Download - o Décimo Terceiro Discípulo
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1998.
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Sumário
INTRODUÇÃO ........................................................................... 7
Capítulo I - A invasão do Império Romano............................ 13
Capítulo II - A Resistência do Povo Judeu – a Destruição de
Massada ................................................................................. 21
Capítulo III - A Era das Trevas ................................................ 49
Capítulo IV - Os Essênios ....................................................... 61
Capítulo V - A Grande Viagem ............................................... 95
Capítulo VI - O Plano de Redenção da Humanidade ........... 121
Capítulo VII - Os Dissidentes ............................................... 145
Capítulo VIII - A Missão dos 12 + 1 ...................................... 167
Capítulo IX - A Perseguição ................................................. 197
Capítulo X - A Proximidade da Morte .................................. 227
Capítulo XI - Roma – A Capital do Império ........................... 281
Capítulo XII – Visões do Inferno ........................................... 307
Capítulo XIII – O Retorno...................................................... 335
Capítulo XIV – Uma mudança de rumos .............................. 361
Capítulo XV – O grande enigma ........................................... 383
Capítulo XVI – A Difícil Decisão ............................................ 401
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Capítulo XVII - A Sorte Está Lançada ................................... 435
Capítulo XVIII – O grande reencontro .................................. 463
Capítulo IXI – Traição e Crucificação .................................... 481
Capítulo XX – Uma Paz Possível ........................................... 507
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INTRODUÇÃO
Quando iniciei meus escritos, estávamos no ano 3.790 do
nosso calendário judaico, sob o governo do Rei Herodes I –
O grande, um judeu nascido em Edom, criado em Roma,
colocado no poder para nos governar. Não sei até quando
continuarei a escrever. Já sou um ancião chegado nos anos e
sei que os meus dias estão contados.
Meu nome é Matias, sou o filho mais velho de Harael, filho
de Eleazar. Meu pai foi aquele que, com apenas dez dos
seus homens, derrotou uma legião de soldados romanos
comandados pelo centurião Lucius de Gália, na batalha do
Mar Negro.
O que irei vos relatar agora poderá custar a minha vida, pois
estou quebrando o Pacto de Silêncio imposto por meus
irmãos essênios, aos quais tive a honra de servir como
escriba por quase vinte anos.
O relato que farei nesses papiros talvez nunca venha a ser
lido por ninguém e nem mesmo os papiros venham ser
encontrados. Eu espero que pelo menos um deles um dia
seja encontrado em perfeitas condições e decifrado, para
que os homens finalmente conheçam a verdade sobre o que
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poderá ser a maior história de todos os tempos, isto é, como,
verdadeiramente, o Messias foi concebido.
Este será o meu testemunho. Não espero que meus irmãos
da fraternidade possam me perdoar pelo sacrilégio de
revelar toda a verdade, mas, eu fui um dos escribas que
escreveu o que será no futuro conhecido em um dos
Evangelhos: "E conhecereis a Verdade e ela vos libertará".
É sobre essa verdade que quero contar.
Eu sou aquele que será considerado como o décimo terceiro
discípulo de Cristo, o substituto de Judas Iscariotes e vou
relatar o que vi e ouvi. Escrevo para aqueles que têm
ouvidos para ouvir, olhos para ler e sabedoria para entender,
o que não seria possível nesse tempo em que vivo.
Aquilo que eu relatar, sei que parecerá o resultado da mente
de um homem confuso, incoerente, dominado pelo medo ou
movido por uma intensa paixão pela verdade. Talvez até eu
seja julgado como alguém fora da realidade. O certo é que
eu não tenho muito tempo para escrever tudo e, mesmo o
que eu conseguir produzir, terei que esconder meus papiros
em vasos e enterrá-los em cavernas, na esperança de que,
um dia, alguém possa ter a sorte de encontra-los,
decodificá-los e, finalmente, revelá-los.
Ao produzir tais textos, estou movido por um único desejo:
o de contar a verdade, conforme vi e ouvi. Em alguns
momentos, eu poderei cometer o erro de interpretar o que vi
ou ouvi dos meus irmãos essênios, mas, se o fizer, será
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apenas para esclarecer algum fato relevante, já que não sei
quando os meus papiros serão encontrados e nem o que será
feito deles. Por isso, preciso dar tantos detalhes e
explicações quantas forem necessárias para facilitar o
entendimento de quem os encontrar. Pode ser que levem
cem, mil ou dez mil anos para serem descobertos. Eu,
sinceramente, espero que sejam encontrados muito depois
de minha morte, pois, se isso acontecer antes, minha
mulher, meus oito filhos e filhas e eu poderemos ser
condenados a uma morte ainda pior do que aquela que foi
escolhida para Emmanuel, o Filho do Altíssimo.
Aprendi com os mestres da Judéia a arte de escrever em
papiros e a efetuar registros históricos. Esse é o meu ofício,
muito embora eu sempre quisesse ser guerreiro, um homem
que soubesse manejar uma espada, montar em cavalos e
usar arco e flecha e lança, como sabem muitos dos nossos
soldados. Devido ao meu porte franzino e minha excelente
memória, meu pai não me deixou seguir o seu ofício de
combatente judeu. Encaminhou-me muito cedo para a
escola de escribas, onde aprendi a ler e escrever, bem como
a redigir documentos de toda ordem. Aprendi várias línguas
com facilidade e, eventualmente, manifestava em sonhos o
dom da profecia. Por essa razão, chamei a atenção de um
dos meus mestres, que era um essênio, e um dia, me levou
secretamente para conhecer alguns dos outros membros da
fraternidade. Depois contarei em detalhes como isso
aconteceu.
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Conheço os pormenores da história do nosso povo, suas
conquistas, seus sofrimentos até os dias de hoje. Tentarei,
nos meus relatos, apresentar apenas os fatos mais
importantes para que, qualquer leitor, em qualquer tempo ou
lugar do mundo, possa compreender e confirmar a
veracidade do meu testemunho. Nem sempre os
historiadores relatam fatos reais. O teor dos seus escritos
geralmente depende da orientação de quem lhes paga para
escrever. Assim, os escribas judeus costumam escrever
apenas o que convém aos rabinos e aos governantes da
Judéia. Evitam contar algo que possa manchar a dignidade
do nosso povo. Os escribas romanos fazem o mesmo. Da
mesma maneira, fazem os persas, os árabes, os egípcios e os
gregos. Todos contam versões de um mesmo fato de modo
que nunca será possível se comprovar quem contou toda a
verdade. Eu entendo que cada povo tem seus brios, seu
orgulho e o desejo de retratar cada época vivida como um
sucesso. Mas nem sempre a vitória ocorreu conforme
apresentada nos relatos.
O que me faz diferente dos demais escribas? Por que você
deveria acreditar nas minhas palavras e não nos relatos
contados por outros escribas? Porque você poderá usar a sua
própria inteligência para comparar os escritos e descobrir as
falhas que eu mesmo irei apontar. Há também uma outra
grande razão para que você acredite nas minhas palavras: eu
também quero ter um lugar na história do meu povo. Não o
lugar de um traidor, mas de alguém que cumpriu a missão
de escriba, conforme lhe foi pedido e também de alguém
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que quer revelar a verdade por trás de tudo o que eu mesmo
escrevi. Eu fui apenas usado por meus irmãos da
fraternidade para cumprir o papel de escriba, não cabia a
mim discutir se o que faziam era correto ou não. Embora eu
tenha discordado deles algumas vezes, como você lerá. De
certo modo, eu até fui, durante vinte anos, seduzido pela
história que me pediam para eu escrever nos papiros.
Cheguei a acreditar que, mesmo sendo uma história criada
por um grupo de pessoas, tinha seu valor, já que ela foi
concebida por um grupo de homens dotados de grande
inteligência e sabedoria e teve o propósito de mudar para
melhor as leis do nosso povo e até de grande parte do
mundo. Esses homens detêm um imenso cabedal de
conhecimento e informação. Muitos já viajaram por todo o
Oriente e parte do Ocidente. Tudo o que eles querem é que
uma nova fé e uma nova maneira de viver se espalhe pelo
mundo e que, dentro de alguns séculos ou milênios, essa
fabulosa história seja lembrada e recontada. Que seja uma
história com poder de modificar a vida de homens e
mulheres que a conhecerem.
Quando eu comecei a escrever esses pergaminhos, a nossa
fraternidade ainda tinha a proteção do rei Herodes I, pois
Menahen era seu amigo e oráculo particular. Menahen foi,
durante muitos anos, o sacerdote-mor dos essênios da
Judeia. Com a morte trágica de Herodes, que sofreu uma
queda do cavalo ao completar setenta e seis anos de idade,
ficamos expostos e fragilizados. Muitos já foram mortos e
estamos sendo perseguidos. Os romanos nos odeiam e os
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nossos próprios irmãos judeus nos abominam. Já não temos
um lugar seguro para viver.
Para que você possa melhor entender como tudo aconteceu,
preciso te fazer um relato minucioso dos dias que vivi.
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Capítulo I - A invasão do Império Romano
Eu tinha dez anos de idade e estava, com os meus irmãos
mais novos, dando de beber às nossas cabras em um poço
próximo de nossa aldeia, quando vimos, ao longe, uma
poeira amarelada vindo em nossa direção.
- Benjamin... Calebe... Mirian! Corram para aquela gruta!
Vem vindo uma tempestade de areia. Vou tentar levar as
cabras para lá antes que a tempestade nos alcance – gritei
para meus irmãos.
Benjamim, que apesar de ser um ano mais moço do que eu,
demonstrava um grande poder de observação, fez sombra
no rosto com uma das mãos pequeninas e espichou o
pescoço queimado de sol na direção da poeira.
- Não é tempestade, são cavalos... são cavalos!
Meu coração disparou. Cavalos vindo em direção ao único
poço existente naquela região, só podiam ser romanos. E, se
fossem romanos, nós estaríamos em perigo, pois eles eram
considerados por meu povo como inimigos. Meu pai havia
lutado contra eles na batalha do Mar Negro, derrotando uma
legião de romanos. Depois disso, meu pai se tornou um
fugitivo e havia uma recompensa para quem o encontrasse
vivo ou morto. Minha mãe e nós havíamos nos mudado para
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um vilarejo ao norte de Jericó, onde vivia meu tio Hezron.
Meu tio era criador de cabras e ninguém sabia que ele era
irmão do meu pai, pois nunca havia nos visitado na época
em que Jerusalém foi invadida e saqueada pelos romanos.
Meu pai havia se alistado para servir ao exército e, por sua
destreza no uso da espada curva e da lança, logo granjeou
fama e se tornou subcomandante das guarnições zelotes, um
grupo de judeus especializados em espionagem e ataques
surpresa aos romanos e a outros inimigos da nossa terra.
- Vou matar esses cães sarnentos! – gritou meu irmão
Caleb, cuspindo no chão e enfiando a mão em seu saco de
pedras, ao tempo em que empunhava sua funda. Calebe
tinha apenas oito anos e, no nosso grupo de amigos, era o
campeão em atirar pedras. A funda era a arma mais usada
pelos pastores e camponeses de nosso povo. Essa arma
preferida de Calebe era feita com uma tira flexível de couro
de cabra, medindo dois dedos de largura e quatro palmos de
comprimento. Havia no meio da tira uma parte mais larga e
côncava, onde se colocava a pedra a ser atirada. Calebe
costumava enrolar as duas pontas da tira na sua mão
esquerda, pois era canhoto. Quando ele girava velozmente a
funda acima da cabeça e soltava uma das pontas, a pedra
viajava certeira na direção do alvo. Se fosse um pássaro ou
uma serpente, Calebe quebrava os ossos do animal,
causando um estrago tão grande que ele, por puro ato de
misericórdia, liquidava a vítima com outra pedrada
fulminante na cabeça. O sonho de meu irmão era, ao
completar quinze anos, entrar para o grupo dos
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Fundibulários que constituíam parte regular dos exércitos de
Judá. Uma espécie de grupo de elite de atiradores de pedras
com o uso de fundas.
Mirian e Benjamin já estavam correndo em direção à gruta,
que ficava a poucos metros do poço onde estávamos. Calebe
olhava em volta à procura de mais munição para a sua arma
de guerra e eu estava apavorado, sem saber se deveria
deixar para trás as 10 cabras, que eram toda a nossa fortuna,
ou se deveria me juntar aos meus irmãos e arrastar o
impetuoso Calebe para o interior da gruta, na esperança de
que os soldados romanos, depois de dar água aos cavalos,
seguissem em sua rota para Jericó.
A poeira aumentava no horizonte e eu sabia que, dentro de
pouco tempo, os cavaleiros chegariam até o poço. Todos
que viajavam pelo deserto da Judeia possuíam mapas para
encontrarem oásis e poços perenes, formados pela água
fresca que corria sob as rochas nas profundezas do chão
duro.
- Calebe, não seria melhor levarmos as cabras lá para dentro
antes que os soldados cheguem. Nossa mãe e tio Hezron
vão ficar desapontados se as deixarmos para os romanos.
Guarde suas pedras para uma próxima vez – implorei, na
esperança de que meu irmão teimoso me ouvisse.
- Malditos!! Malditos!! – praguejou o magricelo sardento,
juntando-se a mim e tocando as cabras na direção da
caverna, onde meus outros dois irmãos já estavam.
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De vez em quando, olhávamos no sentido da poeira que
parecia um fantasma vindo em nossa direção. Intimamente,
pedi a Javeh que nos protegesse.
Por muito pouco, os soldados não nos viram arrastar nossa
última cabra para dentro da caverna. De onde estávamos,
podíamos vê-los desmontando e conversando em voz alta.
Meus conhecimentos da língua romana e de muitas outras
me permitiam ouvir fragmentos da conversa quando o vento
sobrava em nossa direção.
- .... Herodes está criando uma serpente dentro de casa... vai
ser picado antes que se dê conta.... deveriam ser todos
queimados ou crucificados... Roma não vai tolerar essas
rebeliões... decepar todas as cabeças... temos meia dúzia de
espiões comprados no exército deles.... gostam de dinheiro,
pois irão gastá-los no Hades de que tanto falam...
Procurava conter a minha ira ao perceber o escárnio dos
romanos ao nosso povo. Tinha certeza de que se Calebe
pudesse entender o que falavam sairia da caverna com a sua
funda e os atacaria sem piedade.
Minha irmãzinha, Mirian, tremia de medo e tive que apertá-
la contra meu peito para que se acalmasse.
- Eles vão beber toda a nossa água... eles vão beber toda a
água do nosso poço – dizia ela, chorando baixinho.
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- Não vão... tem muita água lá. Logo irão embora. Javeh
está do nosso lado – dizia eu à minha irmã, agarrando-me a
um fio de esperança e fé que nem mesmo eu sabia que
possuía.
Benjamin e Calebe faziam cerco para impedir que as cabras
saíssem da gruta. Uma delas começou a balir alto.
- Benjamin, faça essa bendita cabra parar de berrar. Os
romanos não podem perceber que estamos aqui – disse eu
em pânico, ao tempo em que espiava para ver se algum
soldado havia ouvido.
Não ouviram. Pelo número de cavalos, calculei que eram
em torno de cem homens – as temidas centúrias romanas da
Ordem Equestre, formada por plebeus romanos
endinheirados que recebiam ordens diretas de César e
também dele toda a proteção possível. Um centurião era juiz
e carrasco de quem estivesse abaixo dele. Se achasse que
um homem ou mulher deveria morrer, passava-o no fio da
espada na presença de todos e não havia nenhuma outra lei
para julgar aquele ato. Mesmo os governadores temiam os
centuriões, pois eram homens agressivos, impiedosos e
gananciosos. Um quarto dos bens que saqueavam ficava
para eles, a outra parte ia para Roma.
Pelo tempo que pareceu uma eternidade, os romanos
continuaram gargalhando e conversando, como se não
tivessem pressa alguma de ir embora. As cabras estavam
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ficando nervosas, pois nem todas tinham bebido água
suficiente. Meus irmãos também pareciam aterrorizados.
De repente, um dos soldados afastou-se do grupo e
caminhou na direção da gruta onde estávamos. Alertei os
meus irmãos para que ficassem em silêncio e tapassem as
bocas das cabras para que não balissem.
Calebe deitou-se no chão da gruta ao meu lado, espiando
para fora. Ao lado dele, havia um saco de pedras de vários
tamanhos, todas preparadas para serem disparadas por sua
funda mortal. No templo, nós já havíamos escutado diversas
vezes a história do valente Davi que, antes de se tornar rei,
matou o gigante Golias com uma pedrada certeira de sua
funda. Davi fora o inspirador de meu irmão. Nós
poderíamos morrer ali mesmo, degolados pelas afiadas
espadas dos romanos, minha irmã poderia ser estuprada e
morta, mas, com certeza, alguns deles iriam morrer antes,
atingidos pelas pedradas mortais disparadas por meu irmão.
Senti um grande orgulho dele naquele momento. Minha
natureza era parecida com a dele, mas eu fora desencorajado
por meu pai a seguir uma carreira militar. Meu espírito de
guerreiro fora amortecido pelos livros sagrados que aprendi
a ler desde pequeno. Benjamin era parecido comigo, no
entanto, mais astuto em todos os sentidos. Ele também
falava o latim, língua dos romanos, e era sempre quem
resolvia os nossos pequenos e grandes problemas. Corri
para obter dele um conselho.
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- Benjamin... um dos soldados romanos está vindo em
direção à nossa caverna... você tem uma ideia do que
devemos fazer?
Benjamin colocou o dedo indicador em forma de gancho no
lábio inferior e, depois de um tempo que parecia demasiado
longo frente aquela situação, disse:
- Tenho sim. Mas vocês precisam confiar em mim. E não
deixe Calebe atirar nenhuma pedra, aconteça o que
acontecer.
- O que é? Qual é o seu plano? O que podemos fazer? –
disse eu aflito.
- Confiem em mim... apenas isso. Se o soldado chegar perto
da caverna, eu irei falar com ele. Vocês ficam aqui dentro.
Eu podia agora ver a poeira levantada pelas sandálias de
couro do soldado romano, a qual ia dos pés até ao joelho.
Ele estava vindo na direção certa da caverna. Usava um
saiote branco que parecia ser de seda e, sobre ele, um outro
de cor preta, feito de tiras de couro. Na cintura, presa ao
cinturão de metal, a temível espada romana cujo
comprimento chegava à panturrilha. Pude ver um escudo
metálico em seu peito e, por baixo dele, uma veste branca
de manga curta que deveria fazer parte do saiote. Ele usava
ainda ombreiras de cobre nos dois lados e tudo indicava que
era um dos líderes do grupo.
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Olhei para trás e vi meus irmãos, exceto Calebe, ajoelhados
com as mãos postas, recitando alguma coisa que parecia ser
uma oração ininteligível. Deveria ser a última que fariam
nesta vida. Eu tive vontade de me juntar a eles, mas fiquei
paralisado ao ver o soldado desembainhando a sua espada e
se aproximando mais cautelosamente da entrada da caverna,
como se suspeitasse de alguma coisa.
Benjamin, correu na direção das cabras e depois passou
velozmente sobre mim e saiu da gruta, enrolando o rosto no
turbante.
O soldado romano, ao ver o menino correndo em sua
direção, empunhou a espada com as duas mãos. Bastaria um
movimento dele e eu veria a cabeça de meu irmão voar
pelos ares. Os romanos sabiam que éramos seus inimigos e
não nos poupariam. Fechei os olhos com tanta força que as
lágrimas que inundaram meus olhos saíram espremidas
pelos cantos. Minhas mãos e todo o corpo tremiam e
transpiravam de medo, o que foi agravado pelo calor do dia.
Meu irmão estava agora face a face com o romano.
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Capítulo II - A Resistência do Povo Judeu – a
Destruição de Massada
Se eu estou relatando aquele episódio do dia em que meu
irmão Benjamin, sozinho, enfrentou um soldado romano e,
com a sua enorme astúcia, livrou-nos da morte certa e ainda
salvou as nossas cabras, as quais, com certeza, fariam parte
de um grande banquete romano, é porque eu tinha uma
missão a cumprir, assim quero crer.
Das muitas coisas que aprendi no caminho com os meus
irmãos Essênios é que nada neste universo acontece por
acaso. O acaso é só uma palavra para explicar o que não
conhecemos. Se algo acontece, então não é acaso, é o
resultado de uma ação ou de um conjunto delas, que a
maioria de nós desconhece. Tudo está interligado e segue
um curso misterioso.
Na minha família, eu podia ver nitidamente o quanto Javeh
havia nos abençoado. Minha mãe, Judith, era carinhosa,
zelosa dos filhos e esposa dedicada. Meu pai a desposara
quando ela tinha quatorze anos e não quis aceitar o dote da
família, pois eram muito pobres. Meu pai a amava e, se
estiver vivo, ainda a ama muito, pois tudo que fez na vida
foi para nos proteger dos invasores e nos dar melhores
condições de vida. O soldo que ganhava como soldado do
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exército judeu nos proporcionava uma vida melhor do que a
da maioria das demais famílias que viviam da pesca,
pastoreio ou lavoura.
Quando meu pai se envolveu na batalha do Mar Morto,
enfrentando uma centúria romana com apenas dez soldados,
somente três judeus sobreviveram junto com meu pai e dois
romanos feridos fugiram. Foram eles que reconheceram e
denunciaram meu pai, tornando-o um foragido.
Conta-se que o Imperador César Augustus, tio de Lucius de
Gália, ficara tão furioso com o incidente que ofereceu uma
recompensa de sessenta moedas de prata para quem
encontrasse meu pai ou levasse a sua cabeça para Roma.
Meu pai tinha muitos amigos e, provavelmente, havia
fugido para o Egito, tornando a sua captura mais difícil. Se
a minha mãe não tivesse sido instruída por meu pai a fugir
conosco, no meio da noite, para o deserto, para depois
refugiar em Jericó, vilarejo onde meu tio Hezron vivia
pastoreando ovelhas, todos nós estaríamos mortos.
Meus irmãos, todos eles tinham qualidades especiais.
Mirian, a mais moça era divertida e sempre procurava nos
animar com suas canções e brincadeiras. Nós a protegíamos
e a amávamos. Calebe era o nosso guerreiro, corajoso e
destemido, estava sempre pronto para enfrentar o que fosse.
Mesmo meu pai tinha dificuldade para controlá-lo. Apenas
minha mãe, com seu jeito amoroso, continha a fúria de
Calebe. Benjamin era o mais esperto de nós. Sempre
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contava histórias e resolvia os nossos problemas. Chegou a
aperfeiçoar uma funda para Benjamin, para possibilitar o
arremesso de duas pedras simultaneamente. Essa arama
mortal poderia provocar grandes ferimentos em quem fosse
alvejado. Também era ele o negociante, quando íamos ao
mercado fazer compras, minha mãe o encarregava de fazer
os negócios. Benjamin trocava uma cabra velha por tecidos
e calçados três vezes mais valiosos.
Eu, no entanto, não acreditei que ele teria sucesso com o
soldado romano. Não naquele dia. Nos não tínhamos para
onde fugir e o soldado iria nos achar escondidos.
Ficamos grudados um nos outros enquanto Benjamin
gesticulava e se aproximava do soldado. Eu não podia ouvir
direito o que ele dizia, pois pareciam apenas grunhidos sem
sentido. Quanto mais ele se aproximava, mas o soldado se
afastava, até que o romano começou a correr de costas na
direção dos companheiros que, ao vê-lo, desembainharam
suas espadas e olharam com espanto em direção à nossa
caverna.
Em seguida, vimos todos os soldados correrem para seus
cavalos montarem e dispararem rumo à estrada na direção
de Jericó. Um milagre havia acontecido, Javeh havia
poupado nossas pobres almas. Mas, nesse caso, o Senhor
havia usado a inteligência de meu irmão para nos livrar dos
romanos.
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Estávamos ainda paralisados sem entender o que tinha
acontecido lá fora, quando Benjamim voltou pálido como
um cadáver, ainda meio trêmulo. Havia um sorriso amarelo
em seu rosto e eu pude ver que era medo misturado à
alegria.
- Benjamin, o que aconteceu? O que você falou aos
romanos? Conte logo...
Somente depois que me aproximei do meu irmão foi que
percebi que o seu rosto estava enlameado com excrementos
e xixi de cabra. Os braços e mãos também. Nem em mil
anos eu pensaria em afugentar soldados romanos com cocô
de cabra que, embora tenha um odor muito forte quando
misturado à urina, isso não seria suficiente para fazê-los
correr em desespero daquela forma. Deveria ser outra coisa.
Agora todos nós estávamos abraçando Benjamin,
esquecemos o cheiro horrível que exalava do corpo dele.
Definitivamente, sabíamos que os romanos estavam longe.
A poeira agora se distanciava. O mesmo fantasma que
trouxera agonia e medo agora nos dava alívio e alegria.
- O que fez o soldado romano fugir? O que você disse a ele?
Você falou alguma coisa sobre o nosso pai? Você disse a
eles onde havia um tesouro, foi isso?
Benjamin apenas respondeu:
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- Eu disse ao soldado que era leproso e que toda a minha
família que estava dentro da caverna eram todos leprosos.
Disse também que tínhamos bebido água naquele poço e
que se eles não fossem embora depressa poderiam ficar
contaminados. Foi só isso o que eu disse.
A lepra é uma das piores doenças que acomete o nosso
povo. O sacerdote Mehahen disse que não era uma doença
contagiosa. Ele mesmo havia tratado de muitas pessoas com
lepra e não se contaminara. Mas, a aparência horrível de um
leproso afastava qualquer um, mesmo os próprios familiares
os expulsavam para o interior de cavernas longe dos demais.
Cuidavam de levar comida e roupas para eles, deixando-os
longe, para que fossem recolher. Os Essênios vêm
estudando essa e outras doenças há muitos anos e alguns
que estiveram ao leste do Oriente trouxeram boas novas.
Talvez chegue o dia em que os leprosos já não precisem
mais viver ocultos em cavernas e sejam curados.
Foi o medo da lepra que afugentou os soldados romanos. A
simples menção da palavra lepra era suficiente para fazer
tremer as pernas de um centurião romano. Uma simples
mentira teve o poder de salvar as nossas vidas. Também era
uma simples mentira que tinha o poder de matar uma
pessoa. Tudo dependeria da fé de quem a ouvisse. Não seria
atingido nem para o mal nem para o bem aquele que não
desse crédito a uma mentira. Os Essênios me ensinaram que
havia mentiras que podiam se transformar em verdades e
muitos morreriam por ela, muitos a defenderiam como
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verdade absoluta. Tudo dependeria da forma como essas
mentiras fossem contadas.
As inúmeras histórias que li e ouvi contar no templo,
oriundas do Torá e do Talmud, que são os livros da tradição
histórica e religiosa do nosso povo, estão cheios de
parábolas que nada mais são que contos de fácil
memorização e muito simples de serem compreendidas,
criados para transmitir algum tipo de ensinamento. São, nas
palavras do sacerdote Menahen, “doces mentiras que podem
levar a amargas verdades”. A verdade sempre é dolorosa.
Os seres humanos nunca estarão devidamente preparados
para ela, por isso inventam tantas histórias para torná-la
melhor aceita. E, como já fiz referência no prólogo, as
histórias sempre estarão manchadas pelos dedos de quem as
escreve ou pelos interesses de quem pagou para serem
escritas.
Um dia, perguntei ao meu mentor espiritual, irmão Abner,
como podia ter certeza de que os livros que embasavam a
nossa religião tinham sido inspirados por Javeh, o nosso
único Deus e Senhor. Ele acariciou a longa barba e me
respondeu:
- Inspiração divina são todas as ações humanas que buscam
tornar a vida sobre a terra mais fácil de viver, com menos
guerras, mais amor, paz e abundância para todos. O seu
oposto, chamamos de inspiração satânica. No entanto, tudo
depende do lado em que se está.
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- Então muitas histórias contadas no Torá e no Talmud
podem não ser verdadeiras e sim lendas para transmitirem
alguma mensagem.
- Sim Matias, é isso mesmo. A inspiração divina é isso.
Você se lembra das histórias dos nossos antigos reis, não
lembra? São muitas e há uma em especial que fala sobre o
rei Saul.
“Os filisteus lutaram contra os israelitas no monte Gilboa.
Muitos israelitas foram mortos ali e o resto fugiu. Entre os
que fugiram, estavam o rei Saul e os seus filhos. Mas os
filisteus os cercaram e mataram Jônatas, Abinadabe e
Malaquias, filhos de Saul. A luta estava feroz em volta de
Saul, que foi atingido por flechas inimigas e ficou muito
ferido. Então ele disse ao rapaz que carregava as suas
armas:
— Tire a sua espada e me mate para que esses filisteus
pagãos não caçoem de mim.
Mas o rapaz estava muito apavorado e não quis fazer isso.
Então Saul pegou a sua própria espada e se jogou sobre ela.
Quando viu que Saul estava morto, o rapaz também se
jogou sobre a sua própria espada e morreu junto com ele. E
assim Saul e os seus três filhos morreram juntos e nenhum
dos seus descendentes se tornou rei. Quando os israelitas
que moravam no vale de Jezreel souberam que o exército de
Israel havia fugido e que Saul e os seus filhos tinham sido
mortos, abandonaram as suas cidades e fugiram. Então os
filisteus foram e ocuparam aquelas cidades.
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Um dia depois da batalha, quando os filisteus voltaram lá
para tirar dos mortos e as coisas de valor, acharam os corpos
de Saul e dos seus filhos caídos no monte Gilboa. Então
cortaram a cabeça de Saul e pegaram as armas dele. Depois
mandaram mensageiros com elas para o território filisteu a
fim de darem as boas notícias aos seus líderes e ao povo.
Eles puseram as armas dele num dos seus templos e
penduraram a sua cabeça no templo de Dagom, o deus
deles. Quando o povo da cidade de Jabes, em Gileade,
soube do que os filisteus haviam feito com Saul, os mais
corajosos foram, pegaram os corpos de Saul e dos seus
filhos e os levaram para Jabes. Eles os sepultaram debaixo
de um carvalho e jejuaram sete dias.
Saul morreu assim porque foi infiel a Deus, o Senhor. Ele
desobedeceu aos mandamentos de Javeh e consultou os
espíritos dos mortos, em vez de consultar o Senhor. Por
isso, Deus o matou e entregou o reino a Davi, filho de Jessé.
- Sim, eu me lembro dessa história. Ela de fato aconteceu?
E se aconteceu, como pode Javeh ter entregado aos inimigos
seu próprio povo que o adorava? Apenas para punir Saul
tirou a vida dele? Se a Lei proibia consultar os mortos, não
poderia ter o Senhor ferido a Saul e salvado o seu povo
temente e adorador?
- Sim, poderia – respondeu-me o irmão Abner – Mas que
lição ficaria para os demais? A história foi escrita para dar
conhecimento do preço da desobediência. Se havia uma Lei
para ser seguida, quem deixasse de cumpri-la seria punido.
29
- Mas nesse caso, além de Saul que havia cometido a
desobediência, os soldados e o povo também sofreram as
consequências.
- Você está certo, meu bom rapaz – disse-me, meu primeiro
mestre Essênio, batendo-me no ombro – um dia você
entenderá a razão de nós Essênios existirmos. Nós
cumprimos a Lei, mas também queremos modernizá-la.
Queremos atualizá-la. Faz muito tempo que o nosso povo
vem sendo conduzido pela Mão de Ferro do nosso Deus.
Chegará o dia em que já não precisaremos dessas histórias
para agirmos de modo correto.
- Então essa história do Rei Saul foi criada pelos rabinos do
passado? Elas só tem valor filosófico e moral? Foi trazida
até nós para nos ensinar a obediência às leis? Saul não
poderia ter ditado as suas palavras para um escriba e nem
mesmo ao seu guardador de armas. Quem escreveu essa
história o fez com o objetivo de deixar uma lição. Foi isso,
irmão Abner?
- Já faz tanto tempo que essa história foi contada e
recontada que seria quase impossível dizer que ela chegou
até nós da mesma maneira que ocorreu. Pode ser que Saul
não tenha sido sacrificado por castigo do Senhor, mas foi
assim que o povo viu o acontecimento e o escritor seguiu o
que pareceu mais apropriado à Lei naquele momento. Todos
sabiam que a Lei condenava a feitiçaria e a consulta aos
quiromantes. Mesmo um Rei não podia invocar ajuda aos
mortos. O Rei Saul achou que estava acima das leis.
Ninguém pode está acima das leis, você deve saber disso.
As leis, justas ou injustas, foram criadas para organizar a
30
vida sobre a Terra. Sem elas, cada um poderia fazer o que
quisesse e o mundo dos homens já teria sido destruído, só
restando os animais, os quais têm também suas regras e
organização.
- Isso quer dizer que a missão dos Essênios é mudar as leis,
torna-las mais justas e melhor para todos?
- Sim, mas não somente isso. Nossa fraternidade tem, ao
longo de muitos anos, se dedicado a entender o mistério da
vida e busca uma forma de viver que seja menos agressiva a
Terra. Busca uma forma de viver que seja baseada na
fraternidade, no respeito ao outro.
- Pelo que entendo, o senhor está me dizendo que nós
vamos modificar as leis que já existem a milhares de anos?
Vamos contrariar as Leis de Moisés e dos demais profetas?
- Tenha cuidado com suas palavras, Matias. Não coloque
palavras na minha boca – disse o mestre sorrindo. O que
estou dizendo e que talvez seja a hora de contarmos uma
nova história que terá mais poder que as que já foram
contadas. Muitos acreditarão nela, outros não. Mas não
importa. No fim, colheremos alguma coisa de boa. Você
sabe que quando fazemos uma semeadura, algumas
sementes caem em solo fértil e dali nascem boas plantas que
também dão frutos. Outras caem em terreno árido e
morrem. As ideias e as histórias são assim também. Pode
ser que muitas sementes que plantarmos hoje venham
nascer, frutificar e se reproduzirem, para que o mundo
inteiro possa ser alcançado. É o princípio da semeadura.
Você ainda tem muito o que aprender sobre essa lei. Há
31
plantas que curam doenças e cada uma delas, sem exceção,
tem uma função no equilíbrio da nossa vida. Se uma deixar
de existir, outras também deixarão e, com o passar dos
tempos, haverá desequilíbrio. Insetos, animais, rios e
montanhas se modificarão por causa disso. Histórias são
como sementes, mais tarde ou mais cedo, você perceberá o
poder delas.
Eu ficava a cada dia mais fascinado com os ensinamentos
dos Essênios que até esquecia da minha família e da guerra
que meu povo estava travando contra os invasores.
Herodes, ao assumir o reinado sobre a Judeia, queria manter
boas relações com o nosso povo e, por essa razão,
estabeleceu instituições culturais em Jerusalém, construiu
majestosos edifícios públicos e remodelou o templo,
transformando-o num edifício de glorioso esplendor. Por
algum tempo, conseguiu aplacar a ira dos sacerdotes.
O nosso templo já havia sido saqueado e incendiado muitas
vezes, tendo o Rei da Babilônia, Nabucodonosor II, levado
os nossos tesouros e destruído grande parte dele. Assim,
Herodes começou, nos primeiros anos do seu reinado,
reformar o nosso templo e também reconstruir e ampliar
uma das nossas antigas fortalezas sobre o monte Massada,
uma rocha com quase 500 metros de altura de onde
podíamos ver todo o esplendor do Mar Morto, o nosso mar
de sal que fica na foz do Rio Jordão, formando um grande
lago, onde é impossível um homem morrer afogado.
Eu era menino quando a fortaleza foi reconstruída. Meu pai
e eu costumávamos ficar sentados à sombra de uma
32
figueira, à beira do lago, enquanto os carregadores iam e
vinham levando madeira, blocos de pedras e todo material
envolvido na grande reconstrução.
- Pai, porque a gente não afunda no Mar Morto? Seria
possível um homem andar sobre ele?
- Eu realmente não sei, Matias. Isso é um mistério. Talvez
você um dia venha a descobrir nos livros. Infelizmente, eu
não sou um homem de letras. Tudo o que sei, aprendi
ouvindo os Rabinos e Sacerdotes no templo. Você que tem
o dom da escrita e leitura, quem sabe um dia me dirá... –
disse meu pai sorrindo e batendo em meu ombro.
Poucas vezes vi meu pai sorrir. Grande parte do tempo, ele
estava treinando as artes de combate. Eu tinha muito
orgulho de meu pai por saber que ele se preparava para uma
grande batalha. Eu só não queria que ele morresse lutando.
Queria que ele vivesse muitos anos para celebrar seu
heroísmo.
Foi meu pai quem me chamou a atenção para um fato
curioso.
- Veja Matias, essa fortaleza tem o nome do monte:
Massada, e está sendo reconstruída pelos romanos para ser a
mais bem guardada fortificação jamais construída.
Trouxeram engenheiros de Roma, da Grécia e do Egito para
ajudar e quando ficar pronta poderá abrigar mais de 15 mil
homens, terá um palácio, muros com seis metros de altura
e dois de largura, impossíveis de serem derrubados com as
armas de guerra que temos. Só existem dois caminhos para
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chegar até o topo da montanha: o caminho da cobra, pelo
lado oriental que é tão estreito que um homem terá que
colocar um pé à frente do outro para caminhar por ele. O
outro, no lado ocidental, será guarnecido com uma muralha
com mais de 50 metros de altura e terá quatro portões e
mais de trinta torres. Os romanos pensam que estarão
seguros lá dentro, mas não estão. Um dia nós tomaremos de
volta o que nos pertence.
- Dizem que estão construindo piscinas gigantescas lá
dentro do novo palácio, é isso mesmo, meu pai?
- Sim meu filho. Herodes mandou trazer de Roma e da
Grécia pisos de mosaicos, afrescos dos melhores pintores do
Império, colunatas de mármore e até uma grande piscina.
Para garantir a autossuficiência, ele vai plantar hortaliças e
grãos. Dez cisternas estão sendo escavadas na rocha para
coletar água da chuva, com capacidade para mais de 40
milhões de litros. As despensas guardarão jarros de azeite,
vinho, farinha e frutas. Um almoxarifado poderá estocar
armas suficientes para um exército de dez mil homens.
Tudo isso nos pertence, Matias... os romanos enriquecem às
nossas custas. Nos usam como escravos. Um dia pagarão
com a vida por esse ultraje.
Naquela época, eu não poderia compreender que meu pai se
referia ao projeto audacioso dos judeus para a retomada da
fortaleza de Massada que ocorreu logo depois que Herodes,
o Grande, morreu e assumiu o trono seu filho mais velho,
Herodes Arquelau, considerado incompetente pelo governo
de Roma.
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Quando Arquelau ocupou o lugar do pai, eu já havia
cumprido grande parte da minha missão de escriba do
templo como também a minha outra atividade secreta junto
aos irmãos da fraternidade essênia. Eu fora advertido que
deveria sair de Jerusalém antes da captura de Massada pelo
nosso povo. A proteção que a fraternidade tinha
conquistado durante o reinado de Herodes o Grande, já não
mais existia. Os romanos queriam destruir qualquer grupo
que não os apoiasse abertamente. Essa talvez tenha sido
uma das grandes motivações para que os zelotes
planejassem invadir a fortaleza de Massada e recuperar os
bens que julgavam seus.
Os zelotes formavam um grupo de guerreiros especiais
responsáveis pelo ataque e tomada de Massada. Após
muitos anos de espionagem, comprando mapas dos
arquitetos que haviam ajudado a reconstruir a fortaleza, um
grupo de judeus, comandados por Eleazar, decidiu invadir a
fortaleza, aproveitando a ausência do rei Herodes Arquelau
que havia viajado para Roma para a celebração da grande
festa do Solsticio de inverno, a noite mais longa do ano.
Fingiram ser serviçais e entram na fortaleza envenenando os
guardas dos portões durante a festa em que a guarda
palaciana também celebrava. Misturaram um poderoso
veneno ao vinho e em outros alimentos servidos aos
romanos. Logo que os efeitos começaram a aparecer, os
portões foram abertos para a entrada dos comandados de
Eleazar, os quais completaram a missão.
Os invasores tiveram sucesso e, na manhã daquele dia,
contou-se que seis mil soldados romanos haviam sido
35
decapitados e apenas dez do nosso povo haviam morrido em
combate.
Aquela foi uma batalha sangrenta que trouxe sofrimento a
muitos do nosso povo e fez com que vários dos nossos
fugissem para outras terras para evitarem a perseguição dos
romanos. Muitos dos irmãos essênios foram perseguidos e
mortos naquela época.
Roma, ao saber da captura de Massada, iniciou uma
campanha para retomar a fortaleza e, ao mesmo tempo,
destruir o grande Templo de Jerusalém, em represália à
morte dos romanos e pelo fato de ter sido Herodes, o
Grande o rei que havia reconstruído o templo com a ajuda
de mestres de obras e engenheiros do Império.
Durante seis anos, os zelotes permaneceram no controle de
Massada, muito embora tenha surgido divergência entre
eles, ainda que parte do povo judeu tivesse ficado orgulhosa
com a captura e morte dos soldados romanos. Isso porque,
os zelotes decidiram impor a lei e a ordem segundo seus
próprios conceitos. Sentenciavam e matavam pessoas do
seu povo de acordo com normas particulares. Não
obedeciam mais a Lei e os profetas de Javeh.
Os romanos, embora tivessem ocupado outras cidades da
Judeia, queriam de volta o domínio da capital. Mas, para
isso, precisavam recuperar Massada, cuja perda fora uma
grande desonra para o império e para Herodes Arquelau.
Uma legião formada pelos melhores generais romanos,
experientes em combates na Grécia e na Pérsia, foi
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deslocada para invadir Jerusalém. Na ocasião, havia dois
outros redutos judaicos, Herodion e Maqueronte, os quais
foram completamente destruídos e os seus ocupantes
decapitados e crucificados. Os romanos fizeram uma
macabra avenida com cinquenta quilômetros de extensão,
lado a lado, com milhares de cruzes, onde pregavam os
corpos dos judeus feridos em combate. Não era permitido a
ninguém que os retirassem da cruz até que seus corpos
fossem comidos pelos corvos. Assim o fizeram, para
aterrorizar a todos que entrassem ou saíssem de Jerusalém.
Desse modo, saberiam o que lhes aconteceria, caso fizessem
parte de algum grupo de revoltosos.
A fortaleza de Massada, que fora dominada pelos zelotes,
foi entregue ao novo procurador, o General Romano, Flávio
Silva.
Eu não estava mais em Jerusalém naquela época, mas
acompanhava as notícias da iminente invasão do lugar.
Meu coração se entristeceu e durante muitas noites eu
acordava tendo visões de morte. Temia pela vida de meu
irmão Calebe que era, na época, comandante dos temíveis
fundibulários. Ele fora um dos invasores na ocasião em que
Massada foi tomada de assalto. Em minhas orações, eu
pedia ao Senhor que poupasse a sua vida, mas sabia que o
destino do meu intrépido irmão havia sido selado por ele
mesmo, desde pequeno. Ele havia tomado nas mãos a
missão de salvar o seu povo e o fazia da melhor maneira
que podia: matar cada soldado romano que cruzasse o seu
caminho.
37
Silva marchou em direção a Massada com a poderosa e bem
treinada Décima Legião e uma tropa auxiliar de oito mil de
soldados, além de milhares de prisioneiros judeus que
trabalhavam como escravos, produzindo alimentos e
fornecendo água para o exército.
O general romano estudou por semanas a fio as diversas
possibilidades para retomar a fortaleza e, ao fim de certo
tempo, decidiu cercar Massada por oito acampamentos,
sendo que o principal deles foi construído do lado sul da
fortaleza, de onde puderam observar toda a movimentação
dos zelotes, ou sicários, como também eram chamados
pelos romanos.
A segunda estratégia de Silva foi construir uma gigantesca
muralha de três quilômetros de extensão e quase dois
metros de espessura, circundando toda a montanha. O
objetivo era impedir a entrada de suprimentos de qualquer
natureza aos zelotes, bem como servir de obstáculo à fuga
dos mesmos durante o confronto.
Com a ajuda dos engenheiros e estrategistas militares, o
general romano decidiu que seria necessário construir uma
plataforma até o topo da montanha onde se encontrava o
forte, pelo lado oeste, que era mais baixo, e, desse modo,
poderiam transpor a muralha que o protegia.
Os trabalhadores recrutados para essa gigantesca obra eram
todos judeus e os zelotes não puderam atirar pedras ou
flechas sobre seus próprios irmãos, já que também
pertenciam ao nosso povo e estavam subjugados pela mão
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de ferro de Roma. Matá-los seria enfraquecer ainda mais o
nosso povo.
As tropas comandadas por Silva levaram grande quantidade
de terra e pedras para o local e usaram vigas de madeira de
tamargueira, com cerca de um metro de comprimento, para
escorar a pilha de entulho. Com esse material, construíram
um plano inclinado de quase duzentos metros.
Ao fim de alguns meses de trabalho bem planejado, a rampa
foi concluída e as enormes máquinas de guerra dos romanos
entraram em ação. Uma dessas torres tinha cerca de trinta
metros de altura, e, lá de cima, os romanos lançavam uma
chuva de setas e pedras sobre os encastelados.
Aquela gigantesca torre transportava um poderoso aríete,
composto de uma enorme tora de madeira, com uma ponta
de ferro no formato de cabeça de carneiro. A tora era
suspensa por cordas presas à máquina de guerra. Os
soldados empurravam a máquina até perto da muralha ou
dos portões e, ao chegarem a uma distância suficiente,
puxavam a tora para trás e depois a empurravam para a
frente com toda a força. Os romanos imaginavam que
conseguiriam derrubar as muralhas com tal aríete.
No entanto, apesar de sucessivas investidas contra os muros
de Massada, esses não cediam e pareciam instransponíveis.
O que não sabiam é que os zelotes, ao perceberem as
manobras do general romano, usaram um sistema
engenhoso para reforçar toda a muralha por dentro. Eles
construíram uma segunda muralha, usando vigas dos
telhados das construções existentes na fortaleza além de
39
demolirem edifícios que não teriam grande utilidade, para
usarem o entulho formado de pedras, para encher o espaço
entre a muralha de madeira e a externa, a qual estava sendo
golpeada pelos os romanos. Essa segunda muralha interna
tinha quase vinte metros de espessura e uma altura de dez
metros. Quanto mais o aríete romano golpeava a muralha
externa, mas a terra entre os dois muros se compactava e o
tornava mais e mais impenetrável.
O general Silva ficou furioso com o insucesso. Não voltaria
para Roma sem ter reconquistado Massada. Indagou aos
engenheiros uma forma de destruir essa nova muralha e quis
saber como os zelotes a haviam construído, já que durante
quase seis meses eles estiveram acampados em volta da
fortaleza e ninguém havia entrado na fortaleza ou saído de
lá, o que tornaria impossível o carregamento de terra ou
pedras. Um engenheiro egípcio, especializado em
construções de fortalezas, concluiu que só madeira poderia
suportar o impacto dos aríetes romanos. E, por isso, a única
maneira de destruir a muralha interna seria com o
lançamento de setas incendiárias. Naquele mesmo dia, logo
que um vento sul soprou na direção da fortaleza, o general
Silva ordenou que os arqueiros disparassem sobre Massada,
a um só tempo, duas mil flechas flamejantes com as pontas
embebidas em azeite. Em poucos minutos, viram as
labaredas subirem e o céu enegrecer com a fumaça. A
fortaleza não estava preparada para tal ofensiva.
Mas a mão de Javeh estava sobre o nosso povo e um vento
contrário fez as chamas se voltarem na direção das tropas
inimigas, que tiveram que recuar e aguardar outro momento
propício.
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Porém, naquela mesma noite, duas mil flechas incendiárias
riscaram os céus de Jerusalém e caíram como estrelas
cadentes sobre a fortaleza de massada, queimando o que
havia sobrado das muralhas internas. Agora as torres
poderiam atacar o forte usando aríetes para destruírem o
muro externo.
Embora os subcomandantes das tropas romanas estivessem
ansiosos para invadir Massada, o comandante quis esperar
até o dia seguinte, ao avaliar que seria mais estratégico uma
batalha em plena luz do sol. Ele não queria passar pelo
vexame de ser surpreendido por alguma armadilha criada
pelos zelotes. Assim, permaneceu com os legionários
acampados, afiando suas espadas, aparelhando seus cavalos
e estudando uma ofensiva mortal, indefensável, sobre a
mais bem guardada de todas as fortalezas em poder dos
judeus.
No interior da fortaleza, Eleazar Ben Jair enfrentava um
grande dilema. Convocou seus líderes para a tomada de uma
decisão.
- Os romanos vão esperar até o amanhecer para nos
atacarem. Nossos alimentos já estão quase esgotados, nossa
água foi usada para apagar parte do incêndio. Nossos
homens estão fracos, pois estamos vivendo com uma
pequena ração de alimentos há meses – disse Eleazar aos
seus líderes.
- Vamos continuar lutando, irmão. Morreremos lutando.
Não vamos nos render a esses porcos romanos – Disse
Calebe.
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- Seja razoável, Calebe. Podemos fazer um acordo com os
romanos e salvarmos nossos filhos, nossas mulheres e
alguns dos nossos soldados. Sabemos que eles não pouparão
a nós que lideramos as tropas. Nós seremos crucificados
para servirmos de exemplo.
- Afinal, não é essa a terra que Javeh nos deu como
herança? Não foi ele quem deu a vitória aos nossos
antepassados como Davi, Salomão, Moisés e tantos outros?
O que temos a temer? – bradava meu irmão, agitando os
braços no meio do círculo formado pelos outros 11 líderes,
incluindo o comandante.
- Eleazar está certo, irmão Calebe. Nós já humilhamos os
romanos durante sete anos. Recuperamos o que nos
pertencia. Fizemos Roma ajoelhar-se perante nós. Agora
seria o momento de fazermos um acordo – argumentou o
chefe dos arqueiros.
- O que temos a oferecer? Os romanos já sabem que nos
vencerão. Cuidaram para que não tivéssemos opção.
Cortaram o fornecimento de alimentos e nossos filhos já
passam fome. Nós nunca os chamamos para qualquer
negociação. Como poderemos agora querer negociar? Não
temos nada! Nada!
- O irmão Calebe está certo, Eleazar. Neste momento não
temos escolha. Uma rendição agora de nada servirá.
Podemos nos render, mas seremos mortos de igual modo e,
provavelmente, ainda estuprarão nossas mulheres e filhas.
Elas irão odiar a nossa covardia enquanto viverem e os
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filhos delas nos amaldiçoarão também. Não podemos deixar
que nossas mulheres sejam prisioneiras dos romanos.
- Sim!! Não podemos! – bradaram todos em uníssono.
Apenas Eleazar ficou em silêncio, andando em círculo,
acuado, confuso, sem saber o que fazer.
- Quanta falta faz o seu irmão aqui, Calebe. Benjamin não
deveria ter nos deixado. Se ele estivesse conosco, com
certeza, ele encontraria uma solução para esse dilema. Seu
irmão foi o melhor estrategista que já tivemos.
- Meu irmão é um covarde. Fugiu para a Grécia na primeira
oportunidade que teve. Não tinha estômago para matar...
- Não chame aqueles que não têm coragem de matar de
covarde, pois covarde é aquele que não assume seus
próprios sentimentos. Ele não conseguia odiar os romanos
como nós. Foi corajoso para assumir isso publicamente.
- Até se casou com uma romana, não foi Calebe? – disse um
dos líderes, em tom de zombaria.
Calebe voltou-se bruscamente para Jadel e o agarrou pelo
pulso.
- Não fale de meu irmão, seu cretino. Só um irmão tem o
direito de criticar o outro. Você nem o conheceu direito...
- Calma irmãos... – Eleazar interrompeu a discussão,
interpondo-se entre os dois – Guardem todo esse ódio para
os nossos inimigos que estão lá embaixo esperando o dia
43
amanhecer para nos atacar e nos matar. Eu já tomei uma
decisão.
Alguns homens que estavam agachados em volta da
fogueira prontamente se levantaram.
- Reúnam todos os chefes de famílias que estão conosco.
Traga-os aqui, agora.
Os líderes não fizeram mais perguntas. Foram aos
alojamentos onde estavam todos os chefes de família e os
conduziram ao centro da fortaleza.
Uma lua cor de sangue alumiava os semblantes dos homens.
As chamas da fogueira lambiam o ar da noite com suas
línguas de fogo, adivinhando o porvir. Um vento leste
soprou por sobre as muralhas, trazendo o frio da noite e o
anjo da morte. Javeh parecia haver esquecido de nós.
- Irmãos de luta... eu os chamei aqui para dizer que nossa
luta ainda não está terminada. O Senhor me inspirou para
vos dirigir essas palavras. Esse dia entrará para a história do
nosso povo, da mesma forma que se dá com o dia da
tomada de Massada. No alto desta montanha, escreveremos
nossos nomes com sangue. Assim como os nossos pais, os
pais dos nossos pais, nos ensinaram a imolar o cordeiro em
sacrifício, nós hoje nos imolaremos em nome de Javeh, o
nosso Senhor. Não pensem que ele nos deixou. Não, ele
apenas nos deu vida suficiente para que chegássemos a esse
dia. Aqui, durante sete anos, comemos, bebemos,
coabitamos com as nossas mulheres, tivemos e criamos os
nossos filhos. Lutamos como soldados em defesa de nossa
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terra. Ensinamos os nossos filhos a viverem com honra e
dignidade, não se sujeitando à escravidão imposta pelos
romanos. Por isso, não nos deixaremos aprisionar. Não
entregaremos nossas mulheres ou nossos filhos para serem
torturados, estuprados, queimados vivos e crucificados.
Hoje, todos nós faremos o último sacrifício. Nos chamam
de zelotes porque zelamos pela honra do nosso povo e
jamais nos subjugaremos a ninguém. Usem as suas espadas
e ofereçam seus filhos e suas mulheres em sacrifício ao
Senhor que nos espera nas moradas celestiais. Depois que
fizeram isso, voltem aqui e nós queimaremos tudo que
restar e depois ofereceremos vosso sangue a Javeh.
Sortearemos um de nós para que também nos ofereça em
sacrifício. O último de nós tombará sobre a própria espada.
Agora vão, cumpram o que o Senhor deseja que façamos.
Um a um, os homens segurando a pequena espada curva
que traziam à cintura, símbolo de guerra dos zelotes,
caminharam num cortejo fúnebre em direção às suas
habitações. Eles fizeram o que lhes fora ordenado. Uma
mãe em desespero tentou fugir com seus filhos, mas foi
alcançada pelo marido que a implorou para que não
resistisse, para que confiasse no Senhor.
- Você não vê que nossos filhos são inocentes? Eles nada
fizeram para serem mortos. Eles não tem culpa alguma,
meus pobrezinhos. Veja os olhinhos deles como estão
cheios de terror e medo. Não querem morrer... Não os mate,
por favor, em nome de Javeh, eu te peço!
O homem recuou por alguns instantes, paralisado, como se
tivesse sido tocado pelo desespero da esposa que protegia
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com o próprio corpo os filhos pequeninos, sendo que um
deles ainda mamava.
- Você não vê que não temos qualquer esperança.
Precisamos fazer esse sacrifício para salvar o nosso povo –
disse o homem, com as mãos trêmulas.
- Salvar o nosso povo?! Que povo? Enquanto nós estamos
aqui, eles estão lá embaixo assistindo a nossa derrota.
Porque os sacerdotes do templo não oferecem as vidas deles
em sacrifício? Eles já estão velhos, já comeram e beberam.
Nossos pequeninos não... são inocentes, não fizeram
nenhum mal. Deixe que os romanos nos peguem, nos
torturem, resistiremos. Talvez alguns de nós sobreviva e, aí
sim, teremos chance de planejarmos a nossa vingança.
- Mulher... mulher... não me faça sentir culpa. Não posso
fraquejar neste momento. Tenho que cumprir o que Javeh
nos ordenou a fazer. Você não se lembra do que o sacerdote
nos mostrou no livro dos Juízes, quando Jefté fez um voto
ao Senhor de sacrificar sua única filha em holocausto se Ele
os fizesse vencedores da luta contra os filhos de Amon. O
Senhor atendeu o pedido e Jefté sacrificou a própria filha,
como havia prometido...
- Você está louco, meu marido. Eu jamais ofereceria a vida
de uma filha minha, mesmo que tivesse dez. Às vezes, eu
penso que todas essas histórias são coisas dos homens. Deus
não se envolve nessa podridão humana. Não quer sacrifício
de um inocente. Para quê Ele iria querer o sangue de um
inocente? Para beber?
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- Não blasfeme, mulher – disse o homem, agora
visivelmente irritado. Você não tem o direito de falar assim
do nosso Deus. Basta os romanos, que zombam das nossas
tradições e da nossa fé. Agora venha, ajoelhe-se e deixe-me
cumprir a vontade do Senhor...
A mulher não o ouviu, embrenhou-se entre as ruínas da
fortaleza mal iluminada e misturou-se à uma pequena
multidão de mulheres e crianças que corria de um lado para
o outro, como abelhas tontas, sem saberem para onde ir,
onde se esconderem. Fugiam da morte, como os
cordeirinhos o fazem para não serem sacrificadas pelos
sacerdotes nos Templos.
Ao longe, podia-se ouvir o clamor das criancinhas e de suas
mães que choravam, implorando para não serem mortas. Os
romanos acreditavam que elas estavam clamando por
salvação e proteção ao nosso Deus. E estavam, mas não
para as livrarem dos romanos, mas sim dos próprios irmãos.
Quando o dia raiou, as tropas romanas marcharam pela
rampa em direção aos muros da fortaleza, preparadas para
combater e massacrar os zelotes, bem como todos que lá
estivessem. Arrombaram os portões e entraram de espadas
em punho, prontos para se defenderem de uma possível
emboscada.
Mas, em vez de soldados judeus, eles viram surgir das
sombras três mulheres, nove crianças e um aleijado, com ar
de louco, que haviam escapado do sacrifício da noite
anterior, escondendo-se em cavernas subterrâneas.
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O general Silva não teve outra escolha, senão voltar para
Roma para informar ao Imperador que finalmente haviam
recuperado a fortaleza de Massada, mas nada poderia servir
de troféu aos conquistadores. As mulheres e crianças
encontradas foram soltas, pois não ofereciam qualquer
perigo e já não tinham qualquer valor. O único homem vivo
que fora encontrado vagando, cantando e pulando sobre os
cadáveres, era um gago louco e só serviu para divertir, por
algum tempo, os soldados romanos que, após terem feito
uma marca com fogo na testa e nas nádegas do homem, com
as inscrições: Quae est ROME (pertence a Roma), o
chutaram para fora do acampamento e ordenou-lhe que
fosse mostrar aos judeus de Jerusalém o que sobrara da
coragem dos guardiães de Massada.
O que os romanos não sabiam era que o homem que se
passou por gago e louco para escapar da morte e salvar sua
esposa e filhos se chamava Calebe. Ele fora o último
homem a ser sorteado e encarregado de matar os demais
líderes. No entanto, quando pegou a espada para sacrificar a
esposa e as filhas, o Senhor segurou a sua mão, como fez a
Abraão, impedindo-o de sacrificar seu filho Isaac. Naquele
instante, Calebe recebeu a inspiração divina por meio da
lembrança das astúcias de nosso amado Benjamin. Que o
Senhor o guarde onde estiver.
E era o décimo quinto dia do mês de nisã, do nosso
calendário judaico, o primeiro dia da Festa dos Pães Asmos
49
Capítulo III - A Era das Trevas
- Matias... Matias, acorde. O dia já amanheceu. Todos já
ceamos e só falta você. Você vai sair conosco ou vai ficar aí
dormindo o resto do dia?
Despertei-me e a claridade que entrava pela fresta entre a
cortina feriu meus olhos, obrigando-me a tapa-los com uma
das mãos. Podia sentir o calor da aragem que vinha de fora
para o interior da nossa morada. Já deveria passar da
terceira hora (entre seis e nove da manhã).
Minha mãe estava agachada ao lado da esteira onde eu
dormia. Acariciou com a ponta do dedos o meu rosto ainda
sonolento. Seus olhos negros me fitavam docemente,
enquanto sua boca se abria num sorriso que me aquecia a
alma. O cabelo preto, escorrido, que ela gostava de amarar e
jogar para frente sobre o ombro esquerdo, a deixava ainda
mais bela. Meus irmãos e eu achávamos que tínhamos a
mãe linda de toda a Judeia e sempre dizíamos isso a ela.
- Aonde vamos? – perguntei, enquanto me espreguiçava
ainda cheio de sono.
- Vamos ao Mar Morto, você se esqueceu? Hoje é o
aniversário de seu tio Samuel e nós vamos todos para
Madabã. Depois nos reuniremos na margem sul do Mar,
onde passaremos o resto do dia. Vamos, vai ser divertido.
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- E se eu não quiser ir? – perguntei.
- Não tem problema, meu filho. Posso saber o que você vai
fazer enquanto estivermos fora? Só voltaremos à noitinha.
- Vou à Sinagoga. Preciso falar com o sacerdote Abner
sobre um sonho que tive essa noite e ajudá-lo com umas
cópias de papiros.
- Outro sonho, Matias? Espero que não tenha sonhado outra
vez com o fim do mundo e com monstros de sete cabeças e
dez chifres – Disse minha mãe sorrindo e afastando-se de
mim e fazendo as últimas recomendações. Não deveria sair
da cidade, pois havia nas redondezas muitos bandidos e
salteadores. Deveria comer os bolinhos de trigo com aveia,
mel e leite de cabra que ela havia preparado e, quando
tivesse fome mais tarde, deveria comer tâmaras e nacos de
carne seca de carneiro que havia dentro de um pote de
barro. Eu também deveria beber muita água, o dia inteiro,
pois o calor naquela época do ano era intenso.
Era um domingo. Partiram em grande algazarra, meu pai,
minha mãe e meus três irmãos, Benjamin, Calebe e Mírian.
Estariam de volta depois da décima segunda hora ( entre 15
e 18 horas).
Aquilo era perfeito, pois o que eu iria fazer, provavelmente,
me tomaria o dia inteiro e eu fora advertido para não falar
nada a respeito com os meus pais. O sacerdote Abner havia
destacado firmemente, durante uma aula, quando ele pode
falar comigo a sós, longe do olhares dos demais alunos, para
eu não contar nada a ninguém, especialmente aos meus pais.
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- Porque meus pais não podem saber, mestre Abner? Eu
nunca minto para eles? Indaguei na ocasião.
- Você não precisará mentir, Matias. Terá apenas que
omitir. Eu confio em você. Você saberá a razão quando eu
te mostrar o que verá. Sua família não pode ser envolvida de
modo algum. Venha me ver no dia em que puder sair de
casa sem despertar suspeitas. Diga apenas aos seus pais que
você virá me contar um sonho ou me ajudar copiar alguns
papiros que estão se deteriorando. Não deixe que eles
desconfiem de nada. Você vai precisar de um dia inteiro
para essa tarefa.
Eu estava ansioso e eufórico. Durante aquele primeiro ano,
desde que meu pai entregara ao irmão Abner minha
educação na escrita, leitura de papiros e estudos de línguas,
eu tinha permissão par ir estudar na sinagoga no período da
manhã, voltando para almoçar em casa com toda a família.
Aquele dia seria especial, pois eu iria finalmente saber o
que o meu mestre havia me prometido há alguns meses e
somente agora chegara o momento oportuno com a saída de
minha família de casa.
Depois de comer, saí às pressas, levando apenas uma
pequena bolsa de couro onde guardava meu pequeno
tesouro, o naco de carne, duas tâmaras e um turbante
branco, dado a mim por minha mãe, o qual servia para me
proteger do sol e das tempestades de areia que sempre
sopravam sobre a cidade.
Tomei o caminho mais longo para chegar até a sinagoga,
pois não queria ser visto por meus amigos que poderiam me
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distrair. Queria chegar logo à sinagoga, porque, no último
Sabath, havia avisado ao Mestre Abner que o encontraria
lá.
Desci a pequena encosta que ficava próxima de minha casa,
ao leste das ruas centrais de Jerusalém, e segui por uma
velha estrada de pedras que levava ao cume do monte
Moriá. Se tivesse escolhido o caminho costumeiro,
passando pelo centro da cidade, eu levaria menos de meia
hora para chegar lá, mas, como eu tive que rodeá-la, para
evitar encontrar possíveis amigos e conhecidos, cheguei ao
meu destino no dobro do tempo. Apressei o passo e entrei
na última ruela que me levaria direto ao templo.
Já estava avistando o telhado avermelhado da sinagoga,
quando ouvi uma voz chamar o meu nome.
- Matias... Matias... para onde você vai com tanta pressa?
Olhei para trás e vi Sarah, filha do rabino Moshe, sorrindo e
acenando para mim.
Meu coração acelerou ainda mais, para além do esforço da
minha caminhada vigorosa. A doce voz de Sarah era como
o ressoar da harpa tocada pelo Rei Davi e tinha o poder de
me transportar ao mundo dos serafins.
Sarah já havia completado 12 anos e eu estivera presente na
cerimônia de seu Bat Mitzvá, quando ela se tornou “filha do
mandamento". Ela era dois anos mais velha do que eu, mas
parecíamos ter a mesma idade. Eu era magricela, alto e
qualquer um poderia dizer que eu tinha 12 ou 13 anos.
53
Sarah tinha a pele alva, o cabelo castanho claro brilhante
que contrastava com seus pequeninos olhos esverdeados.
Quando andava, movia-se como as folhas de uma palmeira
acariciada pelo vento e sua voz era macia como as doces
tâmaras colhidas nos oásis de Jericó. Sua pele exalava um
suave perfume de acácia que me fazia estremecer e arrepiar
como se um manto de fino orvalho houvesse subitamente
envolvido o meu corpo.
Ela correu para acercar-se de mim. Ao ouvir sua voz, fiquei
um pouco atordoado por alguns momentos.
- Heim?.. o que você perguntou? Disse ofegante e sem parar
de caminhar.
- Para onde vai com tanta pressa? Vi você desde que
apareceu lá no alto da colina e fiquei esperando você passar
– disse ela, tentando acompanhar meus passos rápidos.
- Vou à sinagoga, tenho uns papiros para copiar lá... onde
está Bem-Ami?
- Meu irmão foi para o Mar. Parece que todo mundo foi
para lá hoje. Está um calor insuportável. Mírian está em
casa?
- Não... não... minha irmã não está – respondi gaguejando –
eles foram para o Mar... quer dizer, foram para a festa do
meu tio e depois vão ao Mar. Desculpe Sarah, tenho que ir
depressa agora. O mestre Abner não gosta que eu o faça
esperar.
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Apressei o passo para me distanciar de Sarah, que desistiu
de me acompanhar e ficou lá, como um delicado querubim,
acenando para mim, sem dizer mais nada. Não precisava. Só
aquele sorriso bastava.
Entrei pela porta dos fundos da sinagoga e fui encontrar o
mestre Abner, que estava arrumando duas bolsas que
pareciam conter frutas, amêndoas e mel. Respondeu ao meu
cumprimento secamente e, sem dizer uma palavra, apontou
para que eu apanhasse uma das bolsas e a atravessasse a
tiracolo. Em seguida, fomos até um pequeno estábulo onde
dois jumentos já estavam arriados à nossa espera.
Montamos e rapidamente galgamos a montanha na direção
sul da cidade. Eu ainda não estava refeito do encontro com
Sarah. Ela tinha o poder de me fazer sonhar de olhos
abertos. Eu sabia que logo que completasse 13 anos e
tivesse realizado a minha cerimônia de Bar Mitzvá, recitado
trechos da Torá e me tornado “filho da obrigação” eu teria a
permissão para pedi-la em casamento. Eu nunca entendi por
que as mulheres não tinham permissão para ler a Torá e os
demais Livros Sagrados. Acho que Javeh se compadecia
delas e não as obrigava a passar anos e anos decorando
centenas de versículos da Lei. Meus pais e os pais de Sarah
eram de famílias próximas e tudo fazia crer que só haveria
uma pessoa que não ficaria satisfeito com o nosso noivado:
Calebe, meu irmão de sangue quente.
- Mestre Abner, para onde vamos? O que vamos fazer?
Indaguei, depois de uma hora de cavalgada.
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O mestre fez sinal para que eu parasse o meu animal,
aproximou-se de mim sobre sua própria montaria e me disse
em voz grave:
- Para sua segurança e dos meus irmãos, terei que vendá-lo
daqui por diante. Quanto menos você souber para onde
vamos, melhor para todos nós. Vou passar esse unguento
azul em seus olhos. Não vai te causar dano algum. Se
alguma patrulha romana ou judaica aparecer, eu explicarei a
razão de você estar vendado. Direi a eles que você está
tratando de uma enfermidade nos olhos e não pode receber
poeira. Direi que estamos indo visitar um médico conhecido
que vive nas montanhas.
Montanhas? Havia muitas montanhas nos arredores. Com
os olhos vendados, eu dificilmente saberia para qual delas
estaríamos indo.
Obedeci. O cheiro do unguento era forte e me causou ânsia
de vômito. Eu precisava obedecer ao mestre. Apesar de
incomodar-me o fato de não saber para aonde íamos ou o
que iriamos fazer.
- Pode me dizer pelo menos o que iremos fazer, mestre?
Insisti.
- Você é muito curioso, Matias. Quer saber tudo, quer
entender tudo, quer antecipar tudo. Essa foi uma das razões
por que o escolhemos. Você foi escolhido para nos ajudar
em uma tarefa que só alguém com a sua habilidade em
manejar as palavras, memória prodigiosa e poder de criação,
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poderá realiza-la com facilidade. O trabalho que você terá
que fazer é imenso, mas você será recompensado por isso.
- Eu fui escolhido por quem? – perguntei, ansioso por uma
resposta objetiva.
- Você continua perguntando o que logo vai saber, qual a
sua missão e o grande trabalho a realizar, Matias.
- O senhor está dizendo que terei uma grande fortuna ao
terminar esse trabalho?
- O verdadeiro valor do trabalho de um homem nem sempre
pode ser medido pela quantidade de ouro ou prata que ele
recebe, mas sim pela felicidade e pelo bem que ele
proporcionará aos outros. Não se deve trabalhar apenas
visando receber um salário, Matias. Trabalhe como se não
precisasse de recompensas materiais e, tenha certeza, o
Altíssimo não o desamparará. O mundo será melhor se
trabalharmos por amor.
- E quem vai nos sustentar? Quer dizer, se eu não receber
um salário pelo meu trabalho, como vou viver... como vou
comer ou beber.
- Há muita coisa que você precisa aprender, meu rapaz.
Você está de olhos vendados agora e não pode ver, mas
pode ouvir o som do vento sacudindo as folhas das árvores,
pode sentir o movimento do seu animal, pode sentir o sol na
sua pele, pode ouvir o canto de pássaros e muitas outras
coisas. Quem cuida de tudo isso? Certamente não sou eu,
nem o Sacerdote do Templo, nem seus pais, nem os meus
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ancestrais. Tudo que há sobre a Terra existe
independentemente da vontade dos homens. Os homens
existem independentemente de sua própria vontade. Somos
criaturas de Javeh e, se aceitarmos a orientação Dele, nunca
seremos desamparados, como não são as aves nos céus, as
plantas, as flores e os frutos. Temos que aprender a cuidar
das obras de Javeh e a ouvir seus ensinamentos.
Enquanto cavalgávamos, o mestre Abner me distraiu
contando histórias do nosso povo para me fazer refletir
sobre fatos que eu nunca havia pensado antes. A venda
sobre meus olhos não me causou mais qualquer incômodo.
Eu sabia que, quando amamos e confiamos em alguém, não
importa saber para onde ele está nos levando, seja para onde
for, desfrutaremos com ela o prazer da caminhada. Meu
mestre era o homem que eu mais amava, depois de meu pai.
Às vezes até achava que minha admiração por Abner era
insuperável por qualquer outra que eu viesse a ter por
qualquer pessoa. Isso porque eu ainda não havia conhecido
outras, ainda mais formidáveis.
- Chegamos Matias. Agora vou desmontá-lo e faremos mais
uma pequena caminhada. Depois retirarei a sua venda. Você
está com fome?
- Estou sim e com muita sede – disse, ao descer do animal.
Comemos em silêncio e eu tentava adivinhar em que lugar
estávamos. Eu não havia viajado muito com meus pais e
viajar sozinho era proibido, principalmente depois que
nossas terras foram invadidas pelos romanos. Muitos
meninos e meninas haviam sido estuprados pelos nossos
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inimigos, que eram devassos e de má índole. Por isso, eu
tinha pouca experiência com viagens e lugares. Mas podia
sentir que estávamos próximos a um oásis, pois era possível
sentir o cheiro da água e do mato verde.
- Deixaremos nossos animais aqui e caminharemos algum
tempo, não vai demorar muito. Enquanto isso, preciso te
dizer que, depois do que você verá e ouvirá hoje, sua vida
nunca mais será a mesma.
- O que vai acontecer, Mestre. Eu sou apenas uma criança.
Como posso fazer parte de algo tão importante? – indaguei,
sentindo uma forte angústia e medo.
- Você será preparado para essa missão, Matias. Não há o
que temer – disse Abner, como se lesse meus pensamentos.
- Mas... e se eu não quiser fazer parte disso? O que irá
acontecer?
- Eu tenho certeza de que você não vai fugir do que te será
oferecido. Mas, se quiser, seu desejo será respeitado.
Qualquer pessoa que for obrigada a fazer algo contra a
própria vontade não será capaz de produzir boas coisas.
Concordei intimamente. Minha mãe sempre dizia isso
quando meu pai queria obrigar a mim e aos meus irmãos a ir
aos jogos de guerra e às disputas de bigas. Eu não gostava
de ver os pobres animais serem açoitados, puxando carroças
pesadas, competindo uns contra os outros. No final, quem
ganhava o prêmio era o cavaleiro e não o cavalo. Achava
aquilo uma injustiça. Eu não seria nunca obrigado a fazer
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Capítulo IV - Os Essênios
No final da tarde, meus pais e meus irmãos retornaram um
pouco mais cedo para casa. Depois da festa de aniversário
de meu tio Eliabe, minha mãe havia dito ao meu pai que não
estava se sentindo bem.
- O que você tem, querida? Será que Javeh vai nos
presentear com outro filho? Perguntou sorrindo.
- Não... eu acho que não. O que sinto é um aperto no
coração. Uma sensação de desconforto, como se alguma
coisa estivesse me sufocando. Tenho isso às vezes, quando
você está lutando contra os nossos inimigos – disse minha
mãe, mostrando-se tensa.
- Está bem. Não ficaremos muito tempo no Mar e
voltaremos mais cedo para casa. Talvez seja este calor
intenso que está te causando o mal estar. Você vai ficar bem
depois que se banhar.
Foram ao Mar Morto e minha mãe não quis se banhar,
apesar de toda a insistência das outras mulheres que
estavam afastadas dos homens a convidaram para nadar,
pois a Lei proibia homens e mulheres de se banharem juntos
em público.
Durante a caminhada de volta para casa, minha mãe insistiu
com meu pai para que fossem até a sinagoga, onde eu
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deveria estar trabalhando com o mestre Abner. Meu pai
relutara, pois não queria causar incômodo ao escriba-mor do
Templo. Mas minha mãe não se deteve e os arrastou para lá.
Para surpresa de todos, eu não estava lá, nem o mestre
Abner. Na verdade, ninguém sabia para onde havíamos ido.
- Talvez estejam no Templo – disse meu irmão Calebe,
seguindo em direção ao Templo, que ficava a pouco mais de
meia hora de caminhada na direção oposta à nossa casa.
Foi Bejnamin, quem deu a primeira pista de onde
poderíamos ter ido.
- Acho que eles saíram da cidade – disse ele, apontando
para a cocheira.
Todos correram para olhar, mas nada viram.
Benjamim, no entanto, mostrou que havia dois cochos com
feno e vasilhames de água próximos um do outro e, um
pouco mais atrás, havia excrementos de animais.
- Veja, pai... eles saíram bem cedo, pela manhã. Os
excrementos estão secos.
- Como você pode saber que saíram da cidade, Benjamim?
– indagou Calebe, sentindo-se em desvantagem.
- E para que servem os animais de montaria? Veja... está
faltando duas selas – disse ele, apontando para o local onde
ficavam os arreios dos animais.
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- Judith, você vai com as crianças para casa, talvez Matias
já esteja lá. Eu vou ao templo.
Quando minha mãe chegou em casa, eu não estava lá. Meu
pai voltou horas depois e estava aflito, pois eu também não
estivera no templo.
- Temos que sair para procurar nosso filho... eu sentia que
alguma coisa não estava bem – disse minha mãe, com a voz
trêmula.
- Vamos esperar um pouco mais. Quem sabe o mestre
Abner não tenha ido mostrar alguma coisa a Matias fora da
cidade– ponderou meu pai.
- Sem nos avisar? Ele sabe que não pode fazer isso. Muito
menos sem o nosso consentimento. Para onde ele levaria
nosso filho? Tudo indica que haviam combinado antes, pois
o mestre já estava esperando por ele na sinagoga –
acrescentou minha mãe.
- Como assim. Como você sabe que ele já estava esperando
por ele na sinagoga? – indagou meu pai.
- Quando vínhamos para cá, encontramos Sarah e ela nos
disse que Matias passou logo cedo por ela dizendo que
estava apressado para chegar à sinagoga, porque o mestre
Abner “não gostava de esperar”.
- Claro, o mestre Abner é muito pontual e não gosta de ficar
esperando seus discípulos.
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- O problema é que, até onde sei, Matias não estava sendo
esperado por ele...
- Não estava? Como assim?
- Ele me disse que não queria sair conosco porque iria ver o
Mestre Abner, que sempre está no domingo pela manhã na
sinagoga, para contar-lhe sobre um sonho estranho que
tivera. Matias nunca mente.
Minha mãe confiava cegamente em mim e suas deduções
estariam corretas se o que eu estava fazendo não envolvesse
uma questão de vida e morte, como foi o caso da tarefa que
meu mentor Abner me confiara. Ele me fizera jurar que
jamais diria uma palavra a sobre a minha missão aos meus
pais ou a qualquer outra pessoa. Que também eu nada diria
sobre o que eu visse ou ouvisse naquele dia. Ele me
assegurara que a minha família e eu poderíamos ser mortos,
se eu quebrasse o segredo.
Naquela época, eu sequer podia imaginar que, no futuro, o
simples fato de alguém saber sobre algo que era proibido
pudesse lhe custar a própria vida.
Meu pai tinha muitos amigos em Jerusalém e, naquela noite,
fez algo que mudou todo o rumo da minha vida, da dele e de
todos os demais da minha família. Ele não poderia saber
que aquilo aconteceria e o que fez foi movido pelo amor de
pai que não queria perder nenhum dos seus filhos. Eu era o
filho mais velho e talvez o mais querido. Meu pai iria até
65
Roma, se preciso fosse, para trazer-me são e salvo para
casa.
A noite chegou rápido e a aflição em minha casa aumentou.
Mais de 100 homens haviam saído à minha procura e do
mestre Abner, pois ele também não retornara para casa até a
3ª vigília (entre meia noite e 3 da manhã).
O que mais dificultou a minha procura foi a tempestade de
verão que se abateu durante a madrugada daquele dia. Uma
chuva torrencial deixou as ruas de Jerusalém enlameadas e
sujas de detritos que desceram das encostas.
O dia amanheceu e meus pais tinham passado a noite em
claro. Haviam pedido ajuda ao Sumo Sacerdote e este havia
solicitado ao governador da Judeia, Pôncio Pilatos, que era
seu amigo, para que interrogasse as patrulhas romanas da
região sobre o paradeiro de um menino e um escriba de
meia idade. Nada puderam apurar. Ninguém nos havia visto
nem ouvido falar de nós.
Vasculharam a casa de Abner, bem como seus trabalhos, na
esperança de encontrar alguma pista, mas nada
conseguiram. Nem a esposa dele, nem os filhos sabiam do
seu paradeiro.
No terceiro dia de buscas, meu pai, inconformado, começou
a suspeitar que meu desaparecimento tinha sido planejado
pelos romanos, pois sabiam que ele era um zelote destemido
e inimigo mortal de Roma.
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- Vou cortar a garganta de Pilatos – disse meu pai exaltado.
Aquele bastardo vai pagar, junto com toda a família, pela
desonra que nos fez.
- Como você pode saber que foram os romanos, Harael?
Não existem provas. Talvez eles tenham saído para dar um
passeio pelo campo e se perderam. Você se lembra de que
naquela noite caiu uma forte tempestade? Eles podem ter se
perdido no deserto... podem ter sido assaltados...
- Sim, assaltados pelos romanos – interrompeu meu pai.
Quem mais é capaz de cometer mais barbaridades em nossa
terra que eles?
- Não apenas os romanos são maus em nossa terra, Harael.
Você sabe que desde os tempos de Moisés haviam ladrões e
salteadores. Não foram os romanos os criadores do mal. O
mal existe desde o início do mundo.
- Sim, mas os romanos aperfeiçoaram o mal. Tudo que
estamos sofrendo agora é culpa deles.
- Mas será que apenas eles são os responsáveis? Lembre-se
de que nosso povo tem se dividido e por isso enfraqueceu.
Lembra-se das 12 tribos de Judá, provindas dos 12 filhos
de Jacó, neto do Patriarca Abraão, que estiveram unidos até
a morte do rei Salomão? Depois disso, cada um quis ficar
com as melhores terras e ter domínio uns sobre os outros.
Essa foi a nossa desgraça. Divididos e enfraquecidos, fomos
sendo derrotados um a um e hoje estamos dominados por
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um povo estranho que também quer dominar o mundo e
impor a todos seus costumes e leis.
- Você tem razão, Judith.... talvez eu esteja exagerando, mas
você sabe o quanto odeio os romanos. Nossa guerra contra
eles parece que nunca chegará ao fim. Eu só ficarei
satisfeito quando não mais vir uma única túnica vermelha
caminhando por nossas ruas, maltratando e escravizando os
nossos irmãos.
- Você é um guerreiro, eu sei. Sinto orgulho de você por
isso. Mas até quando viveremos em um mundo em que seja
necessário derramar o sangue de um filho para se conseguir
a paz? Não existe nenhuma mãe que sente felicidade em
entregar seu filho para morrer em uma guerra, mesmo que
seja para defendê-la. Antes, essa mãe quererá morrer no
lugar do filho.
- Eu não compreendo vocês mulheres... Não compreendo
como pode ter um amor tão grande por um filho e se sentir
capaz de dar a própria vida por ele.
- Você não daria sua vida por seu filho?
Meu pai ficou em silêncio. Ele sabia a resposta. Também
daria.
Embora as buscas continuassem por mais de duas semanas,
aos poucos, as pessoas foram se acomodando, exceto minha
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mãe, que dizia sempre ter certeza de que eu não havia
morrido e que um dia eu voltaria para os seus braços.
Meu pai já não era tão otimista e a cada dia sentia mais ódio
dos romanos. Meus irmãos me contaram que, por vezes, ele
também desaparecia por dias sem que a minha mãe
soubesse o seu paradeiro. Quando ele voltava, estava
sempre ferido e, depois de tratado, voltava aos combates às
escondidas, pois ninguém poderia saber que ele era o autor
das constantes mortes de soldados romanos emboscados nas
montanhas.
Minha mãe orava a Javeh para que me protegesse e me
trouxesse de volta, são e salvo.
O que ela não sabia é que quem voltaria para casa já não
seria mais aquele menino meio tímido, calado e ponderado.
O Matias que voltaria para casa havia sido transformado
com o que viu e ouviu naquele domingo em que
acompanhou o seu mestre em uma viagem sem volta ao
mundo dos Essênios.
- Vou tirar a sua venda agora, Matias. Mantenha os olhos
fechados e vá abrindo aos poucos. Quem permaneceu muito
tempo nas trevas precisa ir se acostumando aos poucos com
a luz, antes de abrir totalmente os olhos. Somente quando
eles estiverem preparados é que você poderá enxergar tudo
sem problemas.
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Aquela foi uma das grandes lições que aprendi naquele dia
inesquecível. Anos depois eu saberia compreender melhor a
razão pela qual os mestres nunca falavam abertamente sobre
suas descobertas, nem quando transmitiam seus
ensinamentos. Era preciso primeiro preparar os aprendizes.
Era necessário ir dosando pouco a pouco o ensino. Uma
criança recém-nascida não será capaz de digerir alimentos
pesados antes que seu corpo esteja preparado para recebê-
lo. As aves pequeninas ficam sob a proteção da mãe até que
estejam aptas a voarem sozinhas pelo céu para buscar o
próprio alimento. É necessário ter maturidade, para
compreender as verdades sobre a vida.
Aos poucos, fui abrindo os olhos e o que vi foram
gigantescas montanhas de areia dourada refletindo a luz do
sol. Meus olhos arderam com a intensidade da
luminosidade, obrigando-me a cerrar as pálpebras.
Olhei para o mestre Abner e ele estava imóvel, olhando para
a vastidão do deserto.
Eu olhei em volta e percebi que não havia uma árvore, uma
rocha, um oásis, um rio ou lago que pudesse ser visto dali.
Girei o corpo para o norte o sul, o leste e o oeste e tudo que
vi foi um imenso deserto. Apesar do calor, senti um frio na
espinha.
- Estamos perdidos no meio do Saara, Mestre? – perguntei
com um meio sorriso nervoso.
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- Olhe direito Matias... Olhe...!!
Olhei outra vez em torno de mim e tudo que via era um mar
de areia. Eu nunca tinha estado num deserto, mas, pela
descrição dos livros que lera na biblioteca do Templo, era
ali onde estávamos.
- O senhor está me assustando, mestre. Ficou louco?
Arrisquei.
- Ahahahaha... é isso que sempre dizem, quando afirmamos
que estamos vendo alguma coisa bem em nossa frente e as
outras pessoas não conseguem ver. Nos chamam de loucos.
Elas não são capazes de enxergar, mas alguns de nós
podem. Vou te dar mais uma chance. Olhe naquela direção
outra vez.
Olhei e olhei de novo para as montanhas de areia e nada vi
além delas. Senti uma sede descomunal. Minha garganta
ficou seca e as únicas palavras que pude balbuciar foram:
- Mestre, o senhor me trouxe aqui para eu morrer, é isso?
O mestre não respondeu. Apenas aproximou-se de mim,
abraçou-me e disse:
- Não, Matias. Você não foi trazido aqui para morrer e sim
para renascer. Eu vou te ajudar agora. Relaxe os olhos...
continue olhando naquela direção, não force nada. Não
queira ver nada. Esqueça a areia... esqueça as dunas...
Apenas olhe e deixe que algo apareça em sua visão.
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Eu já estava chorando, mas obedeci, certo de que o calor do
sol havia cozinhado os miolos do meu mentor.
Aos poucos, tomado de uma imensa alegria, eu percebi que
sim, havia alguma coisa ali. De vez em quando o vulto
sumia, mas depois voltava a aparecer. Não estava bem
nítido, mas havia algo sim e não estava muito longe. Estava
se formando bem ali na minha frente.
Segurei com força a mão do mestre.
Aos poucos, vi pessoas vestidas de branco vindo em minha
direção. Corri instintivamente para detrás do mestre,
buscando proteger-me e ele sorriu, tentando tranquilizar-me.
- Não tenha medo, Matias. Essas pessoas estavam esperando
por nós. Não são fantasmas, nem anjos, são agora os seus
irmãos.
Em seguida, fui cercado por moças e rapazes de pele
bronzeada, usando túnicas brancas até a altura dos joelhos,
cerzidas com barbante na altura da cintura. Todos usavam
no pescoço um cordão feito de couro trançado, de onde
pendia a figura minúscula de um peixe.
Todos falavam ao mesmo tempo e me tocavam, como se eu
fosse um objeto valioso. Mestre Abner conversava
animadamente com um dos homens, que parecia ser uma
espécie de líder, pois portava um bracelete de cobre e era o
mais idoso dentre os que ali estavam. Calculei que havia
72
mais de cem pessoas, sendo a maioria homens. Talvez umas
trinta mulheres, apenas.
Fomos conduzidos na direção do que agora parecia ser uma
gigantesca construção com vinte metros de altura e uns
duzentos de circunferência. Meus olhos não paravam de
olhar em volta tentando compreender o que era aquele lugar
e porque razão eu não o havia visto enquanto estava bem
em frente dele. Aquilo deveria ser um milagre divino. Sim,
deveria ser. Certamente o mestre Abner era um profeta com
poderes divinos dados por Javeh e nunca nos falara sobre
isso.
Observei que a construção em forma de concha com a boca
voltada para baixo tinha uma abertura no centro por onde
entrava a luz do sol. Em volta dela, havia um grande pátio
com dezenas de cabanas feitas de madeira, cada uma
contendo uma rede parecida com a que os pescadores
usavam, mas de menor tamanho, feitas com tecido,
amarradas nas extremidades a duas estacas. Essas redes
estavam penduradas a meio metro do chão. Vi algumas
pessoas deitadas nelas e crianças que se baloiçavam de um
lado para outro. Ao fundo da grande construção, havia uma
horta com espécies de verduras que eu nunca havia visto em
toda a minha vida, nem mesmo na grande feira da Galiléia,
aonde íamos, uma vez ao ano, por ocasião das festas do Tu
Bishvat, que marca o início do “Ano Novo das Árvores” e
onde comíamos várias espécies de frutos vindos de todas as
partes de Israel.
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Havia também algumas árvores de pequeno e médio porte,
que, pelo aroma que exalavam, pude reconhecer que ali
havia tâmaras, ameixas, figos, caquis, nêsperas e maçãs. Eu
perguntaria depois sobre aquele milagre ao mestre Abner ou
a alguém que pudesse me dizer como era possível se
produzir tantas coisas no meio do deserto.
Por um instante, passou-me pela mente o desejo de que
meus pais estivessem ali junto com meus irmãos, para
verem todas aquelas maravilhas. Não era apenas um oásis,
mas o mais belo oásis que já havia visto em toda a minha
vida. O mistério de não tê-lo visto antes ainda me intrigava.
Eu não sairia dali sem saber como algo poderia estar tão
diante de meus olhos e eu não conseguia enxergar. Aquelas
coisas eram reais e não uma simples imaginação de minha
mente infantil. Não era uma mágica, como sempre via fazer
os encantadores de serpente e engolidores de espadas, nas
praças de Jerusalém. Meu pai também sabia fazer truques
com moedas, fazendo-as desaparecer bem diante dos nossos
olhos. Se ele dissesse que tinha sido um anjo que havia feito
a moeda desaparecer, com certeza, nós acreditaríamos,
mesmo sem nunca ter visto um único anjo em nossa frente.
Certa vez eu lhe perguntei:
- Pai, porque os Livros Sagrados contam que os profetas
viam e falavam com os anjos e só eles os viam?
74
- São mistérios de Deus, meu filho. Deus se manifesta do
modo como quer, quando quer e onde quer. Nós não temos
poder de interferir na vontade do Altíssimo.
- Então quer dizer que nossas orações poderão não ser
atendidas, caso Javeh esteja de mal humor? – perguntei
sorrindo.
- Não brinque com Deus. Com Deus não se brinca. Deus é
fogo consumidor e pode ferir de morte aqueles que zombam
dele – disse meu pai, em tom de reprimenda.
- Mas pai, não está escrito que todo homem morrerá de
qualquer jeito...
- Matias... Matias.. você faz perguntas muito difíceis, meus
filho. Eu não sei como pude ter tido um filho com tanta
vontade de saber e conhecer. Você deveria ser um
guerreiro... defender nosso povo. Mas, pelo que vejo, você
quer mesmo é ler e escrever não é?
- Sim, pai... eu quero ler muito, quero ler todos os livros do
mundo e saber um pouco de tudo – respondi alegremente.
- E o que vai fazer com todo esse conhecimento acumulado?
- Vou escrever muitos livros. Vou ensinar coisas às outras
pessoas. Coisas que estão ocultas e que as pessoas poderiam
saber para melhorarem suas vidas.
75
- Você é muito ambicioso, meu filho. Vou encaminhá-lo ao
mestre Moshe. Ele já sabe que você aprendeu a ler sozinho
e está disposto a guia-lo. Isso vai me custar dez moedas de
prata por mês, você sabia?
Eu sabia que meu pai não era rico e que o salário que
ganhava como guerreiro das tropas judaicas nos dava uma
vida confortável, mas não de luxo. Dez moedas de prata era
uma fortuna. No entanto, depois de dois meses ao lado do
mestre Abner, ele dispensou meu pai dos pagamentos,
dizendo que, se eu o ajudasse na tradução e cópia de
documentos sagrados, tudo estaria certo. E foi assim que eu
aprendera o Latim, Grego, Árabe, Aramaico além do
Hebraico que era a língua da nossa família.
Uma chuva torrencial começou a cair e, imediatamente, vi
grupos de homens e mulheres colocando potes e bacias na
grande praça com o objetivo de recolher a água. Dessa
forma, teriam água fresca para uso doméstico. Havia lá um
poço, do qual provavelmente os moradores daquele lugar se
serviam de água para as necessidades do dia a dia.
O lugar era muito limpo e organizado. Notei que as pessoas
que lá estavam sempre sorriam e pareciam se sentir
genuinamente felizes.
Mestre Abner era muito querido por todos e foi ele quem
me apresentou ao grupo, quando, após a tempestade, nos
sentamos em um grande círculo sobre o tapete que cobria
uma área destinada às refeições. Foram servidos sucos de
76
frutas e bolinhos feitos com cereais, os quais eu não pude
identificar. Não havia nenhum tipo de carne. Indaguei a um
dos rapazes que estava ao meu lado sobre esse fato e ele
explicou-me que os Essênios daquele lugar não comiam
animais. Achei aquilo muito interessante, pois eu mesmo,
muitas vezes, sentia muita pena quando via meus pais
matando animais, ou mesmo no templo, quando o carneiro
era sacrificado ao nosso Deus.
Lembro até hoje das palavras do mestre Abner quando se
referiu a mim, naquele dia.
- Matias, de agora em diante, vai viver conosco. Aprenderá
as mais variadas ciências e será o escriba que nos ajudará a
escrever uma nova história para o nosso povo e para o
mundo que tanto necessita de algo novo para mudar o
destino da humanidade. A obra que ele escreverá fará
divisão das Eras. Terá o poder de marcar o antes e o depois.
Mesmo que passem mil gerações, as palavras dos livros que
ele escreverá serão lembradas por todos em alguma parte da
Terra.
Eu fiquei estarrecido. Como eu, um menino de apenas 10
anos de idade, teria conhecimento para escrever algo tão
sublime? Não... o mestre Abner estava completamente
enganado a meu respeito. Eu não era a pessoa certa. Diria
isso a ele logo que terminássemos a refeição e pediria para
ele me levar de volta para a minha casa. Provavelmente,
77
meus pais já estariam à minha procura, pois o sol começava
a se por.
- Mestre, por favor, leve-me para casa... estou com medo.
Disse baixinho a Abner, quando ficamos a sós.
- Meu filho, nós não podemos ir para casa hoje. Fomos
informados que, a meio caminho de Jerusalém, estão
acampadas tropas romanas e ninguém entra ou sai da cidade
sem ser revistado. Estão prevendo um ataque surpresa por
gente do nosso povo. Parece que os zelotes estão por trás
dessa manobra. Portanto, não é seguro sairmos agora.
Temos que esperar. Também há o fato de os ventos estarem
levando a tempestade para a cidade e não conseguiríamos
vencê-la no meio da noite.
- O que eu irei dizer aos meus pais quando voltarmos?
Perguntei, aflito.
- Não se preocupe, eu me encarrego de explicar tudo aos
seus pais. Eles compreenderão. Por ora, não se preocupe.
Agora vá descansar. Há uma rede esperando por você em
uma das cabanas. Se tudo estiver bem, amanhã cedo
voltaremos.
Concordei, fui para a cabana indicada, no entanto, não
consegui conciliar o sono. Minha mente ainda estava
atordoada com todos aqueles acontecimentos, aquele lugar
estranho e ao mesmo tempo magnífico. Perguntava-me a
razão de não existirem outros lugares como aquele, onde as
78
pessoas viviam felizes, repartindo tudo, cantando e
dançando como verdadeiros irmãos. Não conseguia
imaginar como mantinham tudo tão oculto no meio das
dunas. Como podiam cultivar plantas ali dentro, criando um
verdadeiro oásis artificial. Eu tinha que contar tudo aos
meus pais, mesmo sendo advertido pelo mestre Abner para
não falar nada a ninguém sobre o que vira ou ouvira.
Fiquei por muito tempo olhando para fora da minha cabana,
para a fraca luz das estrelas que cintilavam no firmamento.
Todos dormiam profundamente. Talvez eu pudesse fugir
dali. Não estava interessado em escrever livros que
mudariam o mundo. Queria voltar para perto de minha
família e continuar meus estudos das línguas, tornar-me um
bom copista, nada mais. Talvez eu pudesse fugir antes que o
dia amanhecesse. Uma lua tímida iluminava o céu quando
saí daquele lugar misterioso. Havia notado que uma
pequena valeta que servia para escoar a água da chuva
passava por baixo da parede circular do conjunto de
cabanas. Meu corpo franzino passou com relativa facilidade
por ela e logo eu me vi do lado de fora. Não havia sentinelas
ou, se existisse, dormiam profundamente e não notaram a
minha fuga. Acho que se sentiam seguros onde estavam,
ocultos pelas dunas gigantescas.
Aos poucos, os meus olhos foram se acostumando com a
escuridão e tentei me guiar pelas estrelas, pois o mestre
Abner já havia me ensinado muito sobre elas e o modo
como podemos nos orientar por elas para chegar a algum
79
lugar. Durante o dia, nos guiamos pela luz do Sol, mas,
durante a noite, são as estrelas que oferecem os melhores
mapas. Os viajantes do deserto e os marinheiros sabem ler o
céu e chegam sempre onde desejam.
Lembrei-me do oásis onde havíamos deixado nossos
jumentos amarrados. Não estaria muito longe dalí, pois
recordava-me que tínhamos andado poucas horas até
encontramos as dunas mágicas onde estavam os Essênios.
Olhava o céu buscando encontrar as estrelas que me
indicariam o caminho, confiei no meu conhecimento e corri
na direção em que apontavam. Eu acabaria chegado a
Jerusalém ou talvez me perdesse para sempre nas areias do
deserto. Poderia morrer de fome e sede ou queimado pelo
calor do sol refletido na areia que a transformava em brasa
viva ao meio dia. Minha decisão havia sido tomada e eu
assumiria o risco. Tudo o que mais desejava era voltar para
casa, rever meus pais e irmãos. Embora fosse fascinante
aquele mundo dos Essênios, o mestre Abner estava
enganado a meu respeito.
Iluminado pela fraca luz da lua minguante, caminhei pelas
dunas de areia, ora tropeçando, ora me arrastando, mas com
a firme determinação de chegar ao oásis antes que o dia
amanhecesse e o Mestre Abner sentisse a minha falta.
Os primeiros sinais do sol nascente tingiram o céu com tons
alaranjados, anunciando mais um dia. Minhas pernas doíam
devido ao esforço da caminhada e minha boca ansiava por
80
uma gota d´água. Foi com imensa alegria que, do alto de
uma duna, avistei, a menos de um quilômetro, o que parecia
ser um oásis onde eu poderia matar a minha sede. Com as
últimas forças que me restavam, corri naquela direção e
logo reconheci que os dois animais deixados no dia anterior
permaneciam lá. Estavam pastando sossegados. Não haviam
ficado amarrados. Um dia perguntei ao meu pai a razão de
não precisar amarrar animais, como cavalos ou jumentos,
quando chegávamos a um oásis.
- Deus fez o animais inteligentes, meu filho. Eles sabem que
em volta só há deserto e nada para comer ou beber. Não
necessita ser amarrado o animal que tem ao seu dispor
comida, bebida e um bom lugar de descanso. Ele até pode
sair para perambular pelo deserto mas quando sentir sede e
fome ou precisar dormir, voltará para a sombra e água
fresca do oásis que já conhece.
- E porque os camelos não são assim? Indaguei.
- Os camelos são capazes de armazenar muita água em
pouco tempo. Alguns conseguem beber mais de 50 litros
por vez e com isso podem perambular pelo deserto por duas
ou três semanas sem água. Ora, pelo instinto, acabam
encontrando outro oásis nesse tempo. Por isso precisam ser
amarrados firmemente, pois, se fugirem, não voltarão muito
cedo ou talvez nunca.
Assim, meu coração se alegrou ao perceber que os animais
estavam lá, como se esperassem por mim.
81
Ao me aproximar, no entanto, vi que, próximo às palmeiras,
havia uma rede armada e que dentro dela havia alguém
embrulhado em panos. Provavelmente, seria algum viajante
do deserto que fora apanhado pela tempestade do dia
anterior e agora esperava o dia amanhecer para seguir
viagem. Tentei me aproximar a um dos animais sem
perturbar o viajante.
O jumento que havia me trazido levantou-se ao me ver,
como se me reconhecesse. Como se soubesse que eu voltara
para ser levado para casa. Os arreios estavam como o
mestre Abner havia deixado, pendurados em um pequeno
arbusto.
Depois de beber muita água no lago e banhar-me sem fazer
ruído, saí revigorado e comecei a colocar o cabresto no
jumentinho que me havia aguardado pacientemente e agora
mostrava-se animado com o prenúncio de uma viagem de
volta ao estábulo seguro, onde recebia a ração com aveia e
cevada.
Foi então que ouvi uma voz, logo atrás de mim, soar como
um trovão, gelando-me a espinha.
- Muito bem Matias... Muito bem.
Voltei-me assustado e vi que a pessoa que estava na rede
havia se levantado e estava bem atrás de mim com um
sorriso nos lábios. Era o Mestre Abner, como um espírito do
mal, a me perseguir.
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Recuei apavorado.
- Por favor, mestre... por favor... não me leve de volta. Eu te
imploro, não me leve de volta.
- Calma, meu filho... calma... Está tudo bem. Fique calmo.
Não precisa chorar eu vou levar você de volta... Mas dessa
vez vou levá-lo para casa. Vou levá-lo de volta para a sua
família. Mas você primeiro precisa me prometer que não vai
contar nada do que viu ou ouviu nessa sua viagem, está
bem?
Abracei o mestre, sentindo o corpo tremer na convulsão de
um pranto que durou algum tempo. Prometi mil vezes que
não falaria nada. E sabia que iria cumprir a minha promessa.
Faria qualquer coisa para voltar para casa.
Durante o caminho de volta para Jerusalém, fiz muitas
perguntas ao meu mestre e ele respondeu a todas elas sem
hesitação.
- Como o senhor sabia que eu voltaria ao oásis e ficou lá
esperando por mim?
- Eu sei da sua natureza, Matias. Você é intrépido,
determinado e muito teimoso. Fizemos uma aposta lá na
comunidade dos Essênios sobre sua fuga. Metade apostou
que você ficaria e a outra metade apostou do meu lado.
Você ainda tem uma mente infantil e toda criança quer
voltar para casa, mesmo quando as coisas estão indo bem
83
fora dela. Você ficou ansioso para contar tudo aos seus pais
e irmãos. Contar seus feitos. De que vale saber de coisas,
ver coisas, realizar feitos, se não há ninguém para falar
sobre eles? Você não é diferente. O que fizemos também foi
um teste. Precisávamos ter certeza de que você tem coragem
para enfrentar sozinho o que virá pela frente.
- E se eu tivesse ficado? O senhor me traria de volta?
- Sim, Matias, esse era o plano. Nunca tive a intenção de
deixa-lo lá. Só queria te mostrar que há uma comunidade
que existe há muitos séculos, mas está sendo perseguida por
gente do nosso próprio povo.
- Porque razão estão sendo perseguidos? Eles estão fazendo
mal a alguém?
- Não estamos, mas estamos desafiando as nossas Velhas
Leis. Estamos desafiando as nossas tradições e para os
demais sacerdotes que seguem os Mandamentos de Javeh
que foi dado a Moisés, os Essênios são uma ameaça.
- O que vocês querem mudar?
- Você viu que as mulheres na comunidade dos Essênios são
tratadas como um de nós? Viu que elas fazem as orações da
mesma forma que nós os homens fazemos?
- Sim, mas isso não é contra a Lei?
84
- É exatamente isso o que os Essênios querem mudar.
Querem que as mulheres, as filhas dos homens, sejam
tratadas como iguais e não como se fossem um bem, uma
propriedade dos pais, dos maridos ou dos irmãos mais
velhos. Querem que as mulheres realizem as cerimônias do
Templo, por exemplo?
- O quê?! Realizar as cerimônias do Yom Kippur, do Sucot
ou mesmo os Bar Mitzvá? Indaguei alarmado.
- Viu Matias... até você, que tem uma mente muito lúcida
para a sua idade, acha isso um absurdo. Sim, os Essênios
são a favor de que as mulheres participem de tudo, até da
preparação e realização do Sabath?
- Do Sabath?!
Eu não podia imaginar como uma mulher poderia realizar
todas os rituais que só o Sumo Sacerdote realizava.
Certamente os Essênios eram loucos de querer tais coisas.
- Mas isso é razão para quererem destruí-los, Mestre Abner?
- Não é, mas o nosso povo tem agido assim. Tudo o que está
escrito precisa ser cumprido. Se não há nada lá que diz que
uma mulher poderia se tornar sacerdotisa, então não
aceitarão o contrário, mesmo não havendo também nada
que diga que elas não possam. Alegam que não podemos
simplesmente mudar as Leis de acordo com a nossa
vontade.
85
- Mas as Leis não são escritas pelo homem sob a inspiração
de Deus?
- Essa é a questão, Matias. Você está aprendendo a arte da
escrita. Dentro de poucos anos, poderá escrever em várias
línguas e aquilo que você escrever será Lei.
- O senhor está dizendo que serei inspirado por Deus para
escrever, é isso mesmo?
- Sim, meu bom rapaz. É isso mesmo. Deus vai usar você
para escrever a mais linda história de todos os tempos. No
entanto, meu caro Matias, preciso te advertir que você não
vai receber qualquer recompensa por isso.
- O senhor já me falou sobre isso. Bastará a glória de ser
vaso nas mãos de Deus. Eu quero ser usado por ele para
escrever essa história...
- Pois é, mas nem isso você terá. Você escreverá uma
história que será lida por milhões de pessoas pelo mundo,
mas ninguém irá glorificar o seu nome. Seu nome não será
conhecido...
- Como assim, Mestre? Eu serei usado por Deus, escreverei
uma história inspirada e ninguém saberá que fui eu que a
escrevi? E por que devo fazer isso? Indaguei confuso.
- Olhe a sua volta, Matias. O que vê?
86
- Vejo o céu, nuvens se formando, aves, plantas, animais
que nos transportam agora, vejo a mim, vejo o senhor...
- Ótimo.. você citou exatamente as coisas que não são feitas
pelos homens. Mencionou as criaturas e feituras naturais.
Agora me responda: quem é o autor de todas essas obras?
- Javeh, o nosso Criador – respondi sem titubear.
- E onde está o nome dele, dizendo que isso ou aquilo é
criação Dele? Como sabemos que foi Ele que fez tudo o que
vemos, Matias?
- Os Livros Sagrados dizem...
- E é mesmo preciso Livros Sagrados para nos dizer isso?
Não somos nós mesmos que percebemos sem esforço que
existe algo muito maior do que nós por trás de tudo o que
existe? Deus não precisa colocar o nome dele nas obras que
ele criou. As obras magníficas falam por si mesmas.
Calei-me. O Mestre era um sábio. Ele sempre tinha a
palavra certa. Compreendi que eu seria usado para uma
missão importante, mas não teria o crédito da obra. O
mérito certamente seria de Deus. Então a obra que eu
escreveria deveria ser mesmo algo muito precioso. Mas por
que eu?
- Deus escolhe quem ele quer, Matias. Não temos como
fugir quando Ele nos escolhe. Você foi escolhido.
87
- O senhor também lê pensamentos, Mestre? Foi exatamente
o que acabei de pensar.
- Os pensamentos se movem, Matias. Nós só não os vemos,
mas tudo o que pensamos e sentimos sai de nossas cabeças
como um poderoso vento... invisível, mas os efeitos podem
ser sentidos por outros. O pensamento é o maior poder que
foi dado aos seres humanos. Quando você pensa muitas
vezes sobre a mesma coisa é como se transportasse um
punhado dessa areia que está sob os nossos pés. Cada
punhado vai se acumulando até se transformar numa
montanha. O vento carrega a cada dia um pouquinho da
areia. Nós não vemos o vento, mas o monte de areia vai se
formando.
- Fale-me um pouco mais sobre a comunidade dos Essênios,
Mestre. Como eles podem ficar escondidos nas dunas do
deserto. Que poder mágico é aquele que os tornam
invisíveis?
- Ahahahaha... não há nenhuma mágica em ficarem ocultos,
Matias. Se você pintar um pequeno pedaço de tecido na
mesma cor de uma parede e colocá-lo na frente dessa
parede, você verá a parede que é maior, mas não verá o
tecido. Os Essênios pintaram a grande cabana com a mesma
cor da areia do deserto. Por isso você não a enxergava.
Você olhava e só via o deserto, pois o deserto é muito
maior, mas a construção estava lá, bem diante dos seus
olhos. Alguns animais fazem isso para não serem
88
capturados por suas presas. Quando um lagarto olha para
um galho de árvore ele não vê senão folhas, mas o
gafanhoto está bem ali e assim poderá sobreviver. Muitas
Comunidades Essênias vivem diante dos olhos das pessoas,
mas elas não conseguem enxergá-las.
- Tenho outra pergunta para te fazer, Mestre. Por que eu tive
que ser vendado na ida mas não estou sendo na volta? Eu
poderia agora saber o caminho que leva à Comunidade, não
poderia?
- Sim poderia, mas a venda não foi para ocultar de você o
caminho, foi para que você se lembrasse de que uma pessoa
que fica muito tempo na escuridão pode ficar cega se for
exposta bruscamente a uma luz muito intensa. Ela precisa ir
se acostumando com a luminosidade aos poucos. Também
queria que você aprendesse a usar seus outros sentidos, seu
senso de orientação ficou mais aguçado. Seus ouvidos, seu
olfato e demais órgãos foram amplificados e isso te ajudou a
chegar ao oásis, como prevíamos. Sabíamos também que
você se guiaria pelas estrelas.
- A vida é sempre assim, Mestre? Já está tudo resolvido,
mas alguns de nós não sabemos o que de fato vai nos
acontecer?
- Não, não está tudo resolvido. Se estivesse, nós não
teríamos razão para existir. Deus nos coloca no mundo para
preencher uma lacuna. Estava faltando alguém para realizar
algo, não importa o que seja. Todas as pessoas têm um
89
valor. Tudo e todos estão interligados. Vivemos numa
grande rede da vida onde cada fio nos prende uns aos
outros. Mesmo um pequenino fio da extremidade da rede,
quando é puxado, muda o desenho da rede e assim é
infinitamente.
- Se isso é verdade, por que razão o senhor disse que já
sabia que eu fugiria e voltaria ao oásis? O senhor tem o dom
de ver o futuro? É um adivinho?
- Não, não sou um adivinho, Matias. Mas sou muito
observador. Todos os homens podem aprender a prever
algumas coisas. Veja o céu, por exemplo. Está voltando a
formar nuvens. Se são nuvens escuras e grossas, é provável
que, dentro de algumas horas, volte a chover, não é?
Observamos a direção dos ventos. Quando os ventos fortes
sopram do leste para o oeste neste lugar onde estamos, será
que indica chuva ou não?
- Provavelmente, sim. – respondi.
- Então é assim... provavelmente. Não acertaremos sempre.
Tudo o que temos a fazer é observar, aprender com as
outras pessoas que passaram suas vidas investigando,
observando e escrevendo livros sobre esses fenômenos.
Chegará um dia em que será possível se prever muitos
deles.
- Tais como tempestades, terremotos, pestes e outras coisas?
90
- Sim, tenho certeza de que chegará esse dia.
Enquanto cavalgávamos, vimos, ao longe na estrada,
bandeirolas vermelhas vindo em nossa direção.
- São romanos! Precisamos nos esconder, Matias. Eles
podem nos molestar – disse o mestre Abner, tocando o
animal para subir uma pequena encosta.
- Se já nos viram, virão atrás de nós – Disse sem olhar para
trás.
- Temos que chegar até aquelas árvores antes que eles
apareçam na curva.
- Talvez seja melhor descermos dos animais e corrermos,
Mestre. Eles estão cansados e estamos numa ladeira com
pedras soltas. O senhor e eu chegaremos às árvores mais
rápido à pé que montados nos animais. – disse eu, sem
esperar pela decisão de Abner.
Ele também desmontou e começou a correr
desesperadamente atrás de mim. Eu era bom de pernas e dei
uma mão ao Mestre, arrastando-o para trás das árvores,
segundos antes dos soldados romanos aparecem na curva.
- Alto!! – bradou o comandante, obrigando aos cavaleiros
pararem logo atrás dele.
Eu podia ouvir as batidas do meu coração e quase as dos
coração do mestre Abner.
91
- Soldado... vá buscar aqueles jumentos, eles parecem
saudáveis e servirão para transportar nossos alimentos.
Imediatamente, um cavaleiro disparou na direção dos
nossos animais e os puxou pelo cabresto, retomando à
posição em que estava na tropa.
Eu podia jurar que os nossos animais olharam para nós,
como se estivessem implorando para que os salvássemos. O
tratamento que os romanos dispensariam a eles não seria
nada parecido com o que o Mestre Abner dava aos animais
que usava como montaria eventual.
Os romanos continuaram sua marcha.
- Malditos romanos! tornaram-se donos de tudo que
encontram pela frente e que tenha algum valor. Pelo que
vejo, eles estão armados para uma guerra. Alguma coisa
muito terrível está prestes a acontecer. Nunca vi aquele
general por aqui.
Uma nova chuva se abateu sobre nós e ficamos
encharcados, enquanto caminhávamos por uma via diferente
da estrada que rumava a Jerusalém. Abner concluiu que não
seria bom sermos apanhados sozinhos por tropas romanas,
sobretudo ele que já havia tido problemas com o governador
romano por conta de intromissões dele na biblioteca do
templo, confiscando livros que eram importantes e
pertenciam ao nosso povo, ou levando-os para serem
copiados pelos escribas romanos que falavam a nossa
92
língua. Eles eram muito bons nas falsificações. Eram
capazes de falsificar a própria mãe de César, se lhes
pagassem.
- Vamos para a casa de Efraim. Ele nos dará abrigo até
podermos voltar para Jerusalém.
Efraim era um velho conhecido de Abner e do meu pai.
Contou-nos que havia indícios de que nos próximos dias
haveria uma invasão das tropas romanas a um dos nossos
quartéis. Eles queriam confiscar metade das armas,
alegando que os judeus não precisavam delas, pois estavam
sob a proteção de Roma. No entanto, negociadores de
ambos os lados estavam num impasse. Os judeus não
entregariam metade de seus cavalos, espadas, arcos e
demais armas de guerra aos romanos, não sem sangue. Os
zelotes iriam intervir.
Ao ouvir essa história, entrei em pânico, ao lembrar que
meu pai era um dos capitães dos zelotes e que ele poderia
morrer naquele confronto.
Não me lembro com detalhes o que aconteceu comigo
naquela noite, pois comecei a tossir e vomitar terrivelmente.
Tive febre alta e delirei. Nos meus delírios, eu via meu pai
envolto em uma túnica branca, encharcada de sangue, sendo
açoitado pelas ruas de Jerusalém, sem que ninguém o
acudisse. Depois via quando colocaram uma tora de
madeira sobre seu ombro e o fizeram puxar até o alto de um
93
monte, onde ele seria crucificado, como era costume dos
romanos quando queriam punir um malfeitor.
O irmão Efraim e sua esposa Rachel cuidaram de mim. Por
algum tempo, eu não vi o mestre Abner, que um dia voltou
aflito e informou que eu tinha que ir com ele naquele
momento, dentro de um cesto de mantimentos vazio,
explicando que um grupo de zelotes havia penetrado no
quartel onde estava o general Lucius e tinha assassinado
todos os soldados durante a noite. Alguns dos soldados
feridos haviam reconhecido meu pai e ele agora estava
sendo procurado com os demais zelotes responsáveis pelo
ataque.
- Matias, precisamos fugir para um lugar distante de
Jerusalém. A cidade está cercada por tropas romanas
enviadas por Herodes e ninguém entra ou sai, até que os
responsáveis pelo ataque sejam punidos. Eu consegui levar
sua mãe e seus irmãos para um sítio nas proximidades de
Jericó, onde um irmão de seu pai é criador de cabras. Os
romanos não sabem quem são os parentes de seu pai. Lá
vocês estarão seguros.
Foi dentro de um cesto de transportar verduras, no fundo de
uma carroça, misturado a sacos de aveia, trigo, tomates que
eu cheguei oculto ao local onde a minha mãe e meus irmãos
me esperavam.
Aquele foi um dos dias mais felizes da vida da minha mãe e
da minha vida também. Nem ela, nem meus irmãos, nunca
95
Capítulo V - A Grande Viagem
Mesmo a alegria de minha mãe e dos meus irmãos não
conseguiu afastar a minha tristeza ao saber que talvez eu
nunca mais voltasse a ver meu pai. Ele era agora um
fugitivo. Romanos e judeus procuravam por ele por toda a
Judeia. Era oferecida uma recompensa por sua cabeça e não
tardariam a descobrirem onde estávamos.
Os dias, as semanas, os meses passavam lentos. Minha
rotina era levar, junto com meus irmãos, as cabras para
pastar e traze-las sãs e salvas no fim do dia, além de ajudar
meu tio em outras tarefas do campo e cuidar dos meus
irmãos.
Eu sentia falta de minha vida em Jerusalém. Sentia saudades
do perfume do cabelo de Sarah, filha do rabino Moshe.
Sentia falta da biblioteca do templo, com seus inúmeros
papiros e pergaminhos cheios de aventuras. Sentia falta das
ruas apinhadas de gente nos dias de festa e de toda a
algazarra dos meus colegas escribas nas aulas de línguas e
escritura. Sentia falta da sabedoria do meu mestre Abner e
das longas conversas que tínhamos.
Na casa do tio Eliabe, só havia alguns poucos rolos de
pergaminhos, cópias já desgastadas do Talmud, contendo os
livros mais importantes, os quais eu já relera incontáveis
vezes, sendo capaz até de recitá-los de cor.
96
Não havia, naquele lugar, nenhum instrumento disponível
para escrever e minha mãe temia ir a Jericó, cidade mais
próxima, para não levantar suspeitas sobre a sua identidade.
A cidade era pequena e qualquer pessoa estranha era logo
notada, especialmente minha mãe, pela sua beleza.
Ela sempre pedia para eu esperar que esquecessem a
perseguição a meu pai, pois logo apareceriam outros judeus
mais importantes a serem procurados e nós seríamos
esquecidos. Quando pudesse, ela mesma iria comprar tinta e
cânulas, com as quais eu poderia escrever alguma coisa nos
pergaminhos que eu aprendera a fazer usando a pele de
cabra. Essa foi uma das primeiras lições que aprendi com o
mestre Abner – preparar um excelente pergaminho com a
pele curtida de carneiro ou de cabra. Eu já havia produzido
dezenas e esperava poder escrever alguma coisa neles ou
negociá-los no mercado de Jericó.
Todos os dias, eu olhava para a estrada na esperança de que
meu pai aparecesse, trazendo nas mãos novidades das
cidades por onde ele passava, quando em missão militar. No
começo da noite, deitava-me na minha esteira aa lado dos
meus irmãos e lá ficava de olhos abertos, olhando o céu
estrelado na noites de verão, sentindo-me frustrado e me
perguntando porque as minhas orações não haviam sido
atendidas por Javeh.
97
Um dia perguntei ao irmão de meu pai que nos acolhera a
razão de Javeh não estar atendendo às minhas preces feitas
diariamente com tanto fervor.
- O Senhor sabe o que é melhor para nós, meu sobrinho.
Continue pedindo. Se Javeh decidir atender ao seu pedido,
significa que você fez boas escolhas.
- O meu pedido é justo. Nenhum filho deveria ficar sem seu
pai ou a sua mãe – disse eu, desgostoso.
- Sim, é verdade. Mas não se esqueça de que não somos nós
que decidimos o acontecimento dos fatos no mundo. É
Javeh quem decide.
- E como eu saberei que foi Ele quem decidiu, se somos nós
que praticamos as ações no dia-a-dia? Não são os homens
que realizam as coisas sobre a Terra?
- Sim, mas só se Deus autorizar. Se Ele permitir.
- Mesmo matar e perseguir inocentes?
- Você pode achar que são inocentes, mas, e se Deus
entender que não o são? Afinal, Ele é o dono da Vida e
pode fazer o que quiser.
- Então para que nos criou, se nós vamos sempre depender
da vontade Dele para qualquer coisa? Não seria melhor não
fazermos nada e esperar que Ele resolva tudo, faça tudo
certinho para nós?
98
- Matias, você está me confundindo... Você pensa demais.
Melhor concentrar-se nos seus textos para recitar no seu Bar
Mitzvá, logo você completará 13 anos e não poderá errar
nem um único versículo.
- Eu já decorei tudo tio Eliabe. Não se preocupe – disse-lhe,
contrariado, por não obter uma boa resposta do meu tio.
Mas ele não era um sábio como os mestres do Templo. Não
era o mestre Abner que sempre tinha uma resposta melhor
para mim.
Tio Eliabe nunca havia se casado, não tinha filhos e
demonstrava atenção e cuidado a nós. Travava-me como um
pai, mas eu sentia falta do meu pai verdadeiro.
Uma noite fui despertado por uma conversa cochichada, em
tom de discussão, entre minha mãe e meu tio. Minha mãe
dormia sempre ao nosso lado num dos três cômodos da casa
e tio Eliabe em um outro, que era a dispensa, agora
improvisado para se tornar um quarto independente. Minha
mãe estava na sala com o meu tio naquela noite, como
sempre ficava antes que todos nós nos recolhêssemos.
Depois ela viria deitar-se ao nosso lado, cobrindo-nos,
quando fazia frio.
Embora falassem em tom baixo, não pude deixar de ouvir
grande parte da conversa.
- Judith, você sabe que Harael não voltará mais. Ele
provavelmente já foi morto em alguma batalha, morto pelos
99
romanos. Não podemos continuar nessa situação. Dizia meu
tio.
- Eu não acredito que ele esteja morto, Eliabe. Mesmo
depois de dois anos, ele pode ter fugido da Judeia e ido para
outro país. Não sabemos.
- Você sabe que meu irmão não era homem de fugir. Seu
destino sempre foi guerrear. Ele sempre disse que morreria
lutando. Portanto, já é hora de você assumir sua viuvez. As
pessoas já estão começando a falar...
- As pessoas... eu pouco estou ligando para as pessoas. Pois
que falem. Estou com a minha consciência tranquila. Estou
à espera do meu marido.
- Você não acha que as pessoas vão acabar desconfiando ao
me virem com você e os meninos nas ruas de Jericó, como
se fôssemos uma família?
- Você quer se justificar para eles, pois faça isso.
- Não é isso o que quero, Judith. O que eu quero mesmo...
- Pois diga, Eliabe... diga o que você quer...
- Você sabe. Já falamos uma vez sobre isso. Eu sou solteiro,
nunca me casei e acho que agora...
- Nunca! Jamais trairia a memória de meu marido. Não se
atreva a me falar nisso outra vez. Meus filhos não o
respeitarão mais se souberem que você quer tomar o lugar
100
do pai deles. Não vou coabitar com você, Eliabe. Nem hoje
nem daqui a mil anos...
Minha mãe entrou em nosso quarto, furiosa. Eu fingi que
estava dormindo, mas também estava cheio de ira. Minha
vontade era de levantar e cortar a garganta de meu tio.
Como ele poderia querer tomar o lugar de meu pai? Meu pai
voltaria e eu lhe contaria tudo. Então a honra de minha mãe
estaria lavada.
Ouvi minha mãe soluçando baixinho. Ela tentou abafar o
som do pranto e aos poucos foi amainando e, passado algum
tempo, percebi que ela adormecera.
Vi, em claro, os primeiros raios do sol chegarem. Eu tinha
certeza de que, se contasse aos meus irmãos sobre o que
ouvira naquela noite, certamente Calebe mataria meu tio
sem titubear, como fazia com as serpentes do deserto.
Quebraria lhe a cabeça com uma pedrada certeira.
Não falei com o meu tio naquela manhã e me recusei a sair
com os meus irmãos para levar as cabras para pastarem.
Minha mãe, ao me ver sentado à sombra de uma tamareira
próximo da casa, veio falar comigo.
- Meu filho, você está bem? Está sentindo alguma coisa?
Comecei a chorar. Minha mãe me abraçou, confortando-me
e me disse:
101
- Você também sente falta do seu pai, não é? Eu tenho
esperança de que ele um dia voltará. Mas temos que esperar
a vontade do Senhor...
Afastei-me de minha mãe, abruptamente.
- Vontade do Senhor... vontade do Senhor... e qual é a
vontade do Senhor? Por que Ele não vem resolver as coisas
para nós aqui em baixo, minha mãe? Nós não sabemos o
que fazer. Ficamos rezando e rezando, horas e horas, dias e
dias, sem saber o que Deus quer. Isso não é justo – disse eu,
aos berros.
Minha mãe ficou assustada.
- Matias... eu nunca o vi tão revoltado. O que está
acontecendo?
- A senhora sabe o que está acontecendo. Ouvi a conversa
da senhora com o tio Eliabe. Eu deveria matá-lo, como meu
pai o fará quando voltar para casa, se eu lhe contar o que
aconteceu.
Minha mãe empalideceu.
- Meu filho... tenha calma. O que você ouviu foi o delírio
de seu tio. Ele gosta de nós. Quer nos proteger. Tem medo
que um dia descubram quem somos nós. Ele quer se casar
comigo...
- Nunca!! Nunca!! Eu o matarei, se ele falar nisso outra vez.
102
Minha mãe agora estava próxima de mim. Ajoelhou-se aos
meu pés já em lágrimas.
- Matias... por favor... por favor me escute, meu filho. Seu
tio Eliabe está sendo sincero. Ele quer nos proteger. As
pessoas acabarão desconfiando de nós, se não parecermos
uma família. Ele sabe que se você for ao templo em Jericó
fazer o seu Bar Mitzvá, teria que dizer que ele é seu pai e eu
a sua mãe. Mas não podemos mentir.
- Sim, isso é uma mentira infame!! – concordei.
- Sim, mas protegerá as nossas vidas. De que adianta
falarmos a verdade e perecermos? Não valerá a pena. Nossa
vida é o que há de mais sagrado e importante. Não importa
o que tenhamos que fazer para nos salvar.
- Mãe, tio Eliabe conhece as escrituras... Deus falou a
Moisés nos dez sagrados mandamentos: “Não cobiçarás a
mulher do teu próximo; e não desejarás a casa do teu
próximo, nem o seu campo, nem o seu servo, nem a sua
serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma
do teu próximo.” O que ele está fazendo deve ser punido
com a morte.
- Eu sei... eu sei, meu filho. Mas e se seu pai estiver morto?
Nós não sabemos...
Meu ódio agora se voltou contra a minha mãe. Fiquei
descontrolado e despejei toda a minha fúria contra ela.
103
- A senhora vai se deitar com ele, vai? Vai se prostituir? Eu
seria o primeiro a atirar-lhe pedras, como manda a Lei.
Minha mãe, como um relâmpago, voou em minha direção e
me esbofeteou duramente. O som daquela bofetada eu
nunca mais esqueci por toda a minha vida. Foi a primeira e
única vez que ela fizera aquilo.
Corri para o campo, em desespero e aos prantos. Vi a minha
mãe ainda correndo atrás de mim, mas nunca conseguiu me
alcançar. Depois de alguns minutos, vi o seu vulto ficar
cada vez mais pequenino atrás de mim, até desaparecer
completamente por trás dos montes.
Eu sabia que nunca mais voltaria para casa. Se eu voltasse,
contaria tudo aos meus irmãos e mataríamos tio Eliabe.
Talvez nunca perdoaríamos nossa mãe se ela se casasse com
o irmão do meu pai, sem a certeza de que meu pai estava
morto. Eu sempre acreditaria que ele estava vivo, até que
me provassem o contrário.
Não sei por quanto tempo vaguei a esmo pelas montanhas e
estradas até encontrar uma cabana no sopé de uma colina
ao cair da noite. Os cães de guarda alertaram os moradores
da minha chegada. Eu estava exausto, cheio de fome, de
sede e revoltado.
Fui recebido por uma família de lavradores que era formada
por sete pessoas. O pai, a mãe e cinco crianças. Dois
meninos, mais ou menos da minha idade, pareciam ser
104
gêmeos e três meninas menores. A mais pequenina ainda
não sabia andar. Gamaliel era o pai daquela família.
Na noite em que cheguei, ele apenas se preocupou em me
levar para um banho no poço que ficava próximo da casa,
depois me deu comida e bebida. Notei que todos me
observavam curiosos. Nem eu falava, nem eles. Todos
pareciam esperar que eu contasse o que estava fazendo ali.
Nem mesmo eu sabia onde estava e a que distância ficava a
minha casa. Tinha caminhado a esmo durante todo o dia e
parado poucas vezes para descansar. Precisava extravasar
minha revolta contra Javeh, que não atendia às minhas
orações, contra meu tio Eliabe, o bastardo que queria se
deitar com a minha mãe, contra minha mãe, que estava
fraquejando e achando que meu pai havia morrido, contra os
romanos, que eram, ao fim de tudo, os responsáveis por
toda aquela situação. Se eles não tivessem invadido o nosso
país, meu pai não teria saído de casa para matá-los e todos
estaríamos bem. Eu tinha que fazer alguma coisa para
destruir os romanos. Essa agora era a minha obsessão.
- Não quer comer mais um pedaço de pão, meu rapaz? Disse
Gamaliel, sorrindo e retirando-me do devaneio.
- Não... obrigado. Estou satisfeito e muito cansado. Onde
estamos?
Todos se entreolharam.
- Então você não sabe onde está? Indagou o homem.
105
- Não, não sei. Estou perdido. Respondi sem graça.
- Você está em Ram, uma vila que fica ao sul de Jerusalém.
Ao ouvir a palavra Jerusalém, estremeci, e todos
perceberam.
- Jerusalém? A que distância estamos de lá?
- Pouco menos de um dia de marcha a pé. Menos de meio
dia em uma boa montaria.
- Você veio de lá? Perguntou um dos gêmeos.
- Sim... quer dizer, não... Respondi confuso. Sabia que não
poderia falar muito para não comprometer a minha família.
Não tivera tempo para criar uma história convincente.
Contei sem muitos detalhes que eu viajava de Jericó com a
minha família e fomos atacados por uma patrulha romana.
Eu consegui me esconder e fugir, por isso acabei indo para
aquele lugar. Precisava, então, encontrar algumas pessoas
que eram amigos de meus pais em Jerusalém.
- Quem são os seus pais... e quem são os seus amigos em
Jerusalém?
Inventei nomes, procurando proteger a identidade de meus
pais e a minha própria. Eu não sabia quem era aquele
homem. Podia ser um colaborador dos romanos. Se eu
cometesse algum erro, poderia piorar as coisas.
106
- Jerusalém está completamente sitiada. Destruíram o nosso
templo e sinagogas. Mataram muitos dos nossos sacerdotes
que não queriam colaborar. Tudo por causa do ataque dos
zelotes, há cerca de dois anos...
Uma vez mais estremeci. Então eles deveriam saber sobre
meu pai. Poderiam até estar procurando por uma
recompensa, pois naquela época qualquer dinheiro
representava prestígio e poder. Aquela família era grande e
poderia mudar de vida rapidamente, se recebessem a
recompensa oferecida pela cabeça de meu pai ou, quem
sabe, a de um dos membros da família dele.
Gamaliel contou que sempre ia a Jerusalém levar cereais
para vender no mercado e que, se eu quisesse, poderia me
levar para lá. Também me ofereceu generosamente
hospedagem em sua casa pelo tempo que quisesse, desde
que eu os ajudassem na colheita do trigo e nas tarefas do dia
a dia.
Concordei de bom grado e, por algumas semanas, esqueci a
minha raiva, voltando a sentir saudades de minha mãe e dos
meus irmãos. Também já não conseguia sentir tanta raiva do
meu tio. E se ele estivesse certo? Minha mãe precisava ser
protegida e tio Eliabe tinha sido muito bom para todos nós,
tratando-nos como filhos. Mas, no meu coração, algo dizia
que um dia meu pai voltaria e não seria bom encontrar meu
tio Eliabe na mesma cama que minha mãe.
107
Jerusalém parecia uma cidade fantasma. Não era a mesma
cidade cheia de vida onde eu nascera e passara grande parte
da minha infância, até ser levado pelo Mestre Abner. As
ruas estavam quase vazias em pleno meio dia e, aqui ou ali,
via-se uma guarnição romana observando a tudo e a todos.
Quase não acreditei no que vi, quando passamos pelas
ruínas do Grande Templo. Não ficara pedra sobre pedra e,
no meio dos escombros, havia o infame estandarte romano,
tremulando ao sabor do vento, impondo-nos sua dominação.
- Senhor Gamaliel, pode deixar-me aqui... vou tentar
encontrar os amigos de meu pai na sinagoga. Se não os
encontrar, o procurarei no mercado e voltarei para a sua
casa em sua companhia.
- Está bem, João... espero que tenha sorte. Mas saiba que, de
qualquer modo, terei prazer em acolhê-lo como a um
sobrinho, em minha humilde casa – disse-me ele, batendo
em meu ombro e me ajudando a descer da carroça cheia de
sacos de cereais.
João. Fora o único nome que surgiu em minha cabeça
quando ele me perguntou qual era o meu nome. Era um
nome muito conhecido, pois naquela época havia um
profeta chamado João que andava pregando nas montanhas
e fazendo algo que era novidade para todos em Jerusalém.
Ele tinha o hábito de levar as pessoas para dentro de rios e
lagos, mergulhando-as completamente. Era um ritual de
purificação, de renascimento espiritual.. Ele dizia que
108
aquele ato simbolizava a limpeza dos pecados. Quem se
arrependesse dos pecados e recebesse aquele mergulho e
não pecasse mais, teria a salvação. Por isso, apelidaram-no
de João Batista, aquele que batiza.
Sem muita dificuldade, cheguei até à sinagoga onde
costumava ir com meus pais, encontrei-a semidestruída.
Haviam demolido parte da entrada principal e, no lugar,
haviam improvisado uma outra construção onde as
cerimônias eram realizadas. A biblioteca ficava nos fundos,
mas só havia uma entrada pela frente do edifício.
Bati à porta e, ansiosamente, esperei que viessem abri-la.
Um senhor idoso de cabelos e barba grisalhos veio abrir.
Deveria ser novo por ali, pois eu nunca o havia visto. Pelas
roupas, ele era um mestre escriba e sacerdote.
- Em que posso ajuda-lo, meu rapaz? – disse o ancião
sorrindo.
- Senhor, o mestre Abner está aqui hoje? Gostaria de vê-lo –
disse-lhe, espiando para dentro.
- Mestre Abner... ahh sim. E quem é você?
- Eu sou... João, um antigo discípulo dele – disse eu,
lembrando que não deveria mencionar meu nome
verdadeiro, pois isso poderia me causar problemas.
109
- Por onde você tem andado, João? Você não é de
Jerusalém, é? – indagou o mestre escriba, desconfiado.
- Sim, sou. Morei aqui alguns anos, mas, depois, minha
família e eu nos mudamos para outra cidade. O mestre
Abner vai me reconhecer...
- Lamento, mas mestre Abner está morto. Foi massacrado
no templo, tentando defender nossos valiosos papiros
sagrados confiscados pelos romanos. Eu vim de Belém para
substituí-lo. Isso foi no ano passado. Você não sabia?
Não ouvi mais nada. Apenas senti minhas pernas
fraquejarem e sentei-me na calçada na frente da sinagoga.
Fiquei ali, com a cabeça entre as pernas, chorando
copiosamente. Meu tutor, meu mestre, o homem mais sábio
que eu conhecera até então, estava morto.
Lembro-me de que aquele ancião, que vim saber depois
tratar-se do grande mestre escriba Malachai, levou-me para
o interior da sinagoga e ficou lá esperando que eu me
recompusesse e, em seguida, disse-me com sua voz grave e
macia:
- João... ,ou quem quer que você seja, eu não posso ficar
com você aqui muito tempo. Estou de partida para o Egito,
pois sinto que não poderei continuar o meu trabalho nesta
cidade, nessa nossa terra que foi tomada pelos nossos
inimigos. Eles sempre virão atrás de mim para que eu lhes
faça cópias de papiros e pergaminhos sem pagar uma única
110
moeda. Não posso ser escravizado por eles dessa forma.
Minha profissão não vai servir aos assassinos dos nossos
irmãos.
- Não podemos ficar aqui e lutar contra eles, mestre
Malachai?– indaguei.
- Nesse momento não podemos. Nosso povo está
enfraquecido, dividido, corrompido, humilhado e derrotado.
Os poucos rebeldes serão facilmente destruídos. A ordem é
que devemos nos dispersar...
- Ordem? Quem deu essa ordem?
O ancião pareceu sentir-se embaraçado com a minha
pergunta ou apanhado de surpresa.
- A ordem do nosso Deus... O Senhor nos ordena para que
saiamos pelo mundo para preservar a nossa cultura, nossos
ensinamentos e a nossa fé.
Foi a primeira vez que eu ouvira aquela palavra: fé. Não
havia em nenhum capítulo ou versículo do Talmude ou da
Torá essa palavra. Quis perguntar naquele momento sobre o
significado dela, mas deixei isso para outra ocasião, se
tivesse oportunidade..
- O que o senhor vai fazer no Egito? Eles não são também
nossos inimigos?
111
- No momento não. São nossos aliados contra os romanos.
César já tentou invadir Alexandria, a capital, mas não teve
sucesso. Vencer o exército egípcio no momento é uma
missão impossível para os romanos. Os gregos também
estão do nosso lado e querem recuperar as cidades que
foram invadidas. A Pérsia também está reunindo forças
contra Roma. Um dia nós os venceremos – disse o mestre
sem perder a calma, mas com uma firmeza inabalável.
Comecei a gostar daquele homem que me levou a conhecer
seus trabalhos.
- Leve-me com o senhor, mestre. Prometo que o obedecerei
em tudo, como obedecia ao meu mestre Abner. Trabalharei
dia e noite para compensar as despesas que tiver comigo.
- E a sua família?
- Não tenho mais família, como já te disse, estão mortos. Só
tinha o mestre Abner aqui e por isso vim procurá-lo. Mas
como o senhor me disse, ele está morto. Já não poderá me
ajudar.
O mestre Malachai me ouviu sem interromper e depois
contou um pouco da sua história.
Havia começado muito cedo, como eu, nas artes da escrita,
das ciências, da astrologia e aprendizagem de idiomas. Já
havia visitado bibliotecas de várias partes do mundo e sua
família era de Belém.
112
Indagou-me sobre o que eu havia aprendido com o mestre
Abner e eu lhe contei da admiração que sentia por meu
primeiro mestre.
- João... você não me convenceu com a história da sua
família que foi morta pelos romanos e você acabou indo
para a casa de Gamaliel que o acolheu. Está faltando
alguma coisa no seu drama.
- E o que está faltando, mestre Malachai? – indaguei
temeroso.
- Ora, se você disse que nasceu aqui em Jerusalém, então
deve ter amigos, parentes, pessoas que o conhecem, não é?
No entanto, quer viajar comigo para o Egito. Você parece
estar fugindo de alguém ou de alguma coisa. O que é? Quer
me contar ou terei que descobrir sozinho?
Eu não sabia ainda se poderia confiar no mestre Malachai e
contar-lhe toda a verdade. Não se pode contar a verdade
para pessoas que podem nos fazer mal, mesmo que
tenhamos que ser chamados de mentirosos.
- Se você estiver mentindo é porque não quer ser
machucado ou está protegendo alguém. É o seu direito, meu
rapaz. Mas saiba que se você quer ter o direito de cobrar a
verdade dos outros, deve servir de exemplo – disse o ancião,
cofiando a longa barba.
113
- Como saber se uma pessoa merece a nossa verdade,
mestre? As pessoas costumam ser más quando descobrem a
verdade.
- Nunca saberemos, João. Nunca saberemos. Você corre
igual risco em mentir ou contar a verdade. Pode sofrer com
ambas. A escolha é sua. Se me contar a verdade, posso te
prometer guardar segredo e nunca usar o que souber contra
você para te fazer mal. Isso eu prometo.
- Mas as pessoas costumam prometer e depois não cumprem
o que prometem, mestre. Que escolha eu tenho?
- Como te disse, você não tem escolha sobre o que as outras
pessoas farão com a sua verdade. Elas poderão falhar.
Todos falhamos e é bom que você comece a se acostumar
com isso.
- Deus não falha! – disse eu, com veemência.
- Você, com certeza, não deve se lembrar que está escrito no
livro de Gênesis: “Então arrependeu-se o Senhor que ele
tinha feito o homem na terra e pesou-lhe em seu coração”.
Provavelmente, você também conhece a história do Rei
Saul, não conhece? Pois está registrado no Livro de
Números que Deus disse: “Arrependo-me que eu tenha
posto a Saul para ser rei”. Há muitos outras passagem nos
livros em que o próprio Senhor Deus reconheceu ter feito
algo errado. Se Ele pode errar, será que não temos esse
direito?
114
- O que o senhor está dizendo não é perigoso? Não vai
contra os nossos princípios? Os sacerdotes concordam com
o senhor?
- Pode ser que hoje eles não concordem, mas chegará o dia
em que concordarão e deixarão de seguir as escrituras de
modo tão ao pé da letra. É necessário que saibamos
interpretar o que está escrito, João. E tem algo que você
precisa entender. Será mesmo que tudo aquilo que está
escrito e em que acreditamos foi Deus quem ditou? Não
somos nós os escribas que escrevemos com a nossa pena e
com nossos instrumentos o que compõem as Leis?
Ao ouvir aquilo, lembrei-me imediatamente do mestre
Abner e da comunidade dos Essênios. Será que o mestre
Malachai era um essênio também? Eu deveria perguntar
sobre isso ou deveria silenciar? Preferi silenciar.
Após algum tempo matando as saudades dos livros da
biblioteca da sinagoga que ainda estavam intactos e
conversando com o mestre Malachai, percebi que podia
confiar nele. Tinha certeza de que ele era um essênio.
- Mestre Malachai – disse-lhe temeroso – eu vou te contar a
minha história real. Depois disso, o senhor ficará livre para
decidir se deve me levar ou não. Se não quiser me levar, eu
aceitarei a vontade do Senhor.
- Nesse caso, a minha vontade, não é, João. Conte-me tudo.
115
Contei todos os detalhes possíveis, até mesmo sobre a visita
à comunidade dos Essênios. O ancião ouviu tudo sem
interromper ou demonstrar qualquer emoção.
- Então é você o Escolhido? Javeh nos guiou na direção um
do outro. Talvez você não saiba, mas há uma grande Lei
que rege todo o universo que ajusta cada momento de nossa
vida para que certas coisas aconteçam. Bastaria um piscar
de olhos para que esse momento não acontecesse. A prova
está aqui agora. Você na minha frente.
- Isso quer dizer que o senhor vai me levar para o Egito?
Indaguei eufórico.
- Não apenas para o Egito, mas também à Grécia, à India, à
China, à Pérsia e mesmo à Roma. Viajaremos pelo mundo,
meu rapaz. Você já deu a si mesmo o seu nome: João. De
agora em diante, você será João. Ninguém mais precisa
saber do seu nome original. Ele guarda alguns perigos. É
melhor assumir seu novo nome.
Sorri de orelha a orelha. Eu agora tinha um novo protetor.
- Qual o objetivo de nossas viagens, mestre Malachai?
- Aprender, João. Você já fala muitas línguas e é um bom
escriba. Está prestes a completar 13 anos e seu Bat Mitzvá
será pelo mundo.
- Quer dizer que não precisarei fazer essa cerimônia?
116
- Não, João. Não precisará fazer. Para quê, se você já
provou que conhece as Escrituras mais que um sacerdote. O
Bat Mitzvá é uma celebração familiar, mas seus pais e seus
irmãos de sangue não estarão por perto. Nem é seguro que
você volte para perto deles. Sua mãe, seu pai e seus irmãos
agora são todos os que puderem ajuda-lo a cumprir a sua
missão. E posso te garantir, não será fácil, nem divertida.
Você vai sentir vontade de desistir, mas você a concluirá.
- Posso te pedir permissão para fazer mais uma coisa antes
de partirmos?
- Sim, João, mas seja o que for, espero que isso não mude o
seu modo de pensar nem o faça se desviar da sua missão.
- Não deixarei mestre, eu prometo.
- E o que é que você quer fazer?
- Preciso ver alguém...
- Você tem uma prometida? Uma jovem por quem está
enamorado, é isso?
Sorri envergonhado.
- Não sinta vergonha de demonstrar amor, carinho e paixão,
João. Sem esses sentimentos nós sequer existiríamos. Vá
ver a sua amada e volte para partirmos. Uma caravana de
mercadores partirá ao cair da tarde e será uma longa
117
viagem. Vou providenciar roupas para você, pois vi que
você nada trouxe contigo.
Agradeci e sai às pressas na direção da casa onde Sarah
morava com os pais. Eu poderia chegar lá de olhos
vendados.
Era uma casa como as demais da cidade, com uma
diferença, havia duas tamareiras imensas de cada lado da
casa e um caminho de pedras roliças conduziam até uma
elevação. Na primavera, Sarah e sua mãe plantavam flores e
muitas vezes eu as ajudava nessa tarefa, tornando-me um
conhecedor daquela arte.
Naquela época do ano, não havia flores, mas as pedras
continuavam lá, ladeando o caminho.
Bati com força na porta, esperando que ela se abrisse e
Sarah aparecesse, queria abraça-la, dizer-lhe que senti
saudades e que voltaria para que nos casássemos.
Quando a porta se abriu, foi um rapaz que me perguntou o
que eu desejava.
- Procuro por Sarah, a filha mais velha do sacerdote
Moshe... sou amigo dela. Meu nome é... é... Matias.
O rapaz, que deveria ter o dobro de minha idade, me olhou
com um certo desdém, pois meus trajes eram menores do
que o meu corpo, em seguida gritou.
118
- Sarah... tem um rapaz aqui chamado Matias procurando
por você.
Sarah apareceu em seguida. Suas mãos tremiam e ela mal
conseguia cobrir o rosto com um véu.
Fiquei ali petrificado olhando para ela, mas o instinto me
dizia que não deveria abraçá-la. Os braceletes que ela usava
no braço esquerdo e o véu indicavam que ela estava casada
e aquele rapaz era o seu marido.
Sorri e a cumprimentei reverentemente.
- Matias, por onde você andou? Muita coisa aconteceu por
aqui. Meu pai foi assassinado no Templo junto com outros
sacerdotes... o seu mestre Abner também foi sacrificado.
Foram tempos difíceis Matias... Perdoe-me... esse é o meu
esposo, Daniel... olhe, vamos ter um filho e eu vou dar o seu
nome a ele, já decidimos, não é meu esposo?
O rapaz deu um meio sorriso e confirmou com a cabeça.
Não tive tempo de explicar nada a Sarah. Meu coração
estava partido em mil pedaços e não havia nada que eu
pudesse fazer.
Uma vez mais Javeh havia falhado comigo. Uma vez mais
os romanos tinham tirado as melhores pessoas de minha
vida.
119
Eu não disse para onde iria. Não sabia se era seguro falar da
minha nova vida diante de um estranho. Nos despedimos.
Vi que Sarah havia ficado com os olhos rasos d´agua no
meio abraço que trocamos. Voltei para a sinagoga, sem
olhar para trás. Deixaria para trás o meu passado, as minhas
dores, os meus problemas, a minha família, o meu amor. O
único que tive em toda a minha vida.
121
Capítulo VI - O Plano de Redenção da
Humanidade
A viagem pelas estradas empoeiradas de Israel, passando
por Belém, Hebron e Berseba até alcançarmos as montanhas
de Gosén, foi terrível e houve momentos em que eu achei
que não iríamos conseguir chegar ao nosso destino.
O comboio, formado por 30 homens e 6 mulheres montados
em camelos e jumentos de carga, se perdia na imensidão do
deserto repleto de infinitas dunas douradas. O inclemente
sol do meio dia queimava as nossas peles, nos rachava os
lábios e nos fazia transpirar copiosamente. As tendas
armadas para nos proteger das tempestades da madrugada
eram açoitadas pelo vento que nos expunha à escuridão da
noite sob o olhar frio das estrelas. Vez por outra, uma lua
encurvada aparecia no firmamento, como se nos seguisse
silenciosa a espiar de longe os nossos passos.
Ocasionalmente, encontrávamos patrulhas romanas que
vasculhavam todas as mercadorias em busca de armas.
Muitos até nos saqueavam, sem se importar se morreríamos
de fome ou de sede. O que os impedia de nos matar era o
fato de viajarem conosco, três romanos, três sírios, três
egípcios, dois gregos, um persa e os demais, todos judeus de
diferentes regiões com permissão para viajar dadas pelo Rei
da Judeia, um romano. Sem isso, não teríamos sequer saído
de Jerusalém.
122
Sempre éramos abordados por soldados que faziam
perguntas, revistavam nossas cargas, deixando-as
espalhadas pela areia e, depois de se servirem com o que
lhes apeteciam, partiam nos deixando com a tarefa de
reembalar nossos pertences, compostos por uma preciosa
carga de cereais, frutas secas e verdoengas que colhíamos
nos oásis encontrados no caminho, cantis com água,
pergaminhos virgens, tintas, perfumes, incenso, azeite e
artigos de cozinha que negociávamos de cidade em cidade.
Esses produtos eram muitas vezes usados como moeda de
troca para que nos deixassem passar. Também serviria para
o caso de sermos atacados pelos beduínos do deserto –
grupos armados errantes que viviam de assaltos aos
viajantes desavisados. Eles representavam o maior perigo.
Mesmo maior que os romanos, os quais obedeciam ordem
de generais e do rei. Sabíamos de muitas caravanas que
foram massacradas pelos impiedosos tuaregues e outros
grupos nômades, sem governantes e sem leis, a não ser as
que eles próprios faziam.
Não nos era permitido carregar armas. Nem as
carregaríamos, pois todos, exceto eu, eram membros
itinerantes da Comunidade dos Essênios. Foi o que me
dissera o mestre Malachai antes de partirmos.
Enfrentamos tempestades de areia, chuvas torrenciais, frio e
calor intenso em nossa jornada rumo ao Egito. Foi uma
grande aprendizagem para mim viajar com aqueles homens
e mulheres tão diferentes dos demais com quem eu já havia
convivido até aquela data.
123
Viajava ao lado do mestre Malachai que era o líder do
grupo e todos o obedeciam sem discussões, exceto eu, que
vez por outra sentia vontade de contrariá-lo. Mas, em vez de
reprimenda, ele sempre tinha uma palavra de ponderação
para comigo.
Durante as noites em que acampávamos para o descanso,
mestre Malachai contava-nos histórias do nosso povo,
algumas eram novidade para mim, pois mesmo já tendo lido
grande parte dos livros existentes no Talmud, ainda havia
outros que eu não lera, já que existiam livros proibidos aos
que não eram sacerdotes.
- Qual a razão de existirem livros proibidos, mestre
Malachai?
- Os livros proibidos são aqueles que, de algum modo,
contam histórias constrangedoras ou que os sacerdotes não
querem dar conhecimento ao povo. Histórias que
envergonham o nosso povo. Alguns já tentaram destruí-los,
mas graças ao trabalho sábio e diligente dos escribas, como
nós, que sempre tivemos a oportunidade para fazer cópias e
as fazíamos secretamente e, em seguida, ocultando-as em
algum lugar quase impossível de ser achado.
- Foi assim que muitos livros proibidos chegaram até os
nossos dias, é isso?
- Sim. Um desses livros é o do Profeta Samuel. Você sabe
quem foi ele? – indagou-me, Malachai.
124
- Não tenho certeza, mas ele deve ter sido um sacerdote ou
profeta, estou certo?
- Na verdade ele foi um grande líder de Israel e o primeiro
dos grandes profetas. Foi ele, também, juiz e administrador.
Chega-se a dizer que ele era da estatura histórica de Moisés.
Por outro lado, o conteúdo dos dois livros dedicados à vida
dele não deixa alguns sacerdotes muito confortáveis.
- E o que causa esse desconforto, mestre?
- Vou te contar uma história que está registrada no Primeiro
Livro de Samuel, mais precisamente no capítulo VI. Se
você quiser perguntar alguma coisa, poderá fazê-lo. Assim
compreenderá melhor a profundidade da história. Você sabe
o que era a Arca da Aliança nos tempos dos profetas?
- Sim, todos que estudam as Leis sabem que foi um baú de
madeira revestido em ouro por dentro e por fora, construído
seguindo as orientações que Javeh deu a Moisés.
- Isso mesmo, João. Foi construída por Bezalel, o artífice-
mor do povo hebreu. Era feita de acácia e tinha uma tampa
chamada Propiciatório. Na frente, foram colocados dois
querubins feito em ouro, sendo que as asas deles se
curvavam para o meio da tampa, em sinal de reverência e
adoração. Nas laterais, havia quatro argolas de ouro, nas
quais se enfiavam duas varas, também feita de acácia e
ouro, para transportar o objeto. Somente os sacerdotes
podiam tocar e transportar aquela arca.
125
- O que havia dentro dela, mestre? Eu já li sobre isso mas
não me recordo direito dos detalhes.
- Conta-se que, dentro da Arca da Aliança, havia alguns
objetos sagrados do povo judeu daquela época, entre eles: a
vara de amendoeira de Arão que floresceu e frutificou.
- Vara de Arão? É aquela história contada no livro de
Números? Não me recordo bem dela, mestre.
- Deus falou a Moisés, há mais de mil anos, que iria
escolher um dos homens para ajudá-lo a cuidar do povo.
Falou a Moisés para pegar 12 varas secas e, em cada uma
delas, deveria escrever o nome de cada um dos príncipes de
Israel. As varas seriam colocadas no tabernáculo onde
faziam as orações e celebravam os rituais sagrados. A vara
que florescesse indicaria aquele que iria acompanhar
Moisés em sua missão. No dia seguinte, havia uma vara que
estava florida e brotara renovos e dera amêndoas. Era a vara
de Arão. Então ela foi colocada dentro da Arca junto com
outros objetos.
- Quais eram esses outros objetos?
- Um pote de maná e as Tábuas dos Dez Mandamentos.
- Maná? O senhor se refere àquela comida que Javeh
mandou do céu para alimentar o povo hebreu que fugiu do
Egito? Que tinha gosto de mel ou de bolo doce de azeite?
126
- Isso mesmo, meu rapaz. Você leu o livro de Êxodo, não
foi? Segundo a história, esse alimento caia do céu após o
amanhecer e parecia uma geada branca, descrito também
como uma semente de coentro ou obdélio. Esses flocos
eram moídos, cozidos ou assados, sendo transformados em
bolos.
- Javeh sabia cuidar do seu povo, não era, mestre Malachai?
- Sabia não, ainda sabe cuidar. Os estudos que os sábios do
Egito fizeram recentemente mostram que aqueles flocos, o
maná, não era algo vindo do céu, mandado por Javeh, mas
sim um produto expelido por piolhos de plantas, cigarras e
cochonilhas, que se alimentam das tamargueiras do deserto
do Sinai. Era essa substância doce que evaporava e, pela
manhã, apareciam como flocos, batizados com o nome de
“maná do céu”. Aliás, se tivermos sorte, poderemos
encontrar um pouco desse maná durante a nossa caminhada.
Fiquei sem fala. Durante toda a minha vida eu havia sido
ensinado que o maná era um alimento sagrado, enviado por
Javeh para alimentar o seu povo, agora o mestre Malachai
me contava algo que eu jamais saberia se não o tivesse
encontrado.
- Onde o senhor aprendeu essas coisas, mestre?
- Nas minhas viagens, com os meus mestres, os sábios e os
livros da biblioteca de Alexandria e de Pérgamo. Você nem
imagina quanto conhecimento está acumulado nesses
lugares. Foi lá onde absorvi muitos conhecimentos, os
quais, dentro de alguns séculos, já não serão novidade.
127
Infelizmente, não podemos perder tempo nas sinagogas
explicando os milagres de Javeh. Mas a história existe para
ser contada. Afinal, que diferença faz se a comida que
alimentou e ainda pode alimentar tantas pessoas foi um
produto que veio diretamente das mãos de Javeh, ou se foi
feito por pequenas criaturas que Ele mesmo criou com o
propósito de nos ajudar a viver melhor? Um dia os homens
e mulheres descobrirão que os milagres estão por toda parte.
Não precisamos nem mesmo orar para que eles aconteçam.
Desconfiei que o mestre Malachai havia bebido muito vinho
naquela viagem e pedi para ele concluir logo a história, pois
estava com sono e queria ir dormir na minha tenda com os
outros rapazes do grupo.
- Onde paramos?
- Na arca mestre... nos objetos que estavam dentro dela. O
senhor disse que havia as Tábuas dos Dez Mandamentos?
Mas elas não foram quebradas por Moisés quando viu o
povo adorando um bezerro de ouro?
- Sim, João, foram quebradas as primeiras, mas Deus
mandou Moisés lavrar outras tábuas de pedra e voltou a
escrever com fogo os dez mandamentos.
- Ah... é isso mesmo. Eu só nunca entendi a razão pela qual
Moisés teve que ir sozinho para o monte Sinai, porque
Javeh o pediu para não deixar ninguém chegar perto do
monte enquanto Ele estivesse lá escrevendo as tábuas para
Moisés.
128
- Isso não é para ninguém entender, meu filho. A história
não nos dá explicações. Apenas narra os acontecimentos,
conforme eram contados de uma pessoa para outra. Para a
entendermos, precisaríamos reescrevê-la e, nem assim,
poderíamos estar certos de que tudo ficou esclarecido. Pois
bem, a Arca foi feita para simbolizar a nova aliança que
Deus fez com os homens. Por isso tinha que ser levada
sempre para onde fossem os sacerdotes e tinha um valor
incalculável.
- O ouro já tinha tanto valor, naquela época?
- Sim, ouro e prata sempre foram metais preciosos pela
resistência e durabilidade. A Arca era o objeto mais valioso
que o povo hebreu possuía, era guardada por soldados
armados e somente os sacerdotes podiam tocá-la.
- Mestre, esse maná que estava dentro da arca não poderia
ser outra coisa? Uma bebida, por exemplo? Pelo que me
lembro, o maná não podia ser guardado por muitos dias,
porque estragava. Como poderiam deixar um pote com
maná dentro da arca?
- Você está ficando bom em interpretações do Talmude,
João. Pode ser que seja mesmo outro alimento. Já conversei
com alguns sábios da Índia, um país longínquo, bem mais
antigo que o nosso, e eles me disseram que lá são
conhecidas muitas ervas que provocam visões e
alucinações. A bebida feita com essas ervas, por exemplo, é
muito mais forte que o vinho. Mas, um dia você vai ler
sobre isso e tirar suas conclusões. Por ora, vamos pensar
apenas no “maná” que estava na arca. O que se pode dizer é
129
que era algo que os sacerdotes certamente não queriam que
ninguém mais além deles provasse, por isso tinham tanto
cuidado.
- Parece que o senhor, se desviou do assunto. O senhor
estava contando sobre a Arca da Aliança, o que aconteceu
com ela na história do livro do Profeta Samuel.
- Pois bem, houve uma luta terrível entre os hebreus e uma
tribo rival conhecida por filisteus. Eles conseguiram, depois
de muitos dias de luta contra os soldados comandados por
Samuel, matar milhares de soldados e se apropriarem da
Arca Sagrada, que era muito valiosa e a levaram para a
cidade de Asdode. Talvez tenha sido o artefato mais valioso
em toda a Terra, naquela época. O peso em outro seria
suficiente para comprar milhares de cavalos, armas de
guerra e terras.
- E o que os filisteus fizeram com a Arca? Destruíram-na?
- Não, eles sabiam que os hebreus reverenciavam naquela
arca o próprio Javeh. Avaliaram que talvez pudesse
negociar com outros inimigos usando a arca como moeda de
troca. Os filisteus tinham outro deus chamado Dagon.
Assim, colocaram a Arca ao lado de Dagon. No dia
seguinte, quando os filisteus foram fazer seu culto a Dagon ,
encontraram a estátua dele com a cabeça e as mãos
decepadas.
- Devem ter ficado muito assustados, não foi?
130
- Sim, e os sacerdotes de Dagon acharam que havia sido
obra de algum hebreu infiltrado no meio deles. Mas não
tinham provas. Conta o livro de Samuel que, passado alguns
dias, Javeh feriu aos filisteus daquela cidade com
hemorroidas. Homens, mulheres e crianças.
- Foi um duro castigo para eles, não foi, mestre?
- Sim, conta a história que houve ainda um castigo pior.
Javeh assolou todas as cidades para onde a Arca era levada
com uma praga de ratos, além das hemorroidas. Milhares de
filisteus morreram ou ficaram gravemente doentes nas
cidades de Gate e Ecron.
- Que história mais triste, mestre Malachai. – e como ela
termina? O que aconteceu depois?
- Os príncipes filisteus, vendo seu povo morrer, chamou os
sábios e sacerdotes hebreus para uma conversa e lhes
perguntou o que deveriam fazer. Queriam a garantia de que,
se devolvessem a Arca da Aliança, as mortes parariam bem
como a praga de ratos.
- E pararam mesmo?
- Bem, no acordo que fizeram, os sacerdotes exigiram que a
Arca fosse devolvida e, além disso, os filisteus deveriam
expiar o pecado cometido enviando junto com a Arca
algumas peças feitas em ouro puro. Vou recitar o trecho de
Samuel que diz: “E disseram os sacerdotes: Fazei, segundo
o número dos príncipes dos filisteus, cinco hemorroidas de
ouro e cinco ratos de ouro; porquanto a praga é uma mesma
131
sobre todos vós e sobre todos os vossos príncipes. Fazei,
pois, umas imagens das vossas hemorroidas e dos vossos
ratos, que andam destruindo a terra, e dai glória ao Deus de
Israel; porventura aliviará a sua mão de cima de vós, e de
cima do vosso deus, e de cima da vossa terra”.
- Ahahaha... essa foi muito boa.
Não aguentei e caí numa sonora gargalhada.
- Que espertos foram os sacerdotes, não foram? Quiseram
receber uma recompensa em ouro pela desfeita de terem
lhes roubado a Arca. E os filisteus cumpriram? Fizeram as
hemorroidas e ratos de ouro? Mas Deus não havia proibido
fazer imagens de escultura?
- Claro, fizeram sim. Mas você não se lembra da história de
Moisés? Ele mesmo que recebeu os Dez Mandamentos que
seguimos até hoje onde se diz que não devemos fazer
imagens de escultura nem as adorar?
- Lembro sim, ele ficou 40 dias lá no monte e desceu com as
tábuas da lei. Lembro-me de ter lido que, enquanto ele
estava conduzindo o povo pelo deserto por 40 anos, muitos
foram picados por serpentes venenosas. Foi então que ele
pediu que Arão recolhesse todas as joias, argolas, colares e
braceletes de ouro, as fundisse e fizesse uma serpente de
ouro e a colocasse no meio do acampamento, para que
qualquer um que ficasse doente e olhasse para a serpente
ficaria curado. Que interessante, lembrei-me agora de que o
dilúvio durou 40 dias. Também foram 40 os dias
132
anunciados para a destruição da cidade de Nínive, como diz
o livro do profeta Jonas.
- Exatamente, meu rapaz. Pelo que vejo, você está atento
aos números e aos sinais deixados pelos antigos escribas.
Todos os pintores, escritores e escultores encontram sempre
uma maneira de ocultar em suas obras conhecimentos que
só serão percebidos por outros conhecedores dos mesmos
símbolos.
- O senhor está dizendo que, nos livros sagrados, os
números são indicativos de algum conhecimento oculto? Os
escribas antigos criaram um código secreto, é isso?
- Sim, foi assim e sempre será. Um dia você conhecerá o
significado desses números. As histórias podem se perder
no tempo, as pessoas se confundirem, mas os números são
sempre únicos. Nunca são alterados. Os números 3, 7, 12,
13, 33 e 40 são símbolos universais, conhecidos por
estudiosos de várias partes. Os escribas de países
estrangeiros e também do nosso, que já viajaram para outras
terras, conseguiram colocar nas histórias esses números de
modo a que somente outros escribas ou leitores experientes
percebessem.
- O senhor conhece o significado oculto dos números,
mestre Malachai?
- Sim, conheço alguns. Tenho estudado a Guematria que me
ajuda a compreender o significado oculto dos números nos
textos sagrados. Infelizmente, esses estudos são proibidos
em muitos países. Ao que parece, as pessoas que possuem
133
esse conhecimento não quererem compartilhá-los com mais
ninguém.
- Um dia o senhor me ensinará a Guematria?
Talvez eu não tenha tempo para te ensinar tudo o que você
deseja saber, meu rapaz. Os livros e outros mestre te
ajudarão, com certeza. Vai depender de você. Mas vamos
terminar a nossa história. Onde paramos?
- Nas hemorroidas...
Gargalhamos juntos. Malachai continuou.
- Antes delas, temos que concluir a história da serpente de
Moisés. Você há de convir que foi uma boa maneira de ele
conseguir a atenção do povo para algo muito poderoso que
só agora estamos descobrindo nos estudos com os sábios de
outros povos. Está relacionado com a palavra “fé”.
- Fé? O que significa exatamente essa palavra. Qual é a
origem dela?
- Essa palavra é de origem Grega "pistia", que quer dizer
“acreditar”. Quando você intimamente acredita em alguma
coisa, dizemos que você tem “fé”. Ela é um sentimento e
não pode ser explicada por nossos conhecimentos atuais.
Quando oramos a Javeh, acreditamos que Ele vai nos
atender, estamos tendo fé.
134
- Mas Moisés não falou para o povo ter fé em Javeh e sim
numa serpente de ouro no alto de um mastro. Não é a
mesma coisa.
- Sim, mas a crença em ambos depende da “fé”. E obter
algo por meio da fé depende só de você, da sua crença, do
que você intimamente acredita. Você sabia que existem
outros povos que adoram a deuses que fazem milagres
como os que Javeh faz? Eu não sabia disso até conviver
com povos do oriente. Um dia você os conhecerá. Mas
vamos terminar essa história da Arca, pois eu já estou
ficando como sono e amanhã teremos que levantar cedo o
acampamento, para seguirmos viagem. Com sorte,
alcançaremos o delta do Nilo em três dias.
- Essa história é muito interessante, mestre Malachai.
Também é muito intrigante essa coisa de “fé”. Quer dizer
que se eu acreditar firmemente que um dia eu reencontrarei
meu pai e meus irmãos, eu reencontrarei?
- Sim, meu filho. Se você acreditar firmemente e buscar a
realização do seu desejo, se aproveitar todas as
oportunidades dadas por Javeh para que você alcance seu
desejo, será possível sim.
- Finalmente, o que aconteceu com a Arca depois que foi
entregue com as hemorroidas e os ratos de ouro? A doença
e os ratos desapareceram?
- Pois é, essa é uma história curiosa, pois, conta-nos o livro
de I Samuel, no capítulo 5, que, logo que a Arca foi
devolvida na cidade hebreia de Bete-Semes, conforme as
135
instruções dos sacerdotes, houve uma grande festa, mas,
dias depois, 50 mil pessoas foram feridas com hemorroidas
e milhares morreram em pouco tempo.
- Morreram?! Mas não eram hebreias? Foram feridas por
Javeh?
- Foi o que disseram. Mas duvido muito. Disseram que elas
cometeram o pecado de tocar e olhar dentro da Arca, e isso
era proibido. Alegavam que mesmo o povo de Israel não
podia tocar na arca, só os sacerdotes que eram ungidos por
Javeh.
- Que estranho isso, mestre Malachai.
- Não é tão estranho, se você pensar, por exemplo, que
existem doenças que são transmitidas de uma pessoa para
outra. Muita gente pensa que a lepra é contagiosa, mas
nosso povo tem estudado essa moléstia e comprovou que
não é. Não sabemos ainda como muitas doenças se
transmitem de uma pessoa para outra, mas tudo indica que
morreram por uma doença transmitida pelos ratos.
Chamam-na de “peste negra”, porque ela causa o
aparecimento de manchas de cor escura na pele e ferimentos
por todo o corpo. Já aconteceu em outros países,
provocando a morte de milhares de pessoas. Ao que parece,
a arca estava contaminada e espalhou a doença.
- Então não foi Javeh?! - indaguei, perplexo.
- Ora, ora, João... Javeh não é o responsável por tudo? –
respondeu sorrindo o ancião, exibindo dentes perfeitos.
136
- Sim, mas não é uma mentira dizermos que algo feito pelos
homens foi obra de Javeh?
- Mentira, mentira nem sempre é. Os profetas do passado
eram muito sábios e usavam a ignorância do povo para
ajudar a fazê-los obedecer às Leis. Precisavam temer a
Javeh que lhes foi dado como único Deus. Era a maneira de
conduzi-los e educá-los. O temor gera obediência. Essa é a
maneira mais simples de ensinar a uma criança. Precisamos
mudar isso, mas no passado não havia outro modo. Os
profetas falavam em nome de Javeh
- Então os profetas simulavam a vontade de Javeh?
- Você um dia compreenderá que existem muitos mistérios
na vida. Nem sempre os livros antigos do nosso povo
explicam tudo. Os profetas eram líderes que queriam o bem
do nosso povo. Queriam nos manter unidos para enfrentar
os inimigos. Para isso, precisávamos nos apoiar em um
Deus forte, poderoso e imbatível.
- Mas às vezes nosso povo perdia muitas batalhas, não era?
Como foi o caso de Samuel e tantos outros reis.
- Sim, perderam muitas guerras, mas sempre acreditavam
que Javeh estava do lado deles. Como os escribas da época
escreviam o que os reis e sacerdotes desejavam e
ordenavam, eles faziam com que o povo interpretasse as
derrotas como castigo de Javeh por alguma desobediência.
Era uma forma de obter a coesão. Quanto mais acreditassem
que teriam uma vitória se seguissem as leis de Deus, mais
fortes ficariam. Foi assim que o nosso povo foi forjado. O
137
povo precisava ter disciplina, seguir normas, para obterem o
sucesso nas empreitadas. Eram dias muito difíceis.
- Mestre.... – disse eu, bocejando. O senhor pode terminar a
história das hemorroidas e dos ratos. Já não me aguento
mais de sono.
- Claro, João... a culpa é sua que fica esticando a conversa.
Obriga-me a dar voltas e mais voltas. Mas está bem. É
assim mesmo que se faz. Tira-se as dúvidas, questiona-se,
indaga-se as razões, faz-se comparações, para se obter boas
conclusões. O que aconteceu com a Arca foi que, depois de
ela retornar aos hebreus, matar e adoecer milhares de
pessoas do nosso povo, todos adoradores de Javeh, os
sacerdotes decidiram leva-la para um outeiro e a colocaram
dentro de uma casa especialmente construída para abriga-la
e lá a deixaram por 7 anos. Colocaram guardas para vigiá-
la. Dessa vez, nem mesmo os sacerdotes tinham permissão
para tocá-la.
- Sete anos?! Ou seja, depois desse tempo a doença que
estava lá dentro já teria acabado, não é?
- Provavelmente. Tudo se acaba um dia, até as piores
doenças. Também foi tempo suficiente para que as pessoas
ficassem curadas e muitas fortes o suficiente para não serem
mais contaminadas por aquele mal. Os ratos também
desapareceram completamente de todas as cidades, pois os
sacerdotes apelaram para o fogo na intenção de destruí-los.
- E porque os sacerdotes não adoeceram?
138
- Quem disse que os sacerdotes não adoeciam? Muitos
morriam e logo eram apontados como alguém que tinha
cometido algum pecado. Ora, quem não comete pecados?
- Talvez houvesse alguns que eram capazes de resistir a
certas doenças mais que outros?
- Com certeza. Os que cuidavam da arca deviam conhecer
algum medicamento, alguma erva que os protegia de certos
males. Eles se consideravam abençoados por Javeh.
- Não deveriam distribuir o medicamento para todos?
- Deveriam? E como seriam controlados? Quem os puniria
quando transgredissem? Os sacerdotes sabiam que
perderiam o controle do povo facilmente, se todos
pudessem ter algum tipo de proteção especial. Eram eles
que queriam ficar com esse poder.
- Mas o senhor é um sacerdote, mestre Malachai. Faz uso
desse poder para controlar as outras pessoas?
- Eu estaria mentindo se dissesse que não. Existem pessoas
que não conseguirão obedecer, senão pelo medo. Quando
seus pais dizem que, se você cometer algum pecado, mesmo
oculto dos homens, você será castigado por Javeh que tudo
vê, está colocando medo em seu coração para que você siga
as normas. No momento em que acontecer algum mal em
sua vida, eles te dirão que deve um castigo de Javeh, por
algum pecado que você cometeu. Eles estão errados? Estão
mentindo para se beneficiar ou tentando te proteger do mal?
Uma criança morreria facilmente se não obedecesse aos pais
139
ou aos adultos com mais experiência. Esse é o objetivo das
Leis. Proteger as pessoas do mal que elas, por inocência ou
ignorância, possam cometer até contra si mesmas.
Fui dormir com a mente fervilhando de novas perguntas.
Aquele era um novo mundo para mim. Quanto mais eu
conversava com homens sábios, mais curioso eu ficava
sobre os milagres, as lutas, as conquistas e o destino do
nosso povo. Eu também gostaria muito de saber sobre o
meu próprio destino. Sobre a minha missão. O mestre
Abner não estava mais vivo para me falar sobre ela e, agora,
o meu novo tutor parecia convencido de que eu tinha um
grande trabalho a realizar.
Dormi profundamente, ouvindo o som do vento sibilar pelas
frestas da minha tenda. Mergulhei em um sono intenso,
povoado de sonhos nos quais meus irmãos e eu
brincávamos felizes às margens do Rio Jordão,
acompanhados pelos olhares atentos e zelosos de meus pais.
Minha mãe me sorria feliz, recostada contra o peito de meu
pai. Eu os olhava de longe e, aos poucos, eles iam sumindo
no horizonte, até se tornarem uma fina poeira tocada pelo
vento.
Despertei-me, abruptamente, ouvindo gritos e alaridos no
acampamento. Não havia mais ninguém dentro da minha
tenda. Meus companheiros já não estavam mais lá. Espiei,
cautelosamente, pela fresta da lona e fiquei estarrecido com
o que vi. Estávamos sendo assaltados por tuaregues.
Os reconheci imediatamente, pois usavam um turbante azul,
o “tagelmust”, que lhes tapava quase todo o rosto, deixando
140
apenas os olhos descobertos. Meus companheiros de viagem
estavam ajoelhados no centro do acampamento e, em volta
deles, homens vestidos em roupas pretas, portando adagas.
Alguns tuaregues estavam montados em camelos e
portavam a temível “takoba”, uma espada de lâmina larga,
com dois gumes e um friso longitudinal, com o punho
guarnecido por uma peça retangular, que lembra uma cruz.
Falavam alto e o que parecia ser o líder estava de pé diante
de Malachai, com a espada encostada na altura de sua
garganta.
- Para onde estão indo e o que estão levando? – perguntou o
tuaregue, em uma língua que reconheci ser o aramaico.
- Somos mercadores e estamos viajando para o Egito... para
a cidade de Alexandria. Vocês podem levar parte de nossa
comida e alguns utensílios. Deixe apenas o suficiente para
que consigamos chegar ao nosso destino. Somos menos de
40 viajantes, temos aqui mulheres e crianças.
- Quantos escravos estão levando? – indagou o guerreiro,
sem afastar a lâmina pontiaguda da garganta de Malachai.
- Somos mercadores, gente de boa vontade e de paz. Não
temos escravos. Nossa comunidade não aceita escravos –
disse o mestre, sem demonstrar qualquer medo.
Lembrei-me da ocasião em que o mestre Abner me ensinava
a história dos povos nômades que habitavam os desertos,
entre os quais existiam os tuaregues e o beduínos. Eles
chamavam a si mesmos de Imuhagh “os homens livres”.
141
Não admitiam nenhum tipo de escravidão. Tinham como
meta libertar todos os escravos, em qualquer lugar que os
encontrasse, matando impiedosamente os algozes.
Escondiam-se no labirinto do deserto e raramente eram
encontrados. Jamais entravam em cidades e preferiam
realizar ataques surpresa a caravanas pequenas, de qualquer
nacionalidade, que lhes cruzasse o caminho. Dessa vez, nós
eram suas vítimas.
O líder do grupo pareceu desconfiado da resposta de
Malachai e pediu a um dos seus homens que perguntasse em
várias línguas quem era escravo naquela caravana.
- Se houver um único escravo entre vocês, cortarei a sua
cabeça e a de todos os demais que o acompanha, exceto dos
escravos – disse o homem em voz alta, olhando para
Malachai com fúria.
Pensei em ir ao encontro dos meus companheiros, mas
decidi que era melhor me manter oculto.
Alguns tuaregues haviam se desmontado e agora reviravam
as tendas e as nossas mercadorias, pareciam procurar por
armas ou ouro. Eram meticulosos nesse trabalho e pareciam
não ter pressa.
- El-Alah!! Venha ver isso aqui – gritou um dos homens
para o líder do bando, ao abrir um dos sacos de cereais –
vejam o que eu encontrei escondido no meio do trigo....
O homem arrastou Malachai pela túnica até o local onde
estava o saco aberto revelando o conteúdo oculto. Havia 5
142
adagas curtas, cuidadosamente embrulhadas em tecido e
escondidas dentro de um saco de trigo.
- Então vocês são homens de paz, não é? Não transportam
armas nem escravos. Que outras mentiras ainda vai dizer
antes que eu decepe a sua cabeça, seu velho mentiroso? –
Berrou o líder, chutando o estômago de Malachai, caído ao
chão.
- Perdoe-me senhor... perdoe-me senhor. Eu não sabia que
alguém do nosso grupo transportava armas escondidas. Por
favor, pode ficar com elas. Queremos apenas prosseguir
nossa viagem em paz.
- Mentiroso! Você é um velho mentiroso e vai morrer por
esse insulto. Por seus trajes, posso ver que é um homem de
posses. Deve ter muitos escravos para te servir. Vai morrer
por isso também. Nosso povo vai libertar todos os escravos
da terra, nem que tenhamos que morrer para conseguir isso.
Instintivamente, pensei em ir correndo para salvar o meu
mestre, mas procurei controlar a minha aflição. Lembrei-me
de meu irmão Benjamin. Se ele estivesse ali, talvez pudesse
nos salvar. Mas ele não estava e nós agora estávamos nas
mãos dos tuaregues e de Javeh, se ele pudesse ouvir a minha
súplica e desejasse atende-la. Os tuaregues não nos
poupariam.
Um dos guerreiros caminhou em direção à tenda onde eu
estava oculto. Não sabia o que devia fazer quando ele
entrasse. Não havia onde me esconder. A única solução
seria sair por baixo da tenda na direção oposta. Lembrei-me
143
da ocasião em que fugira da comunidade dos essênios e,
sem perder tempo, esgueirei-me para passar por baixo da
lona. Mas, ao fazer isso, meu pé engastou em uma das
estacas de sustentação da tenda e esta caiu sobre mim,
chamando a atenção de todos que estavam a poucos metros
dali.
Com a rapidez de um felino, o tuaregue me agarrou e me
ergueu com uma das mãos, enquanto a outra segurava a
espada junto ao meu pescoço.
- Olhem como esse cabritinho treme de medo, El-Alah –
Disse o tuaregue, enquanto me arrastava como a um saco
vazio, jogando-me perto de Malachai. Abracei-o com o
corpo trêmulo, aterrorizado pelo medo. As mulheres e
demais crianças correram em nossa direção e se
amontoaram sobre nós como se quisessem nos proteger.
O líder do grupo, a quem chamavam de El-Alah, voltou-se
para os seus guerreiros e gritou palavras que eu não entendi.
Deveria ser um dialeto desconhecido. Em seguida, brandiu
sua espada, dizendo em voz firme:
- Apenas um de vocês será sacrificado aqui. Um de vocês
deve se oferecer em favor dos demais. Os outros poderão
prosseguir em sua jornada. Isso servirá para que vocês se
lembrem, pelo resto da vida de vocês, que um dos seus
irmãos foi capaz de sacrificar a própria vida para lhes
poupar e com isso aprendam a serem pessoas de valor.
Quem vai derramar seu sangue na areia do deserto para
libertar seus irmãos? Quem vai?
144
Mestre Malachai, apesar de idoso, levantou-se com a força
de um jovem e se jogou aos pés de El-Alah.
- Sacrifique-me... eu sou o culpado. Pode sacrificar-me. Que
seu desejo seja realizado. Estou nas mãos de Javeh.
Fui atrás de meu mestre. Eu não o deixaria morrer, ou
morreríamos lutando.
Um dos guerreiros tuaregue me interceptou com a perna,
derrubando-me antes que eu alcançasse o ancião.
- Por favor, por favor, não mate o meu mestre. Eu suplico...
eu suplico... – gritei na direção do líder, que se virou de
súbito e se aproximou de mim em passos lentos, com a
espada erguida. Ele agora estava a poucos centímetros do
meu rosto, podia apenas ver os seus olhos, pois seu rosto
ainda estava envolto pelo turbante azul. Vi neles um brilho
que conhecia, ao mesmo tempo em que ele exclamou:
- Matias!! Matias!!.... meu filho... é você?
145
Capítulo VII - Os Dissidentes
Certamente, não deve existir maior emoção na face da terra
do que a provocada pelo sentimento de amor genuíno de um
pai ou mãe por um filho. Esse amor é capaz de superar
qualquer barreira, qualquer obstáculo. Um pai será capaz de
morrer no lugar do filho, se tiver que fazer essa escolha. Eu
tive certeza disso, ao receber, naquele dia inesquecível, o
abraço de amor do meu pai. Ficamos ali ajoelhados na areia
do deserto, chorando sob os intermináveis beijos de meu
pai, diante de uma plateia de tuaregues, egípcios, romanos,
gregos e judeus. Apenas três pessoas sabiam o que
significava aquele reencontro. Meu pai, eu e o mestre
Malachai.
Quando meu pai se refez da perplexidade e se levantou,
ergueu-me como uma pluma em suas mãos, exibindo-me
para todos:
- Homens, companheiros... abaixem as suas armas. Elas não
serão necessárias aqui. Seja lá qual for o deus que está por
trás de tudo isso, só posso dizer que hoje, no deserto do
Sinai, aconteceu um milagre. O maior milagre de toda a
minha vida. Esse rapaz é Matias, o meu filho mais velho.
Todos se olharam espantados, boquiabertos, enquanto eu
sorria como uma criança de colo agarrada ao meu pai, meu
herói, meu salvador. Não havia outro homem a quem eu
mais respeitasse e amasse sobre a terra, além dele. Eu sabia
que agora poderia voltar para casa, rever meus irmãos e a
146
minha mãe. O que eu não sabia era que Javeh, ou como
disse meu pai, seja lá que deus estivesse por trás daquele
encontro, minha vida dali em diante não seria mais a
mesma.
O que se seguiu depois, não será difícil para nenhum leitor
desse meu pergaminho imaginar. Já se passaram várias
décadas, mas eu até hoje revivo aquele dia como se fosse
hoje.
Homens e mulheres se abraçaram e cantaram por todo o
resto do dia, varando até a madrugada. Os tuaregues agora
eram também nossos irmãos. Nos ofereceram o mais puro e
refinado vinho produzido em toda Judeia, furtado de outros
mercadores atacados.
Meu pai não se separava de mim por um só instante. A todo
momento, sorria para mim e acariciava meu rosto, como eu
o via fazendo à minha mãe. Não sabia que os tuaregues
podiam ser tão afetuosos. Mas aquele não era um tuaregue
qualquer, era o meu pai.
- O senhor mudou de nome? Porque estão te chamando de
El-Alah?
- Mudei de nome porque Halael passou a ser o homem mais
procurado de toda a Judeia. Mas, se você observar direito,
eu só inverti a ordem de algumas letras. Veja: EL-ALAH ...
HALA-EL...
Caímos na gargalhada.
147
- Você talvez não saiba, mas Alah é a palavra que os povos
semitas, que foram gerados por Ismael, um dos filhos do
antigo patriarca Abraão, chamam Deus. Ismael teve 12
filhos e esses povos se tornaram inimigos de Israel. Até
hoje, lutamos contra eles em muitas regiões, porque querem
mais e mais das nossas terras. Foi essa divisão que nos
enfraqueceu e por isso fomos subjugados aos romanos.
No dia seguinte, tive tempo para contar ao meu pai o que
havia acontecido comigo, quando fui ao encontro do mestre
Abner e sobre o meu desaparecimento na noite da grande
tempestade.
- Sua mãe e eu sofremos muito com o seu desaparecimento,
meu filho. Chegamos a achar que você havia sido
sequestrado pelos malditos romanos e sido levado para fora
da Judeia. Vasculhamos muitas cidades à sua procura e não
encontramos um só rastro seu ou de Abner. Minha revolta
por seu desaparecimento me causou um tamanho desespero
que não encontrei outra solução senão dizimar, numa ação
suicida, as tropas do general Lucius de Galia. Infelizmente,
alguns soldados romanos me reconheceram e, mesmo
feridos, escaparam, colocando minha cabeça a prêmio.
- Por que o senhor não voltou para nos buscar? Por que não
nos procurou mais durante todo esse tempo?
- Depois da ação contra os romanos, as tropas do imperador
cercaram Jerusalém e ninguém entrava ou saía de lá. Os
romanos ofereceram uma valiosa recompensa por minha
cabeça. Se eu tentasse ir vê-los, com certeza seria apanhado
e vocês também seriam torturados, crucificados vivos, em
148
plena luz do dia. Eu não poderia deixar que isso acontecesse
e fugi para me esconder no deserto.
- Mas os romanos, depois que destruíram o Templo de
Jerusalém e mataram os sacerdotes, baixaram a guarda e
deixaram de persegui-lo. O senhor poderia ter nos
procurado.... – disse eu, magoado.
- Sim, e eu procurei, mas vocês não estavam mais lá.
Tinham partido na mesma noite em que houve a divulgação
dos romanos oferecendo recompensa por minha cabeça...
- Trinta moedas de prata...
- Isso mesmo, trinta infames moedas de prata, era o meu
preço. Você não acha que eu valho mais do que isso? Disse
meu pai, batendo com a mão em minha cabeça.
- O senhor vale todos os tesouros do mundo, meu pai. Eu
pagaria mil vezes o valor da Arca da Aliança por sua vida,
se pudesse.
- Pois foi isso o que aconteceu meu filho. Não poderia
arriscar a vida de vocês me aproximando, mesmo que
soubesse onde estavam naquele momento crítico. Se eu os
tivesse encontrado, certamente seria delatado por alguém.
Até mesmo uma pessoa que estivesse bem próxima de mim
e fosse gananciosa poderia me entregar aos romanos e vocês
pagariam com a vida. Apesar disso, andei por muitos meses
à procura de vocês, mas fui vencido por um novo desejo...
149
- O de se tornar um bandido, fugitivo, assaltante e ladrão
sanguinário... Um tuaregue... – disse eu, em tom de
zombaria.
- É isso mesmo o que você pensa de seu pai?
- Claro que não. Mas quero saber por que se tornou um
tuaregue e como se tornou o líder de um bando deles?
- No deserto, fiz muitos amigos. Não poderia mais me
misturar aos judeus. Havia uma recompensa por minha
cabeça e me afastei da Judeia, entrando na Síria e depois no
Egito. Fui aceito num grupo de fugitivos e descobri que
poderia continuar a minha missão de varrer os romanos da
nossa terra, ao tempo em que também ajudava a retirá-los
de outras terras. Eles estão escravizando pessoas em todo o
mundo. Por isso me tornei um tuaregue.
- Isso quer dizer que, se o mestre Malachai estivesse
transportando escravos, vocês o matariam?
- Sim, meu filho. Sem qualquer dó ou piedade. Um ser
humano que obriga outro a lhe servir e retira dele a
liberdade, não merece viver. Deve ser arrancado pela raiz,
como uma erva daninha. Não podemos deixar que esses
vermes se reproduzam, que tenham filhos que serão também
senhores de escravos. Vamos libertar a todos, desde o
Ocidente até o Oriente...
- Se eu não estivesse aqui hoje, Malachai morreria?
150
- Sim, ele morreria, pois não há nada que possa ser mais
doloroso para a consciência de um pecador mentiroso do
que saber que alguém morreu inocentemente no lugar dele.
Quem estava transportando as armas ocultamente, sem o
conhecimento do líder do seu grupo, sabia que tinha
transgredido a lei. Então carregaria para sempre a culpa da
morte de Malachai em seus ombros. Não teria mais sossego
e, para não cometer mais esse pecado, passaria a agir de
modo correto e praticaria o bem. Por isso, eu teria que
sacrificar alguém.
- Mas o mestre Malachai era inocente... ele não merecia
morrer e sim quem cometeu a transgressão, fazendo o que
não era permitido.
- Sim, eu sei, mas como líder do grupo ele precisava
defender a maioria. Ele sabia que o transgressor era um
covarde e não se entregaria. Assim, ao se oferecer para
morrer no lugar de todos e até do transgressor, ele criaria
condições para ser lembrado como mártir e, ao mesmo
tempo, ensinaria aos demais a não cometerem o mesmo ou
outros pecados, você entende?
Eu aceitei a explicação de meu pai. Era dura a lição que eu
estava tendo com aqueles acontecimentos. Eu não sabia,
mas aquilo me ajudaria a cumprir com perfeição a missão
que eu tinha pela frente, a qual desconhecia completamente.
Meu pai quis saber para onde o mestre Malachai estava me
levando. Expliquei tudo e ele tomou uma resolução que eu
nunca tinha imaginado ser possível e pra mim era
inacreditável que ele a tivesse tomado.
151
Chamou a todos para o centro do acampamento e disse:
- Meus companheiros de luta, vamos acompanhar essa
caravana até o destino final que é a cidade de Alexandria no
Egito. Depois disso, voltaremos à nossa missão no deserto.
Não somos homens feitos para as cidades. Nosso juramento
foi feito e não o quebraremos. Vamos continuar libertando
os oprimidos e os escravizados. Um dia, os nossos netos,
bisnetos ou trinetos viverão em um mundo sem escravidão,
onde um homem ou mulher possa viver dignamente do seu
trabalho. Onde todos tenham o direito de ir e vir, sem ter
que pedir permissão ao seu patrão.
Os homens aplaudiram com urras, brandindo suas lâminas
afiadas para o céu.
Partimos ao cair da tarde, pois, em muitas épocas do ano,
com a luz da lua é mais confortável se viajar pelo deserto,
sem sofrer os efeitos da insolação.
Eu esperava que, durante a viagem, pudesse convencer meu
pai a não voltar a viver com os tuaregues e sim ir a Jericó,
buscar a minha mãe e os meus irmãos que viviam com o tio
Eliabe, os quais certamente também estavam à minha
procura. No entanto, meu pai não abriu mão de seu
propósito.
- Eu sei que todo filho quer ter o pai e a mãe ao seu lado.
Sei que você sente falta de seus irmãos, mas tenho que te
dizer algo muito importante, Matias. Não destruirei a vida
da sua mãe e a dos seus irmãos nem a sua. Se eu for
apanhado, estarei condenando não apenas a mim, que pouco
152
importa, mas condenarei a vocês que são sangue do meu
sangue, carne da minha carne. Eu os amo demais para
permitir que algum mal aconteça a vocês.
Senti uma grande raiva de meu pai. Como ele poderia
pensar que a minha mãe estaria melhor longe dele. Ela
ainda o esperava. Ainda o amava. Decidi então contar-lhe
sobre o tio Eliabe, sobre a proposta que ele fizera à minha
mãe. Eu acreditava que isso o fizesse mudar de ideia.
Meu pai, ao ouvir o que eu lhe disse, levantou-se
bruscamente e segurou no cabo da espada. Eu sabia que
alguma coisa o convenceria a voltar. Talvez aquela fosse a
única coisa que o demoveria do desejo de continuar fugindo
para longe de nós.
Em seguida, ele afastou-se de mim e continuou por um
tempo caminhando sozinho. Quando voltou para perto de
mim, vi que havia chorado.
- Matias, você não sabe o que é perder um ente querido.
Você não sabe o que é perder a pessoa que você mais ama,
por isso me pede para voltar para sua mãe. Você não acha
que se houvesse um jeito de protegê-la eu não teria voltado?
Não posso fazer isso. Eu sou um homem marcado pelo resto
da minha vida. Já tive que passar muitos homens no fio da
minha espada. Tenho muitos inimigos por toda parte. Não
apenas romanos querem a minha cabeça, mas todos os
povos a quem eu tenho caçado e os feito derramar sangue
por seus crimes. Jamais poderei voltar.
153
- Quer dizer que vai deixar minha mãe se deitar com outro
homem por não ter coragem de voltar para ela? Por que não
deixa que ela decida isso? Será que ela não prefere morrer
ao seu lado do que ficar eternamente sozinha, esperando a
sua volta?
O tapa que recebi no rosto foi tão violento que caí
desacordado.
Por sorte, não quebrou meus dentes, mas fiquei com um
hematoma horrível no lado oposto ao lugar onde havia
recebido o tapa de minha mãe em uma situação parecida. Eu
fora esbofeteado exatamente pelas duas pessoas que mais
amava. Será que estavam cumprindo o que estava escrito no
Livro de Provérbios: "A vara da correção dá sabedoria, mas
a criança entregue a si mesma envergonha a sua mãe" ? Eu
jamais espancaria os meus filhos quando os tivesse.
Meu pai não falou mais comigo durante o resto da viagem.
Foi melhor para ambos, pois, se ele o tivesse feito, eu
levaria mais bofetadas e ele se sentiria mais e mais culpado.
Foi o mestre Malachai que me acalmou, depois de tratar
com unguentos o inchaço da minha bochecha.
- João... ou melhor, Matias...
- Me chame de João, por favor – disse, zangado – não quero
mais o meu nome de nascimento. Meu pai me renegou e eu
não quero mais ser reconhecido como filho dele de agora
em diante.
154
- Como quiser, João – disse-me, afetuosamente, o mestre. –
Você precisa entender que seu pai tem motivos. Ele ama
demais a sua mãe e seus irmãos. Mais do que a própria vida.
Você não acha que se ele pudesse ter a família de volta ele
não o faria? Mas ele não é mais aquele pai de família.
Nunca foi. Sempre foi um guerreiro. Sempre quis resolver
as coisas pela força, com o uso das armas. Ele está certo.
Javeh fez homens pacíficos como eu e muitos dos nossos
irmãos essênios, mas criou também outros como ele. Seu
pai se tornou um homem poderoso, seus companheiros o
seguem e ficariam perdidos sem ele. Ele criou uma nova
família, você não percebe? Criou novos laços, mas não
significa dizer que não ama vocês.
Não podia aceitar o que o mestre Malachai me dizia. E meu
coração e alma estavam imersos nas lembranças da nossa
vida em família. Eu sentia falta de todos eles. Eu queria
voltar para casa, mas não disse isso ao mestre. Permaneci
em silêncio. Um dia eu voltaria. Um dia eu voltaria a
encontrar minha mãe e os meus irmãos. Meu pai que
continuasse fugindo como um rato no deserto.
Não quis mais ouvir histórias de Malachai. Quando as
pessoas se reuniam em volta da fogueira, eu permanecia
acocorado ao lado de meus companheiros de tenda, alheio a
tudo e a todos. Meu pai também não me procurou mais para
qualquer conversa.
A viagem transcorreu sem qualquer outra ocorrência. Nem
soldados romanos apareceram, nem assaltantes. Nós
estávamos guardados por um bando de malfeitores, então
que risco teríamos. Os romanos não ousariam nos atacar,
155
vendo quem nos protegia. Lutar com um grupo tão grande
de tuaregues, dispostos a morrer antes do que se entregar,
era uma missão suicida para qualquer tropa. Melhor era
deixá-los seguir viagem.
- Amanhã, antes do meio dia, chegaremos ao delta do Nilo,
João - disse eufórico o mestre Malachai, antes de ir para a
própria tenda dormir.
- E o que significa isso? Chegaremos ao nosso destino
final?
- Nunca chegamos ao destino final em nossa jornada, meu
rapaz. Nossa vida será sempre um ir e vir para algum lugar.
Nem a morte é o nosso último lugar de descanso, como
muitos pensam. Existe muito mais além. Um dia você
saberá. Mas o que você verá amanhã não está escrito em
nenhum dos livros que você leu até hoje. Os sacerdotes da
Judeia não querem que as outras pessoas saibam da
existência desse lugar para onde vamos.
- Então deve ser um lugar com muitos pecadores, muito
violento, não é?
- Deixarei que você veja com seus próprios olhos. Não
quero influenciar o seu julgamento. Você já é um rapaz
amadurecido, verá por si mesmo e depois me dirá o que
achou.
Concordei, meio desanimado. Na primeira oportunidade que
tivesse, voltaria para casa. Voltaria para Jericó, onde minha
156
mãe e meus irmãos esperavam por mim. Mas não foi o que
aconteceu.
A caravana estava exausta depois de uma marcha puxada
para que alcançássemos o delta do rio Nilo antes do meio
dia. A vegetação que cobria o vale tinha agora um verde
intenso e as árvores eram de grande porte. Havia palmeiras
por toda a parte, além da imensa a variedade de borboletas e
pássaros que eu nunca havia visto.
Quando alcançamos a última elevação de uma pequena
cadeia de montanhas, meu pai, que estava com seus homens
na frente do grupo servindo-nos de batedor, voltou para nos
informar que estava tudo em ordem. Não havia patrulhas
egípcias na região e por isso nossa descida até o delta do
Nilo seria segura. Ele voltaria dali mesmo com seus
homens. Os soldados egípcios eram especialistas em roubar
mercadores estrangeiros e depois mata-los. Eram homens
sem Deus. Ou melhor, eles tinham os deuses deles. Na
verdade, pensei naquele momento que apesar de nós judeus
também termos o nosso Deus conhecido como Javeh,
éramos especialistas em guerrear, matar, tornar escravos os
inimigos quando vencidos, tudo com a benção Dele. A meu
ver, não havia deuses suficientemente piedosos e bondosos
no mundo. Tínhamos que conviver com eles e obedecê-los
sem questionar.
Meu pai desceu de seu camelo e veio na minha direção.
Meu desejo era de ir correndo abraça-lo e implorá-lo para
que ficasse comigo ou me levasse com ele. Que me tornasse
um tuaregue. Eu o seguiria aonde quer que ele fosse, mas
não me deixasse ali entregue a estranhos, como se eles
157
fossem a minha família. Mas não fiz nada disso. Apenas
ouvi o que ele me disse, segurando-me pelos ombros.
- Meu filho, eu o amo e quero que saiba que faria qualquer
coisa para protege-lo. O que estou fazendo é para o seu
próprio bem, da sua mãe e dos seus irmãos. Um dia, quem
sabe, você os reencontrará. Você não é um rapaz de
orações? Pois continue orando, quem sabe Javeh não te
atende, como fez para permitir o nosso reencontro no
deserto.
Depois disso, ele abriu uma pequena bolsa de couro que
trazia presa à cintura e dela retirou um bracelete aberto,
feito de prata, com desenhos e inscrições que pareciam ser
de uma língua antiga, desconhecida por mim. Segurou o
meu pulso direito e prendeu o bracelete. Como meu braço
era delgado, meu pai teve que dobrá-lo nas bordas, usando a
força de suas mãos para que se ajustasse.
- Você vai crescer e poderá ir ajustando o tamanho desse
bracelete ao seu braço. Prometa-me que, aconteça o que
acontecer, você jamais o perderá, jamais se desfará dele.
- Sim.. eu... eu prometo – balbuciei, sentindo as lágrimas
inundarem meus olhos.
Ele se virou sem mais uma palavra indo se despedir de
Malachai e fazendo-lhe prometer que cuidaria de mim
enquanto vivesse.
158
Fiquei olhando o bando de tuaregues partirem em sua
marcha cadenciada de volta para o lugar de onde vieram, até
sumirem no horizonte.
- Matias, prepare-se! Depois que chegarmos ao topo
daquela elevação, avistaremos a planície onde está o Nilo, o
maior rio do mundo.
Não existe palavras para descrever o que vi quando
descortinei, do alto, aquela imensidão de terras planas,
cobertas com plantas de cores variadas que iam do amarelo
dourado, o verde cana até o marrom escuro. O rio
caudaloso, imenso, com águas rebrilhando à luz do sol,
dividia-se em dois, formando uma bifurcação que seguia até
o mar azul turquesa, o Mediterrâneo.
- Olhe João – disse-me, o mestre Malachai, eufórico,
apontando na direção oeste – aquele braço do Nilo é o canal
Roseta e o outro, a leste, chama-se Damieta. Ambos
desaguam no Mediterrâneo e é a porta de entrada e saída de
navios que vão para todas as partes do mundo.
Eu estava boquiaberto com aquela paisagem que parecia ser
um sonho, de tão magnífico. Espalhada pela planície até
alcançar o Mediterrâneo, havia um mar de construções de
toda espécie, casas, edifícios de muitos andares, templos e
muitas outras edificações com formas tão variadas que eu
não conseguia entender como poderiam ter sido construídas.
Centenas de embarcações ancoradas, com suas velas
arriadas, em um local que parecia ser um porto, formavam
um cenário indescritível diante dos meus olhos. Era mil
vezes mais grandioso do que eu havia imaginado.
159
- Mestre! Aquela cidade lá embaixo é Alexandria? Indaguei,
estupefato.
- Sim, meu rapaz. Essa é a capital do Egito, Alexandria, que
ostenta esse posto por mais de 300 anos. Do outro lado,
estão as cidades de Tanta e Mansura. O último
recenseamento indicou que habitam em Alexandria, no
momento, mais de um milhão de habitantes.
- Um milhão?! Isso quer dizer que só nessa cidade moram
mais pessoas do que em toda a Judéia?
- Sim, João. Eu diria que o dobro. Em Jerusalém, que é a
capital do nosso povo, moram apenas 30 mil pessoas. A
menos que exista em alguma outra parte no Oriente outra
cidade igual, Alexandria é a maior cidade do mundo, nos
nossos dias. Aqui está guardado todo o saber que o ser
humano tem acumulado desde que se começou a registar em
argila, cerâmica, papiro e nos atuais pergaminhos. Esta é a
cidade onde podemos encontrar livros de matemática,
engenharia, arquitetura, agricultura, astronomia, astrologia,
botânica, gematria, medicina, filosofia, religiões de várias
partes do mundo e todas as demais ciências.
Todos do nosso grupo estavam de olhos arregalados.
Tocávamos nossos camelos para que mais depressa
chegássemos àquele lugar que parecia ser uma miragem,
antes que ele desaparecesse de nossos olhos. Enquanto isso,
eu ia indagando.
- Eu já tinha ouvido falar dessa cidade, mas nunca pensei
que fosse tão grande. Quem a construiu, mestre?
160
- Você se lembra de um Rei da Macedônia, conhecido como
Iskander al-Akbar ou Alexandre, o Grande?
- Sim, claro, o maior de todos os conquistadores gregos que
queria dominar o mundo inteiro antes dos romanos. Não era
ele que tinha um cavalo chamado Bucéfalo?
- Isso mesmo, João. Há 330 anos, Alexandre liderou um
exército de milhares de homens, formado por macedônios e
gregos. Ele conquistou o Egito e decidiu construir uma nova
capital para o Egito e deu a ela o nome de Alexandria, em
sua própria homenagem. Também construiu uma outra
cidade mais ao sul do Nilo e, para homenagear seu cavalo,
batizou-a como o nome de Bucéfala.
- Que homem esquisito era esse Alexandre!...
- Sim, era mesmo. Mas foi um visionário no seu tempo. Ele
foi, desde os 13 anos de idade, educado por um sábio grego
chamado Aristóteles, o pai de uma nova ciência chamada
Lógica e o fundador de uma escola chamada Liceu, onde se
aprende de tudo. Com esse sábio e outros que serviam aos
imperadores Romanos, Alexandre aprendeu retórica,
política, matemática, ciências físicas e naturais, medicina,
estratégia militar, geografia e história geral, além de falar
vários idiomas e de se distinguir nas artes marciais e na
doma de cavalos.
- Aristóteles... nunca tinha ouvido falar nesse nome, mestre.
Ele era uma pessoa assim como o senhor e o mestre Abner
são para mim? Um tutor?
161
- Sim, João. Só que eu nem de longe posso me comparar à
sabedoria de Aristóteles, pois ele foi aluno de outro grande
mestre grego chamado Platão e este o melhor aluno de outro
sábio grego chamado Sócrates.
- Quer dizer que Alexandre aprendeu muito do que todos
esses sábios gregos, Platão e Sócrates lhes ensinaram, não
foi?
- Exatamente, e com muitos outros antes deles, como Thales
de Mileto, Pitágoras e Hipócrates, o pai da medicina. Dizem
que ele se tornou tão popular e querido por conta de todos
esses conhecimentos que ele aplicava nas suas campanhas
de expansão do Império Macedônio. Ele era um homem
pequenino, não media mais que 1.55 centímetros de altura e
morreu jovem, aos 33 anos.
- Como ele morreu, mestre? Em combate?
- Não foi em combate. Existem algumas versões para a
morte dele, mas, ao que tudo indica, foi uma doença, uma
grave infecção intestinal que o matou. Ele não chegou a ver
concluído o seu grande projeto, a construção dessa suntuosa
cidade que ele queria transformar no grande centro de
cultura, sabedoria e conhecimento da Terra.
- O que é aquela torre imensa lá em baixo, mestre
Malachai?
- É a famosa Torre de Alexandria. Também foi parte do
projeto de Alexandre, que ele não viu ficar pronta. Da
mesma forma, ele não viu a inauguração da maravilhosa
162
biblioteca e museu da cidade. Quando ele morreu, essas
obras só haviam começado. Foram contratados os melhores
arquitetos do mundo para realizar a obra de construção de
Alexandria. Era nessa cidade que ele queria centralizar o
seu império. Mandou construir ruas largas, casas espaçosas,
praças, jardins e fontes em todo o perímetro da cidade.
Assim, todos os moradores poderiam usufruir de uma vida
confortável, melhor até do que em Atenas e Roma. Tanto o
farol como a Biblioteca e museu foram concluídos por
Ptolomeu, um dos grandes generais de Alexandre.
- Ptolomeu então era amante das ciências, como Alexandre?
- Na verdade, era muito mais, pois ele mesmo era um sábio
e estudioso. Ele também havia estudado com Aristóteles,
que lhe influenciou profundamente. Ele foi reconhecido
pelos seus trabalhos em matemática, astrologia, astronomia,
geografia, cartografia, lentes e música. Pode-se dizer que foi
um dos grandes gênios da época e um profundo conhecedor
das estrelas.
- Eu gostaria de ser um sábio um dia, mestre? Gostaria de
ter todos esses conhecimentos...
- Agora você sabe uma das razões pelas quais eu o trouxe
para cá, João. Você vai estudar com os sábios da Biblioteca
de Alexandria. Daqui, iremos para outra cidade chamada
Pérgamo.
- Pérgamo? Nunca ouvi falar desse lugar. Onde fica?
163
- Fica do outro lado do Mediterrâneo. Lá existe uma outra
biblioteca que serviu de inspiração para Ptolomeu criar essa
daqui de Alexandria. Pérgamo é a cidade onde foram
criados os pergaminhos que nós usamos hoje para escrever
nossos livros. Antes, só havia o papiro feito pelos egípcios.
Mas o papiro se estraga muito facilmente. Já o pergaminho
feito com couro de cabra ou ovelha dura muito mais e é
mais fácil de transportar. Por isso, os nossos documentos
sagrados e outros livros usados pelos gregos e romanos e
em outras partes do mundo são chamados de pergaminhos.
Eles tiveram origem em Pérgamo, uma cidade situada na
península de Anatólia.
- E o que tem lá de tão interessante para eu ver?
- Você verá. Lá estão as obras originais de todos esses
sábios gregos de quem te falei, Sócrates, Aristóteles e
Platão. Tudo original. O que tem aqui em Alexandria são
cópias. Ptolomeu queria que fossem feitas pelo menos duas
cópias de todos os livros do mundo e guardadas aqui.
- Todos os livros do mundo?! Não era um exagero?
- Sim, muito grande, pois não haveria espaço para todos.
Mas quero te dizer que, na biblioteca de Pérgamo, existem
200 mil pergaminhos...
- Duzentos mil?! Nós não temos nem 50 em nosso Templo
em Jerusalém. Como podem ter 200 mil?
- Estou falando de Pérgamo. Não estou falando ainda de
Alexandria.
164
- O senhor está dizendo que na biblioteca daqui tem mais de
200 mil pergaminhos?
- Sim, existe uma lista de todos eles. Eu mesmo ajudei a
escrever a lista quando trabalhei aqui na juventude. Hoje
existem 800 mil pergaminhos. Está vendo aquela construção
imensa ao centro da cidade?
- Aquela que tem a forma de um circo romano, coberta com
telhas brancas?
- Isso mesmo. É a biblioteca de Alexandria, João. É lá onde
você vai trabalhar por muitos anos. Lá você poderá
enriquecer seus conhecimentos, poderá ler todos os livros
que desejar, pois você faz parte de uma classe especial de
trabalhadores. Você será um escriba.
- Um escriba? Mas eu ainda vou fazer 13 anos...
- Eu sei. Não existe nenhuma profissão que não necessite de
treino oferecido pelos mestres. Eu te passarei meus
conhecimentos e, se você for dedicado, poderá ser o meu
sucessor. Tenho poucos aprendizes, alguns foram enviados
nessa caravana pelos pais para estudarem em Alexandria.
Você os conheceu nessa viagem: Simão Pedro, André,
Tiago filho de Zebedeu, João de Betsaida, Filipe,
Bartolomeu, Tomé, Mateus, Tiago filho de Alfeu, Judas
Tadeu, Simão e Judas Iscariotes. A Judéia não oferece
condições para estudos mais profundos. Para você se tornar
um doutor e mestre escriba terá que se dedicar dia e noite
aos estudos, não poderá se casar...
165
- Como assim, mestre? Eu vou virar um eunuco? Eu vou ser
castrado? – perguntei, alarmado.
- Calma.. calma, João... – disse-me, o mestre Malachai –
para se tornar um escriba, você não precisará retirar os seus
testículos e se tornar um eunuco. Os reis e governantes mais
antigos faziam isso para fazer com que os serviçais do sexo
masculino perdessem o interesse e o vigor para atacar
sexualmente as princesas ou rainhas.
Respirei aliviado, mas voltei a perguntar.
- Qual a razão de não poder me casar?
- A obra que você deverá realizar vai te consumir muito
tempo. Vai esgotar todas as suas energias. Não lhe sobrará
tempo para cortejar uma moça, nem para ajuda-la a criar
seus filhos. Você descobrirá que um homem precisa de
tranquilidade e paz para fazer o seu trabalho. Uma família
nem sempre permite tal coisa.
Fiquei entristecido com aquela ponderação, ao lembrar-me
de Sarah, a filha do sacerdote Moshe, agora casada e
esperando um bebê que teria o meu nome. Felizmente, eu
não mais me chamaria Matias e sim João. Matias seria
agora outra pessoa, uma homenagem feita por uma mãe em
memória de um amigo, como Alexandre deu o nome de seu
cavalo à cidade de Bucéfala.
Continuei seguindo os demais companheiros até a entrada
de Alexandria. Apesar do fascínio que a cidade começava a
exercer sobre mim, pois eu nunca vira tanta gente em um só
166
lugar, usando as mais diferentes roupas, falando as mais
diferentes línguas, lembrando a Babel contada no Torá, eu
permanecia pensativo. Lembrava-me, todo o tempo, das
palavras do mestre Malachai, que eu não deveria me casar.
Também me atormentava o fato de saber que eu era apenas
um dos 13 discípulos que ele estava conduzindo para
Alexandria. Eu pensava que era o único. Não gostei da ideia
de competir com os demais que ele mencionara. Isso
reforçava o meu desejo de fugir dali assim que fosse
possível. Assim que soubesse como voltar para casa sem a
ajuda de mestres ou guias, eu o faria. Javeh iria me mostrar
o caminho, a porta de saída. Eu não continuaria sendo
tocado de um lado para o outro como uma folha seca que
não tem controle sobre si mesma. Eu aprenderia como
controlar a minha própria vida, mesmo que Javeh não
gostasse.
167
Capítulo VIII - A Missão dos 12 + 1
Falar de coisas que aconteceram há tanto tempo, é uma
tarefa difícil para alguém em idade avançada. Minha mão
começa a tremer quando eu seguro essa pena para imprimir
nos pergaminhos os relatos da minha adolescência. Nunca
perdi a firmeza da mão ao escrever qualquer coisa e o meu
tremor de agora não diz respeito à minha idade, mas sim por
reviver as fortes emoções que senti naqueles primeiros anos,
na maior cidade do mundo ocidental, convivendo com
pessoas de diferentes nações, modo de pensar, religiões e
com costumes distintos dos meus.
Antes, na minha pacata Jerusalém, eu viajava pelo mundo
antigo pela imaginação, lendo os papiros que contêm a
história do nosso povo e da criação do mundo. Meus pais
seguiam os ensinamentos da Torá e me diziam que só havia
um Deus verdadeiro e seu nome era Javeh. Era o que os pais
dos seus pais lhes haviam ensinado.
Até chegar em Alexandria, eu aprendera que o mundo havia
sido criado por Javeh, em seis dias, tendo descansado no
sétimo. Muito embora, eu já tivesse me perguntado muitas
vezes se aqueles dias realmente correspondiam ao período
compreendido entre o nascer e por do sol ou se era o tempo
de o sol nascer e voltar a nascer. Eu não sabia se o dia,
conforme o livro de Gênesis, era um dia formado por dia e
noite ou se era considerado só o período enquanto havia sol.
168
Havia muitas perguntas que eu fizera aos rabinos do templo,
para as quais eu tive resposta, porque eles me pediam para
não questionar as coisas de Deus. Sempre falavam que os
livros continham a verdade absoluta e que, mesmo que nós
não a compreendêssemos, não deveríamos questioná-la.
Lembro-me de certa ocasião, quando, ao finalizar uma cópia
do livro de Gênesis, indaguei ao Rabino Moshe:
- Se Javeh é onipresente, onipotente e onisciente, por que
razão, quando Adão se escondeu depois de comer do fruto
proibido que Eva lhe dera, Ele entrou no Jardim do Édem
chamando: “Adão... onde estás?” – Deus não está em toda
parte? Ele não sabe de tudo? Precisava procurar por Adão e
Eva?
O rabino pareceu embaraçado com a minha pergunta e disse
apenas:
- Ora, Deus é Deus e ele pode fazer o que quiser, perguntar
o que quiser? Ou será que você agora quer dizer o que o
Senhor Altíssimo deve perguntar ou não? Quem é você?
Quem somos nós para questionarmos os atos de Deus. Não
somos nada, não sabemos de nada. Melhor você parar de
fazer essas perguntas sem sentido e apenas acreditar que foi
assim e que Deus deve ter tido uma razão para ter feito
aquilo.
Lembro-me de ter ficado decepcionado com aquela
resposta, mas não me intimidei, embora sabendo que isso
deixaria o rabino furioso.
169
- Está bem, mestre... mas será que não foi um erro de quem
escreveu esses textos?
- Não seja pretensioso, Matias. Quem escreveu foi Moisés.
Você bem sabe disso. Ele foi o autor dos cinco primeiros
livros da Torá, os quais nós chamamos de Pentateuco.
Moisés era um doutor nas leis, aprendeu no Egito, desde
pequeno, as artes, as ciências e tudo mais que um neto de
um Faraó poderia aprender. Embora a mãe dele fosse uma
judia, ele foi adotado pela filha do Faraó, cresceu no palácio
e foi escolhido por Javeh para libertar os judeus.
- Sim, eu sei da história... ele foi colocado num cestinho que
foi colocado no rio por sua mãe, para escapar da matança
das crianças judias, promovida por um rei egípcio que temia
o crescimento da população escrava. Ele temia uma futura
revolta dos escravos e ordenou que todos os filhos homens
de mulheres judias, nascidos no Egito naquela época,
fossem mortos.
- Exatamente, Matias. Javeh escolheu Moisés para libertar o
seu povo do sofrimento, pois estavam sendo escravizados
pelos egípcios por mais de 300 anos. Você tem dúvida
disso? Acha que Moisés não sabia escrever?
- Não, mestre Moshe, não tenho dúvida disso. Porém,
quando eu li num dos livros que Moisés escreveu que ele
morreu com a idade de cento e vinte anos e que “os seus
olhos nunca se escureceram, nem perdeu o seu vigor”,
170
fiquei me perguntando: como um morto pode escrever sobre
a própria morte...
- Matias... você está sendo insolente!
- Não estou, mestre Moshe. Se o senhor e todo mundo diz
que foi Moisés quem escreveu esses livros, ele não poderia
falar do dia em que morreu. Alguém escreveu isso por ele.
Em todos os livros, Genesis, Deuteronômio, Números e
Levíticos, todo o tempo se diz que Moisés fez isso, Moisés
fez aquilo... Quem foi que escreveu isso? Um escriba? Se
foi, então não poderiam ter cometido alguns erros? Eu
cometo erros todos os dias aqui, quando faço cópias dos
livros. Muitos deles, nem o senhor que é sacerdote ou o
mestre Abner que é o escriba-mor vê. Daqui a alguns anos,
só existirão as cópias novas, contendo os meus erros, e
muita gente vai lê-las. Entretanto, não se tratará mais do
texto original. Elas não representarão a fiel Palavra de Deus,
o senhor compreende?
- Seu insolente... Não existem erros nos livros sagrados.
Vou falar com o seu pai que você está duvidando da
inspiração divina dos nossos livros. Acho que foi um erro
ele o encaminhar para se tornar um aprendiz de escriba. Um
escriba não faz perguntas, não muda nada, não comete
erros, apenas escreve o que lhe mandam e nada mais.
- Pois pode dizer sim, eu não pedi para ser escriba. Queria
era ser um soldado, lutar como meu pai para expulsar os
romanos das nossas terras. Queria impedi-los de continuar
171
nos escravizando, como fizeram os egípcios há mais de mil
anos.
Naquele dia, o rabino Moshe me levou de volta para casa e
me devolveu ao meu pai, dizendo que não havia mais lugar
para mim nas classes de escritura e leitura que ele
ministrava. Meu pai ficou aborrecido comigo, mas logo
encontrou outro professor, o mestre Abner, que tinha
paciência e aceitava meus desafios intelectuais. Certa vez,
eu ainda incomodado com a história de Moisés, lhe
perguntei:
- Mestre Abner, Moisés era mesmo poderoso, não era?
- Como assim poderoso, Matias? Você está se referindo aos
castigos que ele impôs ao Faraó para deixar o povo judeu,
que era escravizado, voltar para Israel?
- Sim, isso mesmo. Foram tantas coisas que ele fez.
Lembro-me de uma passagem no livro de Êxodo onde Deus
diz assim: “Quando Faraó vos falar, dizendo: Fazei vós um
milagre, dirás a Arão: Toma a tua vara, e lança-a diante do
Faraó; e se tornará em serpente”. Isso que ele fez foi um
milagre? O que é um milagre? Uma mágica? Um truque que
as outras pessoas não sabem como é feito?
- Ora, Matias, um milagre é algo sobrenatural. Algo para o
qual não temos explicação... Não posso dizer que todos os
milagres são truques, mágicas. Sei que muitos são a pura
vontade de Deus.
172
- Todos os milagres dependem da vontade de Deus?
- Uma pergunta muito difícil de responder. Eu mesmo tenho
dúvidas sobre isso, meu rapaz. Sinceramente, ainda não
consigo entender claramente. E você, o que pensa?
- Eu acho que qualquer um pode fazer milagres, mestre.
- Explique isso melhor, Matias, por favor.
Corri para pegar o pergaminho que continha a passagem do
livro de Êxodo, bem no começo do capítulo VII, para
mostrar ao meu mestre: “Então Moisés e Arão foram ao
Faraó, e fizeram assim como o Senhor ordenara; e lançou
Arão a sua vara diante de Faraó, e diante dos seus servos, e
tornou-se em serpente. E o Faraó também chamou os sábios
e encantadores; e os magos do Egito fizeram também o
mesmo com os seus encantamentos. Porque cada um lançou
sua vara, e tornaram-se em serpentes; mas a vara de Arão
tragou as varas deles”.
- Bem interessante isso, Matias. Você está certo, diz
claramente que os magos também transformaram as varas
em serpentes... Mas as serpentes de Arão e Moisés
devoraram as dos egípcios.
- Não teria sido melhor Javeh fazer um contra-milagre e não
deixar os magos do Egito transformarem as varas deles em
serpentes? O mesmo aconteceu com as águas que se
tornaram em sangue. Os magos também realizaram esse
173
milagre sem acreditar em Javeh. Tinham outros deuses. Os
deuses egípcios. Então era um truque de mágica? Moisés
sabia mais coisas que os outros magos?
- Pode ser, Matias... Pode ter sido isso mesmo. Mas acho
que a história quer apenas nos passar uma mensagem de que
uma serpente sempre pode ser devorada por outra, tudo
depende de que lado a serpente está. Nessa história que
você acabou de relatar, com certeza, as serpentes não
estavam do lado certo e os egípcios perderam. Também
quer nos dizer que existem forças poderosas que podem ser
movidas para realizar certos milagres. Não apenas Javeh o
faz diretamente. No Egito, havia homens poderosos,
capazes de façanhas incríveis.
Egito. Sempre o Egito, cheio de sábios, magos e
encantadores. Eu nunca havia visto um. Agora eu estava em
Alexandria e teria a oportunidade de ver tudo aquilo. Era
provável que todos os magos do mundo estivessem ali. Eu
iria aprender as artes deles e fazer coisas que ninguém mais
fosse capaz de realizar. Iria operar milagres, talvez nem
contasse com a ajuda de Javeh para isso, pois, pelo visto,
por vezes ele não me atendia. Ao que parece, os magos
egípcios não precisaram dele para também transformar
varas em serpentes ou tingi de sangue as águas do Nilo.
Minha vida não foi um mar de rosas naquele começo de
nova vida em Alexandria, apesar de eu gozar de muitos
privilégios, morar com outros aprendizes numa residência
174
ampla, a apenas uma hora de caminhada até a Biblioteca.
Todas as despesas eram pagas pelo Imperador, que não
poupava esforços e recursos para dar aos estudantes a
melhor educação possível.
A habitação era localizada no alto de uma elevação, de onde
eu podia ver os barcos chegando e partindo, guiados pela
poderosa luz do primeiro farol do mundo, obra do arquiteto
grego Sóstrato de Cnido. Era uma construção fabulosa, feita
de mármore, medindo 120 metros de altura, contendo em
seu interior máquinas e instrumentos de ferro e bronze,
espelhos que eu nunca sonhara conhecer e até um
periscópio, que permitia enxergar os navios a muitas milhas
de distância. Diziam os sábios que lá trabalhavam, que, com
aqueles instrumentos, podia-se prever tempestades, ventos e
maremotos. A luz projetada pelo farol era produzida por
uma fogueira de lenha resinosa e a combinação de espelhos
côncavos fazia com que a luz fosse vista a mais de 50
quilômetros de distância, servindo para orientar os navios
em alto mar.
O edifício onde eu morava tinha três pavimentos. Era como
uma casa sobre outra e chegávamos até ela subindo por uma
escada de pedra que ficava numa das laterais. Era diferente
das nossas casas na Judeia e foram construídas por
engenheiros gregos e egípcios. A maioria das casas era feita
de pedra e não de tijolos. Pretendiam erguer edifícios ainda
mais altos, com 5 ou 10 pavimentos. Isso me lembrava a
história da Torre de Babel. Eu é que não iria arriscar a
175
minha vida morando no alto de uma torre daquela altura.
Nunca mesmo.
O edifício onde Mestre Malachai nos colocou ficava no fim
da rua principal, chamada de Canópica, a qual ia de leste a
oeste. Era uma avenida imensa, com 7 quilômetros de
extensão e 30 metros de largura, ladeada por calçadas,
jardins e palmeiras. As calçadas eram também feitas de
pedra, construídas um pouco mais altas que o nível da rua.
Essa avenida ficava em um dos quatro bairros da cidade, os
quais tinham como nome uma das primeiras letras do
alfabeto grego: Alfa, Beta, Teta e Gama. Havia também a
artéria norte-sul, que era formada por duas largas avenidas
separadas por um bosque composto de árvores originárias
de várias partes do mundo. Os sábios e demais alexandrinos
estudiosos das plantas chamavam-no de Jardim Botânico e
ali faziam suas pesquisas diárias. O aroma exalado na
primavera por aquela coleção magnífica de flores e frutos
era inebriante. Os frutos eram coletados por pessoas
designadas para aquele trabalho, as quais levavam os
produtos para serem distribuídos gratuitamente em feiras
semanais. Desse modo, todos podiam usufruir da fartura
proporcionada pelo pomar público de Alexandria. Também
havia piscinas públicas, aonde íamos, meus colegas eu, nos
domingos e dias de folga.
A água, que era abundante em toda a cidade, fora canalizada
do Rio Nilo e era disponibilizada ao público em fontes
localizadas em muitas praças, para uso local ou para suprir
as necessidades do dia a dia em nossas casas. Com isso, era
possível tomarmos um banho uma vez por dia, sem
necessidade de sair de casa. Na minha terra, a água era
176
escassa e o banho completo era um luxo para poucos. Em
Alexandria, a limpeza das ruas, das casas, dos templos e
demais edifícios era perfeita. Havia cestos espalhados pelas
ruas, onde as pessoas deveriam depositar o lixo e, no fim do
dia, homens retiravam tudo em carroças puxadas por
animais. Os dejetos eram levados para um lugar apropriado,
onde eram misturados a sal marinho e, depois de secarem ao
sol, eram triturados para uso nas áreas de plantio. Segundo
os sábios daquela época, as plantas cresciam mais viçosas,
mais fortes e em menor tempo frutificavam. Para mim,
aquilo era um grande milagre.
Os meses e os anos se passaram rapidamente. Nem parecia
que eu já estava ali há mais de três anos. Apesar do trabalho
duro na Biblioteca, dos estudos profundos com mestres de
várias partes do mundo e de uma quantidade imensa de
tarefas a cumprir diariamente, minha vida doméstica era
confortável, se comparada com a que eu tinha com meus
pais em Jerusalém. Dividia com quatro colegas um quarto
espaçoso, com janelas amplas que davam para o mar.
Tínhamos camas feitas de madeira e colchões muito macios,
feitos com junco do Nilo. Nossa comida e demais cuidados
da casa eram realizados por duas senhoras muito amáveis
que nos tratavam como filhos, uma egípcia e outra judia. O
mestre Malachai nos informou que elas também eram da
fraternidade dos essênios do grande núcleo existente no
Egito. Essa era uma das razões pelas quais não comíamos
nada que fosse de origem animal, exceto o leite, seus
derivados, ovos e mel. Muitos dos meus colegas não
essênios protestavam, mas eu já havia aprendido a
177
importância de não consumir carne de animais e de não
maltratá-los ou sacrificá-los.
Entre os meus colegas daquela época, dos que eu mais
gostava era o Mateus e o Simão, este se parecia muito com
o meu irmão Calebe. Mateus era um pouco tímido, do tipo
calado, mas muito inteligente e observador. Embora
estivesse estudando para ser também um escriba, ele se
dizia apaixonado pelas leis e pelos registros dos notários. O
outro, Simão, era filho de um zelote como eu e era corajoso,
impetuoso e sempre disposto a nos conduzir pelo meio da
multidão das ruas, em busca de aventuras. Era o nosso
defensor, embora não usasse qualquer tipo de arma, nem
mesmo uma funda, como meu irmão Calebe.
Dos 12 discípulos que vieram naquela leva com mestre
Malachai, havia dois que eu não tolerava. Um era Judas
Iscariotes, que sempre estava criando problemas e querendo
ser melhor que todos nós. Havia nele um sentimento de
superioridade que nos irritava e ele nem era tão bom assim,
apesar de disciplinado e inteligente. Nós também não
confiávamos muito nele. O outro era Tomé. Esse,
desconfiado por natureza, estava sempre tentando provar
que havia alguma coisa errada em tudo e em todos. Apesar
disso, Tomé era suportável e tinha boa índole, ao passo que
Judas não era bem aceito pelo grupo. Mesmo assim, o
mestre Malachai nos pedia para termos tolerância e
paciência com ele, pois era órfão de fariseus e tornara-se um
rapaz revoltado com a própria sorte.
178
Aos poucos, fui me acostumando àquela cidade imensa que
deslumbrava a todos. Com o passar do tempo, fui
conhecendo cada esquina de Alexandria e, quando não
estava na Biblioteca trabalhando nas incontáveis cópias de
pergaminhos que os meus mestres me ordenavam fazer ou
debruçado sobre compêndios que tratavam de história,
literatura greco-romana, línguas estrangeiras, ciências
naturais, medicina, astrologia e numerologia, eu ia para o
Heptaestádio, um porto artificial construído entre o
continente e a Ilha de Faros, que se encontrava
aproximadamente a mil metros da margem. Essa ilha foi
unida ao continente por meio de um paredão de
aproximadamente 1200 metros. Alexandre, em seu projeto,
dividiu a baía em dois portos: a leste, o porto de guerra,
onde ficariam os arsenais e estaleiros navais e o seu porto
pessoal. A oeste, o porto mercantil, também chamado de
Eunostos - que significa bom regresso. Havia duas aberturas
nos diques que permitiam aos navios passar de um porto
para o outro. Diziam que era a maior construção naval de
toda a Terra. Eu ficava lá, olhando os navios chegarem e
partirem, carregados de mantimentos, móveis, máquinas,
plantas, animais e gente. Muita gente.
Certa vez, numa tarde de folga, eu estava esperando o por
do sol, sentado no alto de uma escadaria de onde podia ver
as pessoas que desembarcavam, vi, de relance, um grupo de
pessoas que havia descido de um navio com insígnias
Judaicas. Entre aquelas pessoas, havia uma moça de cabelos
castanhos claros, de andar firme e altivo, usando um traje
179
azul púrpura, caminhando ao lado de outras duas mulheres
mais idosas e de um senhor. Dei um salto e tentei olhar
melhor para me certificar de que era mesmo a pessoa que eu
imaginava que fosse: Sarah, a filha do sacerdote Moshe.
Meu coração disparou e eu, sem me dar conta da
irracionalidade do meu ato, desci aos saltos, pulando três
degraus de cada vez, na tentativa de alcançar o grupo que se
afastava do porto indo em direção às carruagens que
transportavam os recém chegados até a cidade. Eu tinha que
chegar lá antes que partissem e se perdessem no meio da
multidão de carruagens, carregadores e pessoas que se
espremiam pela avenida que, apesar de larga, parecia
pequena para tanta gente. Enquanto corria na direção da
moça que avistara de longe, sentia imensa gratidão, pois
aquilo deveria ser um novo milagre em atendimento às
minhas orações a Javeh. Nunca me esquecera do dia em que
partira de Jerusalém deixando-a casada e grávida. Isso já
fazia mais de três anos. O que poderia ter acontecido a ela
para estar tão longe de casa? Será que soubera que eu estava
ali em Alexandria e viera à minha procura? Será que se
divorciara, como mandava a Lei de Moisés quando o
marido repudiava a mulher? Será que ela tivera um filho
varão e lhe dera de fato o nome de Matias?
O minha aflição era grande, pois, por mais que eu tentasse
correr, a multidão me comprimia, barrando meus passos. Vi
de longe, quando a moça e os demais que a acompanhava
subiram em uma carruagem. Se eu corresse com todas as
180
minhas forças conseguiria alcançá-los. Gritei, em desespero,
com todas as forças dos pulmões.
- Saaaraah!! Saaaraah!!
Mas ninguém olhou para trás. O vento soprava na direção
contrária e levou a minha voz para a direção do mar,
misturando-a às centenas de outras vozes, incluindo as dos
mercadores que ofereciam seus produtos trazidos da Ásia,
da Índia, da Pérsia e de tantos outros cantos do mundo.
Eu não a perderia de novo. Não ali, em Alexandria.
Decidi que faria o que fosse para alcançar a carruagem, que
agora era tocada pelo condutor, ladeando a calçada de pedra
da avenida principal. Foi então que a minha sandália
escorregou no chão de pedra lisa, levando-me cair aos pés
de uma multidão que imediatamente veio em meu socorro,
fazendo exatamente o que eu não queria que fizesse:
impedir o meu caminho.
- Você se machucou, meu rapaz? Indagou um senhor de
turbante branco, com uma pedra de topázio imensa presa na
altura da testa.
- Não... não... estou bem – disse, tentando levantar-me para
voltar ao meu intento de seguir a carruagem.
No entanto, já havia mais gente obstaculizando o meu
caminho do que antes. A minha queda provocara a
curiosidade de outras pessoas que pararam para ver o que
181
estava acontecendo. Com isso, minha saída do meio da
multidão resultou impossível.
Quando consegui me desvencilhar de todos, já havia tantas
carruagens circulando, que eu não sabia qual delas seguir.
Provavelmente, aquela que levava Sarah já estava fora do
meu alcance.
Passei o resto da noite à procura de Sarah. Minhas buscam
foram em vão. Reuni alguns dos meus colegas que também
a conheciam de Jerusalém e pedi para que me ajudassem na
busca. Voltaram no fim da noite desanimados. Ninguém a
havia visto. Embora eu já não orasse mais com tanto fervor
para Javeh atender aos meus pedidos, fui para o meu quarto
e me ajoelhei de mãos postas, pedindo a Ele que me fizesse
encontrar Sarah outra vez. Mesmo que fosse pela última
vez. Eu ainda a amava e se ela estava ali deveria ser por
alguma razão e eu precisava encontrá-la.
Judas Iscariotes, ao me ver orando e chorando, aproximou-
se e disse em tom de escárnio:
- Não seja tolo, João... Sarah não se casaria com você nem
em mil anos. Ela já deve ter sido oferecida a outro romano
bastardo, como era aquele marido dela, o Daniel.
- Romano bastardo?! Do que você está falando, Judas?
- Você não sabia que Daniel era o filho bastardo de um
romano com uma judia? O pai, assim que soube da gravidez
182
da mãe dele, não a quis mais e os manteve ao longe, para
não causar problemas à família oficial e aos outros filhos
legítimos.
- E porque você nunca havia me falado sobre isso?
Perguntei, cheio de ira.
- Não interessava. Até porque se ela preferiu se casar com
um bastardo judeu-romano do que com você, então...
Voei de onde estava desferindo um soco no rosto de Judas,
que caiu pesadamente e foi socorrido pelos outros dois
colegas de quarto.
- Saia daqui, seu porco imundo. Você é um imundo. Não
tem o direito de falar assim de Sarah. Não tem! Gritei a
plenos pulmões, partindo para um novo confronto com
Judas, que agora tinha a face sangrando e queria vingança.
Uma das mulheres que cuidava de nós foi chamada às
pressas e interveio, nos ameaçando de contar tudo ao mestre
Malachai assim que ele chegasse.
- Mestre Malachai!! – gritei, ao ouvir o nome do meu
mestre - sim, ele deve saber onde ela está. Ele sabe onde
está cada judeu que vem a Alexandria. Deve saber.
Quando Malachai chegou que lhe contei sobre o acontecido,
inclusive sobre minha ira desferida contra Judas, ele me
convidou para fazermos uma caminhada.
183
- João... eu sei que você ainda nutre sentimentos por aquela
moça de quem você foi se despedir no dia em que viemos
para cá. Eu sei que o verdadeiro amor não morre tão
facilmente, quando um dos amantes alimenta ainda a chama
da paixão no fundo do coração. Aconteceu com você, mas
você nem sabe se Sarah sente o mesmo. Além disso, você
nem sabe se é ela a pessoa que você disse ter visto
desembarcando hoje.
- Era sim, mestre Malachai. Eu te imploro, por favor...
ajude-me a encontrá-la?
- O que vai acontecer se você a encontrar, João?
- Eu... eu... bem... eu vou dizer a ela o que não pude dizer
no nosso último encontro. Direi que eu a amo e que vou
continuar amando-a pelo resto dos meus dias.
- E daí, João?
- E daí... não sei. Realmente não sei.
O mestre baixou o olhar e depois o ergueu para o céu
estrelado, como se buscasse lá uma resposta. Esperei
pacientemente e ele continuou.
- Eu te disse que você tinha uma missão a cumprir. Você foi
indicado para ser o escolhido. Nunca mais falamos sobre
isso, mas você tem sido acompanhado desde que chegou
aqui. Já recebeu instruções e ensinamento de dezenas de
mestres dos mais variados países. Seus conhecimentos vão
184
além do que qualquer outro aluno que eu tive até hoje.
Todos o respeitam e admiram. Sua mente percebe com
facilidade detalhes sutis, que a maioria das pessoas não
veem. As informações que recebe, você as amplifica. Você
tem o poder de expressar o que pensa por meio de histórias.
Já li muitas que você escreveu. Você ampliou a sua
criatividade nesses anos de trabalho duro, agora está na
iminência de se tornar um escriba. Talvez essa não seja a
melhor hora para procurar um casamento...
- Não estou procurando um casamento, mestre Malachai. O
senhor não entende... Sarah foi a única mulher que amei até
hoje. O que aconteceu conosco foi uma fatalidade. Eu tive
parte da culpa por ter fugido e não ter voltado para desposá-
la, como era o nosso desejo.
- Ninguém tem culpa dos acontecimentos que não consegue
controlar, meu filho. Claro que se você pudesse não teria
fugido de Jerusalém...
- Eu não fugi, eu fui levado. Já te contei como aconteceu.
Meu pai estava sendo procurado pelos romanos e o mestre
Abner nos tirou da cidade, levando-nos para um lugar onde
não pudessem nos achar.
- Isso mesmo. Vê... Você não teve controle sobre esses
acontecimentos. As coisas nesta vida são assim. Não temos
o poder de controlar tudo...
185
- Eu entendo, mas neste momento eu não estou com o poder
de consertar as coisas? Eu não tenho o poder de ir atrás dela
e começarmos tudo de onde paramos?
- João... meu bom João... As pessoas, assim como as coisas,
mudam a cada dia, num piscar de olhos. Nem a Sarah é
mais a mesma, nem você, nem eu, nem o mundo é. A vida é
como um rio, fluindo constantemente. A água que corre ali
nunca é a mesma. Quando eu fecho a minha boca após
proferir uma palavra, ela já foi... não existe mais. Fica
apenas a lembrança.
- O senhor tem razão mestre, mas qual o motivo de termos
sentimentos que não mudam com o tempo? Eu nunca deixei
de amar Sarah. Claro, talvez não a ame mais do mesmo
jeito, como o senhor diz, mas não posso tentar? Não devo
me aproximar dela enquanto posso? Se ela estiver
divorciada, se o marido morreu, se...
- Sempre o grande “se”, João. Algo só acontece porque
outras coisas já aconteceram. Tudo é uma sucessão de
acontecimentos. Estamos todo o tempo fazendo isso. Você
deu um soco em seu colega Judas. Ele pode querer uma
vingança amanhã. Um ato que praticamos pode levar a
outros atos. Você deve ter aprendido com Xerxes II, o
mestre essênio da Pérsia, que quando uma pedra é lançada
sobre a superfície da água ela provoca ondas que se
espalham em todas as direções, formando círculos.
Dependendo do peso da pedra e da força com que a
186
jogamos, essas ondas podem ir a grandes distâncias. Assim
acontece com os nossos atos, mesmo os pequeninos
provocam algum resultado. Então, existe a Grande Causa, a
Inteligência Suprema, como os nossos irmãos da escola de
Gnosis costumam chamar, Ela deu origem a tudo e nós só
precisamos continuar vivendo... nós Judeus chamamos essa
inteligência de Javeh. Mas confesso que tenho dúvidas se
ambos são a mesma coisa.
- Devemos deixar que essa inteligência nos guie, é isso
mesmo? E o que fazer com as nossas vontades, os nossos
desejos. Para que os temos, mestre?
- De certo modo, parece que essa grande força que
acreditamos seja Deus e que está por trás de todos os atos
humanos sabe mesmo o que é melhor para nós. Somos nós
que atrapalhamos esse fluxo de felicidade que deveria
acontecer naturalmente, mas os nossos desejos impedem.
Não deveríamos viver preocupados com o dia de amanhã...
O amanhã não nos pertence.
- 0 mestre Abner já me disse isso. Mas eu continuo
pensando no amanhã. Ou melhor, no hoje. Ainda quero
encontrar Sarah. Mesmo que tenha que revirar pedra sobre
pedra de Alexandria, eu irei encontrá-la, mestre – disse eu,
com veemência.
Parece que o velho mestre se impressionou com a minha
determinação.
187
- Poucas coisas há nesta vida que não possam ser vencidas
com determinação e coragem, meu filho. Agora vamos
dormir. Amanhã temos mais de 10 pergaminhos novos para
traduzir e copiar...
- Não irei à Biblioteca amanhã, mestre. Vou procurar por
Sarah, com ou sem a sua ajuda. O senhor vai me ajudar ou
não?
- Façamos assim... você irá para a biblioteca e trabalhará até
o meio dia. Enquanto isso, vou sair por aí e ver se descubro
quem são esses recém-chegados da Judeia. Na verdade, nem
sabemos se são judeus...
- São sim, mestre, vi numa das velas do navio o desenho de
um dos nossos símbolos. Com certeza, vieram da Judeia.
- Mas podem ser de outras cidades e não de Jerusalém...
- Podem, mas algo me diz que não são. Está bem, farei
como o senhor diz, mas, mesmo se não encontrar nenhuma
pista, depois do almoço eu irei procurar por minha própria
conta, está bem?
O mestre sabia como negociar. Concordei em fazer o que
ele pedia, pois sabia que, se havia alguém capaz de
encontrar um judeu em Alexandria, essa pessoa era
Malachai.
O trabalho de traduzir textos, copiar e recopiar trabalhos na
biblioteca, era maçante e nada criativo. Eu gostava mesmo
188
era de ler os tratados sobre os mais diversos assuntos,
espalhados pelas dezenas de salas, com prateleiras e
escaninhos, os quais continham rótulos de informação sobre
cada livro que lá havia, desde os escritos em madeira,
cerâmica, papiros e os modernos pergaminhos.
Também gostava de ir ao gigantesco anfiteatro, localizado
na parte dos fundos da biblioteca, onde os sábios de várias
partes do mundo faziam seus discursos, ministravam aulas
ou expunham suas novas descobertas a um público atento,
formado por mais de 5 mil pessoas. Eu jamais teria
imaginado uma sala tão grande e tão luxuosa, a qual
dispunha de escadarias circulares próprias para sentar,
parecia com um circo romano coberto. Havia nela um palco,
de onde os mestres e sábios podiam ser ouvidos e vistos por
todos. A construção fora feita de tal modo que um simples
sussurrar do palestrante podia ser ouvido em todo auditório,
sem esforço.
Eu ainda era obrigado a trabalhar seguindo as orientações
do meu mestre-tutor, mas sabia que no final daquele ano,
quando eu completasse os 17 anos e me tornasse um escriba
oficial, poderia trabalhar onde e como quisesse. Com sorte e
com as indicações certas, poderia ser nomeado escriba de
um rei ou governador. Mas esse não era o meu único sonho.
Eu queria ser um sábio e escrever meus próprios livros,
encher milhares de pergaminhos com todas as coisas que eu
vinha descobrindo desde que começara, ainda em criança, a
189
estudar os livros sagrados. Também queria me casar e ter
filhos para lhes ensinar tudo o que tinha aprendido.
Aquela manhã pareceu ser a mais longa de toda a minha
vida, pois, por mais que eu trabalhasse, as ampulhetas que
marcavam o tempo para a chegada da hora do almoço nunca
paravam de escorrer a fina areia para o receptáculo de
baixo. Meus olhos estavam fixos na entrada principal da
sala onde eu estava trabalhando com os demais colegas,
quando vi o mestre Malachai, com seu tradicional traje cor
de marfim, adentrar a biblioteca.
Procurei ver no seu rosto alguma expressão de alegria que
pudesse confirmar que ele havia encontrado alguma pista de
Sarah, mas não consegui captar nada.
- E então, mestre... o senhor encontrou alguma pista? Sabe
onde poderei encontrar Sarah?
- Não, João... não tive êxito. Eu sinto muito. Ninguém que
tenha chegado da Judeia no dia de ontem se chama Sarah.
- Mas eu a vi, mestre Malachai... eu a vi! – gritei erguendo
os braços e derrubando, sem querer, os pergaminhos que
estavam sobre minha mesa de trabalho.
- Infelizmente, eu não encontrei nenhuma pista...
- O senhor está mentindo, mestre Malachai. O senhor está
me enganando porque não quer que eu me case. Disse-me
isso ontem a noite. O senhor quer eu que cumpra essa tal
190
missão misteriosa que está na sua cabeça e de seus irmãos
da fraternidade – disse eu, avançando contra o ancião que
não se manteve impassível.
- Se é o que você pensa...
- Sim, é o que eu penso. Pois vou te dizer uma coisa...
obrigado por tudo o que me fez. Obrigado por ter me
afastado de meus pais, da minha família e me jogado aqui
nesse falso paraíso para fazer a sua vontade. Eu queria
apenas ser um homem normal, ter uma família, ter filhos,
brincar com eles... ter uma esposa...
O meu tom de voz e o meu pranto chamou a atenção das
outras pessoas que estavam na biblioteca. Logo a diretora
En-Dor, sacerdootisa egípcia, seria chamada. Ela não
tolerava tumultos, barulhos e perturbações da ordem. Ali era
um lugar de paz, de estudos e silêncio. O único lugar onde o
barulho era tolerado era no Auditorium. Lá, as pessoas
podiam gritar, aplaudir ou vaiar quem desejasse, mas o som
não saia daquele local.
- João... vamos sair daqui. Vamos conversar lá fora...
Não ouvi. Saí em desabalada carreira, deixando para trás
Malachai e alguns dos meus colegas, Mateus e Simão, que
tentaram me alcançar.
Já na rua, ainda cheio de ira, pois não tinha certeza do que
Malachai poderia ter feito. O velhote era sábio demais para
191
deixar que eu encontrasse a mulher que poderia mudar os
rumos da minha vida. Ele me dissera isso há alguns anos,
como se estivesse adivinhando o meu futuro, quando nos
encontramos pela primeira vez na sinagoga semidestruída
em Jerusalém: “não faça nada que venha atrapalhar a sua
missão”. Pois ele que ficasse com aquela missão, que já me
parecia agora uma fantasia de um ancião fora da realidade.
Iria atrás de Sarah, nem que tivesse que voltar a Jerusalém.
- João... João... espere... – eram meus colegas que gritavam
quase sem folego pelo esforço da corrida para me
alcançarem – Nós vamos ajuda-lo a procurar Sarah. Até
Judas disse que viria também.
- Não quero a ajuda daquele fariseu. Detesto fariseus! –
Disse eu, furioso.
- Mas eu sou fariseu também, João. – disse Simão, sentindo-
se ofendido.
- Você é um bom fariseu, Simão. Você é quase um
saduceu... – todos rimos.
Perambulamos pelas ruas de Alexandria e, quando sentimos
fome, fomos até um local reservado ao comércio. Paramos e
pedimos comida nas tendas que vendiam todo tipo de
alimento. Bebemos água fresca, que vinha pelo sistema de
canalização diretamente do Nilo e fomos para a escadaria
do porto ver mais um por do sol.
192
Por mais de dois dias, meus 12 colegas e eu procuramos por
Sarah em toda a cidade. Foi Judas que teve a iniciativa de
vir me pedir desculpas e oferecer ajuda. Eu aceitei a ajuda
dele. Naquela hora, toda ajuda seria importante para
alcançarmos nosso objetivo. Mestre Malachai não interferiu,
nem nos obrigou a trabalhar na biblioteca durante aqueles
dias. André, que era bom em negociar, prometeu a ele que
depois compensaríamos aqueles dias perdidos. O mestre
aceitou sem argumentar. Imaginei que ele queria compensar
sua falha em não ter encontrado Sarah ou, quem sabe,
penitenciar-se por sua deslavada mentira.
Meus pés doíam e minhas forças estavam esgotadas. Depois
de tamanho esforço, meus colegas também já não tinham
mais ânimo para prosseguir. Mas, no fundo do meu coração,
ainda existia um raio de esperança.
- Vamos procurar, pela última vez, nos arredores da cidade.
Nós ainda não procuramos nas pequenas propriedades ao
redor de Alexandria, pode ser que ela esteja lá – disse eu,
tentando animar meus companheiros.
Decidimos nos dividir para melhor aproveitarmos o último
dia que nos restava. Formamos 4 grupos de três e eu fiquei
no grupo de Judas, não confiava nele e queria ter certeza de
que ele realmente estava empenhado no que prometera.
Ao cair da tarde, já de regresso para Alexandria, com as
nossas sandálias e pernas cobertas de poeira, decidimos
parar em um agrupamento de pequenas casas. Haviam
193
acendido uma pequena fogueira e, em volta dela, algumas
pessoas conversavam. Foi então que eu vi Sarah, a minha
amada.
Minha respiração ficou suspensa e foi quando eu pedi aos
meus amigos que não se aproximassem mais. Que me
esperassem ali, até eu voltar trazendo Sarah pela mão para
comprovar que Javeh de fato atendia aos meus pedidos.
Gritei feito um louco, enquanto corria na direção da moça.
As pessoas quando me viram, correram para dentro das
casas, incluindo Sarah, e fecharam as portas. Ficou apenas o
homem idoso, o mesmo que eu havia visto com Sarah no
porto no dia em que chegaram. Acho que todos imaginaram
que estavam sendo atacados por um louco ou um bandido,
como era costume em Jerusalém, em nosso tempo.
Ao chegar perto do homem, este agarrou-me pelo braço,
impedindo-me de correr na direção da casa onde Sarah
havia entrado com as outras mulheres.
- O que está havendo, meu rapaz. Porque você está gritando
o nome de Sarah? Quem é você? – disse o homem,
segurando com força meu corpo, enquanto eu tentava me
desvencilhar dele.
- Eu sou.. eu sou... João.. ou melhor, eu sou Matias...
- Afinal, você nem sabe quem você é e está gritando por
Sarah... Você é um louco? O que você quer aqui? Acalme-
194
se, não vou machucá-lo, mas você não pode ir entrando nas
casas alheias sem ser convidado.
Meus companheiros vieram em meu socorro, para desespero
do ancião que teve certeza de tratar-se de um bando de
malfeitores. Foi André, com a sua fala mansa e bem
modulada, que explicou ao homem, que se chamava
Baruch, o que fazíamos ali.
- É uma maneira muito estranha de procurarem por uma
pessoa, não é? Esperem aqui fora que eu vou chamar a
moça.
Quando o homem voltou trazendo atrás de si a moça que eu
havia visto no porto, descobri que minha busca havia
terminado ali. Não era a minha Sarah, mas alguém que se
parecia muito com ela.
- Esta é Abigail, prima de Sarah. Elas se parecem muito
mesmo. Muitas pessoas chegaram a confundir as duas.
Estamos aqui na casa de nossos parentes que se mudaram
para Alexandria no ano passado.
- E como está Sarah? Ela continua casada? O primeiro filho
dela era um varão? Deram a ele o meu nome? Ela está feliz?
– despejei a um só tempo todas as perguntas que carregava
comigo há tanto tempo.
195
- Sim, ela teve um varão muito forte a quem deu o nome de
Matias. Depois ela teve uma filha que deu o nome Maria
Madalena...
- Ela está feliz? O marido a trata bem? – indaguei com a
esperança de que me dessem uma resposta negativa. Eu
deixaria tudo e voltaria para dar a felicidade que ela
merecia. Agora era um homem feito e não temeria a nada.
Só não ficaria com ela se ela me rejeitasse, mas eu sabia, ou
queria acreditar que ela me amava e pediria o divórcio para
se casar comigo.
A resposta não veio logo. Todos se entreolharam e foi
Abgail que se aproximou de mim e com lágrimas nos olhos
disse:
- Infelizmente, Sarah morreu quando nasceu sua filha.
Sofreu muito e as últimas coisas que ela disse foi que, se um
dia o encontrássemos, disséssemos a você que ela o
esperaria no paraíso. Quando ela engravidou da filha, seu
marido a abandonou para se casar com uma romana.
- Maltidos romanos!! Romanos maltidos!! Raça de víboras!!
Tudo isso só aconteceu por culpa deles. Eles são os
culpados pela morte de Sarah... pela fuga do meu pai, pela
separação de minha família, pela morte dos meus mestres! –
bradei furioso e dei as costas a todos.
Lembro-me de ter vagado naquela noite pelo campo durante
muito tempo até que decidi voltar para casa. Malachai havia
196
vencido. Eu agora estava pronto para começar a minha
missão, fosse o que fosse. Esperava que essa missão fosse a
de destruir completamente o império romano e tudo o que
ele representava. Desse modo, vingaria a destruição que
haviam causado a todos nós.
197
Capítulo IX - A Perseguição
Não há nenhuma força mais poderosa do que o amor ou o
ódio dentro de um ser humano. Movidos por um desses
sentimentos, somos capazes de realizar feitos inimagináveis.
Eu estava movido pelos dois. Amor imensurável ao meu
povo, aos meus familiares, aos meus entes queridos e ódio
mortal aos nossos inimigos, aqueles que nos escravizavam.
Após aquele incidente no pequeno vilarejo nos arredores de
Alexandria, quando eu vi todos os meus sonhos de ter uma
vida normal e mundana serem sucumbidos diante da
maldade dos homens, eu decidi não pensar em mais nada, a
não ser em preparar-me para cumprir fielmente a missão
que os meus mestres e a fraternidade dos essênios diziam
que eu deveria realizar. Foram meses de intensa dedicação
aos estudos, isolado de meus companheiros e apenas
concentrado em todas as orientações do mestre Malachai e
de todos os demais envolvidos na minha preparação.
Aos 20 anos, eu já havia viajado várias vezes para as mais
deslumbrantes cidades do mundo em diversos países. Pelo
mar, cheguei a Roma, depois Athenas e Tróia. Em seguida,
subi pelo rio Eufrates rumo a Assíria, alcançando depois a
famosa Babilônia e a fascinante cidade de Ur. Seguindo as
orientações dos meus mestres, penetrei em outro território
ainda mais fabuloso, a Índia, com seus dois mil deuses e
inúmeros dialetos. Tive que aprender dois deles antes de lá
chegar.
198
Nunca esqueci o efeito surpreendente que os livros sagrados
daquele povo exerceram sobre o meu espírito. Foi o mestre
hindu Rajan, a pessoa incumbida de me ensinar o que eu
desejasse saber sobre a história do seu povo, seus deuses,
seus costumes e modo de viver.
Em sua cabana no pináculo de uma montanha, mestre
Rajan, um ancião de pele escura, cabelos escorridos e
brancos como a neve, um rosto firme e bondoso,
emoldurado por sua longa barba branca, mostrava-me um
mundo completamente diferente daquele em que eu havia
nascido. Um mundo mais intenso, mais vivo, mais
complexo e infinitamente mais divertido. O povo hindu
também tinha livros, muitos dos quais haviam sido escritos
há 5 mil anos.
- Mestre Rajan, se esses livros foram escritos há 5 mil anos,
então os livros que temos em nosso país, relatando a história
dos judeus e as gerações de Adão até os nossos dias, não
estão corretos. Eles relatam que há dois mil anos, Javeh,
nosso Deus supremo, deu a Moisés as tábuas da lei. Então,
antes disso, vocês aqui na Índia já existiam? Já tinham os
seus livros, como esse Bhagavad-Gita, que conta a história
de Krishna?
199
- Sim, e, além do Bhagavad-Gita, temos também os Vedas,
os Upanixades e muitos outros de igual importância. Dentro
dos Vedas, por exemplo, existe o livro Saṃhit, que contém
os mantras sagrados.
- Mantras sagrados? Nunca havia ouvido falar sobre isso.
Do que se trata?
- O mantra é uma fórmula mística e ritual recitada ou
cantada repetidamente pelos fiéis. Essa palavra, em
sânscrito, significa controle da mente. O mantra é repetido
de forma a auxiliar a concentração durante a meditação.
Acreditamos que ao repetirmos as mesmas palavras muitas
vezes, nós mudamos a realidade de acordo com a nossa
vontade. Vocês não tem algo assim na religião de vocês na
Judeia.
- Temos sim. Não chamamos de mantra ou meditação.
Chamamos de oração. Temos um livro escrito por um sábio
chamado Davi, quem escreveu os Salmos. Nós repetimos
esses versículos durante nossas cerimônias. Também
fazemos as nossas preces com o objetivo de pedir a Deus as
coisas que precisamos.
- Ou as coisas que vocês acham que precisam, não é? -
disse o ancião, sorrindo zombeteiramente.
- Talvez seja isso mesmo, mestre. Talvez nem precisemos
de tantas coisas que pedimos em nossas orações.
- Qual é o nome do deus de vocês lá em seu país?
200
- O nome dele é Javeh. Não existe outro maior que Ele... foi
o que me ensinaram desde que nasci e está escrito nos
livros.
- Nos livros do seu povo, não é?
- Isso mesmo, os quais o senhor agora me diz que não são
os mais antigos nem os únicos. Os livros dos hindus foram
escritos milhares de anos antes. Como pude viver até hoje
sem saber disso? Por que os nossos sacerdotes não nos
ensinaram tais fatos?
- Os sacerdotes são homens inteligentes que desejam manter
o poder nas próprias mãos. Eles acham que são capazes de
conduzir o povo para um bom caminho. Na verdade, eles
têm medo de que o povo se perca. Por isso, criaram os
livros para expressar os seus desejos e não querem que os
féis leiam outras escrituras tidas como sagradas.
- O senhor está me dizendo que os livros não são inspiração
divina? São produtos da cabeça de homens como nós?
- Eu não disse isso, meu rapaz. Mas essa é a conclusão que
chegamos quando lemos os nossos livros. Cada um deles
reflete o desejo, as necessidades daquele tempo. Com o
passar das gerações, precisamos criar novas leis, novas
orientações. A mente humana é poderosa e vai encontrando
novas soluções. Então, os livros antigos devem ser
considerados como orientações que serviam para aquele
tempo e talvez não mais para os novos tempos.
201
- Se é assim, qual a razão de o senhor e milhões de outros
hindus continuarem lendo os livros antigos? Não deveriam
escrever outros novos? Jogar os antigos no lixo?
- Deveríamos sim, meu rapaz. Vejo que sua mente é muito
lúcida e objetiva. No entanto, pense da seguinte forma: um
mapa, mesmo que não seja tão bom, pode levar você ao
lugar que deseja, não é? Sem ele, as pessoas ficariam
perdidas, sem rumo. Enquanto não surgirem novos mapas,
precisamos confiar nos antigos. Infelizmente, o que ocorre é
que a maioria dos homens é preguiçosa demais para mudar
o modo de pensar e de agir. Acomoda-se usando os velhos
mapas.
- E por que razão os sábios, como o senhor e tantos outros,
não escrevem novos livros, novos mapas?
- Quem vai acreditar num velho sacerdote que vive sozinho
nas montanhas, meu rapaz? Diriam que sou louco e me
queimariam numa fogueira sagrada. Diriam que estou
possuído por divindades do mal.
- Vocês também acreditam em divindades do Bem ou do
Mal? Nossos livros antigos contam a história da criação do
mundo, dizendo que um anjo chamado Lúcifer quis ser
maior do que Deus e se corrompeu, passando para o lado do
mal. Quando Javeh criou o homem e a mulher, uma
serpente do mal enganou Eva e a induziu a provar do fruto
da ciência do bem e do mal. Eva comeu e deu a Adão e
ambos abriram seus olhos, desobedecendo a ordem que
Deus havia dado para que não comessem do fruto proibido.
202
- Sim, nós, que seguimos o bramanismo, temos muitas
histórias como essas de vocês. Acreditamos que Brahma é o
Deus principal, o onipresente e supremo, pai da Trindade
Brahman. Ou seja, temos Brahma (o criador), Vishnu (o
preservador) e Shiva (o destruidor do mal). Mas não se
preocupe com esses nomes. Mesmo eu tendo 85 anos de
idade, estudado desde criança nos principais mosteiros da
Índia, ainda não sei tudo sobre as nossas divindades. Já
disseram que é possível existirem atualmente mais de 100
mil delas por toda a Índia. Parece que cada indiano tem o
seu deus particular, mas entendemos que todos acabam
sendo manifestações de Brahma.
- Então Brahma é o Deus Supremo de sua religião? E quem
é Krishna?
- Isso mesmo, Brahma é o Espírito Cósmico e se manifesta
por meio de seus avatares, os quais assumem diferentes
formas. Krishna, por exemplo, que nasceu de uma virgem, é
a encarnação do Deus Vishnu.
- Krishna nasceu de uma virgem? Como isso foi possível?
- É o que está escrito aqui no Bhagavad-Gita, veja comigo o
que disse o oráculo sobre o que iria acontecer: "Bendita és
tu, Devaki, entre todas as mulheres, fostes escolhida para a
obra da salvação... Ele virá com uma coroa de luz e o céu e
a terra se encherão de júbilo...Virgem e mãe, nós te
saudamos, como a mãe de todos nós, pois dará à luz ao
nosso salvador, a quem darás o nome de Krishna".
- Nós também temos profecias que mencionam a vinda de
um Messias que libertará o nosso povo da opressão. Está
203
escrito no livro de Isaías, um profeta que viveu há cerca de
700 anos. E diz: "Portanto o Senhor mesmo vos dará um
sinal: eis que uma virgem conceberá, e dará à luz um filho,
e será o seu nome Emanuel". Mas até o momento esse
salvador ainda não nasceu. Nosso povo espera por ele. Seria
muito bom se ele viesse agora. O senhor talvez não saiba,
mas estamos sofrendo muito com a invasão dos romanos.
- Eu sei, meu rapaz, eu sei. Desde que o homem anda sobre
este mundo, que existem povos subjugando povos. Os mais
fortes querem dominar os mais fracos. Aqui na Índia é
assim. De tempos em tempos, somos invadidos por povos
vizinhos que querem nossas terras, nossas mulheres e
nossas riquezas. Temos que lutar contra eles com lanças e
espadas, o que endurece os corações do nosso povo. E a
questão é: o que fazer com o nosso povo revoltado, cheio de
ódio e com desejo de vingança? como mudar o modo de
eles agirem entre si mesmos? Uma das melhores maneiras
de se fazer isso é por meio das revoluções do modo de
pensar. São as ideias que mudam o mundo. São homens
corajosos que desafiam as leis antigas e querem leis novas
que evitarão as barbáries do futuro. Se as pessoas que são
escravizadas hoje não aprenderem a cultivar a paz, o perdão
e o amor ao próximo, quando elas estiverem livres,
repetirão o mesmo erro com outros povos que estejam em
situação mais fraca e o eterno ciclo do mal permanecerá.
Parece que vamos precisar de muitos salvadores, nascidos
de virgens ou não, para mudar o mundo, não é?
- Tem razão, mestre. E como foi o nascimento de Krisnha?
Pode me contar, por favor?
204
- Isso foi há três mil e duzentos anos. Conta-nos, um dos
nossos livros sagrados, que Krisnha foi o oitavo filho da
princesa Devaki, filha do rei Kamsa. No dia do casamento
de Devaki, quando o rei a levava ao seu marido Vasudeva
para a nova moradia, escutou uma voz que dizia que o
oitavo filho de Devaki seria um Visnhu e iria levá-lo à
morte. Temeroso, o rei decidiu matar o casal, mas Vasudeva
implorou pela vida da esposa, prometendo que cada filho
que nascesse seria levado à presença de Kamsa e ele poderia
fazer o que quisesse com eles.
- E o rei Kamsa desistiu de matar a própria filha?
- Sim, desistiu, mas mandou prender Vasudeva e a esposa
no porão do castelo, sendo vigiados dia e noite por guardas.
Cada filho do casal que nascia era morto por Kamsa, que,
mesmo sabendo que a profecia se cumpriria apenas no
oitavo filho, não tinha piedade de nenhum e matava todos. E
mais, num acesso de loucura e medo, temendo que o Visnhu
pudesse nascer em qualquer outro lugar, mandou matar
todos os meninos com até dois anos de idade, a fim de
evitar o cumprimento da profecia.
- Temos uma história semelhante em nossos livros, mestre.
- Parece que os homens gostam de repetir as histórias de
tempos em tempos, não é? Ou será que as ouvem e as
reescrevem, mudando apenas os nomes dos personagens,
adaptando-as à própria realidade?
- O senhor não acredita na história do rei Kamsa?
205
- Deixe-me concluí-la e depois te direi o que penso sobre
ela. Mas prometa-me que não vai me chamar de velho
louco, está bem? – disse o ancião, sorrindo largamente.
- Não prometo nada, mestre, mas respeitarei as tradições do
seu povo da mesma forma como gosto que respeitem as
minhas, ainda que não concordemos integralmente com
elas. Eu só preciso entender a razão de elas existirem. Se o
senhor puder me ajudar com isso, ficarei feliz e partirei da
Índia com mais sabedoria.
- Pois bem, foi então que o oitavo filho de Devaki nasceu e
recebeu o nome de Bhagavan Sri Krishna. Como já te disse,
dessa vez, não foi preciso que a princesa Devaki tivesse
relações íntimas com o marido, pois o filho era a
encarnação de Visnhu. Cientes de que a vida do menino
corria risco na prisão, amigos de Vasudeva o levou para
outra cidade e o entregou a uma outra família para que o
criassem. Nanda, pai adotivo de Krishna, era o líder de uma
comunidade de pastores de gado. Existem muitas histórias
falando sobre o menino naquele lugar. São muitas as
façanhas de Krishna e aventuras com as Gopis da vila,
incluindo Radha, aventuras estas que se tornaram
conhecidas como Rasa Lila.
- Estou impressionado, mestre Rajan. Quero saber mais
sobre essas aventuras de Krisnha.
- Você mesmo poderá ler sobre elas nos livros que te
mostrarei enquanto estiver aqui comigo. Sei que você, além
de falar muito bem o sânscrito, o lê muito bem. Quem o
ensinou?
206
- Aprendi com o mestre Sri Bakthi, na Biblioteca de
Alexandria. Ele me disse que estava traduzindo os livros
sagrados dos hindus para outras línguas. Assim como ele,
eu achava que o mundo precisava conhecer outras obras,
além das que foram escritas por seu próprio povo.
- Chegará o dia em que não haverá mais necessidade de se
contar histórias. Os homens compreenderão que as histórias
foram criadas para nos ensinar, orientar e nos indicar um
caminho a seguir. Espero que elas serviram para despertar
as lembranças dos fatos que são importantes para nossa vida
e que sejam desprezos os outros sem valor. Uma pessoa que
tenha consciência do bem e do mal e escolha praticar o que
é certo não precisa de histórias mirabolantes para guiar sua
via.
- O que mais o senhor poderia me falar sobre a vida de
Krisnha?
- Aos 13 anos, o jovem Krishna deixou a companhia da mãe
adotiva e saiu para divulgar sua doutrina por toda a Índia.
Condenava a corrupção do povo e dos príncipes e dizia ter
vindo ao mundo para redimir o homem do pecado original,
para exorcizar os espíritos imundos e restaurar o reino do
bem.
- Em nossas histórias, muitos profetas realizaram curas,
ressuscitaram mortos e fizeram muitos outros prodígios em
nome de Javeh. Krisnha fez algo assim, também?
207
- Sim, ele fez muitas coisas extraordinárias, como
ressuscitar mortos, curar leprosos e aleijados, restituir visão
aos cegos e audição aos surdos.
- Conte-me sobre algum dos milagres registrados sobre vida
dele, por favor, mestre?
- Claro, meu rapaz. Com prazer. Os milagres de Krishna
eram de dois tipos. Primeiramente, para proteger as pessoas
bondosas e, em segundo lugar, para destruir o mal sob todas
as formas existentes. Conta-se que um dia uma senhora
trouxe algumas frutas envoltas em um pano para oferecer a
Krisnha. Ele recebeu e comeu as frutas ofertadas
generosamente pela mulher que era muito pobre. Então, ele
foi dentro da casa e voltou com um punhado de arroz e o
colocou dentro do pano em que a mulher trouxera as frutas.
Ela aceitou os grãos de arroz e partiu. Quando chegou em
casa, espantou-se ao abrir seu pano. Todos os grãos de arroz
tinham se transformado em diamantes brilhantes.
- Foi mesmo uma transformação milagrosa. Qual era a
principal mensagem dele? O que ele pregava?
- Krishna não desejava propagar uma nova religião, mas
simplesmente renovar a já existente, libertando-a de seus
odiosos abusos e impurezas. Ele exigia dos seus discípulos
o amor ao próximo, a dignidade, o auxílio aos pobres, a
prática de boas ações e a fé na infalível misericórdia de
Brahma, o deus supremo. Mandava pagar o mal com o bem,
amar os inimigos e proibia terminantemente a vingança.
Vivia na pobreza e dedicava-se aos desamparados e
oprimidos. Não tinha vínculos pessoais e defendia a
208
castidade, viveu por toda a vida como um peregrino
mendicante.
- Como ele morreu, mestre?
- Está escrito: “Krishna partiu certa vez para uma região
desconhecida e apenas duas de suas discípulas, Saraswati e
Nichdali, o seguiram. Após alguns dias de viagem, elas
questionaram ao mestre do porque daquela viagem. E
Krishna respondeu: É necessário que o filho de Mahadeva
morra atravessado por uma flecha, para que o mundo
acredite em sua palavra. Pediu então que todos orassem
durante sete dias. O semblante de Krishna se transfigurava e
parecia mais radiante. Após o sétimo dia, os arqueiros do rei
Kansa chegaram próximo do Mestre. Eram soldados rudes,
de rosto amarelado e negro. Ao verem a figura estática do
santo, se detiveram. Primeiro o injuriaram, depois lhe
jogaram pedras, mas Ele não saia de sua imobilidade. Logo
os arqueiros se colocaram a distancia e se puseram a atirar
sobre Ele. A primeira flecha que lhe atravessou lhe brotou o
sangue e Krishna exclamou: “Vasichta, os filhos do sol
venceram”. Quando a Segunda flecha vibrou em sua carne,
disse: “Minha mãe radiante, que os que me amam, entrem
comigo em sua luz”. E na terceira disse somente:
“Mahadeva!” (Deus Supremo) E logo, disse: ‘entrego meu
espírito’. O sol havia se escondido, um grande vento se fez,
uma tempestade de neve inundou o Himalaia. O céu se
fechou. Os assassinos fugiram e as duas mulheres caíram
desvanecidas sobre o solo. O corpo de Krishna foi
queimado por seus discípulos na cidade santa de Dwarka.
Saraswati e Nichdali se atiraram na fogueira para unirem-se
a seu dono e Mestre e a multidão acreditou ver o filho de
209
Mahadeva sair das chamas em um corpo cheio de luz,
subindo rumo ao infinito e levando consigo as duas nobres
mulheres que tanto o amavam em vida”.
- Que história interessante, mestre. Nossos sacerdotes nunca
ouviram falar de Krisnha.
- Nós também nunca ouvimos falar de Moisés ou do deus de
vocês, Javeh. Mesmo que ouvíssemos, você acha que
daríamos importância? Cada povo acha que a única
divindade verdadeira é a que eles cultuam. Rejeitam todas
as demais, mesmo que as divindades quase sempre preguem
os mesmos princípios e tenham histórias parecidas.
- Krisnha tinha algum tipo de mandamento? Ele escreveu
alguma lei?
- Não, ele não escreveu, mas seus discípulos o fizeram.
Você poderá encontrar tudo o que foi registrado sobre a
vida dele no Bhagavad-Gita, escrito há mais de 3 mil anos.
Vamos ler juntos o que diz o capítulo XVIII, 64-71.
“E disse o Senhor Krisnha: Escuta de novo, e ouve
Minha última palavra, referente ao maior de todos os
mistérios. Por seres o Meu muito amado, Eu te digo
aquilo que te convém.
Fixa tua mente em Mim; sê Meu devoto; serve-Me;
prostra-te diante de Mim, e desse modo chegarás até
Mim. Esta é a pura verdade, Eu te declaro, pois és
Meu muito amado.
210
Desiste de todas as obrigações religiosas, e toma-Me
como teu único refúgio. Eu te libertarei de todas as
dificuldades. Não te aflijas.
Disto não digas nada ao mundano, nem ao ímpio,
nem ao que não quer ouvir, nem ao que Me maldiz.
Mas quem com sublime devoção divulgar este
Segredo entre Meus devotos chegará até Mim sem
dúvida alguma.
Entre os homens ninguém poderá oferecer-Me
serviço mais grato que este, nem nenhum outro
homem será tão amado por Mim na terra.
E quem meditar neste nosso Santo Colóquio, por
meio dele Me adorará com o sacrifício da Sabedoria.
Tal é a Minha vontade.
E também o homem que, cheio de fé, o escutar tão
só sem malícia, alcançará, livre do mal, o
esplendente mundo dos justos”.
- Isso é muito bonito, mestre. Agora compreendo porque ele
se tornou adorado por tantas pessoas em seu país. Nós
nunca havíamos ouvido falar nele ou em Brahma.
- Eu sei, meu jovem aprendiz. Em outras terras também
existem divindades que nós não conhecemos. Todas
apontam caminhos para o bem, para o amor ao próximo.
Todas indicam a porta para a salvação. Parece que as
divindades querem o mesmo que nós homens queremos. O
211
problema é que, mesmo sabendo o que devemos fazer, não
fazemos e esperamos que os deuses realizem tudo por nós.
Eu acho isso um erro.
- Será que as divindades, como o senhor diz, sabem que se
seguirmos os bons princípios seremos capazes de fazer as
coisas certas?
- As divindades estão dentro de nós, meu jovem... Não estão
lá fora, como muitos pensam. Os avatares, esses homens e
mulheres que trazem uma mensagem do Divino, querem
despertar dentro de nós a sabedoria universal.
- O senhor está dizendo então que Brahma, o Deus Supremo
da sua religião, não existe? Que Krisnha não foi a
encarnação de uma das formas Dele, como diz no livro
sagrado que o senhor me mostrou?
- Brahma, Visnhu, Shiva, Javeh e todos os demais deuses
existentes nas demais religiões parecem ser nomes dados a
esse Grande Espírito que está em toda parte. Nomes, nomes,
apenas nomes. Eu acredito na Inteligência Suprema, não
importa que nome lhe damos e quais são as histórias que
contamos para transmitir os bons ensinamentos às crianças.
Sim, porque são as crianças que precisam ser ensinadas,
para que façam o bem quando estiverem adultas. Uma
criança nasce pura. São os pais e o meio onde ela vive que
fazem com que ela se torne impura, pecadora, como vocês
dizem na religião judaica.
- Então o senhor não acredita que Krisnha realmente
existiu? Foi só uma lenda, uma história para ensinar a
212
bondade, o perdão e as demais virtudes que o senhor me
mostrou nas palavras dele?
- Essa é uma boa pergunta, meu rapaz. Nascer de uma
virgem? Ora, o que poderia ser mais incrível do que isso?
Fazer milagres? Quanto poder, não é? Ser uma das três
manifestações de Brahma, não é o máximo? Então, se
alguém com tamanho poder disser qualquer coisa, não é
melhor obedecermos? Não é bom aceitarmos as orientações
de um avatar tão poderoso como Krisnha? Existirão outros
pelo mundo. Todos terão seguidores e assim o mundo irá
melhorando aos poucos. Não me importa se Krisnha teve
uma vida real ou não. Não existe provas de sua existência,
só o Bhagavad-Gita fala sobre ele.
- E quem escreveu o Bhagavad-Gita?
- Homens como eu e você. Escribas. Homens dotados de
conhecimento e sabedoria. Homens que sabiam que são as
lendas, as histórias que têm o poder de atravessar o corredor
infinito do tempo e chegar a gerações e lugares mais
distantes. Os milagres sempre existirão, independentemente
de quem os faça. Existem os milagres naturais e os que são
produzidos pela inteligência humana. Quer ver? Ou melhor,
quer ouvir? Vou pedir agora mesmo a Krisnha que diga
alguma coisa sobre você. Quero que Ele me diga qual é a
sua missão nessa vida.
E dizendo aquilo o mestre Rajan cruzou as pernas uma
sobre a outra e esticou os dois braços acima da cabeça,
juntando as palmas das mãos suavemente, depois fechou os
213
olhos e começou a produzir um som grave que ecoava por
toda a cabana, provocando-me temor:
- Óummmmmm... óummmmmm.... óummmmmmmm... –
repetiu ele várias vezes e depois se calou.
De repente, eu ouvi uma voz sobre a minha cabeça que
disse:
- João... João... você foi escolhido para ser o emissário das
boas novas ao seu povo. Você será perseguido por muitos,
mas não deve desistir até ver realizado o seu trabalho. Siga
agora para a Ásia Maior e depois volte para a Grécia. Seus
irmãos estarão esperando por você lá.
Senti um arrepio por todo o corpo, ao ouvir aquelas
palavras. Como Krisnha, um deus hindu, poderia saber a
minha missão? As palavras não saiam da boca do mestre
Rajan. Seus lábios não se moviam e a voz não era a dele.
Era uma voz sobrenatural.
Depois que a voz desapareceu o mestre começou a
gargalhar.
- Por que o senhor está rindo, mestre. Está zombando da
profecia que Krisnha acabou de falar. Creio que o senhor,
mesmo estando aí concentrado e de olhos fechados, também
ouviu cada uma palavra que ele disse. Eu nunca ouvi a voz
de Javeh, mas os profetas antigos ouviam. Não sabia que
aqui na Índia os deuses também falam aos sacerdotes.
- O que você ouviu não foi a voz de Krisnha...
214
- Como assim, não existe mais ninguém aqui nessa cabana.
Estamos apenas nós dois. A voz que ouvi foi de alguém
invisível... Eu por acaso estou ficando louco? Ouvi com
meus próprios ouvidos.
- Você ouviu uma voz sim, fique sossegado. Quem falou fui
eu mesmo. Aprendi essa técnica com um antigo mestre
hindu que andava pelo mundo aprendendo novidades.
Chama-se gastromancia ou ventroloquismo.
- É uma forma de magia? Como funciona?
- Você poderá aprender, se quiser. Tem que treinar os
músculos da garganta a produzir sons iguais aos que são
produzidos pela boca. Com um pouco de treino, isso é
possível. Assim, você pode manter os lábios fechados e
falar como se fosse uma outra pessoa.
- Então quer dizer que era assim que os sacerdotes ouviam a
voz de Deus?
- Qual Deus? O deus que seu povo chama-se Javeh. Aqui
chamam-no de Brahma. Já ouvi dizer que na China eles
adoram milhares de deuses também. Cada povo ouve a voz
dos seus desses... ou dos seus representantes. Todas as
religiões possuem sacerdotes, pessoas que mantêm contato
direto com as divindades.
- Então podemos ser facilmente enganados?
- Muitos tem feito isso aqui. Usam seus conhecimentos de
gastromancia para influenciar pessoas, reis e governantes a
215
fazerem a vontade de Deus. Sem esses poderes, eles não
conseguiriam nada. Compreende isso?
- Isso quer dizer que muitos podem usar esse conhecimento
para praticar o mal, não é?
-O melhor seria se só existissem sacerdotes e mestres
evoluídos e do bem. Mas na condição de humanos isso não
é possível. Eles são manipulados e corrompidos pela
ganância, pelo poder e até mesmo pelas riquezas que os reis
lhes oferecem. Recebem proteção deles para controlarem o
povo. Aqui na Índia, temos centenas de castas e grupos
brigando entre si. O que torna complicado para os
governantes controlarem o povo é o fato de existirem vários
deuses e muitos deles possuírem ritos e orientações
contraditórios. Uns dizem que não é bom comer carne de
animais, outros dizem que só boi é o animal sagrado e
muitos, como é o meu caso, seguem o Bramanismo, somos
totalmente vegetarianos. Nós brâmanes não matamos nem
mesmo um mosquito. A justificativa é que nele pode estar
encarnada a alma de uma avó, ou avô. Essa justificativa
pode ser aceita por qualquer criança que reverencia a
memória de uma querida avó. Mas, além disso,
compreendemos que devemos respeitar todas as vidas, pois
cada uma tem o seu propósito. Todas são criaturas divinas e
exercem o seu papel no mundo.
- O mesmo se dá com o grupo dos essênios, na Judéia. Eles
não comem alimentos de origem animal, exceto ovos, leite e
mel, porque não é necessário matar os animais para obtê-
los. Já na nossa religião, é permitido comer carne, salvo de
alguns animais que Javeh nos proibiu comer. Em meu país,
216
ainda existem pessoas que adoram outros deuses e têm
outros costumes, mas os nossos sacerdotes os condenam.
- A ideia de ter um único deus é antiga. O faraó Amenófis
IV, que governou o Egito, há mil e trezentos anos, aboliu
todos os deuses, exigindo que o povo adorasse apenas a
Atón, o Deus Sol Supremo. Essa foi uma maneira
inteligente de unir os povos debaixo de uma mesma lei.
- Estou impressionado, mestre Rajan. Obrigado por seus
ensinamentos. Eu agora estou me sentindo mais livre, mais
capaz de entender as religiões do mundo. Tenho ainda uma
pergunta: quando manifestou a voz de Krisnha, dizendo que
eu tinha uma missão. Isso foi uma adivinhação? O senhor
tem o poder de saber o futuro?
- Claro que não. Tenho bons amigos. Foi o mestre Sri
Bakthi, o mesmo com quem você aprendeu sânscrito, quem
me falou de você. No ano passado, ele esteve me visitando e
falou-me muito de um discípulo especial. Alguém que
deveria vir aqui estudar e aprender comigo para cumprir
uma missão. Ele não foi indicado por seu mestre judeu?
- Sim, é verdade? Foi o mestre Malachai que me indicou
para estudar sânscrito com ele.
- Então é assim, João. As pessoas simplesmente sabem dos
fatos por meio de outras ou fazem deduções sobre eles. Eu
posso dizer que você deve ter entre 20 e 22 anos, estou
certo? Ao ver os seus dentes, vi que você não come carne
nem ingere bebidas fortes. Ao observar o formato do seu
corpo, vi que você se exercita diariamente, então posso tirar
217
conclusões a seu respeito com facilidade, observando-o
cuidadosamente. Essa é uma nova ciência que os sábios
romanos e gregos estão desenvolvendo. Eles acreditam que
chegará um dia em que será possível, por meio de uma
breve conversa, sabermos muita coisa sobre o passado de
uma pessoa.
- Eu gostaria de saber sobre o futuro – disse eu, sorrindo.
- O futuro está sendo construído neste momento, João. No
presente. Faça o que for bom e tenha certeza de que as
chances de você ter um bom futuro são grandes. Faça o mal
e as chances de colher o mal serão grandes também.
- Entendi agora a história de Krisnha. A história dos grãos
de arroz que se transformaram em diamantes. Ela quer dizer
que um ato de bondade e generosidade acabará se
transformando em algo mais valioso depois de algum
tempo.
- Muito bom... muito bom... Você é mesmo o Escolhido! –
Disse o velho ancião, abraçando-me efusivamente. Se a
história apenas mencionasse as palavras de Krisnha, as
pessoas logo esqueceriam. Mas veja o poder do brilho dos
diamantes... arroz transformando-se em joias. Uma coisa tão
simples transformada em algo mil vezes mais valioso – isso
ninguém esquece. A sabedoria de quem escreveu aquele
texto foi essa, a de ocultar um ensinamento dentro de uma
história. Desse modo, mesmo tendo sido escrita há mais de
mil anos, chegou hoje até nós, sem grandes mudanças no
texto original. A simplicidade da história e seus elementos
são fáceis de serem memorizados. Assim, em qualquer
218
tempo, mesmo depois de mil, dois mil ou dez mil anos as
pessoas que a ouvirem poderão tirar algum proveito dela.
Confesso que, depois daquela conversa com o velho mestre
hindu, minha mente começou a fervilhar com milhões de
ideias, histórias e ensinamentos que poderiam ser entregues
ao nosso povo ou quem sabe a todos os povos do mundo
para que mudassem o modo de pensar e agir. Será que seria
essa a minha missão de que tanto falavam?
Chegou o dia de me despedir dos meus irmãos indianos e
partir para a Ásia Maior, onde deveria ficar alguns meses
aprendendo com os mestres chineses, para depois seguir
para a Grécia e de lá retornar para Alexandria. Eu estava
ansioso para voltar pra casa, onde o mestre Malachai
esperava por mim para finalmente me revelar a missão que
se tornara obsessão de minha vida, desde o dia em que o
mestre Abner me levara para conhecer a comunidade dos
essênios.
Cheguei em Loyang, capital da província de Ch´u, na
China, em pleno verão. O calor era intenso e eu tinha
dificuldade para andar com roupas típicas da Judeia. Adotei
os trajes do local que consistia em uma peça de tecido
enrolada entre as pernas e amarrada na cintura e nada mais.
Sentia-me mais leve com aquela roupa.
Nunca imaginei que existisse tanta gente em um só lugar.
Aquela deveria ser uma das maiores cidades do mundo.
Diferentemente dos indianos que tinha a pele escura, como
a de muitos que vinham de países vizinhos ao Egito, os
chineses tinham a pele amarelada e os olhos em formato de
219
amêndoas. Tinham a aparência de que estavam sempre
sorrindo.
Quem me guiou até o mosteiro de Loyang foi um discípulo
de mestre Rajan que falava o mandarin, língua que eu
também havia começado a aprender. Ficaria ali por um ano
e depois seguiria para a Grécia.
O monge taoísta que me hospedou era muito reverente e
sempre sorridente. Tratou-me como a um filho e eu seria
aceito pelo grupo como irmão depois de cumprir três
condições:
A primeira que eu raspasse totalmente o meu cabelo, barba
e bigode, pois só os mestres tinham permissão para usá-las e
não havia nenhum mestre com menos de 50 anos naquele
mosteiro.
A segunda era que eu executasse todas as atividades com os
demais monges, que consistiam em: exercícios de artes
marciais, também chamada de Tai Chi Chuan, leitura e
meditação diária do Livro Sagrado “Tao Te Ching” ou o
Livro do Caminho e da Virtude, deixado pelo profeta Lao-
Tsé; preparação das refeições; corte de lenha para abastecer
os fornos; cultivo do solo e lavagem das roupas de uso
pessoal, incluindo toalhas, cobertores e mantas. Todos se
revezavam nessas atividades.
A terceira era: sempre que eu tivesse qualquer dúvida, sobre
qualquer coisa, que perguntasse aos irmãos mais velhos e,
se eles não soubessem, perguntaria ao mestre Chen Tuang.
220
Aceitei de bom grado aquela nova vida e, por muitos meses,
vi-me mergulhado em um mundo absolutamente fascinante.
Tínhamos jogos e lutas quase todos os dias e com isso meu
corpo foi ficando mais e mais resistente. Minha mente
também foi ficando mais lúcida e atenta. Eu percebi que
meus reflexos, meus sentidos e minha disposição para a
leitura haviam aumentado. Fui ensinado a experimentar os
alimentos sem pressa e mastigá-los bastante, antes de
engolir. Fui ensinado a sentir o aroma das frutas e dos
vegetais dos quais me alimentava, mesmo antes de serem
colhidos.
Quando sentávamos para ouvir o mestre Chen, aprendíamos
muito, em pouco tempo. Ele falava calma e serenamente,
como um riacho de águas cristalinas que escorre sem pressa
sobre as pedras lisas e alcançava as nossas almas sedentas.
- O Tao nos ensina a serenidade, a não ação (wu-wei), o
vazio, a moderação dos desejos, a simplicidade, a
espontaneidade, a contemplação da natureza e os Três
Tesouros: compaixão, moderação e humildade. Todos que
desenvolvem essas virtudes entram em harmonia com o Tao
e vão viver longas e frutíferas vidas. Já os ímpios e seus
descendentes vão sofrer e terão suas vidas encurtadas.
Nessas horas eu me enchia de dúvidas e foi quando
perguntei:
- Mestre, o que é o Tao? É uma forma de Deus?
Todos riram, inclusive o mestre.
221
Ele, pacientemente, respondeu:
- Se nós que estamos estudando o Tao por mais de mil anos
ainda não sabemos direito o que ele é, como você, que
acabou de chegar, vai querer conhece-lo? O Tao não é um
deus. Nós não temos aqui um deus. O nosso modo de viver
busca apenas a harmonia com tudo o que há. Busca o
equilibro pelo sentir e pela pratica de boas ações. Nossos
atos nos conduzirão ao Tao que também pode ser visto
como a perfeição, a sabedoria suprema, o amor supremo, a
inteligência suprema.
- Sei que esse livro TaoTe Ching foi escrito pelo mestre
Lao-Tsé. O senhor poderia me falar um pouco sobre ele?
- Eu não falarei, mas pedirei a Wu Li, seu irmão mais velho,
que nos conte. Por favor, Wu Li, fale-nos sobre o mestre
Lao-Tsé.
O jovem levantou-se, fez uma reverência ao mestre e voltou
a se sentar com as pernas cruzadas, de maneira muito
parecida com a que o mestre hindu Rajan fazia. De forma
serena, o futuro mestre do mosteiro contou o que todos já
sabiam, exceto eu.
- Lao Tse nasceu na província de Na Hue, na cidade de Guo
Yang, no 25º dia da segunda lua do ano Ken-Tzen, da era
Wu-Tin, há mais de mil anos. Seu pai seria um famoso
alquimista da dinastia San, que viveu por mais de cem anos.
Sua mãe e mestra o teria concebido ao engolir uma pérola
de luz e sua gestação teria demorado 81 anos. "Lao Tse
nasceu do lado esquerdo das costelas da sagrada mãe, no
222
jardim da família, sob uma árvore de nome Li (ameixeira),
com cabelos brancos e orelhas grandes. Por isso, recebeu o
nome de Lao Tse (filho velho) e Li Er (orelha grande da
ameixeira). A união das palavras chinesas para 'velho' e
'criança' em seu nome justificam seu título de 'Senhor do
Fim e do Princípio'.
- Quais foram os principais ensinamentos do mestre Lao
Tsé, irmão Wu?
- Foram muitos. Ele, além do Tao Te Ching, também nos
deixou o Tratado Maravilhoso do Princípio Solar do
Tesouro do Espírito (Ling Bao Yuan Yang Miao Ching) que
contém milhares de ensinamentos em pequenas frases. Vou
recitar algumas das quais mais gosto: “Se deres um peixe a
um homem faminto, vais alimentá-lo por um dia, se o
ensinares a pescar, vais alimentá-lo toda a vida”; “O rio
atinge seus objetivos porque aprendeu a contornar
obstáculos”; “Pagai o mal com o bem, porque o amor é
vitorioso no ataque e invulnerável na defesa”; “Conhecer os
outros é inteligência, conhecer-se a si próprio é verdadeira
sabedoria”; “Controlar os outros é força, controlar-se a si
próprio é verdadeiro poder”; “O sábio não se exibe, por isso
brilha. Ele não se faz notar, por isso é notado. Ele não se
elogia, por isso tem mérito. E, porque não está competindo,
ninguém no mundo pode competir com ele”; “O homem
correto age por uma lei interna, não por mandamentos
externos”; “Amar não é apoderar-se do outro para
completar-se, mas dar-se ao outro para completá-lo”;
“Quem se contenta com o necessário vive numa paz
223
imperturbável”; “É fácil apagar as pegadas, difícil, porém, é
caminhar sem pisar o chão”; “Para alcançar o
conhecimento, acrescente coisas todos os dias. Para
alcançar a sabedoria, remova coisas todos os dias”; “Não
podemos exigir que os outros sejam como queremos, pois
nem nós o somos”; “O homem sábio rejeita o excesso,
rejeita a prodigalidade, rejeita a grandeza”.
Foram horas e horas em que o irmão Wu recitou centenas
de frases de Lao Tsé, muitas me caíram profundamente no
coração. Se aquele homem não era um profeta de Deus,
ninguém mais o seria. As suas palavras eram mansas e
contradiziam a dureza das palavras de Javeh que era
impiedoso com os inimigos. Eu me tornara assim, pois tinha
aprendido a pagar o mal com o mal, a matar os inimigos
sem piedade, sob as bençãos de Javeh, seguindo seus
conselhos. Diante das palavras de Lao Tsé, senti meu ódio
pelos romanos e por todos os inimigos do meu povo
evaporar-se como uma bruma. Eu queria saber mais sobre
aquele sábio chinês.
- Como foi a vida do mestre Lao, irmão Wu? Você poderia
me contar?
- Ao 13 anos, por ser extremamente inteligente e culto, ele
foi convidado pelo rei Wen para ser o responsável pela
biblioteca real e assumiu o cargo de historiador real até o
19º dia, da quinta lua, do 25º ano, da era do rei Zhao, ano
em que "iniciou sua grande viagem para o ocidente, com
intuito de chegar aos reinos além mar. Durante a viagem,
224
permaneceu algum tempo na fronteira de Yü Men e aceitou
o oficial-chefe da fronteira como discípulo. Ditou-lhe vários
escritos, entre eles o Tao Te Ching". Depois de ensinar por
muitos anos, andando de cidade em cidade, teve sua
ascensão no deserto de Gobi, durante a qual emanou raios
de luz em cinco cores, quando se transformou em um corpo
de luz dourada e desapareceu no céu.
- Isso quer dizer que o corpo de Lao-Tsé nunca foi
encontrado? – indaguei surpreso.
- Não, nunca foi.
- Isso é uma lenda, mestre Chen? – voltei-me para o monge.
- Não importa, meu jovem aprendiz. A forma como ele
viveu, o que ele ensinou e a sua obra falam mais do que as
lendas que cercam o seu nome. Um homem que decide
dedicar a vida a ensinar e ajudar aos outros fica mais
famoso depois de sua morte. Na verdade, os nossos
estudiosos descobriram que foi o próprio Lao Tsé que
instruiu aos seus discípulos a contarem essa história do seu
desaparecimento para que as demais pessoas não
começassem a lhe render culto ou homenagens. Ele sabia
que muitos iriam fazer peregrinações ao seu túmulo e, para
evitar isso, preferiu ser cremado. Uma tradição que até hoje
nós seguimos. Melhor assim, você não acha?
Concordei. Era sim uma forma inteligente de evitar que,
depois de morto, as pessoas o idolatrassem mais do que às
suas palavras. Lembrei-me do profeta Elias que fora
arrebatado em uma carruagem de fogo. Agora eu podia
227
Capítulo X - A Proximidade da Morte
Vi um turbilhão de luzes de todas as cores, acompanhado de
zumbidos que formavam sons desconexos aos meus
ouvidos. Minhas pálpebras estavam pesadas e, por mais que
eu tentasse abrir os olhos, era impossível. Minha cabeça
latejava e, na base da minha nuca, eu sentia uma dor
extrema. Sentia como se meus membros estivessem sendo
arrancados do meu corpo por monstros e demônios com
garras afiadas e olhos de fogo. Havia murmúrio de vozes,
mas eu não conseguia distinguir o que diziam. Tentava
mover as mãos, os braços e as pernas mas não os sentia, não
obedeciam ao meu comando. As luzes iam e vinha e a dor
parecia aumentar. Queria que aquilo acabasse. Queira fugir
dali. Lembrei-me, aterrorizado, de que aquilo deveria ser o
inferno. Sim, eu deveria estar morto e adentrando os
umbrais do inferno descrito pelos profetas. Eu estava sendo
punido por meu pecado mortal. Tinha me afastado das
Sagradas Escrituras, indo para outras terras em busca de
conhecimento e sabedoria, desprezando a verdade que já
conhecia e que me fora dada por meus pais. Sim, aquilo era
Javeh me punindo, como fez a Jó, deixando Satanás enchê-
lo de doenças e impondo-o à extrema miséria. Eu estava
recebendo uma punição. Tentei gritar, chamar por socorro,
mas nenhuma palavra saiu da minha garganta. Aquilo
deveria ser a morte e o inferno. Eu queria viver. Se
escapasse daquele tormento, abandonaria tudo e voltaria
para a segurança da minha sinagoga, teria uma vida
dedicada a servir ao Senhor e esqueceria o resto do mundo.
Nada mais me interessaria. Nem filosofias, nem deuses
228
estranhos, nem modos diferentes dos meus. Eu fora
advertido pelos sacerdotes no templo. Meus pais haviam me
falado sobre os perigos de se afastar dos ensinamentos da
Lei. Eu violara e profanara os mandamentos. Estava com a
alma corrompida pelas falsas religiões do mundo. Lutei
contra os demônios que queriam a minha alma e, num
esforço supremo, clamei por misericórdia a Javeh. Só ele
poderia me salvar.
- João... João... – comecei a ouvir uma voz vinda de muito
longe.
Em seguida, ouvi passos e outras vozes se misturaram
àquela que me chamava. Agora conseguia distinguir o som
e me dei conta de que ainda estava na China. Não sabia o
que tinha acontecido comigo, pois eu de nada me lembrava
a não ser da tarde em que estava sentado com meus irmãos
no mosteiro ouvindo o irmão Wu falar sobre a vida de Lao
Tsé. Não me lembro de mais nada. Agora estava em outro
lugar e não deveria estar bem de saúde, porque o meu corpo
ardia em febre.
- Acorde irmão... acorde. Tome mais um pouco desse chá –
disse a voz suave do mestre Chen.
Aos poucos, fui abrindo os olhos, com extremo esforço, e vi
formar-se em minha frente dezenas de olhos pequeninos
sorridentes. Procurei apalpar meu bracelete de prata, do qual
jamais me separava, presente de meu pai. Se ele estava lá,
então eu ainda estava vivo. Não poderia ter levado para
outro mundo qualquer pertence.
229
Tomei, com dificuldade, o chá que o mestre me oferecia,
segurando a xícara de porcelana contra meus lábios.
- O que aconteceu? Eu não me lembro de nada... – indaguei
- Você desmaiou, João. Enquanto estávamos falando sobre a
vida de Lao Tsé, você repentinamente desmaiou e caiu para
o lado, começando a se debater, ardendo em febre. Nós o
trouxemos para a sala de tratamento e os mestres da artes
curativas foram chamados para te ajudar. Disseram que
você provavelmente foi picado por algum mosquito e seu
sangue estava infectado. Muitos de nós já passaram por
isso. A maioria sobreviveu e, ao que tudo indica, você
também sobreviverá. Deverá ficar em repouso por mais
alguns dias
Agradeci com um sorriso. Lembrei-me que, de fato, dias
antes, eu tinha sentido o corpo quente, seguido de um forte
desarranjo intestinal e um leve sangramento nas gengivas.
Tinha atribuído tais sintomas ao consumo de algumas frutas
desconhecidas que havia ingerido. Não falei a ninguém
sobre esses sintomas, contrariando inclusive as
recomendações do mestre Chen quando cheguei de que
deveria comunicar imediatamente qualquer problema de
saúde que eu tivesse. Ele disse, na ocasião, que uma doença
no começo é fácil de ser tratada e eliminada, mas, se
demorar muito, poderá espalhar-se por todo o corpo e matar
o indivíduo. Naquele dia, a doença que me veio à mente foi
a corja romana que estava adoecendo e matando o meu
povo. Primeiro foram os egípcios. Mas Moisés, orientado
por Javeh, tirou o povo do Egito e o levou para a Terra
Santa. Agora enfrentávamos os romanos que invadiram
230
nossas terras e queriam dominar o resto do mundo.
Lembrei-me da missão de que os mestres tanto me haviam
falado. Eu estava ali para aprender, para conhecer, para me
fortalecer e, ao final, realizar algo que mudaria para sempre
aquela situação difícil em que meu povo se encontrava.
Os dias se passaram, lentos e aborrecidos. Só não foram
piores, porque meus irmãos monges estavam todo o tempo
ao meu lado, cuidando de mim, mesmo para realizar as
atividades mais básicas, como tomar banho e fazer as
demais necessidades fisiológicas.
Compreendi, ao fim de algum tempo, que não fora um
castigo como eu havia pensado. Na verdade, entendi que
todos os homens poderão sofrer algum tipo de enfermidade
e nem por isso estão sendo punidos por algum pecado e que
os pais e os sacerdotes imputam tais ocorrências ao pecado
para evitar que cometamos algum outro erro e nos dizem
que, se não os obedecermos, sentiremos aquelas dores outra
vez. O medo nos faz obedecer as Leis. Falei sobre isso com
o mestre Chen, por ocasião de uma das visitas que ele me
fez.
- Todas as religiões e crenças são baseadas no medo ou no
desejo?
- Sim, são. Não há uma única que não use algum tipo de
punição ou recompensa para fazer com que seus seguidores
a aceitem e pratiquem os ensinamentos.
- Isso quer dizer que a caracterização do que é céu ou
inferno depende de cada religião?
231
- Exatamente isso. Veja, por exemplo, que Lao Tsé nunca
falou em céu ou inferno, mas falou do Bem e do Mal, como
duas forças que se opõem. Falou do Yin e Yang que
explicam a dualidade de tudo que existe no universo. São
essas duas forças fundamentais, opostas e complementares,
que se encontram em todas as coisas: o yin é o princípio
feminino, a água, a passividade, escuridão e absorção. O
yang é o princípio masculino, o fogo, a luz e atividade.
Quando uma ocorre em excesso, faz-se necessário a
intervenção da outra para manter o equilíbrio. As duas
forças existem nas mesmas proporções no universo. Para
vivermos com saúde, paz e harmonia, precisamos buscar
sempre o equilíbrio.
- Outro dia, quando andava com meus irmãos por uma
floresta, vi um grupo de monges que se dirigia para um
mosteiro. Vestiam mantos amarelos. Disseram-me que eles
seguem um outro líder espiritual chamado Buda. Quem foi
ele? Também foi um sábio chinês como Lao Tsé?
- Não, meu irmão. Muitas pessoas também pensam que
Buda era chinês, mas ele era indiano. Existem muitos livros
escritos por seus discípulos. Os ensinamentos dele se
parecem muito com os nossos, do Taoísmo.
- Conte-me um pouco sobre ele, mestre Chen, gostaria de
saber mais.
- Você poderá ler sobre ele aqui mesmo no nosso mosteiro.
Depois mostrarei a você alguns dos textos budistas que
compõem o acervo de nossa biblioteca. Aqui temos cópias
de quase todos os livros sagrados. Na verdade, todos os
232
livros cujo conteúdo é voltado para propiciar melhora da
nossa vida devem ser considerados como sagrados. Um dia
você poderá escrever livros sagrados, se continuar nesse
caminho.
Sorri desconcertado. Quem era eu para escrever livros
sagrados? Não tinha um décimo dos conhecimentos dos
meus mestres, nem dos avatares como Krisnha, Lao Tsé e
tantos outros que eu ainda queria conhecer. Embora eu
gostasse de escrever histórias, meus escritos ainda careciam
de estarem apoiados em conhecimento e sabedoria.
Precisariam ter força e poder de transmitir novas ideias a
quem os lesse.
Continuando a resposta aos meus questionamentos, o
Mestre Chen falou-me um pouco do que sabia sobre o
budismo.
- Há 560 anos, o rei da Índia, Suddhodanateve, teve um
filho a quem deu o nome de Sidharta Gautama. Logo após o
nascimento do menino, um astrólogo profetizou que o
príncipe Sidarta não iria se tornar rei e que renunciaria ao
mundo material para se tornar monge peregrino, caso ele
saísse dos portões do palácio real. Ora, o rei Suddhodana só
tinha aquele filho e queria que ele fosse seu sucessor.
Assim, fez de tudo para manter o filho dentro do palácio, o
qual era rodeado por vilas e outros castelos. Mas, apesar
dos esforços de seu pai, aos 29 anos, Sidharta, levado pela
curiosidade para conhecer o mundo exterior, saiu do palácio
e misturou-se ao povo, às pessoas comuns. Foi assim que
ele viu pela primeira vez o sofrimento dos que viviam fora
do palácio. Aquela constatação mudou o modo de viver do
233
rapaz que decidiu abandonar a opulência do palácio e ir em
busca de uma vida espiritual, vivendo como um monge
peregrino, conforme havia sido profetizado. Depois de
peregrinar por muitos anos, ele decidiu sentar-se debaixo de
uma árvore chamada figueira-dos-pagodes e só sair de lá
depois que atingisse a iluminação. Aos 33 anos, ele a
alcançou e se tornou Buda, que significa “o iluminado”.
- Iluminação? O que significa isso?
- É um estado em que a pessoa alcança a perfeita sanidade,
desperta-se para a verdadeira natureza do universo. Após
chegar a esse estágio, a pessoa se liberta do círculo do
Samsara, que é composto de: nascimento, sofrimento, morte
e renascimento.
- Nascimento, sofrimento, morte e renascimento... E como
uma pessoa poderá se libertar desse ciclo, de acordo com o
Budismo?
- Seguindo as tradições e práticas do Budismo, que são as
Três Joias: O Buda (como seu mestre), o Dharma
(ensinamentos baseados nas leis do universo) e a Sangha a
comunidade budista, que são os demais irmãos adeptos aos
princípios. Outras práticas podem incluir a renúncia a uma
vida normal, como casar, ter filhos, ter propriedades, para se
tornar um monge.
- Ele tinha poderes especiais, realizou algum milagre?
- Sim, existem centenas de histórias sobre os poderes
sobrenaturais de Buda. Conta-se que ele andou sobre as
234
águas, ressuscitou mortos, profetizou, podia ler os
pensamentos e realizou muitas curas. Ele dizia que muitos
poderes especiais poderiam ser desenvolvidos por meio do
treinamento da mente humana. Porém, aconselhou aos seus
discípulos a não exercitarem tais poderes para converter as
pessoas aos seus ensinamentos. Ele dizia que tais prodígios
poderiam atrair seguidores com interesse em se beneficiar
desse poder, mas sem abraçar a Verdade, sem mudar seu
modo de viver. Ficariam dependentes dos milagres, em vez
de buscarem a purificação espiritual pela prática do bem e
do amor ao próximo.
- Essas histórias sobre Buda são reais, mestre Chen? Elas de
fato aconteceram? Existem provas, documentos que atestam
sua veracidade?
- Existem relatos apenas. Os discípulos de Buda escreveram
e disseram que aconteceram. Não sabemos, no entanto, se
foram escritas enquanto Buda ainda estava vivo e se ele
aprovou o que escreveram sobre ele. Tenho quase certeza de
que, nem ele, nem Lao Tsé, aprovariam todas as histórias
contadas sobre suas vidas. Surgirão outros sábios, avatares,
homens santos e profetas que morrerão sem saber o que
escreverão sobre eles. O importante, no entanto, é que o
modo de viver e as parábolas contadas por Buda estão
cheias de ensinos preciosos.
- O senhor poderia me citar algumas das palavras mais
importantes do Buda, para que eu tenha uma ideia mais
clara sobre seus ensinamentos? Para que eu possa
acrescentar algo em minha vida?
235
- Claro, meu filho. Eu segui o Budismo durante muitos
anos, mas, como não gosto de certos rituais, acabei
conhecendo o Taoísmo que é mais recente que o budismo e
me converti de corpo e alma. Sinto-me bem com ele. Buda
ensinou: “Busca a iluminação e o resto te será dado por
acréscimo”. Certa vez, um homem disse a Buda: Eu quero
felicidade. Buda respondeu: Primeiro retire o Eu, que é seu
ego; depois retire o Quero, que é seu desejo. Pronto, agora
você é deixado com a felicidade. Também disse aos seus
discípulos que para alcançarem a iluminação deveriam
percorrer os 8 caminhos:
1º - Visão Correta.
É ver de acordo com realidade de que existe o
sofrimento, a sua causa, o seu fim e o caminho que
conduz a esse fim.
2º - Pensamento Correto.
Pensamento livre de sensualidade, de má vontade e
de crueldade.
3º - Linguagem Correta.
Linguagem livre de engano, insulto, malícia e
estupidez.
4º - Ação Correta.
Ação livre de assassinato, roubo, adultério, mentira e
entorpecentes.
5º - Vida Correta.
Quando o discípulo evita um comércio perverso
(adivinhação, usura, armas, seres vivos, carne,
236
entorpecentes e venenos) e ganha a vida por meios
retos e honoráveis.
6° - Esforço Correto.
Com o esforço correto, impedem-se os pensamentos
negativos e desenvolvem-se os positivos.
7º - Atenção Correta.
Quando o devoto vive atento e sabe que o corpo, os
sentimentos, a mente e os pensamentos são
passageiros e estão submetidos à decadência.
8º - Concentração Correta.
É a focalização da mente mediante a realização de
exercícios respiratórios e meditações especiais.
- Tudo isso parece formidável, mestre Chen.
- Você gostou, não foi? Pois vou te dar de presente a cópia
de um pergaminho que eu mesmo fiz, contendo as frases de
Buda de que mais gostei, quem sabe você um dia poderá vir
a usá-las em seus escritos? Sei que você é um escriba de
grande valor, precisará alimentar seu coração e sua mente
com pérolas preciosas.
O mestre Chen trouxe, dias depois, um precioso
pergaminho que eu li incontáveis vezes, até memorizar cada
palavra. Mesmo hoje, depois de tantos anos, sou capaz de
recitá-los sem mudar uma única vírgula, como se estivesse
lendo aquele precioso livro.
Eis algumas palavras de Buda:
237
“Somos o que pensamos. Tudo o que somos
surge com nossos pensamentos. Com nossos
pensamentos, fazemos o nosso mundo.
É capaz quem pensa que é capaz.
Guardar raiva é como segurar um carvão em
brasa com a intenção de atirá-lo em alguém; é
você que se queima.
A paz vem de dentro de você mesmo. Não a
procure à sua volta.
O segredo da saúde, mental e corporal, está em
não se lamentar pelo passado, não se
preocupar com o futuro, nem se adiantar aos
problemas, mas, viver sabia e seriamente o
presente.
Feliz aqueles cujo conhecimento é livre de
ilusões e superstições.
Jamais, em todo o mundo, o ódio acabou com
o ódio; o que acaba com o ódio é o amor.
Três coisas não podem ser escondidos por
muito tempo: o sol, a lua e a verdade.
Projetistas fazem canais, arqueiros preparam
flechas, artífices modelam a madeira e o
barro,
o homem sábio modela-se a si mesmo.
238
Viva na alegria, no amor, mesmo entre os que
odeiam.
Viva na alegria, na saúde, mesmo entre os
angustiados.
Viva na alegria, na paz, mesmo entre os
atormentados.
Olhe para dentro de você, fique calmo.
Livre-se do medo e do apego, conheça a doce
alegria do caminho.
A causa de todo sofrimento humano está no
desejo e no apego.
O que você pensa você cria, o que você sente,
você atrai, o que você acredita torna-se
realidade.
Feliz aquele que vence o egoísmo, alcança a
paz, encontra a verdade. A verdade liberta-nos
do mal; não há no mundo libertador igual.
Confia na verdade, mesmo que não sejais
capazes de compreendê-la, mesmo que no
começo vos pareça amarga a sua doçura.
Seja como o sândalo que perfuma o machado
que o fere”.
Quando eu estava no navio que me conduziria à Grécia,
senti um desejo de voltar para aquele convívio fraterno com
meus irmãos chineses. Quando me despedi deles, todos me
abraçaram e eu, que nunca havia visto um monge chorando,
239
vi que a maioria deles disfarçava com o sorriso o esforço
supremo para conter as lágrimas. Eu me comportei diferente
e chorei como uma criança quando se afasta da mãe. Ali,
uma vez mais, descobri que se pode ter família de verdade
em toda parte. Pais, mães e irmãos eram todos aqueles que
cuidavam de nós, se importavam conosco e nos davam
apoio, orientação, proteção e sobretudo amor. Eu fora muito
amado naquele mosteiro, assim como nos demais lugares
por onde já havia estado. Minha casa agora era o mundo.
Meus irmãos agora não seriam mais os meus compatriotas
judeus. Seriam todos os homens e mulheres do mundo. Até
os romanos. Sim, até eles seriam meus irmãos, se isso fosse
possível.
A viagem de 3 meses foi extenuante e turbulenta. Durante
quase um ano de peregrinação, fui guiado por homens
experientes, os quais me conduziram por montanhas
íngremes, pradarias verdejantes, escarpas geladas ou
pântanos traiçoeiros. Perdi alguns dos meus companheiros e
ganhei outros. Os acidentes fazem parte da vida humana. Eu
estava me habituando a eles. É incrível como durante uma
viagem o viajante pode aprender muito, em pouco tempo.
Fosse como fosse, a própria viagem era uma aprendizagem.
Conheci ainda mais a natureza humana, suas fraquezas, seus
medos e suas esperanças. Nesse processo, eu também me
redescobri.
Quando alcançamos, por terra, o Mar da Arábia, seguimos
em um grande navio rumo ao Mediterrâneo, passando pelo
caudaloso Nilo, que nele desembocava, e seguimos direto
para Grécia. Nossa embarcação, por pouco, não se chocou
contra os recifes que circundam as incontáveis ilhas
240
cercadas de águas verdes-esmeralda, traiçoeiras, capazes de
afundar a mais poderosa embarcação por um único descuido
de um navegador despreparado. Milhares de viajantes
pereceram ali naquele mar e foi por milagre que os
destroços do nosso navio não ficaram espalhados pela ilha
de Mikono, logo na entrada do Mar Egeu.
Finalmente, numa bela manhã de sol, adentramos o porto de
Atenas. Que visão magnífica eu tive daquela cidade. Cheio
de curiosidade, perguntei a um dos meus guias sobre o que
era aquele gigantesco edifício de colunas brancas no mais
alto penhasco circundado pela cidade.
- Aquele é o Partenon, um suntuoso templo construído em
honra à deusa Atena. É todo feito em mármore e ornado
com esculturas de Fídias, por determinação de Péricles.
- Deusa Atena? Então aqui eles também adoram a deusas,
como na Índia, que adoram a deusa Ganga?
- Sim, os gregos possuem doze deuses olímpicos, sendo que
alguns são do sexo feminino. Atenas também é conhecida
como Palas Atena. É a deusa da guerra, da civilização, da
sabedoria, da estratégia, das artes, da justiça e da habilidade.
Eu não sou a melhor pessoa para te falar sobre ela. Quem
provavelmente poderá tirar todas as suas dúvidas é o
sacerdote Dardanus. Assim que desembarcarmos, ele nos
receberá no porto e meu trabalho estará encerrado.
- Só mais uma pergunta – indaguei, cheio de ansiedade - por
acaso, os gregos possuem um deus maior? ou todos são
iguais?
241
- Temos um supremo e seu o nome é Zeus. Atena seria fruto
da união da deusa Métis e Zeus. Métis é a deusa da
prudência e do bom conselho e a mais sábia dos imortais,
foi a primeira esposa de Zeus, o rei dos deuses.
- Que interessante isso, parece que esses deuses gregos
vivem de modo parecido com os humanos, têm filhos,
esposas. Será que têm netos? Em minha religião, Deus não
tem esposa, deve ser por isso que ele é tão mal humorado –
disse eu, sorrindo, ao guia que tinha viajado comigo durante
toda a expedição, desde que saímos da China com outros
seis companheiros.
Eu poderia estar brincando, mas durante aquela viagem pelo
mundo e pelos livros chamados de sagrados, adotados por
milhões de pessoas em países tão diferentes do meu, estive
refletindo a necessidade de Javeh ter uma mãe, um filho ou
filha. Dessa forma, nos sentiríamos mais próximos Dele.
Lembrava de como era mais fácil pedir alguma coisa ao
meu pai por meio de minha mãe. Do mesmo modo, meus
irmãos sempre conseguiam algo de meu pai através de mim,
que era o primogênito e por todos conhecido como o
predileto. Eu estava cheio de perguntas para fazer ao meu
novo mestre, com o qual poderia aprender tudo sobre os
deuses gregos, seus poderes e suas influências na vida sobre
a Terra.
O ancião de baixa estatura, pele bronzeada e rosto
arredondado me recebeu com amabilidade, quando
descemos da embarcação no tumultuado porto de Atenas,
que parecia em muito com o de Alexandria.
242
- Então é você o João da Judeia, o discípulo de meu irmão
Malachai? Estou a três semanas esperando por você. Tenho
vindo a este porto sempre que vejo uma grande embarcação
com bandeira da Índia ou da China aportando.
- Como o senhor sabia que eu estava chegando? – indaguei,
curioso.
- Meu irmão Malachai me envia cartas todos os meses e, de
acordo com os cálculos dele, depois que você partisse da
China, se não tivesse nenhum transtorno, chegaria aqui no
começo deste mês. Você está atrasado em três semanas.
Expliquei o que nos acontecera e seguimos por ruas muito
limpas, feitas de pedra branca e lisa; praças amplas;
edifícios colossais, com colunas feitas de mármore, até
chegarmos ao local onde mestre Dardanus vivia no alto de
um encosta.
- Como me reconheceu, mestre Dardanus? Acho que nem
mesmo o seu irmão seria capaz de me reconhecer
atualmente, pois já faz muitos anos que não nos vemos,
desde que parti de Alexandria.
- Todos que vêm esse bracelete de prata no seu braço
direito, reconhecem imediatamente a sua origem. Não
existem dois iguais a esse em nenhuma outra parte, você
sabia?
Eu não sabia. De fato, notara que todos os mestres e pessoas
que me ajudaram durante a minha jornada pelo mundo
olhavam com certa admiração para o meu bracelete, mas
243
ninguém havia me perguntado como eu o conseguira.
Apenas o mestre indiano Rajan me pediu para ler o que
estava escrito e depois sorriu. Não lhe perguntei a razão do
sorriso, pois achei que ele achava que eu sabia. Mas não
sabia. Deveria ter lhe perguntado. Talvez fosse o momento
de saber mais sobre aquele bracelete.
- O senhor conhece esse bracelete?
- Claro, ele possui alguns mantras sagrados e uma
mensagem bem clara para todos os conhecedores dos
hieróglifos zodiacais dos caldeus que habitavam a região de
Ur, na Mesopotâmia.
Eu já tinha lido alguma coisa sobre astrologia e a origem
dos signos, mas nunca dera muita importância a eles. O
mestre Dardanus pediu-me para retirar o bracelete e colocar
em suas mãos.
O ancião segurou a peça com delicadeza e deslizou os dedos
sobre os desenhos.
- Veja aqui, bem no centro dos desenhos, esse dois arcos de
costas uma para o outro cortados por uma seta. Sabe o que
significa?
- Julguei que era uma escrita em alguma língua antiga e
desconhecida. O que significa?
- É o símbolo de Peixes ou Piscis, o décimo segundo e
último signo astrológico do zodíaco, situado entre Aquárius
244
e Aires. Você certamente já ouviu falar das constelações,
não já?
- Sim, são estrelas que juntas formam desenhos no céu. Os
antigos caldeus fizeram 12 desenhos com esses grupos de
estrelas e verificou que todos eles eram regidos pelo grande
astro-rei, o Sol, e obedeciam ao seu comando.
- Exatamente, na história do nosso povo grego, há muitas
lendas falando sobre os nossos deuses. Muitos usam
medalhões, braceletes e pulseiras com a representação de
Peixes. Conta a lenda que a deusa Afrodite, que os romanos
chamam de Vênus, e seu filho Eros, chamado de Cupido
pelos romanos, estavam sentados às margens do Rio
Eufrates, quando apareceu Tifão, o deus dos ventos fortes
para destruí-los. Vênus e seu filho se jogaram no rio,
mudando suas formas para peixes. Por esse motivo, os
povos daquela região pararam de comer peixes, com medo
de perder a proteção dos deuses ou de capturar os próprios
deuses. Em sinal de respeito, usam esse símbolo que está
em seu bracelete. Existem mais coisas escritas aqui.
- Eu não sabia, mestre. Pode me dizer o que é?
- Sim, consigo ver que está escrito de forma simbólica a
seguinte frase: “o portador deste bracelete deverá ser
recebido em meu nome e a ele deverá ser prestado todo tipo
de ajuda necessária, para que sejam satisfeitas as suas
necessidades”.
245
Fiquei surpreso. Então aquele bracelete que meu pai
me dera era mais que um presente, era um salvo conduto
para que eu fosse aceito e recebesse ajuda.
- Mas quem teria tal poder no mundo para pedir ou mesmo
exigir tal coisa para outrem?
- O Sumo-sacerdote Obadiah... ele é o homem que nos
determinou ajudá-lo. É dele que recebemos as orientações
para dar apoio aos discípulos. Enquanto você esteve
viajando pela Ásia Maior, estiveram aqui Tomé e Mateus.
Outros vieram depois estudar com outros mestres. Você foi
designado a mim. Depois disso, seguirá para Roma para
finalizar seu aprendizado.
- Não conheço nenhum sumo-sacerdote com o nome de
Obadiah. Meu mentor é mestre Malachai...
- Ele é o pai de Malachai, João.
Eu estava vivendo em um mundo onde todos pareciam ter
um parente poderoso em algum lugar. No entanto, me sentia
como um joguete nas mãos deles. Não gostava daquela
sensação.
- Por que eu? Não vi nenhum bracelete nos braços de
nenhum outro dos meus colegas. Eles não tiveram a mesma
proteção que eu?
- Não. Nem todos tiveram. Só você recebeu o bracelete.
Tomé recebeu um anel e Mateus um medalhão.
246
- Mas o bracelete foi dado a mim como presente, por meu
pai...
- E quem o deu a seu pai para que te desse como presente?
Seu pai, provavelmente, foi instruído por Malachai para
nada te dizer sobre isso. Se você um dia se perdesse de
Malachai, um de nós o encontraríamos. Um presente de seu
pai, você nunca abandonaria.
- Então quer dizer que, sendo o senhor irmão de Malachai,
também é filho desse sumo-sacerdote...
- Obadiah... ele é pai de outros 11 filhos, sendo três
mulheres. Uma delas cuidou de você em Alexandria. Meu
pai viajou muito na juventude e nunca fez qualquer voto de
castidade. Ao contrário, ele acreditava que deveria espalhar
sua semente, como fazem os coqueiros com seus frutos.
Eles os lançam pela praia e de lá são levados pelas ondas do
mar para outras partes do mundo e, ao chegarem em terra
firme, germinam e produzem outros rebentos. Assim foi o
meu pai.
- Mas, pelo visto, ele nem precisou lançar cocos pelas praias
para serem levados pelas ondas do mar, não foi? Ele mesmo
foi semeá-los pelo mundo...
O mestre sorriu.
- Você é espirituoso, João da Judeia. Gosto de você. Vamos
comer algo e depois você irá descansar. Amanhã teremos
um dia cheio. Está na cidade, um filósofo romano muito
247
famoso chamado Sêneca. Você vai gostar de ouvi-lo e até
de falar com ele, pois é meu convidado e cearemos juntos.
- Sobre o que ele falará? Indaguei, cheio de curiosidade.
- Ele é um estóico, seguidor de uma filosofia criada por um
grego chamado Zenão de Citio. Zenão fundou uma escola
onde pregava que a vida deve ser vivida com a permanente
busca pelas virtudes e de acordo com as leis da natureza.
Segundo essa lei, o indivíduo que não se adaptasse às
normas de boa conduta e virtude, não teria uma condição de
vida satisfatória...
- Leis da natureza? Não seria conforme as Leis de Deus? ou
melhor, de algum deus, já que os gregos e os romanos têm
vários?
Mestre Dardanus sorriu e explicou:
- Para Zenão, assim como para Sêneca e para mim, não
existe lei melhor para guiar o homem do que as leis da
Natureza. Ela está aí todo o tempo nos dizendo o que fazer e
o que não fazer. As leis dos deuses mudam de tempos em
tempos. Parecem muito com as vontades dos homens...
- Então o senhor não acredita em nenhum deus?
- Infelizmente não posso sair dizendo isso por aí. Um
compatriota, aqui mesmo em Atenas, há 400 anos, foi
condenado a tomar um veneno mortífero, pelo fato de não
querer acreditar nos deuses gregos ou romanos. Imploraram
a ele para renegar suas teorias, mas ele zombou de todos e,
248
de bom grado, tomou cicuta e morreu nos braços de seus
discípulos. Platão foi um deles. Você já deve ter ouvido
falar de Platão, não é?
- Sim, estudei latim com um professor romano que me falou
um pouco sobre Aristóteles, Sócrates e Platão. Pelo que me
lembro, foram contemporâneos de Alexandre o Grande, não
foi?
- Sim, Aristóteles foi o grande mestre de Alexandre. Até
hoje, nós admiramos o trabalho que ele nos deixou. Seus
discípulos, Sócrates e depois Platão, completaram um belo
trabalho, desmistificando os velhos deuses e apontando aos
homens o caminho natural da vida.
- Quer dizer que esses homens duvidaram da existência de
Deus, de um Criador?
- Na verdade, eles não duvidaram da existência de algo que
é grandioso, maior que os próprios deuses...
- E o que pode ser maior que Deus?
- A Natureza...
- Perdoe-me mestre, mas eu não sei o que é isso que o
senhor está me falando... Natureza... é por acaso o nome de
uma deusa? É isso?
- Não... não, João da Judeia. Não poderei te dizer mais do
que sei, mas, antes que você volte para o convívio dos seus,
você saberá do que estamos falando.
249
E, dizendo isso, o mestre Dardanus passou a mão no meu
ombro e me conduziu para a parte superior de sua morada
que tinha uma ampla vista para o mar. A visão era
magnífica.
- Olhe tudo isso a nossa volta... árvores, mar, céu, nuvens,
pássaros... tudo isso é natural... não foi criado por nós,
homens. O conjunto dessas coisas nós chamamos de
Natureza. Tudo isso existia antes de nós habitarmos o
mundo, você entende?
- Sim, eu entendo. Foi Deus quem criou tudo. Está escrito
no nosso livro sagrado. E Deus criou o mundo em seis dias
e no sétimo ele descansou.
- Compreendo, mas isso não resolve o grande dilema: e
quem criou Deus?
- Deus não foi criado por ninguém, Ele criou a si mesmo.
- Você coloca um ponto final e encerra a história da criação
do mundo desse jeito? Com toda essa simplicidade? Não
parece ser algo escrito por alguém que não tinha uma
explicação melhor? De fato, tudo que é natural nos leva a
crer que “alguém” ou “algo” criou, não é?
- Sim, nada surge por acaso. Todas as coisas naturais, como
o senhor diz, são criações de Deus.
- Bem, depois que você conhecer o nosso panteão dos
deuses, você poderá me dizer qual deles se parece com o
250
deus do seu povo, certo? Voltaremos a esse assunto dentro
de alguns meses. Agora vamos comer, pois estou faminto.
Fui dormir naquela noite com a mente cheia de indagações
que nunca haviam me ocorrido antes. Antes eu sequer
questionava a existência de um Criador, no entanto, era
difícil dialogar com homens tão sábios e não me perguntar o
que eles tinham visto que eu não era capaz de perceber.
Falavam com uma convicção tão grande que pareciam
iluminados por uma luz que eu desconhecia.
No dia seguinte, fomos ao Aerópago, situado na Colina dos
deuses, onde uma pequena multidão estava assentada em
bancos de mármore do anfiteatro parcialmente coberto.
Eram, em sua maioria, homens. Havia poucas mulheres.
Entre elas, via-se alí algumas acompanhadas dos pais.
Um homem de estatura baixa, corpulento, já deixando
aparecer uma calvície no topo da cabeça, portando uma
túnica azul índigo e ostentando uma pequena coroa de louro
na cabeça, indicação do seu cargo de Senador Romano,
falava a um grupo de pessoas. Mestre Dardanus aproximou-
se dele e o cumprimentou. Era Sêneca. Ele respondeu o
cumprimento fazendo-lhe uma reverência.
- Ora se não é o grande Dardanus, mestre dos mestres de
Atenas. Que grande honra. Eu estava esperando por você
antes de começar a minha palestra. Por favor, venha sentar-
se no pódium, a meu lado – disse o filósofo, sorrindo.
251
- Ahh... obrigado Senador. Deixe-me lhe apresentar, este é o
meu novo discípulo João da Judeia. Foi enviado por
Obadiah...
- Obadiah, o Etrusco?! Por onde anda aquela velha raposa
do deserto? Ainda está em viagens pela Ásia, andando pelo
mundo?
- Ninguém sabe ao certo, mesmo em idade avançada, meu
pai costuma viajar e se esconder de tudo e todos...
- E eu quase ia me esquecendo de que ele é o seu pai. Eu
aprendi muito com ele quando comecei a minha carreira de
escritor em Roma. Mas acho que já não existe cidade no
mundo que caiba um homem com a genialidade de Obadiah.
Então, esse é um dos discípulos prediletos dele? Disse
Sêneca, estudando-me de alto a baixo e fixando os olhos em
meu bracelete.
- Sim, e um dos melhores. Prepare-se, pois ele é especialista
em perguntas complicadas...
- Aahahaha... por trás de uma pergunta inteligente deverá
sempre haver uma resposta ainda mais inteligente. Você me
socorrerá quando for o caso – disse o senador filósofo,
sorrindo e se encaminhando para o pódium, uma plataforma
localizada numa das laterais do anfiteatro, de onde os
oradores faziam seus discursos.
Sentei-me ao lado de outros rapazes e moças que
conversavam animadamente e se empurravam numa
algazarra típica de adolescentes. Lembrei-me de meus
252
colegas e amigos de adolescência. Acho que não seria capaz
de reconhecer nenhum deles se estivesse ali. Agora todos
éramos adultos e nossas feições estavam mudadas.
Depois de ser apresentado ao público, o filósofo falou por
mais de uma hora sobre o que defendia e em que acreditava.
- O estoicismo, essa filosofia que Zenão nos apresentou há
cerca de 300 anos, propõe que se viva de acordo com a lei
racional da natureza e aconselha a indiferença (apathea) em
relação a tudo que é externo ao ser. O homem sábio é
aquele que obedece à lei natural e reconhece a si mesmo
como uma peça na grande ordem e propósito do universo.
- Como o homem deve enfrentar as adversidades? Qual é a
melhor forma para vencê-las? – indagou, um homem
sentado próximo de mim.
- Devemos manter a serenidade e a calma tanto perante as
tragédias, quanto frente aos bons acontecimentos. A
Natureza cria obstáculos para que nossas forças sejam
desenvolvidas. Como ensinava Sócrates, devemos nos
conhecer para saber quais os nossos limites. E eu digo que
devemos conhecer a Natureza, as forças naturais e aprender
como conviver em harmonia com ela. Precisamos
desenvolver a razão, pois é ela o meio de nos tornarmos
livres e felizes. Precisamos fugir da ignorância e dos
mitos....
- O senhor está dizendo que devemos esquecer as nossas
divindades? – disse um senhor em voz alta, interrompendo o
filósofo. Todos se voltaram para ele.
253
- Seja mais claro, cidadão. Por favor, de que mitos o senhor
fala?
- Ora, nós aprendemos com os nossos pais a cultuar as
divindades, elas os protegeram e ainda nos protegem. O
senhor, assim como outros filósofos querem que os
abandonemos. O que ganharemos com isso?
- Não obrigarei ninguém a abandonar seus deuses, da
mesma forma que não quero tirar das mãos de uma criança
o boneco que ele imagina ser o seu campeão e o seu herói.
No entanto, não enganarei a meu filho dizendo que é a
crença naqueles bonecos que o farão vencer uma batalha
quando ele tiver que enfrentar o inimigo de verdade. O
boneco serviu apenas de inspiração.
- O senhor quer dizer que os deuses não nos protegem, não
nos ajudam?
- Há 400 anos, os atenienses travaram uma dura batalha
contra os espartamos. O senhor deve conhecer bem a
história da Guerra do Peloponeso, ocasião em que Esparta
invadiu Atenas e matou milhares de soldados. Ora, os
deuses de Esparta eram diferentes dos deuses de Atenas?
Por acaso Zeus, o rei dos deuses, Ares, o deus da guerra,
Poseidon, o deus dos mares, Hermes, o mensageiro dos
deuses, e tantos outros não eram as mesmas divindades
adoradas por atenienses e espartamos? De que lado os
deuses estavam naquela guerra? Por que não deu a vitória
aos atenienses? Será que os atenienses não sabiam fazer
oferendas? Será que os deuses estavam cansados deles?
Reflita sobre isso.
254
- O senhor está me confundindo. Nós precisamos dos
deuses, sim. Foi isso o que nossos pais nos ensinaram.
Precisamos obedecê-los, para vivermos em harmonia. Se
não tivermos temor e respeito aos deuses, seremos
castigados.
- Se um homem precisa de sentir medo dos deuses para ser
obediente, então ele não é um homem e sim um animal
domesticado.
A plateia caiu em uma sonora gargalhada.
Sêneca continuou.
- Tudo o que eu peço aos senhores e senhoras é que
busquem o conhecimento das coisas. Aos poucos, os deuses
criados pela imaginação e ignorância desaparecerão e, no
lugar deles, surgirá uma nova religião, a ciência pura. Ela é
a nossa salvação, não os deuses. Vencerão as guerras quem
possuir melhores armas, melhores estratégias, foi isso o que
deu a vitória aos espartanos na guerra de Peloponeso, não o
mero capricho dos deuses. A prova é tanta que, anos depois,
os espartamos enfraqueceram e foram vencidos pelos
atenienses que os expulsaram daqui. Conhecimento é poder,
senhores. Conhecimento... Quem descobrir a cura para as
doenças serão os vencedores.
Foi a minha vez de fazer uma pergunta que me intrigava
desde muito tempo.
- Senador, o senhor poderia nos falar sobre o que pensa a
respeito da escravidão? Ela é justa? Eu li alguns trabalhos
255
de Aristóteles onde ele fala que alguns nascem para
comandar e outros para obedecer e que a escravidão é algo
natural. O senhor concorda com isso?
- Discordo plenamente! Discordo totalmente! – disse
Sêneca, com veemência.
A plateia ficou inflamada imediatamente. Pessoas
começaram a discutir entre si. Eu não entendia se estavam
contra ou a favor.
- Senhores.. senhores... por favor, acalmem-se, acalmem-
se... – disse o filósofo, pedindo às pessoas para se
aquietarem.
- Eu sei que muitos aqui são mestres e doutores como eu.
Muitos possuem até mais conhecimento do que eu em
muitos assuntos. Sei também que Aristóteles, assim como
seus discípulos Sócrates e Platão, são adorados por todos os
gregos e troianos. Nós também, em Roma, admiramos a
sabedoria daqueles mestres. Mas eles viveram há mais de
300 anos. A sociedade era outra. Os tempos eram outros.
Sei que a visão deles era de que o escravo era como um
bem, um patrimônio e que se tratava de alguém que tinha
nascido com uma finalidade – a de servir. Porém, eles
também defendiam que essas pessoas mereciam ser
respeitadas, não deveriam ser maltratadas e que também
eram possuidoras de direitos. Antes de Aristóteles, um
escravo não tinha direito algum. Podia ser morto por seu
dono quando ele tivesse vontade. Veja que evolução
Aristóteles trouxe para nós.
256
- Se o senhor é contra o direito de um homem possuir
escravos, quem é que lava as suas roupas, prepara a sua
comida e limpa a sua casa, senador? É o senhor mesmo? –
disse um homem.
A plateia voltou a gargalhar. Eu estava me divertindo.
- Não, não sou eu que lavo as minhas vestes ou preparo a
minha comida. Pago para que façam isso para mim. Eu não
tenho escravos. Tenho ajudantes. Da mesma forma como
um ferreiro trabalha o ferro e o aço para preparar as armas
ou os talheres que usamos à mesa... da mesma forma como
o carpinteiro trabalha a madeira para construir barcos,
portas, janelas e móveis, os trabalhadores domésticos que
lavam e cozinham para mim usam as próprias mãos para
produzir o trabalho. Se fazem bem, eu pago bem, se fazem
mal eu pago pouco ou não pago. Isso é justiça.
Um tímido aplauso irrompeu no fundo da plateia e aos
poucos ele foi aumentando e, em poucos minutos, todos
estavam aplaudindo. O filósofo continuou.
- Eu pergunto, onde estão os escravos nesta plateia? Levante
a mão quem é escravo aqui.
O filósofo esperou, mas ninguém levantou a mão. Ele
continuou.
- Eles não estão aqui porque os patrões, os donos não os
deixam vir. Muitos estão lá fora, esperando a minha palestra
terminar para conduzir os seus senhores de volta para casa,
puxando as carruagens pelas ladeiras da cidade. Isso é
257
justo? Quanto lhes pagam para fazer esse trabalho? Será que
recebem um salário digno ou apenas comida e um lugar
imundo para dormir?
As pessoas baixaram os olhos ou desviaram o olhar do
orador que estava mais e mais exaltado.
- Chegará o dia em que as pessoas não serão mais obrigadas
a servir. Farão seu trabalho com prazer, farão isso com
satisfação, pois terão uma justa recompensa. Chegará o dia
em que não teremos mais escravos no mundo e sim homens
e mulheres livres para escolherem suas profissões e seus
trabalhos. Poderão ir a qualquer lugar e vir, sem precisar
pedir permissão aos seus donos. As pessoas serão donas de
si mesmas, dos seus próprios destinos.
Eu comecei a admirar aquele homem. Tudo ficava mais
claro para mim. Senti vergonha do modo de vida que ainda
existia em minha terra, a Judeia. Nós tínhamos fugido da
escravidão do Egito pela mão de Moisés, mas, ainda assim,
continuávamos mantendo escravos aqueles que eram
prisioneiros de guerra ou os comprados nos mercados de
Jerusalém. Escravos podiam ser trocados ou vendidos ao bel
prazer de seus donos.
Quando o filósofo e senador terminou o seu discurso, foi
aclamado por todos. Meu mestre o levou para cear em sua
casa e lá pudemos conversar mais livremente. Sêneca não
escondeu a admiração que sentia por Dardanus e o convidou
para ir morar em Roma, onde poderia se tornar um senador.
258
- Embora goste de estudar política, não tenho vocação para
ser um político oficial, Sêneca. Meu lugar é aqui em Atenas,
estudando e ensinando. Aqui faço a minha política. Não
gosto de ficar preso a formalidades. Tenho ido a Alexandria
todos os anos e lá me sinto como um beduíno quando
encontra um oásis no meio do deserto. Queria poder trazer
para cá uma pequena fração do conhecimento que está
acumulado lá.
- Eu sonho com o dia em que teremos grandes bibliotecas
espalhadas em todas as cidades do mundo. Todo o
conhecimento disponível a todos. Assim, sairemos mais
depressa das trevas das superstições e caminharemos para
recolocar o homem no seu devido lugar.
- E qual é esse lugar? Perguntei, intrometendo-me na
conversa dos dois, na qual, até então, eu apenas participava
como ouvinte.
- O lugar de ser o responsável por tudo o que acontece com
ele sobre a Terra. Sem medo dos deuses ou demônios. Ele, e
somente ele, o homem, deve governar o mundo usando as
leis da Natureza que estão aí para o ajudar a viver. A
Natureza, a Mãe Gaia, essa deve ser o nosso único e
verdadeiro deus. Nossa adoração deveria ser no sentido de
conhece-la mais e mais e viver de acordo com as suas Leis.
- As Leis que Deus deu ao nosso povo é boa para nós.
Ajuda-nos a viver melhor. O povo precisou dela para chegar
aonde chegamos.
259
- Nisso, eu posso concordar com você, mas veja o que
aconteceu no passado. Quantas mortes, quanta guerra, tudo
feito em nome do deus que vocês chamam de Javeh. Eu
estudo o Talmude desde criança. Ele mandava matar
homens, mulheres e crianças quando queria. Você acha que
era justo matar pessoas idosas, mulheres e crianças, mesmo
sendo inimigos?
- O senhor está se referindo às ordens que ele dava aos
profetas?
- Sim, isso mesmo. Por favor, Dardanus, traga-nos o livro
de Jeremias e abra no capítulo VI. Vamos refrescar a
memória do moço.
Dardanus correu até um aposento que deveria ser sua
biblioteca particular e voltou com o que, em Alexandria,
chamávamos de “volumens”, retângulos de pergaminhos
costurados um sobre o outro que, quando abertos, podiam
ser folheados para frente e para trás. Esses “volumens” eram
também chamados de Códex e estavam, pouco a pouco,
substituindo os rolos de pergaminhos. Sêneca, com extrema
habilidade, foi direto ao trecho que queria me mostrar para
sustentar o seu argumento:
- Olhe, João... aqui está. Veja o que diz o profeta Jeremias.
Veja se Javeh não se parece com os deuses gregos...
8 - Ouça a minha advertência, ó Jerusalém! Do
contrário, eu me afastarei inteiramente de você e
farei de você uma desolação, uma terra desabitada.
260
9 - Assim diz o Senhor dos Exércitos: Rebusque-se o
remanescente de Israel tão completamente, como se
faz com uma videira, como faz quem colhe uvas:
repassa os ramos cacho por cacho.
10 - A quem posso eu falar ou advertir? Quem me
escutará? Os ouvidos deles são obstinados, e eles
não podem ouvir. A palavra do Senhor é para eles
desprezível, não encontram nela motivo de prazer.
11 - Mas a ira do Senhor dentro de mim transborda,
já não posso retê-la. Derrama-a sobre as crianças na
rua e sobre os jovens reunidos em grupos; pois eles
também serão pegos juntos com os maridos e as
mulheres, os velhos e os de idade bem avançada.
12 - As casas deles serão entregues a outros,
juntamente com os seus campos e as suas mulheres,
quando eu estender a minha mão contra os que
vivem nesta terra, declara o Senhor.
Ele continuou:
- Os deuses gregos também são assim como o seu Javeh,
sentem ciúmes, sentem ira, sentem amor, sentem prazer,
exigem sacrifícios. A diferença é que, lá em Israel, Moisés
conseguiu extinguir todos os demais deuses e obrigou o
povo a aceitar apenas um...
- Ele não obrigou... – interrompi.
261
- Não obrigou? Ora, se as pessoas fossem livres para adotar
qualquer deus, será que o deus de Moisés concordaria ou as
mataria.
- Provavelmente, mandaria matar, como aliás o fez muitas
vezes.
- Isso mesmo... você começa a entender. Lembra-se do
homem que me perguntou sobre a minha fé nos deuses
gregos? Ele, provavelmente, nunca ouviu falar de Javeh e,
mesmo que ouça, não dará importância. Está satisfeito com
os 12 deuses que lhe foram dados pelos pais e demais
ancestrais. Custa-lhe entender que é necessário afastar-se
das superstições, dos mitos, das fantasias e encararmos o
desafio de viver sem a ajuda dos deuses, mesmo que seja
um único, como querem os judeus.
- Sem a ajuda de Deus, como viveremos?
- Meu Deus é a Natureza, já te falei sobre isso. Mas não a
conheço ainda totalmente. É algo imenso, mas está bem
aqui ao nosso redor. O ar, a luz do sol, o mar, as plantas, os
alimentos, os animais. Tudo faz parte de um conjunto
organizado, no qual nós humanos estamos inseridos e do
qual fazemos parte. Não somos mais importantes que os
demais seres. Somos apenas parte do todo. Talvez um dia
venhamos descobrir que existem seres mais poderosos que
nós no mundo, com uma inteligência ainda maior que a
nossa. Talvez serão eles que ocuparão o lugar dos homens
no futuro. Quem sabe?
262
Calei-me. O senador deveria estar afetado pelo bom vinho
que Dardanus nos servira durante a ceia. O filósofo já havia
bebido três taças e aquela conversa certamente era fruto de
seus delírios provocados pela bebida. Mesmo assim, eu
reconhecia que, em alguns pontos, ele tinha razão. Mas
faltava um elo de ligação entre as novas e as velhas
verdades. Eu sabia que um dia acabaria por descobrir qual
era esse elo faltante.
Depois que o filósofo partiu, Dardanus investiu seu tempo
em me ensinar, de modo mais profundo, a filosofia dos
gregos que viveram antes dele. Diverti-me muito ouvindo-o
contar como o filósofo Sócrates ensinava. Segundo ele, às
vezes, o sábio, distraído, ia pregar completamente nu. Era
considerado um louco. Mas, na verdade, ele queria mesmo
era chamar a atenção para suas descobertas. Ele gostava de
chocar as pessoas. Sabia que se fosse um comum, ninguém
lhe daria ouvidos.
Dardanus contou-me a história das três peneiras, que era
contada por Sócrates:
- Um rapaz procurou Sócrates e disse-lhe que precisava
contar-lhe algo sobre alguém.
Sócrates ergueu os olhos do livro que estava lendo e
perguntou:
- O que você vai me contar já passou pelas três peneiras?
- Três peneiras? - indagou o rapaz.
263
- Sim! A primeira peneira é a verdade. O que você quer me
contar dos outros é um fato? Caso tenha ouvido falar, a
história deve morrer aqui mesmo. Suponhamos que seja
verdade. Deve, então, passar pela segunda peneira: a
bondade. O que você vai contar é uma coisa boa? Ajuda a
construir ou destruir o caminho, a fama do próximo? Se o
que você quer contar é verdade e é coisa boa, deverá passar
ainda pela terceira peneira: a necessidade. Convém contar?
Resolve alguma coisa? Ajuda a comunidade? Pode
melhorar nosso mundo?
Arremata Sócrates:
- Se passou pelas três peneiras, conte! Tanto eu, como você
e seu irmão iremos nos beneficiar. Caso contrário, esqueça e
enterre tudo. Será um mexerico a menos para envenenar o
ambiente e fomentar a discórdia entre as pessoas e o mundo
no qual vivemos.
Foram muitas as histórias narradas por Dardanus, algumas
das quais não me lembro mais. Porém, todas eram cheias de
sabedoria e muita clareza. Era fácil compreender o que elas
diziam.
- Mestre, eu gostaria de conhecer um pouco sobre as
divindades gregas do sexo feminino e saber a razão de não
existir em minha terra nenhuma grande figura feminina que
tenha se destacado.
- João, você conhece perfeitamente as escrituras e, lendo o
livro de Gênesis, você vai observar que o começo do mundo
não favoreceu muito à mulher. Primeiro, ela foi criada
264
depois do homem. Ao que se sabe, um homem não pode
gerar uma mulher. É exatamente o contrário. Só uma
mulher pode gerar, em seu ventre, um homem ou outras
mulheres. A Natureza nos mostra isso com os animais. É
sempre a fêmea dos animais mamíferos que procriam. No
livro de vocês, Deus criou o homem primeiro. Além disso,
há o problema de ter sido, Eva, a mulher a desviá-lo do bom
caminho. Ou seja, ela acabou ficando com grande parte da
culpa do mal causado à humanidade. Não é isso mesmo?
- Sim, é verdade. Os homens sempre tiveram primazia nas
histórias do meu povo.
- Diga-me, de quantas mulheres importantes mencionadas
no Talmude você se lembra ?
- Claro, já fiz esse estudo com meu antigo mestre Abner.
Além de Eva, a primeira mulher e, como o senhor disse, a
que desencaminhou Adão, tivemos Sara, a esposa de
Abraão, que era a pessoa que tomava grande parte das
decisões. Miriam, irmã de Moisés, que o salvou, permitindo
que ele crescesse e libertasse o povo judeu dos egípcios.
Raabe, uma prostituta em Jericó, que protegeu os espiões
mandados por Josué, a qual foi recompensada após a
conquista, tendo sido, Raabe e sua família, salvos e
tornaram-se parte das 10 tribos. Débora, uma sacerdotisa,
filha de Lampidote, a única juíza de Israel que liderou o
povo para a conquista dos cananeus que os oprimiram por
vinte anos. Conta a história que o general cananeu derrotado
que tentara escapar foi morto por outra mulher, Jael, que
golpeou a têmpora do inimigo com um prego de sua tenda.
Acho que essas foram as mulheres mais importantes
265
registradas no Talmude. As demais eram apenas mães,
filhas e escravas.
- Você está se esquecendo de duas rainhas...
- Ah! Sim, é isso mesmo. Como poderia esquecer da Rainha
Ester da Pérsia, que se casou com o Rei Assuero e da
Rainha de Sabá, de cujo nome não se sabe, a qual visitou o
Rei Salomão, levando toneladas de presentes para ele.
- Definitivamente, os escritores do seu povo não gostavam
muito de valorizar as mulheres, você não nota isso?
- Noto sim. Acho que é algo que deveria ser mudado.
- E como isso poderá ser mudado, João? Pelo que sei, Javeh
não fala mais aos profetas. Parece que os homens não mais
merecem ouvi-Lo.
- Tenho me feito essa mesma pergunta. Faz muitos séculos
que ninguém escreve mais nenhuma revelação de Javeh.
- Talvez seja o momento disso voltar a acontecer, você não
acha?
- Se for a vontade Dele...
- Ou dos homens...
Rimos juntos.
266
Falar de Deus com aqueles homens sábios já não parecia
algo tão sério, tão pesado e difícil. Eles tratavam os deuses,
fossem o nosso ou os deles, como humanos, cheios de
virtudes e defeitos. Para eles, os deuses eram representações
aumentadas de nossos pais e mães. Pelo menos os deuses
gregos tinham mães. Nosso Deus precisava de uma família.
Talvez, se assim fosse, seria mais compassivo, mais
bondoso e menos vingativo.
- Agora vou te mostrar um pouco sobre as mulheres de
nossa história. Aristocléa, nascida há 500 anos, foi uma
sacerdotisa grega em Delfos, aqui na Grécia. Ela foi
professora do filósofo e matemático Pitágoras. Theanã,
nascida também a mais ou menos 500 anos, foi uma
matemática, estudiosa das ciências físicas e filosóficas, foi
aluna e esposa de Pitágoras. Tiveram duas filhas que
assumiram a escola pitagórica após a morte do dele. Aspásia
de Mileto, há 470 anos, pertenceu ao círculo da elite de
Atenas, onde conheceu Péricles e com ele teve um filho.
Como sofista da época, Aspásia nada escreveu e os relatos
de sua habilidade como argumentadora e educadora, bem
como sua influência política sobre Péricles, foram
registrados na obra de Platão.
- Jamais ouvi dizer que existissem tantas mulheres famosas
na Grécia.
- Sim, havia e ainda há muitas. Lembrei-me de Diotímia de
Mantineia, que viveu há 427 e que foi apresentada a Platão
como sábia em um dos seus livros. Tivemos Asioteia de
Filos, nascida há 390 anos. Ensinou ciências na Academia
de Platão, ao lado de outras mulheres. Ela lecionou também
267
em Alexandria e Pérgamo. Hipárquia de Maroneia era uma
aristocrata, também daquela época, foi muito elogiada por
Diógenes Laértios pela cultura e raciocínio, comparando-a
com Platão
- Comparada a Platão? Nunca imaginei que tivesse existido
uma mulher assim.
- Existiu sim e ela foi autora do livro “Cartas e Tragédias”.
- E quanto aos deuses gregos, o que há de especial neles?
- De especial não sei, tudo o que sei é que eles se parecem
muito com os reis e os imperadores, sempre concedendo
favores a uns e a outros não, sendo bondoso com uns e
impiedoso com outros.
- Também tenho pensado nisso em relação ao nosso Javeh.
Ele sempre teve algumas predileções, desde o início do
mundo. Conta o nosso livro sagrado que ele gostava mais
do sacrifício que Abel fazia do que o ofertado por Caim, seu
irmão. O senhor que conhece profundamente o Talmude,
sendo um professor grego e sem envolvimento com a nossa
cultura, como avalia essa história?
- Eu entendo que os sábios daquela época, ao escrever a
história, queriam evitar que as pessoas cometessem o
mesmo erro de Deus.
- Erro de Deus? Como assim? Não entendo como pode ser
isso... – disse confuso.
268
- Vamos pensar em uma família composta por pai, mãe e
irmãos, como na história contada por seu povo. Quando
Deus deu mais atenção à oferta de Abel do que à de Caim,
como foi que Caim se sentiu?
- Cheio de ciúmes, com raiva.
- Isso mesmo. Afinal, ele era um rapaz obediente e cumpria
suas obrigações, fazia sua oferenda, conforme os
mandamentos exigidos por Deus. Não havia razão para que
Deus preferisse a oferenda do seu irmão Abel, havia?
- Não havia. Pensando como humanos, não havia.
- Mas Deus parece que não pensava assim. Por alguma
razão, ele demonstrou mais interesse pelas oferendas de
Abel. Você se lembra do que aconteceu em seguida?
- Caim, cheio de ira e ciúmes, matou o próprio irmão.
- Aqui na Grécia, em Roma, na Pérsia, na Índia ou China, as
pessoas estão agindo do mesmo modo. Na verdade, nem
precisa o pai expressar sua preferência por um filho ou filha
para ter a revolta dos demais. Os próprios filhos, ao
acharem que um é mais privilegiado que outros, fazem de
tudo para destruí-lo. Chegam ao extremo de matá-los das
formas mais tradicionais: envenenados, golpeados a espada
ou faca, afogados e de tantas outras maneiras. Caim matou o
irmão quando estavam no campo.
269
- Então é isso o que a história quer ensinar? Que os pais não
devem ter filhos prediletos para não despertar a ira, o ciúme
dos outros?
- Isso. E também para mostrar o que acontece a alguém que
mata outrem, por qualquer outra razão, especialmente pelo
ciúme. Acaba sendo afastado de todos e proscrito do grupo.
- Foi exatamente o que aconteceu a Caim.
- Você precisa compreender que muitas histórias foram
criadas para transmitir um ensinamento. Elas se tornam
ainda mais poderosas quando os autores ou autor é um deus
poderoso, como Javeh. Nós também, na Grécia, temos Zeus.
- Ele é o rei dos deuses, não é?
- Sim, quer conhecer um pouco sobre ele? Você poderá ler
depois muitos outros livros que tratam das histórias dos
nossos deuses. Infelizmente, a maioria das pessoas, o povo
inculto, é incapaz de ver que as divindades são apenas seres
criados pela imaginação humana, com o objetivo de
transmitir algum ensinamento. Tomam tudo ao pé da letra.
- Mas Javeh existe de fato. Nossos profetas e homens santos
tiveram contato com Ele...
- Os nossos sacerdotes e sacerdotisas também conversam
diariamente com os nossos deuses, João. Chegará o dia em
que as pessoas se cansarão disso e elas mesmas quererão
fazer esse contato. Dispensarão os intermediários. Deixarão
de ser manipulados pelos sacerdotes. Chegará o dia em que
270
ninguém terá o mesmo deus, pois cada um o criará dentro
de si mesmo, segundo suas próprias crenças e necessidades.
Não precisarão de livros sagrados para lhes ensinar regras
de bom viver.
- Isso não será um caos? Não será perigoso?
- Talvez, mas valerá a pena, pois os homens e mulheres
estarão livres do julgamento a ser feito em uma vida após a
morte. Poderão viver em conformidade apenas com as leis
humanas, aquelas que forem mais justas e mais adequadas.
As que proporcionarem uma vida harmoniosa, onde haja
respeito mútuo. Onde exista a compreensão de que não são
os deuses os responsáveis por nossas desgraças,
infelicidades e sofrimento, mas sim nós mesmos, todos nós,
como reflexo de nossas ações.
- Eu ouvi isso do mestre Rajan e do mestre Chen.
- Existem religiões no Extremo Oriente que são mais
evoluídas do que as nossas aqui no ocidente, João. Bom
seria se todas se fundissem. Bom seria se pudéssemos juntar
as boas e edificantes lições de cada uma delas, criássemos
uma única com essa mesclagem. Desse modo, as pessoas
poderiam entender que não existem diferenças entre os
deuses... e que, no fim de tudo, nós somos deuses.
- Eu compreendo, mas as pessoas teriam mais dificuldade
em aceitar um novo deus. Ninguém quer desprezar as suas
tradições e costumes...
271
- A não ser que vejam nessa mudança algo maior e melhor
que as façam acreditar que obterão mais vantagens, mais
felicidade e menos sofrimento.
- Fale-me sobre o rei dos deuses gregos, mestre Dardanus.
Quero aprender mais sobre ele.
- Zeus é o senhor do Olimpo, também deus do trovão. Era
filho de Cronos e Réia. Cronos tinha o hábito de devorar
seus próprios filhos para que não tomassem seu lugar no
trono. Quando Zeus nasceu, a sua mãe Réia, já aborrecida
de tanto ver sangue e sofrimento, deu a Cronos uma pedra
embrulhada no lugar do filho, salvando assim a vida de
Zeus. Réia decidiu, então, que Zeus seria o seu último filho,
para encerrar o reinado de sangue e sofrimento e que ele
tomaria o trono do pai.
- Parece que em todos os povos há sempre um Rei temendo
que alguém lhe tome o trono, não é?
- Sim, como já te falei, os deuses são uma produção
imaginativa e ampliada dos homens. Quem escreveu essas
histórias ou contou-as aos seus descendentes queria
transmitir um ensinamento, no entanto, a maioria das
pessoas acredita que tais fatos realmente aconteceram. Não
conseguem perceber que falta lógica – a tão falada lógica de
Aristóteles que derruba os mitos e as lendas. Ora, vê-se
claramente que Cronos, além de ser um deus cruel era
também um idiota, pois só um tolo se deixaria enganar
dessa maneira e não perceberia que, no lugar de criança
recém-nascida, estava recebendo uma pedra embrulhada.
272
- E o que aconteceu em seguida?
- Logo que Cronos descobriu que tinha engolido uma pedra
em vez do filho, saiu a procura de Zeus, mas não o
encontrou.
- Ahhhahaha... então ele recebeu a pedra e a engoliu? Sem
mastigar nem nada?
- Bem no início da minha descrição, você deve ter se
perguntado: esse Cronos era um canibal? Não foi mesmo?
- Sim, percebi. Mas o que aconteceu mesmo com Zeus?
- Zeus foi criado no bosque de Creta e foi alimentado com
mel e leite de cabra. Quando cresceu, foi ao encontro do pai
para combatê-lo. Após intensa batalha, Zeus venceu o pai e
o obrigou a ingerir uma bebida mágica que restituiu todos
os filhos que, no passado, Cronos tinha devorado. Foi então
que Zeus conheceu seus quatro irmãos: Deméter, Poseidon
e Hades. Havia uma outra filha que também tinha sido
poupada, Héstia. Ela também se juntou aos irmãos. Zeus
ainda liberou os ciclopes, os quais deram a ele o Raio.
Conta a história que a guerra entre Zeus e o seu pai durou
dez anos e, depois disso, ele subiu ao Olimpo, junto com
seus irmãos Poseidon e Hades, os quais o tinham ajudado a
destruir Cronos, e então comandaram o Céu, a Terra e os
demais deuses.
- Nunca tinha ouvido falar em ciclopes e Olimpo. O que
significam?
273
- Segundo dizem, ciclopes são seres muito poderosos, os
quais possuem apenas um olho na testa e são responsáveis
pela preparação dos raios que Zeus solta. Já Olimpo, seria
um monte cheio de mansões de cristais, onde moram os
doze deuses. Zeus tem o poder dos fenômenos atmosféricos
e faz relâmpagos e trovões e, com sua mão direita, lança a
chuva. O seu poder pode ser usado para destruir, mas
também para mandar chuvas para as plantações.
- Javeh é parecido com isso. Está registrado em centenas de
pergaminhos.
- Eu sei. Para finalizar seu primeiro estudo sobre nossos
deuses, preciso te dizer que Zeus casou-se três vezes. A
primeira esposa foi Métis, a deusa da prudência. Com ela,
ele teve sua filha Atenas. A segunda, foi Têmis, a deusa da
justiça. E a terceira esposa foi sua irmã Hera, com quem ele
teve o filho Ares, que é o deus da guerra. Hera era muito
ciumenta e agressiva porque Zeus desonrava sua vida com
ela, tendo muitas amantes e com as quais teve vários filhos
fora de seu casamento. Zeus usava seu poder de sedução e
até usava as mais belas metamorfoses para conquistar as
mulheres. As mais conhecidas são: o Cisne de Leda e o
Touro da Europa.
- A vida no Olimpo é muito parecida com a vida dos reis e
governantes, não é mestre? Estou surpreso.
- Sim, essa foi a razão pela qual nosso velho filósofo
Sócrates foi obrigado a beber cicuta. Ele não podia mais
acreditar nos deuses gregos. Veja você que há mais de 300
anos estudiosos já criticavam a crença nesses deuses e,
274
ainda assim, até hoje as pessoas acreditam na existência
deles.
- O senhor acredita?
- Acredito no poder das palavras. Sou um homem que
estuda as palavras, suas origens. Veja, por exemplo. Cronos
deu origem à palavra grega ‘cronologos’, que indica tempo.
Para nós filósofos, o senhor do universo é o tempo. Tudo
nele se cria e se transforma. Ele a tudo devora. Não era ele,
Cronos, que devorava seus próprios filhos? A própria
palavra Zeus pertenceu a uma língua muito antiga e
significa Pai do Céu (Dieus), pelo uso, transformou-se em
Zeus e muitos povos copiaram para Deus. Para os gregos,
Zeus simboliza o deus que dá ao homem o caminho da
razão e ensina que o verdadeiro conhecimento é obtido
apenas a partir da dor. Por essa razão, fazem-se oferendas e
prestam-se culto a ele, além de se reunirem para contar as
façanhas dele.
- Eu fiquei impressionado com as religiões da Ásia Maior.
Eles possuem deuses que nasceram de modo especial.
Como conhecedor de tantas filosofias e religiões, Mestre
Dardanus, existe algum deus ou semi-deus grego nascido de
uma virgem, como o Krisnha dos hindus?
- Temos algo ainda mais poderoso – disse o mestre,
soltando uma sonora gargalhada. Urano, o deus grego que
personifica o céu, foi gerado em Gaia, sem a intervenção de
um deus do sexo masculino. Gaia teve outros filhos, mas
Urano aprisionou os filhos dela no Tártaro, nas entranhas da
Terra, causando grande dor a Gaia. Ela forjou uma foice e
275
pediu aos filhos para castrarem Urano. Apenas o mais
jovem concordou. Ele emboscou Urano, castrou-o e lançou
os testículos cortados no mar. A partir dos testículos
lançados ao mar, nasceu Afrodite. Alguns dizem que a foice
ensanguentada foi enterrada na terra e daí nasceu a fabulosa
tribo dos Feácios. Do sangue derramado de Urano sobre a
Terra nasceram os Gigantes. Como você vê, os nossos
deuses não precisam nem mesmo de uma mulher ou de um
homem para gerar outros.
- Que história incrível, mestre Dardanus. Não podia jamais
imaginar que os gregos tivessem deuses tão fabulosos.
- Você disse tudo, meu rapaz: incrível... não-crível.
Inacreditável. No entanto, milhares de gregos não só
acreditam em Urano, como rezam diariamente pedindo-lhe
proteção e ajuda. Muitos morrem por tais deuses. Outros
são capazes de matar uma pessoa se ela lhes disser que são
tolices, crendices, ou pura superstição. Eu já fui ameaçado
de morte várias vezes quando ousei expor as minhas ideias.
Os próprios governantes acreditam nesses deuses e não acho
muito bom contrariar quem tem o poder de matá-lo.
- Javeh sempre matou quem lhe desobedecia.
- Ele mesmo descia do céu e matava ou mandava os
sacerdotes executarem suas ordens?
- Em muitos momentos mandava, mas em outros ele
mandava fogo do céu, dilúvio e pragas.
276
- Curiosamente, os deuses gregos também agem de forma
semelhante. E ninguém por aqui sabe quem é Javeh ou
Hórus.
- Hórus... acho que já ouvi esse nome. É um deus egípcio,
não é?
- Sim, quando você voltar à Alexandria, procure pesquisar
sobre ele. Há 1.400 anos, o deus Hórus foi concebido por
Isis, a deusa da fertilidade e da maternidade, quando Osíris,
seu esposo, já estava morto.
- Como assim? Um morto fecundou Isis?
- A lenda egípcia conta que Isis engravidou quando um
pássaro pousou sobre o túmulo do esposo. Assim nasceu
Hórus, a segunda pessoa da divina família egípcia,
composta por Osíris, o pai, Hórus, o filho e Ísis, a mãe.
Uma trindade perfeita.
Agora eu já tinha conhecimentos para definir o que
pretendia fazer quando voltasse a Alexandria. Na minha
mente, fervilhavam milhares de ideias. Iria discuti-las com o
mestre Malachai ou com o sumo-sacerdote, o qual eu ainda
não tivera o privilégio de conhecer. Sim, eu tentaria mostrar
a eles o quanto poderíamos contribuir para melhorar a vida
do nosso povo e das demais pessoas pelo mundo.
Os meses que passei na Grécia, visitando os templos
sagrados, assistindo aos inúmeros cultos, ouvindo as
palestras dos sábios nas praças e no Areópago, foram
inesquecíveis para mim. As casas pintadas de branco,
277
encravadas nas encostas, contrastavam com o verdezul-
esmeralda do Mar Egeu e suas centenas de ilhas. No verão,
as águas eram mornas e, no resto do ano, mesmo nos meses
mais frios, era possível tomar banhos agradáveis em piscina
naturais que se formavam entre os rochedos.
Numa manhã de sol, meu mestre avisou-me que era hora de
tomar um navio que me levaria à capital do Império, a
incomparável Roma. Confesso que, naquela época, o meu
ódio pelos romanos já não era tão grande. Eu estudara
política com Dardanus, um mestre em leis e assuntos
diplomáticos. Com ele aprendi que cada povo tem o
governo que merece. São as pessoas que precisam mudar o
modo de pensar dos governantes, não o contrário. Mas, para
isso, o povo precisa ser educado. Os inúmeros Liceus e
Academias de Ciências existentes na Grécia estavam
fazendo esse papel. Seria bom se houvesse muitas deles
espalhadas pelo mundo.
- Conhecimento é poder, meu rapaz – dizia-me ele, durante
nossas caminhadas à beira mar, ao entardecer,
contemplando a magnífica baia de Atenas.
- Como o povo pode mudar o modo de pensar dos
governantes se o povo depende deles?
- E eles dependem ainda mais do povo. O poder dos
governantes nos nossos dias reside na força bruta que sãos
os exércitos. Os soldados, capitães e generais são pagos
pelos imperadores e juram servi-los. Os governantes não
querem que o povo tenha armas, pois, numa revolta popular
em grande escala, não haveria exército capaz de proteger os
278
governantes. Devemos lembrar que muitos soldados têm
família e amigos e não iriam matá-los para salvar a pele do
rei.
- Isso quer dizer que, se o povo se revoltar, os soldados o
seguirão, abandonando a obrigação de servir ao rei. Isso
poderia levar a alguma mudança?
- Sim, a mudança deve começar de baixo para cima. Povo,
soldados, comandantes, generais até chegarmos aos
governantes: reis, imperadores e governadores, qualquer
nome que lhes deem.
- Soldados são pagos para obedecer ordens, mestre
Dardanus. O que poderia levá-los a ficar contra os
governantes?
- Quem você acha que tem mais poder sobre um soldado,
um rei, um capitão ou um general? Ou a mãe dele?
- Com toda certeza a mãe.
- As rainhas-mães têm mais poder do que o próprio rei. São
elas que tomam decisões, antes mesmo de o rei pensar a
respeito delas. São elas que fomentam as ideias nos filhos.
Se você ler a história de Alexandre o Grande e de outros
grandes líderes, entenderá o que estou falando. Foram suas
mães as maiores responsáveis por seus feitos, positivos ou
negativos.
Parti da Grécia prometendo a mim mesmo que um dia
voltaria àquele país que tanto me ensinou em tão pouco
279
tempo. Roma era agora meu próximo destino. Eu fora
advertido por Dardanus que a minha vida sofreria uma
grande mudança em Roma. Eu não sabia que seria tão
grande e tão radical.
281
Capítulo XI - Roma – A Capital do Império
Depois da travessia por barco pelo Mar Jônico até a cidade
de Taranto na Itália, minha caravana passou por Palermo,
Potenzo, Napolis até finalmente alcançarmos a capital do
Império Romano, a extraordinária Roma.
Não havia nenhuma cidade com a qual eu pudesse compará-
la, em beleza, fascínio, grandiosidade, luxo, extravagância e
poder. A cidade se estendia pela planície do Lácio, às
margens do rio Tibre e ficava próxima ao litoral do mar
Tirreno. Nem mesmo Alexandria poderia ser comparada
àquela gigantesca cidade com mais de um milhão de
habitantes, vindos de várias partes do mundo, desde
comerciantes, escravos, meretrizes, magos, artistas,
pintores, escultores, poetas, artesãos, sacerdotes das mais
variadas religiões, guerreiros mercenários que queriam fazer
parte do exército romano a gladiadores livres – homens em
busca de fama e fortuna que ganhavam a vida enfrentando
outros adversários ou feras no Coliseu.
Meus olhos não pararam um só momento de admirar tantas
construções, pontes, ruas, torres, palácios, jardins e pessoas.
Parecia que cada uma queria exibir-se usando os trajes mais
extravagantes, sendo que alguns homens e mulheres
andavam seminus.
Dois companheiros de viagem que me foram designados
para entregar-me ao meu novo mestre que eu ainda nem
282
sabia o nome, estavam cansados de responder às incontáveis
perguntas que eu lhes fazia.
- O que é essa muralha que cerca grande parte da cidade?
Marcus Antônio, que era romano de nascimento e fora
enviado pelos pais para estudar na Grécia com o mestre
Dardanus, apressou-se em mostrar que conhecia a história
de sua terra natal.
- Esta é a Murus Servii Tullii (Muralha Serviana), foi
erguida há 400 anos para proteger a cidade contra as
invasões. Tem quase 4 metros de espessura, 11 quilômetros
de extensão e 12 portões. Hoje ela já não tem grande
utilidade, pois o Império Romano construiu, em volta da
cidade, fortificações suficientes para manter distantes daqui
exércitos inimigos por muitos anos – disse o rapaz, cheio de
orgulho.
- O que é aquele imenso edifício branco com colunas, à
nossa direita?
- Aquele é o templo de Júpiter, que nós chamamos aqui de
Capitólio. Este é o maior templo da cidade e foi dedicado a
Júpiter, rei dos deuses na mitologia romana, e também a
Juno e Minerva, a "Tríade Capitolina". Quando você quiser
se referir àquele lugar, pode mencionar "Templo de Júpiter
Capitolino", ali é o centro da fé e da cultura romana. O
nosso imperador César Augustus vai lá, frequentemente,
render sua homenagem aos deuses.
283
- Mestre Dardanus disse que Júpiter é o mesmo Zeus na
Grécia, é isso mesmo?
- Sim, quando a Grécia foi conquistada, o império romano
trouxe para cá os sábios e eles passaram a nos apresentar
seus deuses. Claro que os imperadores romanos não
queriam que os nomes gregos fossem mantidos aqui e,
assim, mudaram os nomes dos deuses e algumas
características deles. Desse modo, os deuses romanos são
cópias dos deuses gregos...
- Quanta falta de imaginação...
- Pode ser, mas os gregos também copiaram muitos deuses
dos povos celtas, dos druidas e outros povos mais antigos
que eles conquistaram no passado. O que fizeram foi lhes
dar novos nomes e criar novas histórias. Não foi isso o que
aprendemos com o mestre Dardanus e com os demais sábios
lá em Atenas?
- E quais são esses deuses que foram remodelados, recriados
em Roma com outros nomes?
- São muitos, mas falarei dos mais importantes. Júpiter é o
Zeus grego, pai dos deuses e dos homens e principal deus
do Olimpo; Saturno é Cronos, pai de Zeus e deus do tempo;
Netuno é Posei-don, irmão de Zeus e senhor do
oceano; Plutão é Hades, irmã de Zeus e Senhora do reino
dos mortos; Vênus aqui é a mesma Afrodite grega
nascida das espumas do mar, é a deusa da beleza; Cupido é
Eros, filho de Vênus e deus do amor. Existem muitos
outros. Você precisaria de uma vida inteira para saber o
284
nome de todos eles e o que representam. De tempos em
tempos, o povo acrescenta mais uma qualidade a um deus.
- Eu entendo, Marcus. Acho curioso esses nomes dados aos
deuses... Júpiter, Saturno, Netuno... de onde vieram esses
nomes?
- Já estudei um pouco a astrologia e a astronomia que é uma
ciência muito nova. Dizem os mestres que são nomes de
estrelas já vistas há mais de 4 mil anos pelos povos caldeus
que habitavam a região da mesopotâmia. Eles observavam
muito o céu para poder se guiarem pelo deserto e também
associavam a esses astros as cheias dos rios, o movimento
das marés e as mudanças do clima.
Marcus tinha razão. Era provável que os deuses fossem isso
mesmo – uma recriação de outros. Uma tentativa humana de
melhorar os deuses do passado dando-lhes uma nova
roupagem, acrescentando alguma característica nova ou
corrigindo algum possível defeito nos antigos. Eu, sem
querer, tinha começado a duvidar do próprio Javeh, embora
dentro de mim havia uma luta muito grande para varrer do
meu espírito as dúvidas. Eu não queria mais viver com elas.
Meu companheiro de viagem e de aprendizagem, que havia
sido mandado para estudar em Atenas, era de família nobre,
a qual me recebeu como a um filho. Moravam numa
confortável morada às margens do rio Tibre, de onde se
podia ver ao longe uma construção abobodada, o Fórum
Boário, bem como o Circus Maximo, onde, segundo meu
amigo, todos os domingos, havia competições envolvendo
gladiadores. O Circus Máximo era, como pude comprovar
285
depois, a maior arena já construída de todos os tempos, pois
comportava mais de 150 mil pessoas sentadas quando foi
construída no governo de Tarquínio Prisco, há mais de 500
anos. Tempos depois foi aumentado para comportar 385 mil
pessoas. Media 600 metros de comprimento por 80 de
largura. As arquibancadas mais altas ficavam a quase 30
metros de altura. As competições esportivas, festividades e
lutas eram realizadas naquele lugar gigantesco.
- Ninguém perde uma luta de gladiadores em Roma, João –
disse-me Marcus, cheio de animação. Nós fazemos apostas
sobre quem será o novo campeão. É muito divertido.
- Quem são os gladiadores? Ouvi falar deles em várias
partes mas nunca vi um.
- Quase sempre é um escravo, um condenado ou um ex-
condenado. Homens que recebem do Imperador o direito de
se tornar cidadão livre se vencer uma série de desafios.
- Lutar contra leões, tigres e outros animais, é isso?
- Exatamente. A maioria luta contra outros gladiadores.
Existe uma escola para treiná-los. Quase sempre é uma luta
de vida ou morte, mas existem aquelas em que o gladiador
não mata o adversário, mas ganha a luta se desarmar ou
imobilizar o oponente.
- Acho que não vou gostar de ver essas lutas. Deve haver
muito sangue, não é?
286
- E qual é o problema de ter muito sangue? A gente não
mata os animais e come a carne deles com sangue? Ahh...
lembrei agora que você é vegetariano.
- Não se trata apenas disso, mas sim pelo fato disso me
parecer uma selvageria. Pessoas se atacando, se ferindo, se
mutilando...
- Você é contra o castigo? A punição? Muitas lutas são a
última chance de um homem condenado. Quando cometem
um crime grave, são julgados e sentenciados à morte por
crucificação ou decapitação. Todos os anos, o Imperador
escolhe alguns para dar a absolvição, mas eles terão que
enfrentar outros oponentes ou animais selvagens.
- De onde vêm esses animais selvagens?
- São trazidos da Índia, da Ásia Menor e de outros países. O
Império Romano é grande e é fácil encontrar animais
exóticos e trazê-los para o Circus Máximo. Você precisa ver
a animação das pessoas que gritam, aplaudem os
vencedores e pedem para que o Imperador faça um aceno
com o dedo indicador para baixo, ordenando que o perdedor
seja morto. Ou quando, se simpatizam com um gladiador,
pedem para o Imperador apontar o indicador para cima e
assim poupe a vida do mesmo.
- Parece algo bem cruel...
- Para muitos é a única diversão que possuem. O Circus
Máximo foi construído para divertir as pessoas, sejam elas
livres ou escravas. Ninguém paga para entrar lá, além de ter
287
comida e bebida de graça para todos. Tudo o que tem a
fazer é ir, sentar-se lá e torcer por alguém ou simplesmente
assistir as lutas, que duram horas.
- Imagino que pessoas mais sensíveis não vão a tais
espetáculos. As mulheres, por exemplo.
- Pois aí é que você se engana. Além de ter um lugar
especial na Arena, toda a família imperial, a corte, os altos
comerciantes, os senadores e suas esposas comparecem. Até
as Virgens Vestais possuem um camarote especial para elas.
- Virgens Vestais? São sacerdotisas ou coisa parecida?
- Sim, são as mulheres que tomam conta do templo da deusa
Vesta. As sacerdotisas são moças que foram entregues pelos
pais para serem sacerdotisas, após completarem seis anos de
idade. O rei Numa Pompílio que viveu há mais de 600 anos,
fez construiu um templo para a deusa. É um templo em
forma arredondada, localizado ao lado do Fórum de Roma.
As Virgens Vestais são encarregadas de manter aceso o
fogo sagrado que há no meio desse templo. Se, por qualquer
motivo, ele se apagasse, só poderia ser reaceso pelos raios
do sol, por meio de um conjunto espelhos.
- Fogo sagrado? Que fogo é esse?
- É uma tradição muito antiga. Diz-se que Rômulo, um dos
fundadores de Roma, instituiu, pela primeira vez, o culto ao
fogo, designando virgens sagradas, conhecidas por Vestais,
para mantê-lo aceso. De acordo com essa lenda, enquanto o
fogo permanecesse aceso, Roma sempre seria vencedora em
288
suas conquistas e o povo teria sorte e fortuna. A existência e
continuidade do fogo sagrado garante a permanência do
triunfo de Roma e do modo de vida romano; deixar o fogo
se apagar equivale a deixar o Império Romano sofrer a ira
dos deuses romanos, a qual se manifestaria em forma de
presságios.
- Qualquer menina pode se tornar uma Virgem Vestal?
- Não. Em geral só são aceitas crianças de famílias
abastadas e poderosas. Tem havido um clamor popular para
que sejam aceitas pessoas de classes mais pobres. Mas tudo
depende do Imperador. As escolhidas não podem ter
nenhum defeito físico ou mental, como surdez, gagueira ou
outra deficiência. Elas também serão obrigadas a
permanecerem virgens pelo período em que durar seus
votos, que termina ao completarem 30 anos.
- Essas mulheres possuem algum tipo de poder especial?
- Sim, possuem, são videntes e muito respeitadas aqui em
Roma. Todas recebem educação especial na Casa da
Vestais, que foi construída especialmente para elas. Lá, só
podem ir os mestres, astrólogos e outras pessoas
importantes, sempre autorizadas pela Sacerdotisa-Mor.
- Acho que é uma espécie de mosteiro como os que existem
no Oriente, só que neste caso é somente para mulheres.
- Isso, é semelhante, João. Essas Virgens Vestais têm tanto
poder que quando vão à rua estão sempre escoltadas por
guerreiros eunucos que impedem a aproximação de
289
qualquer pessoa não autorizados pela Sacerdotisa-Mor,
especialmente homens. Falar com elas é um privilégio que
só dado aos governantes, senadores e magistrados aqui em
Roma. Ao se tornarem vestais, elas estão livres do controle
dos pais, podem fazer seu próprio testamento, podem servir
como testemunhas no tribunal e, ao morrerem, são
enterradas no pomério, um lugar sagrado destinado apenas
aos Imperadores e demais governantes.
- Como conseguiram tanto poder? As demais mulheres
romanas também têm algum privilégio?
- A origem é antiga. Dizem que, no passado, eram
feiticeiras que lançavam encantamentos sobre quem elas
desejassem. Os que as desafiavam morriam
misteriosamente. Por essa razão, os reis as temiam. Elas
também têm conhecimento dos astros, curam doenças e
fazem previsões sobre as guerras. Chegam mesmo a
aconselhar o Imperador. Acredita-se que deusa Vesta lhes
confere poderes especiais em retribuição à virgindade e a
castidade que elas dedicam à santa. As mulheres romanas
não possuem os privilégios das Vestais.
- Isso não é uma lenda romana?
- Lenda ou não, as coisas são assim. Quem não acreditar
nesses mitos ou ousar desafiá-los poderá sofrer sérias
consequências e até ser condenado à morte, como sempre
acontece.
290
- As pessoas vivem com medo, Marcus... É isso que as
fazem acreditar em coisas que a razão não é capaz de
aceitar.
- Por acaso, na religião dos seus pais não existem punições
para quem duvidar, não acreditar ou desfazer das tradições?
- Sim, existem fortes punições. E hoje tenho a convicção de
que precisamos reformar esse modo de pensar. Precisamos
de deuses mais amorosos, mais pacientes com os erros
humanos. Vejo muita injustiça sendo feita em nome das
crenças.
- Você tem razão, meu amigo. Mas, até lá, temos que
continuar acreditando... ou pagar caro por não fazê-lo.
Calei-me. Fervilhava dentro de mim o desejo de uma
reforma. Aquela cidade que eu odiei na infância e durante
parte de minha adolescência, exercia um fascínio poderoso
sobre mim.
Antes de ser levado para conhecer meu novo mestre,
aproveitei para conhecer a capital do Império Romano,
cheia de vida, novidades inigualáveis, praças imensas,
calçadas com pedras negras, bosques e jardins espalhados
por todos os lugares, estátuas e palácios feitos com mármore
que formavam colunas gigantescas.
Fui conhecer os famosos aquedutos, construções que
chegavam a ter 90 quilômetros de extensão, 30 metros de
altura e tinham a finalidade de transportar água para as
casas, abastecer piscinas e fontes de Roma. Falava-se em
291
200 milhões de litros de água fornecidos por dia. Havia
quatorze aquedutos principais em Roma. A água era captada
em locais mais elevados, tais como nascentes em montanhas
e os canais, feitos com tijolos e revestidos com uma liga de
areia, cal e calcário de origem vulcânica, era levada pelo
dutos em estruturas em forma de arcos. A água chegava nas
proximidades da cidade e era despejada em reservatórios
denominados castellum. Dali, o líquido era conduzido por
tubos de chumbo ou bronze para as residências dos mais
ricos. Os pobres a recolhia nas fontes públicas, mediante o
pagamento de uma taxa. Nas principais ruas de Roma, havia
também um sistema subterrâneo de canais que conduzia os
dejetos das casas e mansões dos mais abastados para o rio.
Havia uma grande biblioteca em Roma chamada Atrium
Libertatis. Nada que se comparasse à Biblioteca de
Alexandria ou de Pérgamo, mas era magnifica. Lá, pude ler
obras de Cícero, Virgílio, Horácio, Ovídio e Tito Lívio, os
mais célebres escritores, poetas e filósofos romanos até
aquela época.
Naqueles meus primeiros dias na cidade, eu estava ansioso
para chegar o dia em que iria terminar os meus estudos e
voltar para Alexandria. Eu já estava com 30 anos de idade,
sendo que 17 anos tinham sido vagando de país em país, de
cidade em cidade, de mestre em mestre.
Mesmo tendo a generosidade da família de Marcus Antônio
que me acolheu com carinho, como se eu fosse um membro
da família, eu queria ter a minha casa, o meu espaço e, de
certo modo, queria deixar de ser estudante, um eterno
292
discípulo. Eu ansiava agora para passar adiante tudo que
tinha aprendido.
O que me esperava ali em Roma? Eu não sabia exatamente
quanto tempo ficaria e quem seria o meu novo mestre até
que, num final de tarde, chegou um mensageiro com a
resposta:
- O senhor deve vir comigo. Traga apenas a sua roupa e
seus instrumentos de escrita – disse-me o rapaz, que tinha
um corte de cabelo que se parecia com o de monges
orientais, em forma de cuia. Ele usava um túnica branca
com um cinto azul amarrado à cintura, sandálias de couro
envernizadas e um bracelete de ouro no pulso esquerdo.
Provavelmente, era uma pessoa de posses.
- Posso saber para onde estou indo? Indaguei.
- Não tenho ordens para isso, senhor. Apenas me
acompanhe, por favor. Não se preocupe, o senhor estará em
segurança.
Caminhamos por algum tempo pelas várias avenidas
movimentadas de Roma, passando por ruelas estreitas até
chegarmos a um descampado do qual era possível avistar-se
uma construção que havia no topo da colina, uma vila
romana.
O meu guia, que permanecera em silêncio até aquele local,
disse-me:
293
- Daqui o senhor seguirá sozinho. Vá direto para aquela
casa e lá será recebido. Desejo-lhe boa sorte. Que os deuses
o protejam.
Agradeci e continuei caminhando até iniciar a subida para
chegar à construção indicada, a qual começava a ter
contornos bem definidos. Era como se fosse um pequeno
palácio, dois pavimentos, uma torre ao centro, cercada por
um muro alto feito de pedras, tendo à frente uma alameda
de pinheiros que terminava em frente ao portão principal.
Antes mesmo que eu puxasse a argola que faria tocar um
sino para anunciar a minha presença, o portão se abriu.
- Seja bem vindo, João. Essa será a sua nova morada por
algum tempo. Queira, por favor, me acompanhar.
O rapaz que me recebera tinha compleição física de um
gladiador e se vestia como um deles. Usava uma bata cor de
marfim, saiote da mesma cor, amarrado por um cinturão
metálico e, sob ele, até a altura dos joelhos, outro saiote
feito de tiras de couro. Os punhos estavam protegidos por
braceletes de cobre e os pés envoltos por uma única peça
que formava a sandália e caneleiras de couro, as quais
chegavam até o meio da canela. Do lado esquerdo, uma
espada romana embainhada.
Enquanto caminhávamos para o interior da casa,
atravessamos um jardim formado por flores de vários
matizes, cercadas por uma relva verde muito macia. Havia
estátuas de leões ladeando o pórtico e sobre ele a inscrição:
Alea jacta est – que significa: “a sorte está lançada”. Já nas
294
proximidades da porta da casa, duas fontes jorravam água
saindo da boca de peixes feitos de mármore.
Ao adentrarmos a sala, o homem que me conduzia pediu
que eu retirasse as minhas sandálias e as colocasse num
canto. Depois disso, pediu para que eu me sentasse e
aguardasse. Obedeci.
A sala era ampla e arredondada, com janelas que davam
para todas as direções. Por elas, podia-se ver o sol já se
pondo e os belos jardins da parte externa da casa, bem como
uma piscina ladeada por palmeiras. Lembrei-me
imediatamente dos oásis da minha terra.
Nas paredes pintadas em tom pastel, havia três quadros
bucólicos, um retratando uma cachoeira e em outros dois,
animais pastando. O chão estava forrado por um tapete com
desenhos triangulados em várias cores, provavelmente
vindos da Pérsia, sobre ele, dezenas de almofadas
espalhadas. Em volta da sala, havia pedestais onde
provavelmente pequenas tochas seriam acesas durante a
noite. Ao fundo e do lado direito, havia uma escadaria que
levava ao andar superior. Quem morava ali deveria ser uma
pessoa de muitas posses, pensei.
Mil indagações me passaram pela cabeça enquanto eu
estava ali aguardando a pessoa que me convidara. Quem
seria o meu novo mestre e o que ele me ensinaria? Quanto
mais eu ainda precisava aprender para voltar para
Alexandria para rever meus amigos e meu mestre Malachai,
o qual já seria um ancião com quase setenta anos. E os meus
295
colegas, companheiros de estudos, o que teria acontecido
com cada um deles? Será que eu os reconheceria?
Ouvi passos descendo a escada. E, imediatamente, levantei-
me.
Caminhando em minha direção, vi um vulto de uma mulher
pouco a pouco se formar diante de meus olhos que, ao
contemplar tamanha beleza, não podiam acreditar que fosse
real. Seus passos eram suaves e ela parecia levitar.
Sua pele era morena e parecia sedosa, quase transparente.
Usava um vestido de seda branca que caía até os pés,
deixando expostos apenas os braços e o rosto. Na cabeça,
uma delicada tiara de ouro cravejada de diamantes adornava
os cabelos negros presos em um coque, ressaltando-lhe o
rosto pequeno e delicado. Os olhos ligeiramente
amendoados eram negros e profundos. O nariz afilado e
ligeiramente voltado para cima era pequeno e contrastava
com os lábios carnudos que se abriam num quase sorriso.
Os seios eram arredondados, bem modelados e imponentes.
Adivinhei por baixo da roupa uma cintura fina e pernas bem
torneadas e firmes. Era uma deusa, a própria Afrodite ou
Vênus personificada. Eu agora poderia entender melhor a
fascinação e adoração dos gregos e romanos pelas deusas.
Quando ela aproximou-se de mim, senti um inebriante
perfume que se espalhou pela sala, tornando ainda mais
mágica aquela aparição. Não havia visto nenhuma mulher
mais bela. Julguei que ela não deveria ter mais que 20 anos.
Eu parecia uma estátua petrificada e ela teve que me tocar
para que eu despertasse do sonho real.
296
- João da Judeia... João, você é o escolhido?
- Sim... sim... sou João... o esco... o discípulo de Malachai –
gaguejei.
- Eu estava à sua espera. Meu nome é Ariam de Glimeu sou
a Sacerdotisa-Mor e você está em uma das casas destinadas
à instrução de estrangeiros pelas Virgens Vestais.
Eu não sabia se me ajoelhava aos pés daquela deusa ou se
me prostrava beijando os seus delicados pés descalços,
como vi fiéis fazerem em alguns rituais na Índia diante de
divindades. Ela pareceu perceber o meu embaraço.
- Você não precisa ter cerimônias para comigo. Só chegam
até aqui aqueles que são especiais. Muitos são chamados,
mas poucos são os escolhidos. A partir de hoje, logo após a
ceia, nós começaremos os estudos dos astros, pois estamos
em uma época do ano com boa visão do céu. Você deverá
fazer anotações que serão muito importantes para o seu
trabalho num futuro próximo. Aquelas duas Vestais vão
cuidar de você até o dia da sua partida.
Olhei aturdido e, só naquele momento, me dei conta de que
havia na sala mais duas mulheres vestidas em túnicas
brancas, sem, no entanto, usarem a tiara na cabeça. Eram
bonitas, mas Ariam era infinitamente mais bela. Cada uma
das mulheres portava, atada à cintura, uma pequena adaga
curva que reconheci, no mesmo instante, serem iguais às
usadas pelos zelotes do meu país. O mesmo modelo que vi
nas mãos de meu pai.
297
Os momentos que se seguiram até eu ser levado aos meus
aposentos, que eram amplos e confortáveis, depois quando
fomos cear no andar superior da casa, um banquete feito de
frutas e flores das mais diversas cores e sabores, foram
marcantes para mim, pois percebi que eu era um
privilegiado e estava recebendo tratamento que poderia ser
dispensado a um príncipe. E, por mais incrível que pudesse
parecer, a minha princesa estava bem ali. Mas,
provavelmente, ela seria a última mulher que eu poderia ter,
pois as Vestais faziam um voto de castidade e seriam
punidas com a morte, se o violassem.
Observava atentamente os movimentos delicados e
estudados de Ariam. Quando ela falava, eu bebia suas
palavras como se fosse o mais puro dos néctares. Havia nela
um ar de singeleza e simplicidade que eu nunca havia
imaginado existir em uma mulher.
Durante a ceia, onde apenas ela e eu ceamos, sendo servidos
por outras Vestais e pelo homem que me recebera na porta.
Sobre o qual, disse-me Ariam que era um guerreiro eunuco,
ex-gladiador que devotara sua vida para proteger as Vestais
e conhecia todos os segredos das artes marciais. Bastaria um
simples sinal dela e ele degolaria qualquer pessoa que dela
se aproximasse sem permissão.
- Ele já executou muitos homens, Ariam?
Ela sorriu largamente e logo se formaram covinhas nos
cantos da boca, mostrando a alvura dos seus dentes de
marfim. Quando ela se aproximou de mim estendendo-me
um prato com flores pequeninas, algumas caíram no piso de
298
mármore e ela se agachou para apanhá-las. Não pude deixar
de ver parte das coxas morenas da Sacerdotisa, que erguera
distraidamente o vestido durante o movimento. Senti uma
excitação desconhecida. Meu corpo repentinamente ficou
em chamas. Por pouco não fui flagrado naquele instante em
que a admirava como se estivesse em transe. Procurei
disfarçar imediatamente iniciando uma nova conversa.
- Vocês aqui também comem flores como em alguns países
do Oriente?
- Sim, nós cultivamos muitas ervas medicinais, flores e
cogumelos especiais. Muitos usamos em nossas cerimônias.
Algumas dessas flores possuem poderes mágicos que nos
abrem as portas do passado e futuro. Nós as ingerimos
diariamente. Aqui tem flores de abóbora, pétalas de rosas,
lavanda, pétalas de girassóis, hibiscos, calêndulas e
gerânios.
- Não são venenosas?
- Nunca ouvi dizer que alguém tenha morrido por comer
flores de plantas não venenosas. Muitas pessoas não gostam
do sabor e não se habituaram a comê-las, mas estão
perdendo uma excelente oportunidade de melhorar a saúde.
A maioria das hortaliças e outras plantas que até são
consideradas plantas indesejadas em nossos jardins dão
flores que podem ajudar a curar doenças. Ingerimos aqui
mais de 50 espécies de flores.
- E quanto às plantas que provocam visões? Vocês as
cultivam aqui?
299
- Além de alguns cogumelos, temos uma erva que é
especialmente usada para despertar a visão é a Salvia
divinorum, também conhecida como Sábia Vidente ou
Adivinha. Aprendemos a usá-la com os druidas, povos
muito antigos. Aqui fazemos o chá das folhas, mas elas
também podem ser mascadas.
- Então é por isso que vocês, Virgens Vestais, têm tanto
poder sobre os governantes? Vocês usam essas ervas para
fazer profecias, é isso mesmo?
Ariam sorriu levemente e pareceu desconfortável em
responder diretamente àquela pergunta e o fez com outra.
- Por que você acha que temos poder sobre os governantes?
Não serão eles que deixam em nossas mãos esse poder? Não
serão eles que nos dão esse poder? Eles mesmos não
poderiam usar as ervas para obter as respostas que
quisessem?
- Sim poderiam, mas porque escolhem as Virgens Vestais
para lhes aconselhar e fazer previsões sobre o futuro?
- Talvez muitos já tenham tentado e tenham enlouquecido
ao virem o futuro. O porvir pode ser por demais assustador
para a maioria das pessoas. Ninguém está totalmente
preparado para vê-lo. Por isso, os deuses o oculta e vai
desenrolando-o pouco a pouco, como fazemos a um papiro.
Nós nunca revelamos tudo o que vemos. Dizemos apenas
aquilo que parece ser conveniente aos governantes e o
suficiente para que eles consigam algumas vitórias.
300
Naquela primeira noite na Segunda Casa das Vestais de
Roma, eu vi o céu de uma maneira especial.
Ariam me conduziu por uma escada em caracol até
plataforma da torre, de onde podíamos contemplar a
amplidão do céu estrelado. Ficamos ali, os dois,
embebecidos, olhando as estrelas cadentes riscarem o céu.
Uma brisa agradável soprava e nos envolvia. O disco
luminoso da lua começava a banhar a planície com seus
raios leitosos e suaves.
Ariam apontava animadamente para os grupos de estrelas,
ao tempo em que lhes dava os nomes.
- Olhe João... Como são lindas as estrelas, a Lua. Os antigos
acreditavam que a forma perfeita é a circunferência que
mede 360 graus e que esta também é a forma do universo
formado pelas estrelas – chamaram esse conjunto de
Zodíaco. Observaram, também, que havia 12 grupos de
estrelas, vários com formas de animais: Carneiro, Touro,
Leão, Caranguejo, Cabra, Escorpião, Peixes. Um deles tem
a forma de um Aquário, outro de uma Balança. Há também
um grupo que se parece com duas pessoas iguais: Gêmeos.
Temos ainda um grupo de estrelas que se parece com um
arqueiro...
- Sagitário, é o nome mitológico de um ser que era metade
gente metade animal e portava um arco, não é?
- Exatamente. Temos 11 até agora, falta um o principal.
Você sabe qual é?
301
- Virgem... Como a maravilhosa Virgem Vestal...
- Muito bem... muito bem, João. Você teve bons mestres,
pelo que vejo. Será fácil compreender as coisas que vou te
ensinar a partir de hoje. Agora você vai ver como é
interessante a relação entre a Astrologia e a Matemática. O
número 12, por exemplo, vem sendo usado desde os mais
antigos tempos da humanidade para informar aos sábios do
futuro que aquelas histórias e lendas foram criadas por eles
e eram simbólicas.
- Como assim? Não entendo o que você diz, Ariam.
- Os sábios e escribas sempre citam números em suas
escrituras como indicativo de que foram eles quem
escreveram aquelas histórias. É como se fosse uma
assinatura, sem precisar colocar o próprio nome. O número
12 sempre será usado, pois ele indica uma constelação
formada de 12 signos. Doze são os meses do ano, doze são
as horas do dia e 12 são as horas da noite, 12...
- Agora compreendo o por que de o número doze ser tão
usado na tradição do meu povo. São doze as tribos de Israel,
doze as pedras preciosas do peitoral do sumo sacerdote,
doze as portas da cidade de Jerusalém. Lembro que certa
ocasião encontrei mais de cem vezes o uso do número 12 no
Talmude.
- E assim será, João. Quando você for escrever alguma coisa
que seja de fato muito importante e que queira passar a ideia
de união, de força coletiva para se alcançar algum objetivo,
indicar a necessidade de agir, de lutar por uma causa
302
comum, use o número 12. Você também estará repetindo a
Tradição dos Escribas Sábios.
- Tradição dos Escribas Sábios? Nunca ouvi falar dela.
- Agora está. Ela existe desde que os homens descobriram
que, por meio da palavra escrita, podemos mudar o mundo,
mudar as ideias. Palavra é Verbo. Verbo é poder. Escrita é
poder tornado matéria, poder encarnado. Segundo aquela
tradição, todos deveriam usar números especiais para
transmitir ideias, pensamentos e sentimentos. Todas as
vezes que você ouvir uma história ligada a um número,
tenha certeza, ela foi escrita por alguém que conhece a
tradição. Você a conhece agora e, antes de partir, saberá
tudo o que sei desde que me tornei uma Vestal. Fui ensinada
por outros mestres.
- Fale-me mais sobre o círculo. O que ele tem de especial.
Ao dividirmos 360 por 12, que número encontraremos?
- Confesso que não gosto muito de matemática, mas acho
que posso chegar a esse resultado primeiro dividindo os
dois primeiros algarismos – claro, o maior pelo menor e vou
encontrar o número 3. Sobrará o zero... Juntando o zero com
o três, teremos 30, acertei?
- Exatamente, ora, 3 somado ao zero é igual a três mesmo,
não é? Ele é um número mágico e muito importante na
nossa vida.
303
A cada comentário, informação e ensino de Ariam, eu me
sentia mais e mais atraído por aquela bela mulher. Sua
inteligência rimavam com sua graça e beleza, formando um
triângulo mais que perfeito.
Estávamos só os dois ali, olhando as estrelas sob a
vigilância apenas das estrelas e da Lua, quando nossos
corpos se tocaram involuntariamente. Senti um calor no
rosto ao tempo em que experimentei a sensação da presença
daquele corpo magnifico junto do meu. Nossos olhares se
cruzaram e eu acreditei ver no fundo deles que Ariam
também me desejava e a abracei com força. A principio, ela
pareceu resistir e se conservou imóvel, mas, logo depois que
minhas mãos a enlaçou com ternura e a deslizei por sua
cintura alcançando-lhe as nádegas, ela se entregou ao meus
afagos e nossos lábios se tocaram e se transformaram num
beijo cujo sabor tenho guardado até hoje.
Senti suas mãos macias por baixo da minha túnica. Como se
tivéssemos sido possuídos por uma força mágica vinda das
estrelas, nos desfizemos de nossas roupas que ficaram
caídas aos nossos pés. Ela roçou o bico dos seios nus em
meus lábios, como um convite para saboreá-los e depois,
com extrema delicadeza, puxou-me para si e se abriu como
uma concha deixando-me apreciar sua pérola, agora úmida
e pulsante. Ariam movia os quadris proporcionando-me
uma prazer indescritível. Aquilo deveria ser o tão chamado
céu... mas não era ainda, pois ele chegou para nós a um só
tempo, fazendo sair de nossas gargantas um gemido
profundo, intenso, abafado por nossas próprias mãos, pelo
receio de sermos ouvidos.
304
Ficamos ali abraçados por algum tempo. Eu ficaria daquele
jeito pelo resto de minha vida. Por toda a eternidade, se
fosse possível. Foi ela quem recomeçou o diálogo.
- João... o que estamos fazendo? Você não vê que o que
estamos fazendo é impossível, meu querido? Disse ela num
lamento sentido.
- Não me importa... eu lutarei por esse sentimento. O que
senti por você desde que meus olhos a tocaram é mais forte
do que tudo. Não vou perde-la por nada...
- Querido... Querido... você não sabe o que está dizendo.
Você precisa saber que se uma única Vestal nesta casa
souber do que aconteceu aqui conosco, ela me entregará e
eu serei morta.
- Morta? Como assim? – disse eu, completamente aturdido.
- Nós fazemos um voto quando nos tornamos Virgens
Vestais que preferiremos a morte a perder a nossa
virgindade ou castidade. As que desobedecem e caem
pecado são enterradas vivas ou, se preferirem, decapitadas
em praça pública.
- Você não pode renunciar ao seu voto de castidade?
- Não, não posso. Antes de completar 30 anos, não posso
renunciar ao meu posto de Vestal. E, se for descoberta por
ter violado o meu juramento, serei colocada dentro de uma
caixa de madeira com água e comida que poderá durar no
máximo três dias. Essa caixa será colocada a uma grande
305
profundidade e jogarão terra sobre ela e assim ficarei lá até
a morte. Ninguém poderá me socorrer. Ninguém poderá
intervir, nem mesmo o Imperador. É uma tradição secular e
nada pode mudar isso.
- Pois teremos que mudar isso também – disse eu,
enfurecido.
- Eu temia o nosso encontro. Eu sempre quis adiá-lo, pois
sentia que estava vindo em minha direção algo que poderia
mudar para sempre as nossas vidas. Mas Obadiah ordenou
que eu o recebesse. O mestre Malachai, pessoalmente, veio
a Roma fazer essa recomendação.
- Mestre Malachai esteve aqui?
- Sim, ele esteve. Foi ele quem me falou sobre você. Eu já o
conhecia antes que você chegasse. Falou-me da sua história,
de como você sofreu desde que foi retirado do seio da sua
família. Meu coração se encheu de pesar por tudo e
sobretudo pelo fato de você ter sentimentos tão puros. Eu
soube também o que que aconteceu como a sua Sarah...
- O que faremos agora Ariam? O que faremos?! – indaguei,
aflito, segurando-lhe as mãos.
- Eu não sei, João... ou deveria te chamar de Matias? Gosto
mais do Matias. É um nome mais suave, mais delicado.
- Chame-me do que quiser, meu amor. Podemos fugir...
Sim, podemos fugir. Podemos ir para o Oriente, a Índia, a
China...
306
- Não seja ingênuo, Matias... nós não conseguiríamos nem
sair de Roma vivos. Esta casa é vigiada por guardas
pretorianos a mandado do Imperador. Ninguém pode se
aproximar daqui sem ser convidado. Acampados no fundo
desta vila, há um grupo de 10 homens que me acompanham
para toda parte. Qualquer mudança na rotina provocará
desconfiança.
- Você precisa consultar os astros. Descubra o que eles
dizem.
- Os astros não poderão interferir na vontade dos homens.
Somos nós que mudamos o curso de nossas vidas. As
estrelas vão permanecer lá no céu seguindo seus cursos.
- Ariam... minha querida, nós precisamos encontrar uma
forma de fugirmos daqui. Precisamos e isso tem que ser
feito logo... imediatamente.
307
Capítulo XII – Visões do Inferno
Os deuses, fossem eles gregos, romanos, hindus, chineses
ou mesmo o Senhor dos Judeus, haviam me pregado uma
peça. Todos eles juntos.
Quando voltei para o meu quarto naquela noite, não pude
deixar de amaldiçoar a todos eles, sem nenhuma exceção,
por terem uma vez mais colocado em meus ombros um peso
maior do que eu poderia suportar.
Sarah já havia ficado no passado, enterrada quase viva
durante um parto difícil, depois de ter sido roubada de mim
por um romano bastardo. Agora eu encontrara Ariam, uma
Virgem Vestal, por quem me apaixonara de modo
irreversível e que me pedia para eu ter paciência e esperar
as coisas se acalmarem até que surgisse uma solução para
podermos ficar juntos.
Ela sugeriu que mantivéssemos a discrição enquanto eu
estivesse ali. Ninguém podia desconfiar de nada nem notar
qualquer interesse recíproco que pudesse ser interpretado
como sinal de envolvimento amoroso. Disse-me também
que sempre me trataria com educação, mas, eventualmente,
com um certo rigor na presença das outras pessoas, para que
ficasse marcada a posição dela de Mestra e Sacerdotisa.
Concordei com todas as propostas, menos com uma: a de
esperar que ela completasse 30 anos, quando ficaria livre do
voto de castidade, quando então poderíamos nos casar, ter
os nossos filhos e vivermos com dignidade diante de todos.
308
- Não posso aceitar isso, Ariam...não posso. Está acima de
minhas forças. Não serei capaz de esperar oito anos. Não
esperaria nem oito semanas...
- Matias... Matias... parece que os mestres do Oriente não te
ensinaram nada sobre a arte da paciência...
- Paciência?! Eu perdi a paciência com esse mundo de
regras estúpidas, de leis sem fundamento, de obrigações, de
votos, juramentos...
- Eu compreendo... sei que muitas dessas regras são
ridículas diante da Mãe Gaia, da Mãe Natureza. Vejo
claramente que fazer um voto de castidade é ir de encontro
aos nossos instintos naturais.
- Se é assim, porque você o aceitou? – indaguei.
- Eu tinha apenas 6 anos de idade, quando fui levada por
meus pais para o templo das Virgens Vestais. Fui
convencida de que era uma criança especial, que teria
poderes mágicos e que viveria entre minhas irmãzinhas, que
teria uma mãe que cuidaria de mim e nenhum mal me
aconteceria se eu a obedecesse. Que criança não quer tais
privilégios? Eu via como as Vestais eram tratadas e
respeitadas por todos. Foi fácil aceitar. Mas você acha que
uma criança com menos de 10 anos tem capacidade de
decidir sobre sua própria vida?
- Eu sei do que você está falando, Ariam. Também fui
levado para a sinagoga por meus pais quando criança.
Aceitei a fé e a religião deles como algo valioso para mim.
309
Nunca questionei se eles estavam certos, pois sempre achei
que eles queriam o melhor para mim.
- Então fica fácil para você compreender que quando somos
crianças não temos escolhas. Elas são feitas por nossos pais.
E, no meu caso, eu aceitei ser uma Virgem Vestal para ter
os privilégios que tenho. Nenhuma outra mulher em Roma
tem mais poder do que eu, a Imperatriz e a mãe do
Imperador. Acho que, em alguns assuntos, eu tenho até mais
poder do que as duas juntas, você sabia disso?
- Não sabia. Então posso compreender melhor a razão de
você permanecer até hoje como Virgem Vestal. Seria tolice
não aceitar tantas regalias.
- Mas há algo maior que as regras sociais, os juramentos, as
promessas e as leis. Por elas, os homens e mulheres são
capazes de violar qualquer coisa... eu disse qualquer coisa,
Matias. Você sabe do que eu estou falando?
Eu sabia. Era aquele inexplicável sentimento que havia nos
arrebatado e nos envolvido a ponto de sermos capazes de
colocar em risco a nossa própria vida. Naquele momento,
nada mais importava, tudo o que queríamos era desfrutá-lo.
Chamávamos a essa força de amor.
Agora, ali com o rosto banhado em lágrimas, eu queria ser
capaz de compreender a razão de estar ali, perdido, confuso,
sem saber que caminho tomar. Eu nada poderia fazer sem o
consentimento de Ariam. Tremia só de pensar que um único
fio de cabelo dela fosse tocado. Eu agora queria ser o seu
eterno guardião, protege-la contra tudo e todos.
310
Foi o meu grande preparo espiritual adquirido com os
mestres Rajan, Chen e Dardanus que me ajudou a exercer
controle sobre os meus desejos.
Quando estava reunido com Ariam e outras Virgens Vestais
conhecedoras da Astrologia, do tratamento de doenças com
ervas medicinais, meus olhos se perdiam na contemplação
da minha amada. Acho que as outras mulheres percebiam
algo e se entreolhavam, mas a Sacerdotisa-Mor desfazia
imediatamente a possível intimidade, falando com voz firme
e direta:
- João... noto que você tem estado desconcentrado desde
que aqui chegou. Eu sei que aprender astrologia e cura de
doenças não é uma tarefa fácil. No entanto, quero te advertir
que se você não for qualificado nos testes que terá que fazer
nas próximas semanas, será mandado de volta e não terá
outra oportunidade. Sua graduação como Escriba-Mor
depende de ser aprovado por mim.
Por mil demônios... eu não sabia do que ela estava falando.
Graduação de Escriba-Mor? Mandado de volta? Ariam
provavelmente se valia do desconhecimento das demais
Virgens Vestais sobre a verdadeira razão de eu estar ali. Eu
fora mandado por Obadiah, pai de Malachai, para estudar,
nada mais do que isso. Eu já era considerado Escriba-Mor
desde que saíra de Alexandria. Fosse como fosse, eu
realmente estava me distraindo. Mal podia esperar pelo
momento de subir com ela pela escada em caracol que
levava ao topo da torre para reacendermos a chama do amor
que nos consumia.
311
Certa noite, ela me confidenciou.
- Você sabia que desde que chegou aqui tem despertado
paixões?
- A única paixão que quero ver despertada aqui é a sua.
Mas, do que você está falando?
- Flávia... a filha do senador romano, aquela de cabelos
claros que sempre está te oferecendo vinho.
- O que tem ela? – indaguei surpreso.
- Uma mulher sabe quando outra olha para um homem com
interesse. Flávia está interessada em você.
- Será verdade? Pensei que as Virgens Vestais não
sentissem desejo...
- Não deveriam sentir. Tomamos chás especiais para reduzir
o desejo carnal, mas, por vezes, ele é mais forte. Já
aconteceu no passado.
- Já ouve alguma Virgem Vestal que se sucumbiu ao desejo
e quebrou o voto de castidade?
- Sim, o nome dela era Fábia e aconteceu há pouco mais de
70 anos. Ela teve uma filha, resultado do incesto, e, devido
a inúmeros apelos da família e do povo, pois era muito
querida, foi perdoada. No entanto, depois de retornar ao
Templo das Vestais para terminar seu tempo de internato,
ela voltou a cometer o ato imperdoável. E, daquela vez,
312
apesar de inúmeros apelos, ela foi enterrada viva e o homem
que a violou foi esquartejado, tendo pedaços de seu corpo
pregados em postes espalhados por toda a cidade.
- Isso aconteceu aqui em Roma?
- Exatamente. Fábia era a minha bisavó.
- Quando eu ouvi essa história pela primeira vez, não dei
muita importância, mas parece que minha mãe sentia muita
vergonha da avó dela e fez de tudo para que eu, a primeira
filha, me tornasse uma Virgem Vestal e assim limpasse a
mancha da família dela.
- Isso parece um círculo infernal... não lhe parece?
- Sim, parece. Tenho, por vezes, a impressão de que
estamos presos a determinadas cadeias que começaram lá
atrás com os nossos ancestrais e seguem repercutindo em
nós. O que será isso, Matias? Você que já viajou tanto e já
conhece tantas coisas, tem alguma ideia?
- Sim, eu tenho. Acho que, da mesma forma que herdamos
as características dos nossos pais e avós, também herdamos
as histórias de suas vidas, seus desejos, seus vícios e suas
habilidades.
- Isso quer dizer que eu herdei a habilidade de minha
bisavó, o vício de quebrar voto de castidade?
- Não, muito pelo contrário... você herdou o dom do amor.
Você é herdeira dessa força poderosa capaz de enfrentar
313
qualquer obstáculo, até a própria morte, como sua bisavó
enfrentou. Claro que ela não queria morrer, mas não se
intimidou, do mesmo modo que você, e quebrou o voto de
castidade, mesmo sabendo das consequências que poderia
sofrer.
- E você, o que herdou dos seus pais?
- Ahhh... não sei. Mas estou descobrindo aos poucos que me
pareço também com meu pai em algumas coisas. Ele deu a
vida dele para proteger nossa família.
- Malachai me contou tudo. Seu pai é um herói. E você,
acha que estaria pronto para dar a sua vida por alguém?
- Sim, meu amor... eu daria mil vidas por você, se as tivesse.
Morreria mil vidas no seu lugar.
- Algo me diz que um dia você terá que fazer isso, Matias...
- Pois farei sim. Sem pestanejar. Sem vacilar.
Eram sempre assim as nossas conversas quando não
estávamos estudando na companhia de outras pessoas.
Naquela mesma semana em que Ariam me contou sobre
Flávia, algo muito estranho aconteceu.
Era madrugada, eu não conseguira dormir, pois, apesar de
ter amado Ariam no dia anterior, sentia-me inquieto e cheio
de desejo. Ansiava ardentemente por seu corpo naquele
momento. Foi quando percebi que alguém entrara em meu
aposento, o qual tinha como porta apenas uma cortina de
314
tafetá. Raramente alguém entrava em meus aposentos
quando eu ali estava, apenas as mulheres encarregadas da
limpeza e Claudius, o guarda-eunuco, que por vezes ia ver
se tudo estava em ordem. Ariam nunca tinha ido lá. Muito
embora, eu, todas as noites, sonhasse de olhos abertos que a
via entrando pela porta, indo deitar-se nua e perfumada a
meu lado. No entanto, eram só desejos que jamais poderiam
ser realizados ali. No corredor que dava para o meu quarto,
havia sempre um guarda armado, com o pretexto de me
proteger.
- Proteger de quê? Indaguei certa vez a Ariam, enquanto
estávamos no alto da torre depois de um momento de amor.
- Proteger você de si mesmo. Todos sabem que as Virgens
Vestais fizeram um voto de castidade. Ter homens não-
eunucos aqui dentro é um grande risco para todas nós.
Ninguém, além de mim que sou Sacerdotisa-Mor, pode ficar
a sós com um homem. Os imperadores, senadores e demais
governantes quando vêm falar comigo, aqui ou na Prima
Casa, que fica ao lado do Fórum Romano, não querem
companhia. Seria perigoso para eles compartilhar segredos
com outras mulheres ou guardas. Nem mesmo os
Imperadores podem levar generais quando estão em
audiência comigo.
- Então sou vigiado dia e noite, é isso mesmo?
- Sim, exceto aqui em cima no nosso canto secreto, onde só
pode permanecer duas pessoas, subindo uma de cada vez
pela escada e esta plataforma impede que sejamos
315
observados. É o único lugar desta casa onde nem eu ou você
somos vigiados.
- E se alguém ficar ao pé da escada? Pode nos ouvir?
- Já verifiquei, isso não é possível. O vento aqui em cima
sopra para longe a nossa voz. Somente um grito muito forte
poderia ser ouvido por alguém que estivesse lá embaixo.
- Precisamos então ter cuidado.
- Sim, você precisa aprender a se controlar... – disse ela,
colocando o dedo indicador sobre meus lábios.
- Você também - disse eu, beijando-a com ternura.
Será que Ariam havia burlado a vigilância e entrado em
meu quarto?
A escuridão não me deixou ver com clareza quem se
aproximava de minha cama. Percebi, no entanto, que era o
vulto de uma mulher. Quando ela se aproximou, senti o
aroma de um perfume conhecido. Era o de Ariam. Meu
coração disparou e senti medo misturado a um prazer
avassalador. Virei-me e a abracei fortemente...
- Ariam... Ariam... meu amor? Você veio me ver? Onde está
o guarda? Não é arriscado? – disse eu, procurando seus
lábios.
316
Quando ela me beijou, descobri que eu havia cometido um
erro fatal. A mulher que estava em meus braços não era
Ariam.
Afastei-me bruscamente e senti vontade de gritar. Mas, se o
fizesse, comprometeria para sempre o meu segredo. Eu, sem
querer, falara o nome da Sacerdotisa-Mor e revelara assim
que tínhamos um relacionamento além do esperado entre
discípulo e mestra.
A mulher, que até então nada falara, aproximou-se de mim e
colocou as mãos no meu rosto.
- Fique calmo, João. Não vou revelar o seu segredo para
ninguém, mas quero poder me beneficiar dele também. Eu
já desconfiava que você e Ariam estavam envolvidos. Havia
escutado gemidos e murmúrio de vocês quando estavam no
alto da torre. Também tenho notado, desde que aqui chegou,
que você só tem olhos para ela. Se ela pode ter você, eu
também tenho esse direito.
Naquele momento, eu estava sendo claramente chantageado
e não sabia o que fazer. Se eu negasse, poderia colocar a
vida de Ariam em risco e a minha também. A minha, não
me importava, mas a de minha amada sim, era mais valiosa
que a minha. Procurei reunir toda calma possível para
enfrentar aquela situação. Clamei, intimamente, por mestre
Dardanus e por todos os sábios gregos para me ajudarem
naquele dilema. Eles tinham o dom da palavra, conheciam a
arte da diplomacia, da retórica.
317
- Qual o seu nome? Por que está usando o perfume de
Ariam? O que aconteceu ao guarda do corredor? O que você
realmente quer de mim? Despejei, a um só tempo, um
turbilhão de perguntas.
- Eu sou Flávia, filha do Senador Pompeu. Coloquei um
pouco do perfume de Ariam para confundi-lo. Só havia essa
maneira de provar que vocês estão envolvidos. O guarda
está dormindo profundamente e só vai acordar daqui a
algumas horas, portanto, não se preocupe. Todos estão
dormindo, inclusive a sua amada. Cuidei para que todos
tomassem um delicioso chá antes de dormir. O seu e o meu,
no entanto, terão um efeito contrário. Nos manterá
acordados e cheios de desejo.
Antes mesmo que eu perguntasse alguma coisa ou falasse
algo que pudesse afastar aquele perigo, Flávia já estava
montada sobre mim, lambendo-me a boca, como se
possuída por um demônio. Quis me afastar, mas seus
braços, apesar de parecerem frágeis e delicados, tinham uma
força fora do comum. Era o demônio, reconheci. Nos
debatemos furiosamente.
A minha túnica foi arrancada e meu sexo tomado por aquela
boca quente que, sem parar, me arrancava um prazer
indescritível. Em seguida, ela esfregou o corpo úmido de
suor em mim e eu senti os seus seios roçando o meu rosto e
o meu peito.
- Por favor.... por favor... pare por favor... – gemi baixinho.
318
Flávia não me ouviu e logo senti que ela tentava agora fazer
com que a penetrasse. Lutamos um contra o outro e, depois
de algumas tentativas frustradas, ela se deteve e me disse ao
pé do ouvido:
- Foi muito bom... muito bom. Eu voltarei para você
terminar o que começou, João da Judeia. Ainda quero sentir
esse poderoso cetro de Salomão em minhas entranhas... E se
você contar a Ariam que eu estive aqui, você já sabe o que
vai acontecer...
O demônio saiu com a mesma suavidade com que entrou.
Fiquei ali desconcertado, entregue ao meu próprio destino.
O dia amanheceu e eu pedi para informarem a Ariam que eu
não passara bem a noite e que iria vê-la assim que estivesse
melhor.
Fiz minhas refeições no meu quarto e dentro de mim não
encontrava um pensamento ou ideia coerente. Tudo que eu
planejava acabava com um final infeliz.
Se eu contasse o que aconteceu a Ariam, ela entraria em
guerra contra Flávia e seria o caos. Se não contasse, teria
que conviver com a chantagem de Flávia.
Fugir seria uma alternativa, mas como fazer isso, sem
colocar em perigo a vida de minha amada? Se eu fosse
embora dali, talvez nunca mais pudesse retornar e o que
aconteceria a ela? Não... não a deixaria sozinha, nem por
um único instante. Não era isso o que eu queria fazer.
319
Mas, e se fugíssemos? Poderíamos começar uma nova vida
em algum lugar. Na Judeia? Não, lá seríamos perseguidos
também. Ninguém aceitaria que eu me casasse com uma
romana, muito menos com uma ex-virgem vestal
condenada. Talvez para Alexandria, no Egito, ou para
Atenas, na Grécia. Talvez, mas teríamos que viver ocultos,
pois lá também havia romanos que visitavam essas cidades
frequentemente. A beleza de Ariam logo seria notada e o
poder do Império iria alcançá-la e puni-la em qualquer
parte. Fugir para o Oriente poderia ser a opção mais lógica e
sensata, mas seria algo para ser feito por alguém de muitas
posses, pois eu mesmo só conseguira essa proeza por ter
sido patrocinado por Obadiah, a última pessoa no mundo a
quem eu recorreria para pedir ajuda naquelas condições.
Ele, assim como Malachai, me queriam solteiro para
realizar a missão de que tanto falavam.
Que fosse para o inferno qualquer missão. Minha missão
agora era fazer o que fosse para manter a minha amada viva
e ao meu lado, se fosse possível. Eu fui o homem
responsável pela violação de sua virgindade e era o
responsável por sua vida ou sua morte – essa última, eu
faria de tudo para evitar.
No dia seguinte, eu já estava mais calmo e decidi deixar
que as coisas fluíssem sem minha interferência imediata.
Fui encontrar Ariam e duas outras Vestais na sala principal,
onde havia compassos, astrolábios, réguas, mapas com
desenhos dos 12 signos do Zodíaco e alguns outros
pergaminhos que notei tratarem-se de astrologia.
320
- Espero que esteja se sentindo melhor, hoje, João – disse
Ariam, estudando-me com o olhar.
- Sim, mestra, sinto-me melhor. Acho que bebi muito vinho
ontem e acabei com uma indigestão.
- Isso acontece sempre. Quando for assim, avise-se e
mandarei preparar um chá de ervas para você. Hoje
estudaremos alguns números e a sua relação com os signos
do Zodíaco. O numero III representa que são três os tipos de
estados dos elementos na Natureza. Você poderia me dizer
quais são eles?
- Sim, é o estado líquido, o sólido e o gasoso – respondi sem
titubear, lembrando-me das aulas de ciências naturais dos
meus mestres em Alexandria.
- Muito bem. E quais são os três elementos essenciais que
estão sobre a terra, sem os quais não poderíamos viver?
- A água, o calor e o ar. A água existe nos rios, mares e
oceanos. O calor vem do sol e o ar está em toda parte, sem
esses três elementos não existiríamos.
- Isso mesmo. Por isso, o número três é um número
simbólico. Ele representa a completude em todas as coisas
que nos cercam. Veja, por exemplo, uma família; ela é
formada por pai e mãe, mas precisa existir uma outra pessoa
para que ela seja completa, para que tenha continuidade –
um filho ou filha. O número três aparece como essencial.
Você consegue se lembrar de mais algum exemplo em que
se verifica o número três?
321
- Sim, um mestre em Alexandria disse que existe um
triângulo do fogo.
- Nunca ouvi falar sobre isso, explique-nos, por favor.
- Segundo ele, para existir o fogo é preciso que existam três
elementos: o combustível, o material que é queimado e o
calor. Se faltar um desses três elementos, não pode haver
fogo.
- Pode nos dar um exemplo, João? Disse a Sacerdotisa-Mor,
demonstrando vivo interesse.
- Sim. Veja por exemplo aquela tocha apagada. Existe nela
uma estopa de algodão que é o material que será queimado.
O betume ou outro óleo que colocamos sobre ele é o
combustível e finalmente, para acendê-la, o calor que
trazemos de algum lugar.
- Por isso, nós a Virgens Vestais protegemos o fogo romano
para que nunca se apague. Todos os dias, colocamos o que
João acaba de nos dizer que se chama combustível. Assim
temos outra vez o três participando de algo tão fundamental.
Sem o fogo, sem o calor, nós morreríamos. Três é símbolo
de ressurreição, de renascimento, de criação, de
frutificação. A semente, depois que vai para o chão, precisa
de ar, água e calor para germinar. Os sábios quando querem
indicar a necessidade de pensarmos sobre tais coisas,
evocam o número três ou o representam em desenhos em
forma triangular. São três os reinos: animal, vegetal e
mineral. São três as divisões do tempo: passado, presente e
futuro. Também são três as partes do nosso corpo: cabeça,
322
tronco e membros. Aspectos da divindade são sempre três:
onipresença, onisciência e onipotência. O triângulo tem três
lados e cada lado simboliza os três estágios da vida:
nascimento, crescimento e morte. Todos os elementos estão
sujeitos a essas três fases.
- Ainda não havia percebido que o três fosse tão
significativo.
- Pois é, as pessoas só se dão conta mesmo quando
mostramos. No entanto, o três, assim como outros números
simbólicos estão bem aqui em nossa frente, por toda parte,
mostrando-nos a sua importância. Pitágoras foi um dos
sábios que mais estudou a relação dos números com a vida
humana. Você terá a oportunidade de estudar mais sobre
isso, se desejar, em cópias de livros que trouxe de
Alexandria.
Enquanto Ariam apresentava mapas astrológicos, mostrando
a relação entre os números e os astros, Flavia entrou na sala
trazendo vasos com suco de hortaliças. Ao aproximar-se de
mim, piscou um dos olhos e continuou distribuindo a bebida
sob o olhar vigilante de Ariam. Eu me sentia extremamente
incomodado com aquela situação. Ainda não tinha chegado
a uma decisão sobre o que fazer. Contar ou não contar a
Ariam? Se eu me silenciasse, estaria colocando a vida dela
em perigo? O que Flávia realmente queria? Punir a
Sacerdotisa-Mor? Ela teria alguma razão para isso? Que
razão poderia ser essa? Será que ela apenas queria se
aproveitar da quebra do voto de castidade de Ariam para ter
o direito de também quebrar o dela? Eu precisava saber
323
mais sobre aquela moça, antes de tomar uma decisão.
Precisava investigar sem despertar as suspeitas de Ariam.
- João, hoje você vai iniciar um processo de purificação. Já
faz um mês que você está aqui e já é o momento de avançar
no conhecimento – disse-me, Ariam.
- Processo de purificação? O que significa isso exatamente?
- A partir de hoje você irá para o claustro de purificação e
permanecerá lá por sete dias, apenas alimentando-se de
ervas e infusões. Nos primeiros dias, você sentirá alguma
fraqueza, mas depois seu corpo reagirá e você se sentirá
melhor. Não posso prever tudo que acontecerá lá, mas você
sobreviverá – completou ela com um sorriso que foi
acompanhado por todas as demais presente.
Concordei, embora contrariado, pois queria começar minha
investigação naquele dia e não teria mais tempo para fazer o
que precisava até sair do claustro. Também não podia contar
nada a Ariam, pois não sabia qual seria a reação dela e o
que faria diante daquela situação. Eu precisava ter
paciência.
O claustro da purificação era um quarto pequeno, com
paredes forradas com tapetes macios assim como o piso.
Havia almofadas espalhadas em todo canto. Não havia
janelas, apenas uma pequena claraboia no alto, por onde
entrava um réstia de luz. Havia uma pesada porta de
madeira que seria trancada por fora, logo que eu entrasse.
Na parte inferior, havia uma abertura por onde seriam
colocadas as minhas refeições diárias à base de ervas. Fui
324
informado de que na parte posterior do quarto havia uma
espécie de gaveta, contendo vasos feitos de cobre, onde eu
deveria fazer as minhas necessidades. Alguém, pelo lado de
fora, iria se encarregar de lavá-los diariamente. Uma
moringa com água também seria completada
frequentemente e por isso eu deveria deixá-la sempre na
pequena abertura existente na abertura do aposento.
- Isso mais parece uma prisão – disse eu sorrindo para
Ariam, que, junto com as demais Vestais, me conduziram
até o meu claustro, localizado nos fundos da morada.
- Sim, e é mesmo. Todos os cuidados são tomados para que
quem estiver ali não se machuque involuntariamente.
Quanto mais tranquilo você estiver, mas fácil será passar
por essa prova. Nunca deixe de tomar as bebidas que lhe
serão oferecidas, mesmo que sejam amargas e de sabor não
agradável. Você irá provar alguns cogumelos especiais e os
efeitos deles no seu corpo dependerão do que você carrega
em seu espírito. Não lute contra nada que vir ou ouvir. Não
tenha medo, apenas saiba que tudo passará. Se acontecer de
algo sair fora do seu controle, eu estarei aqui para ajudá-lo.
Senti uma irresistível vontade abraçá-la, mas não seria
aquele o melhor momento. Aceitei o meu destino e entrei na
minha clausura para passar os mais terríveis sete dias de
minhas vida.
No primeiro dia, me senti fraco, com náuseas e vertigens
constantes. Minha primeira noite foi em claro, ruminando
meus pensamentos. Quem sou eu? O que estava fazendo
ali? Eu estava louco? Estava preso para sempre por alguma
325
ninfa encantada? Não ouvia um único ruído externo, apenas
quando as minhas cuidadoras vinham colocar comida ou
recolher os meus dejetos. Nada falavam.
Os dias seguintes foram uma mistura de pesadelos
alternados por estados de extrema euforia, raiva, desespero
e dor. Uma dor profunda, insuportável, monstruosa. Eu
estava entrando no inferno. Era diferente do que pensei ter
sentido, quando adoeci na China. Era mil vezes pior. Minha
cabeça parecia ter dobrado de tamanho e eu achava que a
qualquer momento ela iria explodir. Comecei a gritar em
desespero, mas ninguém veio me socorrer. Debati-me
contra as paredes e só não me feri porque eram forradas por
grossos tapetes.
Houve um momento em que tudo serenou. Eu podia ouvir
as batidas do meu coração. Eu podia ouvir o som da minha
respiração e fui invadido por uma paz imensa. Era como se
eu estivesse me dissolvendo num oceano de luz. Não via
mais o meu corpo, apenas uma grande janela de onde era
possível contemplar o mundo. Eu era um pássaro voando
pelo firmamento, sobrevoando os mares, as montanhas e os
vales verdejantes. A luz do sol se desdobrava em centenas
de arco-íris e deles brotavam diamantes faiscantes que me
assombravam pela beleza. Ninfas vestidas em mantos
esvoaçantes e prateados corriam felizes sobre as nuvens,
sorrindo para mim e se perdiam entre as brumas. Ouvi sons
de mil harpas misturados aos de mil trombetas, as quais
eram sopradas por mil anjos. Todos me cercavam e
entoavam canções que caiam como gotas de prata sobre
uma imensa fonte de cristal.
326
Até hoje, quando me lembro daquelas visões, não tenho
certeza se foram apenas a minha imaginação incendiada
pelas ervas que eu bebia ou se de fato eu estivera
contemplando aquelas maravilhas. Aquilo deveria ser o céu.
Não havia outra explicação. Era daquele céu que falavam os
livros sagrados. Deve ser para lá que vão os que morrem, ou
quem sabe para o inferno, como dizia o Talmude.
Quando eu saí da minha clausura, sentia-me leve como uma
folha seca. Deveria estar muito fraco, pois caí aos pés de
Ariam quando ela veio ao meu encontro. Não me lembrava
de nada do que havia acontecido nos últimos dias. Eu havia
perdido a memória de tudo que tinha passado. Apenas as
lembranças do céu que eu havia experimentado, depois de
ter passado pelo inferno, estavam cintilantes em minha
mente. Eu queria voltar para lá. Não queria mais o mundo
do lado de fora. Ficar no céu era maravilhoso. Lá não havia
dor, nem sofrimento, nem morte. Tudo era perfeito.
Não sei por quanto tempo fiquei naquele estado de torpor,
entre o sono e a vigília. Lembro, vagamente, em breves
lampejos, que Ariam me aparecia e falava comigo e depois
partia. Parece que ela me fazia perguntas, mas eu não me
lembro quais foram as minhas respostas. Tudo era muito
confuso naqueles primeiros dias depois que eu saí da
clausura.
Até que um dia eu percebi que já conseguia me lembrar de
quase tudo. Ao recordar do que havia acontecido entre mim
e Flávia e do que precisava fazer para resolver o dilema,
descobri que já tinha a resposta para ele. Contaria tudo a
327
Ariam e deixaria que ela decidisse. Seja lá qual fosse a
decisão, eu estaria junto com ela.
Quando terminamos de cear na presença de algumas vestais,
indaguei a Ariam se podíamos continuar nossas lições de
astrologia na torre. Eu estava ansioso para contemplar
Vênus ou outros astros brilhantes naquela noite estrelada.
No entanto, ela me respondeu com uma certa frieza:
- Hoje não estou me sentindo bem e terei de me recolher
mais cedo. Amanhã, talvez.
Fiquei desconcertado. Será que ela não me amava mais? O
que teria acontecido durante aqueles dias em que eu estivera
no claustro?
Aproveitei o momento em que todas as vestais já haviam
saído da sala e apenas eu e ela terminávamos a ceia para
fazer-lhe algumas perguntas:
- Vocês todas já passaram pela claustro de purificação?
- Sim, todas nós já passamos. Algumas não resistiram e
tiveram que ser retiradas.
- O que aconteceria se eu não tivesse resistido?
- Sem passar pelo inferno ninguém pode alcançar o céu, é a
regra. O inferno são os medos, as dúvidas, o ódio, os
rancores e todas as coisas ruins que estão acumuladas
dentro de cada um de nós. Enquanto não nos purificarmos
delas, não seremos capazes de chegar ao céu. Quem não for
328
capaz de vencer essas coisas, permanecerá no umbral,
oscilando entre o céu e o inferno.
- Mas foram as ervas que vocês me deram que me
provocaram aquelas visões. É com chás de cogumelos que
as pessoas chegam ao céu?
Pela primeira vez depois que eu saíra da clausura, ela sorriu.
- Não, João. As ervas apenas ajudam a acelerar o processo
do conhecimento. Da mesma forma que o vinho deixa as
pessoas mais felizes e em outras causa um estado de
euforia, as ervas que te demos despertou em você as visões
que você teve. Suas visões são só suas e de mais ninguém.
Duas pessoas não podem jamais compartilhar de uma
mesma visão. É necessário que você compreenda isso.
Algumas pessoas chegam a esse estado pela meditação,
como no Oriente, e outras com jejuns e orações, como o seu
povo.
- Eu compreendo Ariam. Então você está me dizendo que o
céu não existe fora do nosso corpo e sim dentro de nós
mesmos?
- E o inferno também. Você o experimentou. Se você não
tivesse ódio, raiva, rancor, medo e tantas outras coisas ruins
no seu coração, como poderia senti-los? Por outro lado,
dentro de você também existe paz, compreensão, bondade e
amor, isso fez você experimentar o céu. Algumas pessoas
enlouquecem depois de experimentar os chás que abrem as
portas da percepção. Não estão preparadas para o que vêm
ou ouvem. Ficam presas para sempre naqueles lugares e não
329
terão mais contato com a realidade. Por isso, essa
experiência é perigosa para quem não está preparado. É
preciso limpar primeiro o coração e enchê-lo de paz e amor,
para entrar no céu com segurança e voltar à terra para
continuar vivendo.
Foi a palavra amor que me encorajou a fazer uma pergunta
que eu queria ter feito antes mas não fizera. Falei em tom
baixo para que apenas ela pudesse me ouvir, mesmo
sabendo que não havia mais ninguém na sala.
- Preciso saber se você ainda me ama, Ariam...
Ela baixou o olhar e levantou-se, fazendo sinal para que eu
a acompanhasse até a saída. Eu a segui.
Já do lado de fora andamos pelo jardim em volta da casa.
- Muita coisa aconteceu durante os dias em que você esteve
na clausura, Matias – falando meu nome que só era
compartilhado em nossa intimidade.
- O que aconteceu? Conte-me, por favor.
- Você se lembra da Flávia, a filha do senador?
- Sim, claro, me lembro. Não a vi desde que saí da clausura.
- Ela não está mais aqui. Na verdade, ela não está mais no
mundo dos vivos. Morreu alguns dias depois que você
estava no claustro.
330
Senti um golpe no peito, como se tivesse sido atingido pela
funda de meu irmão Calebe.
- Morreu?! Flávia morreu? Como assim? O que aconteceu?
- Ela foi encontrada morta em seu leito. Tudo indica que
cometeu o suicídio. Uma xícara com um poderoso veneno
misturado ao chá foi encontrada ao lado da cama dela.
- Suicídio? Isso acontece com frequência entre as Vestais?
- Sim, não é raro. Nos últimos dez anos, pelo menos cinco
moças desistiram de viver por alguma razão desconhecida.
Flávia tinha problemas desde que chegou. Sempre achava
que poderia ser a Sacerdotisa-Mor, apenas porque seu pai é
um influente senador romano.
- De quem é a decisão de escolher a Sacerdotisa-Mor?
- Em geral, ela é indicada pela Sacerdotisa mais antiga que
indica sua preferida e submete à votação de todas. Se for
aceita, se tornará a sucessora. Assim, logo que ela deixa o
cargo, a escolhida assume e o sistema continua até a eleição
da próxima que terá que cumprir suas funções até completar
30 anos.
- Compreendo. Você e Flávia tiveram alguma conversa
enquanto eu estava no claustro? – perguntei, para tirar uma
dúvida que começava a se instalar no meu coração.
331
- Sim conversamos. Converso com quase todas elas
diariamente. Qual a razão dessa pergunta? Tem alguma
coisa que eu deveria saber?
Embora eu tivesse receio em falar sobre o que acontecera
naquela noite porque não sabia que reação Ariam poderia
ter, decidi falar.
- Na verdade, tem sim. Eu queria ter contado antes de ter
ido para a clausura, mas não houve tempo.
Contei-lhe tudo. Ariam não esboçou qualquer sinal de
aborrecimento ou preocupação, mas me disse.
- Matias, eu tenho que te pedir algo agora e você não poderá
me negar. Faço isso pelo nosso amor. Prometa-me que você
atenderá meu pedido seja lá o que for... prometa-me...
Eu poderia prometer sim, mas não sabia se iria cumprir a
promessa.
- Diga-me o que quer que eu faça e eu o farei, se for para
salvar o nosso amor.
- Preciso que você volte para Alexandria imediatamente.
Mestre Malachai o espera.
- Mas... eu não deveria ficar aqui pelo menos por mais três
meses antes de regressar para Alexandria? Não foi esse o
acordo?
332
- Sim foi, mas as coisas se modificaram um pouco. A
família de Flávia não está satisfeita de ela ter morrido aqui
nesta casa e vai iniciar uma investigação. Sua estadia aqui
será questionada, mesmo que tenha sido autorizada. Outros
discípulos já estudaram aqui antes de você. No entanto, essa
morte prematura de uma Vestal poderá ser vista como um
mau presságio. Você é judeu e os romanos não gostam
muito dos judeus...
- Compreendo, vão achar que eu tenho culpa na morte de
Flávia, não é?
- Sim, poderão achar isso. Mas o pior é que Flávia, antes de
morrer, pode ter contado para outra pessoa. E se for assim...
- Se for assim, você será entregue. Você será condenada,
não será?
- Eu sei o que fazer e posso me proteger, mas você não
poderá. Se fecharem o cerco a você antes que alcance
Alexandria, tudo estará perdido para nós.
- Não deixarei você para trás, meu amor...
- Matias... Matias, escute-me... você precisa fazer o que
estou te pedindo. Mandarei selar um cavalo ao cair da tarde
e você partirá, protegido por dois guardas. Darei ordens
para que o coloquem no próximo navio que parte amanhã
cedo para o Egito. Prometa-me que você fará isso?
Senti as lágrimas queimarem a minha face. Uma vez mais o
chão me fugia sob os pés. Eu não tinha controle sobre a
333
minha própria vida. Parecia um jogo de xadrez que,
segundo o mestre Rajan, foi inventado por seu povo, no
qual, cada movimento de uma das peças do tabuleiro fazia
outras se movimentarem, criando um obstáculo ao meu
caminho. Cabia ao jogador superar os obstáculos para
vencer o jogo.
- Ariam, eu farei isso se você prometer que depois que eu
cumprir a minha missão ficaremos juntos, não importa
quanto tempo isso possa durar...
- Sim, meu amor, eu prometo.
- Tenho uma última pergunta para te fazer. Confiarei na sua
sinceridade. Preciso saber se você está envolvida com a
morte de Flávia... Bem, é que ela era uma ameaça a nós e
você pode ter descoberto o desejo dela por mim...
- Então você acha que eu seria capaz de assassinar uma irmã
por sua causa? Acha que além de cometer o pecado de
violar meu voto de castidade também cometi o pecado de
matar outra pessoa?
- Perdoe-me.. eu não sei. Realmente não sei. Só sei que se
você tivesse feito isso eu a perdoaria. Cheguei a pensar que
você teria mandando Flávia entrar em meu quarto para
testar a minha fidelidade a você. Pensei tantas coisas, mas
não posso ter certeza de nada.
- Não... eu não mandei Flávia ir ao seu quarto tenta-lo
naquela noite, nem a envenenei, como você supõe. Agora
que já tem a minha resposta, desejo que vá em paz. Você
334
cometeu um grande erro ao desconfiar de minha palavra ou
minha honestidade. Não sei se um dia eu o perdoarei por
isso. Quero que vá embora, conforme eu te pedi.
E, dizendo isso, ela afastou-se sem me olhar. Eu fiquei ali
parado no meio do jardim, desolado, sem saber o que fazer
ou para onde ir.
Não a vi mais e, ao cair da tarde, parti, conforme as
instruções dela. Já fora do portão, descendo a colina, olhei
para trás e tive a sensação de que ela estava lá a me
observar, como se quisesse se despedir de mim. Senti que
apenas meu corpo se afastava dali ao sabor do galope do
cavalo, mas meu coração havia ficado lá, no alto daquela
torre de ferro, nas mãos de minha amada Ariam de Glimeu,
a mulher que eu amaria pelo resto dos meus dias.
335
Capítulo XIII – O Retorno
A viagem, que durou quase dois meses até Alexandria, foi
tediosa. Parecia que nunca teria fim. Paramos em muitos
portos para deixar ou pegar cargas e depois partíamos outra
vez. Permaneci a maior parte do tempo encolhido em um
canto do navio, sem falar com ninguém, sem querer comer,
apesar da insistência do capitão do navio, um troiano
divertido que tentava de todas as maneiras me agradar. Eu
era a mais preciosa carga que ele transporta, dizia ele, e eu
deveria chegar são e salvo em Alexandria, ou não lhe
pagariam a outra metade do preço combinado.
Não sentia vontade de coisa alguma, além do desejo de estar
nos braços macios e aconchegantes de minha amada.
Se eu ao menos tivesse trazido algumas ervas, talvez as
usasse para mergulhar naquele paraíso e esquecer de tudo.
Eu sabia que era um grande sinal de fraqueza, mas quem se
importava. Eu era dono de minha própria vida, faria dela o
que bem entendesse. Por outro lado, eu também refletia que
o uso contínuo daquelas ervas se tornaria meu carrasco e eu
estaria condenado a viver em busca delas pelo resto da
minha vida, se ainda pudesse chamá-la de vida.
Dormia o maior tempo possível e comia quando realmente
não conseguia mais resistir aos apelos do capitão do navio.
336
Quando, do alto do caralho, o marinheiro gritou:
- Alexandria! Alexandria! Alexandria!
Despertei-me da minha letargia. Na embarcação houve
grande alvoroço. Já se podia ver-se ao longe a ponta do
farol de Alexandria. Meu coração, sem esforço, começou a
se sentir em casa outra vez.
O desembarque foi tumultuado. Uma mistura de cargas,
gente, animais, gritos de mercadores no porto. Eu estava
ansioso para rever meus amigos, o meu mestre, e poder
resolver tudo o mais depressa possível para voltar a Roma,
onde eu poderia ficar mais perto de Ariam e, quem sabe, se
tivesse sorte, esperar que ela terminasse seu tempo como
Vestal e pudesse casar-se comigo. Era tudo o que eu
desejava naqueles dias.
Vi o rosto de um ancião sorridente, caminhando apoiado em
um cajado, espichando o pescoço sobre os demais, na
esperança de me reconhecer, era do mestre Malachai, a
quem eu tinha como um verdadeiro pai.
Continuei caminhando com a intenção de passar por ele e
descobrir se ele me reconheceria do jeito que eu estava,
barbudo, 10 anos mais velho e vestido como um nobre
romano.
- João! João... gritou ele, vindo ao meu encontro.
Ele me reconhecera sem esforço.
337
Abraçou-me sorrindo, olhando-me de cima a baixo.
- Meu filho... meu filho querido. Que bom que você voltou.
Que bom. Vamos para casa, seus irmãos o esperam. Não
temos tempo a perder.
Eu estava ansioso para ter noticias deles.
- Como estão os meus irmãos? – indaguei. Tomé, Mateus,
Felipe, Judas e os demais, onde estão eles?
Mestre Malachai pareceu não ouvir. Talvez estivesse
ficando surdo. Continuou falando sobre como Alexandria
tinha crescido e como as coisas haviam mudado. O novo
governador queria ampliar a Biblioteca, construindo uma
segunda menor, para abrigar apenas cópias de livros muito
importantes, para o caso de uma enchente, terremoto ou
incêndio.
Esperei o momento de encontrar os meus irmãos, meus
velhos companheiros, mas não os encontrei.
Malachai conduziu-me para o local onde estavam várias
carruagens puxadas por cavalos e indicou para que eu
subisse ao seu lado. Deu instruções ao cocheiro e
disparamos na direção da saída da cidade.
- Para onde estamos indo, Malachai? Não vamos para a
nossa antiga casa?
338
- Não, João... faz algum tempo que saímos de lá. Agora é
morada de novos estudantes. Aqui em Alexandria é assim.
Chegam uns e partem outros. Vamos encontrar os nossos
irmãos essênios em uma vila fora da cidade.
Depois de duas horas de viagem, chegamos a um pequeno
castelo às margens do Nilo. Era uma construção primorosa,
feita de mármore branco e pedras, dois pavimentos e um
ancoradouro, onde havia um barco atracado. Curiosamente,
não havia muros. Um jardim com fontes e flores exóticas
circundavam a morada.
Um rapaz usando turbante veio nos receber à porta e nos
conduziu para o interior. Havia um grande pátio circular
gramado, tendo, ao centro, uma fonte que jorrava água da
boca de dois peixes voltados um contra o outro. Agora eu
estava observando com mais cuidado os símbolos à minha
volta. Também havia, ao fundo, estátuas de dois leões
sentados e, logo acima de uma porta que deveria ser a de
entrada para as dependências da casa, um triângulo com o
desenho de um olho ao centro.
Em volta do pátio, havia colunas que sustentavam o teto, o
qual não era totalmente fechado e deixava entrar luz por um
vão em forma circular, no alto, ao centro.
Havia exatamente 30 pessoas no recinto, entre homens e
mulheres. Entre elas, estavam todos os demais
companheiros que vieram de Jerusalém, exceto um que
estava doente. Apenas os cumprimentei com um sorriso e
339
senti-me no lugar que me fora designado. Foi um homem
em idade avançada, que parecia ser o Sacerdote-Mor da
fraternidade dos essênios, que, após fazer uma breve oração
ouvida por todos, disse:
- Irmãos e irmãs, este é um momento especial de nossas
vidas. Durante muitos anos, aguardávamos por ele. O
discípulo que alcançou o mais alto nível de conhecimento e
sabedoria nos 17 anos de aprendizagem está entre nós para
receber a missão que foi designada a ele quando ainda era
uma criança aprendiz de escriba lá em Jerusalém. Embora
acreditássemos que ele fora o escolhido, não tínhamos
certeza de que ele conseguiria vencer as duras provas que
teve de enfrentar para chegar até aqui. Por isso, trouxemos
mais 12 discípulos igualmente capazes para substituí-lo,
caso ele desistisse ou falhasse. Para a nossa satisfação, o
escolhido cumpriu todas as etapas, ultrapassando-as,
inclusive. Ele agora saberá qual é a missão que terá que
cumprir, pois o Senhor assim o requereu. João, por favor,
levante-se e sente-se no centro desta sala, 7 mestres te farão
algumas perguntas para terem certeza de que você está
preparado. Embora você tenha sido o escolhido, não será
obrigado a cumprir a sua missão. Se resolver renunciar a
ela, procederemos ao sorteio entre os doze outros que
também poderão cumpri-la.
Eu esperara por aquele momento por toda a minha vida.
Sabia que seria algo grandioso e que ajudaria a mudar o
mundo, eu só não sabia dos detalhes e certamente eles me
340
seriam revelados naquele dia. Um dos mestres, que parecia
ser de origem grega, começou fazendo-me perguntas sobre
os filósofos gregos, a minha opinião sobre eles, o que eu
tinha aprendido sobre Heródoto, Aristóteles, Pitágoras,
Sócrates e Platão. Esclareci ponto por ponto, com total
firmeza e segurança.
Para finalizar, ele perguntou:
- Você avalia que se o mundo fosse governado segundo os
princípios e ideais dos gregos que você estudou seria mais
justo e melhor?
- Sim – respondi sem titubear. O filósofo Sócrates, por
exemplo, conclamava aos cidadãos gregos e a todos os
homens a quem ensinou: “Conhece-te a ti mesmo”. Ele
defendia que, antes de tudo, devemos conhecer a nós
mesmos. Para ele, quanto mais o homem conhecesse a si
mesmo, mais poderia usar o poder que possuía, poderia
corrigir seus próprios erros e tornar-se um ser humano
melhor. Para ele, a verdadeira descoberta estava no interior
da alma humana e não fora dela.
Vários sábios e eruditos me fizeram perguntas sobre
assuntos que eu havia aprendido ao longo de minha
peregrinação pelo mundo. Não tinha certeza se estava me
saindo bem, mas me esforçava para não deixar uma única
pergunta sem resposta. Algumas provocavam gargalhadas
na plateia.
341
Depois foi a vez de um mestre que falou em latim. Eu nunca
o havia visto antes e, seguramente, era um doutor em leis
romanas e dominava com profundidade a história dos
povos. Ele fez inúmeras perguntas, muitas das quais não me
recordo com exatidão, mas posso mencionar parte do debate
que tivemos naquele dia.
- Você acredita que todos os romanos são maus ou apenas
alguns governantes?
- Não posso julgar a todos os romanos, mas sei que existe
um grupo de homens chamados Senadores e são eles que
aprovam ou rejeitam a maior parte das decisões do
imperador. Quem elege os senadores são pessoas do povo.
Eles alegam que o governo deve servir ao povo, mas, na
prática, é o povo que os serve. É o povo que acaba sendo
massacrado pelos erros que eles cometem.
- Você é judeu, nasceu em uma família judia. Você entende
que as terras que os seus ancestrais, Arão, Abraão, Moisés,
Davi e Salomão conquistaram teve algum valor para o seu
povo?
- Depende de quem era esse povo. Sei que, ainda hoje, os
grupos se dividem e cada um deles quer dominar e subjugar
o outro. Na minha avaliação, as tribos deveriam repartir as
terras, os recursos, entre si, de acordo com as necessidades
de cada um.
342
- Você acredita que todos aceitariam de bom grado fazer
uma divisão? Como fazer com que cada pessoa se conforme
com a parte que lhe cabe e não deseje mais do que é
necessário para si ou sua família?
- Entendo que precisam ser criadas leis mais rigorosas nesse
sentido. Os governantes deveriam cuidar disso – respondi.
- Governantes? Quais governantes? Os que invadem as
nações alheias e tomam tudo? Veja aqui nesta sala, estão
lado a lado, romanos, egípcios, gregos, troianos, etruscos e
outras nações. Como acha que conseguimos esse milagre?
- Eu sinceramente não sei.
- Pois deveria saber. De que valeu toda a sua aprendizagem
viajando pelo mundo, recebendo orientação dos melhores
mestres, se você não sabe como as pessoas podem trabalhar
juntas pelo bem comum?
- Penso que elas se juntam para se tornarem mais fortes.
Assim, apresentam ideias semelhantes que contribuam para
mudar as leis e os governos. É isso mesmo?
- Sim, essa é a melhor resposta, João. Você acha que um
grupo como o nosso será capaz de mudar a vontade de um
Imperador, obrigá-lo a nos deixar em paz e ficar dentro do
próprio território? Você acha que bastará que nós peçamos a
eles que saiam do Egito e de tantos outros lugares que já
invadiram, para que eles o façam?
343
- Creio que, com persistência, buscando a união do povo,
talvez consigamos.
- O povo! sim o povo, que mal sabe de que lado sopra o
vento. O povo é manipulado, enganado, conduzido pelos
que têm poder. Basta que lhe acenem a promessa de
melhorias e o povo os segue até a morte. O povo não vai se
juntar a um bando de iluminados como nós que nem mesmo
somos aceitos no nosso país de origem.
- O senhor então acha que existe uma outra solução?
- Parece que você aprendeu bem a arte da retórica, não foi?
Todos riram.
- Tive um bom mestre, Dardanus, o grego.
- Ele deveria estar aqui também hoje, mas não está.
Precisamos de homens e mulheres capazes de nos apoiar na
grande empreitada que estamos prestes a realizar. Mas é
preciso que você saiba que ela depende de sua decisão. A
sua missão lhe será entregue hoje, porém será necessário
que você faça o Juramento Sagrado dos Essênios. Você
acredita que está apto para fazê-lo agora?
- Posso pelo menos saber sobre a que irei jurar?
- Você vai ouvir as palavras do Sumo Sacerdote e as
repetirá. Caso não se sinta confortável, não aceite, ou tenha
344
dúvida, não precisará repetir e a cerimônia será encerrada.
Outro discípulo será escolhido por sorteio. Está bem assim?
O que tinha eu a perder? tudo o que eu mais queria era
cumprir logo a minha missão e voltar para Roma. Lá eu
tinha a única missão que queria cumprir pelo resto de minha
vida, viver feliz ao lado de minha amada.
Em seguida, fez-se um grande silêncio e uma cortina se
abriu, saindo de trás dela a figura de um homem idoso, alto,
longa barba branca dividida em duas partes que alcançavam
o peito. Usava uma túnica branca de seda e no peito havia
um medalhão com inscrições que eu não consegui ler. Nos
braços, usava braceletes de ouro e, na mão direita, um anel
de prata com uma esmeralda engastada. Com andar altivo,
ele caminhou até o centro da sala onde eu estava assentado,
aproximou-se de mim e segurou-me com as duas mãos,
olhando-me nos olhos.
- João, eu sou o Sumo Sacerdote da fraternidade dos
Essênios. Você já deve ter ouvido falar em meu nome. Sou
Obadiah, o responsável por sua educação e preparo para a
missão que lhe será dada após o seu juramento. Está
preparado? – disse ele, com voz grave, pausada e profunda.
- Sim, eu estou - disse eu, um pouco trêmulo, diante
daquele homem imponente.
- Então ajoelhe-se e repita comigo, conforme já foi
orientado pelo mestre de cerimônias.
345
Ele prosseguiu, colocando a mão esquerda sobre minha
cabeça e a direita sobre o coração, pedindo-me para que eu
colocasse a minha direita sobre meu peito e a esquerda
sobre a testa, com a palma voltada para fora.
- Eu juro em nome de Deus, em nome dos anjos, em nome
dos seres que habitam o invisível que, de hoje em diante,
serei um guardião da tradição dos Essênios e tudo farei para
aprender mais sobre seu modo de viver, respeitando suas
tradições e ensinamentos.
Repeti frase, após frase, confirmando o juramento.
- Juro que jamais relevarei a quem não pertencer à
fraternidade qualquer ensinamento, decisões ou
mandamentos que não forem autorizados pelo Sumo
Sacerdote, depois de ouvir o conselho.
- Juro que não comerei alimentos mortos de origem animal
de nenhuma espécie, a não ser em caso de extrema
necessidade de sobrevivência.
- Juro que lutarei para proteger o reino animal, vegetal e
mineral, conservando-os para uso de todos.
- Juro que não acumularei bens a não ser aqueles que
possam ser usados para obras de aprimoramento espiritual e
voltados para as ciências naturais. Repartirei sempre com os
que necessitarem o que herdar ou receber de outrem.
346
- Juro que jamais molestarei crianças, doentes, grávidas ou
idosos, nem cometerei qualquer ato de violência contra
quem quer que seja, a não ser em legítima defesa dos que
necessitarem serem defendidos.
- Juro que cumprirei todas as missões que me forem
designadas, as quais serão determinadas pelo conselho, e
guardarei sigilo sobre elas enquanto viver. Não as revelarei
a nenhum membro de minha família, pai, mãe, filhos,
irmãos ou quaisquer outros, sob pena de ser banido da
fraternidade, ter os meus bens confiscados e distribuídos aos
que necessitarem, como punição pela quebra do juramento.
- Assim sendo, eu, 25º Sumo sacerdote da Ordem dos
Essênios, declaro que João da Judeia está sendo consagrado
como membro da nossa fraternidade e deverá ser aceito,
respeitado, ajudado e amado em qualquer parte que for
encontrado.
Todos proferiram em uníssono: que assim seja!
Os participantes da cerimônia vieram me cumprimentar,
incluindo meus velhos amigos, então já adultos como eu.
Choramos todos juntos naquele reencontro memorável.
Cada um tinha perguntas para me fazer, histórias para me
contar. Eu prometi que teria tempo para falar tudo o que
tinha me acontecido – ou quase tudo. Também queria saber
das suas histórias.
347
O Sumo Sacerdote determinou que, depois dos
cumprimentos, todos voltassem aos seus lugares e apenas eu
permanecesse ali, pois naquele dia eu receberia a minha
missão.
Todos aguardaram em silêncio e o ancião, dirigindo-se a
mim, indagou:
- Irmão, você está disposto a cumprir a missão que temos
reservado para ti desde muitos anos?
- Sim, mestre – respondi.
- Então essa será a sua missão. Logo que tenhamos tudo
resolvido, o que não deve demorar mais que um mês a partir
de hoje, você será levado de volta para Roma, será recebido
por Vipsânia Agripina, mulher do Imperador Tibério
Cláudio Nero César.
Fiquei atordoado.
- Vipsânia Agripina!? A esposa do Imperador Romano? Por
quê? O que farei lá?
- Sua missão é granjear a confiança de Agripina, pois você
foi indicado por um dos nossos, que é professor do pequeno
Júlio Cesar Druzo, filho deles. Se for aprovado por
Agripina, você também será mestre dele. O menino precisa
aprender a escrever para se tornar doutor como você. Seus
conhecimentos de filosofia, de história, astrologia,
348
numerologia e tantos outros conhecimentos impressionarão
Agripina e ela provavelmente o aceitará.
- Mas eu sou judeu... acha que eles me aceitarão para
ensinar o próprio filho?
- Você não é mais judeu, João. Você foi criado pelo mundo,
já perdeu a sua identidade e já nem fala como um judeu da
Palestina ou da Judeia.
- E qual é o objetivo dessa missão? O que deverei ensinar ao
menino, se for aceito?
- Você deverá ensiná-lo o que aprendeu. Ele crescerá vendo
o mundo por seu olhos. Você lhe contará histórias, você o
ensinará como ninguém e ele crescerá pensando diferente
do pai. Quando chegar ao trono, Roma estará sendo
governada por um homem que tem princípios, não por um
bárbaro selvagem e dominador.
- Mas ele sozinho não poderá mudar o estado de ganância e
crueldade que se instalou no coração dos generais e até dos
senadores que seguem o Imperador.
- Sim, mas estamos trabalhando nessa direção. Hoje temos
mais de 100 escribas como você e os seus irmãos,
conhecedores de todas as ciências do passado e do presente.
Todos capacitados para serem professores. Quanto a vocês
13 que estão aqui, seguirão apoiando uns aos outros em
Roma e lá permanecerão até que tudo esteja concluído.
349
Receberão orientações de meus emissários sempre que for
necessário realizar alguma ação de emergência. Eles se
identificarão a vocês mediante a apresentação da figura de
um peixe.
- Um peixe? Uma marca no próprio corpo?
- Não apenas, João – pode ser até mesmo uma pintura
discreta, um pingente preso à uma pulseira ou colar, um
anel ou argola. Um entalhe em um bracelete, como este que
você está usando agora, ou mesmo um desenho rabiscado na
areia. Esse será o sinal para que você saiba que o portador é
um dos nossos. Se você, algum dia, tiver dúvida se o
emissário é um dos nossos, deve perguntar a ele quantas são
as tribos de Israel. Se a resposta for doze, é um impostor.
Se, no entanto, a pessoa disser que são treze, então é um dos
nossos. E, se ainda assim persistir a dúvida, pergunte ao
emissário quantas vezes se deve perdoar um irmão. A
resposta deve ser 70 x 7. Por isso jamais revelamos nossos
segredos a quem não fez o juramento aqui. Alguém fora do
nosso grupo poderia usar esses códigos para nos confundir
ou destruir. Não se esqueça disso.
- Está bem, mestre – respondi, buscando memorizar aquelas
valiosas informações. O ancião prosseguiu.
- Seus irmãos, da mesma forma que você, irão para Roma,
onde ensinarão os filhos dos generais, dos senadores e dos
demais homens e mulheres influentes do Império. Em
breve, florescerá uma nova geração de pessoas com
350
capacidade para pensar melhor, de modo mais inteligente,
buscando propiciar melhor qualidade de vida a todos. Sua
missão é a mais importante porque você terá em suas mãos
o futuro Imperador Romano. Você será o responsável pela
formação dele. Você terá a missão de fazê-lo pensar como
você. Essa é a sua grande missão.
- Vocês querem me dizer que fui escolhido para fazer isso
desde o tempo que vivia em Jerusalém com os meus pais?
- Sim, nós sempre procuramos meninos que despontam
grande inteligência desde os primeiros anos de vida. Você
foi descoberto pelo seu antigo mestre Abner. Ele e outros
membros da fraternidade essênia o conheceram e
confirmaram seus dons para falar, escrever e aprender. Você
foi escolhido para ser o educador do próximo Imperador
Romano. Essa será a nossa única saída para mudar,
definitivamente, essa forma de administração que esmaga os
povos oprimidos.
- Sou totalmente contra essa forma de agir! – berrou um dos
anciões que estava ao lado do mestre Malachai.
- Sabemos da sua opinião, mestre Neemias. Sei que essa
decisão não é unânime aqui, por isso temos um conselho. E,
como o senhor sabe, essa opção foi a vencedora no
Conselho dos 13 com oito votos a favor e cinco contra.
- Esse método de tartaruga não levará a nada. Enquanto os
filhos dos imperadores estiverem recebendo educação e se
351
preparando para ser um novo governante, nosso povo estará
sendo massacrado, torturado e morto. Precisamos fazer
alguma coisa agora. Precisamos intervir agora mesmo. Não
podemos esperar mais tempo.
- Irmão, você sabe que o uso da força bruta pode escravizar
por um tempo, pode manter um povo dominado, mas um
dia a revolta surgirá, como ocorre com um domador que
mantém um leão aprisionado, que bastará um único
descuido e a fera lhe arrancará a cabeça – rebateu o Sumo
Sacerdote.
A discussão se tornou acalorada e eu comecei a sonhar com
o meu retorno para Roma. Eu recebera uma missão das mais
nobres e grandiosas que um judeu poderia receber.
Qualquer homem na Terra gostaria de dizer que foi o
professor de um Imperador e melhor seria se ele fosse
alguém de coração bondoso, libertador dos pobres e
oprimidos. Eu agora entendia o significado oculto das
palavras do mestre Abner quando me disse: “Você foi
escolhido para nos ajudar em uma tarefa que só alguém com
a sua habilidade em manejar as palavras, memória
prodigiosa e poder de criação, poderá realiza-la com
facilidade. O trabalho que você terá que fazer é imenso, mas
você será recompensado por isso”.
Agora eu podia ver com mais clareza que não se tratava
apenas de escrever um livro, mas mudar o curso da história
do povo judeu, libertando-o da opressão, por meio da
352
mudança dos governantes. Eu teria o poder de influenciar a
mente de uma criança que se tornaria Imperador para que,
ao fim de algum tempo, ela realizasse o que tanto
desejávamos. Não deveria ser com o uso de lanças e
espadas que iríamos conquistar a nossa liberdade e ajudar a
libertar outros povos. Seria com o uso da inteligência, por
meio da filosofia e da ciência.
Lembrei-me de que, em outra ocasião, quando estava
visitando pela primeira vez a comunidade dos essênios no
deserto, o mestre Abner me apresentou a todos e falou: ”Ele
aprenderá as mais variadas ciências e será o escriba que nos
ajudará a escrever uma nova história para o nosso povo e
para o mundo que tanto necessita de algo novo para mudar
o destino da humanidade”. Sim, ele estava certo. Mudando
o pensamento do Imperador Romano, o qual teria nas mãos
o poder sobre grande parte do mundo, eu teria feito o meu
trabalho. Teria concluído a minha missão. E como bem
dissera o mestre Abner, meu nome não iria aparecer, eu não
ficaria conhecido no mundo, mas os meus irmãos saberiam
que eu fora o escolhido.
Depois de concluída a reunião, que nem me lembro mais
como terminou, eu sorria por todos os cantos da boca e fui
abraçar meus companheiros. Todos estavam felizes em me
rever. Judas nem mais parecia o mesmo. Estava um pouco
calvo e bem mais magro que a maioria dos outros que
estavam fortes e bem nutridos. Foi Judas que me fez a
pergunta que deixou a todos surpresos.
353
- E então João, você encontrou alguma deusa grega ou
romana em suas viagens?
Eu não podia compartilhar o meu segredo com ninguém. Eu
havia encontrado sim, só que era uma mulher proibida, era
uma Virgem Vestal que eu condenara à morte. Naquele
momento, meu coração entristeceu ao pensar que meu
segredo não poderia ser relevado a ninguém.
- Mulheres lindas, maravilhosas, verdadeira deusas... sim,
encontrei muitas... – respondi com animação.
- Muitas?! E quantas encontraram você? Na verdade, você
só precisava escolher uma e trazê-la com você, João – disse
Tomé, em tom de zombaria.
- Você sempre duvidando, não é Tomé? Mas você está
certo, eu só precisava encontrar uma, mas ainda não chegou
o momento certo. Um dia, quem sabe. Indo viver
definitivamente em Roma, eu provavelmente encontrarei a
minha princesa, casarei-me com ela e teremos muitos filhos.
Durante a grande ceia que Obadiah ofereceu a todos os
convidados, cada um dos meus colegas contaram suas
aventuras pelo mundo. Alguns haviam passado pelas
mesmas cidades em que passei e ido até mais longe no
Oriente. Simão Pedro havia morado mais de um ano em
Roma e lecionado nossa língua a filhos de senadores. André
viajara por todo o Egito e Pérsia, era especialista em história
dos povos e religiões. Tiago, filho de Zebedeu, tornara-se
354
professor de matemática e ciências. Ficara quase dois anos
em Atenas e Esparta, estudando com os mestres gregos.
João de Betsaida tornara-se matemático e mestre em
ciências; Filipe e Bartolomeu eram rabinos e conhecedores
de vários livros sagrados. Tinham viajado pela Índia e
China. Tomé era especialista em artes navais e excelente
músico. Mateus tornara-se habilidoso comerciante e era
doutor em leis; Tiago, filho de Alfeu e Judas Tadeu,
tornaram-se mestres em engenharia e agricultura. Simão
havia viajado por muitos países do ocidente, indo até a
Antióquia, Síria e Cecília, era especialista em estratégias
militares e Judas Iscariotes havia estudado várias línguas,
era doutor em astrologia e história egípcia.
Enfim, depois de tantos anos, meus doze companheiros e eu
estávamos outra vez reunidos. No entanto, percebi que nem
todos estavam satisfeitos com o plano. Simão era um deles.
- João, eu acho que não podemos esperar tanto tempo para
libertar o nosso povo. O mestre Neemias tem razão. Estou
do lado dele e de todos que acreditam que precisamos
enfrentar os romanos com todas as nossas forças. Disse-me
ele, buscando apoio em mim.
- Eu compreendo Simão, você é um guerreiro, agora é um
mestre em estratégias de guerra, você é filho de um zelote,
da mesma ideologia de meu pai. Mas pense grande, pense
alto, pense longe. Não temos armas...
- Poderemos comprá-las... tomá-las.
355
- Vê, você acabará fazendo exatamente o que hoje condena.
Você deve saber que só se combate uma ideia com outra
melhor. Nós precisamos oferecer uma mudança real ao
povo. Não podemos instigar vingança, ódio ou revolta. O
mal só atrai o mal.
- Isso é tudo filosofia dos fracos. Você parece se esquecer
que Javeh sempre lutou ao nosso lado...
- E onde está Javeh agora? Do lado dos romanos? –
indaguei, contra atacando.
- Eu não sei... realmente não sei. Será que não fomos
punidos por nossa falta de fé?
- Ou de harmonia entre nós mesmos?
Simão se calou e não disse mais nada. Eu podia notar que
ele, assim como outros dois companheiros, não estavam
satisfeitos com a decisão que fora tomada. Consideravam
que não tinham tempo para esperar que o Imperador Tibério
Cláudio Nero César morresse e que seu filho, orientado por
mim e por outros emissários, assumisse o trono e decidisse
mudar a história do nosso povo. Talvez eles tivessem razão,
mas eu tinha que tentar. Gostava da ideia de estar em Roma
e ao lado de Ariam. Oito anos se passariam rapidamente. Eu
esperaria por ela, mesmo que fosse por uma eternidade.
Por algumas semanas, esqueci da minha missão, das minhas
responsabilidades e preocupações. Além de frequentar
356
regularmente a biblioteca de Alexandria e mergulhar nas
mais edificantes leituras de minha vida, eu sempre saía para
nadar ou navegar com meus amigos pelo Nilo, visitando as
vilas ribeirinhas. Havia fartura em toda parte. Os plantios de
pomares, hortas e cereais eram abundantes nos arredores da
cidade e havia trabalho para todos. Os egípcios construíram
canais que levavam água abundantemente para as regiões
mais secas, irrigando o plantio. Desse modo, era possível
cultivar em terras que antes eram desérticas.
Quando eu estava sozinho, ficava de olhos abertos olhando
o céu estrelado e lembrando que aquele era o mesmo céu
que meses antes eu aprendera a contemplar do alto da torre
na casa das Virgens Vestais. O que será que Airam estaria
fazendo naquele momento. Será que pensava em mim? Será
que havia perdoado e esquecido a velada acusação que eu
lhe fizera em relação à morte de sua companheira Flávia?
Eu não deveria ter desconfiado dela. Não deveria sequer ter
pensado sobre aquela possibilidade, pois Ariam se revelara
uma mulher generosa, bondosa, uma verdadeira deusa
incapaz de causar qualquer mal a alguém. Ou será que as
deusas também poderiam causar algum mal como matar,
por exemplo? Javeh não hesitava em matar ou mandar
matar aqueles que lhe desobedeciam. Será que Ariam
recebera, da deusa Vestal, ordem para matar quem a
ameaçasse? Será que ela não quis compartilhar aquela morte
com receio de que eu não mais a amasse? Se fosse assim,
ela deveria ter confiado em mim. Eu não só a perdoaria,
357
como também a defenderia, se fosse preciso, com a minha
própria vida.
Queria ir logo para Roma. Parecia que tudo que eu
aprendera com os mestres Chen e Rajan não me serviam
para nada naqueles momentos de dúvida e angústia. Eu
havia aprendido a serenar a mente, evitar os pensamentos
que pudessem me trazer ansiedade, preocupação, medo ou
desejo. Se eu conseguisse tal proeza, eu estaria em paz
comigo mesmo e seria um homem tranquilo e
imperturbável. A verdade é que eu gostava de pensar em
Ariam e queria resolver os problemas imaginários. Com
isso eu roubava a minha paz de espírito, passava as noites
em claro e até me desconcentrava nas minhas leituras.
O que estava acontecendo para eu ter de esperar tanto
tempo? Porque não chegava logo a ordem para eu embarcar
para Roma?
Foi o mestre Malachai que, um dia, vendo-me aflito, me
informou que eu viajaria naquele fim de semana. Estavam
esperando que passassem as fortes chuvas da estação. Não
era seguro viajar por mares revoltos. Naquelas condições,
muitas embarcações encontravam seus destinos no fundo
dos oceanos.
Com efeito, dois dias depois, ele me avisou que eu deveria
partir na companhia de Simão, os demais iriam ao longo do
ano. Não poderíamos levantar suspeitas. Todos que
chegavam a Roma eram registrados e devidamente avaliado.
358
O Império não queria ter surpresas desagradáveis, pois
havia muitos mercenários e espiões com más intenções
desejando entrar no país inimigo. Embora todos nós
fôssemos bem recomendados, poderia despertar suspeitas,
13 mestres e doutores vindos de Alexandria desembarcarem
de uma só vez em algum porto do Império Romano.
Obadiah conhecia as artimanhas da política e do poder. Por
isso, deu ordens para quem viajássemos de dois em dois, ou
de três em três, no máximo, por vez. Assim, em um ano,
todos estaríamos ocupando posições de influência na
sociedade romana e instruindo os futuros governantes. Eu
me encarregaria do filho do Imperador.
Sentia o coração palpitando, quando me despedi do meu
querido mestre Malachai e dos demais que foram ao porto
se despedirem de mim e me levarem seus presentes.
- João, nesse pote tem tinta para você reescrever o Talmude.
Vê se faz bom uso dele, disse-me, Judas Tadeu, entregando-
me seu presente.
- Meu irmão – disse-me, Tiago – aqui nessa caixa estão as
mais finas penas de todo o Egito. Você poderá escrever
letras da espessura de um fio de cabelo...
- Que não seja do meu que é crespo – disse, Simão –
desatando-se a rir.
Era maravilhoso ver todos os meus amigos de infância ali
reunidos nos desejando uma boa viagem. Fizeram uma
359
fervorosa oração, nos abraçamos, choramos e partimos. Em
um mês, se não houvesse muitas paradas pelas ilhas,
chegaríamos ao porto de Napoli e de lá seguiríamos por
terra até a capital do Império.
361
Capítulo XIV – Uma Mudança de Rumos
Simão Pedro, meu companheiro de viagem, era muito
divertido e entretinha a todos contando histórias e suas
aventuras nas viagens pelo ocidente. Sua pele escura e seu
cabelo crespo indicavam que seus ancestrais pertenciam à
Tribo de Dan, uma das dozes de Israel. Eu gostava dele,
talvez mais do que dos demais colegas, porque se parecia
com meu irmão Calebe, exceto pela cor da pele.
Ao pensar na minha família, sempre tinha dentro de mim
uma grande interrogação. Onde estariam eles? Como estaria
a minha mãe. Ela teria aceitado a proposta do tio Eliabe? O
que fora feito de meu pai? Era curioso como depois de
tantos anos as coisas pareciam muito menos complicada e
mais fáceis de resolver.
Quando perguntei ao mestre Malachai sobre meus
familiares, a resposta foi vazia. Ele desculpou-se, dizendo
que não tinha notícias de Jerusalém há muito anos e que,
provavelmente, todos estariam bem. Tive que aceitar. Da
mesma forma que se passou comigo, nenhum dos meus
colegas haviam voltado lá. Havia expressa proibição que
qualquer um de nós mantivesse contato com a nossa família,
para evitar problemas com os romanos. Se alguém
descobrisse os planos dos essênios no futuro e nos ligasse
aos nossos familiares, eles sofreriam as consequências.
O navio em que Simão e eu viajávamos era de grande porte
e transportava todo tipo de carga, recolhida em diversos
portos, para abastecer a capital do Império. Roma e
Alexandria eram as duas grandes capitais da época e
362
maiores compradoras. Durante nossas viagens, cruzávamos
com centenas de embarcações de todos os tipos, desde
esquadras de romanos que patrulhavam e guardavam os
navios mercantes contra piratas que infestavam os mares
naquela época em busca das preciosas cargas, a grandes
navios de carga.
Muitos navios levavam os mais variados tipos de alimentos
como trigo, cevada, sal, peixe seco, frutos, vinho, azeite e
especiarias, as quais, por vezes, tinham mais valor que o
próprio ouro e vinham do Oriente assim como os perfumes.
Grandes embarcações levavam mármore, instrumentos para
serem usados na agricultura, madeira, ferro, estanho, cobre,
ouro, prata, resina, breu e betume.
Via-se, também, inúmeras embarcações que seguiam para
Roma levando animais para o Circus Máximo, leões, tigres,
elefantes, macacos, papagaios e muitos outros.
O mar, naquela época do ano, permitia uma navegação
tranquila. Mas, quando se distanciava do continente, vez por
outra, éramos apanhados por tempestades violentas que
requeriam esforços da tripulação e do comandante para
manter o nosso barco estável até atracarmos no porto mais
próximo, para esperar que as condições do tempo fossem
favoráveis para continuar a jornada.
Em uma madrugada, fui acordado com gritos vindo do
tombadilho. O marinheiro que estava no alto do mastro vira
relâmpagos muito fortes ao norte e a aproximação de uma
grande tempestade.
Ouvia-se o capitão gritando ordens à tripulação.
363
As velas teriam que ser baixadas, pois os ventos fortes
poderiam quebrar os mastros e rasgar as velas, o que nos
deixaria fora de controle. Navegaríamos ao sabor das
correntezas e contra as rochas traiçoeiras que existiam
naquele mar. Eu podia sentir que as ondas do mar batiam
contra o casco do nosso navio, fazendo-o ranger.
Simão, que estava sempre ao meu lado e não perdia a
oportunidade de brincar, ao seu modo, tentava me distrair.
- Você não aprendeu a nadar no rio Jordão? Sempre se
gabou de ser um excelente nadador e mergulhador, agora
terá a sua chance de provar isso.
- Deixe de brincadeiras Simão, nessa hora não seria melhor
estarmos orando para Javeh nos proteger?
- Não seria melhor orar a Netuno, o deus dos Oceanos? –
disse ele, sorrindo.
- Você também acredita em deuses gregos ou romanos?
Virou um idólatra?
- Claro que você sabe do que eu estou falando, João. Não
são os deuses que nos protegem, como costumávamos
pensar, somos nós homens que devemos nos preparar para
enfrentar os nossos próprios desafios. Já pensou se os
deuses ficassem todo o tempo interferindo em nossos atos, o
que seríamos? Uma marionete como as do teatro grego ou
coisa pior. Veja por exemplo os animais. Quando foi que
você viu um deles orando para obter alguma coisa?
- Eles não precisam, pois Deus os protege de todo o mal...
364
- Protege de todo o mal? E porque os animais são melhores
que nós? Nós precisamos pedir a Deus ou, como querem os
gregos, egípcios ou romanos, aos deuses, para nos proteger.
Eu te digo que todos somos iguais. Todos, meu irmão. A
aranha faz a sua teia para apanhar as moscas e não existe
um deus-mosca para protegê-las da viscosa teia da aranha,
ou terá a aranha uma deusa-aranha também para lhe mostrar
onde apanhar moscas suculentas?
Simão era assim. Direto, objetivo, claro. Eu também
pensava como eles às vezes, mas, quando voltava ao
convívio com meus irmãos essênios que preservavam ainda
a religião do nosso povo, retornava aos velhos conceitos do
Talmude. Eu queria ter a liberdade de Simão para conciliar
os dois conhecimentos. Ele poderia estar certo, mas as
pessoas precisavam se agarrar a alguma fé, algum princípio,
para seguirem suas vidas. Uma tábua de salvação, para
quando os mares as quisessem tragar para o fundo dos
abismos.
Conforme fora anunciado, a tempestade alcançou nossa
embarcação e as ondas fortes faziam o navio parecer uma
folha de oliveira sendo tocada pelo vento.
- Precisamos jogar carga ao mar... Ajudem-nos, por favor –
gritou o capitão pelo vão do alçapão do tombadilho para
baixo, onde duas dezenas de passageiros se espremiam uns
contra os outros, tentando se proteger dos solavancos
vigorosos que a embarcação sofria.
Havia um outro compartimento ao lado do nosso onde a
preciosa carga era transportada. Em momentos como
aqueles, as vidas e o navio valiam mais que qualquer carga,
365
mesmo que o preço que pagariam por ela fosse suficiente
para comprar dez embarcações como aquela. A vida
humana estava em jogo e seu valor, portanto, era
inestimável.
Simão e eu nos juntamos ao grupo de homens que subiram
ao tombadilho. Na parte de baixo, ficaram apenas algumas
mulheres e crianças. O assoalho do navio estava
escorregadio e molhado pela chuva que caía
impiedosamente sobre o navio. O céu era riscado por raios,
acompanhados de trovões ensurdecedores. Para os gregos e
romanos, Zeus ou Júpiter estava revoltado.
Jogamos ao mar tudo o que foi possível. Fardos de lã, sacas
de cereais, barris de vinho e azeite. Apesar disso, mesmo
com metade da carga lançada fora, a embarcação parecia
prestes a adernar.
- Trinta graus a boreste! Trinta graus a boreste! – gritava o
capitão ao timoneiro que, com a ajuda do contramestre,
tentava controlar o timão com todas as suas forças.
Esperamos aflitos as novas ordens do comandante. Ele foi
até o compartimento de carga e, entre o ribombar dos
trovões que quase não nos deixava ouvir o que ele falava,
disse-nos o que deveria ser feito.
- Não temos escolha... nosso navio não vai resistir por muito
tempo. Vamos descer os dois barcos de atracagem, cada um
levará um marinheiro treinado. No entanto, cada barco só
comporta dez pessoas ao todo. Somos quarenta. Vinte terão
que ficar, incluindo a mim. Afundarei com o navio, se o
pior acontecer. Faremos um sorteio para ver quem deverá
366
permanecer no navio e, se for o caso, se jogarem em alto
mar no último momento.
- E como será feita a escolha, capitão? – gritou Simão,
tentando se fazer ouvir.
- Todas as crianças irão com seus pais, se estes estiverem a
bordo. As mulheres, mesmo as que estiverem
desacompanhadas também irão. Depois disso, se ainda
houver lugar disponível em um dos barcos, faremos um
sorteio com os que sobrarem. O timoneiro, o contramestre e
eu não entramos na contagem, ficaremos no navio, é a lei do
mar. Os demais da tripulação, exceto os dois que
acompanharão os passageiros, serão colocados no sorteio.
Não temos tempo a perder. Voltem para o compartimento
de passageiros, pois o procedimento de descida dos barcos
menores já começou.
Quem seriam os escolhidos? Quem iria provavelmente
perecer na embarcação, como tantas vezes aconteceu
naqueles e em tantos outros mares? Logo saberíamos.
A descida dos dois barcos de atracagem foi penosa e difícil,
ante os ventos e as ondas que impediam que eles tocassem a
superfície da água de modo adequado. O pior, no entanto,
seria o momento em que as pessoas desceriam pela escada
presa ao casco do navio, a qual tinha cerca de dez metros de
altura. O menor descuido e poderiam ser arremessadas ao
mar.
Houve um grande tumulto no compartimento de
passageiros. Havia dezesseis pessoas, ao todo, que
formavam famílias, compostas por pai, mãe e filhos. Assim,
restava lugar para mais quatro pessoas.
367
- Eii... Você que está escrevendo o tempo todo desde que
saímos de Alexandria, escreva em pequenos pedaços de
papiro os nomes das outras pessoas que sobraram e peça
para uma criança retirar da sua mão quatro nomes. Estes
serão os escolhidos para seguir nos barcos – ordenou o
capitão.
Imediatamente, fiz o que me foi solicitado. Minha caixa de
couro contendo meus papiros e material de escrita estavam
sempre ao meu lado para onde quer que eu fosse.
Com os nomes dos passageiros e membros da tripulação
que não pertenciam a nenhuma família ali, pedi a uma
criança que retirasse os quatro nomes e desse ao capitão
para ler. O que ninguém sabia é que eu não escrevi o meu
próprio nome. Era um direito que eu tinha e ninguém
precisava saber. Não sabia exatamente a razão de estar
fazendo aquilo, muito embora eu também quisesse salvar a
minha vida. Acho que me compadeci ao olhar o semblante
cheio de medo e angústia daqueles homens que, como eu,
não tinham familiares à bordo. Eu me conservava tranquilo
e confiante e por isso tive coragem de dar o meu lugar a
qualquer um deles. Deixando o meu nome de fora, eu fizera
a escolha de ficar na embarcação e permitiria que outra
pessoa fosse em meu lugar. Eu sabia que, caso fosse
escolhido, daria o meu lugar a alguém, mas não queria ter
qualquer participação direta naquela escolha. Deixaria que a
sorte de cada um decidisse.
O capitão, com as mãos molhadas e trêmulas, pois a chuva
não cessava um só instante, leu em voz alta:
368
- Vão para o barco... Miquéias, Jonatas, Yosef e Simão.
Vamos depressa, precisam deixar o navio imediatamente.
Nos barcos haverá água doce e uma pequena ração que
permitirá a sobrevivência de todos por algum tempo, até que
sejam socorridos por alguma outra embarcação ou consigam
chegar em terra firme. Há muitas ilhas nessa região e pode
ser que cheguem a uma delas... se Proteu lhes permitir.
Simão me olhou e, voltando-se para o capitão, disse:
- Escolha outro nome, capitão... Eu ficarei com o meu irmão
João. Não vamos a nenhum lugar sem o outro.
Aquele era Simão, meu velho amigo, tão amoroso quanto
meu irmão Calebe e sempre pronto a me defender. Eu teria
feito o mesmo por ele.
O capitão não perdeu tempo e escolheu outro nome. Os
sorteados correram para o tombadilho e os ajudamos a
descer pela escada de cordas que baloiçava perigosamente
ao sabor dos fortes ventos. Um a um foram embarcados no
meio da noite negra, rumo a um destino que eu nunca
saberei qual foi.
Com menos peso, o navio parecia ter chances de continuar
navegando. Jogamos toda a carga restante ao mar e, quando
o dia já estava amanhecendo, o previsto aconteceu. O navio
foi arremessado contra rochedos e se partiu em pedaços.
Simão, mais três companheiros e eu havíamos combinado
uma estratégia de sobrevivência que seria a de nos
mantermos atados a uma corda ao cairmos ao mar. Assim,
ficaríamos sempre em contato uns com os outros. Cada um
de nós colocou em sua bolsa algum tipo de comida e água
369
doce. Atamos aos nossos corpos pranchas de madeira leve e
acreditávamos que, se a tempestade não nos empurrasse
para o alto mar, acabaríamos chegando a alguma ilha, como
de fato aconteceu no quinto dia.
Nossas roupas estavam em frangalhos. Estávamos exaustos,
pois remávamos com o auxílio de destroços que vimos se
perder no meio da noite. Estávamos famintos e sedentos, já
que a comida e a água acabaram bem mais cedo do que
tínhamos previsto. Fomos jogados contra uma praia de
águas mansas e ali ficamos chorando e sorrindo,
agradecendo, cada um ao seu próprio deus, o milagre da
nossa salvação.
- Temos que procurar água doce ou morreremos de sede
bem aqui diante do mar – disse Simão, tomando a dianteira.
Um dos homens estava em situação muito crítica e,
certamente, não conseguiria andar conosco rumo à espessa
vegetação que havia à nossa frente. Sugerimos que alguém
ficasse com ele e assim seguiríamos os três que estávamos
em melhores condições físicas. Prometemos que
voltaríamos com água e comida, assim que as
encontrássemos.
Não demoramos a encontrar frutos silvestres que
reconhecemos serem comestíveis, além de coqueiros, dos
quais colhemos cocos e comemos, para aplacar a nossa
fome. Uma pequena nascente correndo em direção ao mar
deu-nos água doce e logo voltamos para levar as boas novas
aos nossos companheiros e alimentá-los. Foi o começo de
uma agradável vivência naquela ilha, sobre a qual
descobrimos depois de alguns dias, quando fomos
encontrados por nativos que ali habitavam, tratar-se da Ilha
370
de Patmos ou Ilha dos Deterrados. Era para lá que iam os
homens e mulheres inimigos de Roma. Havia centenas deles
vivendo ali. Não havia lá qualquer embarcação que
permitisse a alguém sair daquela ilha. Uma vez ao ano,
desembarcava em Patmos um novo carregamento de
desterrados e ninguém voltava.
Os moradores ficaram curiosos a nosso respeito e nos deram
toda a ajuda possível, acolhendo-nos em suas cabanas
rústicas. Grande parte dos homens que estavam ali eram
pessoas instruídas, políticos que lutavam contra o regime,
filósofos e outros que desacreditavam os deuses romanos ou
zombavam deles. O Império os mandava para lá como sinal
de piedade. Meus quatro companheiros e eu fôramos
exilados pelo destino.
Os primeiros meses na Ilha de Patmos foram difíceis, pois
ficávamos todo o tempo andando pelas praias, na esperança
de que algum navio passasse por ali e nos levasse de volta
para casa. Fomos informados que dali a quatro meses,
aproximadamente, Roma mandaria mais exilados e que, se
fôssemos convincentes, talvez nos deixassem voltar. Mas,
até lá, tínhamos que nos manter vivos.
Não tardei a explorar a ilha e, um dia, em uma dessas
caminhadas exploratórias, encontrei alguns cogumelos
similares aos que Ariam havia me mostrado e que foram
usados em infusões que bebi durante o tempo em que fiquei
no claustro e tive alucinações. Colhi alguns e, quando falei
a respeito deles com Simão, ele me repreendeu firmemente.
- Eu sei que esses cogumelos e outras ervas causam efeitos
terríveis em quem faz uso deles. Jamais os usaria, pois meu
371
coração está sempre cheio de coisas impuras e acho que
enlouqueceria, se os ingerisse. Você também não deveria
fazer usos deles.
- Eu sei, já usei uma vez e me senti como se passasse do
inferno ao céu no mesmo dia, tive visões nunca
experimentadas antes. Mas talvez eu não tenha outra
oportunidade de repetir essa experiência. Por isso, preciso
de sua ajuda para o caso de alguma coisa errada me
acontecer. Eu gostaria de ver mais, de saber mais sobre o
futuro. Ariam me disse que a ingestão da infusão de
algumas ervas misturadas aos cogumelos pode me provocar
visões maravilhosas – insisti com meu amigo.
- Você é quem sabe, João. Eu desaconselho, mas se você o
fizer, te darei o apoio que for necessário. Deixarei umas
cordas prontas, para o caso de você enlouquecer e eu
precisar amarrá-lo fortemente – disse ele, brincando.
Havia dias naquela ilha em que uma terrível solidão tomava
conta de mim, embora eu estivesse rodeado por meus
amigos, novos e velhos, como Simão e os companheiros de
viagem. Eu vagava pelas montanhas da ilha, sempre
acompanhado da vigilante companhia de Simão, até que um
dia encontrei uma caverna e decidimos passar a noite ali.
Foi naquele dia que eu preparei uma infusão com
cogumelos e ervas que trouxera em minha bolsa e ingeri.
Antes de fazê-lo, disse a Simão que mantivesse meus
papiros virgens, tinta e caneta à mão para registar tudo o
que eu pudesse lhe dizer, se eu não fosse capaz de escrever
por mim mesmo.
372
Quando veio a noite, decidi tomar uma poção das ervas e
tentei descansar. De tudo o que me aconteceu naquela noite
e nos dez dias seguintes, eu só posso dizer que foram os
mais inacreditáveis que vivi e que eu seria incapaz de
descrever tudo que passei, muito embora eu de nada me
lembre. Tudo o que vi, ouvi e senti foi registrado em muitos
pergaminhos, conforme me relatou meu amigo Simão
quando despertei. Semanas depois, quando eu já estava
recuperado daquela forte convulsão por que passara,
indaguei a Simão o que acontecera.
- Acordei no meio da madrugada com você ora chorando,
ora sorrindo, com os olhos esbugalhados, gesticulando e
caminhando de um lado para outro dentro da caverna onde
havíamos nos abrigado.
- O que eu falava, Simão? Era possível compreender?
- Sim, muitas coisas eu não conseguia distinguir e por isso
pedi para que você escrevesse. Era muito difícil porque não
tínhamos iluminação adequada, mas você parecia nem
precisar de qualquer luz. Seus olhos brilhavam e sua mão
deslizava sobre o papiro, deixando registrado o que você
repetia inúmeras vezes. Eu fiquei muito assustado e julguei
que você realmente havia enlouquecido.
- O que aconteceu no dia seguinte?
- Você, depois de escrever vários rolos, caiu em sono
profundo e, quando o dia amanheceu, quis ingerir mais da
infusão. Tive que lutar contra você para que você não o
fizesse. Mas você começou a urrar tão forte, como se
estivesse possuído por algum demônio, que eu mesmo
preparei um novo chá e te dei. Só então você se acalmou,
373
mas voltou a falar coisas que não faziam qualquer sentido.
Falou sobre sete selos, sete anjos, sete igrejas, vinte e quatro
anciãos e sobre muitos outros temas desconexos. Quando eu
te indagava o que significava aquilo, você não respondia e
permanecia no transe, como se estivesse de fato possuído.
- Não sentiu vontade de me amarrar?
- Claro que sim, mas, no terceiro dia, vi que seria melhor
deixar você terminar o seu trabalho. Caso contrário, você
enlouqueceria de vez, tamanha era a vontade que
demonstrava em querer registrar tudo. Tive que voltar para
a aldeia várias vezes para recolher todo e qualquer papiro
que lá existisse. Lembro-me que em uma das ocasiões você
me pediu que não falasse nada a ninguém. Eu até me
perguntei o porque de você estar escrevendo tudo aquilo se
não queria que ninguém lesse. Mas obedeci sua orientação e
guardei tudo em um local onde dificilmente alguém poderia
encontrar, se não tivesse o mapa que eu mesmo fiz.
- Em algum momento você ficou muito assustado com as
coisas que eu falava ou escrevia, Simão?
- Sim, principalmente quando você começou a falar sobre
dragões e besta que surgiam do mar e tinham sete cabeças e
dez chifres e sobre os seus chifres dez diademas e sobre as
suas cabeças um nome de blasfêmia. Afinal, o que era
aquilo, João?
- Não sei, meu amigo. Realmente não sei e nem me lembro
de nada. Tenho apenas fragmentos daqueles momentos, mas
não me recordo de nada, muito menos sou capaz de
entender o significado dessas visões. Talvez um dia eu
374
possa compreende-las ou, quem sabe, outras pessoas
poderão decifrá-las – respondi, encabulado.
- Você não se lembra do dia em que ficou falando sobre
algo que parecia ser o juízo final? Naquele dia, eu realmente
achei que você tinha perdido o juízo.
- Juízo final? Eu falei isso?
- Não diretamente, mas descreveu algo que parecia ser.
Pessoas sendo julgadas segundo as suas obras. Muitas sendo
lançadas num lago de fogo e enxofre. Parecia mesmo um
inferno.
- Lamento muito, Simão, mas não me lembro de coisa
alguma.
Foi daquele modo que eu tive minha segunda e última
experiência com aquelas ervas que causavam alucinações.
Foi quando escrevi coisas das quais não me lembro e nem
mesmo as reli, pois Simão tratou de esconder tudo dentro da
caverna, com a promessa de que, se um dia saíssemos
daquela ilha, ele levaria aqueles papiros conosco e os
entregaria a alguém que pudesse interpretá-los.
Apesar das saudades que eu sentia de minha amada Ariam e
de tudo o que ela representava para mim, eu entendi que
talvez Deus me quisesse ali naquela ilha para alguma
missão especial. A missão de escrever um livro com
revelações sobre o futuro.
Se eu tivesse voltado a Roma no tempo que me fora
designado, eu poderia causar problemas a Ariam. O nosso
relacionamento poderia ser descoberto e tudo cairia por
375
terra. Se ficasse naquela ilha por cinco ou seis anos, então,
quando retornasse a Roma, já estaria próximo do momento
em que ela se desobrigaria dos votos, ao completar seus 30
anos. Ainda teríamos tempo para termos os nossos filhos e
constituirmos uma família.
Um belo dia, Simão me informou que um navio estava se
aproximando da praia e que deveria ser uma nova leva de
exilados enviados para Patmos pelo Império Romano.
- Você vai tentar voltar para Roma, João? Você tem o poder
da retórica e pode convencer a qualquer um. Talvez consiga
um passe para nós dois?
- Duvido muito. Eu não tenho nada para negociar. Dizer ao
capitão do navio que não sou um exilado, provavelmente,
não o convencerá. Você se lembra de que estamos sem
nossos papéis? Nem mesmo nossos nomes podem ser
conferidos. Ninguém nos dará ouvidos. Melhor esperarmos
um pouco mais.
- Não pensei que você fosse desistir tão facilmente, João.
Faça isso por mim. Lembre-se de que eu o ajudei naquela
sua maluquice de beber chás alucinógenos e fiquei do seu
lado. Você me deve isso?
- Está me cobrando favores agora, Simão. Você sim, está
agindo como um grande e persuasivo cobrador de dívidas –
disse eu, brincando.
- Por favor, João. Faça isso por mim. Eu não aguento mais
essa ilha. Sinto saudades das novidades de Roma e, se você
quer saber, no tempo em que vivi lá conheci uma grega dos
deuses...
376
- Ahh... agora está explicado o seu desejo. Uma deusa grega
o espera em Roma. Está bem meu amigo, vou ver o que
consigo com os soldados romanos quando eles atracarem.
O navio trazia cerca de cinquenta novos exilados, sendo
homens, mulheres e crianças. Era permitido a eles trazer
também alguns dos seus bens, que incluía animais de
estimação ou para reprodução e consumo. O navio trazia
ainda algumas roupas, sementes e utensílios domésticos,
enviados por familiares aos desterrados. Havia pelo menos
cem soldados romanos com seus trajes típicos, portando
lanças e espadas. Desembarcaram e iniciaram a armar suas
tendas nas proximidades da praia. Provavelmente,
passariam uma noite ali e retornariam.
Preferi esperar que estivessem mais tranquilos, para poder
procurar o comandante e lhe falar sobre meu pedido.
Era costume dos exilados da ilha levar comida para os
soldados romanos e servi-lhes do melhor modo possível,
enquanto estivessem ali. Afinal, tinham esperança de um dia
serem libertos e voltarem para casa.
Deixei Simão entretido com os novos exilados e fui
conversar com os soldados. Ao me virem aproximar das
tendas, me interceptaram bruscamente.
- Você não pode passar desse perímetro, exilado – disse um
dos soldados, retirando a espada da bainha.
- Eu gostaria de falar com o comandante de vocês. Tenho
algo importante para falar – disse eu, sem temor.
377
- E o que há de tão importante para falar ao comandante.
Pode nos dizer e falaremos com ele – replicou o soldado,
aproximando-se de mim e me examinando.
- Está bem. Diga a ele que não sou um exilado. Eu e mais
alguns companheiros estávamos em um barco que
naufragou há alguns meses, quando seguia para Roma. Nós
cinco escapamos e viemos parar nesta ilha.
- Aahahaha... – riram, ruidosamente, os dois soldados –
então você acha que iremos cair nessa sua conversa. Todas
as vezes que vimos a Patmos, tem sempre um náufrago ou
homem inocente querendo voltar para Roma. Eu lamento
muito, exilado, o nosso comandante não está interessado
nessa história. Você tem outra melhor?
- Diga a ele que sou João da Judeia, discípulo de Obadiah
que vive em Alexandria. Se ele me levar de volta junto com
um dos meus amigos que também é homem livre, ele será
muito bem recompensado. O meu mestre provavelmente
pensa que eu estou morto. Vá, diga isso a ele.
- Sua história está ficando interessante, exilado. Você tem
uma prova do que está dizendo ou será que ela também
naufragou com o seu barquinho? – indagou o romano, em
tom de zombaria.
Retirei o bracelete de prata que trazia comigo e o entreguei
a um dos soldados. Ele pegou o objeto e demonstrou uma
certa curiosidade.
- Onde você roubou isso? Ninguém pode trazer joias para
essa ilha. Todos os bens de algum valor deverão ser
confiscados em nome do Imperador Romano.
378
- Não roubei, me foi dado por meu pai. Uso-o desde criança.
Peço-lhe que faça o que estou te pedindo, pois, se o fizer,
será um homem rico ao me levar de volta ao meu mestre
Obadiah.
O soldado pareceu momentaneamente convencido e
afastou-se levando o meu bracelete. Naquele momento,
Simão, que estivera me procurando, aproximou-se.
Expliquei-lhe o que havia acontecido.
- João, você enlouqueceu – disse-me ele, em hebraico,
confiando que o soldado romano que ficara de guarnição
não compreendia – a maioria desses homens são vândalos e
ladrões. Vão ficar com o seu bracelete que é valioso.
- Eu sei, Simão, mas tive que arriscar. Não tinha mais nada
de valor para oferecer. Vamos esperar que o comandante
aceite a minha oferta.
Quando o soldado voltou, estava sorrindo.
Lamento lhe informar, mas o nosso comandante não está
interessado em sua história e disse que ficará com o seu
bracelete. Joias não são permitidas nessa ilha aos exilados e,
até que provem o contrário, você é um deles.
- Ladrões... vocês são uns ladrões, uns vândalos – disse
Simão, exaltado.
Vários soldados ouviram e se aproximaram de nós.
- Simão, vamos sair daqui. Eles vão nos matar – disse eu,
arrastando meu amigo encolerizado que se debatia contra
mim e soltava insultos aos soldados.
379
Quando ele se acalmou, eu lhe disse que não havia perdido
nada, apenas um bracelete. Talvez um dia eu compraria
outro. Mas Simão estava inconformado.
- Quando dormirem, vou lá pegar seu bracelete de volta.
Eles partirão cedo e você não vai deixar esses selvagens
ficarem com o que é seu.
- Simão, foi você mesmo que pediu para eu ir falar com
eles. Então, agora temos que aguentar as consequências.
Vamos deixar nas mãos de Javeh. Não faça nenhuma tolice.
Você vai acabar nos matando aqui na ilha de Patmos.
Fiquei de olho em Simão, que não dormiu bem naquela
noite e, naquela manhã de primavera, vimos o navio romano
se afastar da praia rumo ao mar. Nossa choupana ficava
sobre uma elevação, de onde podíamos ver, ao longe, as
velas da embarcação serem infladas pelo vento. Senti
lágrimas escorrerem por meu rosto. Era um imenso
sentimento de impotência diante da vida. Em um momento
tínhamos algo, no instante seguinte o perdíamos.
Vencíamos uma batalha e perdíamos outras. Será que isso
foi a vida que Javeh quis dar aos homens sobre a Terra?
Fechei os olhos e orei com todas as forças, pedindo aos
céus, a Javeh, a qualquer que fosse o deus, a todos eles
juntos para que fizessem algo para nos tirar dali. Eu pedia
por um milagre.
- João! João! veja, o navio está voltando para praia. Vê
aquelas bandeiras? Estão sinalizando para que desçamos até
eles. Alguma coisa aconteceu – disse-me Simão, que era
conhecedor dos códigos do mar, por ter estudado estratégias
militares.
380
Corremos em direção à praia, ao tempo em que um pequeno
barco com dois soldados romanos remavam em nossa
direção.
Quando os alcançamos, um dos soldados perguntou:
- Quem é o dono do bracelete de prata que foi entregue ao
outro soldado?
- Sou eu, senhor...
- Queira me acompanhar até o barco. O comandante quer
vê-lo. O senhor deverá seguir para Roma conosco.
- Eu só irei se o meu companheiro for comigo – disse eu,
resolutamente.
O soldado pensou um pouco e perguntou:
- Seu amigo sabe nadar? É melhor que ele saiba, porque, se
o comandante decidir não levá-lo, não haverá barco para
trazê-lo de volta à praia. Ele deverá voltar a nado.
Nem eu nem Simão esperamos um segundo. Acenamos para
os outros companheiros exilados que haviam descido para a
praia e entramos no barco que, em poucos minutos,
alcançou o grande navio.
Já no tombadilho, o comandante veio falar comigo.
- De quem é o bracelete de prata que o soldado romano
recebeu ontem na praia?
- É meu, comandante – disse eu, com tremor na voz.
- Onde o encontrou?
381
- Ganhei do meu mestre Obadiah, o Etrusco, em Alexandria
– disse, resumindo a história.
- Muito bem. Ontem, um soldado foi me procurar dizendo
que havia um exilado portando este bracelete de prata e que
queria negociá-lo para voltar para Roma. Mandei dizer que
não haveria negócio. Nós somos representantes do
Imperador e não negociamos as ordens dele. No entanto,
quando cheguei ao navio esta manhã, deixei-o casualmente
sobre a minha mesa. Meu escriba oficial, ao vê-lo e ler o
que estava inscrito nele, informou-me que o portador
daquele bracelete deveria ser atendido em qualquer
necessidade, onde quer que estivesse, sobretudo, se
estivesse em perigo ou em dificuldade. Porém, disse-me que
o portador dele deveria responder a uma pergunta para
comprovar que era de fato merecedor de carregá-lo e que
não o havia roubado de alguém. Ele vai te fazer essa
pergunta. Se você responder corretamente, seguirá conosco.
Caso contrário, será atirado em alto mar, como punição por
roubo. O seu amigo também será jogado junto com você.
Senti o coração saltar pela boca. Uma pergunta? Que
pergunta seria essa? Será que eu saberia a resposta? Eu
sentia vontade de rezar para todos os deuses do Olimpo para
acertar a resposta. Ela salvaria a minha vida e a de meu
amigo Simão Pedro.
383
Capítulo XV – O Grande Enigma
O capitão indicou-me o caminho para a escada que dava
acesso ao porão do navio, onde ficava os aposentos do
capitão. O escriba-mor já estava lá à minha espera.
Simão fora amarrado pelos soldados que aguardariam a
ordem do comandante da embarcação para jogá-lo ao mar,
caso eu errasse a resposta da pergunta que me seria feita.
Enquanto descia a escotilha, pensava se a minha vida
acabaria ali em alto mar, próximo à Ilha de Patmos, ou se eu
ainda tinha alguma missão por realizar.
O escriba-mor era um homem de meia idade, de origem
egípcia, portando duas braçadeiras na altura dos bíceps.
Quando entrei, ele estava de pé, ao lado da mesa sobre a
qual, ao centro, estava o meu bracelete.
O capitão, o escriba e mais dois soldados postaram-se à
minha frente, enquanto eu fiquei à espera do enigma que
exigiria solução. Foi o capitão quem deu início à cerimônia
que poria fim à minha vida ou me absolveria de qualquer
culpa.
E se o escriba me fizesse uma pergunta que estivesse além
dos meus conhecimentos? Eu não conhecia todas as
informações que estavam gravadas em meu bracelete,
exceto aquelas que já me haviam sido revelados pelo mestre
Dardanus.
- Exilado, o escriba-mor já escreveu a resposta da pergunta
que lhe fará e eu a tenho comigo. Você não terá duas
384
chances. Ele me assegurou que somente alguém que
mereceu esse bracelete saberá a resposta. Reze aos seus
deuses, para que eles te ajudem. Você está pronto? – disse-
me o capitão, com voz firme.
- Sim, eu estou – respondi, respirando fundo.
O escriba olhou-me nos olhos e perguntou:
- Qual é o número do homem a quem foi dado o poder para
ser chefe dos magos, dos adivinhos, dos encantadores, dos
astrólogos e de todos os místicos?
Fechei os olhos na esperança de que minha memória não me
traísse. Vasculhei todos os recantos dela para encontrar a
resposta. Apareciam em minha mente milhares de nomes,
números, estrelas, imagens de animais, plantas. Procurei
me concentrar e lembrar de algum evento. Sim, a resposta
deveria estar relacionada a algum acontecimento no
passado. Magos, adivinhos, astrólogos... Babilônia! Lá,
sempre existiram esses homens, os quais eram conselheiros
dos reis. Nabucodonosor... o grande rei Babilônio quem, há
600 anos, havia dominado o Egito, a Judeia e milhares de
outras terras, tornando-se o rei dos reis. O maior imperador
de que já se teve notícia. Procurei concentrar-me. Ali
estaria a solução. Mas quem fora o indicado? Qual era o
número da pessoa que fora nomeada chefe dos astrólogos e
místicos? Sim, houve um homem que se tornou governador
e foi o indicado pelo rei.... Sim, achei a resposta. Foi Daniel.
Daniel, o profeta que interpretou os sonhos do rei e recebeu
muitas recompensas. Bem, agora era só encontrar o número
de Daniel. O escriba que elaborara o enigma era de origem
egípcia, mas vivia como um romano, deveria ter estudado
385
com os gregos, quase todos o faziam, pois, além do latim, o
grego era a língua dos negócios naquela época. Ora, mas
parece muito fácil. Fácil demais. Se eu usasse o método de
Pitágoras, ao substituir cada letra da palavra Daniel por seu
número correspondente e somar tudo, até encontrar um
número entre 1 e 9, eu desvendaria o enigma. Nunca fui
bom em cálculos, muito menos para fazê-los de memória.
Pedi ao escriba uma pena e um pedaço de papiro. Mas,
antes de escrever o nome, pensei uma vez mais. Se fosse
mesmo Daniel, o enigma seria solucionado muito
facilmente. Qualquer leitor do Talmude saberia disso.
Aquele enigma deveria exigir um outro conhecimento além
daquele. Sim... havia... eu quase cometi o erro de calcular os
números de Daniel. O nome dele foi mudado para
Beltessazar. Esse nome implicaria mais letras e aumentaria
o grau de dificuldade. Estava certo de que somente alguém
que conhecesse o sistema da numerologia Pitagórica
poderia decifrar o enigma. Eu o conhecia e comecei a
escrever cautelosamente cada uma das letras. E, logo abaixo
de cada uma delas, coloquei os números que Pitágoras
encontrou para cada letra do alfabeto greco-romano.
B e l t e s s a z a r
2 5 3 2 5 1 1 1 8 1 9
Depois, somei todos os números e obtive o total de 38. Mas
esse ainda não era o número desejado. Somei esses dois
algarismos e deu 11 e, finalmente, somei 1 + 1 e encontrei o
número 2.
386
Olhei para o escriba e não percebi no seu rosto nenhuma
expressão que indicasse que eu havia acertado a resposta. O
capitão também nada indicava. Apenas os soldados olhavam
ansiosos e eu não sabia se eles torciam para que eu errasse
para terem o prazer de me atirarem ao mar junto com o
Simão ou se desejavam poupar a minha vida. Eu achei que a
primeira opção seria, para eles, muito mais divertida. Eu
não era um romano e só seria mais um para dividir a comida
que eles tinham no navio.
- Você terminou a sua tarefa, exilado? O número dois é a
sua resposta? – indagou o capitão, examinando o papel onde
eu escrevera.
- Sim, essa é a minha resposta, capitão.
- Ele caminhou até uma bola de couro que estava jogada
sobre um catre, abriu-a e dela retirou um pedaço de
pergaminho dobrado e, depois de olhar outra vez para o
meu, proferiu:
- Eu, Adriano Paulus, capitão-chefe da guarda pretoriana do
Império Romano, investido pelo Imperador Tibério Cláudio
Nero César, declaro que o portador deste bracelete de prata,
o qual lhe será devolvido agora, será escoltado até Roma e
que, enquanto estiver neste navio, será um protegido do
Império e deverá ser tratado com dignidade, respeito e
cortesia. Não será obrigado a trabalhar e só fará aquilo que
for necessário à própria sobrevivência...
- Incluindo seu amigo e irmão Simão Pedro... – acrescentei,
corajosamente.
387
- Incluindo o seu amigo Simão Pedro – acrescentou o
capitão, olhando para os soldados, os quais demonstraram
visível descontentamento.
- Como quer ser tratado de agora em diante mestre? –
indagou-me, ele.
Pensei em vários nomes, mas nenhum deles me ocorreu ser
adequado. Matias, João, João da Judeia... nenhum deles me
parecia apropriado. Eu desejava ter um nome escolhido por
mim mesmo e que não fosse emprestado de ninguém.
- Escriba, senhor. Quero ser chamado apenas de Escriba de
Alexandria, é o que sou.
Quando subi ao tombadilho, Simão estava ajoelhado com as
mãos postas, olhando o céu. Dois soldados, portando
espadas, estavam ao lado dele. Quando o toquei, ele tomou
um susto, mas logo compreendeu que estávamos salvos.
Nos abraçamos. Expliquei-lhe que havíamos passado de
náufragos exilados a convidados do Império Romano.
Seríamos entregues a um Consul Romano e ele decidiria
sobre nossa vida. Caberia a nós provar a ele que éramos
pessoas de bem e homens livres. Acreditávamos que muitos
dos nossos companheiros já estavam em Roma cumprindo
as missões deles e seria fácil contatá-los. O nosso mentor
Malachai e o Sumo Sacerdote Obadiah também tinham
amigos em Roma.
Eu só não pude falar com Simão que tinha também Ariam
de Glimeu, uma Virgem Vestal, que endossaria qualquer
coisa que eu dissesse, pois já me conhecia. Aquele era um
trunfo que eu guardaria para usar no último caso, se surgisse
algum problema com o Consul Romano.
388
Eu ficara curioso para saber como o escriba romano havia
elaborado o enigma. Quando tive oportunidade de
perguntar-lhe, ele me disse:
- Quando vi o bracelete de prata nos aposentos do
comandante no momento em que começaria a redigir o
diário de bordo, verifiquei que havia nele muitas inscrições,
vou te mostrar agora.
Eu retirei o bracelete e o escriba continuou:
- Veja aqui essa linha. É a linha do tempo. Mostra a sua
idade e os lugares que você deveria conhecer, os estudos
que teria de realizar. Pela descrição dos soldados, você
deveria ter entre 28 e 33 anos, portanto, se fosse de fato um
escriba já teria estudado astrologia, conheceria as histórias
dos magos e astrólogos e por isso saberia decifrar o enigma.
Se fosse um impostor, seria desmascarado.
- Eu não teria uma segunda chance? Não haveria um outro
teste?
- Eu poderia fazer tantos testes quanto o capitão permitisse,
mas essa seria a decisão dele, não a minha. Você sabe, nós
escribas obedecemos ordens, fazemos o que nos mandam
fazer. Para isso somos pagos.
A viagem até Roma naquele colossal navio de guerra foi
tranquila. Depois da primeira semana convivendo com os
soldados romanos, aprendi mais sobre eles do que podia
imaginar. Eram homens simples que haviam se tornado
guerreiros implacáveis, máquinas de guerra. Muitos sequer
sabiam falar direito o idioma do país onde nascera, mas
foram treinados para combater sob uma ordem. Eram como
389
os animais amestrados do Circus Máximo que eram
exibidos por mágicos e encantadores. O que os motivava a
permanecer no exército romano era a segurança de terem
comida quente e vinho no final do dia. Recebiam também
um pequeno soldo que era enviado para a família dos que
fossem casados ou aos pais idosos, caso os tivessem. Muitos
sonhavam em se tornarem soldados graduados, chefes de
patrulhas e até capitães. O capitão sonhava ser um general
da guarda romana ou mesmo da real guarda pretoriana.
Já em terra, fomos encaminhados ao Cônsul Romano, o
qual praticamente nem nos olhou. Parecia estar mais
preocupado com outros assuntos imperiais do que com dois
exilados que se diziam escribas. Simplesmente disse ao
capitão da guarda que estava tudo bem e que nós podíamos
receber permissão para viajar para onde quiséssemos. Ele
mesmo iria assinar os documentos e nos dar algumas
moedas, o suficiente para comprarmos alimentos por uma
semana.
De fato, obtivemos tudo sem esforço. Foi um outro escriba
que, depois de nos fazer algumas perguntas para confirmar
nossos conhecimentos, nos redigiu novos registros,
acrescentando que ambos éramos mestres em línguas,
doutores nas artes da escrita, leitura e ensino e notórios
escribas de origem egípcia. Não o informamos nossas
origens reais, seguindo as recomendações de Malachai,
visto que nem sempre nosso povo era bem recebido nos
altos círculos do Império Romano. No meu novo
documento, constava apenas o ano do meu nascimento, meu
ofício e o meu nome: Escriba de Alexandria. Um nome era
só um nome. Simão Pedro também aproveitou para mudar o
próprio nome e escolheu ser chamado de Petrus de Roma.
390
- Eu sou uma pedra, Escriba, e um dia servirei de base para
construir um templo... – disse ele, gargalhando, quando já
estávamos no meio da multidão que lotava as ruas de Roma.
Eu estava ansioso para ir até a Segunda Casa da Virgens
Vestais que ficava nos arredores da cidade. Queria falar
com Ariam e saber o que havia acontecido nesse período em
que estivemos separados.
Deixei Petrus no mercado e encaminhei-me até o local onde
havia deixado Ariam há pouco mais de um ano. Ao me
aproximar do lugar, notei que havia algumas mudanças. A
residência parecia abandonada. Não havia guardas ou
qualquer outra pessoa nos arredores.
Bati com a argola de ferro contra o portão de madeira e,
depois de algum tempo, uma mulher de meia idade veio
abrir. Não se parecia com nenhuma das pessoas que eu
conhecera durante a minha estada ali.
- Senhora – disse-lhe, espiando pelo vão da porta para
dentro do jardim que agora estava descuidado – eu procuro
pela Sacerdotisa-Mor... Sou o Escriba de Alexandria,
também conhecido como João da Judeia.
A mulher pareceu me estudar cuidadosamente e depois
respondeu.
- O senhor é parente dela?
- Não... não sou. Fui discípulo dela aqui há cerca de um ano.
O que aconteceu aqui. A casa parece deserta. Onde estão as
Virgens Vestais?
391
- A casa foi fechada há cerca de um ano, senhor. Elas agora
estão todas na Casa do Templo que fica ao lado do Fórum.
Depois das coisas horríveis que aconteceram aqui, o
Imperador mandou fechar esta casa. Eu só tomo conta dela
sozinha – disse-me, enquanto abria o portão para me deixar
ver o estado da casa.
Olhei entristecido. Não era mais aquele magnífico pequeno
palácio onde eu vivera os melhores dias de minha vida.
Curtos, porém intensos. Pedi para entrar e a senhora
permitiu e me acompanhou pelo lugar. Havia muito mato,
entulho e poças de lama no piso semidestruído pelas chuvas
e pela falta de cuidados. O salão esplendoroso, onde eu me
sentara tantas vezes para cear com Ariam e as demais
Vestais, estava irreconhecível. Não havia mais móveis, nem
quadros e a pintura estava mofada. Um cheiro acre exalava
do lugar.
- O que aconteceu aqui de tão ruim, senhora? Indaguei
curioso.
- O senhor não é daqui, não é?
- Não, sou de Alexandria. Conte-me o que houve, por favor.
- Olhe, não sei os detalhes. Mas o povo conta que uma
maldição entrou nesta casa e duas Virgens Vestais
morreram em pouco tempo...
- Duas Virgens? A senhora sabe o nome delas? – indaguei-
a, sentindo uma grande aflição.
392
- Não sei, senhor. Só sei que uma era a principal daqui.
Uma moça muito bonita. Eu já a tinha visto no Circo, bem
ao lado do Imperador...
- Por acaso o nome dela é Ariam de Glimeu?
- Sim, é isso mesmo. Ariam... é um nome muito bonito.
Tenho uma neta com esse nome. Foi ela mesmo... morreu
aqui dentro queimada. Dizem que foi o fogo do inferno por
causa da maldição. Imagino que elas fizeram alguma coisa
muito errada. Elas fazem um voto de castidade, não é?
Dizem que a principal engravidou e, para não ser enterrada
viva, se matou. Mas antes, uma outra já tinha morrido
envenenada. Pobrezinhas, tão lindas, tão jovens... São as
tentações... os demônios. Eles querem levar as moças para o
inferno, para o lodo...
Eu senti a cabeça girar e percebi que ia desmaiar, era como
se tivesse recebido um soco de Sansão no meio do
estômago.
- O senhor esta passando mal? – Por favor, sente-se, vou
buscar uma água fresca.. é o calor. Está muito quente esses
dias – disse a mulher, afastando-se para o interior da casa
que agora parecia um túmulo.
Saí para o que um dia fora um jardim e vomitei. Meu
estômago revoltado não queria aceitar o que eu acabara de
ingerir: veneno, morte e dor.
Quando a mulher voltou com o copo d’água, eu já estava
mais calmo e resolvi investigar melhor tudo aquilo. Poderia
ser um mal entendido, poderia ter sido uma outra Virgem.
393
Fosse como fosse, era uma história macabra e eu precisava
saber dos detalhes.
- Dizem que a chefe da moças... a principal e uma outra
conheceram um moço e se engravidaram dele. Ele fugiu e
elas ficaram muito desgostosas. Uma bebeu veneno.
Contam que a outra não quis se envenenar e se matou
passando betume e ateando fogo nela mesma. Encontraram
só os ossos queimados.
- Como sabiam que era a chefe das Sacerdotisas? A senhora
tem certeza disso? – questionei, na esperança de que ela
tivesse se enganado.
- Olhe moço, certeza, certeza eu não tenho, mas ouço o
povo dizer que era ela sim, porque encontraram os
braceletes e outras joias dela quase derretidos juntos aos
ossos queimados. O quarto onde ela foi encontrada
queimada é lá no fundo... está tudo revirado, mas ainda está
tudo lá. Todo o dia o intendente diz que vai mandar limpá-
lo, mas nunca vem.
Segui a guardiã por aquele corredor que conhecia tão bem.
Ainda podia me lembrar do doce perfume de Ariam, quando
me acompanhou até o claustro.
A senhora empurrou a porta e vi, horrorizado, que ela tinha
razão. Alguém tinha ateado fogo àquele lugar. Havia marcas
de fumaça em todo quarto. A porta, apesar de muito grossa,
estava visivelmente queimada por dentro. O que fora
assoalho e tetos forrados por tapetes não mais existiam. No
lugar, havia apenas cinzas. Cinzas da mulher que amei e por
quem estava vivo até aquele dia.
394
Saí daquele local correndo feito louco e vaguei por muitas
horas pela ruas de Roma até que decidi confirmar aquela
história que parecia absurda. Assim como, às vezes, me
pareciam absurdas as histórias contadas nos livros do meu
povo.
Parei em frente ao Templo das Vestais que estava bem
guardado por soldados fortemente armados, prontos para
repelir qualquer intruso. Aproximei-me de um dos guardas e
perguntei se ele sabia o nome da Sacerdotisa-Mor das
Vestais e ele me disse chamar-se Lucila de Galeso.
- O senhor conhece uma Sacerdotisa de nome Ariam de
Glimeu? Indaguei ansioso por obter uma resposta positiva.
- Ariam de Glimeu, a que morreu queimada como uma
bruxa? Sim, lembro dela. Era a mais bonita de todas as
Vestais que já vi por aqui. Quando ela morreu, eu já
trabalhava aqui, mas a vi várias vezes entrando e saindo por
esse portão.
- O senhor sabe o que aconteceu? Sabe como foi isso? Foi
um acidente?
- Dizem que ela estava dormindo e o vento jogou uma tocha
sobre o tapete. Ela não teve tempo de ser socorrida. Alguns
apontam que foi uma maldição. Mas eu só sei o que me
contaram.
Não será possível descrever aqui qual foi o tamanho do meu
sofrimento com a confirmação daquela tragédia. Mas digo-
lhes que foi maior que aquele sentido pelos condenados que
são chicoteados cem vezes, que arrastam pelas ruas um
poste onde são crucificados e lá ficam até morrerem e serem
395
devorados pelos abutres. Pior do que o sofrimento daqueles
que são amarrados em uma pilha de erva seca para serem
devorados pelo fogo que é ateado sobre eles. Meu
sofrimento era indescritível. Procurei meu bom amigo e lhe
contei tudo, desde o começo, sem omitir nenhum detalhe.
Foi Simão Pedro, o Petrus, que me salvou de mim mesmo,
já que, na minha cabeça, tudo o que eu queria fazer era
aniquilar a minha própria existência, para, assim, silenciar
os gritos de horror de Ariam no dia do seu auto suplício,
que não saiam da minha cabeça.
- Você precisa entender que a vontade de Deus não é a
nossa vontade, Matias. Disse-me Pedro, tentando me fazer
lembrar de quem eu realmente era.
- Vontade de Deus? Que vontade de Deus louca é essa
Pedro? Responda-me?! Deus nos enche de esperanças e de
uma hora para outra nos retira tudo e nos faz parecer meras
marionetes de um circo! Que Deus sem coração e egoísta é
esse? É só a vontade dele que conta? Então para que temos
vontade, desejos?!
- Confesso que não sei, Matias. Realmente não sei.
- Se eu não tivesse sido covarde e fugido... Se eu não tivesse
ido para Alexandria, nada disso teria acontecido.
- Talvez os dois estivessem mortos. Se ela estava grávida de
um filho seu, como você diz, logo descobririam. Acho que
ela fez o que achou certo e poupou a sua vida. Você sabe
que o homem que viola uma Virgem Vestal é morto
também.
396
- Teria sido melhor morrer. Mas talvez nós tivéssemos
conseguido fugir. Tantas pessoas fogem para escapar de
uma perseguição. Por que nós não conseguiríamos?
poderíamos ter ido para longe, para outras terras, onde
poderíamos ter nossos filhos e vivermos em paz.
- Vocês sempre viveriam em aflição e assustados ante o
menor sinal de perseguição, Matias. Tudo e qualquer coisa
lhes pareceriam o algoz caçando-os para puni-los. Acredita
que isso é viver?
- Você tem razão, poderia ser assim mesmo. Então temos
que amaldiçoar os nossos algozes. Sim, esta cidade... Roma,
seus cruéis ditadores com suas leis perversas. Devem ser
destruídos, Pedro... – disse eu, cheio de ira.
- Pode ser... Como você vê, na verdade, não é Deus que nos
castiga, mas os homens com suas leis estúpidas.
- Eu sempre soube que todo esse sofrimento e caos que
estamos vivendo tem um culpado.
- Não apenas um culpado, meu irmão. Não são os
Imperadores Romanos os únicos responsáveis por isso.
Nossos governantes também têm culpa. Eles se venderam,
se corromperam.
- Pois deveriam morrer também. Todos eles deveriam ser
queimados, destruídos – explodi, cheio de ódio.
Pedro ficou pensativo e, depois de um tempo, indagou-me:
- O que você vai fazer agora? podemos voltar para
Alexandria. Ou para Jerusalém. O que acha? Não deixarei
você sozinho. Estarei do seu lado.
397
- Melhor cada um seguir seu caminho, Pedro. Você tem
uma missão a cumprir. A minha está acabada.
- Talvez não esteja, Matias. Talvez eu deva agora te contar
toda a verdade.
- Toda a verdade? O que quer dizer com isso? O que existe
mais para eu saber?
- Enquanto você esteve ausente de Alexandria, Obadiah e os
demais mestres e sacerdotes essênios elaboraram um plano
para destruir o Imperador...
- Destruir o Imperador? Como assim? Enviando-nos pra cá
para educar seus filhos, seus herdeiros?
- Não, Matias... isso é apenas parte do grande plano. Na
verdade, eles nos prepararam para nos infiltrar no palácio.
Como professores e mestres dos filhos dos governantes e
generais, podemos, secretamente, repassar informações
detalhadas de tudo que se passa lá dentro. Por isso fui
aprender artes e estratégias militares e línguas.
- Quer dizer que eu fui colocado numa missão suicida?
Ensinar o filho do Imperador era só um pretexto? –
perguntei, alarmado.
- Não é missão suicida, Matias. Obadiah tem preparado
espiões há muitos anos e os coloca dentro do palácio para
acompanhar os passos dos generais. Servir de ouvidos e
olhos para o nosso povo. Estamos em uma guerra e vencerá
quem possuir melhores espiões. Eu sou a pessoa que deverei
dar cabo do Imperador, se tudo mais falhar.
398
- Você está dizendo que vai se tornar um assassino, Pedro?
É isso mesmo?
- Meu irmão, você pode me chamar como quiser, não me
importo. Milhares de nossos irmãos estão sendo
massacrados enquanto nós estamos aqui em Roma. Fomos
treinados para cumprir uma missão e você faz parte dela.
- Então aquela história de educar um futuro Imperador era
só um pretexto para que eu, não só tenha acesso ao filho de
Tibério Cláudio Nero César, mas conheça também os
segredos do palácio e passe informações aos demais
espiões, é isso mesmo?
- Exatamente isso, meu irmão. Se contássemos a você antes,
certamente, você rejeitaria. No entanto, Obadiah sabe que
quanto mais você se aproximasse do Imperador e de sua
família mais os odiaria e isso tornaria você a pessoa
indicada para fazer o que precisa ser feito. Sua inteligência,
capacidade de tomar decisões e determinação serão as
principais armas para vencermos essa luta.
- Matar um Imperador resolve tudo? É simples assim?
- Claro que não, mas desestabiliza qualquer governo a morte
súbita de um Imperador, sobretudo agora que ele se prepara
para novas ofensivas no extremo oriente.
Fiquei pensativo. A raiva que estava sentindo por ter visto o
mundo desmoronar debaixo dos meus pés parecia me dar
força para continuar a minha missão. Só que agora eu já
sabia exatamente o que deveria fazer e talvez o fizesse
melhor do que Obadiah havia planejado.
399
- Qual é o passo seguinte Petrus – disse eu, chamando o
nome romano do meu amigo que sorriu e, imediatamente,
chamou-me por meu novo nome também.
- Assim é que se fala Escriba de Alexandria. Já tenho tudo
pronto. Existe uma pessoa que trabalha no palácio como
governanta de Vipsânia e ela está esperando que você seja
contratado pela mulher do Imperador e te apoiará. Se for
convincente, será contratado para ensinar hebraico ao filho
de Vipsânia, Júlio Cesar Druzo, um dos possíveis herdeiros
do Império, muito embora isso agora pouco importa. Como
você já sabe, nosso objetivo é outro.
- Seguirei o plano, mas tomarei a liberdade de fazer
algumas mudanças, Petrus. E quanto a você.
- Depois que você estiver dentro do palácio, passará a me
dar informações sobre a movimentação de soldados,
quantos são os pretorianos que vigiam o Imperador, a
mulher e o filho. Você me informará sobre a rotina deles,
sempre que nos encontrarmos. Provavelmente, você ficará
hospedado no palácio para poder atender às necessidades
educacionais do menino, mas, como homem livre, poderá
sair de lá quando desejar. Te direi onde nos encontraremos e
mudaremos o lugar de tempo em tempos, pra não levantar
suspeitas.
Simão Pedro era mesmo um estrategista. Minha surpresa só
não foi maior pelo fato de saber que na história do nosso
povo sempre usávamos espiões para obter informações
valiosas que nos ajudavam a vencer as batalhas. Naquele
momento, não seria diferente. Entendi que uma rede de
homens e mulheres que haviam sido preparados por um
400
grupo de sábios em uma cidade distante de Roma estavam
iniciando uma mudança de cenário que envolvia sangue,
traição e assassinatos.
O desejo de vingança pela morte prematura de Ariam e
possivelmente do meu filho que ela carregava no ventre
estava latente em mim, o que me dava forças para seguir em
frente. Eu iria ajudar a realizar os planos de Obadiah,
fossem eles quais fossem e o faria melhor ainda do que fora
planejado. Eu agora, secretamente, planejava assassinar o
próprio Imperador a mulher dele, seu filho, bem como todos
os que morassem no Palácio, sem qualquer dó ou piedade,
afinal, foi para isso que eu havia sido escolhido.
401
Capítulo XVI – A Difícil Decisão
Em minha mente só havia dois sentimentos que se
agigantavam a cada dia: ódio e vingança. Eu queria destruir
o poder dos meus algozes e carrascos do meu povo. A
melhor maneira de alcançar esse objetivo era esperar o
momento certo para atacá-los. Meu plano era acertar o
coração do Império Romano e, para isso, talvez eu
precisasse contar com a ajuda de homens e mulheres
preparados para matar ou morrer em combate. Eu tinha
coragem para liderá-los.
O encontro com Vipsânia Agripina, a mulher do Imperador,
ocorreu conforme o esperado. Ela era uma mulher bonita,
de estrutura delicada, envolta em roupas e adornos
suntuosos vindos do Oriente. Sorria todo o tempo, como se
estivesse em permanente estado de embriaguez. Fez-me
uma série de perguntas estúpidas sobre meus hábitos, minha
família e meus estudos. Ao final, pareceu satisfeita e
encarregou-me de, três vezes por semana, ensinar hebraico e
história ao pequeno Druso, um menino de cabelos e olhos
claros, franzino e muito parecido com a mãe. Não parecia
ter oito anos de idade, era bastante tímido e, não fosse pela
nobreza de suas vestes, jamais alguém pensaria que ele era
filho de Tibério, o Imperador de Roma.
Foi me dado um quarto dentro do palácio, na ala reservada
aos hóspedes e demais mestres e doutores que prestavam
serviço ao Imperador. Nesse grupo, havia outros escribas,
geógrafos, médicos, arquitetos, engenheiros militares e
especialistas em botânica e animais.
402
O salário que me foi oferecido era bem maior do que eu
havia imaginado e poderia ser comparado ao soldo de um
capitão da guarda pretoriana, o qual só era menor do que os
proventos dos generais. Em alguns anos, seria possível
acumular uma fortuna, não tanto quanto poderiam fazer os
comandantes, já que eles recebiam uma parte dos bens que
pilhavam dos povos conquistados. Era agindo assim que
capitães, generais e imperadores enriqueciam – às custas do
povo. Eu estava ali para dar um fim a tudo aquilo. Sabia que
a morte de algumas centenas de pessoas, incluindo o
Imperador, sua família e demais membros da família real,
não resolveria de uma vez por todas os problemas seculares
que meu povo e demais conquistados haviam acumulado,
mas ao menos criaria uma grande desestabilização naquele
império nefasto, construído com o sangue, o suor e as
lágrimas de milhões de inocentes.
Pelos conhecimentos que eu tinha sobre história dos povos,
sabia que um império dividido tende a se enfraquecer e cair.
Com a morte do Imperador e de seus prováveis sucessores,
os generais iriam se debater entre si para dividir o Império e
seria o começo do caos. O senado também se enfraqueceria
e provavelmente haveria muita disputa pelo poder. Nada
pode ser mais frutífero para o povo do que ver suas velhas e
incompetentes instituições desmanteladas. Era necessário
destruir as velhas pra que nascessem as novas. Naquele
momento da história, não haveria melhor maneira de
destruir o Império Romano. Obadiah e seus agentes
infiltrados, entre os quais eu me encontrava, agora
consciente de tudo, elaborara durante décadas aquele plano,
exceto a parte que eu tinha decidido acrescentar, tomado
pelo extremo ódio a tudo que simbolizasse Roma, seus
403
deuses infantis, suas leis estúpidas e sua luxúria
abominável.
Quanto mais eu andava pelo palácio e conhecia outros
membros da família real, como o depravado Caio Júlio
César Augusto Germânico, também apelidado por
“Calígula”, um dos netos de Tibério, mais repugnância eu
sentia por todos eles.
Confesso que ao testemunhar o tamanho da depravação que
havia dentro do palácio, eu sentia vontade de expor tudo
que se passava lá dentro ao povo de Roma, homens e
mulheres de bem que adoravam o Imperador como se ele
fosse um verdadeiro deus.
Eu sentia que o meu Deus, o verdadeiro Deus, estava me
usando para dar um fim àquele antro de perdição, do mesmo
modo como um dia Ele destruiu Sodoma e Gomorra; ou
quando, com o grande dilúvio, dizimou grande parte dos
seres que habitavam a Terra, salvando apenas os que
estavam na arca com Noé e sua família. Afinal, se Javeh
fizera aquilo no passado, o que o impedia de fazer outra
vez? Talvez agora Ele esperasse que homens como nós
fizéssemos aquilo que Ele já nos ensinara desde os tempos
primitivos: matar, destruir todos os que blasfemavam contra
Deus e viviam em pecado.
O que os romanos estavam fazendo com nosso povo por
quase cem anos, era abominável, intolerável e hediondo.
Todos os massacres e destruição que eles tinham causado
mereciam uma reparação. Se Deus já não mandava fogo do
céu para destruí-los, cabia a nós homens aqui embaixo, a
404
tarefa de dizimá-los com igual habilidade, mas fazendo uso
dos nossos próprios meios.
Depois de cumprir as minhas tarefas com o desatento filho
do Imperador, eu ia encontrar meus companheiros,
passando-lhes as informações sobre a movimentação das
tropas reais dentro e fora do palácio, o número de guardas,
os locais onde guardavam as armas e demais fatos de que eu
tinha conhecimento lá dentro. Passava-lhes, também, mapa
detalhado dos aposentos reais, para o caso de uma invasão.
Com a liberdade que aos poucos fui adquirindo, granjeei a
simpatia dos generais e demais capitães da guarda
pretoriana, tendo a oportunidade de chegar muito perto de
Tibério, um homem senil, com aparência cadavérica, cheio
de manchas no rosto que o deixavam com uma aparência de
leproso. Um verme abominável. Provavelmente, se eu
pudesse usar uma espada dentro do palácio, o teria
decapitado em uma das poucas vezes em que fui obrigado a
fingir ter-lhe afeto, deitando-me no mesmo ambiente que
ele e outros mestres e generais, para participar de alguns dos
extravagantes banquetes do imperador.
Na verdade, o que me importava era aproveitar aquelas
oportunidades para estudar a melhor maneira para eliminar
centenas de pessoas dentro daquele palácio ao mesmo
tempo. Um incêndio seria formidável. Eu chegava a
imaginar as imensas labaredas varrendo os salões
atapetados e devorando cortinas de seda onde os devassos
se escondiam. Gostava de imaginar vê-los queimando na
grande fogueira, um inferno criado aqui mesmo para puni-
los por suas maldades. Todos eram culpados. Ninguém
deveria escapar.
405
Quando meu coração parecia querer fraquejar, eu lia o
Talmude e assinalava todas as passagens que conhecia sobre
o modo como Javeh aniquilava os que o desobedeciam.
Houve momentos em que eu achei que a punição de Javeh
parecia muito severa. Mas, os romanos não faziam coisas
piores? Não estupravam nossas mulheres e crianças? Não
mutilavam nossos soldados e escravizavam o nosso povo?
Eram como erva daninha que infestava os campos de trigo e
precisavam ser ceifadas, arrancadas pela raiz. O nosso livro
sagrado estava cheio de exemplos do modo como o Senhor
tratava e mandava tratar os inimigos de Israel. Qualquer
atitude que eu tomasse, certamente receberia o aval de
Deus, pois era em nome Dele que eu estaria agindo, para
salvar os inocentes das garras do opressor. Li, incontáveis
vezes, os versículos do Talmude que mostravam de modo
inequívoco a ira de Javeh e a forma como Ele sempre
resolvia os problemas do seu povo:
Ezequiel 5:8-10 Como punição, o Senhor fez com
que as pessoas comessem a carne de seus próprios
filhos, filhas, pais e amigos.
Números 15:32-36 Estando, pois, os filhos de Israel
no deserto, acharam um homem apanhando lenha no
dia de sábado. Disse, pois, o Senhor a Moisés:
Certamente morrerá aquele homem; toda a
congregação o apedrejará fora do arraial.
Números 16:49 Uma praga enviada por Deus matou
14.700 pessoas.
Números 25:9 Outra praga divina mata 24.000
pessoas.
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Números 21:35 Javeh manda que os Israelitas
matem todos os Amorreus, seus filhos e filhas até
não haver sequer um sobrevivente.
Números 25:4 Disse Deus a Moisés: Toma todos os
cabeças do povo e enforca-os ao Senhor diante do
Sol e o ardor da ira do Senhor se retirará de Israel.
Deuteronômio 20:16 Das cidades destas nações, os
heteus, os amorreus, os cananeus, os perizeus, os
heveus e os jebuseus que o Senhor teu Deus te dá em
herança, nenhuma coisa que tem fôlego deixarás
com vida.
Josué 6:21-27 E o Senhor manda a Josué passar ao
fio da espada todos os homens, mulheres e crianças
da cidade de Jericó.
Josué 8:22-25 Josué destrói todo o povo de Ai,
matando 12.000 homens e mulheres, sem que
nenhum escapasse.
Josué 10:40 Assim feriu Josué toda aquela terra, as
montanhas, o sul, e as campinas, e as descidas das
águas, e a todos os seus reis. Nada deixou de resto;
mas tudo o que tinha fôlego destruiu, como ordenara
o Senhor Deus de Israel.
Josué 11:6 O Senhor ordena o mutilamento (corte
dos tendões das pernas) dos cavalos.
Isaias 14:21-22 Preparai a matança para os filhos por
causa da maldade de seus pais.
407
Ezequiel 9:4-6 E disse-lhe o Senhor: sem
compaixão... matai velhos, mancebos, e virgens, e
meninos, e mulheres, até exterminá-los.
Ezequiel 21:3-4 E disse o Senhor: exterminarei
tanto o justo quanto o ímpio, ferindo-lhes a carne
com sua espada.
Os romanos eram idólatras, não guardavam o sábado, eram
ladrões e sanguinários. A nada temiam, nem aos seus
próprios deuses mentirosos. Se eu realizasse o meu plano,
estaria não apenas punindo com justiça todo o mal que
haviam cometido, como também impedindo que eles
continuassem cometendo novas atrocidades. Qualquer novo
governante teria mais cautela e prudência ao lidar com o
povo judeu dali por diante. Aquele seria o recado dos judeus
ao Império Romano.
Incêndio ou envenenamento? Sim, talvez uma dose mortal
de veneno poderia dizimar milhares de pessoas de uma só
vez. Bebida e comida seriam os veículos perfeitos para
Javeh cumprir o seu castigo divino por minhas mãos. Eu
teria que começar a planejar tudo antes da grande festa dos
Jogos Romanos em honra ao deus Júpiter, que sempre era
realizada entre os dias 5 e 19 de Setembro de cada ano.
Faltava pouco mais de um mês e a data seria perfeita. Eu
sabia que, no primeiro dia dos jogos, o Imperador daria um
grande banquete aos seus generais e convidados que vinham
de várias províncias e países. Alguns do meu povo também
estariam lá ao lado dele, servis e amansados pelo poder.
Morreriam todos. Todos aqueles que se deitavam com o
inimigo e comiam em suas mesas. Eu, embora também o
fizesse, não estava ali para banquetear-me com os homens
408
maus, mas sim para planejar a execução de uma obra que
havia tomado em minhas próprias mãos.
Cheguei a pensar várias vezes em confidenciar o meu
segredo a Simão Pedro, mas temi que ele pudesse ser
contrário, pois era ele a pessoa incumbida de assassinar o
Imperador e eu poderia atrapalhar os planos de Obadiah ou
quem mais estivesse envolvido. Portanto, eu teria de
trabalhar sozinho para alcançar o meu objetivo e,
provavelmente, o de todos os meus companheiros.
Graças aos meus conhecimentos de botânica obtidos na
Biblioteca de Alexandria com o mestre grego Dardanus e
aperfeiçoado com a Vestal Ariam de Glimeu, eu sabia como
preparar um veneno mortífero.
Sócrates, há 400 anos, havia sido morto ingerindo gotas de
cicuta, veneno extraído da planta com mesmo nome,
altamente tóxica, capaz de matar um homem em poucos
minutos por paralisia dos membros. Após ingerir gotas de
cicuta, a vítima não morria imediatamente, ficava
consciente até que todos os músculos parassem de
funcionar, incluindo os do coração e pulmão. Havia outro
poderoso veneno conhecido como acônito que, ao ser
ingerido misturado em uma bebida ou em um alimento,
provocava arritmia cardíaca e morte por sufocamento.
Bastavam algumas gotas de acônito para matar uma pessoa,
sem chances de salvação.
Eu pensei em misturar os dois venenos. Não daria chance de
escapatória aos inimigos. Qualquer antídoto seria ineficaz.
Meu plano era me infiltrar na cozinha no primeiro dia da
grande festa e colocar gotas da minha poção mortífera nas
409
panelas de alimentos que seriam servidos ao Imperador, sua
família, convidados e demais generais. Eu já estivera lá
várias vezes, com o pretexto de ensinar aos cozinheiros
reais como preparar pratos exóticos que aprendi fazer
quando estive no Oriente. Os guardas já não se
incomodavam com a minha presença em qualquer lugar do
palácio e por isso seria muito fácil executar o meu plano. Só
havia dois problemas que eu ainda não conseguira resolver
– o primeiro era como iria avisar aos demais companheiros
escribas e mestres que estariam no palácio naquele dia para
que não bebessem ou comessem nada durante a festa no
palácio. O segundo era a forma de colocar o veneno nos
alimentos, já que era um costume da época, antes que
qualquer alimento fosse levado aos membros da família real
e ao Imperador, os guardas escolherem, ao acaso, alguns
empregados da cozinha para prová-los e aguardavam alguns
minutos antes de continuar a servir, o que só ocorria se tudo
estivesse bem. Foi dessa forma que muitos governantes
foram poupados de morrerem envenenados. A comida e a
bebida eram sempre veículos muito fáceis de serem
manipulados e contaminados.
No primeiro dia da grande festa, muitos dos meus
companheiros levariam seus familiares e amigos para o
palácio porque haveria exibição de dança e apresentação de
músicos. Simão Pedro seria um deles, além de Tiago, filho
de Zebedeu e Tomé, que ensinava música ao filho do
Imperador. Além deles, havia outros infiltrados no palácio
que eu sequer conhecia. Simão nunca me disse exatamente
quem eram eles, para não comprometer a segurança dos
mesmos.
410
- Quanto menos você souber, melhor, Escriba. Nós
podemos ser apanhados a qualquer momento, em caso de
traição. Sob tortura, alguém pode delatar uns aos outros e
todos perecerão – disse-me ele, certa ocasião.
- Eu compreendo, Petrus. E quando será o dia em que você
vai executar o seu plano de assassinar o Imperador? Onde
será isso? – indaguei.
- Não vai demorar muito, Escriba. Estou aguardando ordens
de Obadiah. Ele quer que seja algumas semanas depois dos
Jogos de Roma, quando a vigilância ao Imperador já será
reduzida. Você sabe que, durante os jogos, Roma recebe
mais de trezentas mil pessoas e que gente de todas as partes
do mundo trazem seus campeões para lutarem na arena do
Circus Máximo. A cidade fica superlotada de estrangeiros.
O risco de atentado ao Imperador ou a algum membro de
sua família é muito grande, pois ele tem inimigos por toda
parte. Então, não seria fácil matar Tibério durante essas
festividades. Mas, depois da festa, a guarda pretoriana
relaxará e será nesse momento que entrarei em ação – disse-
me Simão Pedro, sussurrando no meu ouvido.
Ouvi tudo e permaneci silencioso, sorrindo por dentro, pois
ele estava enganado. Eu faria o trabalho completo muito
antes dele e com todo requinte de perfeição que o caso
requeria.
Passei a guardar a minha poção mágica dentro da própria
cozinha do palácio. Foi esse o nome que dei à mistura de
cicuta e acônito. Havia muitas ratazanas pelas ruas de Roma
e eu testei várias vezes, colocando gotas da mistura em
pedaços de queijo de cabra ou pão para que os ratos
411
comessem. Vi satisfeito que, antes mesmo de eles
terminarem de ingerir o alimento envenenado, caiam se
debatendo e morriam asfixiados em poucos instantes. Eu
não falharia em meu intento, se conseguisse resolver os dois
problemas que tinha nas mãos: avisar aos meus
companheiros para não comerem nada que fosse servido no
banquete e como envenenar os alimentos depois que estes já
tivessem sido provados pelos guardas e empregados
designados.
O primeiro dilema seria mais fácil, pois eu poderia avisar a
Simão Pedro no dia em que estivesse pronto para executar o
meu plano e ele se encarregaria de avisar aos demais. Só ele
os conhecia. O segundo problema dependeria de um pouco
de sorte e empenho de minha parte. Era necessário um
trabalho de investigação delicado.
Circulando discretamente pela cozinha para não despertar
suspeitas, percebi qual era a rotina do serviço de servir
alimentos à família real. Um capitão pretoriano escolhia ao
acaso, diariamente, dois cozinheiros e os fazia provar cada
um dos alimentos e bebidas que seriam levadas ao
Imperador ou convidados ilustres. Depois que a comida era
testada, ficavam dois guardas dentro da cozinha para
protege-la, por medida de segurança.
Ali estaria a possibilidade de uma falha. Eu só precisaria
criar algo que distraísse os guardas enquanto a poção
mágica fosse colocada nas panelas e na bebida. Teria que
ser criada uma distração que desse tempo suficiente para a
consumação do envenenamento.
412
A minha presença na cozinha despertaria suspeitas sobre
mim, então, seria melhor eu subornar alguém da própria
cozinha, pois, exceto o chefe e dois auxiliares, todos os
demais eram escravos qualificados. Mas quem?
Naquela época, eu já era um homem com algumas posses,
pois, mesmo naquele curto período de tempo em que estava
trabalhando para a família do Imperador, havia recebido
excelentes salários e fizera inúmeros trabalhos extras como
escriba particular de ricos comerciantes, transcrevendo
documentos, elaborando biografias e resumos históricos,
inclusive ao lado de Flávio Josefo, historiador que havia
documentado a vida em Jerusalém durante o tempo de
Herodes, além de ter relatado a vida de alguns Imperadores.
Também conheci Públio Cornélio Tácito, um importante
orador, historiador e filósofo romano. Eram homens
inteligentes e visionários. Nas ocasiões em que trabalhamos
juntos na tradução de alguns documentos, ambos
demonstravam acreditar que em poucos anos haveria
mudanças radicais no Império Romano e que o mundo seria
bem diferente daquele em que vivíamos.
Eu queria mudanças imediatas. Não tinha tempo para
esperar dez, vinte ou trinta anos. Por isso, deveria me
concentrar nos preparativos para o grande dia do banquete
oficial. Com sorte, eu poderia subornar um cozinheiro para
completar o meu trabalho. O único risco que eu corria era se
escolhesse o homem errado. Se fosse assim, tudo estaria
perdido e o meu corpo seria apenas mais uma vida a servir
de alimento para os leões do Circus Máximo, durante os
jogos de Roma.
413
Fui consultar Simão Pedro, na esperança de que ele me
falasse de algum infiltrado que estivesse trabalhando na
cozinha do palácio. Por três vezes, ele negou conhecer
alguém, mas, ao fim de algum tempo, ele acabou
informando que havia uma pessoa na cozinha que não era
infiltrado, mais era filho de um judeu e de uma romana. Seu
nome era Trazíbulo, deveria ter não mais que vinte e cinco
anos e era um especialista em vinhos. Pedro me disse que
talvez ele pudesse ser subornado.
- Afinal, para que você precisa dessa informação, Escriba?
O que está tramando? Indagou Pedro, desconfiado.
- Na verdade, eu sempre quis saber quais eram as pessoas
que trabalhavam na cozinha do Imperador, imagino que
seria muito fácil alguém envenená-lo, não seria? Falei,
tentando ampliar a conversa.
- Envenenar um imperador não é nada fácil. Requer calma,
estudo e determinação. Muitos já tentaram, mas não
conseguiram. No passado, algumas poucas tentativas
tiveram sucesso. Tibério não será morto por um veneno... é
muito suave... ele precisa ter a cabeça decepada por uma
espada genuinamente judaica e enfiada numa estaca e
exposta em praça pública, como ele tem mandado fazer com
os nossos irmãos judeus.
Gostava de ver Pedro falando daquele jeito. Remetia-me à
lembrança do ódio aos romanos que professava Calebe, meu
amado irmão, do qual eu nunca mais tivera notícias e nem
dos meus demais familiares.
Eu estava prestes a realizar algo que meu irmão sentiria
orgulho de mim, se soubesse.
414
A possibilidade de falha na segurança do pessoal
encarregado de servir alimentação ao Imperador já havia
sido identificada. Com cautela e poder de convencimento,
talvez eu conseguiria convencer o rapaz da cozinha a seguir
meu plano. E se ele não aceitasse? Deveria matá-lo para que
não me denunciasse? Ora, estávamos em uma guerra. E
quando se trata de uma guerra declarada, sempre haverá
baixas, mortos e feridos. Não havia outra maneira de
romper com a dominação do Império. Uma força tão grande
precisava ser domada com o uso da inteligência e com
alguma força bruta, quando fosse o caso. Não teria peso na
consciência, se tivesse que agir de modo radical. Mais
radicais do que os modos romanos de lidar com as pessoas,
não existia.
Esperei o momento em que Trazíbulo saiu do palácio,
depois da sua dura jornada de trabalho que era de doze
horas, e o segui pelas ruas de Roma até a casa dele, que
ficava num dos bairros pobres da cidade. Lá não havia a
famosa Cloaca Máxima, sistema de canalização que servia
para levar os dejetos das casas para o rio. Nem mesmo havia
fontes de águas trazidas pelos aquedutos que abundavam na
região das moradas dos abastados cidadãos romanos,
senadores e generais. O mau cheiro das ruas era quase
insuportável para alguém que, como eu, já me habituara à
limpeza das ruas do centro da cidade e ao aroma dos
perfumes palacianos.
Eu o seguira disfarçado, pois as minhas roupas de seda
indiana denunciariam a minha origem. Eu adquirira roupas
comuns que eram usadas pelo povo, para compor o meu
disfarce.
415
Observei a morada de Trazíbulo e, do lugar onde eu me
postara, podia ver o movimento de pessoas entrando e
saindo da casa. Havia duas moças que deveriam ter entre 19
e 20 anos e um outro rapaz que parecia ser um irmão mais
moço de Trazíbulo. Descobri que cultivavam a religião
judaica, já que frequentavam uma sinagoga durante o
Sabah. Era uma família pobre e, portanto, qualquer ajuda
seria benéfica. Mas, e se pensassem em lucrar mais,
entregando-me à guarda pretoriana? Nesse caso, eu estaria
em sérias dificuldades. Poderia tentar suborná-lo sim, mas
precisava também conhecer mais detalhes da vida dele para
deixar uma ameaça explicita, caso não concordasse com
minha proposta ou se me traísse.
Completei as minhas investigações e decidi que era o
momento para abordar Trazíbulo. Esperei que ele estivesse
na rua para cumprimentá-lo casualmente.
- Olá Trazíbulo, posso falar com você um momento? - disse
eu sorrindo, ao me aproximar do rapaz que imediatamente
me reconheceu.
- Olá Escriba... claro, pode sim. Do que se trata?
Levei-o para um local mais afastado da praça Navona e nos
sentamos em um banco de mármore.
Perguntei inicialmente o que ele fazia no palácio e a quanto
tempo. Ele confirmou que era uma espécie de provador de
vinhos e também auxiliava no preparo de alimentos quando
necessário. A tarefa dele era selecionar os vinhos prediletos
de cada general e do Imperador. Sempre que o Império
recebia um lote de vinho, era ele, junto com outros colegas
que testavam a qualidade e selecionavam os melhores para
416
o palácio. Indaguei-lhe sobre quanto recebia pelo trabalho e
se gostava do que fazia.
- No começo eu não gostava, mas depois fui me
acostumando. O que ganho dá para viver. Sou órfão de mãe
e só o meu pai trabalha no campo com meu irmão mais
moço. Tenho duas irmãs que também trabalham como
serviçais.
Quis saber qual era a opinião dele sobre o Imperador
Tibério e seus generais.
- Eu não me meto com assuntos de política – disse ele se
esquivando e me olhando com certa desconfiança.
- Tenha calma, Trazíbulo. Não sou um espião do Imperador.
Quero saber o que você pensa sobre as coisas que vê dentro
do palácio. Você gostaria que algo fosse mudado?
- Sim... quer dizer... Sim e não. Mudar de Imperador não
resolve tudo, o senhor não acha? Cada um que entra faz
coisas boas e coisas ruins. Minha mãe, que era romana,
sempre esperou o dia em que Roma teria um Imperador que
fosse bom para o povo.
- E quanto ao atual Imperador, você gosta dele?
- Acho que nem ele gosta de si mesmo... – disse o rapaz
sorrindo.
- Então não gosta? Se tivesse que fazer alguma coisa para
dar chance a algum outro melhor, você faria?
- O senhor está falando em matar Tibério?! – perguntou o
rapaz, alarmado.
417
- Sim, isso mesmo, matar o imperador Tibério. Mas não
apenas ele, todos os que o cercam, inclusive os generais.
Seu pai é judeu, não é?
- Sim, como o senhor sabe disso?
- Tenho amigos que conhecem a sua família, onde você
mora, onde seu pai trabalha e tudo mais. Na verdade, nós
precisamos de sua ajuda para fazer um trabalho que vai
libertar o povo de Roma e os judeus da opressão e da
pobreza. Esse grupo de pessoas planeja mudar
completamente o cenário atual e dar a chance para que o
Senado, que melhor representa a vontade do povo, possa
eleger um novo governante. Sabemos que se apenas Tibério
for morto, o filho ou outro familiar assumirá o trono. Por
isso, estamos prontos para desferir um golpe mortal contra a
família do Imperador, seus generais carrascos e tudo de
ruim que eles representam.
O rapaz não respondeu. Baixou a cabeça e ficou pensativo.
Não deveria ter mais que vinte cinco anos e tinha uma boa
cultura, pois convivera com mestres da cozinha romana e
conhecedores de vinho de outras partes do mundo. Ele
entendera tudo o que eu havia dito. Depois de alguns
minutos, ele ergueu os olhos e me disse pausadamente.
- Sinto muito, senhor Escriba, mas não vou participar de um
assassinato de um imperador. Não quero ser culpado pela
morte de inocentes. O banquete será oferecido para
quinhentas pessoas, entre familiares do Imperador, generais
e convidados de honra. O senhor acha que eu quero
participar do assassinato dessas pessoas?
418
Percebi que era um rapaz de bom coração e que
provavelmente não havia sofrido como eu, apesar de ser
órfão de mãe. Entendi que dissuadi-lo pelo convencimento
não seria suficiente. Tentaria a segunda fórmula. Precisava
usar a dialética de Platão que o mestre Dardanus havia me
ensinado tão bem.
- Eu entendo, Trazíbulo. Você está certo em um ponto, não
é correto matar inocentes... Mas, se você conhece o
Talmude, deve saber...
- Eu não estou interessado no Talmude. Não estou
interessado em mais mortes. Não estou interessado em
arriscar a minha vida ou da minha família para entregar o
poder do meu país a um outro louco qualquer. Se o senhor
não tem mais nada a falar, tenho que ir, meus irmãos me
esperam – disse o rapaz, levantando-se.
- Pois se você realmente ama os seus irmãos e o seu pai,
deveria sentar e me ouvir. Meus amigos não vão gostar
muito de saber que você está me ameaçando...
- Eu não estou ameaçando a senhor. Apenas estou dizendo
que não vou participar do seu plano ou dos seus amigos.
- Talvez você agora queira me entregar para a Guarda
Pretoriana, não é Trazíbulo? Acha que eles vão te premiar
por isso? Talvez lhe deem 10 moedas de prata sujas e um
tapinha no seu ombro. Meus amigos e eu podemos te
oferecer muito mais. A verdade é que agora que você já
sabe que iremos matar a todos naquele palácio, você se
tornou um cúmplice, se não me entregar. Caso você se
recuse a colaborar, o plano será executado assim mesmo. E,
se você me entregar aos romanos, eu não posso garantir pela
419
vida dos seus irmãos nem do seu pai. Nem mesmo a sua, a
partir de agora.
O rapaz sentou-se e começou a chorar com a cabeça entre as
pernas. Ele estava rendido. Era o momento de oferecer a
recompensa. Uma vez mais, a filosofia grega que usava as
ideias e argumentação lógica como instrumento para se
obter uma mudança de opinião, estava funcionando. Só se
pode vencer uma argumentação com outra e, naquele
momento, o rapaz não tinha escolha.
- Escute Trazíbulo, você será um homem muito rico e
poderá ajudar a sua família. Depois que a limpeza for feita,
você poderá ir se juntar aos seus familiares longe de Roma e
terem uma vida digna. Poderão comprar terras e viverem em
liberdade. Você poderá ensinar a sua arte aos que quiserem
aprender e será um homem respeitado.
- Se alguma coisa de mal acontecer à minha família, eu juro
por todos os deuses que matarei você e quem mais estiver
por trás dessa trama imunda.
- Não se preocupe, ninguém fará mal à sua família. Tudo o
que você precisa fazer, será feito na próxima semana.
Primeiro te darei algum dinheiro para que você retire seus
familiares de Roma. Existem vilas próximas daqui, com
casas confortáveis. Providencie para que eles fiquem bem.
Diga-lhes que você tem um patrono, alguém que quer ajudá-
lo. Não diga nada sobre o nosso plano...
- Nosso plano?! Não temos um nosso, aqui, senhor. Tenho o
seu plano...
420
- Tenha calma, Trazíbulo. Você saberá o que fazer no dia
exato. Por enquanto, tudo o que precisa saber é isso. Você
está de acordo com os meus termos?
- Ou...
- Não vou ser cínico com você... acho que você já sabe o
que acontecerá a você e aos seus familiares se você me
entregar aos romanos. Se, por outro lado, cumprir a missão
que lhe daremos, será recompensado e de quebra ficará livre
dessa corja...
- Agora posso ir, senhor?
Deixei que fosse e rezei fervorosamente para que ele se
mantivesse calmo e aceitasse o desafio que agora também
lhe era uma chantagem com ameaça de morte. Até onde
teríamos que chegar para conseguirmos mudar o mundo,
mudar os governantes? Eu iria até o inferno, se preciso
fosse, até porque eu já me sentia dentro dele.
Não dormi muito bem naquela noite. Mesmo não estando
no palácio, me sentia apreensivo e tinha a sensação de que
mãos invisíveis estivessem me perseguindo, tentando me
alcançar. Acordei cansado e fui cumprir a minha tarefa
palaciana – instruir ao jovem Druso, que se mostrava a cada
dia menos interessado em aprender hebraico ou história dos
povos. O que ele queria mesmo era saber das minhas
aventuras pelo mundo e era conversando sobre isso que
matávamos o tempo. Minha chegada ao palácio pareceu
normal, eu cumprimentei a todos e nenhum soldado romano
me impediu de chegar ao aposento onde o príncipe herdeiro
estava à minha espera.
421
- Escriba... Escriba... eu tive um sonho esta noite. Você sabe
interpretar sonhos? – disse-me ele, ao me vir entrar.
- Claro, sei sim. Conte-me qual foi o seu sonho – disse,
aproximando-me do menino.
Ele me contou. Era uma mistura de medos infantis com
desejos de grandeza. No sonho, ele usava uma espada de
fogo para lutar contra os ciclopes que o arrastavam para o
fosso cheio de enxofre. Ele os enfrentava destemidamente,
cortando-lhes as cabeças. Mas, no fim, monstros vindo do
mar o perseguiam. Embora ele gritasse por socorro, não saia
som da sua boca e os monstros o sufocavam até que ele se
viu na escuridão e acordou cheio de terror correndo para o
quarto da mãe.
Eu fiz uma interpretação que satisfez ao menino, muito
embora eu tivesse percebido que, com certeza, ele tivera um
sonho profético. Ele tinha profetizado a própria morte. Era
por sufocamento que a minha poção mágica iria dar cabo de
sua triste vida. Seria um Imperador a menos na Roma
pecaminosa.
Fui à cozinha ver se Trazíbulo tinha ido trabalhar naquele
dia e, para a minha satisfação, ele estava lá, diligente e
sorridente como sempre. Ao me ver, a expressão de alegria
se apagou do seu rosto e ele veio falar comigo.
- Eu farei o que o senhor quiser, mas, por favor, não faça
mal à minha família. Ela é a única coisa boa que tenho. Por
favor... – disse baixinho o rapaz, em tom de súplica.
Agora sabia que eu tinha um cúmplice, mas não tinha
certeza de que ele seria capaz de fazer o que eu iria lhe
422
pedir no dia escolhido. Também não estava certo de que
tudo daria certo com a distração que eu criaria na cozinha
para fazer os soldados se afastarem o tempo suficiente para
que fossem despejadas poções do líquido venenoso em
todas as grandes panelas e vasos com vinho.
Meu plano era instruir Trazíbulo para que, no dia em que eu
lhe entregasse a poção mágica,, após os guardas provarem a
comida, ele me desse um sinal por uma das janelas da
cozinha que dava para um pátio interno, jogando um
punhado de folhas. Eu, imediatamente, jogaria dentro da
cozinha, por uma das janelas, três ratazanas gigantescas que
havia recolhido das ruas e as mantinha em uma gaiola em
meu quarto. O tumulto causado pelos ratos deveria distrair
os guardas o tempo suficiente para que a comida fosse
envenenada. Quando os ratos fossem capturados, se fossem,
o processo de envenenamento dos alimentos deveria estar
concluído. A comida seria levada aos convidados para o
banquete sem maiores suspeitas e o plano chegaria ao fim.
Trazíbulo deveria sair imediatamente do palácio e ir se
juntar aos seus familiares. Para provar minha boa fé, no dia
anterior ao dia da ação planejada, eu daria a ele uma bolsa
contendo o dinheiro cujo valor correspondia a dez vezes
mais o que ele ganhava por ano como provador de vinhos
do palácio. Eu esperava que isso garantisse a fidelidade dele
ao nosso acordo.
Minha ansiedade aumentava à medida que se aproximava o
grande dia.
Poção mágica testada, ratazanas aprisionadas e bem
alimentadas, Trazíbulo informado do que deveria fazer,
convidados de todas as partes enchendo as dependências do
423
palácio, guardas fortemente armados, correndo de um lado
para o outro sobre os gritos dos comandantes, meu coração
a mil, esperando o grande momento.
Dois dias antes da data em que eu havia programado para
levar a cabo meu intento, Pedro invadiu meu quarto
eufórico.
- Escriba! Escriba!! Acho que tenho uma novidade para
você. Hoje conheci um homem que veio da Judeia, mais
precisamente de Jerusalém. Ele disse que aqui em Roma
existe uma pessoa que conhece a sua família. Acho que ele
tem informações sobre o paradeiro dos seus irmãos.
Meu coração disparou de felicidade.
- Que maravilha essa, Pedro. E onde está essa pessoa?
- Amanhã, por volta do meio dia, ele levará essa pessoa ao
mercado para te apresentar.
- Amanhã?! Não pode ser hoje? você sabe, amanhã é o dia
da abertura dos Jogos de Roma, podem precisar de minha
ajuda aqui no palácio.
- Então você prefere ficar no palácio para a festa do
Imperador a ir ter notícias de sua família? indagou Pedro,
desconfiado.
- Não é isso, meu bom amigo. O problema é que eu já tinha
planejado algumas coisas...
- Que coisas, Escriba? Pode me dizer o que é mais
importante do que ter notícias de sua família?
424
Eu não poderia revelar meu plano naquele momento. E,
mesmo querendo muito ter notícias dos meus familiares,
decidi que isso poderia esperar. Por isso, simulei concordar
com Pedro.
- Claro que não há nada mais importante que minha família.
Amanhã iremos ver esse tal homem. Encontre-me no portão
principal do mercado central, por volta do meio dia. Vamos
ver o que essa pessoa tem a me dizer.
Dentro de mim não havia dúvida de que eu não iria
retroceder no meu propósito de realizar a tarefa que me fora
incumbida pelo Senhor. Pelo menos era assim que eu
acreditava naquele momento. Tudo já estava acertado.
Trazíbulo já tinha em mãos uma garrafa de cerâmica
contendo a poção mágica para despejar nos principais
alimentos e bebidas que seriam servidas no grande banquete
do dia da abertura do jogos. Depois de concluir minha
missão, eu iria ao encontro de quem quer que fosse para ter
notícias de meus familiares. Então, se fosse possível
encontrá-los, eu os premiaria com a revelação de que fora
eu o homem que, de uma só vez, dizimou centenas de
carrascos, incluindo o Imperador e todos os seus familiares.
Quando Pedro foi embora, saí para dar uma volta pela
cidade e refazer meus planos de fuga. Havia comprado um
cavalo e o mantinha em um sitio de outro mestre que eu
conhecera. Assim que concretizasse o meu plano, sairia por
um túnel que descobrira em uma das minhas explorações do
palácio e chegaria ao sitio que ficava a apenas meia hora de
caminhada rápida. À cavalo, rumaria rumo ao norte até o
Porto de la Vechia, de onde seguiria para a Síria ou Egito.
Eu sabia que havia muitos barcos ancorados lá e não seria
425
difícil embarcar em um dos que transportavam mercadorias.
Eu tinha dinheiro suficiente para convencer a qualquer
capitão. Meu plano era perfeito. Eu havia também elaborado
um plano secundário. Eu tinha sempre em mente os
ensinamentos de Mestre Dardanus, quem me ensinou a arte
de resolver problemas. Dizia ele:
- Primeiro fixe o objetivo a ser alcançado. Faça todos os
planos possíveis para o alcance de suas metas. Examine
todas as possibilidades de erro e acerto. Corrija os erros.
Depois de tudo pronto, crie um plano secundário para o
caso de ocorrer algum imprevisto com o primeiro plano.
Eu tinha não apenas um plano secundário, mas também um
terciário que era extremamente radical. Um deles era atear
fogo ao palácio e para isso eu já havia localizado os barris
de betume e óleo que eram usados nas tochas e lamparinas.
Possuía cópia da chave do local onde os barris eram
guardados. Bastaria uma pequena distração com ratos
espalhados pelo palácio, para eu ter tempo de atear fogo e,
no meio do tumulto, escapar pelo túnel cuja tampa de saída
para os fundos eu já havia removido dias antes. Um bom
plano requer muito trabalho e paciência. O plano radical era
ainda mais audacioso, eu iria aproveitar um momento de
distração dos guardas dos aposentos reais, entrar nele
durante a festa e esperar por Tibério. Eu ainda sabia
manejar bem uma espada pela aprendizagem que tive com
mestre Chen Tuang e a minha estava pronta para usar
quando chegasse a hora. Talvez eu não saísse com vida do
palácio depois de matar o imperador, mas lutaria até a
morte, disso eu tinha certeza.
426
Quando o dia amanheceu, fui direto inspecionar a cozinha
para ter certeza de que Trazíbulo estava lá e pronto para
cumprir o que tínhamos combinado. Havíamos conversado
dois dias antes e ele estava resoluto pelo fato de saber que
eu cumprira o trato de beneficiar e proteger a família dele,
levando-a para um local afastado onde começaram uma
nova vida, aceitando a ajuda de um benfeitor, como ele lhes
dissera. Tudo o que ele queria era acabar logo com aquela
tarefa maldita e fugir do palácio depois de envenenar os
alimentos. Ele sabia que não poderia permanecer nas
dependências do palácio quando as pessoas começassem a
morrer. Ele teria não mais que meia hora para alcançar os
portões e chegar à rua e dali seguir em uma carroça alugada
para a vila onde a família o esperava.
Ao passar pelo pátio central do palácio, vi um grupo de
homens e mulheres chegando. Todos pareciam ser pessoas
abastadas, pois, além de terem guardas pessoais, traziam
muita bagagem e usavam roupas finas. Havia pelo menos
trinta pessoas entre homens e mulheres. Esperei que
passassem por mim e tive que arregalar os olhos para
confirmar que um dos homens que ali chegara era o Sumo
Sacerdote Essênio, Obadiah.
Não sabia se ficava feliz ou desapontado com aquela
descoberta. Eu já havia sido informado que muitos homens
respeitados pelo Imperador eram convidados para aquela
grande festa. Obadiah, até onde eu sabia, era um homem
muito rico, dono de muitos navios mercantes espalhados por
vários países. Deveria ser dono de muitas propriedades e
fazendas. A presença dele ali poderia ser um jogo político.
O único problema seria que, se ele participasse do grande
banquete oferecido pelo imperador, morreria junto com ele.
427
Eu poderia avisá-lo ou deixá-lo morrer. Quem se mistura
aos cães, dos ossos se servem. Eu havia aprendido essa lição
com os antigos.
Obadiah sabia que eu estava vivendo no palácio desde que
me enviara com uma falsa missão. Porém, ele não sabia que
eu decidira resolver as coisas ao meu próprio modo,
antecipando a morte de Tibério.
Voltei para o meu quarto e encontrei Simão que esperava
por mim.
- Escriba, por onde você andou? Estava à sua procura desde
cedo – disse ele, afobadamente. Vamos, temos que ir agora
encontrar a pessoa que tem notícias de seus familiares.
- Mas eu te disse que estaria no mercado ao meio dia...
- Sim, mas você se esqueceu de que deve estar aqui para o
grande banquete. Sua presença será importante. Obadiah,
Malachai e todos os nossos irmãos foram convidados e
estarão presentes. Eles querem olhar na face do Imperador
Tibério pela última vez.
Eu fiquei perplexo.
- Quer dizer que todos participarão do banquete que será
oferecido hoje? Então os nossos mestres e irmãos escribas
serão parte dos quinhentos convidados reais na festa de
hoje?
- Sim, e até eu serei um deles. Estarei face a face com o
homem que não mais atormentará o nosso povo dentro de
algumas semanas. Esse talvez seja o mais importante
banquete de minha vida.
428
- Mas..
- Não tem mas... vamos correndo, pois temos pouco tempo
para irmos ao mercado e voltarmos. Todos querem
encontrar um lugar no Circus Máximo que estará lotado no
começo da tarde para assistir a abertura dos jogos depois do
banquete – disse Pedro, puxando-me pela túnica.
- Pedro... Pedro! Espere... não posso ir agora – disse eu,
relutante. Tenho algo muito importante para fazer agora. Vá
na frente e eu irei em seguida. Por favor, eu te peço. Não me
faça perguntas. É muito importante o que preciso fazer
agora.
Pedro me soltou, mas me olhou no fundo dos olhos. Ele
sabia que eu estava mentindo. Ele sabia que alguma coisa
estava acontecendo, mas, ainda assim, ele apenas me disse
com a sua voz grave e profunda.
- Está bem Matias... Eu confio em você. Por favor, não me
desaponte. Eu irei na frente e pegarei as informações sobre
seus familiares e voltarei a tempo para participar do
banquete. Não coma toda a salada de verduras... deixe um
pouco para seu velho amigo, está bem?
Pedro saiu e eu respirei aliviado. Só quando ele já estava
longe das minhas vistas é que me dei conta de que talvez
não houvesse tempo para que ele informasse aos demais
infiltrados no palácio para não comer nada do baquete
naquele dia. Eu apenas desejei que ele voltasse rapidamente
antes que o banquete fosse servido. Caso contrário, todos os
meus planos iriam falhar. Como avisar a Malachai ou
Obadiah do perigo que corriam? Então, ao pensar neles,
lembrei que, se Pedro sabia quem eram os agentes
429
infiltrados no palácio, Obadiah e Malachai também sabiam
e teriam um modo rápido de se comunicar com eles.
Corri depressa para a ala destinada às autoridades visitantes
mas fui barrado por um pelotão de soldados.
- Preciso falar urgentemente com mestre Obadiah... deixe-
me passar, sou o Escriba de Alexandria, tutor do filho do
Imperador. Disse-lhes, mostrando um anel de ouro com o
símbolo do império que eu só usava em ocasiões especiais
para abrir portas.
- Ninguém pode entrar aqui, senhor. O senhor precisa da
autorização do nosso comandante Adriano Paulus...
- Adriano Paulus?! Pois ele me conhece. Leve-me até ele,
por favor.
Eu estava com sorte. Adriano Paulus fora o capitão do navio
que me trouxera da Ilha de Patmos para Roma. Ele me daria
passe-livre, eu tinha certeza.
Quando o comandante autorizou a minha entrada na ala
destinada às autoridades ilustres, corri pelos corredores
procurando por Obadiah ou Malachai. Havia muitas pessoas
nos corredores, ocupando três andares do palácio.
- João?! João?! Ouvi uma voz conhecida vinda do meio da
pequena multidão. Era Malachai.
- Por onde você andou meu filho? Estávamos à sua procura
– Disse o velho ancião, abraçando-me fortemente.
430
- Eu também os procurava mestre Malachai. Tenho algo a
lhe dizer que requer a sua mais profunda atenção... – disse
eu, ofegante.
- Calma... calma... primeiro eu tenho que te levar a um lugar
e depois ouvirei o que você tem a dizer. Pode ser? O que eu
tenho para te mostrar é urgente e não pode esperar nem
mais um instante – disse o mestre, arrastando-me pelo
corredor, ao tempo em que pedia licença aos que se
acotovelavam num ir e vir frenético, transportando malas,
caixotes, roupas e outros estranhos objetos.
Não havia outro jeito. Tive que me deixar conduzir.
Malachai parou diante de um dos quartos em que havia dois
guardas de sentinela à porta, um egípcio e outro romano.
- João... espere aqui. Feche os seus olhos e não abra
enquanto eu não mandar, está bem? Por favor, não abra... –
disse-me ele, arquejante pelo esforço da caminhada e pela
visível excitação na voz.
Esperei. Será que algum dos meus mestres da Índia, China
ou Grécia estava ali? Sêneca ou outro filósofo importante?
Deveria ser alguém muito importante, pois raramente um
visitante podia dispor de sentinelas em seus aposentos.
Após alguns instantes, senti uma mão suave e macia
tocando o meu rosto. Depois, suavemente ela deslizou por
meu cabelo e desceu até os meus ombros. Depois foram as
duas mãos envolvendo o meu rosto. Senti vontade de abrir
os olhos, mas continuava resistindo conforme havia
prometido a Malachai.
431
- Matias... Matias... Matias... meu irmão querido...
Abri os olhos e vi diante de mim a face de uma mulher que
lembrava em tudo a minha mãe, mas era ainda mais bonita.
- Mírian?! Mírian?! É você, minha irmãzinha querida? É
mesmo você?! – nos abraçamos sorrindo e chorando.
Ficamos ali nos admirando sem nos dar conta de que uma
pequena multidão assistia a tudo emocionada.
Foi Malachai que dispersou a multidão e nos fez entrar nos
aposentos da minha irmã que estava acompanhada de outras
mulheres. Depois nos deixou a sós. Um reencontro de
irmãos após 20 anos, merecia privacidade.
- O que aconteceu, minha irmã? Conte-me tudo. Eu sempre
esperei por esse dia. Sempre quis saber o que tinha
acontecido depois que eu fugi de casa deixando você, meus
irmãos e minha mãe com o tio Eliabe. Como estão eles? E o
meu pai? Tem notícias de meu pai?
As perguntas jorravam aos borbotões de minha boca e eu
nem conseguia esperar pelas respostas. Minha irmã Mírian
ali em minha frente era um milagre.
- Eu julgava que vocês estariam mortos sob a espada dos
romanos. Fale-me, Mírian, o que aconteceu?
- Meu irmão, tenha calma... eu te contarei tudo. Primeiro
preciso te dizer que hoje eu sou uma cidadã romana...
- Cidadã romana?! Como assim? – indaguei, surpreso.
- Muitas coisas aconteceram nos últimos vinte anos, desde a
sua partida. Tio Eliabe morreu repentinamente e nós
432
tivemos que vender tudo e nos mudarmos para Cesaréia, às
margens do Mediterrâneo.
- Minha mãe se casou outra vez?
- Sim, ela conheceu um comerciante de tecidos da Síria e se
casaram. Ele foi tão bom para nós como o nosso próprio
pai. Nos protegeu e nos ajudou em tudo. Ao 16 anos, eu
ajudava minha mãe no bazar que tínhamos e foi quando eu
conheci um capitão da guarda romana que acampava em
Cesareia e que sempre ia comprar tecidos para os
familiares. Apesar de sempre odiarmos os romanos,
Vinicius era diferente. Tratava-nos com respeito e até nos
protegia. Por ser o comandante das tropas da região, nós
gozávamos de toda a proteção possível e ninguém ousava
nos molestar.
- Quer dizer que você se casou com um capitão romano? –
indaguei, estupefato.
- Sim, mas ele agora não é mais um capitão é general e foi
enviado para Roma para ajudar na proteção da cidade. Por
isso, eu estou aqui. Já estivemos várias vezes aqui e temos
uma bela casa em Nápolis. Tenho 4 filhos, dois meninos e
duas meninas. Você tem muitos sobrinhos, Matias.
Eu fiquei totalmente sem chão. Lembrei-me do que estava
planejando realizar naquele dia e, por pouco, não levaria
minha irmã e muitas outras pessoas queridas no meu ato de
vingança. Seria aquilo um sinal de Deus para que eu
recuasse? Mas se fosse assim, por que razão Ele havia me
dado inspiração para preparar tudo, organizar tudo,
seguindo sempre o método antigo que Ele mesmo vinha
usando desde que criara o ser humano? Dizimar, destruir,
433
massacrar, mutilar e ferir os inimigos. Será que Deus estava
mudando o modo de agir? Ou será que seria nós quem
devíamos fazê-lo? E se fosse assim, aquela estratégia que eu
planejara e que também meus mestres haviam elaborado,
estava errada?
- Matias... você parece não estar me ouvindo... parece
perdido, olhando para o vazio. Alguma coisa aconteceu a
você? Parece desolado... – ouvi a voz da minha irmã que
parecia vir de longe, mas ela estava ali sentada ao meu lado,
segurando as minhas mãos e contando-me tudo o que eu
gostaria de ter ouvido com clareza.
- Tenho algo terrível para te contar, Mírian. Mas precisa
jurar que não revelará isso a ninguém.
- O que há de tão terrível, meu irmão. Conte-me? – disse
Mirian apreensiva.
Contei-lhe tudo.
Minha irmã ouviu tudo estarrecida e a única coisa que ela
conseguiu fazer, com os olhos banhados em lágrima, foi
ajoelhar-se aos meus pés.
- Meu irmão querido... meu amado Matias... por favor, eu te
peço em nome de Javeh, em nome de todos os deuses que
você conheceu, em nome de minha mãe e meu pai, em
nome dos nossos irmãos, em nome de todas as pessoas boas
que estão ao nosso lado, por favor, desista desse plano.
Desista disso agora mesmo... eu te imploro! Eu te imploro.
435
Capítulo XVII - A Sorte Está Lançada
Provavelmente, os poucos leitores destes meus papiros, em
qualquer época em que eles sejam encontrados, saberão
quão intensa e profunda é a sensação de reencontrar entes
queridos, com os quais não se tinha contato por muitos
anos, como foi o meu caso.
Os acontecimentos que se sucederam naquele primeiro dia
dos Jogos de Roma sob o governo do Imperador Tibério
Cláudio Nero César, jamais sairão da minha memória.
Em outra ocasião, narrarei as notícias que tive sobre meus
irmãos, meu pai e minha mãe e os seus destinos, conforme
me relatou minha adorada irmã, que naquele dia fora
enviada pelo Senhor para me salvar da perdição eterna, caso
eu cometesse aquele assassinato em massa, condenando
também à morte, meus entes queridos, alguns dos meus
irmãos escribas e muitas pessoas que fizeram diferença no
mundo por estarem vivas atualmente.
Já em idade avançada, eu pude acompanhar, mesmo ao
longe, o trágico fim dos imperadores romanos. Em poucos
anos, os Imperadores foram vítimas de toda sorte de
desgraças: doenças graves, mortes por envenenamento ou a
golpes de espada por seus próprios guardiões. Poucos
tiveram mortes naturais. Tibério não fora assassinado por
Simão Pedro que, como eu, também recebeu ordens para
retornar para Alexandria, como todos os demais infiltrados.
Tibério morreu aos 73 anos de uma doença estranha e todo
deformado. Quem o sucedeu foi o depravado neto de nome
Caio Júlio César Augusto Germânico, o “Calígula”, que
436
mandou matar dois tios e um sobrinho e foi assassinado aos
28 anos pelo soldado da guarda pretoriana, de nome
Cherrea, o qual também matou a esposa de Calígula,
Milônia Cesônia, e, ainda, a filha do casal, Júlia Drusila.
Depois disso, subiu ao trono, Tibério Cláudio César
Augusto Germânico, tio de Calígula, o qual desposou
Messalina, uma mulher vulgar que se prostituía abertamente
dentro e fora do palácio e que acabou sendo condenada à
morte por suicídio pelo próprio marido, ao descobrir que ela
planejava matá-lo. Como Messalina não teve coragem de se
suicidar, um guarda a matou na frente de todos. Tibério
Germânico foi envenenado por sua outra esposa de nome
Agripina. O imperador seguinte foi Nero Cláudio César
Augusto Germânico, que ocupou o trono aos 16 anos. Nero
teve como conselheiro, no início do seu governo que
começou muito bom, o filósofo Sêneca, aquele que conheci
em Atenas. Apesar do bom começo, Nero, tomado pela
arrogância e prepotência próprias de um jovem imperador,
certa ocasião, em um acesso de fúria, mandou matar sua
mãe, seu tutor, suas esposas, senadores, entre outros. Esse
homem foi o responsável pela grande perseguição aos
judeus. Também foi sob as ordens dele que meu amado
companheiro Pedro foi brutalmente torturado e crucificado
de cabeça para baixo em Roma. Certa vez, Nero, com o
propósito de instigar a ira da população de Roma contra os
judeus que propagavam uma nova religião, ordenou a seus
empregados que ateassem fogo na cidade para que
culpassem os judeus. O incêndio causou a destruição de
cerca de dois terços de Roma e milhares de mortes. O
Templo de Júpiter e o Palácio das Virgens Vestais foram
completamente destruídos. Nero sempre negou ter sido ele o
autor do grande incêndio. Seja como for, sempre houve
437
pessoas interessadas em destruir aquele antro de
prostituição e idolatria. Eu mesmo já havia pensado em algo
assim, há muitos anos, quando também pensara em
envenenar o Imperador junto com toda a sua família.
De todas as atrocidades cometidas por Nero, a pior foi a
impiedosa perseguição aos seguidores da nova religião que
um companheiro de nome Paulo de Tarso ajudou a propagar
em Roma e em várias partes do mundo. Paulo foi torturado
e decapitado em plena praça central da cidade, durante o
governo de Nero.
E é sobre isso que eu pretendo falar agora. Pelo menos
aquilo que eu conseguir me lembrar. Entendo que a leitura
de tantos pergaminhos pode se tornar cansativa, mas eu
peço a sua paciência e atenção para o que eu irei relatar
nestes que podem ser meus últimos escritos.
Sei que para muitos parecerá que eu enlouqueci ou que
estou sob o efeito de ervas alucinógenas. Não, não estou. Já
não preciso ter visões incompreensíveis ou sensações
anormais para me sentir bem. Descobri, sem esforço, que o
céu pode ser alcançado sem qualquer ingestão de ervas,
bebidas ou chás de cogumelos. Podemos alcançar um estado
de êxtase colocando em prática os ensinamentos oferecidos
pelos mestres de várias partes do mundo. Podemos aprender
a limpar a nossa mente e coração das impurezas,
expurgando deles o ódio, a revolta e os desejos vingança.
Espero que este meu último trabalho possa contribuir para a
melhoria da humanidade, melhoria essa na qual eu
humildemente me incluo, como homem transformado pela
aceitação da sabedoria divina, uma vez que, no momento
438
em que eu passei a colocar em prática uma nova maneira de
viver no meu cotidiano, baseada no princípio do amor, do
bem e da paz, notei que uma grande transformação ocorreu
em minha volta.
Sei que, infelizmente, essa minha mensagem não será aceita
por todos que dela tiver conhecimento. Muitos até dirão que
se trata de uma panaceia, algo sem valor e que não produz
qualquer resultado verdadeiro.
Mas eu espero que você seja capaz de ao menos
experimentar. Se você o fizer, então o milagre acontecerá.
Você será abençoado pela paz, uma paz interior infinita e
nunca mais a deixará escapar. O reino dos céus descerá ao
seu coração e você será uma pessoa abençoada.
Naquele dia em que eu reencontrei Mírian, a minha irmã e,
posteriormente, o seu esposo, que era um general Romano,
e eles me convidaram para sentar em sua mesa ao lado de
todos os demais mestres e irmãos escribas, eu percebi que
não seria capaz de levar adiante o meu plano macabro para
destruir a vida de Tibério e de sua família. Deveria existir
uma outra forma de lutar contra eles. Foi o que minha sábia
irmã me disse naquela manhã, quando me implorou para
que desistisse da minha ideia fixa de envenenar o imperador
romano e sua família.
Concordei com ela e, imediatamente, avisei ao Trazíbulo
que nada fizesse porque eu havia mudado de planos. Percebi
um grande alívio no rosto do rapaz, quando o desobriguei
de prosseguir na empreitada.
439
- E quanto a minha família? E o dinheiro que o senhor me
deu? Eu não tenho como devolvê-lo, senhor – disse-me ele,
preocupado.
- Não se preocupe. Você não me pediu nada. Considere o
dinheiro uma benção dos céus. Use-o para fazer o bem e
tudo estará resolvido. Eu não vou precisar mais daquele
dinheiro – disse-lhe, retirando-me da cozinha e indo
encontrar meus irmãos que me esperavam no grande salão
onde o banquete seria servido.
Enquanto todos comiam, bebiam, conversavam e sorriam,
eu fiquei imaginando o que teria acontecido naquele dia se
Mírian não estivesse ali. Que mão mágica e misteriosa havia
por trás dos bastidores da vida que nos impulsionava a
tomar decisões ou desistir delas? Quais seriam as forças
mobilizadoras do bem e do mal, da felicidade ou da
infelicidade, fiquei me perguntando.
Naquele dia, porém, eu consegui, sem esforço, descobrir
algo muito importante: o amor genuíno é capaz de mudar
tudo.
Foi o amor por minha irmã, minha família e meus amigos
que me fez desistir do plano de vingança. Se eu não os
amasse, teria prosseguido com meu plano de vingança aos
romanos. Não fosse o amor por minha irmã, provavelmente,
eu nem mesmo teria lhe revelado o meu terrível segredo.
Mas, nós havíamos sido criados em uma família de pessoas
que se amavam, se protegiam e desejavam a felicidade uns
dos outros e eu não agiria de forma diferente.
Meu irmão Calebe seria capaz de dar a própria vida para
nos salvar. Eu faria o mesmo por todos eles. Então estava
440
ali a grande resposta para todos os dilemas humanos. O
amor era a salvação.
Então, a questão era, como poderíamos ensinar às crianças
desde pequeninas a amar uns aos outros? Como poderíamos
fazer com que se tornassem invulneráveis ao ódio, aos
desejos de vingança e destruição? Que sementes deveríamos
plantar em suas mentes férteis para que, após algum tempo,
germinassem, crescessem e produzissem bons frutos? Eu
percebi, com clareza, que foram as semente de amor,
harmonia, paz e companheirismo dadas a mim e aos meus
irmãos por nossos pais, na infância, que nos fizeram tão
fortes. Certamente, a falta daquelas sementes levavam à
desagregação das famílias, a destruição dos grupos e,
consequentemente, ao enfraquecimento das cidades e dos
países.
Se um dia fosse possível ensinar a todas as crianças a
pensarem de modo positivo e voltadas para a construção do
bem comum, então não mais existiriam povos
conquistadores e povos conquistados. Não mais existiriam
senhores e escravos. Se fosse possível implantar
profundamente nas mentes das crianças as noções de amor
ao próximo, a ideia de uma família humana onde todos
fossemos irmãos, o mundo estaria salvo. Caso contrário, nós
mesmos nos autodestruiríamos. Quem faria mal ao próprio
irmão? Eu passei a me concentrar na formulação de um
plano por meio do qual fosse possível influenciar as
gerações vindouras. Porque talvez aquela em que eu estava
vivendo já estivesse perdida.
Na mesa, tinha, à direita, minha irmã e Pedro à minha
esquerda, enquanto comíamos e celebrávamos o reencontro.
441
Eu estava, outra vez, me sentindo em casa e aliviado por
não estar presenciando a morte de ninguém naquele
momento. A menos que Trazíbulo tivesse mudado de ideia e
resolvido nos envenenar... mas isso estava fora de
cogitação. Eu não fizera concretamente nenhum mal a ele
ou a sua família, portanto, não teria o que temer. Afastei
aquele mau pensamento de minha mente.
- Matias... eu procurei você por todo o palácio até saber por
Malachai que você havia encontrado sua irmã. Pois foi essa
mesma informação que recebi no mercado de uma mulher
conhecida por Xanroa Kamm, sacerdotisa de origem
germânica que conheceu sua irmã Mírian em Cesareia.
Vieram no mesmo barco da Judeia para os Jogos de Roma.
Sua irmã sempre falava nos irmãos e mencionou que você
teria sido levado por um mestre e sacerdote Judeu chamado
Malachai.
Voltei-me para Mírian que sorria feliz ao lado do marido
que a servia como um verdadeiro escravo, vencido pela
beleza de minha irmã. Um general romano aos pés de uma
plebeia judia. Comentou ela.
- Depois que me casei com Vinicius tive oportunidade de ir
várias vezes à Jerusalém. Fui ao nosso antigo templo e lá
obtive informações de que o mestre Malachai havia partido
com um grupo de meninos para estudar em outras terras.
Não tinham certeza, mas tudo indicava que você estaria
naquele grupo de viajantes.
- Vocês desistiram de me procurar? Indaguei.
- Tive muita vontade de fazer isso. Mas eram tempos
difíceis. Logo depois que me casei, engravidei e, você
442
talvez não saiba, mais crianças dão muito trabalho. Foram
cinco filhos em menos de dez anos...
- Pensei ter ouvido você dizer que tinha quatro filhos...
- Sim, mas infelizmente eu perdi um, o último. Mas saiba
que todo o tempo eu estava procurando por uma pista sua.
Até que, há alguns dias, meu marido estava olhando a lista
de convidados importantes que viriam para os Jogos de
Roma e lembrou que eu lhe falara sobre o mestre Malachai.
Ora, um nome desses ninguém esquece. Foi a pista que eu
precisava para vir até você. Malachai certamente poderia
dizer onde você estava. Tive que deixar meus filhos com a
minha mãe para poder fazer essa longa viagem.
- E como está a nossa amada mãe? Ela não teve mais
notícias de meu pai?
- Nossa mãe está como sempre muito linda e saudável. Ela
soube que meu pai havia sido morto por soldados ro... por
soldados... mas nem temos certeza. Afinal, ele escolhera
aquele caminho e sempre disse que morreria lutando por
aquilo em que acreditava.
Minha irmã não era como eu. Tinha vivido mais tempo com
a nossa mãe e aprendera com ela a perdoar os inimigos, a
manter a família unida e a buscar o bem de todos. Eu,
mesmo tendo vivido entre sábios e mestres, tinha muita
teoria e pouca prática. Talvez fosse a hora de mudar aquela
situação. Talvez fosse o momento de agir conforme sentia
ser o modo correto, sem mais me preocupar com as leis
ultrapassadas, com princípios que depunham contra o bom
viver. Muita coisa dos velhos livros me pareciam agora
meros desejos de homens vingativos se passando por Deus
443
ou deuses. Provavelmente, o Criador de tudo e todos estava
muito mais distante daqueles que falavam em seu nome e
queriam abrigar a todos a segui-los, usando como
argumento a força da palavra que chamavam de sagrada.
Afinal, o que havia de sagrado em matar animais e oferecer
a Deus? O que havia de sagrado em assassinar crianças
inocentes, apenas por que elas eram das tribos inimigas? O
que havia de sagrado em pagar o mal com o mal?
- E quanto aos meus irmãos Calebe e Benjamin? Indaguei,
saindo do meu devaneio momentâneo.
- Você sabe, o sonho dele era se tornar um membro do
grupo especial de Fundibulários zelotes. Hoje é capitão da
guarda do destacamento de soldados baseados em Belém.
Quase não nos vemos mais. Ele aparece e desaparece. Não
gostou do meu casamento com um romano, nem do novo
marido de nossa mãe. Não compareceu a nenhuma das
nossas cerimônias. Diz até que somos traidoras do nosso
povo.
- Eu hoje compreendo melhor a revolta de Calebe. Talvez
um dia ele mude de ideia. Eu estou começando a mudar
meu modo de pensar, minha irmã. E quanto a Benjamin?
- Benjamin é um amor de irmão. Tornou-se sacerdote e
mestre em línguas. Ensina Latin e Hebraico em Cafarnaum.
Casou-se e tem seis filhos. São meninos e meninas
adoráveis. Ele vai gostar de reencontrá-lo, Matias.
- Eu também não vejo a hora de voltar para casa e abraçá-
los. Vamos fazer uma grande festa. Arrastaremos até o
Calebe, nem que seja à força.
444
- Tenho certeza de que ele não rejeitará um convite seu.
Nossa mãe vai ficar muito feliz. Todos ficarão muito felizes
– disse minha irmã, beijando-me a face.
Quando o general Vinícius se afastou, Pedro aproveitou
para fazer-me um comunicado urgente.
- Matias, Malachai pediu para te avisar que amanhã
deveremos nos encontrar para uma reunião secreta. O local
será informado ainda esta noite. Ele não quer que
despertemos suspeitas. Obadiah não irá, para não chamar a
atenção dos espiões romanos que estão de olhos abertos a
qualquer movimento suspeito.
- Estão tramando alguma coisa, Pedro? – indaguei.
- Não sei. Só saberemos amanhã. Mas que irmã linda você
tem, Matias. Sempre que me falava dela eu a imaginava
uma garotinha magricela e sardenta. Mas vejo que estava
enganado. Eu seria capaz de matar um general romano para
ficar com ela. Já pensou?
- Ter você como cunhado seria uma honra, Pedro, mas foi o
Vinicius, o general romano, que ela escolheu e, até que ela
mude de ideia, a defenderei até a morte, mesmo se tiver de
enfrentar meia dúzia de zelotes grandalhões como você.
Rimos até quase nos engasgar.
Tíbério fez um discurso longo e monótono. Falou sobre as
mudanças que pretendia levar à cabo nos próximos anos,
modernizar a cidade, ampliar a biblioteca, construir novos
templos para os deuses romanos e de outros povos. Falou
que os representantes das nações amigas seriam
445
beneficiados se continuassem cooperando com o Império
Romano e reforçou a megalomania, própria dos
gananciosos: o Império Romano se alastraria por toda a
Terra e, dentro de alguns anos, só haveria um governo, o de
Roma, a cidade Eterna.
Ouviram-se urros e vivas. Os quinhentos convidados
aplaudiram o Imperador. Olhei para a minha irmã e ela
também o aplaudia. Eu não sabia se ela o fazia pelo marido,
por ela mesma ou por todos nós.
A reunião secreta ocorreu no porão da casa de um
comerciante grego que ficava afastada poucos quilômetros
de Roma. Malachai havia dito que era importante que todos
estivessem lá, pois uma grande decisão havia sido tomada e
nós deveríamos ser informados sobre ela.
Contei quantos éramos. Vinte e cinco ao todo, incluído
cinco mulheres. Algumas eu sequer suspeitaria que eram
espiãs infiltradas no palácio. Entre eles, havia um rapaz que
eu nunca havia visto antes, era bem falante e demonstrava
muita convicção em suas ideias. Foi ele que, depois de ouvir
a decisão que Obadiah havia tomado e que afetaria a todos
nós, levantou-se e disse:
- Meus queridos irmãos, eu vos saúdo com a paz. Sei que
muitos de vocês estão me vendo pela primeira vez. Eu
também sou um escriba e andei por vários lugares como a
maioria de vocês e hoje vivo em Belém. Eu concordo com
grande parte da decisão proposta pelo nossos líderes, no
entanto, quero dizer que não acredito que tenhamos sucesso
se nos dispersarmos agora.
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- Crestus, nós precisamos recuar antes que todos nós
sejamos descobertos. Obadiah quer apenas que regressemos
a Alexandria e a outras grandes cidades até cessar o perigo
– disse Malachai.
- Recuar... recuar... nós sempre fizemos isso. Recuamos e
onde estamos agora? Precisamos iniciar imediatamente o
movimento de revolta popular. Precisamos mostrar nossa
força e o nosso poder – voltou a falar o escriba, com
veemência.
Judas Iscariotes, que até então se mantivera calado, ergueu a
mão.
- Eu concordo com Crestus e também acho que este seria o
momento ideal para iniciarmos um recrutamento de homens
e mulheres em todas as cidades onde existirem romanos,
para destruí-los. Podemos usar todas as armas que temos
para isso.
- Quais são essas armas, Judas? Indaguei curioso.
- Ora, João... segredos, informações, venenos, destruição de
documentos importantes, bloqueio de navios mercantes,
destruição de munições e armas, incêndios e nossas espadas.
- Não creio que desse modo será possível destruirmos o
império romano, meu amado irmão. Existe uma outra
forma, mas é provável que vocês me achem louco...
- Podemos saber qual é essa forma mágica, João da Judéia?
– disse Judas, olhando-me com desdém.
- Primeiro, precisamos pensar com visão de futuro. Não
podemos buscar resultados imediatos. Se olharmos bem
447
para o que está acontecendo no momento, veremos que
nossa geração está perdida. Podemos, no entanto, salvar as
próximas.
- Parece que o cunhado do general Vinícius quer proteger a
corja de romanos que está massacrando os nossos irmãos –
disse, zombeteiramente, Judas.
- Calma meus filhos... tenham calma. Vamos ouvir o que
João tem a nos dizer. Fale João, seja breve, temos que voltar
para o palácio antes que percebam a nossa ausência.
Obadiah ficou lá para não nos comprometer. Tudo que for
resolvido aqui será informado a ele – disse mestre Malachai,
tentando amainar os ânimos.
- Eu estive pensando, estudando e observando que o nosso
povo desde há muito está esperando um Messias, um
Salvador, alguém que trará paz ao mundo e o encherá de
amor...
- Ora, vamos parar com essas ideias ultrapassadas, João.
Profeta salvador? Messias? Do que você está falando afinal?
– Disse Judas, cheio de ira.
- Espere Judas... João, por favor continue – disse Malachai.
- Todos aqui conhecem as profecias de Isaías. Há 700 anos
ele já profetizara dizendo:
“Portanto o mesmo Senhor vos dará um sinal: Eis que a
virgem conceberá, e dará à luz um filho, e chamará o seu
nome Emanuel. Manteiga e mel comerá, quando ele souber
rejeitar o mal e escolher o bem. Na verdade, antes que este
448
menino saiba rejeitar o mal e escolher o bem, a terra, de que
te enfadas, será desamparada dos seus dois reis”.
- Conhecemos a passagem do Talmude, João. O que mais
tem a nos dizer? – insistiu Malachai.
- O profeta Miquéias também dissera: “E tu, Belém-Efrata,
pequena demais para figurar como grupo de milhares de
Judá, de ti me sairá o que há de reinar em Israel, e cujas
origens são desde os tempos antigos, desde os dias da
eternidade”.
- Belém? Esse lugar existe? Não era nada há 700 anos e
continua do mesmo jeito. Nem aparece nos mapas de tão
pequena que é. Então, é de lá que nascerá o rei de Israel?
Escarneceu Judas.
- Eu sou de Belém e não admito que falem assim de minha
cidade? Disse Crestus, levantando-se e cheio de ira.
- Posso terminar, mestre Malachai? Indaguei para
interromper uma nova discussão entre Judas e Crestus que
estava visivelmente aborrecido.
Malachai assentiu e eu prossegui.
- Sabemos que o Talmude nos aponta para a vinda de um
homem que poria fim ao sofrimento do nosso povo.
Lembram-se do que disse o profeta Zacarias nesse
versículo? “Alegra-te muito, ó filha de Sião; exulta, ó filha
de Jerusalém: eis aí te vem o teu Rei, justo e salvador,
humilde, montado em jumento, num jumentinho, cria de
jumenta”.
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- Ahahahaha... parece que nem os profetas pareciam saber
exatamente como o tal rei irá nascer. Acho que João da
Judéia foi contaminado com as ideias do outro João, o
Batista. Não é ele que diz pelos desertos da Judéia que todos
devem se arrepender pois está próximo o reino dos céus?
Simão Pedro, que até então permanecera calado, levantou o
seu vozeirão.
- Judas, se você não calar a sua boca eu vou aí enchê-la com
capim e jogá-lo no meio da rua. Deixe João terminar e não o
interrompa mais.
Aí, o porão onde estávamos amontoados ficou em silêncio e
eu continuei.
- Existem outras indicações feitas no Talmude que apontam
para a vinda de um messias, alguém que iria libertar o nosso
povo. E acho que nós podemos ser esse libertador. Nós
podemos criar a mudança que poderá salvar não apenas a
nós, judeus, mas a todos os homens e mulheres da Terra.
- Você é um sonhador, João. Eu compreendo as suas
palavras, meu irmão, mas como você acha que nós
poderíamos fazer tal façanha. Onde está o Messias? Onde
está o nosso Salvador. Ele já nasceu? O que ele nos dirá?
Como ele vai nos libertar? Indagou André.
- Sim, como poderemos fazer isso? Diga-nos, João...
precisamos que nos diga como acha que isso será possível?
Diziam os meus companheiros, iniciando um pequeno
tumulto.
Malachai levantou-se e nos falou pausadamente.
450
- Eu acho que entendi o que o nosso irmão João quer dizer.
Ele quer que comecemos a criar novas leis, novos modos de
agir, novas atitudes e a ensinemos aos nossos filhos, aos
nossos alunos. enfim, preguemos essas novas ideias,
formando, desse modo, o espírito do Messias. É isso
mesmo, João?
- Sim, é essa a ideia central. Primeiro precisamos elaborar
novas regras de bem viver. Diferentes das que existem,
porque elas não tem nos ajudado. Ontem mesmo eu era um
homem cheio de ódio e revolta contra os romanos, mas, pela
força poderosa do amor, eu deixei de odiá-los...
- Só resta você dizer que quando um romano o esbofetear
você vai dar a outra face, não é? Disse Judas,
debochadamente.
- Não sei se isso poderá um dia acontecer, mas tudo o que
sei é que não poderemos jamais construir um mundo melhor
por meio do ódio e da vingança. Se matarmos o nosso
inimigo, só alimentaremos o ciclo de ódio e atrocidades que
nos rodeia.
- E o que deveremos fazer, Escriba de Alexandria? Deixar
que estuprem as nossas mulheres impunemente? Deixar que
roubem nossas propriedades e nos manteremos calados?
Bradou Crestus.
- Não Crestus. Não devemos ficar calados. Devemos
primeiro saber o que queremos mudar e o façamos de modo
coletivo, bem planejado. Precisamos agir como agem as
formigas ou as abelhas. Primeiro precisamos estabelecer as
regras e depois cada um faz o seu trabalho de reproduzir as
ideias.
451
- Mas filho... – ponderou Malachai – somos poucos. O povo
está amedrontado. Os romanos estão por toda parte. Se
começarmos a criar uma nova filosofia ou modo de viver
com base no amor, como você diz, rirão de nós e se
aproveitarão de nossa fraqueza.
- Perdoe-me mestre, mas o senhor está enganado. Eu
também pensava assim até saber que a minha irmã, que
sempre odiou os romanos, estava casada com um general
que, em vez de maltratá-la, a protege....
- Então deveríamos dar as nossas filhas para que se casem
com soldados romanos, para que, apenas assim, sejam
respeitadas e protegidas, João? É isso o que você está
dizendo? – gritou Mateus que era pai de quatro filhas e que
até então escutava tudo em silêncio.
- Não estou dizendo isso, meu bom Mateus. Estou falando
que fazer o bem só traz paz, combatendo a guerra. Estou
dizendo que semear o amor faz nascer o amor. Se
insistirmos nisso, pouco a pouco, conquistaremos os
romanos e eles ficarão do nosso lado.
- É uma alucinação, João... pode nos dizer o que andou
bebendo? O vinho do palácio que você bebeu destruiu a sua
razão? Debochou Judas, uma vez mais.
Uma das mulheres, de estatura alta, bem acima da média
das mulheres judias, de olhos esverdeados e voz grave,
levantou a mão, pedindo a palavra.
- Meus irmãos, João está certo. Talvez esse seja o momento
de mudarmos o modo como estamos ensinando os nossos
filhos e filhas. Enquanto não dissermos a eles que homens e
452
mulheres possuem os mesmos direitos e deveres. Enquanto
nós, os pais, não nos tratarmos como irmãos, respeitando-
nos uns aos outros, eles só reproduzirão no futuro o que
aprenderam. Se lhes ensinarmos o amor ao próximo...
- A senhora parece desconhecer o Talmude. Deveria se
lembrar do que está escrito nos Dez Mandamentos. “Honra
a teu pai e a tua mãe, para que se prolonguem os teus dias
na terra que o Senhor teu Deus te dá. Não matarás. Não
adulterarás. Não furtarás. Não dirás falso testemunho contra
o teu próximo. Não cobiçarás a casa do teu próximo, não
cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o escravo, nem a
sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa
alguma do teu próximo". – Interrompeu Judas Iscariotes,
arrogantemente.
A mulher não se perturbou. Levantou-se de onde estava e
caminhou resolutamente em direção a Judas, que
imediatamente recuou, temendo ser agredido.
- Está se sentindo ameaçado? Eu sou apenas uma
sacerdotisa, uma mulher. Vejo medo em seu olhos. Nem
mesmo uma adaga eu estou portando. O seu temor é reflexo
do seu modo agressivo de falar com os outros. Se não fosse
tão arrogante, tão insolente e falasse com mansidão e calma
como o mestre Malachai ou como nosso irmão João, não
temeria uma agressão. É sobre isso que eu estou falando. Se
quer falar sobre o Talmude, a Torá, o Livro dos Mortos dos
Egípcios, o Bagvathgita ou sobre os filósofos, terei o maior
prazer. Não matarás?! E o que estamos fazendo a milhares
de anos? Matando, destruindo, aniquilando as pessoas que
chamamos de inimigos. Não furtarás?! Pense sobre as
inúmeras ocasiões em que nosso povo se apropriou de bens
453
alheios dizendo que lhes pertenciam. E sobre cobiçar a
mulher do teu próximo?! É curioso que nada se fala sobre
cobiçar o homem da minha próxima... Quer dizer que eu
posso cobiçar?
Todos riram fartamente, acalmando os ânimos.
- A senhora está distorcendo os mandamentos sagrados...
- Distorcendo? Pense em qual é a punição para uma mulher
adúltera. Morte por apedrejamento, não é? A lei serve para
os dois? Quantos homens têm sido apedrejados por
cometerem esse pecado? E quanto a escravidão? Nós
estamos lutando para libertar nossos países da opressão
romana, mas nós ainda assim mantemos pessoas
escravizadas. Dois pesos e duas medidas. Não deveríamos
dar liberdade aos nossos escravos também?
- Eu sempre fui contra deixar mulheres participarem de
reuniões importantes como essas. As mulheres distorcem
tudo, invertem tudo. Não sabem se colocar no lugar em que
o Senhor as colocou... – disse Judas, replicando.
- E qual foi esse lugar, irmão Judas? Pode nos dizer? –
insistiu a sacerdotisa germânica, a qual Pedro sussurrou ao
meu ouvido ser a mesma que havia lhe dado informações
sobre a minha irmã, Mírian.
- Deus criou o homem a sua imagem e semelhança. Não diz
que criou a mulher, pois esta foi criada depois, de uma
costela do homem. Uma ajudadora... – insistiu Judas.
Eu estava gostando daquela discussão, pois sempre tivera
muitas dúvidas sobre a precisão dos escribas quando eles
454
escreveram o livro de Gênesis, a única teoria sobre a criação
do mundo em que o povo judeu acreditava. Havia muitas
falhas nele e a sacerdotisa agora estava tendo a
oportunidade de confrontá-las diante de uma plateia
formada por uma expressiva maioria masculina.
- E disse Deus: “Façamos o homem à nossa imagem,
conforme a nossa semelhança. E criou Deus o homem à sua
imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os
criou. E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e
multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre
todo o animal que se move sobre a terra”. Ora, meu caro
Judas, afinal, se as escrituras dizem que homem e mulher os
criou, não vejo razão para o homem se achar mais
importante que nós mulheres. Nunca ouvi dizer que um
homem pode gerar uma criança, pois, segundo o texto, Deus
disse que deveriam se multiplicar e encher a terra. O senhor
já se imaginou grávido?
Dessa vez a plateia riu abundantemente. A sacerdotisa
Xanroa Kamm era uma excelente oradora e sabia ser
espirituosa em seus comentários. Isso fez com que os
ânimos se acalmassem, exceto o de Judas que permanecia
mais e mais furioso.
- Não se esqueça de que foi Eva quem desencaminhou o
homem, levando-o à perdição. – contra atacou, ele.
- Então o pobre do Adão foi enganado por uma mulher?
Quer dizer que as mulheres sempre foram mais astutas, é
isso mesmo? Adão não resistiu à sedução de Eva e preferiu
desobedecer ao Senhor? Ele pediu uma companhia, Deus
455
lhe deu, ela lhe ofereceu o fruto proibido e ele
inocentemente comeu. Acho que se existe algum culpado
nessa história, certamente, não é a mulher. Eu tenho dúvidas
de que essa seja uma história real. Existe um outro
significado oculto no texto, o que os gregos chamam de
metáfora. A história é só uma forma de levar uma
mensagem e as palavras têm outros significados...
- Conversa tola! A senhora está ofendendo os nossos livros
sagrados. Se a senhora fosse uma judia de verdade, jamais
pensaria em desobedecer uma vírgula do nosso livro. Sei
das suas origens pagãs. Cesareia está cheia de feiticeiras....
- Vamos nos acalmar meus filhos. Estamos saindo
completamente do objetivo dessa reunião. Sugiro que
façamos uma outra em outro lugar para aprofundarmos
esses assuntos. Não é o que nós essênios fazemos há
séculos? Este é o nosso maior trabalho, depurar a escrituras,
encontrar outros caminhos e aperfeiçoar as leis. Confesso
que a ideia de João é no mínimo extravagante. Requer que
pensemos melhor. Terei que consultar Obadiah. Enquanto
isso, estejam preparados para partir para Alexandria,
Atenas, Damasco, Jerusalém e outras cidades onde teremos
muita coisa a fazer. O plano que deveria ser executado por
Simão Pedro está definitivamente cancelado. No entanto,
ele deverá ficar em Roma para dar prosseguimento ao novo
plano de ação que será apresentado em alguns meses.
Obadiah e outros líderes querem costurar uma aliança
comercial com Roma, com redução no preço dos produtos
que nos vendem, bem como acabar com certos impostos
exorbitantes. Muitos governadores e comerciantes estão
envolvidos. O Império precisa de nossos produtos e
456
Obadiah é mestre na arte de negociação. A morte de Tibério
agora iria enfraquecer as negociações.
- Então vamos sempre negociar a nossa paz, é isso mesmo,
mestre Malachai? Protestou Crestus.
- Isso mesmo. Negociar a nossa paz. Existe algum mal
nisso? Existe algum prejuízo em reduzir o sofrimento do
nosso povo e dar a ele melhores condições de trabalho?
Respondeu Malachai.
- Pois eu estou cheio de tantas negociações. Eu pretendo
voltar tão logo possa para Belém. Sou um homem sozinho,
meus pais estão mortos e eu nem conheci meus avós. Fui
criado dentro da comunidade essênia desde os oito anos e
estou agora com trinta anos e acho que não fiz nada por meu
povo. Talvez eu deva fazer alguma coisa de verdade – disse
Crestus, com voz firme e cheio de convicção.
- Talvez não seja uma boa ideia, meu filho. Talvez você
deva esperar, por algum tempo, as orientações de nossos
líderes?
- Quem são nossos líderes, mestre Malachai? Aqueles que
estão agora mesmo se banqueteando com o Imperador e
seus generais, enquanto nós estamos aqui escondidos como
ratos... os nossos familiares na Judeia e em outros lugares
do mundo subjugados pelos romanos? Eu estou cheio disso.
De que adiantou tantos estudos que fizemos? Tantos
mestres nos ensinando a arte da argumentação, novas
línguas, os segredos dos astros, tantos outros conhecimentos
da ciência, para quê? Para nada? Já tomei a minha decisão.
Tenho outros irmãos essênios na Judeia que me seguirão.
457
Não se preocupem comigo, eu estarei bem. Vocês terão
notícias minhas.
- Tudo o que você fizer a partir de hoje sem a autorização
dos nossos líderes será um problema seu, Crestus. Não
comece sozinho uma revolução. Você sabe o que está
reservado aos que se rebelam abertamente contra os
romanos – ponderou, Malachai.
- Eu sei sim. Mas não serei o último a ser chicoteado,
decapitado ou crucificado, como fizeram com o meu primo
João Batista há alguns anos.
- Você sabe que, na Judéia, Herodes não tolera ninguém que
fique pregando uma rebelião ou anunciando a chegada de
um messias salvador. Nenhum governador romano tem
piedade para com aqueles que querem enfrentar o Império.
- Eu sei, mestre Malachai, mas eu não estarei sozinho. Se
me matarem, não tenho nada a perder. Seguirei apenas o
mesmo destino de meu primo e, quem sabe, outros e mais
outros farão o mesmo. Essa sim é a revolução que eu quero.
Eles terão que matar a todos nós e não restará ninguém para
lhes servir. É assim que eu penso – replicou, Crestus.
A reunião terminou e todos nós voltamos angustiados para o
palácio. Pedro, Tomé e eu decidimos caminhar pelas ruas de
Roma, que estava apinhada de pessoas ansiosas para
lotarem o Circus Máximo e assistirem os duelos dos
gladiadores. Eu me recusava a assistir aquela selvageria.
Homens matando homens ou animais. Animais devorando
homens vivos. Um inferno a céu aberto. Um dia tudo aquilo
teria que terminar. Se as pessoas amassem mais uns aos
outros, se amassem os animais, se perdoassem os inimigos,
458
torná-los-ia amigos e viveríamos em paz. Era essa a lógica
que eu queria que todos os meus irmãos entendesse. Pelo
menos alguns não conseguiram entender. Talvez o sumo
sacerdote dos Essênios, Obadiah, entenderia. Era o que eu
esperava que acontecesse.
Os dias que se seguiram até a minha irmã regressar,
fazendo-me prometer que logo que possível eu iria
encontrá-la em Cesareia, onde poderia rever minha mãe e
meus sobrinhos, foram uma mistura de felicidade e
ansiedade.
Até que, numa manhã, enquanto Pedro e eu líamos na
biblioteca de Roma, Malachai nos encontrou para dizer que
Obadiah já havia tomado uma decisão, depois de consultar
os demais anciões. Eles já estavam prontos para me dar uma
resposta. No final daquele dia, haveria uma reunião na
mesma casa onde fizéramos, dias antes, o encontro secreto.
Não foi uma reunião cheia de rituais e protocolos como eu
já havia presenciado várias vezes. Parecia uma reunião de
negócios, onde as decisões eram tomadas com base na
necessidade de resolver problemas. O Sumo Sacerdote dos
Essênios parecia mais velho e abatido. Talvez a comida do
palácio não lhe fizera muito bem. Apesar de saber que ele
não comia qualquer tipo de comida de origem animal, sabia
que ele era adepto ao vinho e outras bebidas fortes, que
eram abundantes no palácio.
- Senhores e senhoras aqui presentes... Alguns não puderam
estar aqui hoje, pois regressaram a suas terras, como foi o
caso de Crestus e Arimatéia. Eu represento o conselho dos
anciões e que quero lhes dizer é que, a partir desta data, nós
459
começaremos a propagar uma nova maneira de viver com
base nos sete juramentos sagrados de nossa fraternidade.
Apenas o sétimo foi alterado para que possamos alcançar a
nossa finalidade. Esses sete juramentos deverão ser
ampliados e escritos por Mateus, Marcos, João Betsaida e
Lucas, sob a supervisão de João da Judéia.
- Mestre, posso fazer mais duas indicações? – disse eu, ao
lembrar que gostaria de ter mais dois poderosos aliados.
- Sim, claro... submeterei suas escolhas aos presentes e, se a
maioria concordar, eu também concordarei.
- Gostaria que a Sacerdotisa Xanroa Kamm fizesse parte de
nosso grupo de trabalho assim como o meu dileto irmão
Simão Pedro.
- Protesto! Não acho que uma mulher seja mais capaz do
que um homem para fazer um trabalho dessa dimensão –
bradou Judas, furioso.
- Seu voto será contado, Judas. Alguém mais discorda dos
nomes que o irmão João sugeriu? – indagou, o Sumo
Sacerdote.
Voto vencido. Ninguém além de Judas ergueu o braço, o
qual, aos poucos, foi baixando-o até o colo e assim ele
permaneceu até o fim de nossa reunião. Ele não deu mais
uma única palavra, isolando-se de tudo e de todos. O
sacerdote continuou.
- Aceita a inclusão dos dois nomes, mas tenho uma
sugestão: que a sacerdotisa escolha um outro nome para
assinar os seus escritos. Receio que muitas pessoas não
460
saberão pronunciar esse nome de origem germânica. A
partir de hoje, os escribas designados trabalharão juntos em
uma casa que fica em Canopus no Egito. Alexandria está
por demais tumultuada e vocês precisarão de muita
concentração. O trabalho deve ficar pronto dentro de seis
meses e, depois que ficar pronto, nós faremos tantas cópias
quantas forem possíveis e as levaremos para os grupos de
divulgação das boas novas que já estão espalhados por mais
de oitenta cidades. Esse será o começo de uma nova era.
Deixaremos para trás os séculos de ódio, de vingança e de
atrocidades. Pregaremos a paz, o bem e o amor como forma
de mudar o mundo. Por isso, quero que vocês escrevam em
parábolas. Usem todo o conhecimento e sabedoria que
adquiriram. Usem a linguagem mais simples que puder. Tão
simples que uma criança possa facilmente entender.
Lembrem-se de que no Talmude há muita coisa boa que
pode ser usada, mas temos que ir mais longe. Peçam
inspiração divina e escrevam. Vocês são escribas e escribas
o que fazem?
- Escrevem! – repetimos todos em coro e sorrindo.
- Tenho orgulho em dizer que vocês são, na verdade, os
melhores escribas que jamais existiram, foram treinados
pelos mais talentosos mestres do mundo e são capazes de
fazer prodígios com a arte de escrever. Vocês criarão
histórias inesquecíveis que serão contadas e recontadas por
muitos séculos. Quero que escrevam de modo a inspirar os
leitores a desejarem mudar suas vidas. Concentrem-se no
foco principal. João já nos deu uma poderosa motivação: o
amor ao próximo. Que sejam todas as histórias, todas as
parábolas, uma reflexão a esse sentimento. Ele deverá ser
tão grande como o primeiro mandamento que é o de amar a
461
Deus sobre todas as coisas. O segundo grande mandamento
será o de amar ao próximo como a nós mesmos.
Eu estava exultante. Finalmente havia encontrado uma
missão para a minha vida. Eu já sabia como elaborar uma
história que envolvesse toda sabedoria dos livros antigos e
que, ao mesmo tempo, conclamasse para uma nova maneira
de agir, com base no perdão, no companheirismo e no amor.
Obadiah prosseguiu.
- Sei que todos vocês conhecem os nossos sete juramentos
sagrados, mas vamos revê-los. Apenas o primeiro e o último
serão alterados para se tornarem também lemas do nosso
novo trabalho. O primeiro é a promessa de que amaremos a
Deus e ao próximo sobre todas as coisas. O segundo diz
respeito aos nossos segredos que não devem ser
compartilhados com pessoas que não sejam membros
verdadeiros da nossa fraternidade. O terceiro se refere aos
alimentos que não devemos comer a não ser em caso de
extrema necessidade de sobrevivência. O quarto está
relacionado com a proteção da Terra que recebemos como
presente de Deus e que devemos proteger em todas as suas
formas, o reino animal, vegetal e mineral, conservando-os
para uso de todos. O quinto fala sobre o viver sem o desejo
de acumular bens e que, aqueles que forem adquiridos,
sejam compartilhados e usados para promover o bem e a
prosperidade de todos. O sexto juramento sagrado
complementa o primeiro, ao prometermos jamais molestar
crianças, doentes, grávidas ou idosos, nem cometer qualquer
ato de violência contra quem quer que seja, a não ser em
legítima defesa dos que necessitarem serem defendidos. E o
último terá uma total inversão na parte final. A primeira
462
parte será mantida, pois diz respeito ao cumprimento de
todas as missões que nos forem designadas. Já o final, que
diz respeito a guardar segredo, será modificado porque não
mais guardaremos sigilo do nosso trabalho, ao contrário,
chegou a hora de mostrarmos ao mundo o que queremos.
Iremos espalhar essas boas novas a todos, sem qualquer
exceção. Todos estão de acordo?
Judas foi o único que não levantou a mão. Nós já
esperávamos por isso. Foi ele também o primeiro a deixar a
casa sem sequer se despedir de nós.
Obadiah, que era um homem experiente, avisou-nos que, a
partir daquele dia, teríamos não apenas mais um dissidente,
mas talvez um que comprometesse tudo o que estávamos
fazendo. Talvez Judas pudesse se tornar um traidor e revelar
aos romanos todos os locais de nossas reuniões, os nomes
dos nossos espiões infiltrados e nossos mais bem guardados
segredos.
463
Capítulo XVIII – O Grande Reencontro
Após três meses de viagem, chegamos a Canopus, no Egito,
uma cidade tranquila localizada às margem do Mar
Mediterrâneo. Éramos, Mateus, Marcos, João de Betsaida,
Lucas, Simão Pedro e eu. Havia uma única mulher, Xanroa
Kamm, que decidimos mudar o seu nome para Maria
Madalena. A casa que nos foi destinada, ficava localizada
em uma falésia um pouco afastada da cidade. Era grande,
possuía dois andares e tinha varanda por todos os lados. A
que dava para o leste oferecia-nos a imensidão do mar
verde-azulado à frente. Um dos aposentos foi destinado à
nossa biblioteca particular. O peso de nossa bagagem, além
das poucas roupas, foram mais de 400 rolos de papiros que
trouxemos, pois precisaríamos de toda informação essencial
ao nosso trabalho e não queríamos ter a necessidade de ir
com frequência à Alexandria.
Quando lá chegamos, fomos recebidos pelo Mestre
Radamés, um egípcio baixinho, de pele bronzeada,
corpulento e muito sorridente. Também havia dois guardas
que fariam um revezamento diário para nos dar proteção. O
trabalho que iríamos realizar ali era valioso e não deveria
sofrer qualquer tipo de interferência.
Combinamos que faríamos duas reuniões diárias, uma pela
manhã e outra no final do dia, para avaliarmos o nosso
progresso. O objetivo era que pudéssemos ter o maior
número possível de referências positivas dos mais variados
textos de filosofia, de várias religiões e mesmo de
conhecimentos científicos. O ponto de convergência seria
sempre o de criarmos parábolas que transmitissem algum
464
tipo de significado. Usaríamos novas palavras como Reino
dos Céuss, ou Reino de Deus, para simbolizar o
conhecimento e a sabedoria que conduziria os homens à
verdadeira paz.
Foi Mateus, o primeiro a nos apresentar a parábola do grão
de mostarda, que é para nós a menor das sementes e que
sempre usamos para compará-las a coisas pequeninas.
- Veja meus irmãos o que escrevi hoje: O Reino de Deus é
como um grão de mostarda que, quando se semeia na terra,
é a mais pequena de todas as sementes que há na Terra.
Mas, tendo sido semeada cresce, e faz-se a maior de todas
as hortaliças e cria grandes ramos, de tal maneira que as
aves do céu podem aninhar-se debaixo de sua sombra.
- Muito bem, Mateus. Você quer dizer que o bom
conhecimento quando semeado cresce mesmo que a
princípio seja só uma pequenina semente, mas depois se
torna imensa, é isso mesmo? – Indaguei, satisfeito com a
parábola.
- Sim, e também quer dizer que é importante agirmos.
Semearmos, plantarmos. A semente tem poder mas precisa
ser jogada em solo fértil para que brote e produza algo
valioso.
- Isso me deu inspiração para escrever outra parábola –
disse Marcos, animado. Acho que posso escrever uma
história também com semente... O reino de Deus é assim
como se um homem lançasse semente à terra. E dormisse, e
se levantasse de noite ou de dia, e a semente brotasse e
crescesse, não sabendo ele como. Porque a terra por si
mesma frutifica, primeiro a erva, depois a espiga, por último
465
o grão cheio da espiga. E quando já o fruto se mostra, mete-
lhe logo a foice, porque está chegada a ceifa.
- Está bem, Marcos. Um pouco confuso. Procure melhorar
isso. Tente ser mais direto como Mateus foi. Seja como for,
é uma boa imagem. O ato de semeadura produz resultados
inesperados. Sua parábola reforça a parábola do Mateus –
disse eu, no papel de organizador das ideias para produção
de um texto final.
Maria Madalena, a sacerdotisa de quem mudamos o nome,
apresentou-nos uma parábola que envolvia compaixão e
perdão que nos deixou deslumbrados. Disse-nos, lendo o
que escrevera:
“O reino dos céus pode comparar-se a um certo rei que quis
fazer contas com os seus servos. E, começando a fazer
contas, foi-lhe apresentado um que devia dez mil talentos.
E, não tendo ele com que pagar, o senhor mandou que ele, e
sua mulher, e seus filhos fossem vendidos, com tudo quanto
tinha, para que a dívida se lhe pagasse. Então, aquele servo,
prostrando-se o reverenciava, dizendo: Senhor, sê generoso
para comigo, e tudo te pagarei. Então, o senhor daquele
servo, movido de íntima compaixão, soltou-o e perdoou-lhe
a dívida. Saindo, porém, aquele servo, encontrou um dos
seus conservos que lhe devia cem dinheiros, e lançando mão
dele sufocava-o, dizendo: Paga-me o que me deves. Então o
seu companheiro, prostrando-se a seus pés, rogava-lhe
dizendo: Sê generoso para comigo, e tudo te pagarei. Ele,
porém, não quis, antes foi encerra-lo na prisão, até que
pagasse a dívida. Vendo pois os seus conservos, o que
acontecia, contristaram-se muito, e foram declarar ao seu
senhor tudo o que se passara. Então o seu senhor,
466
chamando-o à sua presença, disse-lhe: Servo malvado,
perdoei-te toda aquela dívida, porque me suplicaste. Não
devias tu igualmente ter compaixão do teu companheiro,
como eu tive misericórdia de ti? E, indignado, o seu senhor
o entregou aos atormentadores, até que pagasse tudo o que
devia. Assim vos fará também meu Pai celestial, se do
coração não perdoardes, cada um a seu irmão, as suas
ofensas".
Todos aplaudimos o texto e pedimos que ela escrevesse
mais alguma coisa que envolvesse a mulher. Ela prometeu
que já estava pensando em alguma coisa marcante, mas que
ainda não estava pronto.
Era assim o nosso trabalho diário. Conversávamos,
discutíamos e até brigávamos quando havia pontos de
discórdia. Mas, ao final, sempre acabávamos sorrindo e
chegando a um ponto comum ou deixando que cada um
escrevesse o que desejasse, se não houvesse um consenso.
Eventualmente, recebíamos a visita surpresa de Malachai,
que vinha ver como as coisas estavam caminhando e nos dar
informações dos acontecimentos mais importantes.
No segundo mês de trabalho, já tínhamos produzido mais de
quarenta parábolas e uns 200 rolos de pergaminho e uns 100
volumens. Nossa diversão era ler e escrever. Colocar toda a
nossa experiência em forma de parábolas que iriamos copiar
e distribuir em todos os lugares onde nossos emissários
estivessem. Era daquele modo que esperávamos espalhar as
Boas Novas. Mas eu sentia que faltava alguma coisa. Com
todas as vivências que eu havia tido pelo mundo, eu sempre
vi que as pessoas aceitavam, sem questionar, qualquer
orientação, por mais infantil que pudesse parecer, se fosse
467
dito que tinha sido enviada por algum tipo de divindade, ou
de um Deus como Javeh, que considerávamos o único
existente. Se a mensagem que queríamos semear fosse
destinada essencialmente ao nosso povo, era necessário que
ela tivesse o selo divino. Mas nós não tínhamos esse selo.
Nós, nem mesmo éramos aceitos pelos rabinos judeus que
nos consideravam dissidentes. Nossa comunidade essênia
era perseguida abertamente por nossos próprios irmãos.
Essa era a razão de estarmos baseados em outras cidades
como Canopus, Alexandria, Menphis, Damasco, Roma,
Atenas e mesmo na Arábia e Índia.
No segundo mês de trabalho, todos estávamos exaustos com
as costas e as mãos doloridas de tanto escrever e ler. Eu
havia prometido a minha irmã Mírian ir visitá-la em
Cesareia e avisei a Malachai que gostaria que ele
providenciasse a minha viagem na companhia do meu bom
amigo Pedro, que fazia questão de acompanhar-me aonde
quer que eu fosse. Eu estava ansioso para rever os meus
familiares.
Chegamos ao porto de Cesareia no começo do verão. Era
uma cidade agradável, soprada pelos ventos do
Mediterrâneo. Aquela era uma das cidades que recebeu o
nome do Imperador Cesar, quando o senado romano
proclamou Herodes rei da Judeia. O rei, para agradar a
Roma, mandou construir grandes palácios fortificados,
templos, anfiteatros e aquedutos, a exemplo do que havia
em Roma. Herodes também construiu um belíssimo porto,
um templo dedicado a César Augusto, um anfiteatro que
cabia 5 mil pessoas sentadas, um teatro, um hipódromo e
piscinas para banho, tudo revestido de mármore branco. O
abastecimento de água potável da cidade era feito por um
468
aqueduto com cerca de oito quilômetros de extensão, que
levava água doce de uma nascente para a cidade beira-mar.
Eu jamais imaginara que existisse na Judeia uma cidade
como aquela. Era como se fosse uma miniatura de
Alexandria, no Egito. Eu podia agora entender a razão de
minha mãe e meus irmãos terem escolhido Cesareia para
viver.
Não foi difícil encontrar a casa onde minha irmã morava.
Indagamos a um grupo de soldados romanos, que
patrulhavam o porto da cidade, onde era a residência do
comandante Vinícius de Firenzi. Um dos soldados, depois
de nos examinar cuidadosamente, indagou quem queria
saber. Disse o meu nome e o da minha irmã e expliquei que
eu era cunhado do comandante e essa senha foi suficiente
para que imediatamente um grupo de soldados tomassem as
nossas bagagens e nos escoltassem até a bela morada de
dois andares debruçada sobre o mar numa encosta de fácil
acesso.
Um dos soldados tinha corrido à frente para avisar da nossa
chegada, assim, antes mesmo de alcançarmos o portão
principal da casa, minha irmã, seu esposo e meus lindos
sobrinhos vieram correndo nos abraçar. Foi uma alegria
indescritível. Cada um dos meus sobrinhos era mais lindo
do que o outro. Uma mistura de italiano com judeus, não
poderia ser uma raça mais bonita.
Distribuímos os presentes que havíamos comprado para eles
e minha irmã informou que todos iríamos fazer uma
surpresa à nossa mãe que morava nas proximidades e foi o
que fizemos. Eu não sabia qual seria a emoção de
469
reencontrar a minha mãe depois de tantos anos. Por minha
cabeça passaram as imagens da nossa última conversa.
Ainda conseguia ouvir o som da sua bofetada em meu rosto,
bem merecida, agora eu reconhecia, quando eu,
insolentemente, a enfrentei. Ela merecia o meu respeito,
pois, fizesse o que fizesse, era a minha mãe, amorosa,
carinhosa e capaz de dar a própria vida para nos proteger.
O tempo parou para mim naquele encontro de amor. Minha
mãe, apesar de seus cabelos brancos despontando-lhe nas
têmporas, conservava a beleza da juventude. A voz agora
parecia ainda mais doce e suave assim como seus
movimentos, quando passou os dedos acariciando o meu
cabelo tendo os olhos banhados de lágrimas.
- Meu filho... meu querido filho... eu te esperei tanto. Rezei
tanto para que Javeh o protegesse, para que o trouxesse de
volta e agora você está aqui, são e salvo. Eu quero te pedir
perdão... Por favor, perdoe-me pelo mal que eu te fiz...
- Não, minha mãe, a senhora não me fez mal algum. Foi eu
quem a desonrei com a minha rebeldia. Fui covarde, deveria
ter ficado e ajudado a senhora a cuidar dos meus irmãos. Eu
era um menino cheio de vontade e senhor de mim. Sou eu
quem peço perdão à senhora. Por favor, perdoe-me...
perdoe-me...
Pedro, aquele homenzarrão forte e duro, chorava feito
criança assim como os demais que presenciavam a cena,
vendo-nos abraçados e ajoelhados no meio da sala. Eu não
me lembro de ter visto Pedro chorar antes por qualquer
outra razão.
470
- Quero lhe apresentar o homem que cuidou de mim e me
ajudou a criar os seus irmãos... – disse minha mãe, tomando
a minha mão e se encaminhando na direção de um ancião de
barba e cabelos grisalhos, vestido com uma túnica azul de
seda indiana e portando um medalhão de ouro preso a um
cordão também de ouro. Eu já tinha visto um medalhão
parecido com aquele em algum lugar. Mas não me
recordava onde. Ele me abraçou fortemente e me disse que
minha mãe nunca perdera as esperanças de me reencontrar
um dia.
- Uma mãe jamais perde as esperanças de reencontrar um
filho perdido. É como o bom pastor que, mesmo tendo todas
as suas ovelhas abrigadas, não descansa enquanto não tem
perto de si aquela desgarrada. Você sempre foi amado por
sua mãe e ela todos os dias esperava a sua volta. Seja bem
vindo Matias – disse Aaron.
- Obrigado... muito obrigado senhor Aaron. Eu também
nunca esqueci de minha mãe e dos meus irmãos. Tenho uma
curiosidade... Esse medalhão com essas inscrições. O
senhor o comprou onde? O que significam?
- Ahh... esse medalhão foi um presente de treze anos que
meu pai me deu. Ele disse que eu deveria guardá-lo por toda
a minha vida e nunca vendê-lo ou trocá-lo por nada, pois era
muito valioso. E, de fato, isso foi verdadeiro, pois, durante
toda a minha vida, esse medalhão teve o poder de me abrir
portas, sem o qual eu estaria perdido. Veja essas inscrições
aqui... – disse-me Aaron, cheio de orgulho e exibindo o
medalhão.
471
- O portador deste bracelete deverá ser recebido em meu
nome e a ele deverá ser prestado todo tipo de ajuda
necessária, para que sejam satisfeitas as suas necessidades...
– Disse eu, interrompendo-o.
- Como você sabia o que está escrito aqui, Matias. Eu
mesmo levei muito tempo até descobrir – indagou-me o
ancião, surpreso.
- Eu tenho a mesma inscrição neste bracelete – disse eu,
mostrando-o a todos.
- Que magnífico! Isso quer dizer que esses objetos provêm
da mesma fonte... de uma mesma pessoa ou autoridade... –
disse-me, Aaron.
- Obadiah! – repetimos ao mesmo tempo.
- Então Obadiah é seu pai? O senhor é irmão do mestre
Malachai? O senhor é um dos 11 filhos dele?
- Onze filhos?! Não seriam onze mil filhos?! – riu
largamente, Aaron – sim, eu sou um dos filhos de Obadiah.
Na verdade, só o conheci aos 12 anos quando minha mãe,
que já não está mais entre nós, insistiu para que eu fosse
conhecê-lo em Jerusalém. Ele era um comerciante muito
rico, dono de muitas terras e deu a minha mãe uma pequena
propriedade aqui em Cesareia. Cresci e me tornei um
comerciante de tecidos. Foi na minha loja que conheci sua
mãe. Ela era uma empregada tão dedicada e eficiente que
logo a promovi para ser a administradora de tudo. Meus
negócios prosperaram como nunca e, como eu era um
472
homem viúvo e sua mãe também, nos casamos. O resto da
história você já deve saber.
- Então foi só uma coincidência vocês se encontrarem em
Cesareia? O que a trouxe para cá, minha mãe?
- Ora, com o desaparecimento de seu pai e o seu quase na
mesma época e depois da morte do seu tio Eliabe em Jericó,
eu fui muitas vezes a Jerusalém na esperança de encontrar
alguma pista sua, pois sabia que você tinha lá a sua
escolhida... Sarah. Mas ela havia se casado com um romano
e estava grávida. Disse-me que você fora lá falar com ela e
nunca mais teve noticias suas. Pedi às pessoas que nos
conheciam que me dessem notícias suas se soubessem, até
que um dia, alguém do templo me disse que procurasse uma
mulher que estava de partida para Cesareia. Ela sabia de
alguma coisa sobre o seu paradeiro.
- E quem era essa mulher e o que ela sabia?
- O nome dela é Ana, não mora mais em Cesareia. Mudou-
se com o marido para a Síria. Quando fui encontrá-la, ela
me disse que alguém lhe falara sobre um mestre de nome
Malachai que levara um grupo de rapazes para estudar em
outras terras, a mando de seus pais. Jerusalém estava
perigosa para todos. As pessoas de posses temiam que seus
filhos fossem escravizados ou mortos a qualquer momento.
Assim, confiavam os filhos a mestres e rabinos renomados
que se encarregariam da educação deles fora da Judeia.
- Mas Malachai não morava em Cesareia, morava? –
indaguei, tentando entender o que de fato havia acontecido.
473
- Não. Ele nasceu em Nazaré e depois fora a Jerusalém se
encarregar dos meninos que deveria retirar do Judeia – disse
minha mãe. Ana me disse que talvez um irmão de Malachai
soubesse onde ele estava. Assim, se o encontrasse saberia
do seu paradeiro.
Aaron tomou a palavra.
- Eu estava viúvo e morava em Cesareia desde pequenino e
nunca soube quem eram meus irmãos. Sabia que tinha
muitos espalhados como areia do mar. Sabia que tinha um
pai, mas quem cuidou de mim foi outro homem com quem a
minha mãe se casou. Ela me fez prometer que jamais eu iria
aborrecer Obadiah. Ele já lhe dera o suficiente para viver.
Nossa vida prosseguiria com o que conseguíssemos
conquistar com nossos próprios esforços. Depois de um
tempo, meus negócios não iam tão bem e foi então que uma
mulher jovem, muito linda, apareceu em meu bazar à
procura de emprego. Eu pensei em negar,, mas avaliei que,
com aquela voz e beleza, ela certamente iria me ajudar nos
negócios...
- Seu mentiroso... você ficou foi imediatamente apaixonado
por mim, confesse... – disse minha mãe, sorrindo.
- Bem.. quer dizer, eu era um homem muito mais velho e
seria um sonho me casar de novo e com uma mulher tão
jovem e bonita. Mas o Senhor tinha um propósito que nós
desconhecíamos.
- Por favor, prossiga minha mãe. Quero saber o que a
senhora conseguiu obter de informações a meu respeito por
meio de Aaron.
474
- Nada... absolutamente nada. Ele sequer sabia da existência
de um irmão com esse nome. Fiquei muito frustrada e
aborrecida. Mas, o emprego era bom e Aaron me tratou com
respeito e carinho. Começou a ser um novo pai para seus
irmãos. Eu sabia que ele tinha interesse por mim, pois
ficava muito irado quando os soldados romanos enchiam o
bazar com o pretexto de comprarem tecidos. Então,
quebrando o costume do nosso povo, eu mesma tomei a
iniciativa de pedir Aaron em casamento.
- Pediu Aaron em casamento? Que coisa mais incrível isso,
minha mãe. Nunca imaginei que uma mulher judia fosse
capaz de algo assim, pois em geral são todas prometidas
pelos pais e as viúvas esperam pacientemente que alguém
tome a iniciativa de desposá-las outra vez.
- Pois foi assim mesmo, meu filho. Ele quase desmaiou
quando eu lhe fiz a proposta e imediatamente começou os
preparativos para o nosso casamento.
- Mas sempre que estávamos falando sobre famílias, sua
mãe me questionava sobre esse tal de Malachai que eu
nunca conheci. Acho que, se um dia todos os filhos de
Obadiah se encontrassem, teríamos que colocá-los no
anfiteatro de Cesareia... – disse Aaron, abraçando a minha
mãe.
- Ou quem sabe no Circus Máximo.... Lá, cabem mais de
100 mil pessoas... - disse Simão Pedro, que até então ouvia
tudo, encantado com a história de minha família.
Todos rimos.
475
Comuniquei a todos que gostaria de ir a Jerusalém ver
Benjamin e Calebe tão logo pudesse e os traria comigo para
uma grande festa e depois teríamos que voltar para o Egito,
onde um grande trabalho nos esperava.
- Que trabalho é esse? Indagou, minha irmã.
- Uma obra da qual você e todos os meus irmãos e demais
compatriotas se orgulharão. É uma obra gigantesca que vai
colocar nas mãos das pessoas uma nova maneira de viver.
Com mais justiça, com mais harmonia, com mais tolerância
e sobretudo com mais amor. Assim que ela estiver pronta,
distribuiremos copias nos núcleos das boas novas que estão
sendo criados em cada cidade do mundo. Será desse modo
que conseguiremos mudar a nossa situação frente aos
romanos e também no modo de viver do nosso povo que
tem sido banhado por sangue durante milhares de anos.
Eu falei tudo o que era permitido falar sobre o nosso plano
e, após algumas semanas de convívio com os meus entes
amados, Simão e eu partimos para Jerusalém para
visitarmos meus dois irmãos. Aaron nos emprestou uma
carruagem maravilhosa e cavalos extras para que a nossa
viagem fosse mais rápida e segura possível. O comandante
Vinicius mandou uma escolta de soldados para nos
acompanhar até Jerusalém e nos trazer de volta em
segurança. Eu nunca poderia imaginar, nem em mil anos,
que um dia eu iria precisar viajar por minha própria terra
escoltado por nossos inimigos. Aos poucos, eu estava me
acostumando com os desígnios do destino, do Senhor, dos
deuses ou de quem mais pudesse estar envolvido naquela
trama humana, absolutamente inacreditável e
deslumbrantemente milagrosa.
476
As estradas que nos levavam de Cesareia a Jerusalém não
eram boas e em muitos trechos onde havia chovido nossa
carruagem teve dificuldade para atravessar. Eram muitos
quilômetros de lama e que escondiam crateras imensas. Foi
numa delas que duas rodas do nosso veículo se partiram e
tivemos que pernoitar no meio do nada, à espera de socorro.
Dois dos cinco soldados que faziam parte de nossa escolta
foram na frente a Jerusalém, que distava cerca de cem
quilômetros. Voltariam com uma nova roda e assim
poderíamos seguir viagem. Montamos acampamento sob
forte chuva e rezamos para que ela nos desse alguma trégua.
Tínhamos comida e bebida suficiente, mas havia um perigo
sobre o qual fôramos alertados pelo comandante Vinícius
quando eu recusei a escolta armada.
- Vocês vão precisar de escolta sim. Nessas estradas,
existem muitos bandidos e assaltantes. Ao virem uma
carruagem como a de vocês, vão tentar assaltar. Por isso, é
melhor prevenir. Meus homens lhes darão a segurança
necessária para fazerem uma viagem de ida e volta. Sua
irmã não me perdoaria se alguma coisa ruim lhes
acontecesse – disse ele, resoluto.
Apesar daquele absurdo, aceitamos. No meio da madrugada,
fomos acordados por gritos e pelo tinir de espadas.
- Salteadores! Salteadores! – gritava o chefe da escolta,
naquele momento, reduzida a três.
Pedro, que nunca deixara de portar a sua afiada espada
curva atravessada ao cinto, pulou com agilidade da
carruagem e se precipitou para o grupo de homens que
lutavam por suas vidas. Um dos soldados romanos jazia
477
esvaindo-se em sangue no meio da lama. Somente a luz dos
relâmpagos, faiscando no breu da noite, nos iluminava e eu
podia ver que logo perderíamos a batalha, pois o número de
assaltantes era muito maior do que nosso grupo.
- Para a carruagem... cerquem a carruagem. Gritou o que
parecia ser o líder do bando.
Eu sabia manejar uma espada, mas estava destreinado. Os
meses de prática de artes marciais com os meus irmãos
chineses poderiam ser úteis naquele momento, mas resolvi
não pegá-la. Talvez eu conseguisse salvar as nossas vidas
naquela noite. Não eram os romanos. Os homens que nos
assaltavam eram do meu próprio povo.
- Levem tudo de valor que tiverem... se esse judeu
fantasiado de romano continuar resistindo, cortem a
garganta dele. Judeus sujos que se misturam com romanos
são piores do que eles – falou em aramaico o homem que se
aproximava da carruagem onde eu ainda me encontrava
oculto. Podia ouvir os gritos de Pedro lá fora se debatendo
nas mãos dos assaltantes que tentavam dominá-lo.
Eu tentava pensar em uma solução para aquele problema,
mas minha mente estava confusa. Não sabia se deveria pedir
pela vida do meu companheiro e entregar tudo o que
tínhamos ou se deveria sacar a minha espada e enfrentá-los.
Se eu ao menos pudesse saber quantos eram?
Provavelmente, os romanos já estavam mortos e só Pedro e
eu ainda estávamos vivos. Lembrei-me de Benjamin, o
negociador. Se ele estivesse ali, com certeza encontraria
uma saída, mas ele não estava.
478
O homem usando uma máscara preta arrebentou a porta da
carruagem e espiou para dentro, à procura de mais alguém.
Eu ainda estava escondido no canto, imóvel como uma
estátua.
- Vasculhem todos os pertences e desamarrem os cavalos.
Peguem armas, escudos, roupas, dinheiro... tudo o que
encontrarem. Parece que não há mais ninguém aqui – gritou
o homem, ao tempo em que entrava na carruagem para
melhor examinar o interior.
- Esse homem aqui está dando muito trabalho, o que
fazemos com ele? – gritou um dos ladrões que,
provavelmente, estava tentando amarrar Pedro.
- Matem-no. Degolem-no e dividam suas roupas. Esse porco
vai ter o que merece por ser um traidor – disse o homem
que deveria ser o líder.
- Não! por favor, não façam isso! – disse eu, saltando do
meio dos tecidos espalhados no interior da carruagem, os
quais me mantiveram oculto, até então.
O líder do bando, apanhado de surpresa, sacou sua faca
curva e jogou-se sobre mim como um felino.
- Então o covarde aqui estava esperando a hora de agir, não
é? Pois vamos matar os dois – disse o homem, arrastando-
me para fora da carruagem e me jogando na lama fria.
Naquela hora, Pedro e eu estávamos juntos ajoelhados e nos
olhávamos aterrorizados. Nosso fim estava mais próximo
do que tínhamos imaginado. Se não ocorresse um milagre,
479
morreríamos ali no meio do nada, como tantos outros
judeus e romanos morreram.
- Por favor, senhor..., se nos deixarem vivos, podem obter
uma boa recompensa por nossas cabeças – disse eu,
lembrando-me do meu irmão Benjamin. Ele nunca desistiria
de negociar. Eu havia aprendido alguma coisa com ele.
- Negociar?! não negociamos com judeus traidores. Vão
morrer como todos os demais – disse o líder, que agora
brandia a lâmina de sua espada em frente aos nossos rostos
enlameados.
- Se me deixar livre e me der um cavalo, eu irei a Jerusalém
e trarei 200 moedas de ouro e as trocarei por meu irmão
Pedro. Vocês podem ficar com ele até eu voltar, como
garantia. Pensem bem, 200 moedas de ouro sem fazer mais
nenhum esforço. Ele nem vale tudo isso...
Os homens riram. Fazer rir é uma arte. Quando uma pessoa
sorri, ela muda o estado de espírito e fica mais aberta, mais
sensível. Eu tocara na sensibilidade daqueles brutos.
- Hummm... e que tal 300 moedas de ouro? Seu amigo
agora acabou de ficar ainda mais valorizado, disse o líder
aproximando-se do meu rosto.
- Está bem... 300 moedas de ouro... eu trarei. Diga onde
devo deixá-las e depois vocês soltam o meu amigo. Não
contarei a ninguém sobre o que aconteceu aqui.
- Claro que você não vai contar a ninguém, pois, se o fizer,
seu amigo morrerá e você também. Você deve ser muito
rico... tem amigos em Jerusalém... quem é o romano que vai
480
lhe dar esse ouro todo, judeu bastardo? – indagou, o
homem.
- Não é um romano, é o meu irmão. Ele é judeu como nós.
Ele é um mestre e sacerdote, seu nome é Benjamin. Ele é
muito conhecido lá e será ele quem vai me dar esse
dinheiro.
Houve um grande silêncio, embora eu conseguisse ouvir a
respiração ofegante de Pedro e as batidas do meu coração.
O líder ajoelhou-se em frente a nós e aproximou o seu rosto
do meu, quase tocando os nossos narizes.
- Afinal, quem é você?! você é irmão de Benjamin? Você é
o covarde fujão do Matias? fale?! você é o ingrato do
Matias?!
- Calebe?! é você o ladrão bastardo do meu irmão? – falei,
erguendo-me diante dele.
Uma vez mais, eu estava salvo pelo amor. Uma salvação só
possível quando se está entre irmãos, os quais, independente
de que lado estejam, se amam verdadeiramente.
481
Capítulo XIX – Traição e Crucificação
As emoções que experimentei ao longo da minha vida de
peregrino foram intensas, o que me faz querer compartilhar
com todos aqueles que lerão os meus papiros. Talvez eu
exagere um pouco, quando falo dos laços de afeto entre
meus familiares e eu, mas eles de fato são as minhas
melhores referências do mundo. Só quem teve uma família
composta por pai, mãe e irmãos vivendo em harmonia,
lutando pelo bem uns dos outros, sabe a importância dessa
experiência. Quisera eu que, em todos os cantos do mundo,
as famílias se parecessem com a que eu tive. Meu grande
sonho é que não apenas irmãos de sangue pudessem
partilhar do sentimento de união e mútua proteção que
dispensávamos uns aos outros, mas que também fossemos
capazes de ver os demais como irmãos de vida, formando
uma grande fraternidade em busca da paz comum.
Partilhando a Terra, como partilhávamos o pão em família.
Calebe, o líder do bando de assaltantes que viviam entre
Belém e Jerusalém, assaltando e roubando romanos, era
também o capitão da guarda de fundibulários, como minha
irmã havia me dito. Sua vida dupla o obrigava a usar uma
máscara e só agir durante a noite.
Depois que nos reconhecemos, nos abraçamos e choramos
juntos. Pedro também chorava e sorria diante daquela cena
inusitada, onde de vítimas passamos a ser hóspedes de
honra.
Fazendo valer meu posto de irmão mais velho, repreendi
Calebe, com veemência.
482
- Não posso aceitar que você creia que o você está fazendo é
justo e humano Calebe. Você é um homem de bem, eu o
conheço desde criança. Você não pode ter se tornado um ser
do mal.
- Não me tornei um ser do mal, meu querido Matias. Foram
eles, os romanos, que me ensinaram a sobreviver no mundo
em que eles mesmos criaram para nós. Dente por dente,
olho por olho. Eu não mato crianças, mulheres grávidas,
idosos ou gente inocente, como eles fazem. Ataco caravanas
que tenham símbolos romanos ou que estão sendo
escoltadas por poucos soldados deles. Os lobos não fazem
assim? Atacam suas vítimas quando estão em pequenos
grupos. Tomo deles ouro, armas, roupas, cavalos e tudo
mais que possa servir à nossa causa. Não é para o
enriquecimento pessoal de nenhum de nós. Eu distribuo
parte do que recuperamos com os mais pobres. Eles tem
causado muita desgraça e infelicidade ao nosso povo. Foi
por isso que criei um grupo de Serpentes da Noite, para
pegarmos de volta o que eles tem nos tirado há tantos anos –
disse meu irmão, com ira.
- Eu compreendo... compreendo mesmo. Já pensei como
você. Por culpa deles, eu perdi meu pai, duas mulheres que
foram os amores de minha vida e vivi tanto tempo afastado
de vocês, que são a minha família. Mas talvez exista um
modo melhor de fazermos as coisas mudarem. Você estaria
disposto a me ouvir?
Calebe não estava disposto a ouvir. Despediu-se de nós e
partiu no meio da madrugada, deixando-nos com os corpos
de três soldados romanos para serem enterrados.
483
O nosso socorro só chegou no fim do dia seguinte.
Explicamos aos soldados o que nos acontecera e, apesar de
eles não terem ficado convencidos, continuaram a nos
escoltar. Afinal, estavam sob as ordens do comandante
Vinicus de Firenzi e uma desobediência lhes custaria a vida.
Eles sabiam que tínhamos sido atacados por judeus e que
tínhamos sido poupados por sermos judeus também. Só não
sabiam que o líder do bando era o meu próprio irmão.
Entramos em Jerusalém, a cidade me pareceu mais velha e
mais triste. Havia soldados romanos por toda parte. Fui
direto encontrar meu irmão Benjamin, que demonstrou
muita alegria em me receber, mas ponderou que talvez eu
tivesse chegado em uma má hora. Disse-me que, alguns dias
antes da minha chegada, tinham começado a procurar um
homem conhecido como Crestus, que vivia de cidade em
cidade, pregando o que parecia aos judeus e aos romanos
uma incitação à rebelião. De acordo com Benjamim, havia
um grupo de homens que seguiam Crestus e eles também
estavam sendo perseguidos.
- E o que esse Crestus prega, meu irmão? indaguei curioso,
ao lembrar que ele fora um dos nossos que estivera meses
antes em Roma, participando de nossa reunião secreta e
que, assim como Judas, saíra dias depois, por não concordar
com as decisões tomadas pela maioria.
- Eu sei que ele anda desafiando as leis. Outro dia, ele
entrou no templo e causou um grande tumulto, porque havia
pessoas vendendo mercadorias durante as cerimônias.
Tomou um chicote e expulsou os vendedores do templo,
dizendo que ali era a casa do Senhor e não lugar para se
484
fazer comércio. Eu acho que ele tem razão, mas o povo não
gostou e ficou contra ele.
- Você é um rabino e líder judaico, Benjamin, está contra
ele também?
- Não estou nem contra nem a favor. Meus colegas e, até
mesmo Caifás, o nosso sumo sacerdote, estão contra ele e
quer evitar que os romanos pensem que ele é um dos
nossos...
- Ele está falando em revolução ou coisa semelhante?
- Não, exatamente, mas fala que não veio trazer a paz e sim
a espada e que virá um reino para libertar o povo da
opressão. Você sabe que basta isso chegar aos ouvidos do
prefeito Pôncio Pilatos e a resposta será mais opressão ao
nosso povo. Se Crestus for encontrado, será julgado e
condenado por conspiração. Ninguém do Templo estará
disposto a defende-lo, pois ele se afastou do nosso convívio
a algum tempo e passou a fazer parte daquele grupo de
dissidentes que se acham melhores que nós.
Calei-me. Não seria bom, naquele momento de reencontro
com meu querido Benjamin, entrarmos em uma discussão
sobre o meu povo. Benjamin era um guardião do Talmude e
da Torá. Tinha se especializado naqueles livros e não havia,
para ele, outra verdade além daquelas obras seculares.
Por outro lado, eu estava preocupado com a possível captura
de Crestus. Ele era um essênio e sabia de quase todos os
locais onde a fraternidade se reunia. Sabia também o nome
dos principais espiões em Roma, que circulavam livremente
no palácio imperial. E o mais grave, se ele nos delatasse,
485
todos nós, sem exceção, estaríamos perdidos. Ele sabia do
plano que Obadiah estava executando. Além disso, embora
ele não tivesse concordado com todos os pontos da decisão,
ele queria o bem do nosso povo e tinha respeito à
fraternidade. Eu precisava chegar até ele, antes que os
romanos o fizesse.
Decidi, juntamente com Simão Pedro, ir falar com José de
Arimatéia, um rico comerciante judeu, também essênio,
outro que também havia saído da reunião secreta em Roma,
em companhia de Crestus.
Em princípio, Arimateia desconversou, mas quando eu lhe
disse do receio que sentia, caso Crestus fosse apanhado, ele
me disse:
- Matias... Crestus pode ter enlouquecido pela revolta contra
os romanos, mas não é um traidor. Ele jamais nos
denunciará.
- E quanto a Judas? Ele está com Crestus?
- Sim, ele está, mas é um covarde. Não teria coragem de
fazer isso, pois tem mulher e filhos. Ao contrário de
Crestus, que optou pelo celibato e não tem qualquer parente
vivo que possa ser usado para pressioná-lo.
Depois de algum tempo, Arimateia concordou em nos levar
para falar com Crestus. Ele estava escondido na casa de um
homem chamado Zebedeu.
Ele se mostrou feliz em nos ver, porque achou que nós,
finalmente, tínhamos nos juntado a ele. Judas também
estava lá, mas não demonstrou qualquer alegria em nos ver.
486
Conversamos muito e eu tentei dissuadir Crestus de
continuar com aquela pregação. O convidei para fazer parte
do nosso grupo de divulgação das boas novas que
estávamos elaborando em Canopus, mas ele foi taxativo.
- Perdoe-me, meu bom amigo e irmão... mas meu destino já
está selado. Eu vou continuar pregando o que acredito e
assumirei as consequências. Não quero ser um mártir, mas
se precisar morrer por aquilo em que eu acredito, eu farei
isso. Fiquem conosco essa noite, pois quero orar com vocês
no meu local predileto, o jardim Getsêmani. Amanhã
voltarei a pregar pelo deserto, longe de Jerusalém, quem
sabe lá me ouvirão.
Sabíamos que Crestus estava determinado a continuar a
missão que ele mesmo havia tomado em suas próprias
mãos. Nada lhe falei sobre o nosso receio de ele ser
apanhado e ser forçado a nos entregar. Eu sabia que ele
manteria guardado o juramento essênio de nada revelar
sobre os nossos segredos. Pelo menos eu esperava que ele
fosse capaz de resistir a uma tortura brutal, se fosse o caso.
As cenas que irei descrever resumidamente a seguir, você,
amado leitor, verá nos documentos que circularão pelo
mundo, pois é assim que eu espero que aconteça. Não
falarei muito, pois, quando me recordo daquela semana
sombria, gostaria de nunca ter presenciado tamanha
brutalidade e selvageria. Mesmo que eu já tivesse
presenciado cenas muito fortes de tortura e violência, talvez
por estar ainda sensibilizado pelo reencontro com meus
familiares, vi aquela semana como uma das mais marcantes
em minha vida.
487
Conforme combinado, depois de cearmos, fomos em um
pequeno grupo, no qual nem Judas nem Arimatéia estavam,
para o jardim Getsêmani e lá permanecemos ouvindo
Crestus falar depois de orarmos. Foi então que ouvimos um
rumor de vozes e logo fomos cercados por soldados
romanos e guardas judeus armados que procuravam por
Crestus. Judas tinha sido trazido amarrado pelas mãos.
Tomei a iniciativa de falar, mas fui interrompido pelo
próprio Crestus que indagou a Judas face a face.
- Quanto te pagaram para nos trair Judas? Como pode um
homem ser tão covarde como você?
Judas não respondeu. Os soldados logo compreenderam que
Crestus era o líder. Se eu tivesse falado, talvez tivesse sido
eu o prisioneiro, se ninguém interviesse.
Crestus foi levado, enquanto os guardas tentavam nos
conter com suas lanças e espadas. Pedro já estava com sua
espada pronta para desferir um golpe mortal em um dos
soldados, quando eu o impedi.
- Pedro... abaixe essa espada, o que temos para fazer é
maior do que a morte de um soldado romano. Basta de
mortes aqui. Vamos deixar as coisas acalmarem.
Pedro me obedeceu. Crestus ainda me lançou um olhar que
dizia tudo. Ele não nos entregaria, mesmo que tivesse que
morrer. Será que ele daria a vida dele para nos salvar? Eu
custava a crer que ele fosse capaz de fazer isso.
Naquela noite, ninguém dormiu. Arimatéia nos acolheu a
todos em sua grande mansão nos arredores de Jerusalém e lá
488
pensamos em mil formas de salvar a vida de Crestus, mas
nenhuma delas nos pareceu efetiva. Pensamos em oferecer
dinheiro para que o soltassem, mas sabíamos que, no
momento em que estivesse livre, Crestus voltaria a pregar
com mais veemência do que antes. Ele tinha condenado a si
mesmo.
Quando já estávamos de volta, senti falta de Pedro e Judas e
indaguei por eles. Disseram-me que ambos haviam ficado
para trás depois da prisão de Crestus no Getsêmani e que,
provavelmente, se juntariam a nós mais tarde. Mas, no final
da noite, só Pedro voltou.
Eu nunca tive total certeza sobre o que direi agora. Pedro
também nunca confirmou a minha suspeita, mas Judas
amanheceu enforcado em uma árvore na manhã daquele dia.
Disseram que ele havia se suicidado. Poderia ter sido isso
mesmo. Mas, sempre me pergunto porque ele se enforcaria
depois de haver entregue Crestus aos romanos. Ele mesmo
não poderia ter vendido os nossos segredos que eram bem
mais valiosos e recebido uma verdadeira fortuna do próprio
Imperador? Em meu coração, Pedro foi o autor do
enforcamento de Judas, pois sabia que ele sim, seria capaz
de nos trair e colocar a culpa em Crestus, que havia sido
preso e que certamente seria torturado até a morte, mas nada
diria. Talvez os romanos o tivessem pressionado usando sua
mulher e os filhos. Sobre isso, não teremos certeza. Nos
evangelhos, nós preferimos dizer que Judas cometeu o
suicídio, pois isso encerraria as especulações.
Os dias seguintes foram terríveis. Nós, todos nós, queríamos
que Crestus fosse castigado e depois exilado, como faziam a
muitos que lutavam abertamente contra o Império. Mas
489
Crestus não se mostrou colaborativo. Pessoas que
trabalhavam na prisão onde ele foi jogado disseram que,
durante dois dias, os romanos torturaram Crestus de todas
as formas possíveis para que ele lhes desse os nomes dos
conspiradores, dos espiões judeus que podiam estar
infiltrados nos palácios, mas Crestus não abriu a boca em
um único momento.
Naquela época, era comum torturarem presos em Jerusalém
e fazê-los arrastar a própria cruz pelas ruas da cidade, sob
vigorosas chibatadas até chegar ao Monte Gólgota, para
serem crucificados. Com Crestus não foi diferente e ele foi
mais uma das vitimas de romanos. E, no caso dele, havia
também judeus que estavam insatisfeitos com sua nova
pregação. Assim, ele foi condenado por isso e por não
delatar os demais companheiros. Crestus morreu para nos
salvar, para nos permitir continuar um trabalho que mudará
o mundo. Ele derramou seu sangue numa cruz, como mártir
e, naquele dia, eu obtive o que precisava para escrever a
mais fascinante história que o mundo iria conhecer.
Foi José de Arimateia que, sob a minha orientação, retirou o
corpo de Crestus da cruz, depois de morto, e o cremamos no
Monte das Oliveiras, local onde eu costumava brincar com
meus irmãos. O costume dos Judeus em relação a seus
mortos não era esse, mas Crestus não era mais um seguidor
do judaísmo, nem Pedro, nem eu. Acordamos que ali seria
um bom lugar para nos lembrarmos dele.
Decidi não mais voltar para Cesareia para reencontrar meus
familiares. Minha mente estava fervilhando com novas
ideias e eu precisava comunicar imediatamente a Malachai a
grande chance que agora tínhamos para produzir uma obra
490
que poderia ser a mais bela história da raça humana, com a
qual seria possível ensinar às futuras gerações tudo o que
desejávamos. Em nossa primeira reunião eu falei o que
tinha em mente.
- Veja, mestre Malachai, já temos as parábolas, temos os
ensinamentos acumulados da nossa fraternidade essênia e
agora temos um mártir, Crestus. Podemos colocar tudo isso
em uma nova história. Podemos apontá-lo como o Messias
esperado e, por meio dele, ensinaremos tudo que queremos
– disse eu, eufórico e atropelando as palavras, naquele
primeiro encontro com Malachai em Canopus.
- Parece formidável, João. Parece uma boa ideia. Mas, quem
irá confirmar esses fatos? Você está sugerindo que
apontemos Crestus como o messias, aquele que o povo
judeu espera há muitos anos. Mas isso nunca será
confirmado pela história. Você se esquece de que os
romanos tem escritores anotando tudo o que acontece nas
cidades do Império? Você mesmo conhece o escriba-mor
deles, o Flávio Josefo e também o Seutônio e Públio
Cornélio Tácito que escrevem sobre tudo que acontece ao
nosso povo. Eles nada falarão sobre esse personagem que
você quer descrever, logo, esse fato jamais poderá ser
confirmado no futuro.
- Eu sei, Malachai, mas isso não terá tanta importância.
Dentro de cinquenta ou sessenta anos, a maioria das pessoas
que estão vivas hoje já estarão mortas e nada poderão
testemunhar. Provavelmente, esses historiadores escreverão
sobre as revoltas que estão ocorrendo, mencionarão que um
homem chamado Crestus foi crucificado porque ele incitava
uma rebelião e outras coisas que não sabemos. Assim, os
491
livros que escreveremos só irão confirmar tudo de forma
detalhada.
- Mas você disse que escreverá que Crestus realizou
milagres, que fez maravilhas... isso não é verdade.
- Mas isso não depende de comprovação para que o povo
aceite, Malachai. As histórias dos grandes homens como
Krhisna, Buda, Lao Tsé e tantos outros mestres do passado
também relatam que eles fizeram milagres, mas não
comprovam nada e o povo passou a acreditar neles assim
mesmo, porque querem se beneficiar desse poder. Um poder
maior do que o dos homens. Nós não estamos fazendo a
mesma coisa a séculos? há milhares de anos, nós não
estamos pedindo milagres a um deus invisível? Moisés não
fez milagres? Elias e Eliseu não fizeram milagres? Quem
está vivo para comprovar? Apesar de não existirem
quaisquer provas sobre isso, nós temos vivido acreditando
nessas histórias.
_ Será que não estaríamos enganando os seguidores dessa
nova fé que você e os seus colegas querem escrever?
- De modo algum. Afinal, essa é a nossa oportunidade de
mostrar que cada pessoa pode realizar milagres, sem
precisar de rabinos e profetas, como no passado. Nós não
acreditamos que Deus colocou dentro de nós o poder para
realizar milagres como se fossemos nós mesmos
verdadeiros deuses?
- Sim, isso é verdade. Mas será que as pessoas saberão usar
esse poder? entenderão que é isso o que devem fazer?
desenvolver, pela fé, o imenso poder que o nosso Criador
492
nos deu para realizar o que muitos chamam agora de
milagres?
- Eu acredito nisso, mestre. Claro que nem todos alcançarão
esse estágio tão desenvolvido, mas alguns, sim, poderão
realizar coisas assombrosas, se acreditarem que poderão.
Iremos falar sobre o poder da fé, capaz de transportar
montanhas, realizar prodígios.
- Eu admito que isso é fascinante. Vejo mesmo que você
ultrapassou em conhecimento a maioria dos seus mestres.
Siga em frente, vamos ver como essa história pode ser
construída. Mas tenho uma pergunta que vem me corroendo
há muito tempo. Então você não acredita mais em Javeh?
- Não é isso, meu bom mestre. Eu apenas cresci e já não
preciso mais de histórias de crianças para saber discernir o
bem e o mal. Não preciso mais da ajuda dos deuses para
viver a minha vida de forma correta. Acredito em uma
Inteligência Suprema, em algo muito poderoso que está
acima de todos os deuses. Aprendi que o maior milagre
existente é a vida em todas as suas formas. Isso é milagroso.
Estou certo de que muitos dos acontecimentos que hoje
temos como milagrosos, no futuro, serão considerados
banais e terão uma explicação menos fantasiosa.
- Meu filho, o que foi que fizemos a você... por onde você
andou? – disse Malachai, me afagando a cabeça e sorrindo.
- Eu não sei mestre. Só sei que devo a você e a Obadiah
tudo o que sou hoje, pois vocês me deram a oportunidade de
aprender o que eu jamais saberia sozinho. Agora, por favor,
confie em mim. Deixe que meus companheiros e eu
escrevamos essa história e depois o senhor mesmo se
493
encarregará de esconder os pergaminhos em lugares que
dificilmente possam ser encontrados. Enquanto isso,
continuaremos a espalhar essa noticia de boca a boca. O
senhor sabe que as pessoas costumam acreditar naquilo que
os líderes contam, sem se questionarem muito. Se
divulgarmos esses fatos, em pouco tempo a notícia se
espalhará e as boas novas irão junto.
- Está bem, meu filho. Você me convenceu, mas lembre-se
de que ainda preciso falar com Obadiah. É ele que está
financiando o nosso projeto. Se ele concordar, iremos em
frente, eu prometo te ajudar no que for preciso.
- Se ele não concordar, nós continuaremos sem ele,
Malachai. O senhor também entrará para a história...
Meus colegas de trabalho adoraram a nova tarefa. Todos os
dias, e mesmo durante a noite sob a luz das lamparinas,
nossas penas cobriam centenas de papiros, muitos dos quais
seriam destruídos depois de uma revisão meticulosa. Muitas
vezes não chegávamos à mesma opinião sobre um fato que
queríamos narrar.
- O nome do Messias não pode ser algo comum. Deverá ser
forte e ligado ao nosso Deus Javeh. Eu tenho pensado em
usar o nome “Jesus” que tem como base hebraica o
tetragrama inefável "JHVH", que significa a "Eternidade de
Deus". Como vocês sabem, HVH é o infinitivo do verbo ser
em hebraico e o prefixo J transpõe os verbos hebraicos para
o futuro. Dois de nós escreverá também em aramaico e,
assim, o termo "Yeshu ha Notzri” indicará a expressão
“Jesus Cristo, o Messias". Marcos e Lucas, que escreverão
em grego, poderão usar as letras "IHSUS", Jesus Salvador
494
dos Homens. Ao criamos esse nome, estaremos
aproveitando a existência do Pai que é Javeh para gerar um
filho, um salvador da humanidade. Diremos que Deus
ofereceu seu único filho para salvar a humanidade. Diremos
que todo aquele que acreditar e seguir as palavras do Seu
Filho Jesus, será salvo e encontrará o Reino dos Céus.
- Ótimo. Eu estou de acordo. Quer dizer que teremos que
escrever as mesmas coisas em grego, hebraico e aramaico?
– indagou, Marcos.
- Sim, e também em latim, pois essa é a língua universal no
momento. Todos precisam ler sobre essa nossa história.
Sugeri que a história do Messias, o ser que veio trazer uma
nova mensagem de amor aos homens, para ser forte, não
poderia ter um pai e uma mãe terrenos. No máximo, uma
mãe humana. Isso o faria ser superior a Moisés e aos demais
profetas.
- Como assim, João? Você está dizendo que o Messias
deverá nascer da mesma forma como Krisna, Lao Tsé ou
outras divindades hindús?
- Sim, isso dá mais poder. Dá mais confiabilidade. Homens
podem falhar, mais alguém, como por exemplo, o próprio
filho de Deus, será respeitado e adorado. Todos quererão
seguir as suas palavras.
- Eu concordo plenamente. Vamos então seguir esse
pensamento. O menino nascerá de uma virgem e lhe
chamarão de Emanuel, que significa “Deus conosco”. –
disse Mateus, cheio de animação.
495
- Lembrem-se de que as pessoas que lerão estes livros são
pessoas simples, que precisam de imagens fáceis de serem
guardadas. Os nomes também precisam ser comuns: Maria,
José...
- E se eu escrever que foi o anjo Gabriel que avisou a Maria
que ela estava grávida mesmo sem ter coabitado com José...
- Anjo Gabriel? de onde você tirou isso, Mateus?
- Ora, do livro de Daniel. Um anjo com esse nome apareceu
a ele, então porque não poderia aparecer a Maria e ao
marido dela José, para lhes contar do milagre?
- Tenham cuidado. Não inventem muita coisa, pois isso
pode tirar a credibilidade do que escrevermos...
- Mas foi você mesmo que nos disse para soltarmos a nossa
imaginação. E isso é o que não nos falta... – disse, Maria
Madalena, sorrindo.
Dias depois, eu tinha um esboço de temas relacionados com
a fé, minha especialidade dentro dos evangelhos.
- E disse Jesus: Tenham fé em Deus. Tudo aquilo que vocês
desejarem do fundo do coração e da alma e não tiverem
nenhuma dúvida, assim será feito. Poderão até mesmo dizer
a um monte, levanta daqui e vai para o mar, e assim será
feito – o que acham disso? Perguntei aos meus
companheiros.
- Parece forte e muito poderoso. Mas isso é verdade? –
Indagou, Pedro.
496
- Pedro, meu bom Pedro... veja quantas montanhas estamos
movendo de um lado para outro com a nossa fé, com o
nosso esforço. Olhe as construções gigantescas que
conhecemos. Tudo feito por nós humanos. As imensas
pirâmides, os templos e a Biblioteca de Alexandria. Os
templos e castelos de Roma e Atenas. Esses monumentos
foram criados pela imaginação de um ou de vários homens.
Claro que pedir para uma montanha se erguer e ir para o
mar não é algo tão fácil de se fazer hoje. Quem sabe no
futuro? Mas aqui eu quero dizer que se as pessoas
acreditarem que são capazes de algo tão grandioso,
acabarão por realizar. Falarei também que a fé é como um
grão de mostarda que, ao germinar, pode se tornar uma
grande planta.
Combinamos que, dentro do possível, usaríamos nossas
marcas nos textos para, no futuro, possibilitar a quem
conhecesse de astrologia, numerologia e outras ciências
secretas, facilmente perceber que essênios haviam escrito
aqueles textos e, como tal, deveriam ser interpretados, não
ao pé da letra, mas buscando o seu significado oculto.
- Nascimento de Jesus, uma estrela indica o caminho a três
reis para ir visitá-lo, levando três presentes – ouro, incenso e
perfume. Podemos usar o três também em outros momentos
da vida dele. Três pessoas reunidas em nome de Jesus fará
com que Ele esteja presente. Três dias para edificar o
templo. Três dias para ressuscitar. Três vezes Jesus será
negado por Pedro.
- Logo, eu? – Protestou Pedro, sorrindo.
497
- Sim, você não se lembra que certa ocasião eu te pedi ajuda
e você me negou três vezes?
- Ahhh... então você agora vai ser o próprio Messias, é isso?
- Na verdade, todos nós iremos pensar como o Filho de
Deus, como o Messias prometido. Temos que pensar nas
coisas que ele faria ou diria. Essa será a nossa mensagem
para o mundo.
- Podemos usar também o quarenta? Jesus vai ficar 40 dias
no deserto. Como Moisés ficou 40 anos no deserto com o
povo.
- Ótimo. Vamos usar também o número 12. Ele tem sido
usado no Talmude abundantemente. Serão doze os
discípulos de Jesus, como são doze as tribos de Judá.
E foi assim que construímos capítulo a capítulo, versículo a
versículo, uma história totalmente baseada em lugares reais,
com personagens reais misturados aos fictícios o que
tornaria impossível de, no futuro, ser comprovada a real
existência dos personagens. Mesmo as pessoas reais que
constam em nossos livros não sabiam que seus nomes foram
usados para compor a nossa trama, a qual tem como única
finalidade levar uma mensagem de paz e de amor aos
homens, por meio do sacrifício de um ser especial, chamado
de Filho de Deus.
O Jesus representa o redentor da humanidade, simboliza o
perdão, o repartir do pão e o amor incondicional. Assim,
avaliamos que ele seria amado por todos que lessem a sua
história e idolatrado como Filho de Deus que veio ao
mundo trazer uma nova mensagem aos homens, foi
498
sacrificado e, depois, ressuscitou e foi elevado aos céus.
Assim, Jesus será mais poderoso que os demais profetas
milagrosos e até mais que Elias que também fez milagres e
foi arrebatado aos céus.
- Eu elaborei uma história de uma mulher adúltera que
estava sendo apedrejada. Jesus, ao ver aquilo, pergunta aos
homens que ali estavam – aquele que não tiver pecado
algum, que atire a primeira pedra.
- Muito bom, muito bom Madalena. Use o seu próprio nome
na história e torne-se uma fiel seguidora de Jesus.
Mostraremos que Jesus respeitava as mulheres.
Ao final, tínhamos escrito mais de 50 parábolas que seriam
a essência dos ensinos dos essênios. Todas estavam repletas
de exemplos simples e normas de conduta que gostaríamos
de ver no mundo. Consta nelas exemplos de compaixão,
amor, perdão tolerância, respeito a propriedade do outro,
uso da inteligência e dos recursos naturais da Terra,
valorização da vida e muitos outros temas que ajudarão o
homem a viver como irmãos. Aprimoramos os textos e
concluímos que 40 parábolas seriam suficientes para
transmitir as mensagens que elaboramos. Foram elas assim
denominadas:
Parábola da Dracma Perdida
Parábola da Figueira Estéril
Parábola da Ovelha Perdida
Parábola da Pérola
Parábola da Rede
499
Parábola da Semente
Parábola das Bodas
Parábola das Dez Virgens
Parábola das Varas da Videira
Parábola do Amigo Importuno a Rogar Por Pão
Parábola do Bom Pastor
Parábola do Bom Samaritano
Parábola do Credor Incompassivo
Parábola do Edificador da Torre
Parábola do Fermento
Parábola do Filho Pródigo
Parábola do Grão de Mostarda
Parábola do Joio
Parábola do Juiz Iníquo
Parábola do Mordomo Infiel
Parábola do Pai que Guarda Coisas Novas e Velhas
Parábola do Perdão às Ofensas
Parábola do Publicano e o Fariseu
Parábola do Rei Pelejando a Guerra
500
Parábola do Rico e Lázaro
Parábola do Rico Insensato
Parábola do Semeado
Parábola do Tesouro Escondido
Parábola dos Dois Filhos
Parábola dos Lavradores Maus
Parábola dos Servos Aguardando o Senhor
Parábola dos Talentos
Parábola dos Trabalhadores e das Diversas Horas de
Trabalho
Parábolas da Bem-Aventurança de Deus
Parábolas da Responsabilidade do Homem
Parábolas da Sensatez e da Oração
Parábolas das Boas Obras
Parábolas das Virtudes
Quando Obadiah chegou a Canopus para ouvir as nossas
histórias, ouviu tudo em silêncio e depois nos disse:
- Eu estou muito orgulhoso de vocês. O que vocês fizeram é
uma obra gigantesca, muito maior do que eu tinha
concebido. Esses livros vão se chamar Evangelhos, que quer
dizer “Boas Novas”. Vocês deverão fazer 7 cópias de cada
um, em cada uma das quatro línguas, aramaico, grego,
501
hebraico e latim. No futuro, quando esses papiros forem
encontrados, verão que se trata dos Evangelhos escritos por
Matias, Marcos, Lucas, João, Pedro, Mateus e Maria
Madalena e irão corroborar as boas novas pregadas pelos
nossos irmãos. Quando estiverem todos prontos e
devidamente protegidos contra a umidade e calor, nós os
colocaremos em potes de cerâmica e os enterraremos em
cavernas. Conheço um lugar perfeito para escondê-los.
Trata-se das cavernas de Qumran, que fica entre Jerusalém e
Jericó. Também levarei alguns pergaminhos para outros
lugares onde dificilmente serão encontrados.
- Mas mestre, se nunca forem encontrados, como as pessoas
saberão dessa história? Como ela será divulgada? indaguei,
curioso.
- Não se preocupe, meu filho. Nós começaremos,
imediatamente, a divulgar essa mensagem. Primeiro de boca
a boca. Um contando para o outro e, em pouco tempo, as
pessoas começarão a acreditar. Os livros servirão para as
gerações vindouras, caso a nossa tentativa falhe.
- Quer dizer que não revelaremos nada no momento?
Indagou, Maria Madalena.
- Não, seria perigoso e perderíamos a credibilidade. Farei
com que umas poucas pessoas saibam que existem esses
pergaminhos e que ele serão ocultos. Dentro de alguns
anos... talvez cinquenta ou sessenta anos, eles
providenciarão para que sejam encontrados casualmente. A
credibilidade ocorrerá quando forem encontrados outros e
mais outros falando sobre a mesma história. Por isso, quero
que revisem tudo, ponto por ponto. Cada um escreverá de
502
memória o que foi acordado, mas lembrem-se de mencionar
os mesmos fatos, porém de outra maneira. Imaginem que
vocês vivenciaram tudo aquilo. Sintam-se parte dos dramas.
Vivam intensamente a história, pois só assim poderão torna-
la crível. O mais importante, porém, é que vocês jurem mil
vezes que jamais contarão esse nosso segredo a quem quer
que seja e sobre nenhuma forma. Se o fizerem, o nosso
plano será completamente desacreditado.
Concordamos com tudo o que o sumo sacerdote essênio nos
dizia.
Nosso povo era mestre na arte de escrever e criar histórias.
E agora nós, os novos escribas, teríamos a honra de
reescrever uma outra história cheia de dramas, paixão,
milagres, sabedoria, compaixão, traição, morte e
ressurreição. Não haveria um deus igual em toda a Terra. O
nosso seria uma mistura de todos eles e a sua pregação teria
o poder de mudar o mundo pelo amor.
Repassamos incontáveis vezes o nosso enredo.
- Depois do nascimento, José e Maria fogem para o Egito e
só voltam para a Judeia depois da morte de Herodes que
queria matar as crianças recém nascidas...
- Mas isso aconteceu com Moisés...
- Exatamente, faremos muitas comparações de Jesus com
Moisés. Precisamos usar a crença que já existe nesses
profetas antigos para que as pessoas acreditem no Messias
como filho de Deus, superior a todos eles.
503
- Vida em família, grande inteligência e depois ele
desaparecerá. Vai estudar com os essênios e depois só volta
aos 30 anos.
- Mas não ficará estranho falar que ele foi estudar com
essênios, se ele já nascera com graça e sabedoria?
- Tem razão, melhor cortar essa parte. Deixaremos esse
período de 17 anos como se ele apenas tivesse ficado por ali
mesmo na cidade onde nascera – disse, Lucas.
- Mas isso não seria contraditório? pois li o seu texto
dizendo que quando Jesus voltou a pregar as pessoas
indagavam se ele era filho de Maria. Ora, em uma cidade
tão pequena como Nazaré, todos o conheceriam, não é? a
menos que ele tivesse ficado muitos anos fora.
- Tem razão, Pedro. Você está certo. Depois farei essa
alteração.
E foi no começo do verão do terceiro ano de trabalho que
terminamos a nossa obra e nos sentíamos orgulhosos dela.
Vez por outra, corrigíamos uma informação, para que todos
os evangelhos formassem um só corpo e não divergissem
entre si. Sabíamos que uma história da qual não existam
testemunhas vivas, ao ser contada por muitas pessoas, era
necessário eliminar ao máximo as divergências, caso
contrário, alguém estaria enganado, mentindo ou sendo
impreciso. Nós tentamos eliminar todas as discordâncias,
por menores que fossem, mas, mesmo assim, não tínhamos
certeza de que nossa história sobreviveria a uma
investigação mais profunda.
504
Quando Obadiah chegou para levar os pergaminhos, nós
estávamos exaustos. Ele nos disse que seria bom se
viajássemos um pouco e depois voltássemos para
Alexandria, pois lá poderíamos viver uma vida mais
adequada aos conhecimentos que tínhamos. Mas destacou
que essa decisão caberia a nós. Poderíamos também nos
tornar líderes itinerantes, proclamadores das boas novas,
divulgadores da história que queríamos que no futuro fosse
comprovada pelos livros que escrevemos.
Pedro decidiu viajar com Maria Madalena. Tudo indicava
que, durante aqueles anos de convívio, eles desenvolveram
um relacionamento que era maior que simples colegas de
trabalho envolvidos em uma obra coletiva. Eu o encorajei a
seguir em frente e eles seguiram para Nápolis, onde
pretendiam viver e ter filhos.
- João, eu tenho uma última tarefa para você na Grécia.
Depois disso, você estará livre. É algo muito importante e
tenho certeza de que você se desincumbirá dela com
eficiência – disse-me, Obadiah.
- Posso saber do que se trata, mestre?
- Não, não pode. Entre nós sempre existirão segredos bem
guardados, portanto, quero que você parta imediatamente
para Atenas. Haverá um navio amanhã cedo. Ao chegar lá,
procure por um homem chamado Archimedes. Não terá
dificuldades para encontrá-lo. Ele te dirá o que precisa
fazer.
Depois daquela tarefa que nos consumiu tantos anos de
esforços, eu me sentia exausto e queria mesmo descansar.
Uma nova tarefa não estava nos meus planos, mas o sumo
505
sacerdote disse que seria a última e eu sentia que devia
aquele favor ao homem que me conduzira tão bem até
aquele dia. Meu coração, apesar de tranquilo e sereno,
estava vazio. Aos 38 anos, era um homem solitário e sem
novos rumos. Ainda não sabia direito o que fazer da minha
vida. Talvez voltaria para o Oriente, para o mosteiro dos
meus irmãos zen-budistas e terminasse por lá os meus dias.
Ou talvez ficasse na Grécia dando aulas para os novos
alunos que chegavam em busca de conhecimento e
sabedoria. Definitivamente, não ficaria na Judeia. Lá não
havia mais espaço para mim, apesar de estar lá a minha
família.
Quando me despedi dos meus irmãos em Canopus e segui
no navio rumo a Grécia, eu me deixei navegar sem qualquer
expectativa. Sentia-me estranhamente vazio, um vazio que
talvez nunca viesse a ser preenchido por nada ou por
ninguém. Um vazio que talvez nem precisasse ser
preenchido.
507
Capítulo XX – Uma Paz Possível
Ao escrever esses pergaminhos contando a história da
criação dos personagens que compuseram o início do
cristianismo, denominação que provém do nome Cristo,
uma adaptação feita ao nome do nosso irmão Crestus, que
deu a vida por nós, para nos manter a salvo, eu fui obrigado
a contar um pouco mais sobre a minha própria história.
Hoje, aos 85 anos, sou um homem que se sente plenamente
realizado, abençoado pela Inteligência Infinita que muitos
chamam de Deus. Constituí uma família composta de 8
filhos e 27 netos. Tive uma companheira paciente, amiga,
compreensiva e carinhosa durante toda a minha vida, o
sonho de qualquer homem. Ela me ajudou a criar os nossos
filhos e me apoiou em todas as minhas empreitadas. É certo
que vivemos viajando de cidade em cidade, de porto em
porto, por muitos anos, sobretudo nos primeiros anos de
vida comum. Qual a razão de vivermos assim por muitos
anos? Precisávamos fugir para nos esconder daqueles que
nos perseguiam.
Os primeiros cristãos, os que seguiram os ensinamentos de
Cristo, desvirtuaram os princípios essenciais do bom viver
que definimos naqueles papiros. Apesar de terem nas mãos
uma boa parte do que denominamos Boas Novas e também
as cartas de Paulo de Tarso, homem que se converteu ao
cristianismo e divulgava a palavra por meio cartas, muitos
ainda achavam que era preciso usar a força bruta e as armas
para enfrentar os romanos.
508
Antes de se converter, Paulo era centurião da guarda
romana e combatia ferozmente aquele movimento que meus
irmãos e eu havíamos desencadeado logo após a
crucificação de Crestus e que ganhou corpo em todas as
cidades importantes como Alexandria, Jerusalém, Roma,
Atenas e tantas outras. O Império Romano, ao perceber que
o povo estava aderindo àquela nova religião a qual
anunciava a vinda de um novo reino, determinou que
fossem mortos todos os que se reunissem para adorar o
novo deus que estava sendo aclamado: Jesus Cristo. Por
essa razão, milhares de pessoas foram perseguidas e tiveram
de se esconder em cavernas e catacumbas em Roma.
Nero foi um dos Imperadores daquela época que combateu
com maior agressividade os cristãos. Ele foi o responsável
pela morte do meu bom amigo Pedro e, posteriormente, pela
de Paulo, os quais, destemidamente, pregavam a chegada de
um reino de paz, de justiça e de amor.
Paulo de Tarso, após se converter, escreveu cartas dirigidas
aos demais líderes que viviam nas várias cidades onde o
cristianismo se propagava, mesmo com a perseguição dos
romanos. Eu mesmo recebi uma cópia de uma das suas
cartas, na qual ele conclamava a todos a buscar o amor,
acima de qualquer coisa. Paulo não queria que os nossos
irmãos lutassem com espadas, mas sim, usassem a palavra
como principal instrumento de mudança. Ele escreveu uma
das mais belas epístolas enviada aos Coríntios que, no
capítulo XIII, dizia:
1 Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos
anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que
soa ou como o sino que tine.
509
2 E ainda que tivesse o dom de profecia, e
conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e
ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que
transportasse os montes, e não tivesse amor, nada
seria.
3 E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para
sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu
corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada
disso me aproveitaria.
4 O amor é sofredor, é benigno; o amor não é
invejoso; o amor não trata com leviandade, não se
ensoberbece.
5 Não se porta com indecência, não busca os seus
interesses, não se irrita, não suspeita mal;
6 Não folga com a injustiça, mas folga com a
verdade;
7 Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.
8 O amor nunca falha; mas havendo profecias, serão
aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo
ciência, desaparecerá;
9 Porque, em parte, conhecemos, e em parte
profetizamos;
10 Mas, quando vier o que é perfeito, então o que o
é em parte será aniquilado.
11 Quando eu era menino, falava como menino,
sentia como menino, discorria como menino, mas,
510
logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas
de menino.
12 Porque agora vemos por espelho em enigma, mas
então veremos face a face; agora conheço em parte,
mas então conhecerei como também sou conhecido.
13 Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o
amor, estes três, mas o maior destes é o amor.
Anos depois, houve o grande massacre de Massada que eu
já relatei no início do meu texto. Foi dele que meu irmão
Calebe conseguiu escapar usando o ardil de parecer ser um
louco e sua vida foi poupada. Calebe nunca desistiu de lutar
por seu povo e acabou sendo morto pelo romanos.
Estive várias vezes visitando os meus familiares em
Cesareia. Depois da morte de Calebe em Jerusalém, meu
irmão Benjamin mudou-se com a família para junto de
nossa irmã Mírian. Foram muitas as oportunidades que tive,
ao longo de muitos anos, de conviver com o que restara de
minha família. Minha mãe, que faleceu em idade avançada
meses depois da morte de Aaron, seu esposo, conservou a
beleza e a mansidão até os últimos dias de vida.
Na Judeia, assim como em todos os outros lugares onde a
semente do cristianismo fora semeada, começava a brotar a
nova religião e, por essa razão, a perseguição aos
proclamadores dela aumentou violentamente.
Certa ocasião, quando eu morava em Atenas, fui informado
por um dos meus irmãos que havia um mandado de busca à
minha casa, pois suspeitavam que eu participara da
elaboração de pergaminhos usados pelos propagadores do
511
cristianismo. E com efeito, eu era sim. Na verdade, grande
parte de todos os pergaminhos que foram transportados nos
navios, dentro de sacos de alimentos, em barris de vinho ou
sob o lastro das embarcações eram feitos por mim.
Lembrava-me sempre do que Obadiah me dizia: Um
escriba, escreve. E foi o que fiz durante toda a minha vida.
Minha amada esposa foi capaz de criar os nossos filhos na
minha ausência quando, recluso, eu passava noites em claro
copiando e reescrevendo aquilo que eu acreditava que
mudaria o mundo de alguma forma.
Essa foi uma das razões pela quais eu fui perseguido. Mas,
sempre contava com a providência divina e amor dos meus
irmãos que me avisavam momentos antes de os romanos
invadirem minha casa para tirar a minha vida e a dos meus
familiares.
Vivíamos aos sobressaltos. No começo, foi fácil, quando só
tínhamos três filhos, mas quando veio o quarto e o quinto,
tornou-se quase impossível correr às pressas, montanhas
acima ou abaixo, para escapar de uma eventual perseguição.
Os nossos filhos foram o motivo para que nos afastássemos
das grandes cidades e buscássemos o sossego das
montanhas, longe de tudo e todos.
Mas, mesmo assim, depois de algum tempo, alguém, por
pura maldade, nos denunciou e outra vez tivemos que fugir
para mais longe de tudo e todos.
Soube que os romanos, ao descobrir quem eram os líderes
do movimento, mandou decapitar no mesmo dia os meus
amados mestres Malachai e Obadiah. Em seguida, pegaram
as cabeças deles e cravaram cada uma em uma estaca e as
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colocaram expostas na principal praça de Roma. Os corpos
foram presos a cavalos e arrastados até nada mais restar. Os
romanos queriam continuar impondo o terror e o controle e
usavam de requinte de crueldade para isso. Mas, com tais
atos, só provocavam mais e mais a revolta popular. Talvez
eu não viva para ver o Império destruído, mas espero que a
luta continue e que, no futuro, meus irmãos consigam
mudar a mentalidade dos imperadores. Por vezes, eu
cheguei a ter visões de que chegaria um dia em que um
imperador romano iria se converter ao cristianismo e ele
mesmo iria ajudar a difundi-lo pelo mundo, com isso, o
nome de Cristo se tornava o mais conhecido por toda a
Terra e a mensagem de perdão, de compaixão e de amor ao
próximo era levada a todos os corações. Quando contava-as
à minha esposa, ela me dizia que tais visões eram só
alucinações de um escriba.
As perseguições que eu sofri não foram somente aquelas
que já relatei. Sofri muitas outras.
Além das perseguições que temos sofrido, soube, depois de
algum tempo, que dentro da fraternidade essênia havia um
grupo dissidente e que alguns deles tencionavam destruir os
pergaminhos que Obadiah havia enterrado em Qram. Só não
o fizeram porque a região era sempre sacudida por grandes
terremotos e, provavelmente, os vasos contendo os
pergaminhos jaziam sob toneladas de pedras e areia.
Se querem saber se fui um homem feliz no meu ofício como
escriba, eu direi que sim. Escrevi muito mais do que jamais
havia sonhado um dia.
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Apesar disso, dentro de mim sempre houve o desejo de
contar mais sobre aquele processo de criação da história do
Messias, na qual participei intensamente. Eu queria, de
algum modo, poder revelar a verdade, acima de qualquer
outra coisa. Mas eu sabia que seria perigoso, se o meu relato
tratando dessa história chegasse ao conhecimento das
pessoas antes de serem divulgados os evangelhos que
Marcos, Mateus, Lucas, João, Pedro e Maria Madalena,
tudo cairia por terra. Nosso trabalho de tantos anos e
esforços teria sido inútil. Mesmo assim, eu resolvi escrever
este pergaminho esclarecedor e decidi que deveria escondê-
lo, da mesma forma como os evangelhos haviam sido
escondidos, talvez até mais oculto que aqueles, para não
correr o risco de ser encontrado antes da divulgação dos
evangelhos.
Esperávamos que os evangelhos fossem encontrados só no
futuro, por acaso, e, assim, confirmariam a história que já
havia circulado de boa em boca, desde a época em que
Crestus fora crucificado, tornando-se um mártir para
muitos.
Assim, iniciei a escrever o meu próprio evangelho.
Diferenciado dos demais, já que não apresenta a mesma
história que meus companheiros de trabalho e eu
escrevemos naquela época. Eu decidi contar o que havia por
trás da história e, por isso, sei que, de certo modo, eu me
tornei um traidor de meus companheiros.
Eu havia jurado que nunca revelaria nada do que havíamos
feito na nossa biblioteca improvisada em Canopus, no
Egito. Agora, depois de tantos anos, eu me vi compelido a
contar toda a verdade e, fazer isso, foi para mim como abrir
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um baú de ossos, fazendo-os ressuscitar, mas, ao final,
sinto-me aliviado.
E agora me pergunto, será que os leitores acreditarão em
mim ou nos outros evangelhos? Se acreditarem, espero não
comprometer o resultado que esperávamos alcançar com a
transmissão das mensagens de amor escritas nos evangelhos
dos meus demais companheiros, os quais espero terem sido
encontrados antes deste meu.
Em qualquer dos casos, será muito difícil alguém conseguir
provar que quem existiu foi Jesus Cristo e não Crestus, pois
não há, até o momento, nenhum outro documento escrito
por romanos, gregos, persas ou judeus, fora da nossa
fraternidade dos essênios, que mencione a existência de
Jesus Cristo.
O que eu realmente desejo é que a verdade seja revelada a
todos os homens e mulheres de boa vontade. Tudo que peço
é que, independentemente das crenças, das religiões e
filosofias que tiverem, abracem com fé a certeza de que só o
verdadeiro amor é capaz de transcender as diferenças, evitar
as guerras e tornar este mundo um verdadeiro paraíso. Sem
o amor autêntico e verdadeiro, viveremos sempre açoitados
de um lado para o outro, como um barco à deriva num mar
de lágrimas e sofrimento.
Eu conheci o amor em todas as suas formas, de mãe, de pai,
de irmãos, de amigos, de protetores, de mestres e de
estranhos. Também conheci o amor incomparável de uma
mulher, aquela que me deu filhos e filhas e me propiciou os
meios para que eu realizasse a minha obra. Mas essa talvez
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seja uma história para eu contar em outra ocasião, se eu
ainda tive tempo.
Quero encerrar meu texto contando como foi a minha
chegada à Atenas, cidade onde anos antes eu estivera
estudando com o mestre Dardanus e para onde retornei,
quando concluímos os trabalhos no Egito.
Ao chegar ao porto da cidade, procurei pelo mestre
Archimedes. Eu estava ansioso para saber qual seria a
última missão que eu teria que realizar em terras tão
distantes. Um moço muito solícito disse-me que me levaria
até a residência do mestre que eu procurava.
Saímos do porto na direção norte da cidade, pela rua Real,
passando pelo templo de Zeus, depois pelo Circus Tholos,
armado permanentemente naquele local. Em seguida,
subimos por uma avenida larga e arborizada, indo em
direção a palacetes localizados na encosta mais ao alto.
Durante a caminhada, de vez em quando eu parava para
olhar para trás e contemplar o mar que ficara às nossas
costas.
O esforço da caminhada foi compensado pela paisagem
magnífica que descortinei lá do alto. O rapaz apontou-me
para uma morada de dois pisos, localizada entre carvalhos e
castanheiras. Era uma mansão ampla, revestida de mármore
branco, tendo ao centro uma torre, da qual imaginei pudesse
oferecer uma magnífica visão do mar lá embaixo.
O mestre Archimedes deveria ser um homem muito rico,
pois suas vestes eram nobres, assim como as joias que trazia
nos dedos, pendurada ao pescoço e nos punhos. O interior
da casa lembrava muito as mansões romanas, que eu
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conhecia tão bem, mas tinha um toque refinado dos gregos,
com esculturas finas, quadros e cortinas de seda. Havia duas
mulheres e um homem vestidos como serviçais sempre à
espera das ordens do patrão.
Ao receber-me, o mestre cumprimentou-me com reverência
extrema e disse-me que eu deveria me sentir em casa.
Instalou-me em um quarto confortável, no andar superior,
de onde eu pude melhor contemplar o mar em toda a sua
plenitude. A vista era privilegiada e eu comecei a gostar
daquele lugar. Seria perfeito para eu continuar escrevendo,
seja sobre qual fosse o tema.
Depois de aceitar o convite para banhar-me na piscina que
ficava no lado oeste da morada, mestre Archimedes disse-
me que eu estava sendo esperado há algum tempo para
realizar uma missão que a ninguém mais seria possível.
- O senhor está me deixando curioso, mestre Archimedes. O
que há de tão importante para eu fazer aqui em Atenas?
- Logo mais a noite você saberá. Temos tempo – disse-me o
mestre, sorrindo e fazendo sinal a uma das serviçais para
que nos servisse suco de frutas e amêndoas.
Mestre Archimedes falava comigo em latim. Conversamos
sobre tudo. A resistência do povo grego à dominação
romana, os filósofos, as pregações sobre as boas novas que
já tinham chegado do além-mar. Falamos até sobre o sexo
dos anjos. Archimedes era um homem espirituoso, bem
falante e de modos gentis.
O por do sol era um espetáculo de rara beleza. Raios
alaranjados do poente escorriam suaves por entre nuvens de
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cetim, emolduradas num céu purpúreo, cálido, despedindo-
se sem pressa da luz do dia, adivinhando a noite que logo
chegaria. Sobre o mar azul-turquesa, baloiçavam, ao longe,
as embarcações cansadas das viagens sem fim. Era esse o
meu por do sol grego. O primeiro dos vários que eu veria
enquanto ali estivesse.
- Papa! Papa!
Ouvi chamar baixinho atrás de mim e, quando me virei, vi
duas crianças, duas meninas de mãos dadas, ambas vestidas
com túnicas azuis. Eram lindas e pareceu-me dois anjinhos
descidos do céu. Calculei que tivessem no máximo 5 anos.
Fiquei surpreso, pois nem sabia que Archimedes tivesse
filhos. Elas, provavelmente, estavam perdidas procurando
pelo pai.
Aproximei-me delas e percebi que eram gêmeas. Agachei-
me e lhes disse que o pai delas não estava ali e que iríamos
procurá-lo. A mansão tinha muitos quartos e eu mal tivera
tempo de conhecer todas as dependências.
Falei em grego com elas, mas pareceram não me entender
direito e sorriram uma para a outra. Eu sabia escrever em
grego, imaginei que minha pronúncia provavelmente era
muito ruim, por isso elas não me entendiam. Tomei-as pelas
mãos e segui pelo corredor que dava para as demais
dependências, chamando por Archimedes. Estranhamente,
ninguém respondeu. Voltei a chamar mais alto e dirigi-me
até ao lugar que parecia ser a cozinha. Lá, provavelmente,
encontraria os empregados, mas não havia ninguém. As
crianças pareciam estar se divertindo.
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- Seu papai parece que não está aqui. Pode me dizer o nome
de vocês? Onde está a mãe de vocês... – perguntei,
soletrando as palavras.
- Meu nome é Mariana – disse sorrindo e mostrando as
janelinhas entre os dentes.
- O meu é Paloma – disse-me a outra, ocultando com a mão
o sorriso.
- Muito bem... Meu nome é Matias. Onde está a mãe de
vocês? Pode me levar até ela?
Ambas puxaram-me pela mão ao mesmo tempo e me
conduziram por uma porta. Quando abri e passei por ela, as
meninas a fecharam atrás de mim, deixando-me diante de
uma escada em caracol, o caminho para a torre.
Minhas pernas estavam trêmulas quando eu comecei a subir
por aquela escada que me fazia lembrar com absoluta
nitidez o que tinha acontecido há muitos anos atrás. Era
incrível a semelhança entre aquele lugar e a casa das
Virgens Vestais, onde eu conhecera Ariam de Glimeu.
Quando quase chegava ao topo, imaginei que estava lá em
Roma, como fazia sempre ao fim do dia, indo encontrá-la,
linda, vestida em uma túnica branca, esvoaçante, de braços
abertos à minha espera. Por isso, antes de alcançar o último
degrau, fechei os olhos e terminei a subida desse modo.
Não sei por quanto tempo fiquei ali de olhos fechados,
sentindo a brisa tocar meu rosto. A lembrança daquele
tempo que vivi com Ariam e que eu já havia sepultado junto
com suas cinzas, voltaram com força. Eu agora podia
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compreender a razão de estar ali. Era uma obra de Malachai
ou Obadiah que, sabendo da minha solidão, enviara alguém,
uma mulher, provavelmente uma viúva com duas crianças,
para que eu cuidasse delas como a minha última missão.
Planejaram meticulosamente tudo. Provavelmente, Pedro,
quando ficava a sós com Malachai em nossa casa em
Canopus, deve ter contado a ele tudo o que se passara
comigo quando estive na casa das Vestais. Não existe
segredo quando mais de uma pessoa o conhece. Eu não
sabia se estava preparado para essa última missão. Ainda de
olhos fechados, eu sentia que havia uma mulher ali. Não
sabia quem seria essa mulher, mas havia ali um mistério... o
perfume era o mesmo que Ariam usava. Como Pedro ou
Malachai poderiam saber qual era o perfume dela, se eu
nunca lhes havia mostrado?
Quando abri os olhos, descobri que Ariam de Glimeu, como
a fênix da mitologia grega, havia ressurgido das cinzas.
Não é possível descrever em palavras a sensação daquele
abraço. Nem em mil papiros eu seria capaz de escrever as
emoções que sentimos naquela tarde. Só paramos de nos
beijar e abraçar, quando percebemos que havia mais pessoas
nos olhando. Mestre Archimedes e minhas duas filhas.
- Eu.. eu não consigo entender, meu amor. O que
aconteceu? Como foi possível você ficar longe de mim
tanto tempo? – indaguei confuso, querendo ter certeza de
que era ela, a mulher que eu julgava morta, queimada em
um claustro há muitos anos.
- Tenha calma, meu amado... eu te contarei tudo. Temos
tempo agora. Temos muito tempo. Primeiro tenha certeza de
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que isso não é um sonho e me beije outra vez. Tenho
saudades desses seus lábios carnudos e macios.
Nos beijamos outra vez. Archimedes decidiu levar as
crianças para baixo.
- Quando você partiu naquele dia para Alexandria, eu tinha
certeza de que estava grávida. Meu corpo estava me dando
sensações muito estranhas e eu sabia que logo seria
descoberta. Eu sabia que precisava de mais oito anos até
completar a idade de 30 anos e assim quebrar meu voto
como Vestal. Grávida, eu seria enterrada viva com nossas
filhas e você jamais saberia. Tomei a decisão de simular a
minha morte. Você se lembra de que Flávia havia se
suicidado?
- Ela realmente se suicidou? – indaguei.
- Na verdade, eu também acho que não. Creio que ela foi
envenenada por uma colega que queria muito ocupar o meu
lugar e era inimiga mortal de Flávia. Essa colega era Lucila
de Galeso. Eu contei a ela o que tinha acontecido entre nós
e que tinha sido ameaçada por Flávia. Lucila disse que
tomaria as providências. E, no dia seguinte, Flávia foi
encontrada morta.
- Eu me sinto envergonhado agora por ter pensado mal a seu
respeito.
- Eu já o perdoei, Matias. Eu também não poderia afirmar
nada, pois Lucila nunca confessou ter matado Flávia. Mas
ela foi muito generosa comigo, ao me ajudar no meu plano
de fuga. Durante a noite, retiramos o corpo de Flávia que
estava embalsamado na cripta da casa. Levamos o corpo
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para o claustro, colocamos meus anéis e braceletes que não
seriam derretidos com o calor e ateamos fogo no quarto.
Durante a confusão do incêndio, eu fugi a cavalo no meio
da noite.
- Que escape perfeito, meu amor. E para onde você foi?
- Meu tio-avô foi informado de que eu escaparia e
organizou a minha fuga para a Síria... Lá eu estaria segura
com outros familiares e, definitivamente, livre da punição
por ter violado meus votos e também não mais o envolveria
nisso. Afinal, meu tio iria precisar de você para
desempenhar uma grande missão, como ele me disse. Essa
casa é um presente dele e de Obadiah, para você.
Archimedes é o meu tutor aqui na Grécia e esperava a sua
chegada para se mudar. Apenas os empregados ficarão para
nos auxiliar no que precisarmos.
- Seu, tio? E quem afinal é o seu tio?
- Você nunca desconfiou? Malachai é o meu tio-avô.
- Que miserável! Como pude ser enganado tanto tempo.
- Malachai ama você Matias e sabia que você faria qualquer
coisa para estar comigo, por isso nada lhe contou, porque
sabia que, se o fizesse, você até desistiria da sua missão.
Mas não pense que ele não esteve te vigiando todo o tempo.
Qualquer mulher que se aproximasse de você seria
eliminada.
- Eu jamais entregaria meu coração para outra mulher,
Ariam, pois ele sempre esteve preenchido por você.
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- Você é um mentiroso muito convincente... eu vou levar
uns 40 anos para acreditar nisso...
- Espero que só se convença quando já tivermos 80 anos
vivendo juntos... assim não terá mais dúvida e teremos
vivido bastante.
Essa é a primeira parte do relato que eu queria terminar. Se
tiver forças, pois, como já disse, sou uma ancião e ainda
tenho muita coisa para fazer, prometo escrever como foi a
minha vida ao lado dessa mulher que me deu mais 6 filhos e
viveu ao meu lado os melhores e mais fantásticos dias de
minha vida. Também espero poder contar a razão pela qual
inclui meu nome nos Evangelhos como Matias, o escolhido,
que assumiu o lugar de Judas no grupo de apóstolos. Digo-
lhes, também, que fui o autor de um livro de revelações ou
Apocalipse.
Quanto às personagens que mencionei, com as quais você se
comoveu, ou das quais você sentiu raiva, desprezo, sorriu e,
até mesmo, as amou, durante os meus relatos, você sempre
terá dúvida se elas de fato existiram ou não. Isso importa?
Sobre o Autor:
Mathias Gonzalez, brasileiro, naturalizado australiano, é Mestre
em Tecnologia da Comunicação e Informação, Psicopedagogo,
Especialista em Educação a Distância, Psicólogo Clínico e
Escolar. Sua obra voltada para temas motivacionais,
educacionais, psicológicos e ambientalistas alcança a marca de
140 livros publicados no Brasil e exterior. Durante muitos anos
vem estudando as filosofias orientais e decodificando-as para o
Ocidente, tornando possível a qualquer pessoa entender e praticar
os ensinamentos dos grandes mestres.
Contato com o autor:
e-mail e MSN: [email protected]
https://clubedeautores.com.br/authors/42814