abordagens de Alice no País das Maravilhas
com situações da vida real, discutindo e refletindo sobre aspectos da infância e da
adolescência, bem como as diversas implicações decorrentes das mudanças ocorridas nesse
período de transição.
É por meio do entrecruzamento das imagens, obsevando e comparando as
personagens, o cenário, as caricaturas, as fantasias e as aventuras exploradas nas narrativas
em questão que a WebQuest conecta aluno e professor com a literatura, envolvendo-os numa
atividade investigativa e convindado-os a embarcar numa aventura atrativa e motivadora com
o romance de Carroll.
IV. Considerações Finais
5 “Literary texts give access to the worlds of personal experience which every student carries within.”
Nas fronteiras da linguagem ǀ 636
O trabalho com a literatura é de fundamental importância para aprimorar e/ou
desenvolver habilidades e competências de leitura e de compreensão de textos na sala de aula.
Para Ur (1996) o contato com textos literários nos possibilita a conhecer diferentes tipos de
escrita, bem como representações autênticas dos vários tipos de usos da língua. O autor
assegura que a literatura é um recurso agradável que auxilia no ensino-aprendizagem da
língua por envolver tanto a emoção quanto o intelecto que, aliados a motivação, podem
contribuir para o desenvolvimento pessoal do aluno nas diversas situações de sala de aula.
Buscamos, nesta pesquisa, promover algumas experiências por meio do romance Alice
no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, na perspectiva de ajudar a “estimular a imaginação
dos nossos alunos, para desenvolver as suas habilidades críticas e aumentar a sua consciência
emocional” (LAZAR, 1993, p. 19)6. Segundo Lazar (1993, p. 15) “um bom romance ou uma
curta estória pode ser particularmente emocionante na medida em que envolve os alunos no
suspense de desvendar o enredo.”7
O potencial que a literatura tem de promover na sala de aula diálogos com outras
linguagens, como a da narrativa fílmica, contribui significamente para desenvolver a
criatividade dos alunos. Por meio do envolvimento entre o som, a imagem e o movimento que
atrai e desperta a atenção, os alunos têm a possibilidade de fazer comparações entre os
elementos que caracterizam o texto fílmico e a linguagem literária, discutindo e refletindo
sobre assuntos que os ajudão a despertar o senso crítico.
Nessa perspectiva, destacamos também a WebQuest como metodologia que aliada a
literatura pode expandir ainda mais as discussões em sala de aula, uma vez que ambas
favorecem o trabalho colaborativo que privilegia tanto as atividades em grupo quanto as que
exploram as habilidades individuais de cada aluno. Por meio da WebQuest podemos
desenvolver trabalhos em que a literatura se apresente como atividade investigativa que
explore o potencial de pesquisa na internet, mas que não se limita a isso, uma vez que
desperta também a capacidade investigativo-criativa dos alunos.
Portanto, percebemos o importante papel que a webquest ocupa no ensino-
aprendizagem de literatura por apresentar uma abordagem intertextual e, por vezes,
interdisciplinar que visa a provocar discussões, reflexões e análises críticas no âmbito da
linguagem, da literatura e da cultura.
6 “to stimulate the imagination of our students, to develop their critical abilities and to increase their emotional
awareness.” 7 “A good novel or short story may be particularly gripping in that it involves students in the suspense of
unraveling the plot”
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 637
Referências
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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 639
ENTRE AS ESTRADAS QUE (NÃO) SE ABREM: TERRA
SONÂMBULA, LITERATURA E CINEMA [Voltar para Sumário]
Diogo dos Santos Souza (UFAL)
Victor Mata Verçosa(UFAL)**
1. Introdução
Terra sonâmbula, romance do escritor moçambicano Mia Couto, escrito em 1992, traz
um retrato do modo como a leitura e o ato de contar histórias pode se transformar em um
recurso de sobrevivência da memória no ambiente da guerra do mundo africano. Nesse
contexto, pode-se também afirmar que as personagens principais da história, Muidinga e
Kindzu, figuram em um espaço narrativo que é poetizado entre a fronteira do lido, do vivido e
do imaginado. Assim, a proposta deste trabalho é fazer uma leitura da representação do
espaço no romance citado em diálogo com a sua adaptação cinematográfica homônima,
dirigida pela cineasta moçambicana Teresa Prata em 2007.
Logo, na interlocução entre o discurso literário e o discurso fílmico, é possível
compreender como o espaço é um elemento narrativo que se redimensiona nesse
procedimento de releituras. Uma topoanálise de Terra Sonâmbula (romance e filme) requer a
leitura dos espaços narrativos como categorias agentes na trama, dado o estado de estagnação
da guerra enfrentada pelas personagens e a inviabilidade da fuga do precário espaço
geográfico. Instabilizadas graças ao trânsito pela memória e o imaginário, as referências aos
espaços físicos adquirem elas mesmas plasticidade e movimento, emergindo do fundo à
superfície narrativa sob formas efêmeras e estranhas que envolvem, acolhem e desencontram
os habitantes do país paralisado pela guerra. É a viagem deste espaço sonâmbulo - movendo-
se durante os devaneios do sonho, das noites escuras, da fome e da fantasia.
Estudante de Doutorado em Estudos Literários no Programa de Pós-graduação em Letras e Linguística da
Faculdade de Letras (FALE) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). ** Graduado em Letras Português pela Faculdade de Letras (FALE) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
e professor da rede estadual de educação básica de Alagoas.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 640
As cenas narrativas (do romance e do filme) que serão lidas, por uma questão de
necessidade de recorte do material analisado, são provenientes do foco narrativo que
acompanha a jornada das personagens Muidinga e Tuahir. Dessa forma, a leitura da
representação do espaço será feita sob um enfoque específico, não se atendo a multiplicidades
de tramas que surgem ao longo das narrativas.
2. O espaço na leitura literária de Terra Sonâmbula
O estudo de Osman Lins acerca do espaço no romance propõe uma distinção entre as
categorias de espaço e ambientação, de maneira que o espaço narrativo corresponde a uma
referência locativa no plano da história enquanto ambiente é a composição textual marcada
por recursos expressivos empregados pelo autor que caracterizam ou tematizam tais lugares
da ação ficcional. (LINS, 1974, p.77).
Os ambientes narrativos em Terra Sonâmbula materializam-se através dos recursos da
prosa em que os componentes físicos do espaço ganham forma por meio de metáforas,
alegorias e sinestesias pelas quais os lugares da ação são apresentados e descritos. Com efeito,
o Moçambique através do qual viajam Muidinga, Tuahir e Kindzu não está inscrito imóvel em
uma dada cartografia, mas é a grande força agente na borda instável entre vida, morte, inércia
e transformação provocada pela guerra que perturba as relações, significados, vidas e mesmo
os limites do real para os viventes da terra.
A violência que dissolve a ordem do país é a mesma que faz ressurgir do imaginário as
forças primitivas da natureza que modificam o tema do espaço e lançam intempéries sob as
quais os viajantes buscam sobreviver. Lançado ao terreno do inacreditável pelo conflito
armado, o espaço cenário torna-se agente e dinamizador da narrativa: “A estrada que agora se
abre a nossos olhos não se entrecruza com outra nenhuma. Está mais deitada que os séculos,
suportando sozinha toda a distância.” (COUTO, 2007, p.9).
Tingida de morte mas também de desejo de vida, toda a terra de Moçambique aparece
a Tuahir, Muidinga e Kindzu como símbolo desta duplicidade: fertilizada pelas lendas e
devoradora de homens. A terra que se move durante o sono, espreguiçando-se nas planícies
barrentas, pântanos e depressões, jamais levantando-se em montanhas, boceja engolindo os
viventes para dentro do pesadelo – quando Kindzu é puxado aos subterrâneos pelos espíritos
da praia – ou dos sonhos da terra, quando Muidinga e Tuahir caem na armadilha do velho
Siqueleto em seu vilarejo abandonado.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 641
Tanto a narrativa literária quanto a fílmica representam o súbito desse encontro breve
e estranho de Muidinga e Tuahir – cada vez mais envolvidos e envoltos pelo imaginário dos
cadernos de Kindzu – com o velho de natureza misteriosa e fala enigmática cuja boca
desdentada é tal qual o buraco na terra em que caíram aqueles dois personagens. Siqueleto é
um porta-voz da terra devastada pela morte e miséria, é um intérprete das intenções da
natureza que deve ser “semeada de homens” para que voltem a nascer pessoas para povoar o
país.
O velho Siqueleto infunde misticismo e revela o desejo da paisagem, igualmente
mortífera e fecunda. Lins (Id, p. 84) categoriza como oblíqua ou dissimulada a ambientação
cuja materialidade se revela no texto por meio dos gestos ou atos dos próprios personagens,
sendo o caso neste ponto da narrativa, em que atribuem-se aspectos mágicos e vontade ao
ambiente inanimado, aliás, como acontece durante todo o enredo. Todo o espaço da narrativa
em Terra Sonâmbula adquire movimento próprio e caracterização complexa própria de um
personagem.
A terra sonâmbula reage ao poder da palavra, do sonho e do desejo dos sobreviventes.
Muidinga fertiliza a terra escrevendo o nome de Siqueleto no chão e na árvore do centro do
vilarejo, cumprindo assim o desejo do velho de reinscrever a humanidade e restaurar a vida
àquela natureza moribunda, convertendo-se em semente e fertilizando, ele mesmo, a terra. A
morte de Siqueleto completa um ciclo que impregna a natureza de renovada energia vital e
que marca da topoanálise do romance e de sua adaptação fílmica.
De maneira semelhante, o encontro de Tuahir e Muidinga com Nhamataca, o fazedor
de rios, é também rodeado das forças telúricas que trazem o espaço do plano de fundo ao
plano de ação da narrativa. Todavia, é importante que se destaque que a obra cinematográfica
reelabora livremente o nascimento do rio em relação ao modo como o mesmo evento se dá na
obra literária. Nhamataca não está presente no filme e Muidinga, em um momento de
epifania, é o personagem que escava o rio buscando uma saída da estrada morta onde se
encontra o machimbombo.
Tanto os espaços da terra quanto os da água são plenos dos potenciais simultâneos de
criar e destruir a vida na terra sonâmbula e prenunciam um entrecruzamento das rotas de
Muidinga e Tuahir, que viajam pela terra, e Kindzu, que percorre rotas aquáticas e terras à
beira d’água, como a vila de Matimati. As águas da chuva, dos rios, do pântano e do oceano
são um sinal do insólito que acompanha a viagem de Kindzu e passam a envolver Muidinga e
Tuahir.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 642
Nhamataca planeja um rio chamado Mãe-água, que fertilizará a terra sedenta e
terminará a guerra. A tempestade e o brotamento das águas que fazem nascer o rio engolfando
seu criador revestem a morte deste personagem – ele mesmo nascido a bordo de um barco –
de um sentido de retorno ao seio materno, de modo análogo à volta de Siqueleto às veias da
terra natal. Na obra para cinema, a Mãe-água brota do desejo desesperado de Muidinga que
escava a terra em busca de uma fuga daquela estrada vazia. O rio converte o machimbombo
em uma embarcação em rota para o mar e para o destino final dos viajantes que partem da
terra devastada.
A estrada morta e o rio, a despeito de seus perigos, apresentam-se como caminhos de
travessia aos sobreviventes. Porém, o cruzamento labiríntico destes elementos naturais no
mesmo espaço na forma de pântano próximo ao oceano que já se escuta perto é um obstáculo
mortal para Muidinga e Tuahir. A pestilência das águas rasas e estagnadas sobre terra
movediça contamina Tuahir, que deseja o alívio final no mar assim como Taímo, o pai de
Kindzu, que foi sepultado nas águas do oceano.
Para a terra sonâmbula, as águas e o mar atuam como vetores para o outro mundo e
Tuahir revela que, desde a chegada ao machimbombo, já ouvia as ondas como em um
presságio do fim de sua vida. A adaptação de Teresa Prata desenha este instante nos minutos
iniciais do filme, durante a chegada de Muidinga e Tuahir ao ônibus na estrada.
O velho e o menino escapam do pântano e chegam ao oceano onde encontram o barco
de Kindzu no qual seguem viagem. Tuahir expira sobre o mar durante a leitura do último
caderno de Kindzu em um tempo em que as narrativas paralelas estão já tão profundamente
ligadas que as vidas de Muidinga e Kindzu e Tuahir e Taímo (pai de Kindzu) parecem unidas
pela vontade do país que se move sob os pés dos sobreviventes, tal qual a crença dos
habitantes de Matimati.
A terra sonâmbula é o espaço narrativo que manifesta-se no diálogo com os
personagens do romance. Sua configuração enquanto elemento da narrativa não é a do espaço
apassivado que serve de palco para trama, mas de ambiente plástico entre a materialidade e o
sonho, quase personificado pelas essências da natureza e repleto das vozes dos espíritos da
terra.
2. O espaço na leitura fílmica de Terra Sonâmbula
Para o início da reflexão sobre a leitura do espaço que a cineasta Teresa Prata realizou
em sua adaptação fílmica homônima do romance de Mia Couto, Terra Sonâmbula, é válido
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 643
passarmos pela primeira epígrafe do texto literário, que pode ser interpretada como um
recurso que posiciona a compreensão do espaço que irá surgir no decorrer dos caminhos de
Muidinga e Tuahir. Nomeada como “Crença dos habitantes de Matimati, a epígrafe de
abertura do livro fornece um viés de leitura para o adjetivo que qualifica a singularidade dessa
“terra”:
Se dizia daquela terra que era sonâmbula. Porque enquanto os homens dormiam, a
terra se movia espaços e tempos afora. Quando despertavam, os habitantes olhavam
o novo rosto da passagem e sabiam que, naquela noite, eles tinham sido visitados
pela fantasia do sonho (COUTO, p.5, 2007)
A ideia do sonambulismo da terra evoca o movimento entre espaços distintos, fazendo
com que o tempo presente se entremeie com o passado, ou ainda com um tempo que está por
vir. Nessa perspectiva, podemos pensar a função da trilha sonora no prólogo do filme, em que
o som da água jorrando antecede o início dos créditos iniciais. Antes mesmo de Muidinga
(Nick Lauro Teresa) e Tuahir (Aladino Jasse) entrarem em cena, o ruído da água já é
apresentado, indicando uma possível confluência futura entre o ambiente da terra que se move
com as águas do imaginário poético. Assim, “a fantasia do sonho” se evidencia na narrativa
fílmica através do som “tipo over”, “quando não provém de uma origem existente na cena
mostrada, não fazendo parte do espaço/tempo da diegese” (MAZZOLENI, 2002, p. 193).
Nesse caso, a inclusão desse recurso cria, talvez, um efeito de sentido de contraposição entre
o que se vê e o que se escuta: o andar pela terra seca na atmosfera do ambiente aquático,
como se quisesse demonstrar que as personagens desde então estavam em contato com outro
espaço narrativo.
Ainda no prólogo, podemos destacar outro caminho de leitura de Teresa Prata que
mostra o seu olhar sobre o texto fonte: o plongée1 de Muidinga “dirigindo” o seu “barco com
rodas”. Aqui, nesse plano que dá foco no detalhe do objeto, é possível afirmar que a escolha
por filmar a cena através do recurso técnico mencionado seja uma forma de expor a
resistência de Muidinga a esse espaço que foi contaminado pela guerra. O fato de a
personagem brincar com o seu “barco com rodas”, que possui um volante, pode significar
1 O termo francês, que equivale a “mergulho” na língua portuguesa, consiste em filmar a pessoa ou o objeto de
cima para baixo, captando toda a sua dimensão. Também conhecido como câmera alta, esse recurso
normalmente transmite a ideia de inferioridade do que está sendo filmado, tendo em vista que o espectador é
posicionado acima do objeto que está em cena. http://agambiarra.com/plongee-e-contra-plongee-a-arte-de-medir-
com-a-camera/. Acessado em 8 de maio de 2014, às 8h48min.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 644
uma tentativa de assumir o controle das estradas que são percorridas, sem ser, desse modo,
semente levada por elas sem a opção de escolha.
Mais adiante, o encontro com machimbombo (ônibus) se transforma num elemento
que potencializa a dor e o sofrimento das personagens, visto que a única morada que se
consegue é a carcaça carbonizada de um transporte urbano. Essa habitação é uma espécie de
cova, pois é receptáculo de cadáveres de vítimas da guerra. Ou seja, a “estrada que se abre”
para Muidinga e Tuahir é marcada pela morte e pela violência, transfigurando o
machimbombo em um local de parada, de estaticidade, de confirmação de que a guerra ainda
persegue aquele lugar. Nesse sentido, provavelmente, possamos tratar essa compreensão
como uma forma de subverter a função do meio de transporte coletivo urbano: ao invés de ser
um espaço de trânsito e de mobilidade, é um componente narrativo que se apresenta fincado
numa raiz, com rodas atrofiadas na presença da morte. Por outro lado, é o machimbombo que
se torna uma janela para o mundo da ficção, posto que é nele que Muidinga encontra os
cadernos de Kindzu e começa a exercer o seu papel de contador de histórias para Tuahir,
iniciando o ciclo de outras subtramas.
Na passagem da voz narrativa de Muidinga (no romance) para a narração em primeira
pessoa do primeiro caderno de Kindzu, “O tempo em que o mundo tinha a nossa idade”, não é
possível afirmar com clareza de onde esse narrador fala, apesar de podermos supor que ele
está na vila em que mora. Já no filme, optou-se situar o espectador no espaço do rio, que até
então apenas se apresentou através da trilha sonora, no formato de ruídos. Novamente, o
roteiro e a direção do filme encontram um meio de expressar a multiplicidade do foco
narrativo do romance, mais evidente a partir dessa cena.
Após deixar o machimbombo, a dupla de personagens, na busca de uma rota que não
estivesse tomada pelas consequências da guerra, percorre um longo caminho que os leva de
volta para o ponto de partida, fato que pontua a circularidade da estrada que não os liberta do
destino que é traçado para os habitantes daquela terra. Durante o decorrer da película, a
paisagem, praticamente, mantém-se a mesma, como se já indicasse que Muidinga e Tuahir
estão pisando nos círculos de um espaço que desemboca somente na morte. O tom nublado da
imagem quase sempre se mantém o mesmo, alterando-se, especialmente, nos momentos de
leitura dos cadernos de Kindzu.
No contexto da indignação em voltar para o mesmo lugar de onde partiu, Muidinga,
inconformado, vê o seu brinquedo, “o barco com rodas”, mover-se sozinho. Incitado pela
força do imaginário e da esperança, a personagem começa a cavar o solo na tentativa de
“fazer um rio” (1h13min29seg), figurando uma atmosfera da narrativa fantástica, bastante
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 645
presente no romance e pouco representada no filme. Nesse momento, o roteiro do filme falha,
a nosso ver, ao imprimir uma passagem abrupta entre a percepção do caminhar em círculo e
uma instantaneidade de Muidinga ao ter a ideia de fazer um buraco na terra, fato que se
desenvolve de modo mais pausado no texto fonte. Através desse pequeno ato de cavar, uma
fonte de água nasce, movimentando a estrada. Aos poucos, o machimbombo submerge na
água, transformando-se numa espécie de barco, como se o espaço terrestre estivesse sendo
fundido pelo espaço aquático.
A desembocadura, o trânsito do rio para o mar, não é apresentado ao leitor espectador,
já que Muidinga e Tuahir caem no sono e acordam no local de águas mais largas
(1h24min40seg). Essa mudança de cenário pode significar no filme a passagem imperceptível
da realidade da guerra para o mundo ficcional de leitura dos cadernos de Kindzu,
principalmente se levarmos em consideração que essa ação os leva para a mesma rota das
histórias que estavam sendo lidas. As águas que retiram as personagens da sobrevivência da
guerra também figuram como cenário da morte de Tuahir, subsidiando a reflexão de que a
água pode ser uma
“metamorfose essencial entre o fogo e a terra. O ser consagrado à água é um ser em
vertigem. Morre a cada minuto e, incessantemente, algo de sua substância aniquila-
se. A morte cotidiana não é a morte exuberante do fogo que atinge o céu com as suas
flechas; a morte cotidiana é a da água. [...] (BACHELARD, 1942, apud,
SANT’ANNA, 1992, p. 152).
Na cena em que Tuahir fala sobre a possibilidade de sua morte (1h26min53seg), o
espaço em evidência do machimbombo comporta essa metamorfose citada por Bachelard,
pois a submersão do autocarro não apaga as marcas do fogo, tal como não elimina as suas
características de transporte terrestre, posto que ele mantém as suas rodas no movimento de
navegar. Também podemos compreender o espaço de Tuahir e Muidinga como um entre-
lugar, que no filme é representado pela presença constante do ruído da água, sinalizando essa
“vertigem”, esse girar ao redor de uma mesma estrada. Essa morte paulatina, pausada, pode
significar a morte de Tuahir para o mundo de vivência da guerra, reconstruindo-se no espaço
ficcional anunciado pela água. Por fim, é válido frisar que a morte sob as águas é mais
silenciosa, comedida, se comparada a outras situações semelhantes da narrativa fílmica, como
se o mar estivesse finalmente quieto, já que agora obteve o descanso para a alma de Tuahir.
Em seu estudo sobre as relações entre espaço e literatura, Santos (2001) pensa esse
elemento de constituição da narrativa como um lugar de composição das vivências e das
relações entre as personagens. Ao utilizar como exemplo o romance brasileiro Menino de
Nas fronteiras da linguagem ǀ 646
engenho, de José Lins do Rêgo, o autor situa o papel do espaço da paisagem do agreste
nordestino no procedimento de leitura literária: “em tais cenários, cria-se um microcosmo em
função do qual vão se definindo as condições históricas e sociais das personagens, onde é
possível detectar a correlação funcional entre os ambientes, as coisas e os comportamentos”
(SANTOS, 2001, p. 79). Essa reflexão pode ser transposta para o contexto da adaptação
fílmica de Terra Sonâmbula, ao percebermos que pequenos detalhes de construção do espaço
desempenham uma função social e psicológica quando fazemos uma interlocução com as
ações das personagens.
Umas das escolhas de filmagem mais interessantes da diretora Teresa Prata, já
comentada aqui no início desta seção, foi a inclusão dos ruídos de água desde o prólogo da
película. Na releitura feita pela tela, a cineasta compreendeu a integração entre o espaço
vivido e o espaço do imaginário poético dos cadernos de Kindzu, expressando o seu olhar
através da utilização do som. Assim, o leitor espectador parece ser convidado a entrar num
fluxo de consciência2 do espaço dessa terra sonâmbula, nas veredas das estradas que se
abrem, que se fecham e que se mantém entreabertas.
3. Considerações finais
O estudo do texto de Mia Couto e da adaptação de Teresa Prata não podem prescindir
de uma observação cuidadosa dos espaços e ambientes enquanto elementos da narrativa, bem
como o “comportamento” atípico, jamais figurativo, dos lugares de ação ficcional nas obras
analisadas. O protagonismo do(s) espaço(s) na narrativa é um aspecto central da composição
de Terra Sonâmbula, seja em sua realização literária, seja em sua realização fílmica. De fato,
é o título que sintetiza a matéria a qual as linguagens – da literatura e do cinema, neste caso –
irão (re) compor.
Obra marcada de espaços de travessia e imobilidade, rotas que paralisam e obstáculos
que se abrem ao fantástico (a armadilha, o rio, o mar), a terra sonâmbula viaja ela mesma
através dos espíritos dos homens, desejosa do encontro com as águas de sonho. Na fusão
dessas duas fertilidades são tecidos os novos rumos e a renovação da vida através da morte.
As interseções estabelecidas entre o romance e a sua adaptação fílmica mostram que o
(s) espaço (s) da narrativa pode ser ressignificado através das especificidades da linguagem
2 Para David Lodge (2009, p. 51), a expressão fluxo de consciência “foi um termo cunhado por William James, o
psicólogo irmão do Henry, o romancista, para definir o fluxo contínuo de pensamentos e sensações na mente
humana”. No caso de nossa leitura, esse conceito pode corresponder ao trânsito entre o tempo e espaço que
vivem a experiência da guerra mesclados às sensações do tempo e espaço da leitura literária.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 647
cinematográfica, como a introdução do som na montagem do filme e a representação da
paisagem que corrói a realidade, mas também se transforma em palco que alimenta o
imaginário da leitura. Dessa forma, no (des) encontro das estradas que se abrem e daquelas
que se fecham para nós, leitores e espectadores, a nossa reflexão chega as linhas finais nesse
terreno movediço em que literatura e cinema dialogam, transmutando as relações que são
promovidas com a ida do texto literário à tela.
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Nas fronteiras da linguagem ǀ 648
FORMAÇÕES DISCURSIVAS E IDENTIDADE DO SUJEITO
PROFESSOR EM “QUE RAIO DE PROFESSORA SOU EU?”,
DE FANNY ABRAMOVICH [Voltar para Sumário]
Djamara Virgínia Ferreira da Rocha Silva (UFCG)
Aloísio de Medeiros Dantas (UFCG)
Considerações Iniciais
As construções discursivas também são regidas, dentre outros fatores, por aspectos
sociais que refletem o momento histórico cultural e ideológico instaurado na/pela
humanidade. Deste modo, investigar os discursos que circulam em nossa sociedade constitui-
se uma atividade de fundamental relevância científica, uma vez que, através destes, torna-se
possível mapear conceitos que atravessam as diversas práticas sociais.
Dentre estes discursos, podemos destacar aqueles que se relacionam ao ensino como
instrumentos de estudo da educação, meio de definição de suas nuances conceituais e como
estas foram incorporadas pelos sujeitos, que materializam seus discursos através de textos,
que, por conseguinte, podem configurar-se como ferramenta de veiculação do corpus a ser
investigado. Um exemplo deste processo, seria o livro Que raio de professora sou eu?, de
Fanny Abramovich.
Motivados por estas circunstâncias, apresentamos este artigo que tem como tema as
implicações discursivas sobre a educação em Fanny Abramovich, o que nos fez pensar
enquanto questão norteadora: “quais as implicações que o discurso sobre o ensino presente na
obra Que raio de professora sou eu? traz para a identidade do professor?”.
O termo “ensino” relaciona-se a diversos elementos, mas delimitamos o nosso foco de
pesquisa no professor enquanto sujeito. Justificamos o nosso interesse por entender que,
apesar dos demais elementos, como os manuais didáticos, a Escola, os exames vestibulares, os
documentos políticos orientadores do sistema educacional brasileiro, entre outros, o professor
firma-se socialmente como uma peça-chave do ensino, sendo importante lançar um olhar
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 649
científico sobre como se estabelece a imagem deste sujeito que ensina, preocupação que
delimita nossa pesquisa, tendo como foco o sujeito-professor.
Para desenvolver esta investigação, considerando que elegemos o discurso como ponto
de análise, utilizaremos a Análise do Discurso para embasamento teórico e metodológico de
nossa pesquisa, abordando os conceitos de sujeito, formação discursiva e identidade.
Enfatizamos que quando uma narrativa é analisada pela ótica da Análise do Discurso,
ela não é vista da mesma maneira das teorias literárias, para quem importam conceitos como
narrador, personagem e foco narrativo, mas será concebida, conforme apontamos acima,
como uma atividade discursiva feita por um sujeito (escritor) que gera um efeito discursivo,
por meio do qual outros sujeitos adotam discursos (personagens) paralelos ou subordinados ao
discurso ou temática da narrativa. Fanny Abramovich, além de escrever sobre professores, é
graduada em Pedagogia pela USP e atuou como professora, elementos que ratificam a
relevância de estudos do discurso vinculados aos seus livros.
Fundamentação Teórica
Os procedimentos da análise do discurso exigem “um ir-e-vir constante entre teoria,
consulta ao corpus e análise” (ORLANDI, 1999, p. 67), deste modo, consideramos que as
categorias teóricas do discurso necessárias para o desenvolvimento de nossa pesquisa são:
sujeito, formação discursiva e identidade. Os pressupostos teóricos aqui apresentados
dividem-se, portanto, em três seções: “Sujeito das formações imaginárias e Forma-sujeito
histórica”, “Os efeitos de sentido e a Formação discursiva” e “Identidade: processos
identificatórios”.
Sujeito das formações imaginárias e Forma-sujeito histórica
Conforme Pêcheux (1990), “é impossível analisar um discurso como um texto” (p.79),
isto é, para perceber os sentidos que subjazem os discursos, não é necessário apenas observar
a superfície linguística, mas considerar as suas condições de produção (id., ibid., p.79).
Ao explicitar essas condições, Pêcheux identifica como seus elementos estruturais, os
participantes do discurso, isto é, os sujeitos, por ‘A’ e ‘B’, esclarecendo que o sujeito não é a
pessoa física, o “organismo individual” (id., ibid., p.82), mas que designam lugares
determinados na estrutura de uma formação social.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 650
Vemos assim, que o sujeito para Pêcheux é concebido com base na relação com o
outro, haja vista que considerá-lo enquanto social implica em não adotá-lo em sua condição
individual e/ou puramente linguística (INDURSKY, 2000, p. 70). Interiormente ao processo
entre os sujeitos ‘A’ e ‘B’, são produzidas imagens que designam o lugar que os sujeitos
atribuem a si mesmos e mutuamente, o que se denomina por formações imaginárias (Pêcheux,
1990, p. 82).
Estas formações são organizadas por Pêcheux (1990), em expressões que as designam,
e as significações das mesmas. Como elas estão presentes em todo processo discursivo (id.,
ibid., p. 83), temos que as expressões de ‘A’ significam a imagem no lugar de ‘A’ para o
sujeito colocado em ‘A’ ou a imagem do lugar de ‘B’ para o sujeito colocado em ‘A’, e as
expressões de ‘B’ implicam estes mesmos significados imagéticos em relação a ‘A’.
A partir disso, entendemos que um discurso sobre o ensino, consequentemente, é
perpassado por formações imaginárias, e se este tem o sujeito professor como um de seus
aspectos, temos imagens do sujeito-professor que emanam deste discurso. Portanto, para
desenvolver um estudo discursivo sobre a educação em Fanny Abramovich, tal pressuposto
teórico tornou-se fundamental, uma vez que embasa nossas investigações a respeito da
imagem do professor e as concepções de ensino subjacentes, isto é, as propriedades do
discurso sobre a educação no material analisado.
Ressaltamos ainda que a esta noção de formação imaginária, Pêcheux soma outro
conceito para o estudo do sujeito: o de ideologia. Com isso, consideramos que as imagens
atribuídas pelo sujeito são também atravessadas por traços ideológicos,
Pêcheux (1988) diz que a ideologia nos faz pensar o homem como ser ideológico (id.,
ibid., p.152), de modo que “o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia” (id., ibid, p.
154), ou seja, a ideologia é uma estrutura elementar do discurso, pois a partir dela se
estabelece o sujeito. Sujeito e ideologia, apesar do domínio desta última, são realidades
simultâneas (DANTAS, 2007, p.65), pois como vimos, não existe sujeito sem ideologia.
Disso resulta que o sujeito para Pêcheux, além de social, é histórico, e conseguintemente,
ideológico (INDURSKY,2000, p 71), elementos que Pêcheux (1988) utilizou para designar a
forma-sujeito histórica.
Destacamos também que a ideologia apenas se materializa, isto é, se realiza
linguisticamente, através do sujeito e suas ações de linguagem, o que nos dá respaldo para ter
as obras literárias como uma possibilidade de ferramenta para analisar o discurso, pois elas
são uma ação de linguagem.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 651
Os efeitos de sentido e a Formação discursiva
Dada a sua preeminência, é a ideologia que subsidia as evidências que indicam que
uma palavra ou enunciado digam o que de fato queriam dizer, e ainda escondem o que
Pêcheux (1988) irá chamar de caráter material do sentido, a dependência ideológica dos
sentidos. O sentido está além da superfície linguística, uma vez que se constitui
discursivamente, definindo-se pelas condições ideológicas que circundam o quadro sócio-
histórico em que está inserido.
Desconstrói-se assim a idéia de literalidade do sentido, pois ele não existe em si
mesmo. Partindo disso, depreende-se que a sequência linguística dirigida do sujeito ‘A’ ao
sujeito ‘B’, através das quais são construídas as imagens, não podem ser analisadas segundo
uma transmissão de informação, trata-se de um “efeito de sentido” (Pêcheux, 1990, p. 82),
entendido como o trabalho discursivo atravessado nas palavras e expressões (DANTAS, 2007,
p.48). E se há discurso nas palavras e expressões, há ideologia, destarte, a construção do
sentido baseia-se em formações ideológicas e, por conseguinte, nas formações discursivas.
(PÊCHEUX, 1988, p. 160).
A formação discursiva pode ser entendida como aquilo que define o que pode e deve
ser dito, baseado em uma formação ideológica. Se o dizer é definido por uma formação
discursiva, quando o sujeito enuncia, se insere em uma formação discursiva, ocupando o lugar
de sujeito de discurso.
É pela formação discursiva que torna-se possível compreender os diversos sentidos na
engrenagem discursiva. Portanto, escolhemos esse conceito da Análise do Discurso como
outras das ferramentas teóricas da pesquisa por considerá-lo necessário para apreender os
sentidos que atravessam o nosso corpus, para definir o seu arcabouço discursivo face à nossa
questão de pesquisa, no tocante às formações discursivas em que se inscrevem a forma-sujeito
professor manifesta através da obra analisada.
Identidade: processos identificatórios
A inscrição do sujeito do discurso em uma formação discursiva, coloca-o em um
processo de identificação resultante da interpelação pela ideologia, que é dissimulado pela
identidade do sujeito.
Tal processo identificatório é esboçado por Pêcheux (1988), para quem “a interpelação
do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação (do sujeito) com a
Nas fronteiras da linguagem ǀ 652
formação discursiva que o domina (isto é, na qual ele é constituído como sujeito.” (id., ibid.,
p. 163), dando–se esta identificação através da forma-sujeito, pela qual a formação discursiva
tem seu dizer organizado.
Esta relação entre o sujeito do discurso e a forma-sujeito é denominada por Pêcheux
(1988) de tomadas de posição, que se distinguem em três modalidades. A primeira delas é a
identificação, que ocorre quando o sujeito do discurso se identifica plenamente com a forma-
sujeito da formação discursiva que o afeta, ou seja, há uma superposição entre o sujeito do
discurso e o sujeito universal, o que caracteriza o discurso do ‘bom sujeito’, que reflete
naturalmente o Sujeito.
O sujeito do discurso pode também se contrapor à forma-sujeito, tomando uma
posição de distanciamento do saber da formação discursiva a qual se submete, relação que
define a segunda modalidade dos processos identificatórios que é a contraidentificação.
Temos também que o sujeito pode não apenas se posicionar contra um saber da formação
discursiva, ele pode distanciar-se dela em si mesma, isto é, deslocar-se para outra formação e
sua forma-sujeito correspondente, ocorrendo assim o processo de desidentifcação, a terceira
modalidade de tomada de posição do sujeito do discurso.
Utilizamos o conceito dos processos identificatórios em nossa pesquisa, porque nos
propomos a olhar para o discurso sobre o ensino, investigando suas implicações para a
identidade/formação do professor, deste modo, estes pressupostos teóricos são
imprescindíveis para a busca das respostas de nossa questão de pesquisa, cujas etapas de
realização serão apresentadas a seguir.
Metodologia
Optamos por escolher os princípios teóricos e procedimentos metodológicos da
chamada “análise de discurso francesa”, filiada ao pensamento de Michel Pêcheux, como
fundamentos desta pesquisa.
Feita esta consideração, o primeiro passo da nossa pesquisa foi a realização da leitura
da obra “Que raio de professora sou eu?”, de Fanny Abramovich, orientados pelo princípio
metodológico da Análise do Discurso de que a “análise é um processo que começa pelo
próprio estabelecimento do corpus e que se organiza face à natureza do material e à pergunta
(ponto de vista) que o organiza.” (ORLANDI, 1999, p. 64).
Deste modo, tivemos a obra de Fanny Abramovich como objeto empírico, mas do
ponto de vista da Análise do Discurso, esse objeto empírico recebeu um tratamento teórico,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 653
pelo qual o transformamos em objeto teórico, isto é, em discurso, condicionados por nossas
perguntas de pesquisa e objetivos, dando-nos subsídios para escolher trechos da obra que
serviram para a nossa investigação de maneira mais específica.
Construído o objeto teórico, transformamos o texto em recortes textuais, dos quais
selecionamos sequências discursivas que melhor apontassem a nossa questão de pesquisa,
relacionadas ao ensino e à identidade de professores. Neste sentido, a natureza da pesquisa é
documental-bibliográfica, na medida em que se utilizou de livros e textos para definir os
recortes textuais e sequências discursivas que compuseram o corpus, investigando nesses,
conforme dissemos, os seguintes conceitos da AD: o sujeito, a formação discursiva e a
identidade.
Escolhemos dez recortes textuais, que serão apresentados ao longo da análise esboçada
no tópico a seguir.
Formação discursiva e identidade do sujeito-professor em “Que raio de professora sou
eu?”, de Fanny Abramovich
Para analisar a constitutividade do discurso sobre o professor, destacando as categorias
da formação discursiva e da identidade, conforme dissemos, partimos do recorte textual
abaixo:
[RT1] Outro seriado que sinto saudades é o Fama. Passava na Manchete. [...].
Acontecia numa escola de arte, em Nova York. [...]. Quando não aguento mais meus
alunos e as escolas onde trabalho, sonho com aquela... Com as aulas que daria lá.
Com alunos criativos e cheios de energia. Com colegas interessantes e preocupados.
Será que eu daria conta? Provavelmente também não. Mas sonho é sonho.
(ABRAMOVICH, 1990, p. 14)
Ao comparar a escola do seriado com as instituições da sua realidade, o sujeito-
professor desse discurso constrói uma imagem da escola como espaço das impossibilidades de
prazer, isto é, ser um professor plenamente satisfeito com o exercício de sua profissão, dá-se
como uma impossibilidade, mas alimenta-se o desejo irrealizável de mudar a escola,
inovando-a conforme ela é apresentada na mídia. Sinalizando uma formação discursiva
inovadora e também midiática, visto que coloca a escola apresentada na mídia como padrão, o
que é ressaltado também pelo fato de ser uma escola de Nova York, perpetuando assim a
ideologia de superioridade norte-americana.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 654
Entretanto, observamos que ao passo que o sujeito almeja a inovação da escola,
demonstra um conformismo com a degradante situação real do seu trabalho, discurso
vinculado à impressão de que uma escola melhor implica em maior quantidade de trabalho, ao
qual o professor não daria conta, instaurando assim uma imagem de professor conformado
com os problemas que circundam sua realidade de trabalho, deixando a escola em que
desejaria trabalhar apenas na instância do sonho. O sujeito do discurso reconhece a
necessidade de mudar enquanto professor, o que é abordado em outro recorte textual:
[RT2] Nestes treze anos que dou aulas não sei o que piorou mais. Se os alunos, a
direção da escola, os salários os professores... Há coisas que se faz tão
automaticamente que, quando se presta atenção nelas, o susto é enorme. Um
espanto! (ABRAMOVICH, 1990, p. 15)
Apresenta-se neste excerto um discurso marcado pela falta (BERTOLDO, 2007), pois
assume que há falta de diversos elementos, que acarretam o fracasso da educação brasileira
hoje. Estes elementos estão tão imbricados que não é possível distinguir o nível de
desqualificação entre eles quando comparados ao que se via no passado.
Ressaltamos ainda que neste excerto soma-se à identidade do professor, o ser alguém
cujo senso autocrítico foi deteriorado pelo automatismo que se impregnou no exercício da
profissão ao longo dos anos, de maneira que quando o professor ainda reflete sobre sua
prática de ensino, assusta-se com os problemas que se apresentam, sendo estes apontados na
obra também pelos alunos:
[RT3] A garota dizia: “Vocês, professores, são muito engraçados. Cobram
responsabilidade da gente, mas não têm nenhuma. Qualé? Exigem que estude, mas
sem caderno, como é que posso?” Concordei. Apoiei. Se animou. Continuou. “E não
é só isso, não. Vocês querem que a gente pesquise, estude, crie coisas novas. Mas
vocês não estudam, estão sempre repetindo as mesmas atividades, os mesmos
exercícios, até as mesmas piadas. [...]. Pigarreei. Tossi. Olhei o relógio. Me mandei.
Caminhando e pensando. Se os alunos estão tão desinteressados, tão rebeldes, tão
decepcionados com a escola, com o ensino, têm razão. Toda razão.
(ABRAMOVICH, 1990, p. 21)
Ao utilizar um aluno para fazer tal acusação dos professores, e vendo o que esta
atitude gerou na professora; uma mescla de surpresa, vergonha e novas reflexões, delineamos
outro aspecto da identidade docente que é confrontado pelo discurso da obra em análise, que é
a assimilação do olhar para o aluno com inferioridade, como indivíduo acrítico, indiferente às
deficiências do professor. Com isso, vemos que outra marca discursiva presente na obra é se
contrapor a superioridade do sujeito professor em sua relação com o aluno, evocando uma
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 655
formação discursiva de igualdade, uma visão democrática de escola, na qual todos devem ser
ouvidos. Deste modo, a identidade do sujeito-professor pauta-se em ser acessível aos alunos,
inclusive no que concerne às críticas feitas por estes.
Neste excerto, observa-se mais uma vez um discurso negativo da imagem do
professor, apontando que outro traço identificatório seu é a estagnação intelectual, isto é, o
descaso com a necessidade de se atualizar com as novas demandas de conhecimento,
reverberando a imagem do sujeito-professor como indiferente a sua qualificação profissional,
ou seja, ele não muda em função de seus alunos e de suas responsabilidades enquanto
educador, mas podem ocorrer mudanças por outras motivações:
[RT4] Há alguns anos, na sala dos professores, sempre se discutia alguma coisa da
educação. [...] Depois, veio um tempo em que só se discutia o salário baixo, a
exploração, [...]. Hoje encostei na janela. [...] Os professores-homens só falavam de
futebol e contavam piadas... As mulheres discutiam os preços do supermercado, da
feira, [...]. Só isso. Claro que eu também vivo isso. Mas ficar numas de portaria de
prédio ou entrada de quitanda, sem chegar perto do assunto alunos-aulas-cursos, é
um pouco esquisito. Bem esquisito. (ABRAMOVICH, 1990, p. 16)
Vemos que o professor passou por um processo de metamorfose ao longo dos anos,
que rumaram em um processo de descaso com a educação, e que teve como motivação central
a questão salarial, o que nos permite identificar a formação discursiva econômica, dada a
atribuição da quantia do salário à valorização da profissão docente, categorizada como algo
sem valor, o que acarreta a apatia deste profissional, que não discute mais nada vinculado ao
seu trabalho.
O professor tornou-se, portanto, um profissional desgastado e cansado, que desistiu de
se impor e de lutar por sua profissão e por seus direitos, outro aspecto da identidade desse
sujeito:
[RT5] Hoje, quando me espanto com quem dá e como se dá aulas, me pergunto se
vale a pena continuar neste meu ofício. Que virou tão cansativo, tão desgastante, tão
levado de qualquer jeito... Não seria melhor mudar de profissão? Trabalhar ao lado
de gente séria num trabalho sério?? E sendo levada mais a sério?? (ABRAMOVICH,
1990, p. 21-22)
Para o sujeito, desistir de ser professor, escolhendo outra profissão, outra identidade, parece
ser a melhor opção para solucionar os males deste trabalho, entre os quais o salário é
considerado como um dos mais graves. Essa questão salarial define outras marcas da imagem
do professor e, por conseguinte, da sua identidade:
Nas fronteiras da linguagem ǀ 656
[RT6] Disse que eu era muito simpática, o apartamento jeitoso, mas que para
professora ela não trabalhava. Não recebiam o bastante pra pagá-la.
(ABRAMOVICH, 1990, p. 26)
[RT7] “Como é que pode? O que esta menina pretende da vida? Ser professora?
Morrer na miséria, depois de se matar por anos?”(ABRAMOVICH, 1990, p. 89)
A imagem do professor é a do profissional cujo salário é extremamente baixo. O
sujeito-professor é identificado como alguém de pouco valor, pois está condicionado a uma
vida com poucos recursos. Este discurso evoca algumas concepções mercadológicas pautadas
no ideário capitalista, uma vez que a qualificação do cargo de professor pelo valor do seu
salário, implica em tratar o sujeito como uma mercadoria (BAUMAN, 2008). De forma que
os baixos salários do professor o enquadram como uma mercadoria sem qualidade.
Observamos este aspecto ainda em outro excerto:
[RT8] Antes, perigoso era ser atriz. Hoje, professora... Que mundo !! (ABRAMOVICH, 1990, p. 89)
O discurso mercadológico da educação fortalece-se ainda mais com a competição, que,
sendo uma marca capitalista, característica da contemporaneidade, ecoa também em outras
sequências discursivas:
[RT9] Não deu dez minutos pra perceber que a idéia da diretora era outra. Bem
outra. [...] Não quis ouvir sobre a alegria dos alunos nos treinos, a participação
frenética da torcida, a introdução de novos esportes. Insistia que perderam a
competição. E isso a chateava [...]. Competição como valor educacional. Fim da
picada. Muita confusão na linha e nos trilhos desse trem. (ABRAMOVICH, 1990, p.
22-23)
[RT10] Que o nível de uma escola é dado pelo índice de aprovação dos seus alunos
no vestibular. (ABRAMOVICH, 1990, p. 23)
Nestes excertos, veicula-se uma crítica ao discurso de ensino como estratégia de
mercado, de competição. Não importam o processo de ensino e aprendizagem, a experiência
vivenciada pelo alunos e professores, o foco está nos resultados, nos números, no mérito,
advindo por conquistar os primeiros lugares entre as escolas. Essa concepção de educação
repercute na identidade do sujeito-professor com a formação discursiva da economia,
findando o princípio da competição em sua prática educativa, o que se traduz em exigências
do cumprimento de currículos, especialmente nas séries do ensino médio.
Destacamos ainda que nesse excerto, denuncia-se a manipulação do professor pelos
seus superiores no ambiente escolar, de modo que o sujeito-professor vê-se limitado pelos
diretores e supervisores da escola e as concepções de educação subjacentes às suas ordens.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 657
Considerações Finais
O estudo apresentado neste artigo, teve como pergunta central: “quais as implicações
que o discurso sobre o ensino presente na obra Que raio de professora sou eu?, traz para a
identidade do professor?”. No tocante a esta pergunta, elencamos como respostas, a percepção
de que o discurso sobre o ensino afeito às disputas mercadológicas é criticado na obra, de
modo que, o professor apresenta-se como instrumento de efetivação deste discurso, uma vez
que sua prática de ensino deve obedecer às exigências do mercado.
Entretanto, apesar de ver-se envolto nessa esfera ideológica, e reconhecer a
necessidade de transformar o quadro da educação brasileira, o sujeito-professor demonstra ser
incapaz de se sobrepor a esses princípios que permeiam o cenário escolar, devido à
supremacia das autoridades da escola e de suas próprias deficiências, uma vez que o discurso
docente é marcado pela falta, inclusive de motivação própria para confrontar os percalços que
acompanham a compleição de ser um professor na contemporaneidade.
Referências
ABRAMOVICH, Fanny. Que raio de professora sou eu?. São Paulo: Scipione, 1990.
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio
de Janeiro: Zahar, 2008. Tradução de Carlos Alberto Medeiros.
BERTOLDO, E. S. Políticas de formação de professores de língua e seu impacto no sujeito-
professor. In: INDURSKY, F.; FERREIRA, M. C. Análise do discurso no Brasil: mapeando
conceitos, confrontando limites. São Carlos: Clara Luz, 2007, p. 123-134.
DANTAS, A. M. Sobressaltos do Discurso: algumas aproximações da análise do discurso.
Campina Grande: EDUFCG, 2007.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
Tradução de Luís Felipe Baeta Neves.
INDURSKY, F. A fragmentação do sujeito em análise do discurso. In: INDURSKY, F.;
CAMPOS, M.C. (Orgs.). Discurso, memória, identidade. Porto Alegre: Sagra-Luzzatto, 2000,
p. 70-81.
ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas:
Editora da Unicamp, 1988. Tradução de Eni Pulcinelli Orlandi et al.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 658
______. Análise automática do discurso. In: GADET, Françoise; HAK, Tony. Por uma
análise automática do discurso. Campinas: EdUnicamp, 1990. p. 61-162. Tradução de
Bethania S. Mariani et al.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 659
DE SELFIE A MINICONTO MULTIMODAL: ENSINO DE
GÊNERO DIGITAL EM SALA DE AULA [Voltar para Sumário]
Dorinaldo dos Santos Nascimento (UFS)
Vanusia Maria dos Santos Oliveira (UFS)
1 Introdução
Demandas sociais exigem que o sujeito domine as tecnologias da leitura e da escrita e
as utilize adequadamente nas situações comunicativas das quais faz parte. Isso fica evidente,
por exemplo, no fato de que o domínio dessas habilidades “são competências essenciais para a
maioria das atividades profissionais no mundo contemporâneo” (OLIVEIRA, 2010, p. 11).
Por outro lado, na escola, é preciso rigor na sistematização e no planejamento das atividades
de leitura e escrita. Devemos enquanto professores levar em consideração os elementos
cognitivos relacionados aos conhecimentos linguísticos e enciclopédicos dos alunos no
planejamento e na condução das aulas de leitura (Ibidem, p. 71).
Nessa linha de raciocínio, as práticas de escrita e reescrita ocorrem sob procedimentos
dialógicos e interativos, Suassuna apud Elias (2013) e Soares (2009), cujo papel do professor
é o de mediador da aprendizagem. Quanto à leitura, como se pode perceber, a mediação
ocorre baseada nos aspectos cognitivos e metacognitivos da linguagem (LEFFA, 1996). Para
além disso, nossos alunos estão cada vez mais envoltos em leituras que exigem deles a
compreensão de textos com amálgamas da linguagem verbal e não verbal, por conta disso,
conciliar leitura, escrita e multissemiose, Rojo (2012) e Marcuschi e Xavier (2010), é o que
propomos neste artigo em que apresentamos uma sequência de atividades voltada ao
estudo/produção de texto e hipertexto.
Além dos já citados, embasam nossa produção os estudos de Bakhtin (2003) e Dias et
al (2012) dentre outros. Inicialmente relacionaremos os fundamentos teóricos que integram a
proposta; a seguir, apresentaremos a sequência de atividades elaborada a partir dos
pressupostos apresentados e, por fim, analisaremos um objeto educacional construído nesta
perspectiva.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 660
2 Leitura, escrita, multissemiose e miniconto: pressupostos para a proposição da
atividade
Para Leffa (1996), além das atividades de leitura desenvolverem os aspectos
cognitivos, o professor deve proporcionar também o desenvolvimento da metacognição -
tomada de consciência do processo leitor por parte dos alunos. Enquanto na cognição o aluno
tem consciência do resultado do ato de ler, na metacognição ele tem consciência do processo
do ato de ler. No âmbito metacognitivo, cabe ao docente, por meio de atividades específicas,
exercitar com os alunos-leitores estratégias de reparo para melhorar o desempenho na leitura,
pois “uma das características fundamentais do processo da leitura é a capacidade que o leitor
possui de avaliar a qualidade da própria compreensão” (Ibidem, p. 45).
Além disso, para promovermos atividades em sala de aula que favoreçam práticas de
leitura efetivas, podemos nos valer das contribuições de Leffa (1996) acerca da definição e do
processo de leitura. Para o autor, ler pode ser entendido como extrair o significado do texto,
atribuir o significado ao texto e interagir com o texto. E essas definições colocam em cena o
leitor e o texto numa dinâmica interativa, que viabiliza a leitura como via de mão dupla. Em
tempo o leitor extrai as informações do texto, ele contribui com suas experiências, acionando
um processo de interação e, assim, compreendendo o texto de maneira mais efetiva. Segundo
ele:
A complexidade do processo da leitura não permite que se fixe em apenas um dos
polos, com exclusão do outro. Na verdade, não basta nem mesmo somar
contribuições do leitor e do texto. É preciso considerar também um terceiro
elemento: o que acontece quando leitor e texto se encontram. Para compreender o
ato da leitura temos que considerar então: a) o papel do leitor, b) o papel do texto e
c) o processo de interação entre o leitor e o texto (Ibidem, p. 17).
No que concerne à escrita, Elias (2013, p. 160) afirma que “demanda da parte de quem
escreve (e também da parte de quem lê) a utilização de muitas estratégias”, uma vez que
vários conhecimentos são desencadeados para que a interação escritor/leitor ocorra com
eficácia. Por conta disso, optamos por mediar execução das atividades conforme as
orientações de Soares (2009) e Suassuna (2011). A primeira apresenta-nos uma proposta de
avaliação baseada em feedback. Este é o retorno dado ao aluno/autor acerca de sua produção.
Segundo a autora, a motivação e o auxílio para que o estudante consiga avançar em seu
processo de escrita ocorrerá “se o feedback realmente fornecer informações que capacitem o
aprendiz a identificar os aspectos do seu desempenho que são aceitáveis e passíveis de
melhoria por algum meio específico” (SOARES, 2009, p. 51). A autora salienta que o
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 661
feedback pode vir do professor e/ou do colega. A segunda destaca que o professor “mais do
que identificador de problemas textuais, é um propiciador e facilitador da reflexão, na medida
em que permite que o redator (aluno) seja exposto à interpretação do outro” (SUASSUNA,
2011, p. 120), ou seja, o diálogo e a interação com o outro no processo de construção, bem
como no de refacção textual, oportuniza êxito ao material que se pretende produzir.
Para além disso, almejamos aliar a cultura digital à prática educativa escolar ao
trabalhar gêneros textuais/discursivos Bakhtin (2003), uma vez que, parte do fascínio pela
tecnologia digital é decorrente do “fato de reunir em um só meio várias formas de expressão,
tais como texto, som e imagem, o que lhe dá maleabilidade para a incorporação simultânea de
múltiplas semioses” (MARCUSCHI, 2010, p. 16), ou seja, o trabalho com múltiplas semioses
é um elemento motivador da aquisição de conhecimento.
Dessa forma, considerando o processo ensino-aprendizagem de leitura e de escrita
textuais voltado para a concepção sociointeracionista da língua e a internet como um rico
material de apoio para o suporte multissemiótico, propomos, neste artigo, uma sequência
didática concernente à leitura/escrita do gênero miniconto multimodal a partir de fotografia
em formato selfie. Considerando a série alvo desta proposição (9º ano) e presumindo o
interesse aderente ao cotidiano dos alunos, desenvolvemos situações didáticas atreladas ao
selfie no intuito de mobilizar a atenção do aluno-leitor para a discussão e entendimento
críticos de temática ligada à expansão do espaço virtual na “vida real”.
Acreditamos que os alunos necessitem refletir sobre o fato de que, por trás de uma
prática aparentemente sem tanta relevância, subjazem questões importantes vinculadas ao
narcisismo e à autoafirmação atrelada ao autoengano camuflado. Exemplificável nos sorrisos
fingidos, belezas cirúrgicas, poses forçadas que ganham espaço crescente em exposições
reiteradas nas redes sociais, ocultando uma face negativa nas relações humanas constatável
nos contatos vagos, relacionamentos vazios, culto à superficialidade. Em virtude disso,
propomos a exploração do selfie numa perspectiva de aproveitamento educativo salutar ao
processo de ensino aprendizagem, também vinculada ao letramento digital1 (SOARES, 2002).
De acordo com Spaldind (1998), há uma tradição latino-americana profícua em torno
da produção minicontística. Em mapeamento conciso do gênero, o guatemalense, Augusto de
Monterroso, com a publicação nos anos sessenta do século passado do miniconto “O
dinossauro”, é tido como precursor do gênero. Nas letras nacionais brasileiras, Dalton
1Amalgamado às novas tecnologias da informação e comunicação, o letramento digital surge configurado como
decorrência das mudanças cognitivas e discursivas que a prática da leitura e escrita na tela demanda (SOARES,
2002, 151).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 662
Trevisan representa a ficção curta minimalista. O livro “Ah, é?” (1994) é considerado a
referência germinal do miniconto contemporâneo no Brasil. Também merece menção em
nosso país, o livro organizado por Marcelino Freire, “Os cem menores contos brasileiros do
século” (2004), cujas narrativas atingem no máximo cinquenta letras.
Do ponto de vista estrutural, é um desafio para o ficcionista fabular o miniconto, uma
vez que ele necessita produzir uma narrativa com todas as suas propriedades inerentes
restando-lhe uma reduzidíssima quantidade de letras. Sendo exemplar os minicontos
unifrásicos, narrativas marcadas pela extrema concisão. Por outro lado, isso só é viável “desde
que haja um mínimo de determinação no texto para que o leitor consiga preencher as zonas
indeterminadas; estarão preservados a intensidade, a tensão e o efeito, operando tais textos
como “bombas nucleares” que explodem após o ato da leitura” (SPALDING, 2008, p. 5). Em
virtude disso, o miniconto mobiliza um leitor protagonista em interação muito ativa com o
texto no sentido de ser (co)autor da narrativa e preencher os espaços “vazios” da história.
Esse tipo de narrativa insere a literatura em diálogo com a estética minimalista,
emergida no contexto nos anos sessenta do século passado. O minimalismo opera quando há
uma redução no número de elementos no sentido de produzir efeito artístico máximo
(SPALDING, 2008). Por isso, que um dos escritores do gênero afirma que “O miniconto,
como qualquer ficção curta, tem de pegar o leitor de cara, com recursos expressivos capazes
de interessá-los a seguir o desenvolvimento da história até chegar a uma reviravolta que
provocará a surpresa e que geralmente é o objetivo do escritor” (HERGESEL apud DIAS et
al, 2012, p. 80).
Na contemporaneidade, tendo em vista os meios tecnológicos digitais, o gênero
miniconto tem circulado em redes sociais e blogs, por exemplo. Assim, essas narrativas são
ressignificadas considerando a fluidez e rapidez com que se propagam nos meios digitais.
Acresce que tais ficções curtas, símbolos de uma “estética da brevidade” “interpelam
movimentos de leitura diferenciados, mais fluidos, dinâmicos e que requerem letramentos
diferenciados de seus interlocutores” (DIAS et al, 2012, p. 81). Nesse contexto, surge o
miniconto multimodal, narrativa ficcional curta, marcada pela extrema concisão, em que no
mesmo plano composicional multissemiótico coexistem de modo imbricado a palavra escrita,
a imagem, o movimento, as cores e os sons.
3 De semiose a semioses: proposição da sequência de atividades
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 663
Concretizamos o objeto de aprendizagem miniconto multimodal para/por alunos do 9º
ano do ensino fundamental como demanda de disciplina de mestrado2, bem como pelo fato de
que o livro didático de língua portuguesa que adotamos na série mencionada (“Português:
Linguagens”, Cereja e Magalhães, 2012), explora os gêneros conto, e miniconto
incipientemente, em três unidades de trabalho. Decorrente disso, objetivamos, também,
sugerir, de modo a complementar o livro didático no tangente aos gêneros supracitados, uma
proposição na perspectiva multissemiótica, considerando que o LD não contempla tal
abordagem. Propomos a efetivação do miniconto multimodal em duas etapas: na primeira,
como um trabalho de instrumentalização do aluno acerca do conceito e propriedades
essenciais do gênero miniconto em contraste ao conto; e posteriormente, em segundo
momento, com encaminhamentos didáticos em direção à construção do miniconto multimodal
pelos alunos.
Diante disso, na primeira etapa, partimos da leitura e interpretação do conto “A
cabeça”, de Luiz Vilela, seguidas pelo miniconto “Uma vela para Dario”, de Dalton Trevisan.
No âmbito da exploração das relações dialógicas evidenciamos que há entre as duas narrativas
selecionadas a intersecção do eixo temático. Têm-se histórias que abordam a brutalidade e
suas nuances no espaço público e urbano.
Em perspectiva colaborativa com os alunos fizemos a análise do conto “A cabeça” via
discussão dos pontos de vista, posicionamentos explícitos e subjacentes a partir das falas das
personagens, considerando o predomínio do discurso direto na narrativa, quase que
inteiramente dialogada. Desvelamos a voz do narrador como um sujeito do discurso narrativo
que recorta uma situação dramática em tom prosaico e nos apresenta o evento da trama como
“natural”, quase um recorte jornalístico “impessoal”.
Posteriormente, observamos no miniconto “Uma vela para Dario” a hegemonia do
discurso indireto. Ao ser priorizado esse tipo de discurso citado, concluímos que as falas dos
personagens em discurso indireto aproximam a voz do narrador à das personagens. A única
fala em discurso direto é a que anuncia a morte do anônimo transeunte, levando-nos a
conceber a proeminência dessa fala no conjunto da história. Diante da falta de solidariedade,
indiferença, egoísmo, oportunismo dos personagens (roubo de pertences de Dario enquanto
este agoniza), o discurso direto funciona como um “grito”, que ressoa no anonimato
esmagador urbano, anunciando a morte do personagem.
2Proposição lançada na disciplina Gêneros Discursivos/Textuais e Práticas Sociais, ministrada pela prof.ª Dr.ª
Izabel Cristina Michelan de Azevedo, no PROFLETRAS, Mestrado Profissional em Letras (UFS), no ano letivo
2014.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 664
Concomitante ao trabalho de leitura e interpretação das ficções curtas, explicitamos
para os alunos explicações convergentes e divergentes a respeito das características estruturais
dos gêneros conto e miniconto. De forma que o aluno compreendesse que ambos são
narrativas curtas, cujo modo de narrar é marcado pela brevidade (intencionalidade de ser
breve), geralmente, apresenta poucos personagens, poucas ações, tempo e espaço reduzidos.
Passíveis de leitura de única assentada, tendem na contemporaneidade a romperem a
convencional construção com introdução, desenvolvimento, clímax e desenlace. Acrescendo
que em contraste ao conto, o miniconto, conforme já explicitamos na seção anterior, eleva ao
limite máximo a capacidade de narrar uma história em espaço tão exíguo.
Na segunda etapa, encaminhamos a produção de minicontos multimodais a partir da
semiose fotografia, mais especificamente, fotos em formato selfie. Por duas razões: a primeira
referente à mobilização da atenção e envolvimento do público-alvo, usuários de tais
“autorretratos” contemporâneos disseminados em redes sociais. A outra motivação sustenta-se
em uma teoria do conto em que é possível fazermos analogia entre a “técnica” de estruturação
do conto e a “técnica” fotográfica (CORTÁZAR, 1974, p. 71). Considerando que fotógrafos e
contistas, ambos, necessariamente, exercem a arte do recorte de situações, precisam limitar o
olhar, pousá-lo numa parte do todo, selecionar situações significativas que apesar de serem
um recorte, guardam profundas significações, capazes de causar ressonâncias à sensibilidade
do espectador-leitor. Fotógrafo e contista compartilham a estética do recorte que traz em si a
transcendência (MOISÉS, 2006, p. 52).
Anterior ao trabalho com as fotografias (selfies), realizamos uma situação didática
contextualizadora, explorando em slides telas de artistas famosos com seus autorretratos, bem
como as narrativas historiográficas acerca dos artistas e de suas respectivas telas a fim de que
os alunos percebessem que no âmbito da arte há amostras do desejo humano de autoimagem,
considerando que essas autoimagens guardam e reverberam histórias. É razoável conceber
que não há similaridade enquanto valor artístico que possa aproximar telas e selfies, há a
intencionalidade especular, ver-se, ter uma imagem de si.
Posteriormente, os alunos foram orientados a “produzirem” uma foto em formato
selfie. Estabelecemos que a foto necessariamente teria que agregar elementos para produção
de uma narrativa ficcional; o miniconto multimodal seria produzido a partir da foto. Logo, a
selfie evidenciaria um contexto para fabulação de enredo com o(s) fotografado(s) em um lugar
(cenário), ou seja, um fundo locacional que evocasse uma cena, algum núcleo dramático
constituinte para uma história. Evidenciamos para os alunos que nossa proposição de trabalho
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 665
seria efetivada em caráter de intercâmbio interescolar3 de modo que eles produziriam o
miniconto multimodal a partir de selfies de discentes de outra escola. Implementamos essa
proposta valendo-nos da rede social WhatsApp, com a criação de grupo virtual para que
possibilitasse a interação e aproximação entre os envolvidos, inclusive os professores, os
quais davam orientações pelo aplicativo a respeito da feitura das selfies no tangente às
adequações/inadequações para o propósito lançado.
Após essa fase, fizemos conjuntamente a seleção de quatro fotografias, as quais foram
distribuídas a grupos de cada turma nas duas escolas mencionadas. A proposta de miniconto
multimodal foi planejada como uma atividade pedagógica coletiva, haja visto a necessidade
de compartilhamento e negociação de ideias em trabalho com múltiplas semioses, bem como
envolver ferramenta digital para sua realização (conforme veremos adiante).
Para que os alunos tivessem algum parâmetro, posto tratar-se de uma produção nova
para eles, exibimos um miniconto multimodal em vídeo4. Faz-se necessário, nesse momento,
evidenciar para os alunos aspectos como: sons de músicas que se hibridizam às imagens; ao
enquadramento das imagens; as cores que compõem os quadrantes; à escolha das cenas; à
ordem das cenas (DIAS et al, apud ROJO & MOURA , 2012, p. 88). Depois de assistirem ao
miniconto multimodal em vídeo e termos feito análise de suas condições de produção e
configuração, os alunos partiram para produção da narrativa a partir da selfie. Ressaltamos a
relevância de que o texto narrativo precisa de reescritas, revisões até que se chegue a uma
versão final do texto escrito. Juntamente com a fotografia, os alunos foram orientados a
selecionarem outras imagens, ilustrações, músicas, áudios que auxiliassem na composição do
miniconto multimodal:
[...] dimensão em que tanto a linguagem verbal como a visual desempenham papel
na produção de sentidos, de efeitos de sentido, não podendo ser separadas, sob pena
de amputarmos uma parte do plano de expressão e, consequentemente, a
compreensão das formas de produção de sentido desse enunciado, uma vez que ele
se dá a ver/ler, simultaneamente (BRAIT, 2013, p. 44).
Na sequência, orientamos que as imagens escolhidas deveriam ser transferidas para o
computador e editadas com o programa Movie Maker até chegar-se à versão final do
miniconto multimodal. Para instrumentalizar a utilização mais adequada da ferramenta Movie
Maker, apresentamos um tutorial5 afim de que a ferramenta fosse potencialmente melhor
3Envolvendo uma turma de 9º ano de duas escolas de estados diferentes, o Centro Educacional Edval Calasans
(CEEC), no município baiano de Banzaê e o Colégio Estadual Ministro Petrônio Portela, em Aracaju (SE).
Considerando que os proponentes residem em cada um dos estados. 4Disponível em: www.youtube.com/watch?v=hJ4RJ2UwU0s. Acesso em 24/10/2014. 5Seguimos a orientação de tutorial de DIAS et al (2012, p. 90-91).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 666
explorada pelos alunos. Salientamos, como atividade final desse percurso metodológico, a
realização de uma “Mostra de minicontos multimodais” a fim de que os alunos compreendam
concreta e efetivamente que a realização do gênero implica produção, circulação e recepção.
4 “Reencontro”: a concretização da proposta
Analisaremos, neste tópico, o miniconto multimodal “Reencontro”.6 Este texto foi
produzido, conforme orientações da proposição aqui apresentada, por alunos do Colégio
Estadual Ministro Petrônio Portela num intercâmbio entre turmas da Instituição. Observemos
como a linguagem que “é uma das faculdades cognitivas flexíveis e plásticas adaptáveis às
mudanças comportamentais e a responsável pela disseminação das constantes transformações
sociais, políticas, culturais” (MARCUSCHI & XAVIER, 2010, p. 11) foi aqui empregada
para a composição do texto multissemiótico.
O miniconto multimodal teve como base para o início da produção a semiose
imagem estática selfie. Atentemos para fato de que a imagem a seguir oportuniza a escrita de
um texto com temática em torno de viagem por conta do local, aeroporto, bem como das
malas presentes na composição do autorretrato, tirado pelo Smartphone, enviado por uma
aluna do 9º B.
Figura 1: selfies produzidas por aluna.
Duas alunas do 9º A compuseram o seguinte miniconto, a partir da selfie analisada.
Reencontro
Ao olhar da parte superior à área de embarque, vejo que consegui realizar
meu sonho que é viajar de avião.
- John!? Não acredito, você por aqui?
Olhares e lembranças vieram à tona.
Por que agora?
6Texto multimodal digital produzido sob orientação dos autores deste artigo e da prof.ª Dr.ª Izabel Cristina
Michelan de Azevedo e discutido no colóquio “Novos modos de inscrição do sujeito em selfie e miniconto
multimodal: o trabalho com a heterogeneidade discursiva em sala de aula” do I Ciclo de Estudos Bakhtinianos
(UFS) do qual os autores deste texto participaram ao lado do prof. Dr. Eduardo Lopes Piris em 18/11/2014.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 667
Temos uma curta narrativa literária com seus elementos estruturais: foco narrativo em
primeira pessoa; personagens, a narradora-personagem e John; espaço, aeroporto; tempo,
breve, o de um rápido reencontro; clímax, momento das lembranças e o desfecho com uma
indagação que pode ser tanto da narradora-personagem quanto do personagem John, ou,
mesmo, de um narrador-observador, e que indicia uma possível história de amor interrompida.
No terceiro momento da produção, um aluno do 2º B somou-se às alunas do 9º A para
que o uso “de áudio, vídeo, tratamento da imagem, edição e diagramação” (ROJO apud ROJO
& MOURA, 2012, p. 21) viabilizasse a retextualização do miniconto para o miniconto
multimodal. Além de encontros presenciais, o aplicativo WhatsApp oportunizou a mediação
entre os integrantes da equipe e os orientadores da atividade.
A ferramenta Movie Maker possibilitou o entrelaçamento de semioses fotografia,
imagens, palavras, sons e movimentos em construções cirurgicamente recortadas, por conta
do minimalismo pertinente ao gênero em produção. Após pesquisas na internet, no texto, os
selfies (fotografias) e o miniconto aparecem amalgamados a imagens que remetem ao
contexto de viagem, aeroporto; lugares cuja visita seria concretização de sonho na idealização
que os autores colocam sob a perspectiva da narradora-personagem; reencontro; recordações e
reflexão. Tais imagens se alternam (movimento) tendo como pano de fundo, inicialmente, um
silêncio que logo é interrompido por alguns sons: o de muitas pessoas em um determinado
ambiente; o de um toque que deixa a entrever um suspense; a seguir, um que remete a algo
romântico e por fim, o de um avião decolando.
E eis que, de selfie a miniconto multimodal, ocorreu o ensino de gênero digital em
sala de aula, cabendo, neste momento, ao leitor-espectador do miniconto multimodal
preencher os vazios da trama sem desprender-se do núcleo dramático da história.
Considerações finais
Leitura, escrita, Smartphone, WhatsApp, Movie Maker, a produção do miniconto
multimodal “Reencontro” comprova que prática educativa com gênero digital não exclui
atividades de leitura e escrita, muito pelo contrário, motiva o aluno, pois, ao conciliar práticas
escolares, multimodalidade e hipertexto, o aluno atribui significado à sua produção e percebe
que a escola não é um espaço que está aquém do que ele vivencia cotidianamente, nem o que
ele vivencia está distante das práticas escolares.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 668
Além disso, o estudante aprende analisar criticamente textos em vídeo, observando
que a base para a construção do sentido está na hibidização de seus elementos (LEMKE apud
ROJO, 2014).
Tencionamos, dessa forma, colaborar não apenas com a pesquisa de outros
educadores, mas também com estudantes de áreas afins, que almejem desenvolver atividades
relacionando hipertexto, gêneros digitais e ensino.
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verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
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ano: língua portuguesa. 7. ed reform. São Paulo: Saraiva, 2012.
CORTAZÁR, Julio. Aspectos do conto. Do conto breve e seus arredores. Valise de Cronópio.
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219-223.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 670
LACUNAS E DISTORÇÕES DO LIVRO DIDÁTICO “OFICINA
DE ESCRITORES” [Voltar para Sumário]
Edilaine P. de Sousa (UPE)
Magna Kelly Sales (UPE)
1. Introdução
A comunicação escrita se constitui a partir do contato com os bipares. É por meio de
aspectos dialógicos que o indivíduo vai se apropriando da escrita. Neste sentido, a partir dos
materiais didáticos, os alunos dialogam com diversos autores por meio de textos e este contato
é importante para a comunicação discente, principalmente por entender que as instituições de
ensino ainda constituem uma das principais agências de letramento dos sujeitos.
Contudo, todos os anos são lançados manuais que, devido as ilustrações,
aparentemente parecem conferir um tratamento singular para a escrita. Ledo engano! Tais
coleções apresentam algumas lacunas e distorções de base metodológica e teórica, havendo
muitas vezes um distanciamento entre as orientações dedicadas aos professores e as atividades
propostas nas sequências didáticas.
É óbvio que raramente haverá livros didáticos isentos de lacunas e estas evidentemente
podem ser preenchidas pelos docentes em suas práticas de escrita com os alunos. Mas, não se
pode conceber que materiais com distorções teóricas graves sejam disseminados pelo país,
pois as concepções que norteiam tais práticas não podem ser destoantes das atividades
propostas sob pena de que tais matérias não contribuam para a escrita eficaz dos discentes.
Sabe-se que os estudos contemporâneos versam sobre as propostas de produção
textual emergirem de situações sociais comunicativas. Bazerman (2011) trata do estudo de
gênero afirmando que este não pode divorciar-se da ação social da qual emerge. Assim, as
propostas inseridas nos materiais precisam fazer sentido para os alunos de modo que se
sintam motivados a comunicarem-se das mais diversas formas. Acerca disso, Bazerman
(2011) ainda destaca que “a escrita fornece os meios pelos quais alcançamos outros através do
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 671
tempo e do espaço, para compartilhar nossos pensamentos, para interagir e para cooperar”
(BAZERMAN, 2011, p.11).
Portanto, o presente artigo se propôs a analisar um exemplar do livro didático do 9°
ano visando apontar as fragilidades concernente a aspectos teóricos e práticos. Para isso, fez-
se discussões relacionadas à organização sequencial, temáticas e gêneros selecionados
seguidos de possibilidades do trabalho com narrativas ancoradas em estudos de Bazerman
(2011), Maingueneau (2012) que tratam de concepções de gênero, bem como de sequências
didáticas pautados em Schneuwly e Dolz (2004).
2. Análise descritiva do livro
O Livro Didático (LD) “Oficina de Escritores”, para o 9º ano, de Hermínio Sargentim,
foi lançado em 2012 publicado pela editora IBEP. Apresenta uma proposta relacionada à
produção de texto cujos eixos básicos da Língua Portuguesa são: (leitura, oralidade, análise
linguística e produção de textos). A figura 1 contendo a capa indica o público heterogêneo
infanto-juvenil a quem é direcionado o volume, mas há distorções concernente ao conteúdo,
modo de abordagem em muitas das atividades propostas.
Figura 1: Capa do livro
Há uma diversidade de gêneros, todavia as propostas de produção nem sempre se
vinculam ao gênero apresentado como motivador da atividade. A metodologia pauta-se por
projetos e sequências didáticas, em tese, direcionada para que os alunos, com o auxílio dos
professores possam desenvolver atividades de produção escrita de modo reflexivo. Contudo,
as sequências didáticas apresentam-se de modo frágil, pois repetidas vezes o gênero proposto
não é discutido, nem tão pouco internalizado pelos alunos. A tabela seguinte apresenta os
gêneros encontrados neste manual didático.
TABELA 1. Seleção de gêneros discursivos
Nas fronteiras da linguagem ǀ 672
As principais distorções referem-se as concepções de gêneros que norteiam a
organização destas atividades que aparecem indefinidas. Há menção ao sociointeracionismo
de Vygotsky, mas isso não se constitui na explanação das atividades propostas, além disso, a
perspectiva de Vygotsky volta-se para o universo infantil e a coleção de Sargentim engloba
também o público juvenil. Vygotsky (1998) enfatiza que o indivíduo antes de adentrar no
universo escolar, já está em contato com diferentes textos que circulam nas esferas sociais e
nem sempre são consideradas outras instâncias como cruciais para o desenvolvimento da
escrita.
Diferente do ensino da linguagem falada, no qual a criança pode se desenvolver por
si mesma, o ensino da linguagem escrita depende de um treinamento artificial. Ao
invés de se fundamentar nas necessidades naturalmente desenvolvidas das crianças,
e na sua própria atividade, a escrita lhes é imposta de fora. (VYGOTSKY, 1998, p.
139-140).
Vygotsky (1998) enfoca que a linguagem escrita envolve aspectos cognitivos e
socioculturais. Ele trata do nível de pensamento Real e do Potencial, este último decorrente da
interação com o meio. Cada um destes níveis compõem um só processo. Assim, a distância
entre eles, o autor intitula “Zona de Desenvolvimento Proximal” (VYGOTSKY, 1998, p.111).
É visível que na coleção em análise há uma tentativa de inserir atividades decorrentes da
esfera jornalística e de outras instâncias, levando em conta o sociointeracionismo, mas as
distorções em parte se constituem, porque não há indicação para que se tenham acesso a
leitura direto da fonte. Ao invés disso, o trabalho ocorre por recortes e as análises não
ultrapassam a superfície textual.
Haveria maior interação se as temáticas tratadas tivessem uma relação com a faixa
etária dos adolescentes. Para Maingueneau (2008) “a temática é aquilo de que um discurso
trata em qualquer nível que seja, os termos assumem valores distintos e os enunciadores são
levados a utilizar aqueles que marcam sua posição no campo discursivo” (MANGUENEAU,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 673
2008, p. 81). A partir da identificação da temática, é possível se discutir acerca da relevância
do texto, havendo maior interação com os interlocutores. É necessário que seja instigante para
motivar os discentes produzirem os textos.
Em suma, algumas das propostas não corroboram com o que preceituou Vygotsky
(2001), pois para ele “a escrita constitui um processo psicológico avançado, o seu
desenvolvimento depende essencialmente das situações sociais especificas nas quais o sujeito
participa” (VYGOTSKY, 2001, p.39). Assim, a previsão dos PCNs para o aluno “produzir
textos coerentes, coesos e eficazes” (BRASIL, 1998, p.51) não se institui plenamente com
atividades desta natureza, meramente estruturalistas.
2.2 análise do projeto a – no mundo da ficção
Segundo Sargentim, o Projeto A visa orientar e motivar os alunos a produzirem
diversos textos narrativos. Após isso, realizar concurso literário e publicar um livro. Ele
propõe que ao apresentar o projeto, seja discutida a realização das atividades, definindo cada
uma das etapas que serão vivenciadas: data de apresentação e realização do projeto,
publicações, concursos, etc.
Já na primeira atividade, há uma sequência organizada de modo frágil, contendo uma
citação generalizada: “o homem sempre foi um apaixonado por qualquer tipo de história”.
(SARGENTIM, 2012, p.11”), seguido da proposta de produção de notícia a partir apenas do
título de um conto que não havia se discutido, demonstrando superficialidade quanto às
concepções de gêneros. Os alunos não se familiarizaram com a temática e outras
peculiaridades do conto e foi solicitado que escrevessem uma notícia. Acerca do estudo dos
gêneros, Bazerman (2011) enfoca que:
Podemos chegar a uma compreensão mais profunda de gêneros se os
compreendermos como fenômenos de reconhecimento psicossocial que são parte de
processos de atividades socialmente organizadas. Os gêneros tipificam muitas coisas
além da forma textual. São parte do modo como os seres humanos dão forma às
atividades sociais (BAZERMAN, 2011, P. 32).
Sargentim estimula que o desenvolvimento das sequências seja feito em conjunto, com
a turma e em parceria com os docentes. Estas atividades inicialmente dialogam com
Bazerman (2011), pois para ele o conjunto de gêneros se institui de maneira plausível através
de pessoas que trabalham juntas de uma forma organizada. Contudo, o modo de organização
das sequências, são pouco estimulantes para elaboração do livro da turma que seria mais que
uma atividade escolar, constituiria atividade socialmente organizada contendo formatos de
Nas fronteiras da linguagem ǀ 674
textos diferentes produzidos pelos estudantes. O projeto A é “apresentado” aos alunos a partir
da indicação do objetivo, estratégias e encerramento, conforme mostra a imagem abaixo.
Figura 2: Classificação dos elementos da narrativa
Fica evidente que a sequência classificatória tem uma relação direta com estudos de
estruturalistas e não sociointeracionistas conforme explicitado nas orientações para os
professores, a exemplo de estruturalistas como Terra (2014) que trata das narrativas
enfocando que ao esquematizar uma sequência, normalmente se consideram cinco aspectos:
situação inicial, complicação, ações, resolução ou clímax e situação final. O referido autor
indica que em sala de aula deve-se refletir sobre cada elemento de modo separado conforme
citação abaixo, o que demonstra uma perspectiva tradicional e não pautada no
sociointeracionismo. Além disso, sugere que a leitura de textos curtos deve ser para reflexão
de aspectos estruturais como ocorre na coleção de Sargentim.
Bazerman (2011) diz que ao nos engajamos em práticas de leitura e escrita, passamos
por um processo de transformação, pois os “gêneros moldam as intenções, a percepção e o
quadro interpretativo, e, por meio da comunicação por gênero, o indivíduo compreende
melhor o mundo, tornando-se apto a participar com êxito e fazer contribuições individuais
dentro dos espaços discursivos relevantes”. (BAZERMAN, 2011, p. 111-115). Contudo,
observou-se que não houve reflexão sobre as peculiaridades dos gêneros narrativos, sendo
sintetizados como história conforme figura 3.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 675
Figura 3: esquema de alguns elementos das narrativas
É importante ressaltar que a depender do gênero narrativo, há outros elementos
importantes que nem foram mencionados. Maingueneau (2008) tratando da análise de
narrativas enfatiza que tanto “a superfície textual como aspectos interdiscursivos são
relevantes para análise dos gêneros e atividades de escrita” (MAINGUENEAU, 2008, p.18).
Assim, nas SD observadas os elementos que serviram de preparação para a escrita não foram
adequados dentro da perspectiva sociointeracionista.
2.2.1. Descrição das sequências do projeto a
Define-se sequência didática como um “conjunto de atividades escolares organizadas,
de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito”. (SCHNEUWLY, B;
DOLZ, J, 2004, p. 82). Uma sequência visa contribuir para que os discentes se apropriem
melhor de determinado gênero textual, permitindo que se comuniquem de forma adequada.
No material em análise, há seis sequências e em cada uma existe um elemento da narrativa em
evidência, de acordo sintetizado na tabela 2.
TABELA 2: Resumo do conteúdo das Sequências Didáticas
Elemento da narrativa
PERSPECTIVA
TRADICIONALISTA
(ESTRUTURALISMO)
1.1. Fato: matéria-prima da história;
1.2. Foco narrativo: tipos de narradores;
1.3. Ampliação dos fatos: acréscimo dos fatos da narrativa;
1.4. Conflito da personagem: cenas típicas contendo problemas;
1.5. Enredo: sequência cronológica e psicológica;
1.6. Suspense: momento de tensão na narrativa;
2.2.2. Fato: matéria-prima da história
Nas fronteiras da linguagem ǀ 676
O primeiro texto motivador inserido foi o conto gaúcho “Festa Acabada” (Simões
Lopes Neto). Este, não foi discutido pelo autor, mas apenas o título considerado base para que
os alunos escrevessem uma notícia acerca desta temática. O gênero “notícia” não havia sido
nem sido inserido na explanação do assunto. Assim, os alunos poderiam não ter familiaridade
com a escrita do gênero, dificultando o desenvolvimento da sequência. Tal inadequação se dá
ainda no campo teórico, pois tal proposta não se vincula ao sociointeracionismo nem a ideia
de SD que requer a preparação do aluno a partir da etapa de conhecimento do gênero.
Na etapa de organização do texto, é apresentado um relato com os fatos do conto,
provavelmente, com o intuito de comparar os modos de contar histórias. Sugere-se que se
construa uma notícia com base nos fatos do conto “Festa Acabada” antes de haver
apropriação do gênero proposto. Em seguida, solicita-se que o aluno crie uma história baseada
em qualquer outra notícia selecionada ao acaso em fontes quaisquer. Assim, mais uma
distorção já que atividades pautadas em sequências didáticas não podem se dar de modo
aleatório, devem ser bem conduzidas.
Em síntese, os direcionamentos indicados contrariam as propostas de SD a partir do
trabalho com gêneros. Nesse sentido, autores como Schneuwly e Dolz (2004) propõem que as
produções textuais sejam feitas a partir de Sequências Didáticas com etapas definidas segundo
citação abaixo:
“Analisar um texto completo ou partes de um texto, comparar textos de um mesmo
gênero, reorganizar partes de um gênero, entre outras atividades, tudo isso é
importante quando se trata de sequência didática. A base da SD deve ser as
dificuldades encontradas pelos alunos na produção inicial, a partir disso, devem-se
escolher atividades que fará com toda a turma e outras apenas com alguns alunos
que tenham mais dificuldades de escrita”. (SCHNEUWLY, B; DOLZ, J, 2004, p.
89;107 - adaptado).
Nesta ótica, a inserção do poema como atividade introdutória poderia ser mais viável
tendo em vista a similaridade com a notícia. Um exemplo seria o texto de Manuel Bandeira,
“Poema Tirado de uma notícia de jornal”, pois este traz uma discussão pertinente acerca dos
efeitos da bebida alcoólica, acidentes ou suicídios em face da bebida, pobreza, miséria, isto é,
temáticas bem comuns veiculadas pela mídia para que os alunos escrevessem uma notícia.
Poema Tirado de uma Notícia de Jornal - Manuel Bandeira
João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão
sem número.
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 677
Figura 4: texto motivador para escrita de narrativas
Neste caso, os discentes poderiam produzir textos com uma tipologia predominante,
mas sem excluir a possibilidade de mesclar com outros tipos textuais, havendo uma definição
de qual gênero o discente produzir, podendo ser uma crônica, fábula, conto ou outra narrativa
literária já que o propósito mencionado pelo autor é fazer um concurso literário e publicar o
livro da turma.
Sendo assim, seria interessante discutir gêneros literários e não simplesmente tratar
todos como “história” sem sistematizar alguns conceitos relevantes sobre gêneros, adequando
ao nível de linguagem e conhecimento da turma evidentemente. Trata-se de possibilidades de
reescrita utilizando gêneros diversos, adequando ao universo juvenil que precisa de incentivo
para não apenas ler e analisar narrativas, mas sobretudo se expressar utilizando formatos
distintos.
2.2.3. Foco narrativo
A “essência” do foco narrativo é representada por quatro fotografias que mostram
pontos distintos de um rio, e uma breve explicação para ilustrar esta perspectiva tradicional
em que Sargentim utiliza imagens para estudar o “Foco Narrativo”, refletindo sobre a posição
que os enunciadores assumem, assim como quais as implicações existem pelo fato do discurso
ser narrado em 1° ou 3° pessoa. Assumindo uma perspectiva discursiva, segundo nos indica
Maingueneau (2012) quando se lê de modo reflexivo, há outros aspectos que devem se
sobrepor aos meramente estruturais. Trata-se de analisar o gênero em sua plenitude,
discutindo estratégias utilizadas pelos enunciadores ao produzirem o discurso.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 678
Figura 5: estudo do foco narrativo separado dos demais elementos da narrativa
O “ensino divorciado” de que trata Bazerman (2011) se materializa nestas sequências
organizadas pois há uma revisão com os mesmos elementos: avaliação do leitor, roteiro de
revisão, espaço para reescrita somente a partir de recortes, desconectado das instâncias sociais
dos quais emergiram os textos, apresentando uma abordagem vaga acerca do estudo dos
gêneros.
Reiterando que não se trata de sugerir produções rígidas para os discentes. Por outro
lado, é contraditório organizar um livro em sequências sem ter definido as concepções de
gênero e definido a sequência didática.
2.2.4. Ampliação dos fatos
A introdução do conceito de ampliação dos fatos é feita sem minúcias. O texto motivador é
uma pequena crônica que trata da vibração em uma partida de futebol. A organização do texto
trata de progressividade, simultaneidade, fato e ampliação do fato. Os espaços destinados à
revisão e reescrita, apresentam a mesma estrutura das sequências anteriores e não se ocupa em
direcionar a escrita em um determinado gênero.
Figura 6: crônica que trata da partida de futebol
2.2.5. Conflito da personagem
A sequência inicia com o conto “Encontro com o passado”. Quanto ao conflito, as
explicações estão de o ser/não ser e ter/não ter. Faz menção a protagonista e antagonista, na
busca de apontar como se desenvolvem os conflitos. No direcionamento para a produção de
textos, há duas propostas. É notório que o aluno só terá que “dar conta” de uma. Nesse
espaço, também, não se fala em escrever num determinado gênero, se diz “escreva uma
história...” e “Crie uma personagem...”.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 679
Figura 7: Trecho do Conto “Encontro com o passado de Elsie Elessa”
Tanto a preparação quanto a revisão destacam tópicos já conhecidos e continuam
fugindo das teorias de produção textual a partir dos gêneros na perspectiva
sociointeracionista. Até mesmo os direcionamentos, que no livro aparecem em letras
vermelhas e pequenas ao longo das páginas, oferecidos ao professor não se vinculam aos
estudos de gênero.
2.2.6. Enredo
Assim como em sequências anteriores, há apenas uma introdução construída a partir
de reflexões acerca de sequência cronológica e sequência psicológica. No entanto, a
abordagem é muito sucinta e não apresenta exemplo a partir de textos, aponta-se apenas uma
possibilidade de contexto para exemplificar os dois tipos de sequência. O texto motivador é a
crônica “Minha casta Dulcineia” de Fernando Sabino. No tópico referente à organização do
texto, o autor busca indicar os elementos que compõem o enredo, segundo ele são
apresentação, conflito e desfecho.
Diferente das propostas anteriores, aparece um segundo texto motivador, “O
meucalipto” de Pedro Bandeira. Esse texto aparece para direcionar a organização do texto,
que também difere das outras sequências. O foco da segunda organização do texto é tratar do
enredo psicológico, que a partir da descrição de Sargentim, utiliza-se da técnica do flash back,
e seria um passeio pelo tempo sem preocupação com linearidade temporal, o ponto chave é a
emoção. Têm-se nessa sequência três propostas de produção textual. A primeira sugere que se
escreva um texto com base num poema, que é também um anúncio e pode ser lido e entendido
de baixo para cima e de cima para baixo. A segunda sugere que se escreva uma história
baseada nos elementos oferecidos numa notícia e o aluno pode escolher o tipo de enredo. A
Nas fronteiras da linguagem ǀ 680
terceira apresenta o início de um conto e sugere que o aluno dê continuidade a ele escrevendo
uma história.
Sendo assim, conto e história são a mesma coisa, ou coisas diferentes? O livro não faz
nenhuma abordagem específica a respeito, o que se percebe, repetidas vezes, é o uso da
expressão escreva uma história, sem direcionar o gênero. Quando se parte para a preparação
da escrita, não fica evidente qual das propostas o aluno deve seguir, e nos direcionamentos
dados ao professor, são retomadas explicações já vistas em outros momentos. Como nas
outras propostas há um roteiro de revisão e sugestão de reescrita.
Figura 8: Poema que pode ser lido de várias formas
2.2.7. Suspense
A introdução fala de modo superficial que o suspense é fundamental para atrair a
atenção do leitor. O texto motivador é “O valente” de José Cândido de Carvalho. A
organização do texto se dá em torno do suspense que há no texto motivador. Diferentemente
das outras sequências, essa só apresenta uma proposta de produção textual, mas retoma a
mesma nomenclatura, sugere que o aluno invente uma história em que haja suspense, tendo
como base o texto motivador. Assim como nas outras sequências, existe a preparação da
escrita, um roteiro de revisão, um espaço para reescrita, como a mesma linearidade das outras.
2.2.8. Organização do concurso de histórias
Essa é a etapa final da sequência. Apresenta um direcionamento para que os alunos,
sob a supervisão do professor, elaborem os critérios do concurso. Indica que eles devem, além
de definir os critérios, redigir o regulamento do concurso, como norteador apresentam um
modelo de regulamento. A proposta do concurso aparece de modo oportuno, todavia não fica
evidente se os alunos devem usar os textos que já foram escritos, revisados, reescritos e
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 681
editados ou se eles podem escrever outros textos para concorrer. Nesta perspectiva, mais uma
vez depara-se com a proposta em SD instituída de modo inadequado bem como as concepções
e direcionamentos quanto ao estudo dos gêneros pouco específicos.
3. Considerações finais – concepção de gênero e sequência didática
Em se tratando de sequências didáticas, Dolz e Schneuwly (2004, p. 82) configuram
como sendo “um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em
torno de um gênero textual oral ou escrito”. Pelo que se constatou, no material em análise não
havia marcas dos estudos de Dolz e Schneuwly, nem as ações torneadoras da produção textual
amparavam-se em propostas pautadas no sociointeracionismo conforme verificado no manual
do professor.
No método pautado em SD, a escrita inicial ocorre em primeira instância, servindo
para intervir nas supostas dificuldades dos discentes e com isso oferecer aos alunos os
elementos de que necessitam para a produção de um bom texto do gênero em questão, sendo a
reescrita, parte do processo. A primeira escrita é quando os alunos acentuam as noções que
têm sobre o gênero e que irão guiar o trabalho docente. A situação de comunicação deve ser
está definida para que os alunos tenham êxito em produzir textos, mesmo que não apresentem
todas as características do gênero proposto. Acerca disso, Dolz e Schneuwly (2004, p.83)
apontam que:
Uma SD tem, precisamente, a finalidade de ajudar o aluno a dominar melhor um
gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de uma maneira mais
adequada numa dada situação de comunicação. As SDs servem, portanto, para dar
acesso aos alunos a práticas de linguagem novas ou dificilmente domináveis.
Logo, a SD institui atividade que surgem por meio da linguagem real, sendo uma
metodologia adequada à prática de produção textual. Bazerman (2011) dialoga com estas
ideias, porque afirma que a produção textual é um processo complexo pois envolve a
predisposição para agir cognitiva e discursivamente em todas as etapas da produção.
Portanto, as propostas de produção textual devem se reportar às práticas sociais e isso
em geral não ocorreu no material em análise. Os gêneros que circulam na sala de aula
necessitam estar vinculados à realidade do aluno, no intento de facilitar o envolvimento com
as suas ações de escrita. Bazerman (2001, p. 52) aponta em suas percepções que:
Sempre soubemos que escrever é um ato social, mas, recentemente, começamos a
examinar com mais atenção as implicações disso para a anatomização das
atividades, da localização, da dinâmica social de cada instância da escrita.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 682
Começamos a perceber como a sala de aula é um cenário particular da escrita – nem
um cenário natural inato nem artificial inato, nem necessariamente liberal – apenas
um cenário da escrita.
Em suma, Bazerman (2011, p. 10) discorre sobre o ensino de gêneros, destacando a
magnitude de centralizar o interesse, utilidade e relação do gênero com a vivência dos alunos,
o que é correto, tendo em vista a quantidade de alunos que não se sentem motivados a
produzir textos justamente pelo fato de as propostas quase sempre estarem desconectadas da
sua vida. Por isso, Bazerman (2011, p. 11) afirma que se reconhecemos os estudantes como
agentes, aprendendo a usar criativamente a escrita dentro das formas interacionais tipificadas,
dinamicamente cambiantes que chamamos de gêneros, eles virão a entender o poder da escrita
e serão motivados a fazer o trabalho árduo de aprender a escrever efetivamente.
Referências
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BAZERMAN, Charles. Gêneros textuais, tipificações e interação. São Paulo: Cortez, 2011.
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Discurso, São Paulo, Contexto. p. 200 – 220.
LISPECTOR, Clarice (1944). Entre o biográfico e o literário: uma ficção possível. São
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MAINGUENEAU, Dominique. Discurso literário. Tradutor Adail Sobral. – 2 ed. – SP:
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ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática,
2003.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 684
VARIAÇÃO LINGUÍSTICA EM PERNAMBUCO:
OCORRÊNCIAS LEXICAIS PARA CIGARRO DE PALHA E
TOCO DE CIGARRO [Voltar para Sumário]
Edmilson José de Sá (CESA)
Introdução
Este artigo tem o intuito de analisar um aspecto da variação lexical detectada na fala
dos pernambucanos, de acordo com corpus do Atlas Linguístico do Estado. Na ocasião serão
evidenciadas as designações registradas para cigarro de palha e toco de cigarro.
O Estado de Pernambuco possui 185 municípios, o que já reflete uma realidade
linguística variável pela própria constituição histórico-geográfica peculiar a cada município.
Para a obtenção de uma amostra considerável, foram escolhidos vinte municípios distribuídos
entre os quatro cantos do Estado a partir de suas mesorregiões sertão – agreste – zona da mata
– região metropolitana.
Aos informantes selecionados a partir do perfil sugerido por Cardoso (2010) de que
tivessem entre 18 e 30 anos e entre 50 e 65 anos apenas com, no máximo, as séries iniciais do
ensino fundamental concluídas, acrescentando o ensino superior completo apenas à capital do
Estado.
A partir de uma análise sob a égide diatópico-diastrática, pretende-se descrever, ainda
que superficialmente, as realizações que se sobressaem em detrimento de outras mais inibidas,
o que poderá auxiliar numa organização de áreas sub-dialetais no Estado de Pernambuco e
contribuir com outras pesquisas em prol de discussões acerca da heterogeneidade do
português brasileiro.
1 Breves considerações sobre dialetologia e geolinguística
É notório que os estudos de descrição linguística sob os auspícios da variação
linguística se respaldam em três aspectos teóricos, a saber: A sociolinguística, a partir da qual
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 685
a língua é explicada segundo a interferência de elementos sociais do falante a exemplo de
gênero, faixa etária, escolaridade, localização, sendo esses, portanto, pertences à dimensão
chamada diastrática. A Dialetologia, por sua vez, se limita a investigar as realizações
linguísticas de uma dada comunidade, sem necessariamente, interpretá-las à luz de restrições
externas, mas dentro da própria estrutura da língua ou, como tem sido mais recorrente, com a
adoção do método cartográfico emprestado pela geografia, daí o fato de esse método ser
chamado de Geografia Linguística ou, simplesmente, Geolinguística.
A aplicação desse método, embora ainda pouco conhecido e não alcunhado foi
pensada por Nascentes (1958), visando à realização de uma descrição detalhada no idioma
falado no Brasil. Contudo, esse feito pareceu mais difícil do que ele pensava. Assim, o
linguista adiou a elaboração de atlas regionais e também o seu projeto de Atlas Linguístico de
Brasil. Nas Bases para a elaboração do Atlas Linguístico de Brasil, o autor preconiza que:
[...] embora seja muito vantajoso um atlas feito ao mesmo tempo no país inteiro,
pois o fim não é muito distanciado do início, os Estados Unidos, país vasto com
belas trilhas, preferiram a elaboração de atlas regionais, para uni-los depois no atlas
geral. Igualmente nós deveríamos fazer isto em nosso país que também é vasto
(NASCENTES, op cit, p. 07).
Desde o fim dos anos cinquenta, portanto, estão sendo ampliados alguns trabalhos
importantes que têm servido de apoio teórico aos estudos variacionistas e, pelo continuum,
para as pesquisas geolinguísticas mais recentes.
O trabalho pioneiro de Nelson Rossi em 1963, chamado Atlas Prévio dos Falares
Baianos – APFB, foi a deixa para a confecção de vários outros trabalhos hoje encontrados
tanto nas bibliotecas do Brasil, como fora delas.
Após o estudo realizado na Bahia, já foram concluídos os seguintes atlas linguísticos:
o Esboço de um Atlas Linguístico de Minas Gerais – 1977, o Atlas Linguístico da Paraíba –
1984, o Atlas Linguístico de Sergipe – 1987, o Atlas Linguístico de Paraná – 1994, o Atlas
Linguístico e Etnográfico da Região Sul do Brasil – 2002, o Segundo Atlas Linguístico de
Sergipe – 2005, o Atlas Linguístico Sonoro de Pará – 2004, o Atlas Linguístico do Amazonas
– 2004, o Atlas Linguístico de Paraná - II – 2007, o Atlas Linguístico do Mato Grosso do Sul
– 2007, o Atlas Linguístico do Estado do Ceará – 2010 , o Atlas Linguístico de Goiás – 2012
e o Atlas Linguístico de Pernambuco – 2013, sobre o qual versa este trabalho.
Existem, ainda, alguns atlas regionais em fase de implantação, que pertencem aos
Estados do Maranhão, Rio Grande do Norte, Espírito Santo, Rondônia, Pará e Pernambuco,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 686
além de outras dissertações e pesquisas já concluídas ou em elaboração, enfocando atlas
microrregionais.
2 Variação lexical no Brasil: algumas considerações
Nos trabalhos dialetológicos documentados sob a forma de atlas linguísticos são
encontradas variantes lexicais bastante relevantes.
No atlas de Minas Gerais, por exemplo, foi percebido que as cidades localizadas no
norte de Minas demonstraram preferências pelo uso de determinadas palavras, como china
(bola-de-gude), neve (cerração), chuva-de-flor (granizo), entre outras.
Já os mineiros do sul do estado e do Triângulo Mineiro apresentaram ocorrências
lexicais como rabicó (animal sem rabo) e chuva-de-rosa (granizo).
Na Paraíba, por sua vez, foram encontradas respostas curiosas e que foram inseridas
no atlas linguístico do estado. Para soutien, também foram proferidas as respostas corpete,
califon, porta-seio, guarda-seio e bustiê. Para útero, também foram encontradas mãe do
corpo, bacia, ventre e ventre da mãe.
No caso do tornozelo, foram encontradas variantes do tipo rejeito, junta, mocotó, junta
do pé, osso de São Severino e osso do gostoso. E para rótula, também apareceram as variantes
bolacha, bolacha do joelho, rodinha do joelho, cabeça do joelho, patinho e bolachinha.
Ferreira et al (1987), no primeiro atlas de Sergipe, encontrou como variantes para
arco-íris os termos arco-celeste, olho de boi, arco de boi, arco da velha, arco de velho e arco,
enquanto Aguilera (1994), ao elaborar um esboço para o atlas do Paraná, encontrou, dentre
outros resultados, designações para útero tais como útero, com 53% dos registros, mãe-do-
corpo com 27%, barriga com 10% e ventre também com 10%.
Sentindo a necessidade de contemplar aspectos não mencionados num primeiro
trabalho, Cardoso (2002) elaborou o segundo Atlas Linguístico de Sergipe como tese de
doutorado. Nesse atlas, a professora procurou coletar respostas para o campo semântico
homem. Além disso, convém mencionar que tais designações permitem compreender melhor
o regionalismo sergipano, a exemplo da designação tunco para muxoxo, alcunha nordestina
para o estalo que se dá com a língua e o céu da boca, para indicar desprezo ou desdém. A
carta disposta na figura 1 mostra a categoricidade das respostas encontradas:
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 687
Figura 1: Carta 85 do Atlas Linguístico de Sergipe II (CARDOSO, 2002)
No Amazonas, a pesquisa realizada em nove pontos de inquérito resultou em algumas
variantes curiosas no campo lexical, como foi o caso das designações para cambalhota, que
teve como respostas carambota, calambota, carambola, calhambota, calambiota,
calhambiota com 82% dos registros, salto / pulo mortal com 9%, cangapé com 6% e bunda-
canastra que teve 3%, como mostra a carta disposta na figura 2:
Figura 2: Carta 76 do Atlas Linguístico do Amazonas (CRUZ, 2004)
Nas fronteiras da linguagem ǀ 688
Recentemente em 2010, foi publicado o último atlas regional, o do Estado do Ceará.
Nele há algumas cartas lexicais com uma quantia relevante de variantes, como é o caso da
carta 7 para ventania, que documentou cicrone, temporal, tufão, vento celeste, viração,
aguaceiro, terremoto, trevoada, trovoada, vento brabo, vento forte e vento geral.
Figur
a 3: Carta 7 do Atlas Linguístico do Estado do Ceará (BESSA, 2010)
3 O ‘Cigarro de palha’ e o ‘Toco de cigarro’ em Atlas Linguísticos antes de
Pernambuco.
Dos atlas linguísticos mencionados no item 1 deste artigo, cinco registraram variantes
para cigarro de palha e toco ou resto de cigarro. São eles: Atlas Linguísticos de Sergipe
(ALS) I e II, Atlas Linguístico e Etnográfico da Região Sul do Brasil (ALERS), o Atlas
Linguístico do Mato Grosso do Sul (ALMS) e o Atlas Linguístico de Goiás (ALG).
No caso do primeiro item lexical, cigarro de palha, pode-se observar a distribuição de
ocorrências nos dois atlas nordestinos, construídos com a pesquisa em Sergipe, conforme o
quadro 1:
ALS I ALS II
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 689
Variantes Quantia Variantes Quantia
Cigarro de palha 07 Bagoga 04
Cigarro de fumo 07 Biana 03
Ligumi 03 Baga 01
Cigarro de fogo de corda 02 Bonga 01
Fumo de corda 01 Madonga 01
Cigarro de fumo cortado 01
Paizanu 01
poleta 01
Quadro 1: Ocorrências para cigarro de palha no ALS I e no ALS II
No quadro 1, ficou constatada a existência de duas designações que se destacaram no
ALS I: cigarro de palha e cigarro de fumo, enquanto no ALS II teve apenas a ocorrência
bagoga como a mais quantificada, embora em número reduzido.
No quadro 2, a seguir, é possível comparar os dados registrados das variantes mais
contabilizadas nos atlas de Mato Grosso do Sul, de Goiás e da Região Sul. Vale salientar que,
no atlas regional sulista, os dados foram coletados nos três estados da região Paraná, Santa
Catarina e Rio Grande do Sul.
ALERS ALMS ALG
Variantes Quantia Quantia Quantia
Paraná Santa
Catarina
Rio Grande
do Sul
Palheiro 190 60 66 64 19 04
Cigarro de palha 24 17 02 05 53 15
Cigarro crioulo 30 05 05 20 - -
Baiano 04 04 - - - -
Pito (de palha) 02 01 - 01 - 09
Paiova 01 01 - - - -
Fumo - - - - 12 01
Cigarro de fumo 02 01 - 01 12 02
Cigarro barato - - - - 02 -
Charuto 09 06 01 02 01 -
Nas fronteiras da linguagem ǀ 690
Quadro 2: Distribuição de variantes para ‘cigarro de fumo’ em atlas do Centro-Oeste e Sul
No quadro 2, dentre as variantes para cigarro de palha no Centro-Oeste e no Sul, a
ocorrência palheiro foi mais quantificada no ALERS com 190 realizações bem equiparadas
nos três estados da região. Essa designação, conforme encontrado em Houaiss (2009), advém
de palha, do latim palea.
No ALMS e no ALG, destacou-se a variante cigarro de palha com 53 e 15
ocorrências, respectivamente. Coincidentemente, essa realização também foi a mais
contabilizada no ALS I.
Já no caso do ‘toco de cigarro’, sete variantes foram encontradas no ALS II, sendo
quatro ocorrências para bagoga, três para biana, e baga, bonga e madonga com uma
ocorrência cada uma.
ALERS ALG
Variantes Quantia Quantia
Paraná Santa
Catarina
Rio Grande
do Sul
Toco de cigarro 116 28 21 67 06
Xepa 55 13 42
Bituca 47 47 08
Bagana 12 01 11
Ponta de cigarro 07 01 02 04 01
Pituco 05 01 02 02
Bidu 03 03
Puxo 03 03
Baga 02 02
Quimba 21
Quadro 3: Distribuição de variantes para ‘toco de cigarro’ em atlas do Centro-Oeste e Sul
A partir do quadro 3, observa-se que as ocorrências toco de cigarro e ponta de
cigarro foram as únicas registradas no ALERS e no ALG in totum. Apesar disso, a
designação bituca se mostrou bastante relevante no Paraná, enquanto xepa é mais realizada
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 691
em Santa Catarina e toco de cigarro no Rio Grande do Sul. Já em Goiás, o destaque foi para
quimba, enquanto as outras realizações do atlas do estado se mostraram mais inibidas.
4 ‘Cigarro de palha’ e ‘Toco de cigarro’ em Pernambuco
O Atlas Linguístico de Pernambuco (ALiPE) registrou as variantes cigarro de fumo,
cigarro de corda, cigarro de palha e pacaia.
Além dessas respostas, houve duas respostas de natureza metonímica: saci e trevo, às
quais se acrescentam ocorrências únicas, a saber: sabugo, cigarro de seda, cigarro preto,
braço de Judas, fumador, zé-bostinha, beatinha, cavalinho e cigarro de bucha.
Na figura 4, é possível perceber como ocorreu a distribuição diatópica do cigarro de
palha.
Figura 4: Distribuição de variantes para ‘cigarro de palha’ em Pernambuco
Na figura 4, quando é apresentada a carta 35 do ALiPE com as variantes mais
registradas nos pontos de inquérito, ficou notória a relevância de ‘cigarro de fumo’, dado o
percentual de ocorrências em todos os municípios. As variantes ‘cigarro de corda’ e ‘cigarro
de palha’ foram mais inibidas, sendo proferidas pelos informantes em pontos isolados.
Foi interessante a distribuição do item ‘pacaia’, como variante lexical para o ‘cigarro
de palha’. A palavra advém do quicongo makaya, plural de kaya 'folha', especificamente
Nas fronteiras da linguagem ǀ 692
'folha de tabaco', erva usada como fumo. Trata-se de um termo que se manifesta com maior
assiduidade na região metropolitana do Recife, Zona da Mata Norte e início do Agreste,
permitindo com que seja feita uma isoléxica.
Figura 5: Isoléxica de pacaia em Pernambuco
Nos municípios de Limoeiro, Taquaritinga do Norte e Caruaru, a designação se
mostrou mais relevante, com, pelo menos, duas ocorrências, manifestando-se, mais
inibidamente, nos demais pontos investigados.
Já em relação ao ‘toco de cigarro’, houve maior distribuição das variantes, o que se
tornou mais fácil de estabelecer áreas sub-dialetais. As ocorrências que se sobressaíram na
pesquisa foram beata, bituca (bicuta, pituca), biola (piola), goia, baga e ponta de cigarro.
Além disso, foram registradas as variantes únicas piúba, bigoia e bico. Na figura 6, há a
distribuição das ocorrências no mapa de Pernambuco.
Figura 6: Distribuição de variantes para ‘toco de cigarro’ em Pernambuco
No mapa disposto na figura 6, a lexia ‘beata’ foi registrada em quase todo o Sertão do
Estado e parte do Agreste. ‘Biola’ é marca dialetal de São José do Egito, compartilhada,
ainda, pelos informantes da segunda faixa etária de Taquaritinga do Norte.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 693
Da Região Metropolitana de Recife e da Zona da Mata e parte do Agreste, prevaleceu
a lexia ‘goia’, distribuindo-se quase categoricamente. A variante ‘baga’, por sua vez, se
mostrou com extrema relevância em dois municípios investigados do Sertão do São
Francisco, Afrânio e Petrolina.
Nos trabalhos em que foram contabilizadas variantes para os dois itens lexicais nos
documentos dialetais mencionados neste artigo, é possível determinar os percentuais das
ocorrências compostas pela lexia ‘cigarro’:
Variantes Quantidade %
Cigarro de palha 31 29%
Cigarro crioulo 30 28%
Ponta de cigarro 13 12%
Toco de cigarro 11 10%
Cigarro de corda 09 8%
Cigarro de fumo 07 6%
Cigarro barato 02 1,8%
Cigarro de fogo de corda 02 1,8%
Cigarro de fumo 02 1,8%
Cigarro de fumo cortado 01 0,9%
Tabela 1: Dados quantitativos de lexias compostas por ‘cigarro’
Considerações finais
Este trabalho teve a preocupação de apresentar a variação linguística de natureza
lexical de dois itens, o cigarro de palha e o toco de cigarro, pertencentes ao campo semântico
‘comportamento e convívio social’.
Os resultados apontaram para dois itens bastante variáveis em três atlas linguísticos já
concluídos, o Atlas Linguístico do Mato Grosso do Sul, da Região Sul e o de Goiás, da
mesma forma que também ocorreu no Atlas Linguístico de Pernambuco.
Assim como ocorreu no ALG, a variante mais quantificada no ALiPE foi a composta
‘cigarro de palha’. Apesar de ter havido outras ocorrências comuns nos quatro trabalhos, elas
foram pouco relevantes, se manifestando em casos isolados.
No caso de ‘toco de cigarro’, houve, também, algumas coincidências de variantes
existentes nos quatro atlas linguísticos mencionados neste artigo. Contudo, interessa
Nas fronteiras da linguagem ǀ 694
mencionar sugeríveis marcas dialetais das ocorrências desse item, uma vez que a designação
‘goia’ foi quase categórica em seis municípios da região metropolitana do Recife, Zona da
Mata Norte e início do Agreste. Indo mais à frente, distribuem-se beata, ponta de cigarro,
bituca e biola, sendo essa última registrada por três dos quatro falantes de São José do Egito.
Além disso, a realização baga se mostrou quase categórica em Afrânio e Petrolina, dois dos
municípios mais distantes da capital de Pernambuco.
Lamenta-se o fato de os outros atlas linguísticos não terem cartas da variação dos dois
itens lexicais, o que já predispõe a condição de se fazerem novas pesquisas quer utilizando os
itens aqui analisados, quer se valendo de outras conotações, auxiliando, assim, na construção
de outras áreas sub-dialetais do Brasil.
Referências
AGUILERA, Vanderci de Andrade. Atlas linguístico do Paraná - ALPR. Curitiba: Imprensa
Oficial do Estado, 1994.
BESSA, José Rogério Fontenele. Atlas linguístico do Estado do Ceará. Vol. 1 – Introdução.
Fortaleza: Edições UFC, 2010.
CARDOSO, Suzana Alice Marcelino. Atlas linguístico de Sergipe II. Tese de Doutorado. Rio
de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ, 2002.
______. Geolinguística: tradição e modernidade. São Paulo: Parábola, 2010.
CRUZ, Maria Luiza de Carvalho. Atlas linguístico do Amazonas – ALAM. Tese de Doutorado.
Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2004.
FERREIRA, Carlota. et al. Atlas linguístico de Sergipe. Salvador: Universidade Federal da
Bahia; Aracaju: Fundação Estadual de Cultura de Sergipe, 1987.
NASCENTES, Antenor. Bases para a elaboração do atlas linguístico do Brasil. Rio de
Janeiro: MEC, Casa de Rui Barbosa, Vol. I, 1958.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 695
O RISO IRÔNICO NA POESIA DE ANGÉLICA FREITAS [Voltar para Sumário]
Eduarda Rocha Góis da Silva (UFAL)
A obra de Angélica Freitas é marcada por diversos elementos que a aproximam de
uma poesia dita experimental, na medida em que rompe com elementos tradicionais do fazer
poético, apresenta uma linguagem coloquial muito próxima à língua falada e incorpora novas
tecnologias de registro e circulação ou difusão do escrito, escrevendo poemas a partir do
Google. Em seus dois livros publicados até o momento: Rilke shake (2007) e Um útero é do
tamanho de um punho (2012), a poeta gaúcha opera uma desconstrução de estereótipos de
vários discursos conservadores e autoritários, sejam eles literários ou não. Em Rilke shake
(2007), alguns poetas do cânone ocidental são dessacralizados, retirados de uma espécie de
pedestal, e aparecem em situações risíveis, em poemas como: “na banheira com Gertrude
Stein” (FREITAS, 2007, p. 32), em que a poeta americana aparece soltando pum debaixo
d’água; “estatuto do desmallarmento” (Idem, p. 53), em que o sujeito poético realiza uma
consulta popular para banir Mallarmé dos lares; “não consigo ler os cantos” em que o sujeito
poético questiona: “vamos nos livrar de Ezra Pound?/ vamos nos livrar de Marianne Moore?”
(Ibidem p. 37). No segundo livro de Freitas, Um útero é do tamanho de um punho (2012),
essa desconstrução se realiza através da reelaboração irônica dos estereótipos de gênero
atribuídos às mulheres, já que a poeta resgata clichês da lógica machista/patriarcal,
problematizando diversas formas de controle sobre o corpo feminino, quase sempre com
humor e ironia. Desse modo, este trabalho tem como objetivo discutir as relações existentes
entre humor e ironia na poesia freitiana, tendo como base teórica, principalmente, os textos de
Bergson (1983); Bakhtin (2011); Cortázar (2014); e Linda Hutcheon (1991). Aqui, o humor é
pensado dialogicamente (Bakhtin, 2011), ao passo que os poemas respondem a enunciados
presentes na contemporaneidade
Ironia e humor na poesia de Angélica Freitas
Nas fronteiras da linguagem ǀ 696
Há diversas formas possíveis de abordar o humor na poesia de Angélica Freitas, talvez
porque o humor e a ironia sejam dois dos recursos mais frequentes na obra da poeta gaúcha.
Antes de apresentar as análises dos poemas, é preciso estabelecer distinções entre essas duas
categorias, visto que é um erro comum confundi-las e nem sempre a ironia tem um caráter
risível, como destaca Linda Hutcheon em Teoria e política da ironia (2000): “um dos
conceitos errôneos que os teóricos têm sempre de enfrentar é a fusão da ironia com o humor”
(2000, p. 20). Ainda sobre esta distinção entre ambos, Bergson afirma:
Ora se enunciará o que deveria ser fingindo-se acreditar ser precisamente o que é.
Nisso consiste a ironia. Ora, pelo contrário, se descreverá cada vez mais
meticulosamente o que é, fingindo-se crer que assim é que as coisas deveriam ser. É
o caso do humor. O humor, assim definido, é o inverso da ironia [...] a ironia é de
natureza retórica, ao passo que o humor tem algo de mais científico. (1983, p. 61
grifos do autor.)
Desse modo, a ironia, por definição, é entendida como um recurso linguístico da
retórica em que comumente se diz algo, querendo dizer o contrário do que foi dito. Devido a
esse desdobramento controverso, ela se converte em um fator de recepção, já que: “a ironia
não é ironia até que seja interpretada como tal – pelo menos por quem teve a intenção de fazer
ironia, se não pelo destinatário em mira. Alguém atribui a ironia; alguém faz a ironia
‘acontecer’” (HUTCHEON, 2000, p. 22 e 23), por isso, é difícil para um estrangeiro, por
exemplo, entender determinados enunciados irônicos de uma outra língua, tendo em vista que
tal recurso depende da compreensão do contexto em que está inserido e do enunciado que está
sendo ironizado, remetendo à relação que se estabelece entre interlocutores, no processo
complexo da enunciação, seja numa conversa oral, seja na leitura de um texto. Muecke em
Ironia e o irônico (1995) postula:
A palavra “ironia” não quer dizer agora apenas o que significava nos séculos
anteriores, não quer dizer num país tudo o que pode significar em outro, tampouco
na rua o que pode significar na sala de estudos, nem para um estudioso o que pode
querer dizer para outro. (1995, p 22)
Assim, o autor enfatiza a compreensão da ironia como fator de recepção, pois ela pode
adquirir significados diferentes, mudar de contexto dependo da situação e das pessoas
envolvidas. Apesar de ironia e humor não terem obviamente o mesmo significado, já que nem
sempre a ironia é risível, é fato que enunciados cômicos podem ser, eventualmente, irônicos e
vice-versa. É a partir da perspectiva de um humor que se alia à ironia que foram realizadas as
análises dos poemas citados neste texto, levando em consideração a noção de dialogismo de
Bakhtin, para quem “Cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 697
outros enunciados.” (BAKHTIN, 2011, p. 272), tendo em vista que os enunciados cômicos e
irônicos dialogam com outros enunciados vigentes no discurso contemporâneo e, para
compreendê-los, é preciso conhecer os anteriores a que eles respondem.
Para tentar traçar um percurso do humor nos dois livros de poemas publicados por
Freitas até o momento: Rilke Shake (2007) e Um útero é do tamanho de um punho (2012),
tentei responder a pergunta: do que se ri na poesia de Angélica Freitas? Enquanto me
dedicava a essa questão, deparei-me com um ensaio de Julio Cortázar sobre humor e
musicalidade na literatura, presente no livro Clases de Literatura (2014)1, ainda não traduzido
para o português, que contém as transcrições de suas palestras em Berkeley, nos anos 80, das
quais pode-se extrair um vasto material para pensar diversos aspectos caros à teoria literária.
O texto sobre o humor me serviu de base para pensar este recurso na poesia de Angélica
Freitas. Paradoxalmente, Cortázar começa sua fala tratando da inquietação, da qual eu
compartilho, que é falar sério sobre o humor. Para ele, não há nada mais terrível, e, ao mesmo
tempo, é difícil falar do humor com humor, “pois ele engendra as palavras que acabam tendo
um efeito que não se pretendia” (2014, p. 158). Cortázar, ao contrário de Bergson em O riso
(1983), que fala a todo momento do cômico, estabelece uma distinção entre cômico e humor.
Para ele, há uma confusão bastante perigosa entre o humor e a simples comicidade, pois há
coisas que são cômicas, porém não contém algo de inexpressável, indefinível, que, na
perspectiva de Cortázar, haveria no verdadeiro humor. Para explicar melhor essa postulação,
ele recorre a exemplos do cinema e compara Woody Allen, que seria um humorista a Jerry
Lewis, que seria um cômico. A diferença entre ambos, segundo ele, está em que “alguém
como Jerry Lewis busca simplesmente criar situações nas quais fará rir por um momento, mas
que não tem nenhuma projeção posterior; terminam na piada, são sistemas de circuito
fechado, muito breves, mas que na literatura não teriam consequências importantes”
(CORTÁZAR, 2014, p.158). Já Woody Allen, para o autor, realiza efeitos cômicos que estão
cheios de um sentido que vai muito além da piada ou da situação imediata: contém uma
crítica, uma sátira ou uma referência. Ainda que essas postulações de Cortázar sejam
questionáveis, em alguma medida, já que é difícil definir o que seria um verdadeiro humor, se
é que ele existe, entendo que essa distinção foi feita para destacar que o humor na literatura
tem um tom mais crítico, desestabilizador, como o presente na poesia de Angélica Freitas,
diferente de um humor mais “inocente”, menos pretensioso, que termina na piada em si.
1 As citações desta obra, apresentadas ao longo do texto, são fruto de traduções livres feitas por mim.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 698
Rilke shake: uma poética dessacralizadora
Seguindo com Cortázar (2014), vemos que, ao pensar o humor na literatura, quando se
analisa o fragmento que contém esse elemento, ele atua quase sempre para dessacralizar algo
ou alguém, questionando, assim, valores, estereótipos, “verdades”. Na poesia de Angélica
Freitas, em seu primeiro livro, Rilke shake (2007), esse elemento a ser dessacralizado é, num
processo de autoironia, o próprio lugar da poeta ou dos poetas, e também da própria poesia.
Desde o título do livro observamos a brincadeira que ela realiza com o escritor alemão Rainer
Maria Rilke, colocando um grande poeta da tradição universal no mesmo plano semântico que
um milk-shake. O título da obra sugere a batida, a mistura de elementos e já indica uma fusão
entre o que seria alta cultura e cultura de massa, eliminando, assim, a noção de valor, uma das
características principais do pós-modernismo ou contemporaneidade, discutidas mais
amplamente por Linda Hutcheon (1991) e Arthur Danto (2006)2. No poema homônimo, que
aparece abaixo, essas características citadas aparecem mais claramente:
rilke shake
salta um rilke shake
com amor & ovomaltine
quando passo a noite insone
e não há nada que ilumine
eu peço um rilke shake
e como um toasted blake
sunny side para cima
quando estou triste
& sozinha enquanto
o amor não cega
bebo um rilke shake
e roço um toasted blake
na epiderme da manteiga
nada bate um rilke shake
no quesito anti-heartache
nada supera a batida
de um rilke com sorvete
por mais que você se deite
se deleite e se divirta
tem noites que a lua é fraca
as estrelas somem no piche
e aí quando não há cigarro
não há cerveja que preste
eu peço um rilke shake
engulo um toasted blake
e danço que nem dervixe
(FREITAS, 2007, p. 39)
2 Cf. Hutcheon: Poética do pós-modernismo (1991) e Danto: Após o fim da arte (2006).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 699
Esse poema, que não apresenta nenhum tipo de pontuação (as pausas são dadas pela
divisão dos versos), é constituído por rimas em duas línguas, português e inglês, aproximando
os poetas Rilke, alemão, e William Blake, inglês, a produtos típicos de uma sociedade de
consumo como o milk-shake, o achocolatado ovomaltine, o Mc Donald’s Mc Toasted e seu
ovo frito estilo “sunny side up”, resultando em um “rilke shake” um “toasted blake/ sunny
side para cima”. Esse tipo de aproximação resulta na dessacralização daqueles poetas
canônicos, pois antes eram alta cultura, mas agora tornam-se fast food, ou seja, estão no
mesmo plano que a cultura de massa, não há mais distinção, foram batidos e misturados.
Rilke e Blake são retirados dos livros e entram em outro gênero textual, o cardápio de
lanchonete, raramente referido ou incorporado pelo/no poema. É perceptível, também, o
procedimento de devoração da antropofagia cultural, com recorrência de verbos que reforçam
a metáfora digestiva, núcleo da proposta oswaldiana: o sujeito poético bebe (“bebo um rilke
shake”), come (“e como um toasted blake”), engole (“engulo um toasted blake”) os poetas
estrangeiros.
No último verso (“e danço como dervixe”) podemos ressignificar o sentido de
“shake”, visto que uma de suas acepções é também balançar ou mexer, seja algum objeto,
como também, balançar ao som de uma música, isto é, dançar. Dançar “que nem dervixe”
consiste em girar em sentido anti-horário até entrar em transe. Girar é, para os dervixes, a
imagem de como eles podem se tornar um lugar livre para o humano e o divino se
encontrarem. Dessa maneira, o sujeito poético, ao “dançar que nem dervixe”, gira e mistura as
diferentes referências da alta cultura e da cultura de massa, planos opostos, assim como o
humano e o divino, dentro de si e, principalmente, dentro do poema, e ainda podemos remeter
a mistura de uma dicotomia muito forte em nossa tradição: Ocidente e Oriente, aqui evocado
pelos dervixes, que pertencem à antiga cultura persa. Essa imagem da dança nos lembra uma
outra, resgatada por Italo Calvino nas Seis propostas para o próximo milênio (2010), quando
o italiano aborda a leveza. Para Calvino, a literatura opera a busca da leveza como reação ao
peso de viver, e essa leveza presente no humor que percorre todo o poema, concretiza-se na
imagem da dança dervixe, em que o constante girar sem nunca perder o equilíbrio, faz-nos
acreditar que seus pés nunca tocam o chão, como se estivessem, a qualquer momento, prontos
para alçar voo, semelhante à imagem de Perseu, resgatada por Calvino para exemplificar a
leveza: “Para decepar a cabeça da Medusa sem se deixar petrificar, Perseu se sustenta sobre o
que há de mais leve, as nuvens e o vento” (2010, p.16). Assim, com leveza, vemos aqui um
humor que se realiza através da dessacralização do cânone, o que se encaixa perfeitamente
Nas fronteiras da linguagem ǀ 700
bem na afirmativa de Cortázar:
O humor dessacraliza, não o digo em um sentido religioso porque não estamos
falando do sacro religioso: dessacraliza em um sentido profano. Esses valores que se
dão como aceitos e que costumam merecer um tal respeito das pessoas, o humorista
costuma destruí-los com um jogo de palavras ou com uma piada. Não é exatamente
que os destrua mas por um momento os faz baixar do pedestal e os coloca em outra
situação; há como uma derrogação, um retrocesso na importância aparente de muitas
coisas e é por isso que o humor tem na literatura um valor extraordinário porque é o
recurso que muitos escritores utilizaram e utilizam admiravelmente bem, para, ao
diminuir coisas que pareciam importantes, mostrar ao mesmo tempo onde está a
verdadeira importância das coisas que essa estátua, esse figurão ou essa máscara
cobria, tapava e dissimulava. O humor pode ser um grande destruidor, mas ao
destruir constrói.” (2014 p. 159 tradução minha.)
Em “rilke shake”, o cânone, tido como o grande valor da literatura, é retirado do pedestal, a
que se refere Cortázar e se coloca em outra situação, neste caso, no cardápio de lanchonete;
por meio das rimas em português/inglês, o poema provoca um efeito de riso, à medida que os
nomes dos poetas são mesclados aos nomes das comidas fast food. “rilke shake” pode ser
pensado como a representação desse humor que ao destruir constrói, pois, o cânone é
ressignificado, retirado de uma pretensa importância e é associado a elementos comuns da
cultura de massa, adquirindo um novo significado.
Um útero é do tamanho de um punho: rindo dos estereótipos de gêneros
Judith Butler afirma em Problemas de gênero (1990) que “rir de categorias sérias é
indispensável para o feminismo” (2013, p.8). Em seu segundo livro, Um útero é do tamanho
de um punho (2012), Angélica Freitas leva tal afirmativa às últimas consequências, já que
diversos assuntos caros ao feminismo são abordados com muito humor e ironia, além de
realizar uma evidente paródia a um discurso machista/patriarcal. A obra aparece dividida em
sete seções: “uma mulher limpa”, “mulher de”, “a mulher é uma construção”, “um útero é do
tamanho de um punho”, “3 poemas com o auxílio do google”, “argentina” e “o livro rosa do
coração dos trouxas”. Em todas elas, a poeta gaúcha opera uma desconstrução irônica dos
estereótipos de gênero atribuídos às mulheres, resgatando diversos clichês da lógica
machista/patriarcal, tais como nos poemas: “uma mulher limpa” (2012, p. 11), “uma mulher
sóbria (2012, p. 22) “mulher de regime” e “uma mulher gorda”, que ironizam a ditadura da
magreza e questionam a gordofobia, pondo em xeque alguns mecanismos de controle sobre o
corpo das mulheres, que, segundo essa lógica, deveriam ser limpas, magras, bonitas, sóbrias,
etc. O livro permite diversas possibilidades de discussão desses temas, porém, neste curto
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 701
texto não haveria espaço para todas elas; trago, assim, para este momento, o poema “mulher
de vermelho”, em que algumas das questões anteriormente apresentadas podem ser discutidas.
mulher de vermelho
o que será que ela quer
essa mulher de vermelho
alguma coisa ela quer
pra ter posto esse vestido
não pode ser apenas
uma escolha casual
podia ser amarelo
verde ou talvez azul
mas ela escolheu vermelho
ela sabe o que ela quer
e ela escolheu vestido
e ela é mulher
então com base nesses fatos
eu já posso afirmar
que conheço o seu desejo
caro watson, elementar:
o que ela quer sou euzinho
sou euzinho o que ela quer
só pode ser euzinho
o que mais podia ser
(FREITAS, 2012, p. 31)
Um tema importante é trazido à cena: a questão da cultura do estupro, em que a roupa
da vítima é considerada um convite ao abuso sexual. Na lógica machista/patriarcal, muitas
vezes, as vítimas são culpabilizadas por usarem determinadas vestimentas, de determinadas
cores ou comprimento, como se isso justificasse qualquer “desejo incontrolável” do abusador.
A “mulher de vermelho” mimetiza todas essas mulheres e o poema, que parte de um ponto de
vista masculino, em que um observador homem questiona: “o que será que ela quer/ essa
mulher de vermelho” reforça a ideia da ironização da roupa como convite, pois, a pergunta
acentua uma possível intenção da mulher de vermelho de vestir tal peça para provocar
determinada reação, quando, na verdade, essa ideia está sendo questionada e não afirmada,
retomando a ideia de ironia como algo que se diz, querendo dizer o contrário. A ironia se
revela mais evidente nos versos finais: “ela sabe o que ela quer/e ela escolheu vestido/e ela é
mulher/então com base nesses fatos/eu já posso afirmar/que conheço o seu desejo/caro
watson, elementar:/o que ela quer sou euzinho/sou euzinho o que ela quer/só pode ser
euzinho/o que mais podia ser”, momento no qual aparece o personagem de Arthur Conan
Doyle, Sherlock Holmes, que apesar de não ser nomeado, pode ser recuperado através do
verso: “caro Watson, elementar”, frase dita pelo detetive em todas as suas aventuras com seu
fiel assistente Watson, no momento em que encontra uma pista importante ou quando
Nas fronteiras da linguagem ǀ 702
desvenda o caso. Em “mulher de vermelho”, a frase é retomada ironicamente como se o
sujeito poético houvesse desvendado a questão: se ela é mulher, usou vermelho, é porque me
quer, uma lógica que não se concretiza e não faz nenhum sentido aparente, mas que é
utilizada como justificativa para abusos sexuais e aqui aparece parodiada. O diminutivo
“euzinho”, grau do substantivo que também pode ser utilizado em frases depreciativas,
aparece como mais um operador da ironia no poema, repetido três vezes, aparece
ridicularizando a figura do sujeito poético que observa a mulher de vermelho e dá um tom
superficial e despreocupado ao poema, intensificando, assim, a paródia a esse discurso
machista.
Considerações finais
A poesia de Angélica Freitas abre espaço para diversas abordagens do humor
associado à ironia, porém, neste curto texto não havia espaço para discutir amplamente tais
relações, o que está sendo feito em minha dissertação de Mestrado, no PPGLL/Ufal. Nestas
páginas, tentei responder, sem a pretensão de esgotá-la, uma pergunta norteadora deste
trabalho: do que se ri na poesia de Angélica Freitas? E finalizo compreendendo que a poética
freitiana propõe uma desconstrução de discursos autoritários de um modo bem-humorado,
podendo ser o cânone literário, grupo seleto de escritores, majoritariamente homens, que
figuram nas listas de grandes obras da literatura universal; ou um discurso machista que
controla e regula o corpo feminino, tentando determinar o tipo de roupa, de aparência, que
diversas mulheres deveriam ter, segundo essa lógica. Esses discursos são parodiados com
ironia e humor, já que nos vemos rindo em situações que comumente não seriam engraçadas,
porém, o modo como Angélica Freitas ridiculariza, em seu sentido primeiro, de tornar digno
de riso, o observador da mulher de vermelho, que tenta justificar o fato de uma mulher ter
escolhido um vestido dessa cor para provocá-lo, coloca-o em uma situação na qual vemos que
seus argumentos não fazem nenhum sentido, o que o torna tolo, incoerente. O sujeito machista
converte-se numa figura caricata, cômica, configurando uma abordagem menos usual para
tratar de temas como o feminismo. O mesmo ocorre com o cânone, quando os autores Rilke e
William Blake viram cardápio de lanchonete; a autora coloca os escritores celebrados em
situações inusitadas, assim como Gertrude Stein, soltando puns numa banheira. Diante disso,
pode-se dizer que Freitas, em seus poemas, ri e desestabiliza categorias sérias, em que ela
também se situa, desde estereótipos de gênero, como também o lugar do/a escritor/a,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 703
trazendo-as para o cotidiano com o bom humor e a leveza que já se tornaram traços
característicos de sua poesia.
Referências
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad.: Paulo Bezerra. 6 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2011.
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Trad. Nathanael C.
Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução
Renato Aguiar.4a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad.: Ivo
Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
CORTÁZAR, Julio. Clases de literatura. Ciudad de México: Alfaguara, 2014.
FREITAS, Angélica. Rilke shake. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
________. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
HUTCHEON, Linda. Teoria e política da ironia. Trad. Júlio Jeha. Belo Horizonte: Ed. da
UFMG, 2000
MUECKE, D. C. Ironia e o irônico São Paulo: Perspectiva, 1995.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 704
HISTÓRIAS DE RESISTÊNCIA: MEMÓRIA E IDENTIDADE
NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL DE GRAÇA GRAÚNA
E INALDETE PINHEIRO
[Voltar para Sumário]
Eidson Miguel da Silva Marcos (UFRN)
Amarino Oliveira de Queiroz (UFRN)
O passado colonial vivenciado por vários grupos e nações fora da Europa legou,
principalmente para os afro-descendentes e indígenas, uma série de fissuras identitárias e
territoriais. Alteridades diferenciais, a exemplo do negro e do índio no Brasil, são
reconhecidamente marcadas por tal legado. A literatura, nesse sentido, configura um espaço
de resistência onde identidade, alteridade e auto-história são ressignificados e reafirmados por
meio da incorporação de aspectos ligados à oralidade ancestral negra e indígena, como o
exercício griótico, ou seja: o recurso à contação de histórias e outras práticas como veículo de
transmissão e manutenção dos saberes construídos coletivamente. Tal exercício conforma
uma das principais vias de manutenção da memória coletiva nas criações literárias infanto-
juvenis de Maria das Graças Ferreira Graúna e Inaldete Pinheiro de Andrade, ilustradas no
presente estudo por duas de suas narrativas, respectivamente: Criaturas de Ñanderu e O Be-a-
bá do Baobá. Objetivamos, portanto, empreender leituras aproximativas dos referidos textos,
enfocando as problematizações étnicas e identitárias que são consubstanciadas através da
contação de histórias, recurso característico tanto da didática no âmbito da educação
institucional quanto na tradição particular de culturas como as africanas e as indígenas.
O ano de 1500 se tornou, no Brasil, o marco de uma historiografia oficial que reflete a
visão e o projeto do colonizador europeu sobre o chamado Novo Mundo. Nesse sentido, a
história dos povos originários registrada principalmente pelo exercício oral e mnemônico
passou, juntamente com a dos seus remanescentes, a ser relegada ao obscurantismo. Durante a
trajetória histórica brasileira, um discurso ‘adocicado’ de mestiçagem sempre buscou encobrir
os problemas decorrentes do passado colonial ligados à situação do negro e do índio. Pelo
viés literário, projetos de construção de uma brasilidade, a exemplo do projeto nacionalista
romântico – que propõe uma identidade brasileira a partir da submissão de um índio
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 705
idealizado e da exclusão do negro – e do projeto freyriano com seu ranço positivista/eugenista
apresentaram em seu bojo tais problemáticas.
Partindo para um recorte mais específico, percebe-se que em estados como o Rio
Grande do Norte, mesmo apresentando o termo potiguar1 como gentílico designativo para
quem nasce ou vive em seu território, existe um marcado discurso de apagamento de
alteridades diferenciais que protagonizaram a trajetória histórica, política, econômica e
cultural da unidade federativa, nomeadamente o negro e o índio. Assim, constatamos que:
nos estudos sobre o Rio Grande do Norte, as referências a identidades diferenciais
são discretas, também nas representações nativas do passado, percebemos uma
ausência dos principais atores da história colonial. Nos dois casos, as populações
autóctones, os escravos e seus descendentes, são relegados ao segundo plano.
(CAVIGNAC, 2011, p.195)
Visto que:
Logo após a retomada do território pelos portugueses na segunda metade do século
XVII, podemos pensar que houve uma ação planejada e coordenada, visando a
eliminação física das populações nativas e que, ao mesmo tempo se desenvolveu um
movimento contínuo e generalizado de apagamento sistemático da presença cultural
dos grupos nativos; movimento que resultou numa amnésia coletiva. Neste sentido,
o aniquilamento do elemento indígena nas consciências, inclusive dos próprios
descendentes, a erradicação física aliada ao apagamento dos índios nos documentos
administrativos, pode ser interpretado como sinais do pleno sucesso do colonizador.
(CAVINAC, 2003, p. 10)
Percebemos, no entanto, que a presença de negros e descendentes indígenas na
história, na política, na produção cultural e literária potiguar sempre contradisse a falácia de
tais discursos. Neste último campo, podemos citar nomes como os dos irmãos Castriciano de
Souza, figuras importantes no cenário cultural e político do Rio Grande do Norte nas
primeiras décadas da República. Eles alcançaram destaque nacional com a poesia,
especialmente por intermédio de Auta de Souza.
Os Castricianos foram contemporâneos de Fabião das Queimadas, poeta rabequeiro
que, tendo nascido escravo, comprou a liberdade com seu labor poético, por meio do qual
também expressou os dissabores do cativeiro. Através da gesta do gado, um dos temas do
cancioneiro popular brasileiro, metaforizou a experiência e situação do escravizado:
1 O termo potiguar remete a Potiguara – comedor ou catador de camarão, e se refere a um dos povos originários
que ocupavam terras do litoral nordestino à época da colonização. Atualmente, remanescentes dessas populações
ocupam vinte e duas aldeias situadas nos municípios paraibanos de Baía da Traição, Marcação e Rio Tinto, bem
como algumas regiões do Estado norte-rio-grandense a exemplo dos Mendonça do Amarelão, no município de
João Câmara e os Eleotélios do Catu, no município de Canguaretama.
.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 706
Foi-se espalhando a notícia;
Mão de Pau é valentão.
Tando eu enchocalhado,
Com as algemas nas mão,
Mas nada posso dizer,
Que prezo não tem razão.”
(CASCUDO, s/d, p. 89).
Outro nome que merece destaque é o de Dona Militana Salsutino, descendente de
negros e índios que guardava na memória um vasto repertório do cancioneiro popular de
origem ibérica. É detectável nesse cancioneiro referências às relações étnicas, como se fez
registrar em “A Tapuia”, poema no qual vemos a tensão do diálogo entre dois eu-líricos, um
feminino e outro masculino:
Oh, linda Tapuia,
vamos para o Porto,
tomar o conforto
de um copo de vinho.
Não quero o teu vinho,
sou uma pobre tapuia.
Não bebo no copo,
só bebo na cuia
(GURGEL, 2012, p. 226-227).
Percebemos, nos versos acima, a negação da tapuia face ao convite do eu-lírico
masculino que a quer levar para o Porto, mas ela resiste e defende sua condição de vida e seu
lugar de pertencimento. Não seria por acaso que encontramos nesses exemplos de literatura
oral a problematização de questões étnicas, uma vez que ao examinarmos de perto a tradição
oral, “verificamos a existência de elementos recorrentes que, apreendidos conjuntamente,
terminam por informar sobre um passado que não foi registrado nos livros de história”
(CAVIGNAC, 2011, p. 195).
Na literatura potiguar contemporânea, elementos como oralidade, identidade e
etnicidade ganham espaço na produção de autoras como Maria das Graças Ferreira Graúna e
Inaldete Pinheiro de Andrade, ambas radicadas no Estado de Pernambuco. Através de seus
trabalhos literários, as autoras põem em evidência a presença do índio e do negro no cenário
histórico e cultural do país, enfocando a resistência e a necessidade da preservação da tradição
negra e indígena pelo protagonismo e ação dos próprios afro-descendentes e indígenas na
condição de sujeitos de sua própria história.
Maria das Graças Ferreira Graúna nasceu no município de São José de Campestre/RN.
De ascendência potiguara, é professora universitária na área de Literatura e Direitos
Humanos, poeta, ensaísta e ficcionista. No volume 29 dos Cadernos Negros, Graça Graúna
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 707
depõe: “Ao escrever, dou conta da minha ancestralidade; do caminho de volta, do meu lugar
no mundo” (GRAÚNA, 2006, p. 119). Em seu trabalho ficcional voltado para o público
infanto-juvenil, a autora coloca a história, a cultura e os próprios indígenas como
protagonistas da narrativa, como faz em Criaturas de Ñanderu2, texto revelador de uma
proposta política e educativa eivada de reivindicação e requalificação étnica.
Na narrativa em questão, passada em uma aldeia indígena, a índia mais velha, no
finalzinho da tarde, reúne os mais jovens, com destaque para sua neta mais velha e conta-lhes
uma história. Essa história trata de uma cunhã cujo nome é mudado para o de um pássaro. A
mudança se verifica por influência superior destinada ao pai da cunhã, visto que ela precisa
assumir seu papel enquanto protetora da tradição, do conhecimento, da terra e do povo
indígena. A jovem passa então por um processo de maturação espiritual que apresenta, por
sua vez, efeitos físicos: “uma plumagem negra foi tomando conta dos seus ombros e dela
sugiram belas asas!” (GRAÚNA, 2010, p. 20). Finalmente, a cunhã sai da aldeia para
enfrentar a cidade grande.
A contação de histórias é bastante valorizada e dinamizada na narrativa.
Primeiramente, constituindo a principal ferramenta de transmissão do conhecimento e da
tradição indígena, conhecimento vasto como as estrelas do céu, pois “o tanto de estrelas que a
gente vê no firmamento corresponde ao tanto de histórias que os índios têm para contar”
(GRAÚNA, 2010, p. 7). A palavra “Histórias”, grafada dessa forma e não “estórias” aponta
para a natureza epistemológica desse gênero narrativo e dos saberes indígenas, quebrando
uma concepção “ocidentalocêntrica” que põe culturas ágrafas em uma escala de valoração
inferior.
Como mantenedor de uma tradição, o exercício da contação vai desempenhar papel
vital, uma vez que constitui a principal forma de transmissão dos valores e dos saberes dos
povos indígenas: “Preste bastante atenção e, quando for grande, conte para os seus filhos o
que eu agora vou lhe contar. É verdade. Ouvi de meu pai, um caboclo velho, muitas
histórias...” (GRAÚNA, 2010, p. 11). Importante ressaltar que essa experiência de contação
pode ganhar dimensões que extrapolem o limite do texto impresso, uma vez que observamos
na trama uma avó contando histórias ouvidas de seu pai para seus netos e podemos ter uma
pessoa – mãe, professora etc. – lendo essa narrativa para um público infantil, o que
possibilitará uma experiência similar à dos curumins da narrativa.
2 Ñanderu: de origem guarani, “Grande Espírito”, “Nosso Pai”.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 708
Experiência de contação que, aliás, vem a fazer parte de um dado cultural brasileiro,
marcado principalmente pela presença de elementos indígenas e africanos. Autores como Luís
da Câmara Cascudo 3 apontam para a existência, em certos setores da sociedade, da cultura da
contação de histórias, dos mais variados gêneros e assuntos, e essa prática de contar histórias,
verídicas ou fictícias, narrar fatos acontecidos ou reinterpretados, contar anedotas etc., para
além da tradição herdada de Portugal, seria exercitada através de manifestações como a
poranduba4 indígena e a figura do akpalô
5 afro-brasileiro.
O recurso oferecido pelo exercício da contação de histórias, agregado ao conteúdo que
a narrativa traz proporciona uma experiência mais concreta de assimilação de uma auto-
história6 dos povos indígenas, sem a intermediação de um olhar não indígena. Numa sala de
aula de jovens índios, a inserção didática de obras como Criaturas de Ñanderu poderia gerar
uma cadeia de sentidos e identificações mais marcante, uma vez que eles estariam
experienciando a problemática identitária de ser “índio” em um país como o Brasil, a exemplo
do que é retratado na obra de Graça Graúna. A cunhã da história contada pela avó aos seus
netos cresce interiormente, adquirindo também uma plumagem negra, vivendo ora como
mulher ora como pássaro, somente sendo vista pelos seus parentes e pelas aves. Essa
maturidade lhe permite enfrentar as armadilhas da civilização não-indígena:
Diz a lenda que ela foi muitas vezes atraída pelas belas mentiras da cidade grande.
Por isso, essa criatura às vezes aparece com seu canto engaiolado. Mas, para não
morrer de tristeza, voa no pensamento até onde estão as suas crias e os seus parentes.
No pensamento, ela mergulha nos rios e gralha forte um canto que tem a força da
flecha que atinge certeiro o coração dos malfeitores. (GRAÚNA, 2010, p. 27)
Percebe-se, portanto, um olhar sobre a tradição, a cultura e a resistência indígena
isento de estereótipos, uma vez que parte de uma perspectiva formulada pelos próprios
indígenas. Estaríamos falando, então, de uma literatura de expressão indígena escrita em
língua portuguesa, ocorrendo que muitos dos sentidos presentes na narrativa talvez não sejam
de fácil apreensão para um não indígena, já que “Só quem tem a ciência do índio pode
entender” (GRAÚNA, 2010, p. 28). Dessa maneira, as próprias características da contação de
histórias e da estrutura das narrativas indígenas teriam o potencial não apenas de transmitir
3 Ver “Literatura Oral no Brasil”. 4 Narrativa indígena que consistia no relato dos eventos vivenciados por cada membro da família. Ver
CASCUDO (2006). 5 Contador ou contadora de histórias que geralmente andava de localidade em localidade exercendo sua função
durante o período escravocrata. 6 Para Graça Graúna, a ideia de auto-história poderia ser interpretada como “um acorar-se nas raízes próprias do
seu povo para se reconhecer sujeito da história, da própria história...” (GRAÚNA, 2013, p. 135)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 709
pontos de vista e conhecimentos, mas de deixar ocultos determinados segredos a quem não
desenvolva uma sensibilidade própria para delas extrair toda uma particular carga semântica.
Já há algum tempo se faz emergente uma produção de autores indígenas que, à
semelhança de Graça Graúna, põe em evidência questões como identidade, tradição e auto-
história. Nomes como o da própria Graça, Olívio Jekupé, Daniel Munduruku, Eliane
Potiguara, dentre outros, não só produzem trabalhos com características em comum, como
também se organizam em torno de publicações, eventos, pesquisas, sites etc., caminhando
para consubstanciar cada vez mais uma Literatura Indígena no Brasil.
Nesse sentido, tal experiência
configura um movimento literário, na medida em que pode ser observado nos seus
aspectos coerentes e sistemáticos, como um grande texto que se dá a ler. Seus
escritores representam uma população de cerca de 350.000 indivíduos [...] um
movimento [...] intencionalmente produzido pelas lideranças intelectuais, e
professores indígenas e por intelectuais e professores “brancos” que têm claramente
se posicionado a favor da emancipação dos povos autóctones. (ALMEIDA, 1999, p.
13-17)
Fenômeno semelhante é verificado com o segmento afro-descendente. Referida como
um conceito provisório, fluido e em permanente expansão, a chamada Literatura Afro-
brasileira pressupõe, por parte de quem a movimenta, a tomada de outros lugares de fala que
remetem à condição sócio-histórica do afro-descendente no Brasil, contemplando temática,
linguística e ideologicamente seu percurso desde a condição socioeconômica na qual foi
introduzido e mantido por muito tempo no país até sua imensa contribuição no processo de
formação da nação em vários aspectos.
Esse é o caso de Inaldete Pinheiro de Andrade. Natural de Parnamirim, Rio Grande do
Norte, mas radicada no Estado de Pernambuco, graduou-se em Serviço Social e atuou com
destaque no Movimento Negro desde a sua fundação. Empenhada na defesa do meio
ambiente, desenvolveu atividades em prol dos baobás do Estado pernambucano, fato que lhe
rendeu o prêmio Zumbi dos Palmares. Em muitos de seus trabalhos de ficção e de seus
ensaios acadêmicos tematiza a herança ancestral africana.
O conto O Be-a-bá do Baobá se passa em uma tabanca 7 na qual o homem mais velho,
detentor da sabedoria ancestral reúne os mais jovens em um círculo para narrar-lhes a
trajetória do povo africano trazido à força para um novo mundo. Sua narrativa destacará toda
a resistência diante dos revezes da escravidão: “Bem no meio da tabanca há um Baobá. Entre
7 Aldeia, povoado.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 710
suas raízes o Homem-Grande vem sentar-se. O Baobá e o Homem-Grande são as criaturas
mais velhas da tabanca.” (ANDRADE, 2005, p. 29).
Assim como a avó indígena de Criaturas de Ñanderu, o Homem-Grande detém um
conhecimento que lhe foi transmitido pelos mais antigos, tendo na oralidade o principal
veículo de transmissão: “O Homem-Grande vem da geração de outros homens sábios que
sempre viveram ali, conheceram todas as histórias e as foram contando até chegar a este
Homem-Grande.” (ANDRADE, 2005, p. 29). Isto aproximaria o trabalho de Inaldete
Pinheiro e Graça Graúna de uma tradição griótica 8, ou, se quisermos tomar como apoio a
perspectiva do crítico Salvato Trigo ao tratar das relações entre oralidade e escritura:
situa-o no caminho de um griotismo literário, por estabelecer um vínculo entre a
tradição oral dos contadores e contadoras de histórias e sua atualização e reinvenção
pela escrita, encontrando na ativação da memória e no motor da imaginação
elementos mediadores dessa continuidade. (QUEIROZ, 2007, p. 153).
A sequência da narrativa apresenta a invasão da tabanca por “uns homens de cor de
pele diferente, muito bem armados (...) avançarem sobre as pessoas que iam para a plantação,
acorrentando-as e levando-as para fora dali.” (ANDRADE, 2005, p. 29). Desse modo, o conto
é permeado pela história, diáspora e culturas dos povos africanos, desde suas origens até o
Brasil. Inaldete Pinheiro de Andrade alude à resistência das culturas de matriz africana no país
valendo-se simbolicamente do baobá, árvore que sobreviveu à violência do processo
colonizador, enraizou-se e permaneceu viva e forte.
Muitos sóis, muitas luas se passaram. A criança viu a primeira semente brotar da
terra e a planta foi crescendo, crescendo, ficou maior do que a criança, maior do que
o Homem-Grande: a criança viu nascer um lindo Baobá. Outras sementes brotaram e
outros Baobás cresceram e o povo que foi vendido, fugia e ia para as matas e se
juntava e se juntava à criança, iniciando ali uma vida como era na sua terra – sem
dono e sem senhor, o resultado do trabalho divido por todos. Eles chamaram este
lugar de quilombo. (ANDRADE, 2005, p. 30)
O conto de Inaldete Pinheiro ressalta o importante papel de uma memória que, apesar
do processo de apagamento, necessita ser preservada para que “onde for plantado um Baobá o
seu povo viva sempre” (ANDRADE, 2005, p. 31). Papel de preservação da memória que o
“Homem Grande”, representante da sabedoria ancestral incorporada ao exercício griótico,
desempenha no conto ao relatar para as crianças “as histórias que ouviu dos mais velhos ou as
8 Expressão que remete a griot, termo difundido a partir da África de colonização francesa e que designaria,
genericamente, o artista especializado em perpetuar a memória de sua coletividade por meio de um exercício
performático que envolve a contação de histórias, a gestualidade, a voz, o corpo e também a utilização de outros
elementos, como os instrumentos musicais.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 711
histórias que ele assistiu” (idem, 2005, p. 29). A própria autora, aliás, se encarrega de assumir
esse papel multiplicador no âmbito social e educacional por intermédio de sua obra ficcional e
de sua ação pedagógica.
Dessa forma, Inaldete Pinheiro, tal como Graça Graúna no tocante à questão indígena,
também oferece uma referência positiva para a construção e fortalecimento da identidade e
auto-estima da criança negra, fato, que segundo a autora 9, não é recorrente nas narrativas
brasileiras que tematizam ou contam com a presença de personagens afro-descendentes 10
. À
semelhança da narrativa apresentada por Graça Graúna, no conto de Inaldete Pinheiro o
exercício da contação de histórias aparece como importante ferramenta de preservação da
tradição, do conhecimento e da memória afro-descendente, constituindo por sua vez um meio
de resistência à secular violência física e simbólica dispensada aos negros. Além do mais, a
“ênfase na ancestralidade sugere uma força enunciativa com respeito ao ato de narrar como
instrumento de preservação da memória.” (GRAÚNA, 2013, p. 100), de tal forme que, “a
história/memória dos povos excluídos se faz presente na [...] contação de histórias”
(GRAÚNA, 2013, p. 171). Emerge das narrativas, portanto, um discurso afirmativo, de
requalificação étnica e histórica engendrado pelos próprios representantes das alteridades em
questão.
Referências
ALMEIDA, M. Inês de. Ensaios sobre a Literatura Indígena Contemporânea no Brasil. Tese
de Doutorado em Comunicação e Semiótica. São Paulo: PUC, 1999.
ANDRADE, Inaldete Pinheiro de. “O Be-a-bá do Baobá”. In: In: Revista Palmares Ano 1 -
Número 1 Agosto 2005.
________. Racismo e Anti-Racismo na Literatura Infanto-Juvenil. Recife: Etnia Produção
Editorial, 2001.
CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura Oral no Brasil. 2 ed. São Paulo: Global, 2006.
________. Vaqueiros e Cantadores. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
9 Ver “Racismo e Anti-Racismo na Literatura Infanto-Juvenil”. 10 Nesse sentido, já existem trabalhos que catalogam a produção literária voltada para o público infanto-juvenil,
visando perceber a reação do mercado editorial brasileiro diante das leis 10.639 e 11.645, além de fornecer
alguma orientação para a inserção dessas literaturas no âmbito escolar. Trabalhos que culminaram em
publicações como “Índios e Negros na Literatura Infantil/Juvenil Brasileira (catálogo de obras)”, coordenada
pela Professora Ana Cristina Marinho e desenvolvida na Universidade Federal da Paraíba.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 712
CAVIGNAC, Julie. “Índios, negros e caboclos: identidades e fronteiras étnicas em
perspectiva. O caso do Rio Grande do Norte”. In: CARVALHO, Maria do Rosário. EDWIN,
Reesink. CAVIGNAC, Julie. (org.). Negros no mundo dos índios: imagens, reflexos,
alteridades. Natal: EDUFRN, 2011.
________. A etnicidade encoberta: “Índios” e “Negros” no Rio Grande do Norte. In:
MNEME Revista de Humanidades, v. 4 – nº 8, abril-setembro de 2003. Caicó/RN:
Departamento de História e Geografia da UFRN, disponível em:
http://www.cerescaico.ufrn.br/mneme/pdf/mneme08/001-p.pdf, acessado em 08 de fevereiro
de 2015.
GRAÚNA, Graça. Contrapontos da Literatura Indígena Contemporânea no Brasil. Belo
Horizonte: Mazza Edições, 2013.
________. Criaturas de Ñanderu. Barueri/SP: Manole, 2010.
GURGEL, Deífilo. Romanceiro Potiguar. Natal/RN: Fundação José Augusto, 2012.
MARCOS, Eidson Miguel da S.; QUEIROZ, Amarino Oliveira de. Literatura e Etnicidade:
invisibilizadas vozes femininas na literatura potiguar contemporânea. Disponível em:
www.letras.ufmg.br/literafro, acessado em 20 de janeiro de 2015.
MARINHO, Ana Cristina. Índios e Negros na Literatura Infantil/Juvenil (catálogo de obras).
João Pessoa: Ideia, 2014.
QUEIROZ, Amarino Oliveira de. As Inscrituras do Verbo: dizibilidades performáticas da
palavra poética africana. Tese de Doutorado em Teoria da Literatura. Recife: UFPE,
PGLetras, 2007.
RIBEIRO, Esmeralda. BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos Negros Vol. 29: poemas afro-
brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 2006.
TRIGO, Salvato. “Uanhenga Xitu – da oralidade à escritura”. In: Cadernos de Literatura, n
12. Coimbra: Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra, 1982, pp. 29-33.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 713
O MICROCONTO: UM PRODUTO DA ROMANCIZAÇÃO? [Voltar para Sumário]
Elias Coelho da Silva (UFPB)
1. Introdução
Como já lembrava Fiorin (2006, p. 60), pelo valor heurístico que dela desabrocha, “a
obra Bakthiniana sofreu toda sorte de vicissitude” e cada um fez dela a leitura que melhor
explique seu objeto ou que sirva melhor a seus propósitos. Isso não significa que as diferentes
leituras feitas até então sejam impróprias, ao contrário: cada gesto de leitura revela sempre
mais a abrangência explicativa dessa obra. Portanto, o que será discutido aqui torna-se mais
um gesto que, apoiando-se nos ensinamentos do Círculo de Bakthin, busca esboçar uma
discussão que está ainda em fase embrionária, qual seja a romancização dos gêneros do
discurso na era digital.
Se a concepção de gênero do discurso tem rendido grandes discursões nas mais
diferentes áreas do conhecimento, em especial nas ciências humanas e sociais, a de
romancização ainda parece estar mais vinculada à literatura, no trato das relações de
linguagem inerentes aos gêneros literários, com ênfase no romance e no conto. Aqui, busca-se
observá-la pelo viés da linguística, de um ângulo enunciativo, o que implica antes de qualquer
coisa que a romancização é compreendida como um processo de relações de contato entre
gêneros.
Desta feita, o objetivo desse trabalho é refletir sobre o processo de romancização dos
gêneros do discurso após o advento da internet. Esse espaço virtual deu vida a novos gêneros
que por certo podem estar influenciando os que já existiam. Como base teórica para essa
reflexão buscou-se apoio também nas releituras feitas por Ermerso e Morson (2008) das obras
do Círculo, em especial abordagem da romancização.
Por ser um trabalho que ainda encontra-se em fase embrionária, não se pretende aqui
chegar a conclusões sobre o assunto, mas apontar caminhos para o reflexão em torno desse
Nas fronteiras da linguagem ǀ 714
fenômeno nos dias atuais, tanto com relação aos gêneros literários quanto aos de outros
campos de atividade humana.
2. O gênero do discurso e seu caráter dialógico
A noção de gênero não é nova, se sabe. Desde a Grécia Antiga essa noção vem sendo
tratada pelos estudiosos da linguagem seja na literatura, na retórica ou na filosofia da
linguagem. Segundo Fiorin (2006, p. 61), essa noção oscila entre períodos que compreendem
os gêneros como formas rígidas e aqueles em que as formas são mais livres.
Mas a ideia de forma está sempre presente. Os gêneros eram compreendidos como
tipos de textos com “um rol de propriedades formais, fixas e imutáveis, adquiriam um caráter
normativas” (FIORIN, 2006, p. 60). Na Rússia, já no século XX, a expressão mais acabada
desse olhar sobre a forma teve sua representação mais significativa com os chamados
Formalistas Russos, que dominavam o cenário dos estudos literários e linguísticos do início
daquele século. É a essa percepção dos gêneros como estabilidade normativa dos textos que o
Círculo da Bakthin contrapunha. Para chegar a tratar da temática da romancização, é
necessário entender em que consistia a contraposição do Círculo em ralação aos Formalistas.
Em “O método formal nos estudos literários” Medvedev destaca cinco características
dos estudos formalistas em ralação aos gêneros. A primeira era o de conceber o tema de uma
obra como sendo constituído de suas parte em particular, ou seja, o tema global seria a soma
das parte menores. Dessa forma, para entender a obra como um todo era necessário o estudo
dos elementos menores e a soma desses elementos levariam necessariamente ao todo.
De acordo com esse posicionamento, portanto, o todo da obra, ou o todo de um
gênero, dependia dos elementos menores, mas o oposto não acontecia, ou seja, o todo era
determinado por suas partes e não o contrário.
A segunda, seria o reconhecimento de que as partes são de natureza linguística, e
assim sendo poderiam ser subdivididas em elementos menores. Dessa forma, um texto divide-
se em parágrafos, que se subdivide em períodos, estes em orações, em palavras e assim por
diante. A conclusão lógica leva a entender que o gênero podia ser subdividido sem perda
significativa de sentido, na medida em que a análise do todo dependia da observação de suas
partes.
O próximo passo leva inevitavelmente a terceira característica: o gênero não passa de
uma forma de desdobramentos de uma hierarquia de dispositivos, que iria do menor para o
maior. O gênero, portanto, não passaria de um conjunto de elementos hierarquicamente
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 715
sobrepostos que comporiam um todo significativo. Por outro lado, os próprios gêneros seriam
hierarquicamente constituídos. Ao logo da história alguns gêneros se sobrepunha uns aos
outros, pois as necessidades humanas, em determinado momento histórico, faz com que
alguns gêneros tornem-se obsoletos ou marginais enquanto outros surgiriam para atender as
reais necessidades da comunicação e expressão humana.
Por outro lado, os próprios gêneros seriam hierarquicamente constituídos. Ao logo da
história alguns gêneros se sobrepunha uns aos outros, pois as necessidades humanas, em
determinado momento histórico, faz com que alguns gêneros tornem-se obsoletos ou
marginais enquanto outros surgiriam para atender as reais necessidades da comunicação e
expressão humana. Esta seria a quarta característica: a substituição de hierarquias. Na história
literária hierarquias vão ficando obsoletas e dão espaço a outras. Assim, a explicação do
declínio do Romantismo se daria pela ascensão do Realismo. A mesma lógica se daria com os
gêneros, o surgimento de novos gêneros tornavam o antigos obsoletos e estes caiam em
desuso. Nessa linha de pensamento, atualmente, se poderia conjecturar que a carta tornou-se
obsoleta ou marginal com o surgimento do e-mail.
Segundo Ermerson e Morson (2008, p. 288) Medviédev se opõe aos Formalistas por
abordarem os gêneros “das partes para o todo e de baixo para cima”, ou seja, primeiro vem a
abordagem dos elementos da linguagem, “significando isso que um complexo desses
elementos, o gênero, veio necessariamente depois” (ERMERSON E MORSON, 2008, p.
288). Ora, para Medviédev o gênero é um fato social, que constitui-se na sua orientação para
o público, cada elemento do gênero seria determinado por essa orientação. Portanto, é o todo
da obra que determina suas partes e não o contrário. Por esse motivo o autor dirá que
o tema realiza-se não por meio da frase, nem do período e nem por meio do conjunto
de orações e períodos, mas por meio da novela, do romance, da peça lírica, do conto
maravilhoso, e esses tipos de gênero, certamente, não obedecem a nenhuma
determinação sintática. (MEDVIÉDEV, 2012, p. 197).
O que o autor ressalta é a determinação do gênero sobre o sentido. Assim, o sentido de
cada elemento do enunciado, desde a palavra até o texto como um todo, é determinado pelo
gênero.
Em seu artigo O gênero do discurso, Bakthin retoma essa discussão, mas agora
objetando a Linguística, que também focava os elementos linguísticos como ponto de partida,
e mais, como unidade de sentido e de comunicação. O autor faz uma distinções entre as
Nas fronteiras da linguagem ǀ 716
unidades da língua e a unidade da comunicação discursiva, contrapondo as orações, enquanto
unidades da língua, aos enunciados, unidades da comunicação.
O enunciado tem características próprias que o distingue das unidades da língua.
Segundo Bakthin (2011) o enunciado é delimitado pela alternância dos sujeitos do discurso.
Desde o início de sua produção, o enunciado constitui-se pelo seu direcionamento para o
interlocutor que espera que o locutor conclua seu dizer para iniciar um novo enunciado. Ele
tem contato direto com a realidade, pois é produto da interação humana e requer sempre
compreensão e resposta. Só há compreensão porque o enunciado é pleno de sentido. Dessa
forma, o enunciado é o elemento que promove a interação, ele está tanto direcionado para o
ouvinte quanto para outros enunciados, na medida em que ele é sempre resposta aos
enunciados dos outros sujeitos.
Em direção contrária, a oração, enquanto unidade da língua carece de todas essas
propriedades, segundo Bakthin (2011, p. 278):
Não é delimitada por ambos os lados pelos sujeitos do discurso, nem tem contato
imediato com a realidade [...] nem com enunciados alheios, não dispõe de plenitude
semântica nem capacidade de determinar a posição responsiva do outro falante, isto
é, de suscitar resposta. A oração enquanto unidade da língua tem natureza
gramatical, fronteiras gramaticais, lei gramatical e unidade.
Tendo concebido os gêneros como enunciados relativamente estáveis, Bakthin (2011,
p. 279) concluirá que “as obras especializadas dos diferentes gêneros científicos e artísticos, a
despeito de todas as diferenças entre elas e as réplicas do diálogo, também são, pela sua
própria natureza, unidades da comunicação discursiva”.
Não por acaso, o autor assimila os gêneros às réplicas do diálogo, toda a concepção de
linguagem que ele elabora é baseada na metáfora do diálogo. Esta metáfora corresponde a um
grande diálogo universal, no qual todo gênero está inserido enquanto enunciado, posto que
todo enunciado responde a outro, todo gênero surge em resposta a outros gêneros. Não
importando se uma simples réplica do diálogo face a face que exige resposta imediata ou uma
grande obra literária, ambos, enquanto gênero, cumprem esse fim:
A obra é um elo na cadeia de comunicação discursiva: como a réplica do diálogo,
está vinculada a outra obras-enunciados: com aquelas as quais ela responde, e com
aquelas que lhe respondem; ao mesmo tempo, à semelhança da réplica do diálogo,
ela está separada daquelas pelos limites absolutos da alternância dos sujeitos do
discurso (BAKTHIN, 2011, P. 279).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 717
Ora, se o gênero tem características diferente de suas partes e se estas são
determinadas por aquele, seria necessário um olhar de cima para baixo, ou melhor, do gênero
para os elementos linguísticos, na medida em que as partes que o integram, se olhadas
isoladamente, não tem relação direta com a realidade, já os gêneros estão em constante
relação dialógica com outros gêneros, como se pode perceber nas palavras de Bakthin. Ou
seja, as relações dialógicas são inerentes aos gêneros e não aos elementos da língua, em
sentido estrito. Se esses elementos integram um gênero, seu sentido é determinado pelo
gênero e estão direcionado para a resposta, para o diálogo.
Essas relações dialógicas entre gêneros, no entanto, podem se dar de diferentes
formas. A seguir, serão abordadas duas dessas formas de diálogo entre gêneros, a
intergenericidade e a romancização, afim de buscar uma distinção entre elas.
3. Gêneros ingênuos e polêmicos: o processo de romancização
Para Bakthin (2011) existe uma variedade infinita de gêneros, pois eles são fruto da
inesgotável atividade humana nos mais diversos campos de atividade (saúde, educação,
política, religião, jornalismo etc.) e em cada campo “é integral o repertório dos gêneros do
discurso, que cresce e se diferencia a medida que se desenvolve e se complexifica um
determinado campo” (BAKTHIN, 2011, p. 262).
Essa variedade de gêneros sempre foi conhecida, desde a antiguidade, segundo o
autor. No entanto, fora negligenciada e dela se fez sempre um recorte, especialmente literário,
retórico ou linguístico.
Do ponto de vista literário estudava-se as diferentes relações entre os gêneros que o
compunha, como a epopeia, o poema, o drama, a novela, o romance etc. Segundo Bakthin
(2011) praticamente não se levava em consideração as diferenças linguísticas gerais existente
entre os diferentes enunciados (gêneros).
Já a retórica estudava os gêneros levando em consideração as especificidades
linguísticas e a sua relação com o auditório. O estudo era mais completo e complexo, mas
também aí se restringia aos gêneros jurídicos e políticos. Por outro lado, a Linguística Geral
dava atenção aos aspectos linguísticos do enunciado, mas abordava apenas os gêneros orais e
em aspectos estritamente linguísticos, segundo o estudioso russo (idem, p. 263). Por isso, para
ele, até o início do século vinte, a questão do gênero ainda não havia sido verdadeiramente
colocada.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 718
Bakthin (2011) conclui, portanto, que esse fato levou ao negligenciamento da grande
variedade dos gêneros, o que impediu o conhecimento da verdadeira natureza do enunciado.
Nesse ponto, ressalta o autor, “é de especial importância atentar para diferença essencial entre
os gêneros discursivos primários (simples) e os secundários (complexos)” (BAKTHIN, 2011,
p. 263). Os gêneros secundários seriam aqueles que são originários de atividades culturais
mais elaboradas, desenvolvidas e organizadas. É o caso do romance e do poema, na literatura;
do artigos científicos, no campo acadêmico; da propaganda e publicidade, no campo
publicitário.
Já os gêneros primários se formariam nas relações cotidianas mais fortuitas e
imediatas, geralmente são orais (mas nem sempre: as cartas familiar e amorosa são escritas,
por exemplo).
O que importa nesse trabalho é mais especificamente as relações entre essas duas
categorias genéricas. Para Bakthin (2011, p. 263), no processo de sua formação, os gêneros
secundários “incorporam e reelaboram os gêneros primários”. Acredita-se aqui que essa é
mais uma relação dialógica entre gêneros, nesse caso, uma relação de apropriação de um
gênero por outro. Um romance, por exemplo, pode incorporar uma carta em seu interior, sem
que com isso deixe de ser um romance ou a carta deixe de ser carta. Mas o autor adverte que
quando um gênero primário é incorporado pelo secundário ele perde o seu contato direto com
a realidade e passa a ser parte integral do secundário e o contato com a realidade passa a ser
mediado por este.
Essa relação dialógica entre os gêneros primários ganhou uma nova abordagem ao
longo do tempo. Alguns estudiosos a denominaram de intergenericidade. Mascuschi (2008)
observou que essa relação não se dá apenas entre gêneros primários e secundários, os próprios
gêneros secundários se apropriam uns dos outros, que aliás, segundo o autor, é um fato muito
comum nos dias de hoje. Para esse autor, a intergenericidade é a “hibridização ou mescla de
gêneros em que um gênero assume a função de outro” (MARCUSCHI, 2008, p. 165). A
naturalidade desse caso se dá, segundo ele, porque “os textos [e o gêneros] convivem em total
interação” (idem, p. 166), ou em diálogo constante. Segue abaixo o exemplo de
integenericidade:
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 719
Publicidade do Ministério da Saúde contra o uso do cigarro
Nessa publicidade, nota-se a apropriação da tirinha pelo gênero publicitário. Como
esclarece Bakthin (2011), a tirinha passa a fazer parte da propaganda e só tem contato com a
realidade por meio desta, no entanto a propaganda não perde sua funcionalidade. Na verdade,
a função parece ser ainda mais enfatizada e ganha força sua capacidade comunicativa. No
caso da tirinha que foi apropriada, Marcuschi (2008, p. 169) dirá que temos aí o caso de “um
texto que não perde sua função, mas assume um novo lugar, ou seja, migra [...] de um
domínio [...] para outro” sem deixar de ser o que é.
Vemos que no caso da intergenericidade, o gênero continua sendo o mesmo apesar de
apropriar-se ou ser apropriado por outro.
Outra interpretação sobre a interação entre os gêneros é dada por Ermerson e Morson
(2008). Os autores fazem um distinção entre gêneros ingênuos e gêneros polêmicos. Os
autores, baseados em Medviédev, concebem o gênero como “um modo específico e visualizar
uma dada parte da realidade” (ERMERSON E MORSON, 2008, p. 291), ou seja,
compreendemos a realidade por meio do gênero, não há apreendemos e depois usamos os
gêneros para expressá-la. Dessa forma, “a medida que aprendemos novos gêneros,
aprendemos a ver diferentemente e expandimos nosso repertório de visão” (ERMERSON E
MORSON, 2008, p. 292).
Por esse motivo, quanto mais se complexifica as experiências humanas, quanto mais
as culturas mudam, novos gêneros surgem. Isso leva a crer que os novos gêneros refletem as
Nas fronteiras da linguagem ǀ 720
mudanças sociais. Nas palavras de Ermerson e Morson (2008, p. 293), “tais mudanças levam
a novas experiências e a diferentes gêneros do discurso”.
Por outro lado, um gênero pode influenciar a forma como o outro enxerga uma dada
realidade. Segundo os autores, alguns gêneros só percebem uma forma de conceber o mundo
ou uma dada parte dele, sendo considerados ingênuos. Outros, como o romance, são capazes
de complexificar essa realidade. Enquanto os gêneros ingênuos tende a forças centrípetas, que
o moldam e o enformam, o romance é naturalmente apreciador das forças centrífugas, sujeito
a diferentes entonações e mudança. Os romances seriam “mais cônscios da multiplicidade de
linguagens, esquemas conceptuais e experiências socais; onde os outros poderiam profetizar,
o romance limita-se a conjecturar” (ERMERSON E MORSON, 2008, p. 292). Isso não
significa que os outros gêneros também não possa levar os gêneros rivais a tornarem-se
polêmicos, pelo contrário, os autores enfatizam que que isso acontece, mas que os romances e
os gêneros correlatos o fazem melhor. Por isso, denominam esse processo de reacentuação de
um gênero ingênuo em polêmico como a romancização do gênero. Assim, os autores deixam
claro que após ser romacizado, um gênero muda sua forma de ver a realidade, e acrescentam
que
“depois de perder sua ingenuidade, o gênero pode ainda reafirmar os seus valores
iniciais, continuar a empregar o seu esquema conceptual e voltar a falar sua
linguagem favorita, mas mesmo que o faça terá, não obstante, mudado
(ERMERSON E MORSON, 2008, p. 292).
Em certa medida, em alguns casos essa mudança não chega a ser total, tem-se então a
intergenericidade. Acredita-se, aqui, no entanto, que em outros, a romancização se
complexifica a tal ponto que a mudança produzida pelo contato entre gêneros chega a
produzir um novo gênero, teremos aí uma romancização total.
4. O microconto: um produto da romancização?
Para tentar demonstrar esse processo de romancização total, será analisado o caso do
microconto. Para isso, é necessário esclarecer que gêneros entraram em contato e o geraram.
O prefixo “micro” tende a levar a percepção de que esse gênero não passa de um conto muito
pequeno. A questão que se põe é: o que levaria a produção de um conto muito pequeno? A
ênfase dada pelo adverbio ao adjetivo “pequeno” não é exagero. Mas dizer que o microconto
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 721
é de fato apenas um conto pequeno é desconsiderar a sua natureza, o processo pelo qual o fez
surgir.
Esse gênero, na verdade, é fruto do contato entre os gêneros digitais, como o Twitter, e
o conto. O Twitter é uma ferramenta de comunicação, segundo o próprio criador, e não uma
rede social; assimila-se ao blog, alguns preferem entende-lo como um microblog, como
Alcântara (2013). A característica mais visível do Twitter é que nele só é permitido usar 140
caracteres para produzir um texto. Ele é, portanto, um gênero que olha o mundo de forma
sintética: nele, tudo deve ser sintetizado, resumido e expressado em poucas palavras. O
própria criador, Jack Dorsey (2011) disse em entrevista ao Estadão que “com poucas palavras
as pessoas são mais espontâneas, mais instantâneas”. Além disso, ele é fruto das mudanças
tecnológicas, oriundas da globalização dos equipamentos digitais e da popularização da
internet. Não obstante, ele é um ferramenta própria desse universo, que comporta uma
realidade baseada na informação e na velocidade.
Por outro lado, o conto é um gênero muito antigo com relação ao Twitter.
Comparando-o a forma que ele (o conto) apreende a realidade com a do romance, Ermerson e
Morson (2008) dizem que “o conto tende a ver a vida em termos essencialmente anedótico”
enquanto o romance está adaptado a descrever uma época, as características sociais e
históricas desta. Por esse motivo, os autores lembram que o que diferem o conto de um
romance não é a sua extensão, mas a forma pela qual ambos enxergam a realidade. Cada
gênero, portanto, é mais adaptado a compreender uma dada parte da realidade e da cultura que
o cerca.
É notável que a cultura minimalista já produzia textos literários muito pequenos, mas a
ascensão da internet deu forma relativamente estável ao microconto, pois apesar de não ser
definido a quantidade de caracteres a ser utilizado, alguns preferem limitar a 140 caracteres, o
que aproxima ainda mais esse gênero do Twitter. Segundo Blasina, nem todo texto pequeno é
um microconto, este tem características próprias: concisão, narratividade, totalidade (não deve
ser fragmento de outro texto, deve ser um todo significativo), um subtexto ou informação
implícita, ausência de descrição e retratar o cotidiano. Outro fator predominante é uma
surpresa final, assim como nos gêneros humorísticos, mas não para provocar humor
necessariamente, no microconto há sempre um final arrematador.
A autora ainda destaca que uma de suas características é a ligação com as novas
ferramentas de informação e comunicação, pois um dos fatores que podem determinar a
quantidade de caracteres é a possibilidade de envio por torpedos ou uma postagem no Twitter,
por exemplo. Ora, o surgimento dos gêneros digitais, que têm como característica a
Nas fronteiras da linguagem ǀ 722
velocidade da informação, a conversa espontânea e curta, gerou novas necessidade culturais e,
ao entrar em contato com o conto exigiu uma revisão em seu olhar, mas agora não se
imbricou com ele em uma apropriação intergenérica, e sim provocou uma reacentuação tão
profunda que acabou por romancizá-lo por completo, o que derivou em outro gênero, com
características própria e com sua própria forma de refletir a realidade, o microconto:
Texto 2
Disponível em https://twitter.com/microcontos/status/13857113728.
Note-se no texto acima, que é muito comum encontrar microcontos em páginas do
Twitter, não por acaso, ele se configura aí como um intercâmbio entre a ferramenta e a
narrativa. Por isso, é salutar pensar na possibilidade de esses gêneros digitais terem
romancizado o conto, operando uma grande reacentuação em sua natureza. No entanto, como
lembram Ermerson e Morson (2008, p. 318) um gênero novo não suplanta os velhos, apenas
suplementam, ampliam o repertório de gêneros.
Processo análogo pode ter acontecido com a carta pessoal e tenha derivado o e-mail.
Mas tanto um quanto outro processo ainda merece um estudo mais detalhado. Uma sugestão
seria buscar o processo que originou o e-mail, ele comporta traços da carta pessoal, mas tem
como característica fundamental a velocidade na transmissão e internet como meio de
transmissão. Qual gênero competia com a carta antes do surgimento do e-mail? É provável
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 723
que uma resposta a essa questão mostre outro processo de romancização e confirme ainda
mais o que aqui se propõe.
É importante ainda reafirmar que não se está aqui afirmando que o Twitter tenha
originado o microconto, como afirmado anteriormente, os minimalistas já produziam esse tipo
de gênero, mas que sua produção tem uma influência provável das novas tecnologias. E ainda
que o surgimento de gêneros como o Twitter pode estar provocando uma estabilização ao
menos relativa dessa nova forma de ver a realidade, altamente sintetizada e permeada de
sugestão, que é o microconto.
Não se pode negar que o conto é ponto de origem desse gênero, mas igualmente
negável é o fato de ele ter surgido, de alguma forma, de uma modificação na visão tradicional
do conto, que sugere-se aqui ter acontecido com o avanço tecnológico, em especial com o
surgimento dos gêneros digitais.
Considerações
Este artigo, como se percebe, é apenas mais um diálogo de caráter introdutório e
especulativo, não tem a pretensão de chegar a uma conclusão absoluta ou uma afirmativa
generalizadora. Apenas busca sugerir um olhar para o fenômeno da romancização dos gêneros
a partir da relação destes com as ferramentas tecnológicas provenientes da internet. Mais
especificamente as ferramentas que funcionam como gêneros do discurso.
Apesar de partir do caso ainda não conclusivo do microconto, a ideia é pensar como os
gêneros que estão surgindo nos últimos anos podem ter sido gerados a partir de processos de
romancização. É bom lembrar que gêneros mais simples em termos tecnológicos, como o fax,
pode ter levado a carta a enxergar o tempo de forma diferenciada. Com o advento e a
generalização da internet, esse contato pode ter gerado o e-mail, por exemplo.
Se tais observações, por estarem ainda em estágio embrionário, não mostra um
caminho seguro ao menos deixam pistas e trilhas a serem seguidas. Uma dessas pistas aponta
para um questionamento maior, qual seja: além das necessidades de uma determinada época,
quais os elementos formais dão origem aos gêneros? Seria o contato entre eles, que gerariam
novas formas relativamente acabadas de ver e dizer sobre o mundo? Essas são algumas
questões a serem respondidas, e sua resposta comporta estudos e espaços bem maiores que o
de um pequeno artigo científico. No entanto, ficam aqui os apontamento inicialmente
necessários a seu desdobramentos.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 724
Referências
BAKTHIN, M.M. Estética da Criação Verbal. 6ª Ed. São Paulo, 2011.
BAKTHIN, M.M. O gênero do discurso. In: Estética da Criação Verbal. 6ª Ed. São Paulo,
2011.
BLASINA, Juliana. Microconto: O valor das pequenas coisas Acessível em
http://www.jornalagora.com.br/site/content/noticias/print.php?id=4036 Acesso em
08/05/2015.
FIORIN, José Luiz de. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São
Paulo: Parábola Editorial, 2008.
MARTINS, Rodrigo. Um homem de poucas palavras. Estadão on line. São Paulo, 2009.
Disponível em <http://www.estadao.com.br/noticias/geral,um-homem-de-poucas-
palavras,1498> Acesso em 13/11/2014.
MEDVIÉDEV, Pável Nikoláievitch. O método formal nos estudos literários: introdução
crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo
Grillo. São Paulo: Contexto, 2012.
MORSON, Gary Saul; Emerson, Caryl. Mikhail Bakhtin: criação de uma prosaística.
Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Edusp, 2008
MARTINS, Rodrigo. Um homem de poucas palavras. Estadão on line. São Paulo, 2009.
Disponível em <http://www.estadao.com.br/noticias/geral,um-homem-de-poucas-
palavras,1498> Acesso em 13/11/2014.
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A DESAGREGAÇÃO HUMANA EM MAÇÃ AGRESTE, DE
RAIMUNDO CARRERO [Voltar para Sumário]
Eliene Medeiros da Costa
1 Romance e niilismo
Ao discorrer sobre o romance e sua relação com a modernidade, Claudio Magris
afirma que o gênero é a antiepopeia do desencantamento, da vida fragmentada e desagregada.
Ao dizer isso está se contrapondo ao pensamento de Hegel que defendia o romance como
sendo a “epopeia moderna”.
Para Magris (2009) o moderno surge marcado pela ausência de um código ético e
estético, um fundamento que atribua sentido e unidade à multiplicidade da vida, parece um
acervo sem conexão e articulação de objetos indiferentes. E é nesse contexto que surge o
romance moderno, incorporando essa desarticulação. Por isso, torna-se o gênero por
excelência na modernidade e contemporaneidade, uma vez que nasce em meio à
desarticulação do tempo moderno e por esse motivo é capaz não só de representá-lo, mas de
criticá-lo. Desenvolve-se em meio a um mundo desagregado e caracteriza-se como um
fragmento da desagregação da épica antiga, no entanto parece unificar a totalidade da vida
que o mundo moderno tende a despedaçar. É capaz de celebrar ideais, narrar paixões, debater
questões sociais, informar, fantasiar e produzir conhecimento. Muitos heróis/personagens
presentes nos romances representam a crise da modernidade. Uma das temáticas que segundo
Magris (2009) contribuíram para o desenvolvimento do romance foi o niilismo:
Em Dostoiévski, em Tolstói e em tantos outros grandes autores do romance (ainda
que não apenas do romance, obviamente, mas da literatura em geral) este último é o
cenário do advento do niilismo, fato da modernidade; de seu triunfo, de sua
catástrofe e da resistência a ele. (MAGRIS, 2009, p. 1025)
Caracterizado como o fim dos valores e dos sistemas de valores, o niilismo, segundo
Magris (2009), é fundamental para a existência do romance, assim como o romance tornou-se
um espaço onde o niilismo pode se desenvolver. Sobre o niilismo, Amaral (2011) afirma:
Nas fronteiras da linguagem ǀ 726
o niilismo é descrito e comentado por Nietzsche como um movimento de negação
da vida, um processo que move a história do ocidente, à medida que o homem
experimenta o vazio de sentido como consequência da desvalorização dos valores
supremos, os quais se dispunham, in phisiologicis, como exigências para a
conservação “de uma determinada espécie de vida” (AMARAL, 2011; p. 110).
Dessa forma, o niilismo pode ser definido como uma crise de valores e tem como um
de seus preceitos não aceitar as normas impostas pela sociedade. O personagem literário, tal
qual o homem que representa, ao abandonar seus valores supremos e seus heróis como força
representativa, como acontecia em épocas anteriores, está diante do nada. Isso gera um
estranhamento em relação a sua condição de existência no mundo, já que o ser humano já não
coincide consigo mesmo, uma vez que o mundo exterior já não o representa mais. Isso o
coloca frente a um universo de desilusão em que
a força do espírito pode estar fatigada, esgotada, de modo que os fins e os valores de
até então são inadequados e não encontram mais nenhum crédito, de modo que a
síntese dos valores e dos fins [...] dissolve-se, de maneira que os valores fazem
guerra, isoladamente, uns aos outros: esfacelamento -, modo que tudo o que
refresca,cura, apazigua, entorpece, vem para o primeiro plano, sob diversos
disfarces: religioso, ou moral, ou político, ou estético etc. (NIETZSCHE, 2008; p.
37; apud AMARAL, 2011; p. 111).
Na compreensão da dissolução desses valores supremos se faz necessário entender o
conceito de décadence. A qual é expressa como uma crise de valores, nesse contexto, o
niilismo não se constitui como a causa dessa degeneração, mas como sua lógica, já que a
décadence é conduzida pela ‘vontade do Nada’. Ela é definida por Giacoia (2000) como:
Processo de degeneração, dissolução anárquica de uma concreção vital, cuja
estrutura e coesão consiste na hierarquia das forças que a constituem. Uma formação
orgânica decadente caracteriza-se, pois, como uma unidade em desagregação, cujas
partes tendem à anarquia dos elementos‟, à dissolução da totalidade que outrora
constituíam (GIACOIA, 2000; p. 21; apud AMARAL, 2011; p. 112).
Nesse sentido, o vício, a doença, a libertinagem, o pessimismo são consequências da
decadência. Características que se fazem presentes em diversas obras literárias
contemporâneas. É o caso da obra Maçã agreste do escritor pernambucano Raimundo
Carrero.
2. Desagregação do humano em Maçã agreste
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 727
A epígrafe inicial do romance Maçã agreste já nos remete a um mundo desprovido de
valores. Trata-se de um curto enunciado de autoria de Dostoiévski que diz o seguinte:
“Convenha, é uma desgraça para uma época não saber mais a quem respeitar. Não é mesmo?”
E é nesse universo de “desrespeito” que somos inseridos ao começarmos a ler o romance.
Universo que começa a ser tecido em 1989 e se perpetua pelas demais obras que se seguiram.
Somos apresentados a personagens que só poderemos conhecer melhor em outras obras. Ao
adentrarmos no romance nos encontramos com Dolores, Ernesto Cavalcante, Jeremias,
Raquel, Sofia e Alvarenga. Além disso, somos remetidos a três diferentes espaços físicos: o
engenho pertencente à família de Ernesto, resquício da cultura canavieira, o qual obviamente
está dando seus últimos suspiros e é rapidamente devastado pela imprudência e inexperiência
do herdeiro, Ernesto; um casarão, situado na Praça Chora Menino, em Recife; e uma zona de
baixo meretrício, onde moram Jeremias, Raquel, Sofia e Alvarenga.
Usamos o termo desagregação aqui como sinônimo de decadência. A desagregação
humana é marcada, na obra, pela ausência de valores, especialmente na família formada por
Ernesto e Dolores, os pais, e Jeremias e Raquel, seus filhos. Filho de senhor de engenho,
Ernesto abusava de sua lascívia com as negras, antes e depois do casamento com Dolores.
Conhece a jovem em Recife quando vai estudar Direito e resolve casar-se com ela num
momento de desespero, uma vez que no momento que percebe que não tem habilidades de
seguir a carreira jurídica, nem casar com uma moça da alta sociedade decide se suicidar.
Dolores, secretária da faculdade onde ele estudara, pobre, pertencera, na época, ao ciclo de
amizades do rapaz e por um in-feliz acaso o encontra num mercado no dia em que ele vai
comprar comida para morrer de “barriga cheia”. Ao encontrá-la ele resolve abandonar a ideia
da morte e casar-se com a moça. Desse casamento nascem Jeremias e Raquel. O pai mantém
durante muito tempo uma relação incestuosa com a filha, fato que começa num armazém do
Engenho Estrela e se perpetua pelo casarão da Chora Menino. Quando se tornam adultos, os
filhos resolvem abandonar o casarão no intuito de se enveredarem por um universo
degradante: Raquel resolve ser prostituta; Jeremias, em princípio sai da casa dos pais para
tocar saxofone em um cabaré, depois se torna o líder da seita Os soldados da Pátria por
Cristo, um grupo que se reveza entre momentos de orações e momentos de todo tipo de crime.
Com a saída dos filhos, Dolores mata o marido.
Este romance mantém uma espécie de continuidade com as obras escritas
posteriormente, pois personagens apresentados nele vão aparecer, muitas vezes,
completamente ressignificados em obras escritas posteriormente. De forma, que os textos
mantêm uma espécie de intratextualidade, especificada num diálogo recorrente entre elas,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 728
onde algumas coisas que ficam obscuras numa obra são elucidadas em outra. Nesse sentido,
destacam-se, A minha alma é irmã de deus, Seria uma sombria noite secreta, O amor não tem
bons sentimentos e Tangolomango: ritual das paixões deste mundo. Tomamos como exemplo
o caso do assassinato de Ernesto, que em Maçã agreste fica meio obscuro, sendo esclarecido
melhor em O amor não tem bons sentimentos. Onde fica esclarecido que Dolores assassinou o
marido. Em O amor não tem bons sentimentos, encontramos Matheus, que fora criado com
uma tia, Guilhermina, o qual após a prisão de Dolores torna-se responsável pelo casarão e
pelas visitas à mãe na Penitenciária. Já em Seria uma sombria noite secreta, nos
reencontramos com Rachel e Alvarenga, ficamos conhecendo a vida de abandono e pobreza
dele e sua relação de amor subserviente com Rachel. Subserviente porque ele se torna uma
espécie de protetor da prostituta, tocando corneta para chamar seus clientes em troca de um
chocolate em forma de peixe dourado, como se fosse um animal de estimação. A minha alma
é irmã de deus nos apresenta Camila, personagem que se apresenta de forma multifacetada, já
que se metamorfoseia em diferentes personagens, em um momento é Mariana da novela As
sementes do sol, o semeador, em outro é Raquel de Maçã agreste, se metamorfoseia também
em Ísis de Somos pedras que se consomem e por fim é Camila, a jovem que quer ser santa
para desfilar no exército das onze mil virgens do Paraíso. Já em Tangolomango: ritual das
paixões deste mundo nos deparamos com tia Guilhermina e sua relação incestuosa com o
sobrinho-filho Matheus.
Maçã agreste foi caracterizada pelo jornalista, Carlos Menezes do jornal O Globo
como uma “sinfonia a cinco vozes”, pois “se impõe diante da violência, da crueldade e do
cinismo contemporâneos, e assim aprofunda e leva a conhecer melhor o abismo da condição
humana” (PEREIRA, 2009; p. 36). Entendemos que essa sinfonia dá-se pela presença das
vozes dos personagens: Ernesto, Dolores, Jeremias, Raquel e Sofia no decorrer do enredo.
Vozes que quase nunca representam algum tipo de comunicação entre eles, mas caracterizam-
se mais por um constante diálogo monológico. Trata de um personagem solitário em sua
essência, que mesmo quando está em meio a uma multidão é solitário.
José Castelo caracteriza a obra carreriana como uma escrita só lâmina, devido a sua
configuração voltada a narrar, muitas vezes, o lado obscuro do ser humano. O qual está
sempre envolvido por uma espécie de penumbra. Exemplo disso é o personagem Judas de
Sombra severa que vive com o rosto constantemente escondido sob a aba do chapéu. Castelo
(2005) ainda destaca que há em Carrero, assim como nos mestres russos, um interesse pelos
subterrâneos, pelo obscuro e pelos abismos. Pois seus personagens “configuram a própria
condição humana. A vida é ambígua e mutilada” (CASTELO, 2005; p. 17). Eles estão
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condenados à infelicidade, pena imposta por uma condição existencial que eles sofrem,
marcada pela dificuldade de aceitar a fragilidade da vida e a fatalidade a que estão sujeitos.
Em Maçã agreste destaca-se a degradação ou decadência humana. A degradação
presente na obra em estudo se dá em diferentes aspectos: social, moral, religioso, econômico.
No plano social, percebemos que a parcela da sociedade descrita no romance é
composta por marginalizados: ladrões, prostitutas, assassinos, os quais são caracterizados pelo
narrador como “os abandonados da sorte, os destroçados” ou “figuras de um mundo
irremediavelmente em decadência”. Dessa forma, a família de Jeremias, todos os personagens
que aparecem na narrativa e o próprio ambiente em que o enredo acontece, a cidade do
Recife, caracterizam-se como símbolos desse mundo irremediavelmente em decadência.
A degradação social também é inerente à família de Jeremias, uma vez que a pobreza
desencadeada pela perda dos bens pertencentes ao pai deixou-os à margem da sociedade. Seu
pai metaforiza a decadência da cultura canavieira. Sua mãe torna-se assassina, sua irmã decide
ser prostituta, após perder passivamente a virgindade com um suposto desconhecido no escuro
de um dos pavilhões do Engenho, que na verdade era seu próprio pai. E ele Jeremias torna-se
o profeta dessa decadência, o mestre de uma seita baseada na violência e nos mais diversos
crimes.
No plano moral, destacamos a falta de princípios éticos e morais de Ernesto que já na
adolescência enganava os professores para não ser reprovado na faculdade. A ausência dos
princípios morais é ainda mais demarcada nas relações sexuais que mantém com a filha na
casa onde mora com o filho e a esposa. Outro traço que define a ruína desses princípios é o
comportamento dos membros da seita liderada por Jeremias, que em nome de uma suposta
religião, estupram, roubam, enganam e matam.
No plano religioso, destaca-se a seita criada por Jeremias, nomeada Soldados da Pátria
por Cristo, que subverte as normas pregadas pelas religiões oficiais. Essa subversão
caracteriza-se pelos princípios que norteiam a seita, já que a noite é um “horário livre para
estupros, assaltos, putaria, chantagem, vadiagem, molecagem e outras atividades exclusivas
dos integrantes da confraria” (CARRERO, 1989, p. 207). Princípios completamente
contrários àqueles que norteiam as religiões oficiais.
No plano econômico, a degradação se dá pela falência de Ernesto que passa a ser
sustentado pelos filhos. É apontada também pelo trabalho que ele e a irmã passam a exercer e
pelo próprio casarão, resquício da época em que o pai era um rico latifundiário: “Naquele
tempo a decadência da família não era apenas sentida, mas vista e até tocada. A decadência
profunda e física, empurrada para a desgraça, revelada na casa sem pintura e nos móveis
Nas fronteiras da linguagem ǀ 730
gastos” (CARRERO, 1989; p. 166). Uma decadência que pode ser vista, sentida e até tocada.
Materializada e metaforizada na casa sem pintura e nos móveis gastos é caracterizada pelo
narrador como uma decadência profunda e física que empurra os personagens para a desgraça.
A qual é revelada pela prostituição, assassinato e demais transgressões praticadas pelos
personagens.
3. “Uma viagem pelo desespero”
Um dos traços que caracterizam o personagem Jeremias é caminhar sem um destino
pela cidade de Recife, especialmente pelos bairros pobres. A cidade é descrita como uma
“cidade coberta pelo lodo da miséria”. No entanto, esse universo degradante nos parece
cativá-lo, de forma que parece preso a esse universo decadente:
Pensava insistentemente na noite, nas duas noites, em que vagou pelas ruas da zona
em decadência, vazias, escuras e vazias, as mulheres paradas nas esquinas,
ostentando misérias e doenças, rindo, e rindo, e rindo sem dentes, as mulheres
implorando companhias, e ele andando, andando, andando, sem conseguir parar,
fumando, sem comer, fumando e bebendo, em busca do infinito. Rodopiando. Às
vezes rodopiando pelo mesmo quarteirão, parava junto de Alvarenga, em vigilância
perpétua, e conversava, retirava-se sem se despedir e continuava andando, fiel
guarda da noite, incapaz de guardar a si mesmo, ia até o princípio da ponte mas não
conseguia atravessá-la, não conseguia. Ali os pés chumbavam-se ordenando-lhe o
retorno, e retornava, era um desses cães perdidos, que farejam calçadas, cheiram o
chão, mudam de destino (CARRERRO, 1989; p. 213).
Percebe-se nesse momento o completo estado de inquietude em que o personagem se
encontra, incapaz de um minuto de paz. Apesar de estar imerso num universo de decadência,
desilusão e angústia, ele não almeja retirar-se dele. Parece que só nesse ambiente ele se
completa. E por mais que tente atravessar a ponte, que metafórica e literalmente o distanciaria
desse universo, não consegue, sempre retorna. Temos em um primeiro plano uma cena
corriqueira de uma grande cidade, um ponto de prostituição, temos uma cena banal do
cotidiano a qual é ressignificada pelo ir e vir de Jeremias em meio à cena decadente, composta
por prostitutas miseráveis e doentes.
Esse constante caminhar de Jeremias o assemelha do personagem do conto O homem
na multidão de Edgar Allan Poe, o qual se apresenta como um personagem emblemático da
literatura contemporânea. A história é narrada da perspectiva de um narrador personagem que
em determinado dia se depara com um homem que lhe chama a atenção, ao qual resolve
seguir. Percurso que dura por volta de vinte e quatro horas, no qual o homem não fala com
ninguém, nem para de caminhar, sempre buscando as ruas e os lugares movimentados, e se
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 731
angustiando quando percebe que o lugar onde se encontra está perdendo o movimento de
pessoas. Dessa forma, o fato de Jeremias permanecer durante duas noites “andando, andando,
andando, sem conseguir parar, fumando, sem comer, fumando e bebendo, em busca do
infinito”, dialoga com o comportamento do homem da multidão e parece demarcar uma
consciência angustiada, que tenta aliviar essa angústia andando, vagando em meio aos pobres,
prostitutas e miseráveis. Assim como o personagem do conto de Poe que apenas caminha em
busca de espaços em que estejam presentes várias pessoas. Encontramos nesse conto
personagens pertencentes a diferentes classes sociais, já Jeremias tende a observar os
marginalizados. No entanto, ambos são anulados pela “multidão”, vagam por cidades como
embriagados em estado de completo abandono, semelhantes ao flanêur de Charles Baudelaire.
As andanças de Jeremias são caracterizadas como uma viagem pelo desespero, o qual
já fazia parte de toda a sua vida:
Quando saíra de casa e por onde estivera, era impossível responder, agora. Não
sentiu amargura, nem agonia, nem arrependimento. Imprevisível, tudo o que lhe
aconteceu. Uma viagem pelo desespero, como aliás tinha sido toda a sua vida, toda a
sua inquietante vida, e estava cansado demais para procurar uma resposta.
(CARRERO, 1989, p. 21)
Desespero que faz parte da degradação que ele vivencia em seu meio familiar,
desprovido de valores e também no espaço físico em que está inserido, povoado pelo crime,
prostituição, miséria e decadência.
4. O profeta da decadência
Jeremias, numa conversa, discute com Sofia a respeito do significado dos nomes das
pessoas, em relação ao seu próprio nome afirma: “— Talvez o meu seja o mais apropriado,
porque nenhum outro personagem lamentou-se tanto por não ter permanecido no ventre da
mãe” (CARRERO, 1989, p. 31). É perceptível a relação de intertextualidade entre esse
enunciado e o livro de Jeremias da Bíblia judaico-cristã. Onde o profeta bíblico lamenta-se
por não ter morrido no ventre materno para não precisar anunciar a devastação de Jerusalém,
se a cidade não se rendesse aos babilônicos. Analogamente, o personagem carreriano lamenta-
se por ter que presenciar o sofrimento do mundo:
Saí de casa, outro dia, ao anoitecer. Sem dizer nada a ninguém lamentava-me por
não ter permanecido no ventre de minha mãe para não ser obrigado a assistir ao
desespero do mundo, para não me ser imposta a visão de homens e mulheres que
Nas fronteiras da linguagem ǀ 732
vivem os grandes tormentos, que formam a contorção da existência e que são
incapazes de construir a estrada que nos leva à casa do sacrifício. [...] — A princípio
pensei que, como agora, devia apenas perambular pelas ruas, cansando-me.
Guardava raiva dos revoltosos e dos devassos, dos mansos que se deixam dominar
pelos desesperados. Caminhei. Caminhei muito, Sofia. Mas não cansei, e era grande
o meu esforço, não cansei. Disse depois, a mim mesmo, que deveria atirar-me no
mundo feito um profeta anunciando as suas lamúrias e os seus lamentos, suas pragas
e suas antecipações, até que as carnes estivessem inteiramente devoradas pela fome
e pela sede, eu próprio sem saber mais onde estavam meus pés e minhas mãos
(CARRERO, 1989, p. 29 - 30). (Grifo nosso)
Um mundo em que as pessoas estão famintas e desesperadas, se contorcendo em torno
de sua própria existência. Incapazes de encontrar um caminho para solucionar tal sofrimento.
Diante disso sagra-se profeta. Afirma que sua missão é como um chamamento divino, que
visa salvar da dor e da fome do frio e do calor, da ira e da perseguição, os desvalidos que
andam pelas ruas desnutridos e desnudos. Cria uma seita e sai pelas ruas em busca de
seguidores oferecendo falsos milagres. É seguido por uma multidão de miseráveis que buscam
livrar-se de seus males:
Protegidos em muletas, arrastados em carros de madeira, pulando numa única perna,
os aleijados se aproximavam, os loucos tresvariando, excitados e mistificados, os
mendigos retirando moedas de mochilas imundas, estendendo as mãos esqueléticas e
comprando porções do vinho milagroso, capaz de restituir o viço, de sarar os males,
trazendo sorte e dinheiro (CARRERO, 1989; p. 29).
Ironicamente explora àqueles de quem anteriormente se compadecera, vendendo-lhes
porções milagrosas e extorquindo-lhes o pouco que têm. Jeremias é o profeta da decadência.
A decadência está em sua vida pessoal, no meio em que vive e também na seita que lidera, já
que Os Soldados da Pátria por Cristo é uma seita baseada em falsos milagres e na violência,
pois organiza assaltos, explora crianças e pratica uma série de atos considerados ilícitos.
Características essas, que dialogam com a decadência, no sentido de que as práticas pregadas
por essa seita remetem a ideia de um humano desprovido de valores religiosos, pelo menos
dos valores aceitos socialmente. Mesmo porque o motivo que o levou a “oficializar” os
trabalhos de sua seita foi uma ameaça de Daniel, um adolescente delinquente que cometera
alguns assassinatos nos quais Jeremias também estava envolvido: “Daniel quer proteção, terá.
Formaremos um grupo de salteadores, de vagabundos e de criminosos. Terão toda a noite para
roubar e matar, durante o dia rezaremos e louvaremos a Deus e a pátria. Sou o que sou e
sendo o que sou não retornarei mais à poeira antiga” (CARRERO, 1989; p. 223). Dessa
forma, a trama desenvolvida na obra apresenta um protagonista que tem um misto de santo e
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 733
de bandido, o qual apresenta duas faces, durante o dia lidera a seita e a noite os bandidos,
estupradores e assassinos que praticam os mais diversos crimes.
5. O subsolo de Jeremias
O comportamento do personagem Jeremias coloca-o numa espécie de mundo
subterrâneo que o aproxima do homem do subsolo de Dostoiévski. A novela que recebe esse
nome retrata o cotidiano de um personagem profundamente egoísta, apático à sociedade, que
vive recluso numa pequena casa, sem amigos, trabalho ou religião e sente-se superior aos
demais indivíduos, aqueles pertencentes à superfície. O subsolo representa a fuga do homem
moderno dos conflitos que surgem na sociedade, frutos de um novo estado de organização
social, política, religiosa e de pensamento, ancorados numa quebra dos valores vigentes. Para
Frank (2002)
a expressão “homem do subterrâneo” tornou-se parte do vocabulário da cultura
contemporânea, e essa personagem alcançou hoje em dia [...] a estatura de uma das
grandes criações literárias arquetípicas. Nenhum livro ou ensaio que estuda a
situação precária do homem moderno estaria completo sem alguma alusão à
explosiva figura de Dostoiévski (FRANK, 2002; p. 427).
Percebe-se, dessa forma, a importância do homem do subterrâneo para compreender a
situação do homem moderno. O personagem carreriano se assemelha ao homem do
subterrâneo no que diz respeito a mostrar-se apático à sociedade, pelo menos a parcela mais
abastada dela. Ele sente-se sufocado em meio aos prédios da cidade do Recife, em meio aos
ricos. No entanto, não se isola da sociedade, ao contrário, mistura-se aos esquecidos, aos
abandonados pela sociedade, aos decadentes. Seu subsolo é um mundo assinalado pela
degradação e pela ruína.
Assim, Maçã agreste é uma obra marcada pelo sofrimento e pela degradação humana,
já que seus personagens têm como traço marcante a ruína. Ernesto caracterizado pela
degradação moral e econômica. Degradação que reflete em todo o núcleo familiar, revelado
no assassinato cometido por Dolores e também na vida levada pelos seus filhos, Raquel e
Jeremias, frutos da decadência dos pais, caracterizados pela prostituição e por uma série de
atitudes que remetem à decadência e à degradação. Características que segundo Cruz (1998),
fazem parte das sociedades modernas.
O personagem Jeremias é metaforizado como símbolo dessa decadência, pois escolhe
ser profeta, funda sua própria “religião” que é baseada em seus próprios princípios. Princípios
Nas fronteiras da linguagem ǀ 734
degradantes, uma vez que subvertem aos valores sociais, morais, e até mesmo aos valores
religiosos, à medida que está baseada na violência e em atos ilícitos.
6. Considerações finais
Em Maçã agreste podemos perceber uma desvalorização de valores, traços que são
inerentes ao niilismo. Podemos dizer que as normas sociais são subvertidas nos aspectos:
moral, físico, social e religioso e econômico. Os personagens vivem à margem da sociedade e
não seguem as regras ditadas por ela, conduzem a vida à margem de tudo que pode ser
aceitável socialmente como conduta normal do ser humano.
Esse romance, pertence ao conjunto de obras que retratam os problemas e inquietudes
da modernidade, focando a decadência humana, uma vez que seus personagens são
representativos de uma subversão social, física, religiosa e moral negativa. É um texto que nos
coloca frente a um retrato social que todos fingem não ver.
A maioria das obras do escritor Raimundo Carrero, escritas anteriormente a Maçã
agreste, mantêm uma relação muito forte com alguns livros bíblicos, podendo ser
consideradas reescritas deles. Percebe-se já nessas obras um constante questionamento em
relação à fé, a Deus, de forma que, seguindo o pensamento de Priscila Varjal, os personagens
buscam preencher um vazio, o qual nas obras escritas após Maçã agreste parece ser
preenchido justamente por essa transgressão de valores baseada em incestos, estupros, crimes,
enfim através de uma negação de valores.
7. Referências
AMARAL, Cassiano Clemente R. Algumas considerações sobre Memórias do Subsolo a
partir de um referencial nietzscheano. In: 6° Encontro na Graduação em Filosofia da Unesp.
Vol. 4, n° 1, 2011.
CARRERO, Raimundo. Maçã Agreste. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.
CASTELO, José. Uma escrita só lâmina. In: CARRERO, Raimundo. O delicado abismo da
loucura. São Paulo: Iluminuras, 2005.
CONCEIÇÃO, Auríbio F. Somos Pedras que se Consomem em Angustia: a temática da
inquietação no diálogo entre Graciliano Ramos e Raimundo Carrero. 2004. 100f. Dissertação
(Mestrado em Letras e Lingüística. Área de concentração: Literatura) ― Centro de Artes e
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CRUZ, Elcy Luiz. A Simulação Real: narrativa carreriana em “Somos Pedras que se
Consomem” e o e o mundo pós- moderno. 1998.159f. Dissertação (Mestrado em Letras e
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 735
Lingüística. Área de concentração: Literatura) ― Centro de Artes e Comunicação,
Universidade Federal de Pernambuco, Recife.
Dicionário online de português. http://www.dicio.com.br/decadencia/ Acesso em: 14 de
outubro de 2014.
DOSTOIÈVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. Tradução Boris Schnaiderman. São Paulo:
Editora 34, 2009 (6ª Edição).
FRANK, Joseph. Dostoiévski: Os Efeitos da Libertação 1860-1865. Tradução Geraldo
Gerson de Souza. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.
MORETTI, Franco (Org.). O romance é concebível sem o mundo moderno? In: O Romance.
A Cultura do Romance. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Cosacnaify, 2009.
NEVES, Edilene Soares. A Construção social e Intertextual em “A Sombra Severa” de
Raimundo Carrero. 1999.136f. Dissertação (Mestrado em Letras e Lingüística. Área de
concentração: Literatura) ― Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal de
Pernambuco, Recife.
PEREIRA, Marcelo. Raimundo Carrero: A fragmentação do humano. Recife: Caleidoscópio,
2009.
POE, Edgar Allan. O homem na multidão. In: Histórias Extraordinárias. Tradução de P.
Nasetti. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2000.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 736
A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM FEMININA EM LAÇOS
DE FAMÍLIA, DE CLARICE LISPECTOR [Voltar para Sumário]
Elizabete Sampaio Vieira da Silva 1
Elisabeth Battista 2
I Considerações preliminares
A coletânea de contos Laços de família, publicada em 1960, trata-se de uma obra
composta por treze contos que retratam o aprisionamento do ser humano, especificamente das
personagens femininas em decorrência dos laços familiares. Os contos retratam a sociedade
carioca nos anos 60, questionam o modelo social patriarcal no qual a mulher vivia
aprisionada, denunciando a coerção e repressão das quais eram vítimas, a autora traça um
perfil da figura feminina que em virtude do casamento, muitas vezes, por ser arranjado pela
família, vivia alienada e sobrevive de aparências.
Na perspectiva supracitada a respectiva produção objetiva analisar a construção das
personagens de Clarice Lispector nos contos Amor e Laços de Família visando dar destaque à
figura feminina. A autora Clarice Lispector é um ícone da literatura moderna no Brasil,
iniciou sua carreira muito cedo, aos 16 anos teve um de seus contos publicado no jornal
literário Dom Casmurro, trabalhou como jornalista e só então escreveu seu primeiro romance
Perto do Coração Selvagem, que foi publicado em 1944, pela editora do jornal onde
trabalhava. A repercussão crítica da obra foi muito rápida, Sérgio Millet (1945 apud Coelho,
2002) foi um dos primeiros críticos a se manifestar sobre este romance de Clarice Lispector,
segundo ele:
A obra de Clarice Lispector surge no nosso mundo literário como a mais séria
tentativa de romance introspectivo. Pela primeira vez um autor nacional vai além,
nesse campo quase virgem de nossa literatura, da simples aproximação; pela
primeira vez um autor penetra até o fundo da complexidade psicológica da alma
1 Mestranda no Curso de Pós Graduação Stricto Sensu em Estudos Literários da Universidade do Estado de Mato
Grosso/PPGEL, sob orientação da professora doutora Elisabeth Battista 2 Professora Doutora em Estudos Literários da UNEMAT e orientadora do Curso de Pós Graduação/PPGEL no
Campus de Tangará da Serra/MT
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 737
moderna, alcança em cheio o problema intelectual, vira no avesso, sem piedade nem
concessões, uma vida eriçada de recalques. (COELHO, 2002, p.129)
A autora foi uma das pioneiras a propor por meio de sua produção ficcional a ruptura
com os paradigmas e valores estéticos incorporados à literatura de autoria feminina produzida
até então. Clarice Lispector engendra novas perspectivas acerca da mulher no cenário
literário, há em sua produção intenção de protesto, de denúncia, de desarticulação de modelos,
de valores predominantes vigentes, bem como a tentativa de resgate e libertação das vozes
negligenciadas pelo sistema patriarcal, além do rompimento com os conceitos de ficção
existentes. Em concordância com Lúcia Ozana Zolin (2005):
A obra de Clarice Lispector significa, na trajetória da literatura de autoria feminina
no Brasil, um momento de ruptura com a reduplicação dos valores patriarcais que
caracteriza a fase feminina [...] Pode-se dizer que ela inaugura outra forma de narrar
dentro de um espaço tradicionalmente fechado à mulher. Trata-se do marco inicial
da fase feminista. Chamá-la de feminista não significa, contudo, que as obras que
nela se inserem empreendam uma defesa panfletária dos direitos da mulher.
Significa, apenas, que tais obras trazem em seu bojo críticas contundentes aos
valores patriarcais, tornando visível a repressão feminina nas práticas sociais, numa
espécie de conseqüência do processo de conscientização desencadeado pelo
feminismo. (ZOLIN, 2005, p. 279)
Diferentemente de outras obras de autoria feminina como os romances Úrsula (1859) de
Maria Firmina dos Reis, A intrusa (1908), de Júlia Lopes de Almeida e A sucessora (1934),
de Carolina Nabuco, produções que consciente ou inconscientemente reafirmavam os valores
patriarcais sobre as limitações culturais preconceituosas que ditavam o comportamento social
esperado pelas mulheres, as produções de Clarice Lispector inovaram no sentido de se
consolidar como um espaço no qual a mulher, enquanto sujeito histórico, ganha voz, ao poder
manifestar seus anseios, frustrações, insatisfações, medos silenciados pela opressão da qual
foram vítimas por um longo período, contribuindo assim para desfazer assim os estereótipos
que figuravam na ficção.
Elóidia Xavier (1991, p.16) afirma que há na produção ficcional clariceana a
problematização da condição social da mulher. Segundo ela: “a domesticidade da mulher é
posta em xeque, no que ela representa de coerção e repressão; é o momento de ruptura”. Isso
significa que a escritora foi pioneira ao trazer para a arte literária as angústias existenciais que
permeavam o universo feminino, especialmente, no sentido de imprimir à obra ficcional
valores que se diferenciavam daqueles apregoados pelo sistema convencional. As
idiossincrasias que permeavam a identidade feminina, que permaneciam ocultas começaram
com Clarice a ganhar destaque e a incitar o imaginário de seus leitores.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 738
Esses questionamentos, a busca da mulher pela compreensão do seu papel em meio à
sociedade e a tentativa da construção de uma identidade própria, passa a ser representada na
literatura não mais pela ótica masculina, mas sob uma perspectiva feminina.
A introspecção manifestada pelo uso constante de monólogos interior é uma
característica recorrente na produção ficcional clariceana, a autora inaugura uma nova forma
de escrita adentrando em território, até então, não explorado pela literatura, mergulha no
mundo interior de suas personagens, no inconsciente humano e contribui para desvelar alguns
dos conflitos interiores femininos mais íntimos, alguns dos mistérios que permeiam a
existência humana. De acordo com Nelly Novaes Coelho:
Primeira voz, na literatura brasileira, a expressar à agônica/desafiante crise de
conhecimento do ser e do dizer que nos rastros do Existencialismo) se radicalizou
como uma das grandes interrogações do século XX, Clarice Lispector é vista [...]
como um dos vértices mais altos da nossa moderna ficção de húmus metafísico.
(COELHO ,2002, p.130)
Vale ressaltar que A coletânea Laços de família foi publicada em meio a um período
de revolução comportamental marcada pelo surgimento do Feminismo, um movimento
político, social e filosófico que buscava a instauração de uma igualdade de direitos entre
homens e mulheres, a libertação destas diante do ambiente machista que a relegavam a um
papel de inferioridade e submissão total, a inserção da mulher no meio literário. Nesse sentido
a ficção clariceana encarregou-se, por meio da linguagem desvelar a dor, os desejos dessas
mulheres e a valorização da produção literária feminina.
II A construção das personagens femininas em Clarice Lispector
A obra de Lispector – ao falar sobre a condição da mulher, e ao
inscrevê-la como sujeito da estória e da história – não se limita
à postura representacional de espelhar tal qual o mundo
patriarcal e denunciá-lo, como se mergulhássemos nas águas de
uma narrativa de extração neorealista.Nela se constrói, isto sim
um campo de meditação ( e de mediação) em que se aprofunda
o questionamento das relações entre literatura e sociedade.
Lúcia Helena
A epígrafe acima apresenta perspectivas que são observáveis nos contos “Amor” e
“Laços de família” os quais narram histórias de duas mulheres que vivem uma rotina
aparentemente normal com suas famílias, donas de casa exemplares, mães, esposas amorosas,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 739
mas que em certo momento da narrativa tomam consciência de que, na verdade, estão
enclausuradas, oprimidas, sufocadas e infelizes, nesse espaço familiar que oscila entre um
local de proteção e opressão simultaneamente:
“Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar
perplexamente lhe dera. [...] O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para
sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundia
com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de
adulto.”(LISPECTOR, 1998, p.20)
Logo no início do conto “Amor” percebe-se que a personagem Ana vive imersa em
uma rotina de mulher, esposa e mãe tentando se convencer de que isso lhe basta: “Por
caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o
tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro,os filhos que tivera
eram filhos verdadeiros.”( Lispector 1998, p. 20).Todavia há momentos em que essas certezas
se perdem em meio a sensações de angústia, os devaneios e o medo abalam o cotidiano
da personagem:
“Certa hora da tarde era mais perigosa. [...] Quando nada mais precisava de sua
força, inquietava-se. [...] Sua preocupação reduzia-se a tomar cuidado na hora
perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada
membro da família distribuído nas suas funções.” (Lispector, 1998 p. 19-20).
A personagem tem receio do ócio, e de tudo que ele pode lhe provocar, ela precisa se
sentir útil busca o amparo do cotidiano para continuar acreditando que está tudo bem, mas a
rotina e os afazeres domésticos que mantém a personagem longe de suas inquietações são na
verdade um refúgio no qual Ana tenta se esconder de si mesma: “Ana sempre tivera
necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera”
(LISPECTOR, 1998, p.20).
Observa-se, ainda, que o anseio pela liberdade é algo que causa medo em Ana, pois a
personagem foge das situações que de alguma forma possam alimentar o sentimento que
guarda no seu inconsciente. Como o papel social da mulher já estava culturalmente definido,
Ana sente-se perdida quando não há mais o que fazer, é como se nesses momentos não
soubesse quem é, coloca em dúvida a própria existência.
Aos poucos se percebe pelas pistas deixadas pelo narrador que na verdade Ana era
uma mulher triste, que vivia um conflito existencial profundo: “Quanto a ela mesma, fazia
Nas fronteiras da linguagem ǀ 740
obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida.
Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera”. (LISPECTOR, 1998, p. 21).
Mas o que tanto a personagem temia acaba acontecendo, e a partir de um encontro
com um cego no bonde quando retornava das compras ela vê sua vida modificada, e tudo o
que antes era suficiente, agora não era mais, a frustração toma conta da personagem que a
partir desse encontro entra em crise, passa a ter outra percepção do mundo e de sua realidade:
“Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles. [...]
Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. [...] o mal
estava feito. A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando
tricotara.A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o
que fazer com as compras no colo.E como uma estranha música, o mundo
recomeçava ao redor.O mal estava feito.” ( LISPECTOR, 1998,p. 22).
O encontro com o cego abala a vida da personagem, ela vê no cego o quanto estava
presa, consegue compreender tudo que teve que abrir mão em razão do casamento e dessa
falsa felicidade que esse casamento lhe proporcionara até então. Deixando eclodir sua ânsia
de liberdade, a vida agora tinha outro sentido, Ana percebe o espaço familiar de outra
maneira, a insatisfação é o sentimento que domina seus pensamentos:
“Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse [...] tudo
feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma
despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de
náusea doce, até a boca.” (LISPECTOR, 1998, p. 23).
A personagem percebe que, todo o cuidado que tivera para não se deixar influenciar
pelos seus desejos inconscientes de liberdade fora dilacerado por essa experiência que lhe
rouba a paz, isso fica explícito no seguinte trecho: “Os dias que ela forjava haviam- se
rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la.
De que tinha vergonha? [...], não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade
de viver.” (LISPECTOR, 1998,p. 27)
Apesar de todas as transformações pelas quais Ana passa, ela ainda não consegue se
desvincular desse espaço familiar, e acaba optando por voltar a sua rotina como uma forma
de se sentir mais segura, ainda que essa segurança lhe sufoque e lhe angustie, e nas mãos do
marido encontra uma saída para retornar ao cotidiano: “ Num gesto que não era seu, mas que
pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a
do perigo de viver.” (LISPECTOR ,1998, p.29).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 741
A personagem Catarina do conto “Laços de família” vive a mesma crise existencial
que Ana, tem uma relação conturbada com a mãe, o marido e, também, com o filho. A
personagem sente o sufocar de um cotidiano que lhe aprisiona e percebe o quanto é
assustadora a falsa tranquilidade do espaço familiar. A solidão é algo constante na vida da
personagem, e ela se dá conta disso no momento em que é lançada contra a mãe durante uma
freada brusca do táxi que as levariam para a estação:
“Catarina fora lançada contra Severina, numa intimidade de corpo há muito
esquecida, vinda do tempo em que se tem pai e mãe. Apesar de que nunca se haviam
realmente abraçado ou beijado [...] Como se “mãe e filha” fosse vida e repugnância.
Não, não se podia dizer que amava sua mãe.Sua mãe lhe doía, era isso.”
(LISPECTOR, 1998,p. 96-97).
Não há proximidade entre mãe e filha, a relação é marcada pela frieza, não havendo
lugar para intimidade, afeto, ou qualquer tipo de proximidade: “Que coisa tinham esquecido
de dizer uma a outra? e agora era tarde demais. Parecia-lhe que deveriam um dia ter dito
assim: sou tua mãe, Catarina. E ela deveria ter respondido: e eu sou tua filha.” (LISPECTOR,
1998,p. 97).
Catarina acredita que a mãe nunca gostou dela e como forma de se proteger, não se
permite amá-la, reproduz, sem perceber, com o filho o mesmo modelo de relação falida que
teve com mãe, pois é uma mãe distante, só se dá conta disso no momento em que ouve o
filho chamá-la de mamãe:
“Catarina voltou-se rápida.Era a primeira vez que ele dizia “mamãe” nesse tom e
sem pedir nada.[...] Com os olhos sorrindo de sua mentira necessária, e sobretudo da
própria tolice, fugindo de Severina, a mulher inesperadamente riu de fato para o
menino, não só com os olhos:o corpo todo riu quebrando um invólucro, e uma
aspereza aparecendo como uma rouquidão.”( LISPECTOR, 1998,p.100)
A partir desse “reencontro” com o filho, Catarina consegue se perceber de uma maneira
diferente, suas verdades são desconstruídas, ela liberta-se, o que frustra o marido ao observar
a nova relação que surge entre mãe e filho:
“ Mas ele a olhara da janela, vira-a andar depressa de mãos dadas com o filho, e
dissera-se: ela está tomando o momento de alegria - sozinha.Sentia-se frustrado
porque há muito não poderia viver senão com ela.E ela conseguia tomar seus
momentos sozinha.” (LISPECTOR, 1998,p.102).
Observa-se que os traços da personalidade das personagens são muito bem construídos
pela autora, num jogo de palavras no qual as mulheres são infelizes, extremamente solitárias,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 742
tímidas, caladas, sem perspectivas e, de maneira repentina, dão uma guinada na sua trajetória
a partir da consciência do lugar e/ou do não lugar que ocupam na sociedade.
As personagens femininas clariceanas carregam consigo uma herança de opressão e
repressão muito forte. Vivem um conflito interno intenso, que as consome e dilacera por
dentro, pois não conseguem compreender quem são, justamente porque ainda não sabem
verdadeiramente quem são, já que estão presas ao papel social que lhes fora imposto e do
qual elas não conseguem se libertar.
Como afirma Beth Brait (1998) a respeito dessa construção da personagem:
Como um bruxo que vai dosando poções que se misturam num mágico caldeirão, o
escritor recorre aos artifícios oferecidos por um código a fim de engendrar suas
criaturas. Que elas sejam tiradas de sua vivência real ou imaginária, dos sonhos, dos
pesadelos, ou das mesquinharias do cotidiano, a materialidade desses seres só pode
ser atingida através de um jogo de linguagem que torne tangível a sua presença e
sensíveis os seus movimentos. (BRAIT,1998, p.52)
São essas características propostas por Brait que é possível verificar em Clarice
Lispector ao construir ou desconstruir as personagens Ana e Catarina, ela busca a partir
dessas construções incitar a discussão sobre o papel da mulher na sociedade e no casamento,
especialmente retratar como esses conflitos de relações faziam sentidos no imaginário
feminino.
A epifania é um elemento recorrente nos contos da coletânea Laços de família, e nos
permite compreender que as personagens Ana e Catarina, passam a ter uma nova percepção
de si e do mundo que inicia na desestabilização provocada por um acontecimento corriqueiro
que provoca nas personagens o questionamento acerca das verdades impostas e de sua
condição enquanto ser no mundo. Nesse sentido, Olga de Sá (1979 p.106) afirma que: “a
epifania é um modo de desvendar a vida selvagem que existe sob a mansa aparência das
coisas, é um pólo de tensão metafísica, que perpassa ou transpassa a obra de Clarice
Lispector.”.
Segundo a autora a dinâmica de construção literária de Clarice Lispector propôs e
incitou acirradas discussões e questionamentos sobre a fragmentação da estrutura da narrativa,
o rompimento com a estética da época, a inovação na construção das personagens as quais
assumem a partir daí a consciência de seu papel e ao vale-se dessa ganha voz suscita
discussões sobre o espaço que ocupam na sociedade, bem como sobre as questões de gênero
que relegavam às mulheres um papel de inferioridade.Assim a obra de Clarice Lispector é um
importante registro dessas vozes femininas que durante tanto tempo foram emudecidas.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 743
Ana e Catarina são personagens transgressoras, que questionam a estrutura social e a
ideológica de sua época, manifestando suas inquietudes e conflitos, por meio do fluxo de
consciência e questionamentos sobre suas identidades existenciais. Elas buscam compreender
melhor quem são e qual o seu papel diante da sociedade na qual estão inseridas, imersas na
ânsia de descobrir-se, libertar-se dessa condição submissa tornam-se porta-vozes das mulheres
violentadas por esse sistema opressivo em que vivem.
Apesar de toda a angústia decorrente dessa tomada de consciência, da tensão entre a
dúvida e o querer que dilacera essas personagens que tentam escapar, mas não têm forças para
concretizar essa fuga, elas não conseguem se desvincular desse espaço opressor e acabam
optando pela segurança e o conforto que encontram nesse ambiente e, assim retornam ao
cotidiano para reconstruir suas vidas. Todavia esse retorno não lhes permite voltar à mesma
situação, pois a partir do instante que tomam consciência desta, já não são mais as mesmas.
A compreensão do contexto histórico no qual a obra foi escrita é imprescindível, para
compreender a instabilidade que ronda a construção da personagem feminina em vários
momentos da produção de Clarice Lispector, estas observações vêm ao encontro das
proposições de Antonio Candido (2004, p.175) quando este afirma que, ”os valores que a
sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas
manifestações da ficção[...]A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate,
fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas.”
A construção das personagens Ana e Catarina é elaborada de maneira minuciosa no
que tange as angústias que rondam o imaginário feminino, pois são mulheres vítimas de um
sistema social machista, que as impõe a alienação como algo natural. Elas estão presas a um
estereótipo feminino e um sistema social no qual o patriarcalismo impera, sendo o homem o
único ser dotado de direitos, restando às mulheres apenas os deveres e obrigações. As
personagens são sujeitos históricos acorrentados pela ideologia de uma época na qual a
mulher tinha seu papel social restrito ao ambiente privado do lar, e era apenas o que lhe
permitiam ser, não tinham acesso à educação, a participar da sociedade na qual estava
inserida, o casamento era seu destino, a submissão a esta instituição e tudo que ela estabelecia
como certo, era uma regra.
Em princípio a visão de mundo dessas personagens parece ser bastante restrita,
aspecto proporcionado pelo sistema social da época com sua ideologia machista que
condicionava a mulher a um estado de alienação degradante, onde suas ações, seu modo de
ser, pensar, de agir, de se comportar socialmente já estavam pré-estabelecidos. Porém, com o
decorrer do enredo, a autora mostra que é na fragilidade do feminino que também está a sua
Nas fronteiras da linguagem ǀ 744
força para superar as adversidades do mundo opressor e injusto, especialmente no que tange a
diferença de gênero.
III Considerações finais
A construção das personagens femininas de Clarice Lispector nos contos em análise
nesta abordagem rompe com os valores estéticos e éticos vigentes no período de sua
produção, pois ultrapassa um mero debate de questões feministas e instiga à reflexão sobre as
discussões acerca do papel social da mulher naquele período e no momento de recepção da
obra. Trata-se de eclodir as relações envoltas no casamento e nas questões de gênero, bem
como apresentar elementos que nos fazem compreender como estas refletiam e continuam a
refletir na sociedade, assim consolida , ratifica a concepção de literatura defendida por
Antônio Cândido (2004) de que a literatura como direito é uma necessidade universal, e,
portanto, ao satisfazer necessidades básicas, humaniza, faz viver na diversidade e
complexidade que se amalgama no viver cotidiano e ficcional apresentado pela autora.
Os contos Amor e Laços de Família desconstroem o universo feminino tão bem
maquiado pelo sistema convencional da época e desvelam questões subjacentes deste, a crise
da figura feminina, que encontra-se perdida, fragmentada, e busca a partir das respostas aos
seus questionamentos e ânsias interiores encontrar e atribuir significado para sua existência.
A desigualdade de gênero, que cerceia a mulher naquele período, a impede de viver
para além do ambiente privado do lar, oprimindo, reprimindo e determinando seu
comportamento. Esses aspectos fazem com que a literatura exerça seu papel humanizador, no
sentido de contribuir para libertar as vozes sufocadas pelo sistema operante, especialmente, ao
permitir que elas ecoem e instiguem outras discussões, posicionamentos e ideologias.
Referências
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Livraria Duas Cidades, 2004.
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BRAIT, Beth. A personagem. 6. ed. SãoPaulo: Ática, 1998.
COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico de escritoras brasileiras(1711-2001).São Paulo:
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BONNICI, T; Zolin, L.O. (org.) Teoria Literária: abordagens históricas e tendências
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XAVIER, Elódia. Reflexões sobre a narrativa de autoria feminina. In.:Tudo no feminismo: a
mulher a narrativa brasileira contemporânea.Rio de Janeiro:Francisco Alves, 1991,p 9-16.
HELENA, Lúcia. Nem musa nem medusa: itinerários da escrita de Clarice Lispector. Niterói:
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SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes, 1979.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 746
ENTRE LENDAS E GUARANÁS: O IMAGINÁRIO
SIMBÓLICO BRASILEIRO [Voltar para Sumário]
Eliziane Navarro (PPGEL/UNEMAT)
Olga Maria Castrillon-Mendes (PPGEL/UNEMAT)
É um monstro de forma humana
De longos pelos dotado,
Alto, forte, horripilante,
Em um só pé apoiado [...]
Assombrosa é a mata bruta
Onde o bravo poaieiro,
No seio da natureza
Labuta só, dia inteiro.
(MENDES, 1993, p. 56)
Nesta pesquisa, pretende-se, com base nos pressupostos teóricos de Gilbert Durand e
Joseph Campbell, fazer a análise de alguns elementos simbólicos significativos do imaginário
brasileiro. Para tanto, elencou-se como recorte fundamental do estudo a conhecida lenda
interiorana do Pé-de-Garrafa bastante difundida, tanto em prosa, quanto em verso,
principalmente, nas primeiras décadas do século XX, em Mato Grosso.
Catalogada pela escritora Dunga Rodrigues na obra Lendas de Mato Grosso publicada
em 1997, foi também aproveitada pelo autor francês Alfredo Marien na escrita da novela Era
um Poaieiro que se configura como um repositório literário dessa simbologia local. O estudo
se faz importante na medida em que possibilita o acesso à camada do inconsciente coletivo da
classe de trabalhadores marginalizados, permitindo assim, dar sentido ao imaginário popular
em suas relações com o divino, com a passagem do tempo e, sobretudo com a morte.
Em meados do século XX o jovem francês Alfredo Marien chegou ao “sertão” de
Mato Grosso, fez sua vida e constituiu família. Nessa época, as terras do município de Barra
do Bugres-MT encontravam-se no apogeu econômico por ser a maior produtora da poaia.
Dotada de propriedades terapêuticas a raiz da poaia, cientificamente chamada de Cephaelis
Ipecacuanha, foi extraída nas matas mato-grossenses e exportada para os laboratórios da
Europa, atraindo assim, ambiciosos trabalhadores pela promessa de fortuna rápida. Houve
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 747
uma corrida ao novo Eldorado. Substituía-se o esgotamento dos minérios pelo “ouro negro”,
cuja economia movimentava o comércio, especialmente, através do rio Paraguai.
A vida do poaieiro, como a dos garimpeiros, estava longe de ser fácil. Ao invés da
bateia, usavam a foice e o saracuá3. Como o seringueiro, esses homens embrenhavam-se nas
matas da poaia no tempo das águas e ficavam meses sem ver o sol, à mercê dos perigos
próprios desse ambiente insalubre, das enfermidades, do trabalho esgotante e dos bichos. Esse
contexto foi ideal para a propagação de várias lendas da região, dentre as quais o Pé-De-
Garrafa e o Anhanguera. Toda essa riqueza mística foi aproveitada por Marien que, assim
como os narradores orais da tradição, apropriou-se de um universo de narrativas populares e
escreveu Era um Poaieiro, publicado em 1944 pela Livraria Técnica na cidade de São Paulo-
SP e, em 2008, compôs um dos exemplares da Coleção Obras Raras, levada a termo pelo
trabalho conjunto da Academia Mato-Grossense de Letras e da Universidade do Estado de
Mato Grosso/UNEMAT.
Em 1997 a escritora, pianista e professora Dunga Rodrigues catalogou, com o intuito
de preservar as tradições orais do povo mato-grossense a obra Lendas de Mato Grosso onde
descreve cento e vinte oito histórias atribuídas à narradora Ozebia e ao padre José Maria de
Macerata4, dentre as quais encontramos algumas lendas aproveitadas por Marien. Isso é sinal
visível da preocupação descritiva do texto, ou seja, o trato de um desconhecido explorador do
interior brasileiro, como uma personagem ativa (e atípica) da sua história.
Pretende-se aqui então, relacionar os dois trabalhos que se ligam pelo imaginário: do
escritor francês que escreve em Mato Grosso, portanto, um olhar “de fora”, e da autora mato-
grossense, essencialmente voltada ao sentimento telúrico. Nesse sentido, serão analisados
alguns elementos simbólicos das lendas que, conforme explicado anteriormente, uma vez
compreendidos como parte do imaginário social, permite a compreensão do povo a partir da
sua essência. Sobre a necessidade de se analisar mais que os aspectos linguísticos de um texto,
Batista diz:
Um texto, ao ser produzido, interessa primeiro ao seu produtor como objeto
portador de um sentido existencial, antes de ser um objeto comunicacional ou
3 Pequena lança com ponta de metal pontiaguda semelhante a ponteiro de aço, acabado em guatambu ou madeira
de análoga resistência utilizada para afofar a terra onde se ocultavam as raízes aneladas da ipeca; metida no solo,
extraía com facilidade as raízes, acompanhadas dos arbustos (CORREA FILHO, 1975, p. 492 apud, CAMPOS,
M. C. A., 2005. p.296). 4 O religioso italiano Fr. José Maria Macerata era considerado um santo pela população de Cuiabá em virtude de
sua participação no movimento nativista da Rusga ( ). O escritor José de Mesquita escreveu sua biografia
intitulada O Taumaturgo do sertão. Cf. Dicionário Biográfico Mato-Grossense, de Rubens de Mendonça
(Goiânia/GO: Ed. Rio Bonito, 1971, p. 92) e Revista do IHGMT e da AML. Cuiabá, 1928. On:
http://www.jmesquita.brdata.com.br/bvjmesquita.htm