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O LITORAL NEGRO DO RIO GRANDE DO SUL, DURANTE O
SÉCULO XIX: REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO DE QUILOMBO
Claudia Daiane Garcia Molet (UFRGS)
Resumo:
A faixa de terras compreendida entre a laguna dos Patos e o Oceano Atlântico apresentou
quilombos desde a primeira metade do século XIX. Nesta comunição, defendo a ideia de que
há um “litoral negro” que interliga diversos quilombos e proponho o estudo dessas relações
entre os quilombos, de modo a discutir seu próprio conceito que vai além das linhas físicas
dos mocambos, mas estendendo-se para outras comunidades. Para isso, analisarei o quilombo
de Casca localizado em terras que no século XIX faziam parte de São José do Norte. Esta
comunidade foi formada na primeira metade do século XIX, a partir da conquista de terras e
de liberdade. Desse modo, tal comunidade não é compreendida pelo conceito clássico de
quilombo caracterizado pela fuga e pelo isolamento e sim pelos os estudos sobre escravidão e
liberdade que percebem as diversas formas de agências dos personagens sociais, para além da
resistência.
Palavras-chaves: Quilombo; Rio Grande do Sul; “Litoral negro”.
Resumen:
La porción de tierra entre la Laguna de los Patos y el Océano Atlántico presentó quilombos
desde la primera mitad del siglo XIX. En esa comunicación, defiendo la idea de que existe un
“litoral negro” que interconecta diversos quilombos y propongo el estudio de esas relaciones
entre ellos, de modo, a discutir su propio concepto que va más allá de las líneas físicas de los
mocambos pero se extiende para otras comunidades. Para eso, analizaré el “Quilombo de
Casca”, ubicado en tierras que, en el siglo XIX, hacían parte del actual municipio de “São
José do Norte”. Esa comunidad fue formada en la primera mitad del siglo XIX, a partir de la
conquista de tierras y de libertad. De ese modo, no se caracteriza por el concepto básico de
quilombo fundado en la fuga y en el aislamiento pero en nuevos presupuestos que llevan en
cuenta principalmente los nuevos estudios sobre esclavitud y libertad y las diversas formas de
agencias de los personajes sociales.
Palabras clave: Quilombo, Río Grande del Sur, Litoral Negro.
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Aproximação do objeto:
A pesquisa que estou realizando no doutorado tem como problemática analisar as
estratégias de manutenção de terras em três comunidades remanescentes de quilombos,
localizadas no litoral do Rio Grande do Sul: Casca, Limoeiro e Teixeiras, durante o século
XX. O interesse pela temática surgiu, em 2008, durante minha participação no relatório sócio,
histórico e antropológico que visava a titulação definitiva das terras da comunidade
remanescente de quilombola do Limoeiro, localizada no distrito de Bacupari, em Palmares do
Sul. O relatório foi realizado a partir do convênio entre o Instituto de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA) e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), coordenado pelo
antropólogo José Carlos Gomes dos Anjos. Nesta ocasião, atuei como bolsista de história
juntamente com a historiadora Márcia Naomi Kuniochi, da Fundação Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (FURG), desse modo, tive a oportunidade de realizar entrevistas e
coletar documentações, juntamente com o restante da equipe. O relatório do Limoeiro (2009)
apontou para parentescos e compadrios desta comunidade com a, de Casca, além disso,
demonstrou que havia também parentescos entre os primeiros sesmeiros da região.
O recorte temporal da tese, embora, abranja o século XX, retoma o século XIX,
especialmente por que acredito que as investigações sobre comunidades quilombolas
necessitam e permitem estes vais e vens. Para esta comunicação, retomo então ao século XIX
e a cidade de São José do Norte, localizada no Rio Grande do Sul, que foi fundada
estrategicamente, por portugueses, no século XVIII, às margens da laguna dos Patos e do
Oceano Atlântico, no litoral da província. Tal fundação fez parte do “jogo de xadrez”
realizado entre portugueses e espanhóis na luta pela conquista de terras no Brasil Meridional,
onde a linha de fronteira de cada império sempre foi muito tênue, já que os portugueses
avançavam consideravelmente, visando aumentar suas possessões. Por São José do Norte
passava o Caminho das Tropas, ligando o Brasil ao Uruguai, construído na segunda metade
do século XVIII, que possibilitou a existência de uma série de tropeiros pela região.
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Defendo a ideia de que há na região que pesquiso um “litoral negro” que interliga
diversos quilombos e proponho o estudo dessas relações, para discutir o conceito de quilombo
que vai além das linhas físicas dos mocambos, mas estendendo-se para outras comunidades.
Para isso, analisarei a comunidade de Casca, localizada em terras que no século XIX faziam
parte de São José do Norte, considerando suas interligações com as comunidades vizinhas de
Teixeiras e do Limoeiro. Vale ressaltar que esta é uma aproximação ainda recente com a
temática proposta e, portanto lanço aqui uma série de hipóteses baseadas em fontes, mas
também nos relatórios sócio histórico e antropológico das comunidades de Casca e de
Limoeiro.
Nesta comunicação, optei por inicialmente refletir sobre as ressemantizações do
conceito de quilombo, ciente que não esgoto todas as vertentes das discussões, mas com o
objetivo de pensar de que maneira minha pesquisa dialoga com determinados pressupostos e
onde se encaixa minha contribuição ao tema. Sigo meus apontamentos analisando o “litoral
negro” que considero como um recorte espacial e principalmente como um conceito que uso
para pensar as diversas experiências quilombolas no litoral e no caso específico desta
comunicação, pensar na hipótese de que as relações entre diferentes quilombos, comumente
narradas pelos quilombolas na atualidade, podem ter surgido no século XIX, sendo
fortalecidas no século XX, época em que foi preciso acionar estratégias para manutenção das
terras que os quilombolas adquiriram ainda durante a escravidão.
Ressemantizações do conceito de quilombo
Com o artigo 68 da Constituição de 1988 e posteriormente com o decreto de 2003, a
temática quilombola tornou-se frequente no meio acadêmico, político, jurídico e social,
entretanto, não há uma unanimidade para o conceito de quilombo, ao contrário, elenco três
perspectivas para refletir nesta comunicação: “quilombo clássico”, “quilombo abolicionista” e
“quilombo ressemantizado”.
A definição clássica de quilombo está ligada à noção de fuga, de isolacionismo e tem
no quilombo de Palmares o seu ápice. Almeida (2002, p. 47-51) afirma que no Brasil, no ano
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de 1740, o Conselho Ultramarino português usava a seguinte definição de quilombo: “toda
habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não
tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele”. Já no Período Imperial, o número de
fugitivos que formavam um quilombo diminuiu para dois ou três escravos fugitivos. Para o
autor a designação de quilombo utilizada durante o Período Colonial possuía cinco elementos:
a fuga; o número mínimo de fugitivos; o isolamento geográfico; o rancho como espaço de
moradia e por ultimo o auto consumo e a reprodução, representados pelo uso de pilão. Porém,
o autor argumenta que esta definição não condizia com a realidade do período, visto que o
quilombo era uma unidade produtiva com roças e benfeitorias baseada no trabalho familiar e
em diversas formas de cooperação entre as diferentes famílias, bem como não eram isolados,
pois realizavam o comércio com outras regiões.
É interessante perceber que os conceitos de quilombos utilizados respectivamente no
Período Colonial e Imperial não condiziam, pelo menos em muitos dos casos, com as
experiências daquela época. Tal afirmação é corroborada por Gomes (2006, p. 25-45) ao
apontar a existência de um “campo negro” 1, onde os quilombos não eram isolados, ao
contrário, localizavam-se as margens de rios e mantinham intensas trocas com a população ao
redor.
Ainda no período da escravidão, alguns autores assinalam para a existência do
“quilombo abolicionista” caracterizado pela presença de abolicionistas que teriam
influenciado os escravos a organizarem tais redutos. Os quilombos do Leblon e do Jabaguara,
ambos localizados no Rio de Janeiro, são ilustrativos deste contexto. Segundo o historiador
Eduardo Silva (2003) a crise final da escravidão teria dado lugar a um novo modelo de
quilombo, o abolicionista. Enquanto no modelo tradicional havia o “quilombo-rompimento”
em que predominava a política do esconderijo e do segredo de guerra, no quilombo
abolicionista existia um novo modelo de resistência em que as lideranças eram muito bem
conhecidas além de articuladas politicamente e, por isso faziam a intermediação entre os
fugitivos e a sociedade ao redor. Silva destaca que a existência de quilombos completamente
1 Discutirei sobre o “campo negro” na sequência da comunicação.
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isolados foi rara, já que os mesmos mantinham relações com outros grupos sociais, porém
afirma que no caso do quilombo abolicionista os contatos eram muitos e essenciais para a
manutenção do Jabaquara e do Leblon, para citar aqueles que foram analisados.
O quilombo do Leblon foi uma iniciativa do português José de Seixas Magalhães que
tinha uma chácara no Leblon onde cultivava flores com o auxílio de escravos fugidos, para
Eduardo Silva este quilombo era simbólico e produzia objetos simbólicos, pois plantavam
camélias que eram o símbolo do movimento abolicionista. Já no quilombo do Jabaquara, os
quilombolas teriam erguidos suas residências com dinheiro coletado entre “pessoas do bem” e
comerciantes. Eduardo Silva afirma que o Jabaquara foi uma das maiores colônias de
fugitivos da história. Maria Helena Machado (2007) questiona sobre a possibilidade do
Jabaquara ser um quilombo, afirma que Eduardo Silva aponta para a importância política
tanto do quilombo do Leblon quanto, do Jabaquara, assegura ainda que para tal autor existiria
o quilombo de resistência e o quilombo abolicionista, este ultimo, um quilombo simbólico.
Maria Helena não concorda com os argumentos de Silva e interroga sobre a produção das
camélias, no Leblon, realizadas pelos escravos fugidos bem como sobre a organização interna
do quilombo e a existência ou não de autonomia dos escravos. Sobre a autonomia argumenta
que embora o conceito de quilombo tenha sofrido reviravoltas a questão da autonomia
permaneceria central para que se percebam as diversas formas de resistências.
Buscando uma conclusão sobre o status de Jabaquara, Maria Helena Machado (2007)
dialoga com João José Reis que ao investigar o Quilombo do Oitizeiro na Bahia, durante o
século XIX, nota que mesmo localizado num sítio de proprietários particulares, havia modos
alternativos para que os escravos gozassem de autonomia. Após estas reflexões baseadas em
Silva e Reis a autora conclui que talvez os quilombolas do Jabaquara tivessem alguma
autonomia como em Oitizeiro e sugere o termo “brecha de quilombo” como uma tentativa de
descrever a situação em Jabaquara. Porém, interrogo: o que seria essa brecha? Significaria que
dentro do Jabaquara haveria um espaço quilombola de resistência? Desse modo, todo o
Jabaquara não seria um quilombo na concepção de Maria Helena Machado, mas somente
existiria uma brecha quilombola. Entendo que a autora ao buscar as experiências dos
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quilombolas, não reflete sobre outras ações dos escravos fugidos, tão importantes quanto as
resistências.
Seguindo a explanação sobre o conceito de quilombo, trago algumas reflexões
ocorridas após a abolição da escravatura. Com a lei de 13 de maio de 1888, a mão de obra
escravizada oficialmente, deixou de existir, todavia o negro continuou a carregar o estigma da
cor e da condição de ex-escravo ou descendente de cativos. Segundo Almeida (2003, p. 53),
na legislação republicana os quilombos não foram citados, pois se acreditava que com o final
da escravidão eles teriam desaparecidos automaticamente, visto que não havia mais razão de
existir. “Constata-se um silêncio nos textos constitucionais sobre a relação entre os ex-
escravos e a terra, principalmente no que tange ao símbolo de autonomia produtiva
representado pelos quilombos.”
Somente, no centenário da abolição da escravatura foi aprovado o artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT da Constituição Federal de 1988 que
estabeleceu que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando
suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos
respectivos”.2 O artigo 68 suscitou algumas indagações relativas à identidade dos
remanescentes dos quilombos e ao uso do próprio conceito de quilombo para designar as
comunidades negras, na atualidade. Hebe Mattos (2005, p. 106) afirma que “as terras de
pretos” surgiram a partir do rompimento do silêncio, pois colonos e posseiros começaram a
lutar pelas terras que estavam ameaçadas pelos processos de modernização do século XX.
Desse modo, houve uma identificação primeiramente de “pretos” e depois de quilombolas,
tornando-se sujeitos políticos coletivos. “Tanto o silêncio sobre a cor como ética social,
quanto sua reivindicação (...) são frutos diferentes da presença difusa do racismo na sociedade
brasileira em suas complexas relações com a memória do cativeiro.”
Para a antropóloga Ilka Boaventura Leite que invisto também a comunidade de Casca
(2000, p. 341) “a noção de remanescente, como algo que já não existe ou em processo de
desaparecimento, e também a de quilombo, como unidade fechada, igualitária e coesa, tornou-
2 CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm Acesso em 13 Out. 2011.
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se extremamente polêmica”, na atualidade. Porém, o conceito de quilombo que permanecia
era o de Palmares considerado como uma unidade guerreira, autossuficiente e isolada. Diante
desses impasses a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) foi chamada pelo Ministério
Público para dar seu parecer em relação aos quilombos. Em 1994, foi elaborado um conceito
de remanescente de quilombo que não estava relacionado com resíduos arqueológicos de
ocupação temporal ou de comprovação biológica. Ao contrário, este novo conceito tratava o
quilombo como contemporâneo, dinâmico, organizacional e relacional.
Depois de constatada a realidade das comunidades negras rurais e a partir das pressões
do Movimento Negro3, no ano de 2003, foi aprovado o decreto federal 4.8874 que determinou
que os remanescentes de quilombos fossem aqueles grupos étnico-raciais, segundo critério de
auto-atribuição e que tivessem uma trajetória própria. Além disso, deveriam possuir relações
territoriais específicas, bem como ter uma ancestralidade negra que fosse relacionada com a
resistência a uma opressão histórica sofrida. Com este decreto ficaram evidentes algumas
especificidades para uma comunidade ser considerada como quilombo: ancestralidade negra,
territorialidade e resistência histórica.
São dessas novas concepções que surge o conceito ressemantizado de quilombo,
Arruti (2006) aponta três paradigmas que estão inseridos neste contexto: remanescentes, terras
de uso comum e etnicidade. O primeiro paradigma “remanescente” foi o mesmo termo
utilizado anteriormente para designar os índios do nordeste, já que havia a necessidade de
nomeá-los para torná-los “visíveis” e “aceitáveis”. Segundo o autor, o termo proporcionou aos
índios e aos negros a ocupação de um novo lugar na relação com seus vizinhos, inclusive na
política local, no imaginário social e no seu próprio imaginário. Além disso, “no artigo 68, o
termo remanescentes também surge para resolver a difícil relação da continuidade e
descontinuidade com o passado histórico, em que a descendência não parece ser um laço
suficiente”. (ARRUTI, 2006, p. 81) O segundo paradigma “terras de uso comum”, aponta
para a territorialidade e apresenta uma série de variações de nomenclaturas de acordo com as
3 Sobre o Movimento Negro ver Alberti (2007). 4 DECRETO Nº 4.887, DE 20 DE NOVEMBRO DE 2003. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm. Acesso em agosto de 2011.
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diferentes autorrepresentações e autonominações dos segmentos camponeses: Terras de
Santo, Terras de Índios, Terras de Parentes, Terras de Irmandade, Terras de Herança, Terras
de Preto. E, o terceiro paradigma “etnicidade” possibilita uma fuga do modelo tradicional de
quilombo de Palmares, com isso há novas dimensões para a designação do quilombo que
abandona a ideia de raça e de quilombos históricos com o uso do étnico. Essa ressemantização
opõem-se à posição primordialista que considera o quilombo um ícone da consciência e da
cultura negra e vê no artigo 68 uma reparação histórica devido à escravidão.
Entre as várias polêmicas do que é o quilombo e de quem são os remanescentes dos
quilombolas, surge a noção de “quilombo ressemantizado”. Porém, defendo que este
quilombo dialoga com as experiências da escravidão e com todas as formas de descriminação
e expropriação sofridas pelos quilombolas tanto no período da escravidão quanto no pós-
abolição. Dialogo com o quilombo ressemantizado e com as reflexões de Arruti, mas também
proponho uma análise das experiências no século XIX, para que se possam investigar que
muitas das experiências contemporâneas dos quilombolas podem ter sua origem ainda na
época da escravidão. Não pretendo limitar a questão quilombola para o século XIX, pois daí
estaria dialogando com o quilombo clássico ou histórico, mas indicar um diálogo entre as
experiências do século XIX e no caso da minha pesquisa, do século XX. Nas comunidades
que pesquiso, atualmente há muitas reuniões entre os quilombolas do litoral em busca de seus
direitos, como melhor moradia, saúde, educação, auxílios específicos para as atividades rurais
das comunidades. Todavia, embora estas reuniões sejam contemporâneas, nas narrativas dos
quilombolas estão presentes as histórias dos parentescos, dos compadrios, das solidariedades
e dos compartilhamentos de práticas culturais que remetem a outras gerações e a outras
vivências. Estas interligações no “litoral negro” também são apontadas por outros autores,
conforme irei demonstrar no decorrer de minhas reflexões.
O “litoral negro” do Rio Grande do Sul
O recorte espacial dessa reflexão é a faixa de terras situada entre a laguna dos Patos e
o Oceano Atlântico onde se encontram oito comunidades remanescentes de quilombolas,
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reconhecidas pela Fundação Palmares, distribuídas em quatro municípios, conforme segue:
Vila Nova, em São José do Norte5; Capororocas, Anastácia Machado e Vó Marinha, em
Tavares; Casca, Teixeiras e Colodianos em Mostardas e Limoeiro em Palmares do Sul. Destas
comunidades, apenas Casca tem a titulação definitiva de suas terras, conquistada no ano de
2010. A comunidade do Limoeiro aguarda o processo da titulação, pois seu relatório foi
concluído em 2009, as demais, ainda esperam a visita das equipes que irão elaborar os
relatórios sócio, histórico e antropológico. É bem provável que tais comunidades, ou ainda
alguns de seus membros, mantêm laços de parentescos, compadrios e compartilhamentos de
práticas culturais. Por isso, defendo a existência de um “litoral negro” minha hipótese é de
que ele tenha surgido ainda no século XIX, época da conquista de terras e liberdades de
alguns ancestrais quilombolas. A imagem 1, a seguir, demonstra a localização do litoral no
Rio Grande do Sul e a imagem 2, situa as comunidades quilombolas litorâneas.
Imagem 1. Mapa do Rio Grande do Sul6
Imagem 2. Comunidades do litoral do Rio Grande do Sul7
5 São José do Norte emancipou-se da cidade do Rio Grande no ano de 1831. Aos poucos as demais localidades
foram se desmembrando. Mostarda emancipou-se de São José do Norte em 1963 e, Tavares foi criado em 1982,
quando se emancipou de Mostardas. E, o município de Palmares do Sul foi criado em 1982 sendo originário de
Mostardas, Osório, Tramandaí e Viamão. 6 Fonte: https://maps.google.com.br.
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Outras reflexões corroboram a existência desse “litoral negro”, pois esta afirmação
embasa-se também nos seguintes estudos: Leite(2004) que elenca parentescos entre as
comunidades de Teixeiras e de Casca, nos séculos XIX e XX; Bittencourt (2006) que
menciona os relatos sobre deslocamentos de quilombolas do litoral para a realização do
Quicumbi8; Prass (2013) que sugere uma rede de congadas, formada também por estes
mocambos do litoral, com circulação de atores sociais (algumas vezes conectados por redes
de parentescos e compadrios), de bens simbólicos e materiais; Silva (2007) que destaca os
parentescos e compadrios; Ramos (2011) que afirma a existência de uma série de
solidariedades entre as comunidades, seja para a execução da lide rural, para encontros
religiosos ou também na troca de benzedeiras e parteiras; o relatório para titulação da
comunidade do Limoeiro (2009) que traz as narrativas dos quilombolas sobre os parentescos
no litoral e os deslocamentos dos quilombolas para festas, como casamentos ou Ensaios de
Promessa Quicumbis, ou ainda em busca de serviço e moradia e também quando alguns
desempenhavam a atividade de tropeiro e portanto, o vai e vem era constante.
7 Fonte: https://maps.google.com.br. Os pontos vermelhos foram colocados para elucidar a localização das
comunidades remanescentes de quilombolas da faixa de terras entre a laguna dos Patos e o Oceano Atlântico. 8 Para Prass (2013) o Quicumbi juntamente com o Maçambique e o Ensaio de Promessa existe no Rio Grande do
Sul desde o final do século XIX, como sotaque de Congada, ou seja, são rituais afro-católicos de devoção a
Nossa Senhora do Rosário e a São Benedito, realizado por africanos e seus descendentes que podem ou não
incluir a coroação do Rei Congo e da Rainha Ginga.
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Daí se aplica ao caso, o conceito de “litoral negro”, uma localidade marcada pela
presença de diversas comunidades quilombolas, interligadas por laços de amizades,
parentescos, compadrios e práticas culturais, muitas delas, possivelmente surgidas no século
XIX, redefinidas e reforçadas durante o século XX. Flavio Gomes (2006, p. 25-45) utiliza
“campo negro”, logicamente que em outro contexto, pois aborda o século XIX, a partir de
uma perspectiva de quilombo como sendo um núcleo formado com as fugas de escravos,
embora não dialogue com a definição clássica de quilombo marcado pelo isolacionismo, ao
contrário, defende que durante o século XIX, havia uma “hidra9 no recôncavo da Guanabara”,
quase que indestrutível. Essa “hidra” mantinha relações econômicas e pessoais com outros
mocambos, comunidades de senzalas, taberneiros e até com as autoridades locais. Para o
autor, existia um “campo negro” que seria uma complexa rede social, constituída por lutas e
solidariedades entre quilombolas, mas também entre cativos, libertos e outros trabalhadores
das localidades próximas.
O “campo negro” de Gomes formado por diferentes agentes sociais pode ser utilizado,
ressalvadas as peculiaridades e apontando as recorrências, para se pensar as comunidades
quilombolas que surgiram no século XIX, marcadas não pelo isolacionismo, mas por
interligações entre elas, com relações sociais entre escravos de senzalas vizinhas, outros
núcleos de libertos e ainda vizinhos. O “litoral negro” desse modo, dialoga com o “campo
negro” de Gomes na medida em que ele surge no século XIX, a partir de relações sociais entre
escravos, libertos e livres. Esse vai e vem de escravos em fuga, ou quiçá de libertos em busca
de um novo lugar para viver, pode ter ocorrido por terra, já que por São José do Norte passava
o Caminho das Tropas, ligando o Brasil ao Uruguai, construído na segunda metade do século
XVIII, que possibilitou a existência de uma série de tropeiros pela região e juntamente com
estes a circulação de ideias e de pessoas. Escravos e forros, mesmo que residissem longe,
poderiam manter contatos com senzalas, mocambos e demais libertos, pois havia a
possibilidade de mandar e receber informações pelos tropeiros.
9 O termo hidra tem sua origem na Grécia e dava nome a um dragão que tinha inúmeras cabeças e que era
invencível. (GOMES, 2006)
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Hamaister (2002) em sua dissertação de mestrado em história destaca que pela faixa de
terras compreendida entre a laguna dos Patos e o Oceano Atlântico passava o caminho das
tropas que ligou a Vila de Laguna à Colônia do Sacramento, construído na segunda metade do
século XVIII. Para a autora este caminho além de unir geograficamente os pontos de
atividades de pouso, invernada e comércio de animais, que se situavam ao longo do seu
trajeto, também propiciou a aproximação das pessoas que habitavam os povoados que
começaram a ter um fluxo sazonal de peões, condutores, comerciantes, tratadores e
amestradores de animais.
Este “litoral negro” está situado entre Rio Grande e Porto Alegre, dois polos
importantes durante o século XIX, pois foram localidades destacadas pelo porto marítimo que
era escoadouro de grande parte da produção de charque de Pelotas e pela sede da capital da
província do Rio Grande do Sul, respectivamente. Além disso, pela laguna dos Patos chega-se
até a cidade de Pelotas cuja mão de obra escrava foi abundantemente utilizada nas
charqueadas. Pensando nestas ligações com estes três lugares é possível arguir que os
moradores de São José do Norte e entre eles os quilombolas, poderiam manter contato com
aquelas populações, sendo quiçá uma rota de fuga de escravos. Leite (2004) cogita a
possibilidade da comunidade de Casca, durante o século XIX, ter sido uma importante rota de
fuga, especialmente para os escravos fugidos das charqueadas pelotenses.
Antes de adentrar nas experiências quilombolas, é importante investigar a população
da localidade, embora os censos sejam dados questionáveis, vou utilizar para esta
comunicação dois censos populacionais de São José do Norte para a segunda metade do
século XIX. Segue o quadro 1, com a população de São José do Norte em 1858 e o quadro 2,
com a população em 1872.
Quadro 1. População de São José do Norte e do Estreito no ano de 1858
Localidade Livre Liberto Escravo Total
São José do Norte 1902 65 1024 1972
Fonte: AHRS. Fundo: Estatística, Códice I.
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Quadro 2. População de São José do Norte em 1872
População Branco Pardo Preto Caboclo Total
Homem Mulher Homem Mulher Homem Mulher Homem Mulher
Livre 690 641 97 182 46 52 10 02 1720
Escravo - - 56 50 164 141 - - 411
Total 690 641 153 232 210 193 10 02 2131
Fonte: Recenseamento do Rio Grande do Sul (1872). Disponível em:
https://archive.org/details/recenseamento1872rs. Acesso em 30 de março de 2014.
De acordo com os quadros referentes a São José do Norte, nota-se que durante as
décadas de 1850 e 1870 a população era pequena, havendo inclusive um decréscimo
populacional em 1872, quando comparado com 1858. O quadro 1 demonstra que mais da
metade dos moradores eram escravos, que possivelmente trabalhavam nas lides campeiras
comuns na região. Aliás, ainda na atualidade, a área rural da faixa de terras que pesquiso é
muito maior que a zona urbana. Voltando ao censo de 1858, há um pequeno número de
libertos nos dados, no entanto, vale ressaltar que Leite (2004) apontou para a conquista de
liberdade e, às vezes, de terra, no período em 1815 e 1830, na região. Considerando esta
afirmação talvez o número de libertos pudesse ser maior do que aquele que foi apontado.
Quanto se compara o número da população de São José do Norte com dados do mesmo censo
para a cidade vizinha de Rio Grande, indico que a mesma apresentava 19.872 moradores,
destes 4.369 eram escravos. Concluo afirmando que comparado com Rio Grande, São José do
Norte apresentada uma quantidade significativa de escravos, quando se considera sua
população total. No quadro 2, o número de escravos diminui consideravelmente, não é
possível identificar os libertos que possivelmente foram computados com os livres. Talvez a
quantidade significativa de escravos para a região, quando analisado juntamente com a
população total tenha possibilitado a formação de diversos núcleos familiares, que hoje
formam as comunidades quilombolas.
Para além das fronteiras: as tramas e os laços quilombolas
Inicialmente destaco que meus apontamentos, neste tópico, serão realizados
principalmente a partir dados coletados de Casca e do Limoeiro, visto que nestas
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comunidades minha pesquisa mais se deteve até o momento, especialmente pela participação
no relatório sócio histórico e antropológico do Limoeiro e pelos relatórios sócio, histórico e
antropológico das duas comunidades. Meu foco, nesta comunicação são as interligações das
três comunidades, tomando como ponto de partida a comunidade de Casca.
Os proprietários das terras que posteriormente originaram Casca e Limoeiro eram
oriundos da cidade do Rio Grande, localizada do outro lado do município de São José do
Norte, sendo necessária a travessia pela laguna dos Patos. A sesmaria da Charqueada, em
Palmares do Sul, tinha como proprietário o tropeiro Manoel Jorge da Silva, marido de Mônica
Pereira de Souza. A irmã de Mônica, Quitéria Pereira do Nascimento, casou com o Capitão
Francisco Lopes de Mattos que era proprietário da sesmaria do Retovado, em Mostardas
(naquela época pertencente a São José do Norte)10. Segundo o Livro de Sesmarias, em 1752
os campos de Francisco Lopes de Mattos eram ao norte da fazenda Charqueada de Manoel
Jorge da Silva.11 Nota-se que as terras das irmãs Quitéria e Mônica eram fronteiriças, o que é
novamente corroborado mais tarde, em 1852, quando a ancestral dos quilombolas do
Limoeiro, Perpétua Maria da Conceição declarou nos registros paroquiais que suas terras
faziam fronteira com a Fazenda dos Barros, que eram os campos de Francisco e Quitéria.
Possivelmente esta aproximação entre os proprietários possa ter motivado as interligações
entre as comunidades vizinhas de Casca e Limoeiro.
Segundo Ilka Boaventura Leite foi o capitão Francisco Lopes de Mattos, casado com
Quitéria Pereira do Nascimento, que começou a distribuição e a demarcação das sesmarias em
Mostardas, São José do Norte, em 1752, época em que foi registrada, em seu nome, a
Sesmaria do Retovado, com três léguas de largura, foi nessas terras que se estabeleceu a
Fazenda dos Barros Vermelhos, em parte dela, mais tarde a comunidade de Casca. O casal
Quitéria e Francisco não teve filhos. Em 1798, Francisco morreu, porém deixou registrada a
alforria de alguns escravos, bem como a partilha das terras, para sua mulher e alguns
sobrinhos. Após este episódio, Quitéria vai morar em Porto Alegre, até a sua morte em 1825.
Seu testamento foi aberto no ano seguinte, sendo a principal propriedade a Fazenda dos
10 A emancipação de Mostardas ocorreu somente em 1963. 11 Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Livro de Sesmarias.
15
Barros Vermelhos formada por “uma sesmaria de terra de campos e matos”. Parte desta
encontrava-se empossada por Bartolomeu Bento Marques, sobrinho de seu marido, outra
porção para Perpétua12, ambos foram herdeiros de Francisco Lopes de Mattos, por fim,
Quitéria deixou uma porção de terras para alguns escravos, o restante dos bens ficou para sua
sobrinha Ana Joaquina de Souza13 declarada como sua herdeira universal.
Conforme aponta Leite (2004, p. 112-113) a delimitação das terras é reconhecível até
hoje, pelos acidentes geográficos, desse modo, as terras formam uma faixa de “costa a costa”,
ou seja, da costa do Oceano Altântico até a costa da laguna dos Patos, apresentando no seu
interior a lagoa da Casca, tendo como limites, ao sul Laurentino Dias Costa, ao norte, a ponta
da lagoa. Mais tarde, na década de 1850, quando houve a exigência do registro de terras, a
partir da Lei de Terras de 1850, é possível identificar os moradores da Fazenda dos Barros
Vermelhos e com isso perceber a vizinhança dos escravos libertos de Quitéria Pereira do
Nascimento. No livro de Registros Paroquiais de Terras de São do Norte, além de outros
forros que aparecem nos registros como limites de terras de outros proprietários, aparece o
seguinte registro:
Relação das terras que possuímos nós escravos que fomos da falecida
Dona Quitéria Pereira do Nascimento, na Freguesia de Mostardas. Um pedaço de
campo, no lugar denominado Barros, que duvidamos a conta das braças, porque
ainda não nos foram entregue, dividindo-se ao norte com João Cardoso Vieira,
pelo sul com os herdeiros do falecido Laurentino Dias da Costa, pelo leste com o
Mar Grosso e pelo oeste Com Matias José Velho. A rogo de Antônio Silveira
Medina e demais herdeiros.14
Por este registro, nota-se uma estratégia dos libertos de registrarem suas terras, mesmo
sem saber a quantidade exata delas, já que ainda não tinham sido entregues para eles. Ao se
12 O testamento de Quitéria menciona Perpétua ora como sobrinha de Quitéria, ora como irmã. Arquivo Público
do Estado do Rio Grande do Sul. Inventário de Quitéria Pereira do Nascimento (1826) Rio Grande. Subfundo:
Vara de Família, Sucessão e Provedoria. 13 Ana Joaquina de Souza era filha de Tomas José Luis Osório e de Rosa Joaquina Pereira de Souza (irmã de
Quitéria), os pais de Ana aparecem na genealogia dos ancestrais proprietários das terras de Morro Alto que
doaram terras aos quilombolas do Morro Alto. 14 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Livro de Registros Paroquiais de Terras de São José do
Norte. Registro nº 217.
16
observar os limites das terras, percebe-se que elas parecem ser menores do que aquela porção
deixada por Quitéria, pois elas eram de “costa a costa” e neste registro aparecem outras
fronteiras, pois há uma vizinhança ao redor. Depois de mais de 25 anos, os libertos afirmam
que não receberam as terras prometidas no testamento e no inventário de Quitéria Pereira do
Nascimento, mas eles continuaram na Fazenda dos Barros Vermelhos, após a morte de
Quitéria, prova disso é que seus descendentes encontram-se até hoje na localidade. Quiçá os
libertos, mesmo antes de conquistar a liberdade, já possuíssem algumas terras para que
pudessem ter suas roças e criar seus animais, Leite (2004, p. 110) afirma que Quitéria em seu
testamento, reconheceu a posse e o usufruto de famílias escravas em sua fazenda. Para além
das terras que os escravos já utilizassem, Quitéria pode ter deixado uma maior quantidade.
Perpétua Maria Antônia e Antônio Manoel Jorge, um dos casais ancestrais da
comunidade do Limoeiro, eram vizinhos da Fazenda dos Barros Vermelhos. Tal casal
informou no livro de Registros Paroquiais de Terras de Nossa Senhora da Conceição do
Arroio15, na década de 1850, que haviam herdado da família Azevedo e Souza, que era
detentora da maioria das terras da região, meio quinhão de terras. Consta no registro os limites
das terras, um deles cabe ser mencionado por estar diretamente ligado ao tema em discussão
nesta comunicação. Segundo consta, o limite ao sul do quinhão de terras era a Fazenda dos
Barros Vermelhos. Esta informação é muito importante para perceber o “litoral negro”, no
século XIX, pois dois núcleos de escravos libertos eram vizinhos, além da consaguinidade das
proprietárias das sesmarias, poderia já neste momento haver contatos das duas famílias. Vou
prosseguir com estas análises a seguir, continuo por enquanto com a comunidade do
Limoeiro.
Além do casal Perpétua e Antônio, há o casal Vicente José Gomes e Inácia Reginalda
Gomes que residia também nas terras que outrora foram dos Azevedo e Souza. Pelos dados
documentais, Vicente havia sido escravo de Antônio José Lopes que comprou terras dos
herdeiros Azevedo e Souza. Na década de 1870, Antônio José Lopes juntamente com sua
mulher Gertrudes Eufrásia Lopes registraram a alforria de 16 escravos de ambos os sexos,
15 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Livro de Registros Paroquiais de Terras de Nossa Senhora
da Conceição do Arroio, registro nº 431.
17
entre eles estava o nome de Albino que posteriormente casou com Inácia Reginalda Gomes.
Dois filhos do casal Albino e Inácia, casou-se com duas filhas do casal Maria Antônia e
Benjamim. Os escravos de Antônio José Lopes e Gertrudes Eufrásia Lopes conquistaram bens
com a morte de Gertrudes que deixou em seu testamento registrada as terras e outros bens,
“com a condição de não venderem bens de raiz alguma e nem alienar por forma alguma e só
poderão deles tomarem conta depois de minha morte e de meu marido Vicente José
Gomes”.16
Aponto então para dois núcleos de escravos libertos que formaram a comunidade do
Limoeiro, além de logicamente outros libertos e quiçá escravos em fuga que chegaram à
localidade. Estas afirmações podem ser somadas aos apontamentos de Leite (2004) que
afirmou que Casca poderia ser uma rota de escravos em fuga, acredito também que estes
espaços de liberdade, ainda na primeira metade do século XIX, poderiam ser um atrativo para
os escravos das estâncias vizinhas, que viam naquela localidade os libertos com terras e
alguns pertences para garantir sua sobrevivência. Inclusive, Leite destaca que houve um
casamento em 1829, entre um ex-escravo de Quitéria Pereira do Nascimento e uma ex-
escrava de Rosa Tereza de Jesus, uma das irmãs que deixou terras e liberdades aos libertos,
ancestrais da atual comunidade de Teixeiras. Outros casamentos são elencados pela autora no
século XX. “Em cada uma das genealogias, os chamados “troncos” vão se ampliando através
dos casamentos entre os herdeiros de Casca e os de localidades vizinhas (...) mas
principalmente com os de Teixeiras.” (Leite, 2004, p. 117).
Para além desses núcleos de ex-escravos, aponto outras situações que visam reforçar a
existência do “litoral negro”. Nos registros paroquiais de terras de São José do Norte e de
Nossa Senhora do Conceição do Arroio (atual município de Osório)17, foi possível encontrar
além dos ancestrais da comunidade de Casca e do Limoeiro, outras porções de terras
pertencentes a “negros forros” que foram elencadas como limites de outras propriedades da
região. Não é possível neste momento apontar se os forros presentes no livro tem alguma
16 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Santo Antônio da Patrulha. Cartório: Órfão e Provedoria.
Maço 2, nº 93, ano: 1872. Testamento de Gertrudes Eufrásia Lopes. 17 Mesmo situando em diferentes municípios as comunidades de Casca e Limoeiro são muito próximas.
18
ligação com os demais quilombos do litoral do Rio Grande do Sul, presente na faixa de terras
em questão. De qualquer modo, estes casos permitem perceber outras experiências de
liberdade ainda no século XIX. Logicamente nem todos que possuíam terras registraram na
igreja, a situação era mais difícil para aqueles pequenos proprietários, entre eles, os forros,
isto por que a lei foi aprovada para dificultar o acesso de escravos, forros e libertos com o fim
do tráfico negreiro transatlântico. Para dificultar ainda mais era necessário o pagamento para
o registro. Por isso, embora algumas terras de forros apareçam como limites de outras
estâncias, poucos foram os forros que tiveram seus quinhões registrados, excetuam-se os ex-
escravos de Quitéria, ancestrais da comunidade de Casca e do Limoeiro que fizeram os
registros.
Ilka Boaventura Leite (2004) destaca que entre 1815 e 1830 ocorreu uma sequência de
alforrias na localidade de Mostardas, em alguns casos além de liberdade os escravos também
conquistaram alguma porção de terras. Um dos registros dos livros paroquiais chama a
atenção, pois ao declarar as terras que possuía em Mostardas, então distrito de São José do
Norte, José da Silva Terra menciona que as mesmas tinham como limites, ao norte os negros
forros de Manoel Teixeira18 e ao leste com os negros forros de Inácio José de Souza, ou seja,
mais duas porções de terras de ex-escravos que eram vizinhos.19 Outro caso é o registro como
limite de terras, dos terrenos dos negros forros de José Carneiro Geraldes20 que aparece nos
apontamentos de Leite (2004) como um possível pioneiro no registro de terras e de liberdade
aos escravos. Além disso, uma ancestral da comunidade de Casca, Bibiana antes de ser
escrava de Quitéria que doou terras aos seus escravos, havia sido escrava de José Carneiro
Geraldes. Houve, portanto experiências compartilhadas pelos escravos e forros no litoral.
Por ultimo destaco que a árvore genealógica de Casca (LEITE, 2004, p. 122-123) e do
Limoeiro (2009) apontam parentescos entre as comunidades de Casca, do Limoeiro e de
Teixeiras, desde o século XIX. Para além, destes parentescos pode ser possível analisar os
18 Manoel Teixeira era irmão de Ana Tereza de Jesus e Rosa Tereza de Jesus. Os três irmãos deixaram terras,
liberdades e outros bens para seus escravos, cujos descendentes foram atualmente a Comunidade dos Teixeiras. 19 Arquivo Público do Rio Grande do Sul. Livro de Registros Paroquiais de Terra de São José do Norte.
Registro nº 149. 20 Arquivo Público do Rio Grande do Sul. Livro de Registros Paroquiais de Terra de São José do Norte.
Registro nº 182.
19
compadrios e outras práticas compartilhadas, mas que não me detive para esta comunicação,
aliás pelos relatos dos quilombolas do Limoeiro é possível afirmar que as interligações entre
as três comunidades também se estendem as demais comunidades quilombolas da região
litorânea em pesquisa, pois os relatos de visitas de parentes especialmente nos casamentos e
nos Quicumbis foram recorrentes, bem como o deslocamento de ancestrais que vieram de
outras partes do litoral para procurar emprego ou moradia na região.
Rumando para as observações finais dessa comunicação afirmo que o “litoral negro”
permite compreender a temática quilombola contemporânea, também dialogando com o
século XIX, período em que os ancestrais quilombolas conquistaram terra e liberdade além de
começar a traçar as tramas e os laços quilombolas de parentescos, compadrios, solidariedades
e compartilhamentos de práticas culturais. Desse modo, para se entender o quilombo
ressemantizado é preciso também perceber as agências dos sujeitos históricos, levando em
consideração os elementos estruturais, do mesmo modo, não se pode apenas buscar as
resistências e desconsiderar as demais ações coletivas dos sujeitos.
Aciono neste momento, Johnson (2003) que critica a Nova História Social,
especialmente pelo mau uso da noção de agência nos estudos sobre a escravidão que dão uma
ênfase na liberdade e no existencialismo, abandonando-se a questão estrutural. Para superar
tais problemáticas, o autor defende a necessidade de se retomar o pressuposto do materialismo
histórico, ou seja, mesmo que os homens façam sua própria história, eles não fazem somente
o que querem, pois fazem a partir de circunstâncias dadas que são transmitidas pelo passado e
pela tradição de todas as gerações. Além disso, destaca que alguns autores vêm a agência
relacionada com a humanidade e com a resistência, todavia para Johnson havia muitas
maneiras de humanização que não passaram pela resistência, bem como, nem todos escravos
resistiram. Johnson indica que é necessário haver uma relação da agência com a ação coletiva,
isto por que a resistência coletiva foi uma organização diária, daí a necessidade de
compreender no cotidiano do sistema escravista de que maneira os escravos formaram
solidariedades sociais e políticas.
20
Diante do que foi apresentado, acredito que é pertinente perceber as demais
ações dos ex-escravos para compreender suas escolhas, afinal ao optarem por ficar na terra
onde foi o antigo cativeiro, possivelmente não aceitaram as mesmas condições da escravidão.
Embora houvesse interesses dos senhores ao estimular a família escrava e a existência de
roças, os ex-escravos podem ter reconhecido que talvez aquela escolha fosse a única possível
naquele momento. Entender estas ações interligadas com outras experiências permite analisar
o conceito de quilombo ressemantizado, um diálogo do tempo do cativeiro com o tempo da
liberdade e ainda a ação coletiva em prol da família e da rede de solidariedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Fontes
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-Censo populacional de 1858. Fundo: Estatística, Códice I;
- Livro de Sesmarias.
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- Inventário de Quitéria Pereira do Nascimento (1826). Rio Grande. Subfundo: Vara de Família,
Sucessão e Provedoria.
-Livro de Registros Paroquiais de Terras de Nossa Senhora da Conceição do Arroio;
-Livro de Registros Paroquiais de Terras de São José do Norte;
21
-Testamento de Gertrudes Eufrásia Lopes. Santo Antônio da Patrulha. Cartório: Órfão e Provedoria.
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