-
Universidade Federal de ViosaCentro de Cincias Humanas, Letras e Artes
Departamento de Geografia
TERRITRIOS NOTURNOS DE VIDAS IMPURAS: Prostituio e Territorialidade Travesti em Governador Valadares
MG
Monografia apresentada ao Departamento de Geografia da Universidade Federal de Viosa como parte das exigncias para a concluso do curso de Bacharelado em Geografia
Bacharelanda: Roberta de Melo Figueiredo
Orientador: Ulysses da Cunha Baggio
VIOSANOVEMBRO 2009
1
-
Monografia apresentada como requisito parcial concluso do curso de Bacharelado em Geografia do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Viosa UFV.
Banca examinadora:
Professor Ulysses da Cunha Baggio (orientador) - DGE
Professor Leonardo Civale DGE
Adriano Carlos de Almeida - COLUNI
2
-
Para os meus pais, Jesuta e Divino.
3
-
RESUMO
TERRITRIOS NOTURNOS DE VIDAS IMPURAS: Prostituio e Territorialidade Travesti em Governador Valadares
MG
O presente trabalho tem como objetivo investigar como se constitui o territrio
de prostituio travesti localizado no bairro Vila Bretas, cidade de Governador
Valadares, Minas Gerais, buscando apreender a maneira como se configura a
territorialidade desse grupo, a qual decorre do uso e apropriao, por parte do mesmo,
do espao correspondente s imediaes da Empresa de Transportes Coletivos
Valadarense. Procuramos, em nosso texto, trabalhar a territorialidade das travestis
destacando como a atuao de agentes externos ao seu territrio responsvel pelo
delineamento de um conjunto de prticas e comportamentos por meio dos quais as
travestis resistem e defendem seus interesses, fazendo-os valer no espao. Buscamos
mostrar, tambm, como a territorialidade se relaciona com a apropriao simblica e
afetiva do espao por parte das travestis, evidenciando os sentidos e significados
atribudos pelas mesmas ao seu lugar de vivncia cotidiana. Assim, o territrio visto
pelas travestis no apenas como um lugar de gerao de renda e garantia de
sobrevivncia, mas tambm como um espao gerador de outras formas de sociabilidade,
onde elas namoram, fazem amizades, se divertem e aprendem a ser travestis. Ao
territrio so atribudas, ainda, conotaes negativas, sendo visto, da mesma maneira
que a atividade da prostituio, como um espao perigoso, traioeiro e violento,
com o qual se envolveram devido falta de opo, preconceito e discriminao da
sociedade.
4
-
Agradecimentos
Aos meus pais, Jesuta e Divino, guerreiros incansveis que fizeram das tripas o
corao, como minha me adora dizer, para conseguir estudar os seus trs filhos.
Aos meus irmos. O mais novo, Rmulo, lindo e inteligente, agradeo todo o amor e a
confiana em mim depositada. O mais velho, Roberto, tambm inteligente, sensvel e ao
mesmo tempo muito forte, agradeo por todo o apoio nesses nossos muitos anos de
caminhada juntos. Os abraos, as brigas, os choros, as dificuldades, tudo isso tornou
nossa vitria mais prazerosa, no , Beto?
Ao meu namorado Vagner, agradeo a compreenso, a companhia e o carinho desses
ltimos meses.
s minhas amigas antigas, Ana Maria e Natalice, agradeo as noitadas, mas tambm o
companheirismo, a generosidade e o afeto.
Luclia, minha amiga mais recente, agradeo o apoio, a bondade e a pacincia, enfim,
a amizade desse ltimo ano.
Ao Gordinho agradeo a amizade, a sinceridade, as risadas, as discusses acaloradas...
Ao Adriano, agradeo por me abrir as portas do grupo de pesquisa Identidade e Cultura
e pelas brilhantes contribuies para esse trabalho. Agradeo tambm a amizade e o
carinho desses ltimos cinco anos.
Aos meninos do 1622, especialmente Edlson, Paulo Henrique, Denlson e Tiago,
agradeo o carinho, as gargalhadas e a amizade.
Ao meu orientador e amigo professor Ulysses Baggio, agradeo a compreenso, o apoio
e as orientaes que facilitaram muito o caminho percorrido por mim na realizao
desse trabalho.
Agradeo ao Jnior pela disposio e companhia nas minhas idas campo.
5
-
minha antigussima amiga Luciene Munhem, fotgrafa oficial dessa monografia.
voc, amiga, agradeo a preocupao e o companheirismo desses quase quinze anos.
s travestis Vanda, Gabriela, hoje Gabriel, Janete, Akra, Loneida, Ludmila Thalia,
Flor, Rebeca, Mirela, Isabelle e Rubi; s bichas-boys Dona Roma e Gabrielle Savassi
Castelamari; transexual Dbora. todas agradeo as gargalhadas, o acolhimento e a
boa vontade demonstrada durante as entrevistas.
Aos professores do Departamento de Geografia, agradeo por me ajudarem e enxergar
de forma mais clara e mais crtica o mundo.
Por fim, agradeo aos meus amigos da GEO 2004, especialmente Jolcio, Lucas e
Alino.
6
-
SUMRIO
INTRODUO-------------------------------------------------------------------------------------
8
METODOLOGIA---------------------------------------------------------------------------------10
CAPTULO 1: Apontamentos sobre os conceitos de territrio e territorialidade e o
problema da representao-----------------------------------------------------------------------12
1.1 - Sobre o conceito de territrio-------------------------------------------------------------12
1.2 Sobre o conceito de territorialidade------------------------------------------------------15
1.3 Problematizando a representao--------------------------------------------------------19
CAPTULO 2: Prostituio e travestis: Interfaces com o territrio------------------------23
2.1 Sobre Prostituio--------------------------------------------------------------------------23
2.2 Sobre travestis------------------------------------------------------------------------------26
2.3 Territrio e prostituio-------------------------------------------------------------------30
CAPTULO 3: O drama travesti ao rs do cho----------------------------------------------35
3.1 Relatos, usos e temporalidades-----------------------------------------------------------35
3.2 As travestis e sua territorialidade---------------------------------------------------------43
3.2.1 Travestis versus bichas-boys-----------------------------------------------------------44
3.2.2 Travestis versus garotas de programa-------------------------------------------------50
3.2.3 Travestis versus travestis de fora----------------------------------------------------54
CAPTULO 4 : Delineamentos acerca da territorialidade travesti em Governador
Valadares-------------------------------------------------------------------------------------------58
4.1 Sobre a relao entre territorialidade, uso e apropriao do espao-----------------58
4.2 Os sentidos e significados do territrio--------------------------------------------------60
CONSIDERAES FINAIS--------------------------------------------------------------------68
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS---------------------------------------------------------70
7
-
ANEXOS-------------------------------------------------------------------------------------------73
INTRODUO
A prostituio tem se constitudo tema de pesquisa de vrias reas do
conhecimento, como Sociologia, Antropologia, Psicologia, Histria e Geografia. No
mbito dessa ltima, encontramos diversos estudos que versam sobre a dimenso
territorial de tal atividade, concebendo-a, ainda, como importante elemento da
organizao do espao onde se inscreve. nesse contexto de interesse pelo estudo da
prostituio, sob um vis geogrfico, que se insere a presente pesquisa, a qual objetivou
investigar a constituio de territrio de prostituio travesti em espao pblico e sua
correspondente territorialidade, o que nos coloca diante das formas de apropriao bem
como dos sentidos e significados deste espao, tomando-se como estudo de caso a
situao verificada na cidade de Governador Valadares, localizada na poro leste do
Estado de Minas Gerais.
em Governador Valadares, especificamente no bairro Vila Bretas que se
localiza aquele que considerado o mais notrio e antigo espao pblico de prostituio
travesti da cidade, aqui trabalhado dentro de uma perspectiva que se interessa no
apenas pelos seus aspectos concretos, relacionados s relaes de poder estabelecidas no
interior do prprio grupo de travestis e entre essas e agentes externos ao seu territrio.
Alm dos diversos usos e temporalidades que marcam o espao onde se inscreve a
atividade prostitutiva, buscamos, nesse trabalho, explorar as relaes simblicas e
afetivas das travestis1 em relao ao seu lugar de vida, o qual representa muito mais do
que a possibilidade de gerao de renda, mas tambm um espao voltado para amizade,
namoro, diverso, troca de informaes e de observaes sobre como construir o
prprio corpo.
1 Da mesma forma que Ferreira (2003) e Pelcio (2007), optamos por conferir palavra travesti o gnero feminino, utilizando, dessa maneira, o artigo a. Isso porque, assim como as observaes em campo dos autores acima, o trabalho emprico mostrou ser essa a forma dessas profissionais se tratarem entre si; evidenciou que [...] Entre si, os artigos, pronomes e substantivos para se auto-referirem, ou para tratarem aquelas que lhes so prximas, esto sempre no feminino (PELUCIO, 2007, p. 18).
8
-
Como apontado acima, a constituio de territrios da prostituio no se
configura em algo novo no mbito dos estudos geogrficos, sobretudo no que se refere
forma como os mesmos se organizam, os contedos e os usos diversos dos espaos onde
tal atividade se desenvolve, com suas temporalidades prprias. Ressaltamos, contudo,
que a abordagem do territrio-objeto dessa pesquisa justifica-se na medida em que
implica no conhecimento de uma realidade scio-espacial especfica, no contemplada
em estudos acerca da organizao do espao da cidade em questo.
Alm disso, com tal estudo tem-se a oportunidade de dar visibilidade a um grupo
social historicamente marginalizado, ao mesmo tempo em que possibilita a criao de
um espao de interao e dilogo propcio reflexo acerca das condies de
preconceito e discriminao vivenciadas por pessoas que tem no comrcio do sexo a sua
fonte de renda. Destacamos, ainda, que a elaborao de um trabalho de tal natureza
buscou atender curiosidade da pesquisadora acerca dos modos de vida da populao-
alvo dessa pesquisa, curiosidade alimentada pela presena, de certo modo imposta,
desse grupo social sua observao, possvel devido proximidade entre o bairro de
residncia de sua famlia e o referido territrio.
Por fim, observamos que este estudo encontra-se dividido em quatro captulos.
No primeiro, elaboramos uma discusso acerca dos conceitos de territrio,
territorialidade e representao, mostrando a forma como os mesmos se inter-
relacionam. No segundo, a partir de textos de alguns autores, apresentamos alguns
elementos que nos permitem pensar o travestismo, a prostituio e suas interfaces com o
territrio. No terceiro e quarto captulos, trazemos para a discusso o territrio-objeto de
nosso trabalho, destacando, alm da multiplicidade de usos associados s
temporalidades do dia e da noite, a forma como a territorialidade travesti se estabelece,
bem como os sentidos e significados atribudos pelo grupo seu espao de vivncia.
9
-
METODOLOGIA
No intuito de atingir os objetivos propostos nesse trabalho, procedemos coleta
de dados atravs de pesquisa de campo, a qual foi organizada em duas etapas. A
primeira teve incio com a identificao e delimitao do territrio de prostituio
travesti em questo. Nessa fase, foram percorridas as suas imediaes, tanto de dia
quanto de noite, com vistas realizao de trabalho fotogrfico de situaes de
interesse, bem como ao registro de dados referentes s formas de uso e apropriao do
lugar.
O segundo momento do trabalho de campo foi marcado por nossas incurses
ao territrio estudado. Nessa etapa, procedemos ao levantamento de dados por meio de
observao de campo e da realizao de entrevistas semi-estruturadas, as quais
permitiram captar mais profundamente a experincia das travestis territorializadas no
bairro Vila Bretas, a forma como se d o controle de seu espao, bem como os sentidos
e significados atribudos ao mesmo e suas concepes acerca do trabalho que realizam.
Alm das idas ao territrio, o trabalho de campo contou, ainda, com as visitas casa da
cafetina Vanda, onde, alm da realizao de entrevistas e conversas informais, tivemos
a oportunidade de acompanhar um pouco da vida das travestis fora da rua.
Quanto s entrevistas, foram realizadas um total de 14. Dessas, 1 foi concedida
por uma transexual, 11 por travestis e 2 por bichas-boys, as quais, como se ver adiante,
so tidas pelas travestis respondentes como pertencentes a uma categoria distinta da sua,
apesar de igualmente se vestirem com roupas femininas e se prostiturem. Alm das
entrevistas com essas profissionais do sexo, foram empreendidas conversas informais
com moradores das imediaes do territrio, com o intuito de levantar, mesmo que de
maneira exploratria, as suas vises acerca das travestis e da prostituio.
Coletados os dados, partimos para a sua organizao e anlise, as quais se deram
de acordo com os dois momentos da pesquisa de campo apresentados acima. Quanto s
informaes colhidas na primeira etapa, estas foram ordenadas de forma a estabelecer
10
-
uma descrio detalhada de como se organiza o espao onde se insere o territrio da
prostituio, bem como os demais usos e temporalidades a ele ligados.
Com relao aos dados compostos pelas entrevistas, o trabalho de organizao
buscou identificar padres nas repostas obtidas junto ao grupo pesquisado. importante
destacar que todo o trabalho de manipulao e anlise dos dados coletados, bem como a
disposio dos mesmos na forma de um texto estruturado, foi feito luz das leituras
realizadas ao longo do desenvolvimento da pesquisa.
11
-
CAPTULO 1: Apontamentos sobre os conceitos de territrio e territorialidade e o
problema da representao
1.1 - Sobre o conceito de territrio
O conceito de territrio, objeto de interesse da cincia geogrfica desde a sua
institucionalizao, tem sido alvo de intensos debates no mbito das cincias humanas,
balizados, sobretudo, por questes ligadas ao atual perodo de globalizao e suas
conseqncias sobre as fronteiras do Estado-nao. Muitos gegrafos tm contribudo,
sobremaneira, para o avano desse debate, apontando, entretanto, para outras direes;
tem-se observado o investimento sistemtico na problematizao epistemolgica desse
conceito, vinculando-o s discusses que abarcam aspectos culturais de coletividades,
no se restringindo, contudo, escala do Estado nacional.
O carter polissmico do conceito de territrio foi apontado por Haesbaert
(1997, p. 39-40), o qual demonstrou serem trs os empregos recorrentes do conceito: o
territrio poltico-jurdico, representado, mormente, pelo Estado-nao; o territrio
econmico, relacionado a fontes de recursos, fruto do embate entre classes sociais e da
relao capital-trabalho; e, por fim, o territrio cultural, tomado enquanto produto da
apropriao simblica e/ou da identificao no/com o espao.
Souza (1995), em uma crtica ao reducionismo implicado na associao
mecnica e naturalizada entre territrio e espao gerido pelo Estado e ocupado por uma
nao, apresenta uma concepo mais profcua do termo. O autor conceitua territrio
como espao definido e delimitado por e a partir de relaes de poder, no
propriamente o espao concreto em si, sendo esse o substrato material onde se
projetariam as relaes sociais. O territrio seria, dessa maneira, um instrumento de
poder, suscitando questes como quem domina ou influencia quem nesse espao, e
como (SOUZA, 1995, p. 78-79).
Para Souza, o territrio (...) no precisa e nem deve ser reduzido a essa escala
(do Estado-nao) ou associao com a figura do Estado (1995, p. 81). Ao defini-lo
12
-
como produto de relaes de poder, o autor mostra a riqueza de situaes a que o
conceito em questo pode fazer referncia. Assim,
Territrios existem e so construdos (e desconstrudos) nas mais diversas escalas, da mais acanhada (p.ex., uma rua) internacional (p.ex. a rea formada pelo conjunto dos territrios dos pases-membros da organizao do Tratado do Atlntico Norte - OTAN); territrios so construdos (e desconstrudos) dentro de escalas temporais as mais diferentes: sculos, dcadas, anos, meses ou dias; territrios podem ter um carter permanente, mas tambm ter uma existncia peridica, cclica (SOUZA, 1995, p. 81).
Haesbaert (1997), corroborando Souza (1995), concebe o territrio como
espao dominado e controlado politicamente, a partir de relaes de poder. Entretanto, a
essa dimenso mais concreta o autor acrescenta outra simblica e afetiva. O territrio
seria, dessa maneira, um espao apropriado tanto material quanto imaterialmente,
dotado de significado e sentido, sendo que as representaes enquanto imagens do
espao configuram tambm instrumentos de poder, servindo de guia de ao na
instalao e/ou manuteno de territrios. Nesse sentido, Haesbaert (2002, p. 121)
afirma ser o territrio [...] produto de uma relao desigual de foras, envolvendo o
domnio ou o controle poltico-econmico do espao e sua apropriao simblica, ora
conjugados e mutuamente reforados, ora desconectados e contraditoriamente
articulados.
O territrio seria, dessa maneira, o espao social apropriado, concreto, mediante
o qual a vida humana se torna possvel; contudo, tambm um dado simblico,
resultante da apropriao simblica do espao de vivencia de um grupo, o qual se
identifica com esse espao, dotando-o de sentido e estabelecendo com o mesmo laos de
identidade e afeto. Nesse ponto, cumpre tecer algumas observaes acerca do conceito
de apropriao, utilizando como aporte as reflexes de Haesbaert (1997) sobre os
conceitos de apropriao e dominao de Henry Lefebvre.
De acordo com Haesbaert, Lefebvre estabelece uma distino entre espaos
dominados e espaos apropriados, sendo ambos conceitos inseparveis, cada qual
adquirindo sentido quando contraposto em relao ao outro. Para o filsofo, espaos
dominados so aqueles transformados a partir das prticas sociais e da tcnica, de
controle poltico estruturado; j os espaos apropriados envolvem, alm do domnio do/
no espao, a identificao de indivduos e grupos e a configurao de leituras
13
-
simblicas do espao. Haesbaert ressalta que, para Lefebvre, a dominao do espao
desarticulada de sua apropriao [...] tende a originar territrios puramente utilitrios e
funcionais, sem que um verdadeiro sentido socialmente compartilhado e/ou relao de
identidade com o espao possa ter lugar (1997: 41).
Baggio, em seu estudo acerca das formas de uso e apropriao do espao
metropolitano se debrua sobre as formas de sociabilidade observadas no bairro de
Santa Tereza, em Belo Horizonte, caracterizado como um [...] local de vida bomia e
carnavalesca, como um espao de preservao de relaes estreitas de vizinhana, e
como um lugar de artistas, estudantes e intelectuais (2006, p. 166). Trata-se, segundo o
autor, de um espao vivido e no simplesmente um espao visto (2006, p. 167), um
espao cuja apropriao se d pelo uso enquanto um conjunto de praticas scio-
espaciais, relaes entre habitantes e destes com o lugar, que representam uma
territorialidade especfica, responsvel pela caracterstica de diferenciao do bairro no
contexto mais amplo da metrpole belo-horizontina. No caso especifico de Santa
Tereza, para Baggio, a apropriao do espao:
Implica no seu uso habitual, pelo qual o espao, na sua expresso local, se insere num circuito relacional mais imediato e prximo do usurio, tornando-se uma espcie de extenso do seu espao residencial mais particular, que a casa. [...]. Nesse sentido, a fixidez do habitat do usurio associada ao uso cotidiano do bairro faz com que ele, gradativamente, se insira numa esfera privada, em virtude dos investimentos regulares que o citadino realiza no seu ambiente, capturando-o e introduzindo-o no seu universo existencial, estabelecendo com ele, ou ao menos com parcelas dele (ruas, praas, caladas, botequins, feiras, mercados, etc) uma relao de aproximao e envolvimento. (2006, p. 183-184).
Baggio adverte, todavia, que a relao entre o citadino e o lugar apresenta
matizes em termos da intensidade,
[...] haja vista a enorme diversidade que matiza os lugares e formas urbanas da grande cidade (da metrpole), podendo-se mesmo considerar que, a depender do caso e situao, esta condio relacional de aproximao e envolvimento pode mesmo no se realizar (nos pontos que designo como lugares de repulso), ou, por outra, realiza-se precria e perversamente (lugares da degradao). Podendo apresentar-se associadas, essas caractersticas so mutantes no tempo de no espao, suscetveis dinmica da produo e da organizao do espao urbano (2006, p. 184).
14
-
Ainda no que tange apropriao do espao, tanto Damiani (2002) quanto
Baggio (2006) nos chamam a ateno para o fato de que existem limites apropriao
do/no mundo atual (DAMIANI, 2002), restries dadas pela prpria dinmica
capitalista responsvel pela configurao de um espao urbano moderno, de rpida
comunicao, denso e homogeneizado pela tcnica; espao incontrolvel, oposto ao
lugar de vida, o qual, como nos mostra Tuan (1983, p. 151), prenhe em sentido e
significado, local de definio, segurana e estabilidade. No entanto, afirma Baggio
(2006, p. 187) em consonncia com Damiani (2002), tais limites no representam a
no-realizao absoluta da apropriao, sendo possvel no mundo atual a
conformao de um espao vivido, com fluxos e ritmos referenciados ao humano, o
qual no necessariamente se anula em funo da velocidade da tcnica e das dinmicas
do capital frequentemente a ela associadas, podendo mesmo escapar delas.
A explanao acima envolvendo o conceito de apropriao e a possibilidade de
sua realizao mostra-se fundamental para uma maior compreenso do que seja o
territrio, j que, ao se apropriar de um espao, tanto em termos concretos quanto
abstratos atravs, por exemplo, das representaes, o ator empreende um processo
chamado de territorializao, ou seja, cria territrios.
1.2 - Sobre o conceito de territorialidade
O aprofundamento da discusso do conceito de territrio levou alguns gegrafos
formulao de outro conceito, o de territorialidade. A territorialidade de determinado
grupo social circunscreve-se sempre a um espao especfico, estabelecendo-se a partir
da mobilizao e da defesa de certos interesses por esse mesmo grupo que os fazem
valer em seu territrio. Para Sack apud Haesbaert (1997, p. 36), a territorialidade pode
ser definida como a tentativa, por um indivduo ou um grupo, de atingir, influenciar,
ou controlar pessoas, fenmenos e relacionamentos atravs da delimitao e afirmao
do controle sobre uma rea geogrfica. Com tal definio, aponta Haesbaert, Sack
enfatiza a dimenso poltica do territrio dada pelo controle de uma rea geogrfica,
15
-
ressaltando, para tanto, o papel dos limites e fronteiras no controle do acesso e do
comportamento de indivduos e grupos.
Tal raciocnio, de acordo com Haesbaert, deve ser ampliado de maneira a
abarcar os dados simblicos como elementos constituintes da territorialidade de um
grupo. O autor mostra cumprir a territorialidade o papel de fechamento e controle no
interior de uma rea geogrfica atravs das fronteiras delimitadoras do territrio,
acrescentando, todavia, ser o prprio encerramento de um grupo em determinado espao
capaz de proporcionar, por meio da atribuio de significados ao espao, a configurao
e a legitimao de identidades territoriais especficas (1997, p. 36). A criao de laos
imateriais com o espao, sua significao, pode, na concepo de Haesbaert, servir de
guia de ao, tornando-se um instrumento de poder na medida em que orienta as
estratgias de indivduos e grupos no sentido da luta pelo controle de seu espao de
vida.
Discutindo o conceito de territorialidade enquanto um conjunto de atividades e
prticas atravs das quais se criam os territrios, Campos (2000, p. 28) ressalta estarem
as motivaes para a sua definio relacionadas s formas de uso, organizao e
significado que o espao de vivncia de um grupo assume em diferentes momentos.
Para a autora, a territorialidade traduz, ao mesmo tempo, expectativas particulares
interiores aos grupos prazer, necessidade, contingncia, obrigao, ideologia como
tambm exteriores a eles funcionais, simblicas, sociais, fsico-ambientais, scio-
econmicas.
Campos afirma possuir a territorialidade humana trs elementos bsicos
fundamentais que se constituem em formas de expresso de poder; identificao
simblica do territrio para seus componentes e formas de comunicao de cada
territorialidade com o exterior. Quanto ao primeiro elemento, Campos chama a ateno
para o fato de estar a territorialidade intimamente relacionada ao poder, j que se
inscreve num campo de relaes sociais, as quais representam sempre expresses de
fora e potncia. Nesse sentido, a territorialidade seria a expresso geogrfica primria
de poder social, atravs da delimitao e afirmao do poder de determinado grupo
sobre o territrio.
Com relao questo da identificao simblica de um grupo com o seu
territrio, Campos estabelece a relao estreita existente entre territorialidade e sentido
16
-
de pertinncia de um grupo a um espao, pertencimento que se expressa, no mais das
vezes, em maneiras especficas de comportamento. A identificao simblica do grupo
com o seu lugar de vida traduz-se em significados e valores os quais associam-se, muito
diretamente, com as representaes sociais, sendo essas, de acordo com Campos (2000,
p. 28),
formadoras de uma trama complexa de diferentes significaes que vo influenciar, motivar e mesmo justificar atitudes de resistncia, defesa, animosidade dos grupos sociais em relao ao meio onde se encontram; do mesmo modo, as representaes, construdas social e espacialmente, podem promover condies de atratibilidade.
Enquanto forma de comunicao com o exterior, a territorialidade construda a
partir do conjunto de relaes que indivduos de um grupo estabelecem com o seu
territrio, constitui-se, de acordo com Campos, em uma maneira de comunicar limites
e cdigos de comportamento aos indivduos que no compartilham dos mesmos
interesses e expectativas (2000, p. 28). Para Campos, a comunicao com o exterior
ocorre
[...] no apenas no nvel do comportamento, mas tambm atravs de aes correspondentes materializao no espao dessas relaes abstratas e subjetivas, constituindo assim em prticas scio-espaciais. Estas assumem, ao mesmo tempo, um papel de interao, na medida em que une os indivduos em grupos que possuem motivaes comuns; e diferenciao, estabelecendo limites e expressando desigualdades atravs de comportamentos, formas de usar/transformar o espao (2000, p. 29, grifo nosso).
Baggio, em seu j citado estudo, explicita a relao existente entre a apropriao
do espao por determinado grupo e a forma correspondente de territorialidade. No caso
especfico de Santa Tereza, bairro da regio leste de Belo Horizonte, MG, o autor
mostra como o uso habitual do bairro - que implica, em certa medida, na sua
apropriao - responsvel pelo delineamento de sua identidade e territorialidade,
expressas, sobretudo, em seus modos de vivncia cotidiana, caracterizada pela
musicalidade, vida bomia, rodas de bate papo em bares e restaurantes, vivncia
religiosa na parquia, feiras de artesanato e alimentao e aes de reivindicao de
preservao do bairro (2006, p. 167). Apoiando-se em autores como Raffestin, e ainda,
17
-
em Bailly e Beguin, Baggio acentua o carter multidimensional da territorialidade
enquanto um conjunto de relaes atravs das quais um grupo faz valer seus interesses
no espao transmutado em lugar de experincias ntimas, individuais e coletivas, lcus
da existncia, fonte de conscincia. Cumpre observar que o entendimento de Baggio
acerca da territorialidade segue de perto as idias de Raffestin, para quem a
territorialidade expressa
[...] sempre uma relao, mesmo que diferenciada, com os outros atores. [...] Cada sistema territorial segrega sua prpria territorialidade, que os indivduos e as sociedades vivem. A territorialidade se manifesta em todas as escalas espaciais e sociais; ela consubstancial a todas as relaes, e seria possvel dizer que, de certa forma, a face vivida da face agida do poder (RAFFESTIN apud BAGGIO, 2006, p. 182).
Damiani, ao discutir o conceito de territrio e a correlata formao das
territorialidades no mbito de uma Geografia Poltica, discorre sobre as formas de
territorialidades fixas, cujo desvendamento exige a leitura do Estado e da ao
estatista, gestor por excelncia do sobreproduto social, garantindo, pelo seu gasto, a
configurao das relaes sociais e das relaes de poder. A essas territorialidades fixas,
a autora contrape as territorialidades mveis, entendidas como contrapoderes diante de
uma estrutura hierrquica de poder comandada, como mencionado acima, pelo Estado
considerado tanto no mbito de suas instncias de representao municipal, estadual e
federal, quanto em suas formas de associao, um consrcio de estados configurando
territorialidades regionais e mundiais (2002, p. 21).
De acordo com a autora, as territorialidades mveis so mltiplas,
heterogneas, e incluem aquelas de carter cotidiano, conformando territrios enquanto
espaos vividos, apropriados e repletos de significados e sentidos, individuais e sociais.
A territorialidade, para Damiani, constituda por duas dimenses; decorre de uma
apropriao real, concreta, e outra mista, resultante da combinao entre o real e o
representado (2002, p. 18). A representao enquanto constituinte da territorialidade
seria responsvel tambm pelo trao de fantasia e iluso que marca essa ltima, j que
operaria uma substituio, fazendo crer aos sujeitos a existncia de um autocontrole dos
mesmos sobre sua vida e seu espao, quando na verdade esse no existe de forma
efetiva no mundo da poltica e economia vigentes. Em suma, a territorialidade, dada a
impossibilidade de apropriao do espao no mundo atual, a qual se d, segundo a
18
-
autora, apenas no nvel da representao, revela, contraditoriamente, um mundo no
apropriado, substitudo por espaos de vivncia restritos que simulam a apropriao.
As territorialidades constituem uma apropriao crtica. (p. 24).
1.3 - Problematizando a representao
Mesmo concordando com Damiani quanto aos limites da apropriao do espao
sob o capitalismo, Baggio (2006) parece destoar da autora no que se refere relao
estabelecida pela mesma entre o real e sua representao. Diferentemente de Damiani
que enxerga a representao como algo apartado do real, sua substituio ou simulacro,
Baggio concebe-a como algo referenciado no/pelo real. O real e sua representao, de
acordo com o autor, no seriam uma nica e mesma coisa, existindo entre eles, contudo,
certa relao de correspondncia. As representaes enquanto constructos envolvendo
discurso e narrativa devem ser tomadas como parte integrante da prpria realidade
social, sendo essa mesma realidade, em sua dimenso objetiva e subjetiva, matria
prima para a elaborao das representaes que, por sua vez, serviro como guias da
ao humana, modelando prticas sociais e comportamentos. Quanto s representaes,
de acordo com Baggio, o prprio
[...] procedimento de apart-las do real, ou tom-las como uma espcie de real distorcido conota uma concepo cientfica (ou, talvez, cientificista) de objetividade, que condena o investigador a um tratamento cognitivo do objeto de conhecimento que faz dele uma expresso vazia e destituda de subjetividade (2006, p. 189).
Dado que a representao ou imaginrio social no resulta do nada, estando,
portanto, colado ao real, a territorialidade como representao constitui uma
expresso espacial intelectualmente construda a partir de referncias da realidade,
ainda que sejam tomadas como indesejadas ou como fontes de mal-estar e
constrangimentos diversos (BAGGIO, 2006, p. 189, grifo do autor). Enquanto que
para Damiani a territorialidade, em sua dimenso representacional, tomada como algo
no verdadeiro, um conjunto de imagens, discursos e narrativas sobre o espao que
simulam o real, Baggio, por sua vez, a compreende como parte integrante e formativa
do prprio real, no estando limitada ao universo mental e intelectual, apresentando-
19
-
se como uma situao que interfere em prticas scio-espaciais de uso e apropriao,
podendo mesmo norte-las. Deve-se ressaltar que tal idia mostra-se como
desdobramento do pressuposto assumido pelo autor de que [...] o mundo e a realidade
do mundo no esto constitudos por um conjunto fixo de objetos independentes do
esprito (2006, p. 190), devendo o imaginrio ser tomado como parte integrante da
realidade social, decorrente do jogo entre as dimenses objetiva e subjetiva que a
compe.
Ciro Flamarion Cardoso (2000), ao discutir a noo de representaes sociais ou
coletivas no contexto das cincias humanas e sociais, afirma serem as mesmas de
grande utilidade para o especialista que se prope a compreender as prticas humanas,
dentre elas, aquelas que envolvem a relao do homem, individualmente ou em grupo,
com o seu espao. De acordo com o autor, bastante improvvel que se conhea, de
forma diretamente comprovvel, as motivaes dos agentes em si mesmas (...), o
movimento conducente s decises que comandam as escolhas em matria de ao
individual e coletiva. Entretanto, prossegue Cardoso, pode-se inferir de maneira
indireta tais motivaes ou os processos decisrios, obter uma aproximao dos
mesmos a partir das representaes sociais em curso na sociedade (2000, p. 34).
Como mostra Cardoso, a possibilidade de inferncia dos motivos que levam os
agentes a agirem do modo como eles agem assenta-se no fato de estarem as
representaes intimamente relacionadas prtica humana, j que, de acordo com o
autor, os seres humanos tendem, individualmente ou em grupo, a efetuar escolhas que
orientem suas aes em dada situao ou conjuntura, mais frequentemente em razo de
representaes socialmente difundidas do que de caractersticas objetivas dos referentes
(objetos) a que essas representaes remetem (2000, p. 34). Com base em Denise
Jodelet, Cardoso apresenta a noo de representao social elencando quatro de suas
caractersticas:
1)Trata-se de uma forma de saber prtico que liga um sujeito a um objeto o que significa ser, invariavelmente, uma representao de alguma coisa (o objeto) e de algum (o sujeito); 2) a representao mantm com seu objeto uma relao de simbolizao e de interpretao, de modo que, para o sujeito individual e coletivo (mas, agrego eu, espera-se que no para o cientista social!), pode ser colocada no lugar do objeto; 3) a representao uma mobilizao de seu objeto, por exemplo, atuando como um elemento nas decises de como agir a seu respeito; 4) como saber de sentido comum, a representao, de um modo geral, desempenha um
20
-
papel crucial no ajuste prtico do sujeito ao seu ambiente (o que significa que uma teoria das prticas sociais exige a considerao, como fator de peso, das representaes coletivas) (CARDOSO, 2000, p. 30, grifo nosso).
Segundo Falcon, a representao enquanto conceito-chave da teoria do
simblico permite que o objeto ausente seja re-apresentado conscincia por
intermdio de uma imagem ou smbolo. Representar, dessa maneira, significa criar
smbolos ou imagens de um dado objeto, os quais podem ser de natureza verbal,
icnica, dramtica, material ou mental. Os smbolos, fruto da imaginao simblica,
apresentam como partes constitutivas o significante, carregado do mximo de
concretude, e o significado apenas concebvel, mas no representvel, dispersando-
se por todo o universo concreto (FALCON, 2000, p. 46).
Com base em Castoriadis, Haesbaert (2002) discute alguns elementos do
simblico associando a essa discusso uma reflexo sobre o territrio, o qual, de acordo
com o autor, expressa muito mais do que seus aspectos concretos, materializados em
prdios, estradas e montanhas, compondo-se, alm disso, de sentidos e significaes
mltiplas decorrentes das leituras simblicas empreendidas por determinado grupo. O
smbolo, para Haesbaert, em conformidade com Cardoso (2000) e Baggio (2006),
encontra-se posicionado a um meio caminho: seu significado no pode ser nem
totalmente fechado, lgico e objetivo, nem totalmente aberto, sem referncia a uma
realidade concreta (2002, p. 148). Seguindo a mesma lgica, Castoriadis entende que
A escolha de um smbolo no nunca nem absolutamente inevitvel, nem puramente aleatria. Um smbolo nem se impe como uma necessidade natural, nem pode privar-se em seu teor de toda referncia ao real (somente em alguns ramos da matemtica se poderia tentar encontrar smbolos totalmente convencionais mas uma conveno que valeu durante algum tempo deixa de ser pura conveno). Enfim, nada permite determinar as fronteiras do simblico (CASTORIADIS, apud HAESBAERT, 2002, p. 149).
De acordo com Haesbaert, toda essa liberdade e flexibilidade dos smbolos
tornam-se patente quando se considera a possibilidade de suas mltiplas significaes,
j que, por suas conexes naturais e histricas virtualmente ilimitadas, o significante
ultrapassa sempre a ligao rgida a um significado preciso, podendo conduzir a lugares
totalmente inesperados (CASTORIADIS apud HAESBAERT, 2002, p. 86-87). Tal
21
-
indeterminao pode ser exemplificada, segundo Haesbaert, atravs dos mltiplos
sentidos dados a diferentes parcelas do espao pelos diversos conjuntos da sociedade
(HAESBAERT, 2002, p. 86). Nesse sentido, uma anlise cuidadosa do territrio deve
tom-lo enquanto materialidade, mas tambm como smbolo ou dado simblico,
buscando apreend-lo, assim, enquanto espao de referncia simblica, revelando os
mltiplos sentidos e significados a ele associados.
22
-
CAPTULO 2: Prostituio e travestis: interfaces com o territrio
2.1 - Sobre a prostituio
Pensar o territrio de prostituio travesti, objeto desse trabalho, leva-nos,
mesmo que sumariamente, a tecer algumas consideraes acerca da atividade de
prostituio em si, bem como sobre o ser travesti, ficando a discusso sobre as idias
e definies que envolvem o termo travesti, como se ver, para o prximo item. Antes,
contudo, convm um esclarecimento que se refere no superposio das categorias
acima, distino, alis, observada por autores como Pelcio (2005; 2007) e Ornat
(2008), os quais denunciam a equivocada associao da travesti prostituta, como se
fossem sinnimos, quando, na verdade, nem sempre uma travesti tambm prostituta.
Uma outra ressalva diz respeito dificuldade de acesso bibliografia que
trabalhe o tema da prostituio travesti em termos histricos, fornecendo-nos elementos
panormicos sobre as origens, desenvolvimento e concepes que cercaram e ainda
cercam tal atividade, a exemplo do que oferecido quando se pensa em prostituio
feminina. Diante disso, a discusso que se segue ter como base os textos de duas
autoras que, embora foquem em seus trabalhos a prostituio feminina, empreendem
interessantes apontamentos no sentido de proporcionar uma reflexo sobre a
prostituio no seu sentido geral.
Pois bem, a palavra prostituio, de acordo com Mota, tem origem do latim Pro
Statuore que significa expor-se, oferecer-se. Concebida desde os seus primrdios como
uma atividade envolta em mistrios, atraes, rejeies e sanes sociais, ocorrendo
em trnsito paralelo vertente que consagra as relaes heterossexuais monogmicas
como as normais e adequadas aos papis femininos e masculinos (2008, p. 27-28), a
prostituio existe, de acordo com registros, desde a mais remota antiguidade, nas
formas de prostituio hospitaleira e sacra, ambas praticadas por povos da Caldia,
na sia. A primeira caracterizava-se pela concesso ao hspede, alm do leito e da
mesa, das prprias mulheres da casa, relacionando-se, a segunda, instituio de ritos
23
-
religiosos onde mulheres exerciam, mediante contribuies ao templo, a intermediao
entre os homens que as procuravam e a divindade. (MOTA, 2008, p. 29).
Passando pela Grcia do sculo VI onde, pela primeira vez na histria, houve a
legalizao de alguns aspectos da prostituio com a criao de estabelecimentos
mantidos pelo Estado que fixava o preo da entrada, Mota chega a Roma cujo Estado
fornecia s mulheres uma autorizao legal, a licentia stupri, para se prostiturem.
Alguns imperadores cristos como Constantino, Constncio, Theodsio e Justiniano
tentaram, sem muito sucesso, combater a prostituio, a qual, com o advento da Idade
Mdia, passou a ser moralmente repreensvel, levando perseguio das mulheres
que exerciam tal atividade, medida que no impediu, contudo, o seu fortalecimento
estimulado pelo xodo rural de vivas e filhas de servos mortos nas guerras dos
senhores feudais. A ofensiva contra a prostituio foi ainda mais acentuada com o
advento da Idade Moderna no sculo XVI, marcada pelo Renascimento, pelo
puritanismo da reforma e por uma epidemia de doenas sexualmente transmissveis.
No obstante as aes do Estado e da Igreja no sentido de controlar e at mesmo
exterminar a prostituio, a humanidade, em seu desenvolvimento, passou a aceit-la
como uma realidade inafastvel, buscando inclusive sua regulamentao sob diversos
aspectos (MOTA, 2008, p. 32).
No Brasil, de acordo com Mota, a prostituio teve incio com os primeiros
colonizadores, j que vieram de Portugal os criminosos e as prostitutas, sendo a
escassez de mulheres um dos propulsores da prostituio de ndias e, posteriormente
negras, sucedidas por prostitutas europias, sobretudo as francesas.
Associada, a partir do sculo XIX, industrializao e urbanizao nascentes e
ao boom da borracha no norte do Brasil, a prostituio esteve no centro de reflexes e
aes de pensadores e do prprio Estado, o que pode ser exemplificado na anlise
datada de 1925 de Evaristo de Moraes, citado por Mota. Para a autora, Moraes creditava
fbrica a destruio da famlia pelo fato da mesma aproximar os sexos, afastar a
vigilncia familiar, criar o trabalho noturno, propiciar a autoridade do contramestre e do
patro, que podiam abusar imoralmente da situao, somando-se a isso os baixos
salrios pagos s mulheres que encontravam na prostituio uma forma de
sobrevivncia, um complemento de sua insuficiente renda (MOTA, 2008, p. 35).
24
-
Mota, em seu levantamento do quadro prostitucional do Estado de So Paulo
entre 1870 e 1920, observa que a prostituio era, nesse perodo, criminalizada por
alguns, equiparada vagabundagem, confinada, controlada arbitrariamente por policiais
e mdicos e at reprimida a partir, por exemplo, da destinao de pontos especficos
para tal atividade e sua proibio em determinadas ruas, alm do controle e
regulamentao sanitria (2007, p. 40). Paralelamente, era vista por outros como um
mal necessrio que deveria, por isso mesmo, ser tolerado em respeito moral e ao lar,
sendo que, nesse, a sexualidade deveria ser exercida sem excessos, as relaes sexuais
mantidas dentro dos padres tradicionais, extirpando-se desvios, mantendo-se a
reproduo e a sexualidade sadia (MOTA, 2007, p. 37).
O submundo da sexualidade deveria, portanto, ser praticado fora do lar, na rua,
lugar de anonimato e transgresso, o espao do sexo contraposto ao espao do amor que
era a casa. (MEDEIROS, 2007). interessante destacar que, tanto o discurso da
safadeza, da falta de carter, quanto as idias que tomam a prostituio como um
mal necessrio desviam, de acordo com Medeiros, a ateno dos problemas de ordem
social, poltico, econmico e moral que a explicam e geram a estigmatizao daqueles
que dela vivem. Nas palavras da autora,
O lugar do problema social o lugar discursivo na narrativa social responsvel pelos desequilbrios estruturais fundamentais para a legitimao do poder e a manuteno da ideologia das classes dominantes. Portanto, a prostituio forma uma categoria, entre outras, estigmatizada e logo colocada margem da sociedade. Esse lugar um territrio simblico onde as imagens culturais negativas so construdas e reproduzidas, tornando-se um espao vulnervel a todo tipo de ataque (MEDEIROS, 2007, p. 114).
Enquanto produto de um processo dinmico de construo social articulado
dialeticamente em oposio aos parmetros que definem as normativas morais sobre a
sexualidade (MEDEIROS, 2007, p. 114), a prostituio definida como uma categoria
de transgresso social, representando, ao lado da rua, da zona ou puteiro, um lugar de
sexualidade livre, de prticas proibidas e que no esto na ordem do limpo, um
espao de ruptura do limite da norma e rompimento do proibido, despertando, por
isso mesmo, o interesse e excitando a fantasia (MEDEIROS, 2007, p. 117).
De acordo com Medeiros, o limpo enquanto relacionado casa, espao do amor
e do sexo saudvel, construdo em oposio ao sujo, ligado rua, ao risco, ao perigo
25
-
e prostituio. Importantes para a ampliao da possibilidade de experincias
erticas, o sujo, a falta de decoro, a transgresso do limite estabelecido pelas normas,
a experincia extica da utilizao de outras partes do corpo ou de outros ambientes
sociais para a realizao da fantasia sexual apresentam elementos significativos para a
construo do universo social transgredido, ou seja, fora dos padres de normalidade
(MEDEIROS, 2007, p. 117).
Associados liberdade sexual, ao prazer e transposio de fronteiras, a
prostituio e o espao onde ela ocorre devem ser entendidos, tambm, a partir de
estruturas de poder, um poder que se constitui enquanto mediao da relao entre a/o
profissional do sexo e seu cliente, no grupo dessas profissionais entre si e entre elas e
outros elementos que compe o universo da prostituio como policiais, traficantes,
cafetinas, comerciantes, etc. (MEDEIROS, 2007, p. 121).
Segundo Medeiros, o poder no mundo da prostituio deve ser negociado,
levando a um consenso as partes envolvidas numa relao de dominao-submisso ou
ativo-passivo (MEDEIROS, 2007, p. 121). Nessa relao, tanto cliente quanto
profissional do sexo trocam desejos, sexo e interesses, devendo a negociao entre
ambos envolver, alm do valor do produto (o prazer), o estabelecimento de um conjunto
de regras que ordenem a relao, bem como as punies para o caso de descumprimento
do que foi previamente acertado.
Para a autora, o acordo tcito entre cliente e profissional do sexo implica a
configurao de hierarquias distintas daquelas tidas como oficiais homem x mulher,
ricos x pobres, diplomados x no escolarizados - onde os primeiros, que em outros
lugares sociais assumiriam o papel de dominadores, passam, em geral, a atuar como
sujeitos passivos, numa relao de poder em que o status assumido por uma prostituta e,
acrescentamos, travestis e homens que se prostituem, assenta-se numa sabedoria
construda e armazenada no curso da vida, um saber que significa um tipo de
propriedade estrutural que se ope ao no/pouco saber do outro (MEDEIROS, 2007, p.
124).
2.2 - Sobre Travestis
26
-
Afinal, quem so as travestis?, pergunta-se a antroploga Pelcio (2007), para
quem definir travestis como um bloco monoltico e homogneo por demais
simplificador, haja vista a enorme pluralidade de formas de viver essa condio,
revelada, segundo a autora, no prprio trabalho de campo, onde
[...] conheci travestis que no tomavam hormnios, nem tinham silicone no corpo, mas que se auto-reconheciam como travestis, usavam nomes femininos, mantinham intensa sociabilidade no meio [...] Convivi com pessoas que se identificavam como transexuais mas viviam, segundo elas mesmas, como travestis, pois se prostituam e faziam uso sexual do pnis; Assim como estive com travestis que, em algum momento da vida, desejaram tirar o pnis; e outras que jamais tinham pensado naquilo, mas que comeavam a estudar essa possibilidade mais recentemente, passando a cogitar a possibilidade de serem transexuais (PELCIO, 2007, p. 35).
A despeito dessa multiplicidade de formas e experincias da travestilidade2,
Pelcio, ainda que cautelosamente, no se esquiva de uma definio conceitual de
travestis por reconhecer uma convergncia de comportamentos e vises de mundo
semelhantes que conformam um ethos prprio desse grupo (PELCIO, 2005, p. 222).
A autora ressalta, contudo, que a conceitualizao deve ser elaborada tomando-se o
cuidado de se propor categorias tericas flexveis, passveis de abarcarem a variedade
de situaes especficas encontradas no espao emprico. Tendo isso em vista, Pelcio
assim define travesti:
[...] so pessoas que se entendem como homens que gostam de se relacionar sexual e afetivamente com outros homens, mas que para tanto procuram inserir em seus corpos smbolos do que socialmente tido como prprio do feminino. No desejam, porm, extirpar sua genitlia, com a qual, geralmente, convivem sem grandes conflitos (2007, p. 37).
A delimitao do conceito de travesti apresentada por essa autora parece
encontrar um paralelo no trabalho de Ferreira sobre a insegurana e a violncia nos
territrios de prostituio travesti em Belm, no estado do Par. A partir de um
2 Termo preferido por Pelcio para se referir multiplicidade de formas do ser travesti observada em seu trabalho de campo junto s travestis prostitutas de So Carlos, So Paulo. Nas palavras da antroploga, a opo pelo conceito de travestilidade decorre do fato de o mesmo alargar aspectos de categorizao identitria do termo travesti, que pode ser bastante simplificador quando busca contemplar a gama de possibilidades de se viver esta condio. A travestilidade aponta para a multiplicidade dessa experincia, ligada construo e desconstruo dos corpos (PELCIO, 2007, p. 18).
27
-
entendimento produzido durante o trabalho de campo (2003, p. 2), o autor define
travestis como indivduos que sentem e expressam a sua homossexualidade sob uma
aparncia mais ou menos feminina, sendo que para isso so capazes de recorrer a
recursos artificiais diversos que lhes permitam simular um corpo de mulher
(FERREIRA, 2003, p. 2). Importante destacar que, tanto para esse autor quanto para
Pelcio, as transformaes empreendidas na busca de um corpo feminino no passam,
necessariamente, por profundas alteraes, encontrando-se desde travestis cujo desejo
inscreve-se num corpo transformado por silicone e/ou hormnios, at aquelas que
lanam mo de meios superficiais de intervenes estticas.
Como mostra Pelcio, a construo do ser travesti um processo que nunca se
encerra. Demanda cuidados constantes com o corpo, tornando o mesmo o mais prximo
possvel daquilo que consideram uma mulher bonita e desejvel. Em busca dessa
imagem, as travestis afinam seus traos, bronzeiam seus corpos, adornam-se com
roupas que remetem a mulheres glamourosas, escolhem nomes de atrizes e musas
hollywoodianas ou cantoras de pop (PELCIO, 2007, 98). A observao desse
processo pela autora, levou identificao, para o grupo estudado, de quatro etapas:
A primeira delas (1) quando ainda se gayzinho (classificao mica), ou seja, j se assumiu a orientao sexual para familiares e para a sociedade (como elas dizem, ou seja, para um conjunto mais abrangente de pessoas). Segue-se, ento, (2) a fase do montar-se, o que significa, no vocabulrio prprio do universo homossexual masculino, vestir-se com roupas femininas, maquiar-se de forma a esconder a marca da barba, ressaltar as mas do rosto, evidenciar clios e plpebras, alm da boca. Vestir-se com roupas femininas ainda , nessa etapa, algo ocasional, de tom furtivo, restrito a momentos de lazer ou noturnos. O terceiro momento o da (3) transformao. Esta uma fase mais nuanada, pois tanto pode envolver apenas a depilao dos plos do corpo e vestir-se cada vez mais frequentemente como mulher, como pode indicar o momento inicial da ingesto de hormnios, quando estes ainda no produziram efeitos perceptveis; e finalmente, (4) a quarta etapa, quando j se travesti. Pois alm do consumo de hormnios, vestem-se todo o tempo com roupas femininas (sobretudo roupas ntimas, pois se pode estar de shorts, sem camisa, mas de calcinha), e, no mnimo, j se planeja injetar silicone nos quadris e ndegas (PELCIO, 2005, p. 98).
Como se pode perceber a partir da passagem acima, na adequadao do seu
corpo de homem aos seus desejos de parecer mulher, de se passar por uma, as
travestis encontram no hormnio e no silicone dois aliados de peso, os quais figuram
28
-
como elementos centrais na construo de um feminino que procura borrar, nesses
corpos, o masculino, sem apag-lo de todo (PELCIO, 2007, p. 18).
O uso de hormnios femininos, a partir da ingesto de plulas anticoncepcionais
e/ou de reposio hormonal, visto pelas travestis entrevistadas por Pelcio como uma
espcie de fonte da feminilidade e da beleza, pois, circulando pelo sangue, o hormnio
elimina da travesti traos de uma masculinidade indesejada, livrando-a dos plos,
afinado sua pele e seus traos angulosos. Alm disso, de acordo com relatos das
mesmas Pelcio, parece dot-las de caractersticas vistas como prprias da mulher,
deixando-as mais sensveis, delicadas e at mais dedicadas ao lar.
Quanto ao silicone, este parece ser o sonho da maioria das travestis pesquisadas
pela autora supracitada. O corpo feito, bombado, todo quebrado na plstica
(PELCIO, 2005) significa o ingresso definitivo para o mundo das travestis, onde o
desejo por um corpo fabricado, a busca do feminino associada falta de recursos
financeiros, leva boa parte delas a fazer o corpo introjetando dentro de si lubrificante
de mquinas, o chamado silicone industrial. Em relao a essa tcnica de transformao
do corpo, Pelcio adverte que, antes que a tomemos como sinal de irracionalidade e
ignorncia, devemos tentar entend-la, bem como a dor e o sacrifcio a ela associados, a
partir da prpria lgica interna ao sistema simblico do grupo estudado. Nesse, o
desejo de se ver cada vez mais feminina, isto , bela, se sobrepe aos receios em relao
ao uso do silicone [...], pois se impe como um valor moral entre as travestis o cuidar-
se, o que implica a busca permanente por padres estticos e comportamentais
atribudos mulher (PELCIO, 2005, p. 104).
O silicone e o hormnio so apenas duas das muitas formas de interveno no
corpo utilizadas pelas travestis no processo de autoconstruo, de adequao de seus
corpos de homens aos seus desejos de parecer mulher e s suas prticas sexuais. De
acordo com Claudinha Delavatti, travesti entrevistada por Pelcio, no basta se vestir de
mulher para ser travesti. preciso intervir no prprio corpo e lanar mo de uma srie
de tcnicas corporais cuja apreenso s se tornam possveis a partir do momento em que
se entra em uma rede de relaes j estabelecidas. Aprender a se maquiar e a se depilar,
escolher roupas que valorizem o corpo, andar e gesticular como mulher, tomar
hormnios e usar silicone, exige o contato, a proximidade com outras travestis. Nesse
processo, como se ver no prximo item para o caso das travestis que se prostituem, o
29
-
territrio assume papel de destaque, j que na rua, pista ou avenida3 onde se aprende a
ser travesti, onde as mesmas constroem-se corporal, subjetiva e socialmente
(BENEDETTI apud PELCIO, 2005, p. 224).
2.3 - Territrio e prostituio
Estudos relacionando prostituio e territrio tem sido cada vez mais freqentes
nos ltimos anos, no apenas na Geografia, para a qual essa ltima categoria de
grande importncia, mas tambm no mbito de outras cincias, o que pode ser
exemplificado atravs do elegante trabalho de Pelcio (2005; 2007), antroploga muitas
vezes citada nessa monografia, para quem o territrio no se configura como um
simples receptculo ou um palco onde se materializam e se desenvolvem as aes dos
grupos sociais, mas sim como algo que se impe como uma instncia relevante de
socializao e da prpria construo da pessoa travesti.
A autora, em suas incurses no espao de prostituio travesti na cidade de So
Carlos - interior paulista -, percebe que tal espao possui claras reparties, limites e
esquadrinhamentos, territrios marcados por cdigos responsveis pela atribuio de
sentido aos lugares, marcas que sinalizam quem quem, o que se pode e o que no se
pode fazer em dado espao, demarcaes que, enfim, estabelecem uma hierarquia nos
papis, que reflete, por sua vez, os valores vigentes entre as prprias travestis da rea.
No territrio de prostituio travesti estudado pela autora observam-se mltiplas
territorialidades s quais se sobrepe identidades, demarcaes espaciais, que so
tambm demarcaes morais e que expressam valores como capital corporal, faixa
etria e comportamento diante dos cdigos e regras de funcionamento de cada territrio.
E como nos mostra Pelcio, h espaos ocupados por travestis de maior valor no
mercado sexual, geralmente aqueles de maior visibilidade e circulao, e espaos
destinados s menos valorizadas, havendo territrios de travestis menos transformadas,
isto , femininas; territrios de travestis mais velhas, e ainda, territrios de travestis
3 Categorias nativas utilizadas pelas travestis entrevistadas por Pelcio, mas tambm por aquelas objeto de pesquisa do presente trabalho, usadas para designar os espaos pblicos - ruas, travessas, becos, avenidas, praas, etc, onde ocorrem a prostituio.
30
-
tidas como no confiveis, as chamadas bandidas, envolvidas em roubos e agresses a
clientes e a outras travestis.
A idia do territrio como dimenso fundante da identidade travesti retratada
em diferentes momentos pelo gegrafo Mrcio Ornat (2005; 2008a; 2008b), a propsito
de seu estudo sobre o territrio de prostituio travesti em Ponta Grossa, Paran. As
entrevistas realizadas pelo autor mostraram ser o territrio um espao de aprendizado de
comportamentos, forjando um indivduo que no deve ser ingnuo, mas sim corajoso,
forte, esperto e maduro (2008a, p. 53), um lugar de construo de subjetividades, onde
se aprende, alm disso, tcnicas de transformao corporal, incorporando elementos
identitrios do universo feminino ao corpo biologicamente masculino, concretizando a
transgresso da ordem e da norma heterossexual (ORNAT, 2008a, p. 52).
Ornat (2008b), em outro artigo sobre as travestis acima citadas, percorre a
memria das mesmas no que se refere s relaes inerentes casa e cidade, mostrando
como o cruzamento das experincias espaciais individuais, que so socializadas e
ressignificadas coletivamente atravs do territrio, constituem elementos de
identificao do grupo pesquisado.
Nesse estudo, o autor mostra que na memria do grupo de travestis relacionada
espacialidade da casa so centrais as figuras do pai, da me, e ainda, do companheiro,
designado por elas como namorado e/ou marido. Segundo as experincias relatadas, o
espao da casa marcado pela afetividade e intimidade entre travesti e companheiro,
bem como por conflitos entre os mesmos, relacionados ao cime e exigncia de
fidelidade materializada na proibio de se beijar o cliente na boca e de se realizar
programas em casa. Quanto s evocaes casa-relao materna/paterna, tem-se muita
contradio e conflito, sendo a figura paterna, de forma preponderante, associada
violncia e cobrana da masculinidade, e a materna representando um misto de rejeio
e aceitao.
A cidade, enquanto espacialidade que compe as histrias de vida das travestis
estudadas por Ornat, vista pelas mesmas como espao de excluso e de preconceito
devido a performance no correspondente linearidade entre sexo-gnero-desejo
(ORNAT, 2008b, p. 6), o que faz com que seus corpos sejam indesejveis na cidade, um
corpo tido como defeituoso, no humano. No obstante todas as adversidades, a cidade
dotada, tambm, de um sentido positivo, dado que nela onde se torna possvel a
31
-
materializao do desejo por um corpo transformado, de construo de outra pessoa
atravs desse corpo e nesse corpo.
Apoiando-se em Judith Butler, Macdowell, em artigo sobre as travestis
prostitutas do setor comercial sul, em Braslia, apresenta as idias daquela autora sobre
corpos abjetos, os quais devem ser entendidos como corpos que no importam,
imateriais, ilegtimos e ininteligveis (MACDOWELL, 2008, p. 2), situados em
um no-lugar no limiar da prpria gramtica que estrutura a vida social, a matriz
heterossexual (MACDOWELL, 2008, p. 3). Segundo Macdowell, o abjeto como no-
sujeito construdo sempre em referncia a norma, a partir do olhar do sujeito, sendo
ambos constitutivos um do outro e estabelecidos a partir de um processo de abjeo e de
excluso necessrio para que os mesmos se constituam enquanto tais.
Os sujeitos seriam, conforme traduo de Butler feita por Macdowell, corpos
que pesam, os quais, em sua existncia material e legtima, ocupariam os espaos
legtimos, os espaos que importam (MACDOWELL, 2008, p. 2), ao contrrio de
abjetos como as travestis que, justamente por rejeitarem a anatomia carregada de
regras e as regras que atribuem significado s anatomias, rechaando a prpria
polaridade binria pela qual se manifesta a norma, situam-se e so situadas em zonas
inspitas e inabitveis, lugares impuros (MACDOWELL, 2008, p. 5), os quais
devem ser, por isso mesmo, evitados, escondidos e repudiados.
O carter abjeto dos corpos travestis explica porque a presena das mesmas em
espaos pblicos, sobretudo durante o dia, provoca estranhamento e agresses de toda
ordem, levando ao estabelecimento de uma ditadura da noite, a associao do dia
opresso por mecanismos tcitos de coero social e conseqente restrio da vida das
travestis ao perodo noturno, signo da prostituio (e, consequentemente, rua como
espao de prostituio) (MACDOWELL, 2008, p. 6).
Os territrios de prostituio so, dessa maneira, espaos impuros aos quais
so destinados os corpos abjetos das travestis. Tais corpos, ao mesmo tempo em que
dotam de significados esses espaos, so marcados pelos signos dos mesmos, dentre
eles a prpria violncia, apontada por Macdowell (2008) e Ferreira (2003) como
elementos constitutivos dos territrios de prostituio travesti.
Como j mencionado nesse trabalho, estudos sobre territrios da prostituio no
se apresenta como algo novo no mbito da geografia brasileira, figurando como
32
-
pioneiro nesse sentido, a anlise de Ribeiro e Mattos (1996) acerca da prostituio na
rea central da cidade do Rio de janeiro. Esses autores conceituam territrios de
prostituio como decorrentes da
apropriao, durante um certo perodo de tempo de uma rua ou um conjunto de logradouros por um determinado grupo de prostitutas, michs e travestis, que atravs de uma rede de relaes, da adoo de cdigos de fala, expresses, gestos e passos, garantem e legitimam essas reas como territrios para a prtica de tal atividade, estruturada, outrossim, atravs da violncia explcita. (RIBEIRO, 2008, p. 8).
Nesse estudo, assim como em Ribeiro (2002), tem-se uma descrio detalhada
da organizao do espao correspondente rea central carioca em termos dos vrios
usos e significados atribudos ao mesmo, bem como suas temporalidades. Assim, o
espao em questo, que durante o dia caracterizado como um local de comrcio e
servios diversos, representados por atividades de lazer, hotis, instituies financeiras,
rgos culturais, servios pblicos, dentre outros (RIBEIRO; MATTOS, 1996, p. 65),
noite transforma-se, sendo tais usos sucedidos por outras prticas sociais e espaciais, a
exemplo da prostituio, geradora de territrios cujos principais aspectos so retratados
com acuidade pelos autores.
Enquanto elementos integrantes da organizao do espao urbano carioca, os
territrios de prostituio so demarcados pelos limites das territorialidades especficas
dos diversos grupos de mercadores do sexo4 ali encontrados, sendo as prticas de
apropriao desses espaos pblicos, conforme observao de Ribeiro e Mattos,
diferenciadas quando se compara travestis, mulheres de programa e michs5. Importante
destacar que os autores, ao delimitar e analisar os territrios de prostituio
correspondentes aos diversos segmentos acima, no o fazem de maneira desassociada de
outros elementos desses espaos. Assim, explicam a constituio dos territrios de
prostituio como decorrente do prprio ambiente criado por outras atividades
4 Forma como Mattos e Ribeiro (2002) designam genericamente as mulheres, travestis e homens que se prostituem.
5 De acordo com Ribeiro e Mattos, o termo mich portador, atualmente, de dois sentidos, sendo que um faz referencia ao cliente que o utiliza como gria, fiz um mich, expressando, dessa forma, a realizao do ato sexual como produto da prostituio. O outro sentido, utilizado no texto acima, diz respeito jovens que no abdicam dos prottipos gestuais e discursivos da masculinidade em sua apresentao perante o cliente (PERLONGHER apud RIBEIRO E MATTOS, 1996, p. 61).
33
-
constituintes desses espaos, s quais ligam-se tambm, o surgimento de outras
territorialidades de excludos da sociedade [...] tais como dos catadores de papel, dos
sem-teto, dos menores de rua, dos guardadores de carros (os flanelinhas),
vendedores de drogas, entre outros (RIBEIRO E MATTOS, 2002, p. 60).
34
-
CAPTULO 3: O drama travesti ao rs do cho
3.1 Relatos, usos e temporalidades
Marcava quase vinte e duas horas quando eu, a pesquisadora, e mais dois
rapazes chegamos ao bairro Vila Bretas atravs da avenida Juscelino Kubitschek, de
onde partimos, seguindo pela Rua Sinval Rodrigues, conhecida como rua do come em
p, rumo Empresa de Transportes Coletivos Valadarense em cujas imediaes podem
ser encontradas travestis e mulheres batalhando6. Era fevereiro e fazia muito calor. Nas
ruas, o movimento incessante de nibus levando para casa trabalhadores e estudantes
misturava-se ao vaivm de carros e corpos, alguns apressados, outros, nem tanto; todos,
porm, iluminados por um cu claro e estrelado.
Como no conhecia e nem era conhecida na rea, solicitei ajuda a um amigo
que, por ser primo de umas das travestis que l se prostitua, tornaria mais fcil, como
de fato aconteceu, minha entrada em campo. Ao aproximarmos de um grupo de cinco
ou seis travestis que se encontrava na esquina da rua do come em p com a rua Juiz de
Paz Jos de Lemos, meu acompanhante assim interrompeu: Boa noite! Vocs sabem se
a Akira t por aqui?, pergunta a qual as travestis prontamente responderam apontando
para um bar situado a uns poucos metros dali. T ali no Bar da Loira. Agradecemos e
seguimos at o referido bar que destacava-se de outras construes da mesma rua
devido combinao de cores que tingem sua fachada: rosa e amarelo intercalados com
o preto das letras que significam o nome do bar.
6 Parte do dialeto utilizado pelas travestis entrevistadas, o termo batalha empregado como sendo sinnimo de prostituio. Seu sentido, como acertadamente aponta Ferreira, faz referncia s dificuldades relacionadas a essa atividade como a concorrncia, ganhos incertos, o frio e a violncia, tanto entre as travestis quanto entre essas e outros grupos como clientes, passantes, marginais e/ou outras categorias de profissionais do sexo (FERREIRA, 2003, p. 4).
35
-
(Foto 1) O Bar da Loira, na rua do come em p
Freqentado pelas travestis, alguns de seus clientes e outras pessoas que ali
encontram bebidas, comidas, mquinas para a compra de msicas e mesas de sinuca, o
Bar da Loira no tem suas portas abertas todos os dias, j que, como nos informam
algumas travestis, o bar no a principal atividade exercida por sua proprietria que
tambm cabeleireira em um salo prximo dali. Chegamos porta e logo avistamos
uma mesa composta por um grupo de travestis acompanhadas por Daiane, uma puta,
como as primeiras gostam de se referir s mulheres que se prostituem em territrio
vizinho ao seu. Como pude observar no perodo em que estive em campo, Daiane uma
das poucas mulheres de programa que tem permisso para transitar livremente pelo
territrio das travestis, o que pode ser explicado pela estreita amizade entre ela e as
travestis presentes naquele bar, com as quais dividia, ainda, um quarto na casa da
cafetina Wanda, localizada prxima dali, a uns dez minutos de caminhada.
Feitas as apresentaes, foi-me solicitado que falasse, aos presentes, no que
consistia essa pesquisa, seus objetivos e metodologia. Comecei explicando que se
tratava de um trabalho de concluso de curso e quando j estava quase terminando
minha explanao fui interrompida por Akra, que acompanhava com bastante ateno:
ah, gente, ela vai escrever um livro sobre a vida da gente! Concordei naquele mesmo
momento com a declarao daquela travesti; primeiro por no se tratar de uma
36
-
inverdade, j que uma monografia uma espcie de livro lido por professores e, talvez,
por alguns colegas. Em segundo lugar, o entusiasmo demonstrado pelas travestis diante
da possibilidade de ter suas vidas narradas levou-me a perceber que a idia lanada por
Akra provocaria, como de fato ocorreu, um maior interesse, facilitando, dessa maneira,
minha interao com aquele territrio.
A conversa estava bastante animada. Em meio a anedotas e casos sobre suas
experincias amorosas, as relaes com suas colegas e clientes, tanto no territrio
quanto fora dele, as travestis dirigiam-me perguntas sobre minha vida pessoal, sobre o
lugar onde moro e estudo, intercalando s mesmas sugestes acerca do contedo desse
trabalho como o uso de fotografias, as quais deveriam ser tiradas por mim em dia
previamente acertado com elas. Esse acerto era, de acordo com as travestis, necessrio,
pois assim estariam mais preparadas, viriam melhor montadas7, mais arrumadas.
Permanecemos no bar por cerca de uma hora. Em determinado momento da
conversa, demonstrando preocupao em evitar situaes embaraosas, solicitei s
travestis que informassem s suas colegas sobre minha presena no territrio, pedido
aceito com frases que deixavam claro que a mim era permitido transitar pelo mesmo.
Ao final, quando todos se levantavam da mesa, Gabriela, travesti de vinte e trs anos, a
oito na putaria ou baixaria como ela prpria e outras comumente se referem aos
territrios de prostituio das cercanias, afirma com um ar conclusivo:
Ento..., ali, todo mundo j conhece aquilo ali, , ali todo mundo j conhece, todo mundo sabe. o que eu digo, quem daqui j cresce sabendo que ali a baixaria. Agora pra quem de fora s chegar e perguntar. Todo mundo fala. s chegar e procurar saber onde que tem puta na rua e viado na rua, eles j falam logo: procura a valadarense! (entrevista concedida em fevereiro de 2009).
Gabriela tinha razo. O morador de Governador Valadares, quando questionado
sobre onde encontrar travestis em condio de prostituio, responde imediatamente:
na Valadarense8. Considerado o mais famoso ponto de prostituio travesti da cidade,
o territrio em questo localiza-se no bairro Vila Bretas, cujo espao marcado por uma
multiplicidade de usos associados s temporalidades do dia e da noite, os quais sero 7 Montar-se, estar montada significa, na linguagem nativa, vestida de mulher. 8 Forma abreviada de se referir Empresa de Transportes Coletivos Valadarense e ao espao a ela adjacente.
37
-
tratados com maiores detalhes nas pginas seguintes. Antes, porm, ser feita uma breve
exposio sobre a cidade de Governador Valadares no que toca aos principais aspectos
de sua populao e economia.
Localizado na poro leste do Estado de Minas Gerais, o municpio de
Governador Valadares, de acordo com dados do IBGE para 2007, contava com uma
populao de 260. 396 pessoas (IBGE, 2007). Quanto economia, a principal
contribuio para o PIB (Produto Interno Bruto) advm do setor de servios,
destacando-se o comrcio de pedras preciosas e o turismo na sede do municpio,
atividade que se apia na existncia do chamado Pico do Ibituruna, elevao de 1.123m
de altitude em relao ao nvel mdio do mar e que serve de plataforma para a prtica
do vo livre.
Alm do comrcio e servios, dentre eles queles relacionados ao turismo, o
qual responsvel pelo desembarque anual de centenas de turistas de todo o Brasil e do
mundo, a cidade de Governador Valadares tem sua economia movimentada pela
remessa de dinheiro proveniente de trabalhadores valadarenses que migraram para a
Europa e, sobretudo, para os Estados Unidos em busca de melhores condies de vida.
De acordo com Soares apud Martes e Soares (2006), no ano de 1995, 62,7% dos
emigrantes valadarenses internacionais remeteram dinheiro cidade, sendo que boa
parte do montante total foi aplicado na compra, construo ou reforma de imveis,
movimentando, dessa maneira, o setor imobilirio e de construo civil, outro pilar da
economia valadarense.
no contexto de uma cidade que apresentou significativo dinamismo
econmico nos ltimos anos, com cerca de 70% do seu PIB pautado no setor tercirio e
um IDH (ndice de desenvolvimento humano) em constante crescimento, alcanando
nos anos de 1990 [...] patamares superiores aos registrados para a microrregio e para
mdia estadual (MARTES; SOARES, 2006, p. 47), que se desenvolve a atividade da
prostituio em suas diferentes formas de manifestao, incluindo a prostituio de rua,
da qual aquela empreendida por travestis no bairro Vila Bretas constitui-se em apenas
um exemplo.
O bairro Vila Bretas cortado por trs importantes vias de circulao: as
avenidas Pedro Lessa e Juscelino Kubitschek, essa ltima conhecida como JK, e a BR
116 que liga a cidade de Governador Valadares ao nordeste e outras partes do Sudeste
38
-
do pas. Na BR 116, desemboca a avenida Pedro Lessa que assim conecta o centro da
cidade aos bairros localizados do lado oposto da BR como Jardim Prola, Bela Vista,
Palmeiras, Turmalina, dentre outros. Ao lado da Pedro Lessa, a avenida JK figura como
dois dos mais movimentados corredores urbanos, sendo a ltima uma via de acesso ao
aeroporto e parte industrial de Governador Valadares, ligando ainda o centro aos
bairros Santa Rita, Vila dos Montes, Asteca, Atalaia, Vila Isa, para citar apenas alguns.
Na BR 116, como nas outras duas vias citadas, o trfego bastante intenso,
tanto de manh quanto tarde, ocupadas que esto por ciclistas, automveis e nibus
levando e trazendo pessoas do trabalho, da escola e das compras, devendo-se
acrescentar, para o caso da primeira, o vaivm de caminhes carregados de mercadorias,
cujo destino pode ser o prprio municpio, outro Estado e at outra regio.
Alm da intensa circulao de veculos observada durante o dia, tem-se para as
avenidas JK e Pedro Lessa, na altura do bairro Vila Bretas, uma forte movimentao de
pessoas, sobretudo na JK, movimento que se associa aos usos que so feitos desses
espaos. O entorno da avenida JK principalmente comercial e de servios, estando
presentes padarias, postos de gasolina, casas de autopeas, lojas para locao e venda de
veculos, lanchonetes, bancas de jornais e revistas e dois grandes prdios pblicos onde
se oferecem, alm de lazer e esportes, cursos profissionalizantes. Na avenida JK podem
ser encontrados, tambm, pequenos prdios residenciais, sendo tal uso, a principal
caracterstica da avenida Pedro Lessa, em cujos arredores so encontrados, no obstante,
alguns bares, lanchonetes, lojas de roupas, de informtica, auto-escola, dentre outros.
Depois do fim do dia e incio da noite, quando o fluxo de pessoas e veculos
ainda intenso em funo do trmino do expediente e regresso de trabalhadores para
casa, observa-se nas duas avenidas supracitadas um patente refluxo do movimento. Em
seus arredores, entre sete e meia e oito horas da noite, em meio aos carros, bicicletas e
pedestres, j possvel avistar algumas travestis e garotas de programa avanando em
direo Valadarense, em cujas imediaes so formados territrios em virtude da
apropriao daquele espao pelas mesmas para a realizao da atividade prostitutiva.
O territrio de prostituio travesti no Bairro Vila Bretas formado pela rea
que vai da esquina da avenida Pedro Lessa com a rua Sinval Rodrigues Coelho,
chamada rua do come em p, seguindo por essa ltima em direo rua Moreira
39
-
Sales, passando, antes, pelo cruzamento com a rua Juiz de Paz Jos de Lemos, ponto
onde se concentra grande nmero de travestis. Na rua Moreira Sales tem-se, ainda, a
apropriao de um pequeno trecho que vai da esquina da rua do come em p at a
barraca de cachorro quente que se situa a poucos metros do encontro com a Manoel
Birro, rua que j faz parte de outro territrio, o das garotas de programa.
Figura 1: Territrios de prostituio das travestis e das garotas de programa no bairro Vila Bretas, cidade de Governador Valadares MG
Fonte: Imagem do Google Earth de 22 de novembro de 2009 (com adaptao)
Nas ruas que compe os territrios de prostituio travesti, bem como em suas
cercanias, podem ser observadas casas e pequenos prdios de apartamento em cujas
portas se vem, ao longo do dia, o bate-papo entre vizinhos. Ainda durante o dia tem-se
certo movimento de pessoas e veculos relacionados ao comrcio e servios oferecidos
no bairro, com oficinas de reparo de automveis, barracas de churrasquinho e cachorro
quente, escritrios e garagens de transportadoras dividindo espao com alguns bares,
lotes vagos, duas universidades, uma escola secundarista, alm do prdio administrativo
40
-
e garagem da empresa de transportes coletivos da cidade, a Valadarense, a principal
referncia espacial do bairro.
noite, contudo, a paisagem outra. Por volta das vinte horas o movimento
nas ruas j se mostra fraco. Os vizinhos se recolhem. Boa parte do comrcio e servios
fecha as portas, alguns bares mantendo, todavia, seu funcionamento ao lado de outros
abertos somente noite como o Bar da Loira e a casa de forr Fun House que funciona
apenas s quintas feiras.
No perodo da noite, dentre as ruas que formam a zona de prostituio da
Valadarense, a Manoel Birro, a rua do Fun House como mais conhecida, a que
apresenta maior movimento, j que nela onde se localiza o porto para entrada e sada
de funcionrios da empresa de transportes coletivos, mas, principalmente, por nela estar
situada uma das duas universidades particulares do bairro, a qual explica a concentrao
de ambulantes, bem como a intensa circulao de pessoas que se enfraquece, contudo,
com o fim da aulas s dez horas da noite.
(Foto 2) Fachada da Empresa de Transportes Coletivos Valadarense, em cujas imediaes se forma a chamada zona de prostituio da Valadarense.
41
-
(Foto 3) Residncias localizadas na rua do come em p, na qual se concentra o maior nmero de travestis
Como se pode ver a partir do exposto acima, muitos so os usos que se fazem do
espao do bairro Vila Bretas, os quais possuem temporalidades distintas, alguns
exclusivos conforme se considera o dia ou a noite. No caso desse bairro, a
temporalidade se constitui em um marcador que se confunde com os espaos, alterando
cdigos e, assim, os corpos e as relaes entre as pessoas (PELCIO, 2007, p. 70).
Alm da prostituio enquanto atividade ligada noite, a qual, de acordo com Pelcio,
deve ser vista como uma categoria temporal e espacial abstrata, onde h legitimidade
para se transgredir comportamentos que seriam malvistos ou mesmo impensveis de
dia (2007, p. 70), encontram-se, na Vila Bretas, usos de carter residencial, comercial e
de servios. O dilogo abaixo, empreendido entre a entrevistadora e as travestis Akra e
Gabriela, ilustra bem essa multiplicidade que caracteriza o bairro:
Gabriela: eles [os moradores] nem v agente no. D 8, 9 horas, fica com medo, tudo tranca a cara, ningum fica pra fora, s agente, agente e o povo da baixaria. Perto de onde agente fica, ali na rua do come em p, no tem morador. Naquela parte ali tem s a escola que solta 10 e meia da noite, mesmo assim acabou. Passa todo mundo mexendo, zuando, enchendo o saco, depois disso a acabou.
Entrevistadora: Eu percebi algumas diferenas aqui quando eu vim de dia, eu percebi que era outra vida....
42
-
Gabriela: bem diferente..... o lado claro e o lado negro....
Akira: totalmente diferente. o que eu te disse aquele dia l no bar. Durante o dia voc v um ambiente bem familiar, pessoas, gente trabalhando, crianas na rua, brincando, gente indo pra escola, indo trabalhar, pessoas passando pra cima, pra baixo.De noite no, de noite freqenta ali poucos trabalhadores, n, da valadarense, quem j vai direto procurando um bar ou um fun house no fim de semana pra poder se divertir, o pessoal que sai da faculdade, sai da escola, e o resto, minha filha, j vai pra li procurando a baixaria, mesmo, a putaria... (Entrevista concedida em 20/02/09 na casa da cafetina Wanda).
3.2 As travestis e sua territorialidade
Aps a descrio acima, onde apresentamos um levantamento acerca dos
diversos usos e temporalidades presentes no bairro Vila Bretas em Governador
Valadares MG, prosseguiremos nossa discusso acerca do territrio de prostituio
travesti que nele se constitui, concentrando-nos, entretanto, em alguns aspectos da
territorialidade desse grupo, tais como a forma como essa se estabelece, suas
caractersticas e motivaes.
Em pginas anteriores foi apresentada uma discusso acerca da natureza do
territrio, o qual se constitui em um espao definido e delimitado por e a partir de
relaes de poder (SOUZA, 1995, p. 78), acrescentando-se, a essa dimenso poltica,
uma outra de carter simblico e afetivo, relacionada atribuio de sentidos e
significados ao espao de vivncia de determinado grupo social (HAESBAERT, 1997,
2002). Ao territrio circunscreve-se a territorialidade de determinado grupo, a qual,
como vimos nas definies apresentadas no captulo 1, encontra-se i