CARLOS RAFAEL VIEIRA CAXILÉ
OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES: SER LIBERTO NA PROVÍNCIA DO CEARÁ
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA SÃO PAULO – 2005
CARLOS RAFAEL VIEIRA CAXILÉ
OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES: SER LIBERTO NA PROVÍNCIA DO CEARÁ
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Estudos Pós-Graduados em História Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) como parte dos requisitos para obtenção do grau de Mestre em História Social. Orientadora: Profra. Dr a. Estefânia Knotz Fraga.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA SÃO PAULO – 2005
CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira.
São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005.
172 p. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005.
CARLOS RAFAEL VIEIRA CAXILÉ
OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES: SER LIBERTO NA PROVÍNCIA DO CEARÁ
Banca Examinadora:
_____________________________________________ – Presidente da Banca Nome Instituição _____________________________________________ Nome Instituição _____________________________________________ Nome Instituição
SÃO PAULO – 2005
Dedico esse trabalho à minha avó Nilza Araújo Caxilé, à Flávia de Rogério e a todos meus familiares.
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer primeiramente às Instituições PUC-SP e CAPES
pelo financiamento de meu curso e pesquisa. À minha avó Nilza Araújo Caxilé,
cujas palavras me faltam para expressar a gratidão que sinto por ela. Minha
mãe Adília Araújo Caxilé, uma santa mulher que sempre acreditou no filho
obstinado. Aos meus tios José Dantas da Silveira, Sinval Primo Caxilé e José
Barbosa, que sempre confiaram e torceram pelo sucesso desse trabalho. Às
minhas tias Aleuta Maria Caxilé, Tereza Roseneide Barbosa Caxilé e Maria
Valniza da Silveira, pessoas que sempre permaneceram ao meu lado me
iluminando e aconselhando em muitos momentos.
Sou muito grato a Estefânia Knotz C. Fraga minha estimável guia,
orientadora que esteve presente em todos os momentos dessa dissertação.
Uma verdadeira engenheira do saber, responsável por me mostrar os materiais
certos a serem empregados na construção desse trabalho. A realização dessa
pesquisa só foi possível graças às valiosas contribuições dessa magistral
orientadora.
Ainda sou bastante grato às professoras e professores da PUC-SP como
também da Universidade de São Paulo e da Universidade Federal do Ceará.
São eles: Maurício Broinizi, Antônio Rago, Olga Brites, Maria do Rosário, Lilia,
Ivone Avelino, Yara Aun Khoury, Maria Izilda Matos, Denise Bernuzzi, Dedea,
Mônica, Raquel, Pedro Tota, Marina de Melo e Sousa, Eurípedes Antônio
Funes, Frank Ribard, e especialmente a Maria Antonieta Antonacci e Maria
Cristina Wissenbach pelas valiosas sugestões feitas no exame de qualificação.
Devo muito aos meus amigos de Fortaleza, Bruno Brasil, Alberto e
Marco Antônio, que sempre me incentivaram e fortaleceram minhas
esperanças. À Flávia Oliveira de Rogério, pessoa extraordinariamente amiga,
que sempre se preocupou e me ajudou durante esses dois anos de pesquisa, e
também à Teti, sua mãe. Aos meus amigos de São Paulo, cujas vivências e
VI
práticas nesses dois anos são imensuráveis. São eles: Marcelo, Júlio,
Geovanni, Pedro, Zé, Fred, Rodrigo e Vinícios. Aos meus amigos de
residência, Paulo e Jânio. Aos meus conterrâneos que também percorreram e
ainda estão percorrendo esse instigante e delicado percurso da pesquisa
histórica: Moisés, Josiberto, Alênio, Daniel, Viviane, Felipe, André, Zilmar,
Gustavo, Edson e Kiko. Agradeço ainda às minhas amigas paulistas que me
proporcionaram tantos momentos agradáveis, regados a muitas gozações e
risos, Débora, Carol, Malu, Carla, Fernanda, Juliana, Daniela, Luana, Bel,
Roseli e Patrícia. Meus colegas interestaduais, Eglê e Leno de Manaus; Mário,
Érica e Ipojucan do Pará; Eduardo do Rio Grande do Sul; Elizabeth de Santa
Catarina; Vânia do Paraná; Bartolomeu, Vítor, Lívia e Xico da Bahia. Sou muito
agradecido também aos meus colegas da Associação de Pós-Graduandos da
PUC-SP, Ernani, Vladmir, e, principalmente, aos secretários dessa entidade,
Marcelo e Yara, pessoas fundamentais durante a nossa gestão na Associação.
Ainda agradeço ao Elvis, funcionário da Secretária de Alunos da PUC-
SP; à Jane e Betinha, secretárias do programa de pós-graduação em História
da PUC-SP; como também ao Sérgio Resende, diretor do Teatro Universitário
Católico, por me proporcionar muitos momentos divertidos naquele teatro.
Também sou grato a Rô e Albinha pelas calorosas conversas no RôsBar,
escutando Cássia Eller e tomando alguns goles de Boêmia.
Também devo muito à Madalena, bibliotecária da Academia de Letras do
Ceará; ao Mardônio, diretor do Arquivo do Estado do Ceará; Juliano, bolsista
do mesmo Arquivo. Ao erudito pesquisador André Frota, pelas incontáveis
horas que passamos decifrando a grafia dos escrivães, juizes e curadores
presentes nas Ações de liberdade. Aos funcionários Oswaldo e Gerusa, do
Instituto Histórico e Geográfico do Ceará; como também à Gertrudes e seu
marido Almadan, funcionários do Setor de Microfilmagem da Biblioteca Pública
do Ceará, Menezes Pimentel.
A todas essas pessoas do fundo do meu coração sou muito grato e a
elas dedico esse trabalho.
VII
RESUMO NA LÍNGUA VERNÁCULA CAXILÉ, Carlos Rafael. Olhar para além das efemérides: ser escravo na província do Ceará. 2005. 172 p. Dissertação (Mestrado em História Social) PUC/SP. Inicialmente este trabalho buscou, através da análise de Correspondências
Expedidas, Ofícios, Atas, Anais da Câmara e Periódicos de Época, evidenciar
o processo de extinção do elemento servil na província do Ceará
desencadeado pelas sociedades libertadoras, especificamente a sociedade
Perseverança e Porvir e Sociedade Cearense Libertadora. Demonstrou-se o
contexto sócio-político e econômico em que elas surgiram, como também os
fatores que possibilitaram a província do Ceará ser a primeira a libertar seus
escravos quatro anos antes do Império, no dia 25 de março de 1884. Em
seguida analisando, principalmente, Ações de Liberdade, evidenciou-se o
importante papel que teve a lei 2040 de 28 de setembro de 1871 para o
encaminhamento jurídico de liberdade de escravos no Brasil. Procurou-se a
partir dos embates parlamentares perceber as experiências sociais do sistema
escravista, vivenciado por senhores e escravos, relacionando essas
experiências aos projetos de encaminhamento de uma sociedade livre. E
finalmente analisou e discutiu alguns trabalhos literários escritos no Brasil,
principalmente no Ceará, a partir da segunda metade do século XIX, que
trataram da condição do africano e do afro-descendente. Focalizou-se
especificamente poesias e romances de caráter romântico e naturalista.
Palavras–chave: escravo, liberto, movimento, abolição.
ABSTRACT CAXILÉ, Carlos Rafael. Olhar para além das efemérides: ser escravo na província do Ceará. 2005. 172 p. Dissertação (Mestrado em História Social) PUC/SP. Initially this work looked for through the analysis of Sent Correspondences,
Occupations, Proceedingses, Annals of the Camera and Newspapers of Time
to evidence the process of extinction of the servile element in the county of
Ceará unchained by the societies libertadoras, specifically the society
Perseverance and Future and Society From Ceará Libertadora. The partner-
political and economic context was demonstrated in that they appear, as well as
the factors that facilitated the county of Ceará to be the first to free its slaves
four years before the Empire, on March 25, 1884. Soon after analyzing, mainly,
Actions of Freedom, the important paper was evidenced that had the law 2040
of September 28, 1871 for the juridical direction of slaves' freedom in Brazil. It
was sought starting from the parliamentary embates to notice the social
experiences of the system escravista vivenciados for gentlemen and slaves and
to relate them to the projects of direction of a free society. It is finally it analyzed
and he/she/it discussed some literary works written in Brazil, mainly, in Ceará,
starting from the second half of the century XIX that were about the condition of
the African and afro-descending. Focalizou-if specifically poetries and romances
of romantic-naturalistic character.
Words - key: slave, I free, I move, abolition.
SUMÁRIO APRESENTAÇÃO........................................................................................................11
CAPÍTULO 1
O PROCESSO ABOLICIONISTA DOS ESCRAVOS NO CEARÁ:
TRAJETÓRIA ..............................................................................................................23
1.1 – AS LIBERTADORAS: O MOVIMENTO E SEUS FINS ............................................. 24
1.2 – O LIBERTADOR E SEUS IDEAIS ................................................................................ 35
1.3 – COMPRAS, VENDAS E FUGAS.................................................................................... 39
1.3 – A LIBERTADORA EM MOVIMENTO ........................................................................ 41
1.4 – AS SENHORAS ABOLICIONISTAS ............................................................................ 47
1.5 – PRESSA E LIBERDADE................................................................................................. 49
CAPÍTULO 2
RUMO À LIBERDADE ...............................................................................................55
2.1 – A LEI 2040 E OS PROJETOS QUE A RESULTARAM............................................... 56
2.2 – ESCRAVOS BUSCANDO A LEI NA LUTA PELA LIBERDADE ............................. 78
2.2.1 – BERNARDO ........................................................................................................... 78
2.2.2 – JOSÉ, JOAQUIM, ANTÔNIO, ALEXANDRINA E MARIA........................................ 81
2.2.3 – BENEDICTA........................................................................................................... 89
2.2.4 – ESCRAVA MARIA LUIZA DA CONCEIÇÃO........................................................... 93
2.2.5 – EUFRÁSIA E THEODORA ...................................................................................... 95
2.2.6 – CUSTÓDIO............................................................................................................. 97
2.2.7 – ANTÔNIO JOAQUIM ........................................................................................... 100
2.2.8 – MACÁRIA............................................................................................................ 101
CAPÍTULO 3
SER NEGRO NA LITERATURA.............................................................................109
3.1 – LIBERTADOR: LITTERATURA ................................................................................. 110
3.2 – A FAMÍLIA .................................................................................................................... 114
3.3 – GALENO: LENDAS E CANÇÕES POPULARES...................................................... 125
3.4 – ROMANCE: REALISTA NATURALISTA ................................................................ 135
CONSIDERAÇÕES FINAIS .....................................................................................148
FONTES.......................................................................................................................154
BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................156
ANEXOS ......................................................................................................................163
APRESENTAÇÃO
Pátria, Brasil, ergue um brado Um brado augusto de luz, Que nesta festa sublime Vê-se a filha de Jesus! É a virtude predileta A redentora dileta Que se chama – caridade! Que com suas asas douradas Cobre essas frontes magoadas E lhes dá a liberdade! Sim! Que esses pobres escravos Nossos legítimos irmãos, Que a tanto tempo choraram São agora cidadãos! 1
O embrião dessa dissertação começou na graduação. Logo no primeiro
ano do curso de História me interessei em realizar uma pesquisa referente às
religiões afro-brasileiras presentes no Ceará, especificamente, em Fortaleza.
Tal tema me despertou simpatia ainda na infância, quando eu e meus pais
freqüentemente íamos assistir ao maracatú desfilar pelas ruas do centro de
Fortaleza. Desde essa época a cultura afro-brasileira me fascina,
principalmente as religiões e festas. Meu primeiro impulso enquanto recém
ingresso na universidade foi procurar um professor especialista no assunto que
pudesse me auxiliar.
Tive conhecimento de existir no departamento de História um
pesquisador chamado Eurípedes Antônio Funes. Entrei em contato com o
professor e ele se comprometeu a me ajudar. Somente alguns meses depois,
veio a oportunidade de participar de sua pesquisa como bolsista do CNPq-
PIBIC. O tema do projeto era Fazendo a Liberdade: a História dos Negros
Libertos no Ceará, que tinha como objetivo analisar o processo histórico
constituído pelos libertos e ex-escravos, considerando as experiências vividas
por homens e mulheres, sua inserção na sociedade, no mercado de trabalho,
as formas de resistência e de luta contra a discriminação racial e a
1 Poesia declamada por Antônio Olímpio na festa realizada pelos sócios da Sociedade Cearense Libertadora em homenagem a emancipação de 35 escravos. Libertador, 03 de abril de 1881, p. 08.
11
marginalização social. Procurou-se também perceber a constituição de seus
espaços e suas práticas religiosas e culturais como o maracatú, os reisados e
outros “autos” que possibilitassem a busca de uma identidade.
Além de mim faziam parte do grupo mais dois bolsistas, Alênio e
Mariana, também estudantes de História. O grupo se reunia mensalmente para
discutir avanços ou recuos da pesquisa. Cada componente desenvolvia um
trabalho individual, mas que tinha afinidades em comum. À princípio meu
objetivo era encontrar uma identidade para os negros cearenses através das
religiões afro-brasileiras presentes no Estado do Ceará. Depois de alguns
meses pesquisando em censos, jornais, relatórios e correspondências percebi
que não era possível prosseguir. O material encontrado não permitia o
desenvolvimento do trabalho. Então minha proposta inicial foi substituída.
Passei a trabalhar com jornais de época, do período de 1870 a 1884,
especificamente, O Cearense e O Libertador, sendo esse último um órgão da
Sociedade Cearense Libertadora e, o primeiro, órgão oficial do governo da
Província. Atentou-se para os discursos presentes em ambos os jornais, o teor
laudatório do Libertador pouco se distanciava das propagandas
governamentais presentes no Cearense. Por fim a opção foi de deixar o
Cearense de lado e deter-se no Libertador.
Passou a ser interesse saber um pouco mais sobre quem eram os
indivíduos que escreviam naquele jornal, quais suas intenções, seus anseios,
objetivos e projetos. Passou-se então a ler autores que já haviam desenvolvido
uma pesquisa a respeito. No trabalho do historiador Raimundo Girão, Abolição
no Ceará, encontram-se alguns esclarecimentos sobre esses indivíduos e
sobre o que propunham e desejavam. Além do trabalho de Girão, também a
dissertação de Pedro Alberto de Oliveira, Declínio da Escravidão no Ceará, foi
de grande importância para situar as principais questões dessa pesquisa.
Ao contrário de Girão, que se deteve, principalmente, em questões
específicas referentes às fundações das libertadoras cearenses, Perseverança
e Porvir e Sociedade Cearense Libertadora, Pedro Alberto desenvolveu um
trabalho de cunho econômico, analisando com acuidade e precisão números e
dados sobre a estrutura da província do Ceará. Como também alguns fatores
12
que fizeram com que o Ceará fosse a primeira província do Brasil imperial a
libertar seus escravos. Segundo Pedro Alberto foram eles: o intenso tráfico
interprovincial a partir de 1850; a forte seca que assolou o Ceará de 1877 a
1879; assim como o movimento abolicionista desencadeado pelas libertadoras
cearenses.
Além desses dois trabalhos, que muito contribuíram para esta pesquisa,
outros discutiram o movimento abolicionista na província do Ceará. Dentre eles
estão Revelações da Condição de Vida dos Cativos no Ceará, do jornalista e
pesquisador Eduardo Campos, e Notícia do Povo Cearense, de Yaco
Fernandes.
Eduardo Campos trabalhou com inventários, livros de notas, códigos de
posturas, regulamentos emitidos pelo presidente da província e outros
documentos oficiais. O autor chegou à conclusão que o escravo era incapaz de
agir por conta própria, pois não possuía vontade nem decisão. O escravo não
passava de uma “coisa”, uma propriedade, um bem móvel. O autor chegou a
essa conclusão através da leitura de determinados documentos oficiais, dentre
eles, o Regulamento expedido pelo presidente da província, em 1853, o qual
determinava: “art. 1o – São bens do evento os escravos, e o gado vacum e
cavalar achados [...] art.2o – Estes bens são apreendidos, depositados,
avaliados e arrematados, e o produto recolhido a tesouraria provincial [...]”2.
Segundo Campos os únicos momentos em que os escravos demonstravam ter
discernimento de si ocorriam quando praticavam fugas, revoltas e
assassinatos.
Yaco Fernandes, por sua vez, partiu do pressuposto de que os membros
das libertadoras cearenses, principalmente aqueles oriundos da Perseverança
e Porvir e Sociedade Cearense Libertadora não passavam de “literatos
entusiasmados, burgueses ingênuos“ que para driblar o ócio provinciano,
“pasmaceira provincial”, cogitaram a libertação dos escravos. O autor se
mostrou encolerizado com tais membros: “esses sisudos pândegos da
Perseverança e Porvir e depois de sociedade libertadora cearense, que noutra
2 CAMPOS, Eduardo. Revelação da condição de vida dos cativos no Ceará. In: Da senzala para os salões. Fortaleza: Secretaria de Cultura, Turismo e Desporto. 1988. p. 36.
13
terra qualquer nada arranjariam, estão bem situados no quadro local.”3
Fernandes interpretou o desempenho das libertadoras como uma maneira de
seus sócios se promoverem. Viu suas realizações enquanto ”imposturas” que
visavam mais ao interesse individual de cada membro do que à causa da
abolição.
Outro trabalho também relevante sobre a abolição no Ceará foi escrito
por Almir Leal e intitula-se Saber e Poder – O Pensamento Social Cearense no
Final do Século XX. Nessa dissertação de mestrado defendida na PUC-SP, em
1998, o autor tratou de alguns aspectos da abolição no Ceará, especificamente
no tópico intitulado Estratégias Abolicionistas: Ações Intelectuais. Almir dirigiu
sua análise para o movimento abolicionista desencadeado em Fortaleza pelos
membros das libertadoras. Procurou enfocar a atuação desses indivíduos
considerando que as suas leituras eram socialmente constituídas, figurando
também como ações sociais com práticas políticas distintas. Seu estudo
concluiu que as ações e atitudes tomadas durante a campanha abolicionista
pelas libertadoras Perseverança e Porvir, Sociedade Cearense Libertadora e
Centro Abolicionista 25 de Dezembro estavam relacionadas e tinham origem no
repertório de leitura realizado pelos seus membros na década de setenta do
século XIX, como também por posturas intelectuais desenvolvidas a partir de
1880.
Percebeu-se que grande parte dos trabalhos escritos sobre o movimento
abolicionista na província do Ceará teve como pressuposto um caráter político-
positivista, com características elitistas e biográficas onde se percebe uma
constante exaltação aos valores humanitários das libertadoras e dos
abolicionistas. Os trabalhos produzidos, com algumas exceções, tratam da
questão da abolição tendo como tese central o papel humanitário dos
“cavaleiros da esperança” no processo abolicionista na província do Ceará.
A questão é que os abolicionistas tidos como os cavaleiros da esperança
vão ser retratados nessas obras sempre representando a imagem dos homens
que possuíam o caráter filantrópico e enfeixavam nas suas mãos a tocha que
iria iluminar a sociedade cearense e a conduziria através da luz de seus atos, 3 Idem, p.179.
14
gestos e sapiência, para uma realidade longe da barbárie representada pela
escravidão. O tema “Ceará Terra da Luz” até hoje tem uma forte conotação nos
discursos proferidos por autoridades estaduais e por intelectuais, que, com
isso, querem exaltar os brios do Ceará e dos cearenses.
Nesse sentido, interessou-nos a percepção da construção desse
discurso legitimador do caráter empreendedor do povo cearense, construído
sob os auspícios da abolição e dos abolicionistas. Do como este discurso ainda
encontra espaço nos dias de hoje na sala de exposição permanente do Museu
do Ceará, cujo nome é “Ceará Terra da Luz,” ou no Centro Cultural de Arte e
Cultura Dragão do Mar, ou mesmo nas placas comemorativas denominam ruas
e logradouros da cidade.
Como afirma Régis Lopes Ramos, “sem o ato de pensar sobre o
presente vivido, não há meios de construir reflexões sobre o passado. E o
próprio conhecimento do atual já pressupõe referências sobre o pretérito.”4
Essa relação entre passado e presente ajudou a melhor delinear os objetivos
desse estudo e a problematizá-lo. Ou seja, a despeito do movimento
abolicionista cearense, especificamente o realizado na cidade de Fortaleza
pelos membros da Sociedade Perseverança e Porvir (1879), Sociedade
Cearense Libertadora (1880), interessa perceber para quem de fato o
movimento abolicionista foi importante, para os libertos ou para a concretização
de uma sociedade capitalista burguesa onde valores como progresso e
modernidade só seriam possíveis com a abolição da mão-de-obra escrava?
Eis o projeto que tinha como objetivo central analisar o processo
abolicionista na província do Ceará, desencadeado pelas libertadoras. Desta
maneira, estabeleceu-se como sujeitos a serem pesquisados, os membros das
sociedades libertadores cearenses. Faria uma análise crítica desses indivíduos
procurando definir os interesses que estavam em jogo naquele momento.
Porém, um trabalho com objetivos bem próximos aos que propus já
havia sido desenvolvido pelo pesquisador Gleudson Passos. Tivemos
4 RAMOS, Francisco Régis Lopes. Museu, ensino de história e sociedade de consumo. In: Trajetos: Revista de História da UFC. Fortaleza, vol. 1, n.º 1, 2001, p. 109.
15
conhecimento do trabalho de Gleudson através Estefânia Knotz, que orientou a
ambos, e propôs, como primeira atividade acadêmica, realizar uma análise
sobre sua dissertação intitulada As Repúblicas das Letras Cearenses:
Literatura, Imprensa e Política. Nesse trabalho Passos buscou retratar as
ações dos intelectuais cearenses, tendo como parâmetros analíticos a
literatura, imprensa e a política. Também teve como objetivo perceber a
inserção dos letrados cearenses através de posturas intelectuais, políticas, e
“os usos de suas máquinas literárias” com o intuito de construir modelos de
Estado e nação durante as duas últimas décadas do século XIX e as primeiras
do século XX. Seu foco de análise recaía sobre as sociedades literárias
existentes entre 1873 e 1904: a Academia Francesa (1873–1875), o Clube
Literário (1887–1889), a Padaria Espiritual (1892–1898), a Academia Cearense
(1894–1904) e o centro literário (1894–1904). Passou limitou sua análise aos
espaços literários, sociedades, clubes e agremiações, entendendo estes como
espaços eminentemente políticos e urbanos. Utilizou como fontes, jornais de
época, periódicos e pasquins literários, livros de memória, cartas, discursos
oficiais e comemorativos, relatórios dos presidentes da província, manuscritos,
revistas de época e obras literárias.
O trabalho desenvolvido por Passou possibilitou reformulação de alguns
itens desta pesquisa. Foram salutares para este trabalho algumas questões
discutidas pelo historiador: a análise dos discursos produzidos por intelectuais
denominados “Mocidade Cearense”; a percepção do discurso enquanto “uma
ferramenta política dos grupos letrados”; o discurso enquanto poder de
determinados grupos sociais em impor seus anseios e valores aos demais da
sociedade.
os sujeitos da Mocidade Cearense potencializaram sua máquina
discursiva, apropriando-se de enunciados e conteúdos simbólicos
coletivamente engendrados naquele espaço social, tais como os referenciais
morais moral e a força. Recodificando para aquele campo de experimentação
subjetiva os enunciados da ordem burguesa como liberdade política e
econômica, industrialismo, desenvolvimento tecnológico, progresso científico,
produtos de intensidades desejantes do iluminismo, Romantismo e do
Positivismo, aqueles homens tiveram um interesse comum: integrar-se nas
16
relações de poder de sua sociedade e manter o domínio dos grupos
tradicionais, ou seja, acompanhar a emergência dos novos setores sociais
segundo a manutenção dos antigos setores dominantes na nova ordem
mundial.5
Num primeiro momento esta dissertação se aproxima do trabalho de
Passos, onde pretende fazer uma análise do discurso. Todavia neste trabalho
serão privilegiados os discursos relacionados com a abolição. A preocupação
maior será compreender os discursos produzidos pelos libertadores e sua
relação com os interesses de classe. Entende-se que havia uma preocupação
dos membros das libertadoras de estabelecer uma sociedade capitalista e
burguesa margeada por valores europeus, principalmente ingleses e franceses.
Seremos mais analíticos nesse aspecto.
Após ler a dissertação de Gleudson Passos mais um trabalho nos foi
apresentado, Escravos, Libertos e Órfãos: A Construção da Liberdade em
Taubaté (1871 – 1895), tese defendida em 2001 pela Doutora Maria Aparecida
Chaves Ribeiro Papali.
Nesse trabalho Papali buscou identificar os caminhos emancipacionistas
e tensões abolicionistas na cidade de Taubaté a partir da demanda pela
liberdade jurídica desencadeada pela legislação de 1871, como também
compreender as tensões surgidas no campo do trabalho, onde havia um forte
interesse da elite local pela mão-de-obra disponibilizados pelos libertos e
órfãos (ex-ingênuos). A autora ainda buscou refletir sobre o sentido de
liberdade, através da concepção de escravos e libertos, e estabelecer
parâmetros de liberdade na ótica dos mesmos.
Para desenvolver sua pesquisa, Papali trabalhou com os seguintes
documentos: Ações de Liberdade, periódicos, Atas da Câmara, Leis, Decretos
e Obras de Época. Mas a qualidade do seu trabalho reside na análise das
Ações de Liberdade, material que começou a ser melhor explorado nas últimas
décadas. Dentre outros historiadores que se dedicaram à perscrutação dessa
5 CARDOSO, Gleudson Passos. As Repúblicas das Letras Cearenses: Literatura, Imprensa e Política (1873 – 1904). 2000. Dissertação de mestrado (História Social). Pontifícia Universidade Católica: São Paulo. p. 49.
17
fonte podemos citar Sidney Chalhoub, um dos primeiros a trabalhar as
experiências do cativo por meio da análise de Ações de Liberdade. Papali
utilizou ao todo 90 Ações de Liberdade, ocorridas entre 1871 e 1888,
envolvendo 192 libertandos. Algumas ações são simples petições para alforria
ou concessões sumárias de alforria incondicional, outras são volumosas Ações
contendo argumentos e relatos de libertandos, advogados e testemunhas. A
leitura do trabalho desenvolvido pela historiadora também foi bastante profícua
na melhor definição desta de pesquisa.
Alguns anos atrás, trabalhando no Arquivo Público do Estado do Ceará,
desempenhando a função de pesquisador bolsista do CNPq-PIBIC, deparamo-
nos com algumas Ações de Liberdades não catalogadas, espalhadas em
caixas ainda não numeradas, e que só estavam ali na sala de pesquisa devido
à insistência de um professor pesquisador. Essas Ações em sua grande
maioria são relativas a processos desencadeados por escravos contra seus
senhores, como caracterizou Maria Aparecida Papali, petições para alforria e
Concessões sumárias de alforria incondicional.
Naquele momento não se deu muita importância àqueles documentos.
Transcreveu-se alguns, enquanto de outros apenas informações específicas
foram anotadas. Ainda não havia definido trabalhar com esse tipo fonte.
Portanto, a pesquisa de Papali possibilitou visualizar questões que poderiam
ser desenvolvidas neste trabalho através das Ações encontradas no Arquivo do
Ceará. Foram encontradas doze Ações movidas entre os anos de 1878 e 1880,
classificadas em Petições para alforria e Concessões sumárias de alforria
incondicional.
Deste modo, pela mediação dos autos judiciais, petições e sentenças
auferidas por juízes, curadores, escrivães, advogados e testemunhas, buscou-
se demonstrar como se desenvolveram os trâmites judiciais pelos quais
passava uma Ação de Liberdade, assim como também reconstruir a luta
travada pelos escravos e libertandos no campo judicial em busca da liberdade.
Tentamos mostrar os escravos e libertandos enquanto sujeitos de sua
liberdade na Província do Ceará. Também consideramos importante esclarecer
que a partir da Lei 2040 foi possível aos escravos construírem sua liberdade via
18
fundos de emancipação ou via pecúlio. Tal lei permitiu aos escravos e
libertandos lutarem pela sua liberdade no campo jurídico, área por excelência
da classe dominante.
Nessa dissertação buscou-se contrapor alguns trabalhos que discutiram
o processo abolicionista na província do Ceará, dando relevância ao papel
humanitário dos membros das sociedades cearenses, Perseverança e Porvir e
Libertadora Cearense, trabalhos que destacaram o papel empreendedor dos
abolicionistas, caracterizando-os como sujeitos corajosos e cultos que
almejaram o fim da escravidão por amor e compaixão ao escravo.
Da mesma forma procuramos contestar os trabalhos que consideraram
os membros das libertadoras como impostores burgueses que visavam acima
de tudo se promover através da campanha abolicionista. Desenvolvemos uma
linha de análise diversa, compreendendo que os membros das libertadoras não
realizaram uma campanha abolicionista devido somente a seus valores
humanitários, mas também não os consideramos farsantes que pretendiam
apenas se autopromover.
Entendo que uma das maneiras de defini-los seja seguir de perto suas
atividades em atos, gestos e palavras. Os membros das sociedades não eram
originários das camadas mais pobres da população cearense, mas também
não eram totalmente oriundos e porta vozes exclusivos dos interesses das
classes dominantes. Por outro lado, é certo que sua composição social os
situaria enquanto membros das camadas mais altas da sociedade. Sua
atuação não pode ser aplicada exclusivamente em termos de defesa de
interesse de classes. Apesar de possuírem estreitos laços de parentescos que
os atavam a famílias proprietárias de terras, sua atuação se dava no contexto
urbano. Logo entendemos que esses indivíduos em grande parte eram
intelectuais da ciência que procuravam legitimar e respaldar cientificamente
suas ações e posições em determinadas instituições do saber, como Academia
Francesa, Academia Cearense de Letras e, posteriormente, Instituto Histórico
Cearense.
19
Ainda refutamos aqueles que consideram o escravo um ser incapaz de
agir por conta própria, ou seja, aqueles que consideraram o escravo como
“coisa”, propriedade, bem semovente, demonstrando ter discernimento de si
apenas quando praticam revoltas, fugas e assassinatos. Nas linhas que
seguem o desenvolvimento desse trabalho entendemos os escravo enquanto
agente social, que, através da experiência cotidiana do cativeiro, construiu
estratégias de luta embasadas numa consciência própria de seus direitos e
fazendo de tudo para alcançar a liberdade.6
Nesse sentido dividimos essa dissertação em três capítulos, onde
buscou-se demonstrar o contexto sócio-político e econômico em que surgiram
as libertadoras cearenses; o tipo de atividade preponderante e sua influência
no emprego da mão-de-obra servil, como também a porcentagem e o perfil da
população cearense a partir da segunda metade do século XIX, precisamente
de 1870 a 1879. Enfocamos também o papel significativo da urbanização de
Fortaleza a partir da segunda metade do século XIX, que possibilitou o
surgimento de uma elite letrada responsável pelo surgimento de sociedades
libertadoras na província. Também importaram os fatores que possibilitaram a
província do Ceará ser a primeira a libertar seus escravos quatro anos antes do
Império, no dia 25 de março de 1888. Analisaremos o surgimento das
libertadoras Perseverança e Porvir e Sociedade Cearense Libertadora, o papel
da imprensa enquanto importante mecanismo de formação de opinião e os
discursos pronunciados no jornal O Libertador.
Serão focalizados também os anúncios de fugas de escravos presentes
no jornal O Cearense, o papel desempenhado por algumas mulheres no
processo abolicionista da província e a atuação ilegal de alguns membros da
Libertadora Cearense no movimento abolicionista. São aspectos centrais do
primeiro capítulo e para desenvolvê-los pesquisamos os seguintes
documentos: correspondências expedidas, registros de ofícios, Anais da
Assembléia Legislativa, censos, obras de época, periódicos, livro de notas de
6 “A imensa massa populacional que se transferiu do continente africano para a colônia portuguesa não pode ser analisada apenas como ‘força de trabalho’ e, por isso, muitos historiadores hoje, procuram discernir os caminhos, num simples nem óbvios, através dos quais os escravos fizeram história”. SILVA, Eduardo; REIS, João José. Entre Zumbi e o Pai João. O Escravo que Negocia. In: Negociação e Conflito: A Resistência Negra no Brasil Escravista. Companhia das Letras. São Paulo: 1989. p.13.
20
compra e venda de escravos, assim como as revistas do Instituto Histórico e
Geográfico do Ceará.
No segundo capítulo procurou-se evidenciar o importante papel da Lei
2040 – mais conhecida como Lei do Ventre Livre ou Lei de 28 de setembro de
1871 – para o encaminhamento jurídico da liberdade de escravos no Brasil.
Analisou-se os projetos que resultaram na Lei e, a partir dos embates
parlamentares, percebeu-se as experiências sociais do sistema escravista,
vivenciadas por senhores e escravos, relacionando-os aos projetos de
encaminhamento de uma sociedade livre, e entendendo que a sociedade
escravista foi resultado da dinâmica estabelecida entre escravos e senhores.
Ao tratar das relações entre senhores e escravos privilegiou-se a idéia
de que as relações históricas são fruto de atividades realizadas por homens e
mulheres nas lutas, resistências, conflitos e acomodações. Visualizou-se os
processos cíveis enquanto um campo de conflitos onde os anseios de duas
classes antagônicas se chocam – direito à propriedade privada verso direito à
liberdade. Evidenciar-se-á nesse capítulo como a Lei 2040 possibilitou aos
escravos utilizarem–se de argumentos acerca da ilegalidade da propriedade
privada para obstruir a relação de domínio senhorial, conseguindo colocar seus
senhores na desagradável situação de réus acusados muitas vezes de
exercerem sobre eles um direito fundado sobre bases ilegais. Foram utilizadas
as seguintes fontes: Ações de Liberdade, Leis do Império do Brasil, Anais da
Câmara dos deputados e obras de época.
No terceiro capítulo buscou-se analisar os trabalhos desenvolvidos por
autores que trataram e discutiram a condição do africano e do afro-
descendente na sociedade escravista, principalmente, mas não
especificamente, aqueles que escreveram no Ceará. Analisaram-se os poemas
publicados no periódico O Libertador na coluna intitulada Litteratura; alguns
poemas de Juvenal Galeno publicados na obra Lendas e Canções Populares;
poemas do poeta baiano Castro Alves; e também alguns romances de caráter
naturalista escritos por Aluízio Azevedo e Adolfo Caminha, sendo obra do
primeiro O Mulato e do segundo A Normalista e Bom Crioulo.
21
Examinaram-se as poesias escritas no periódico Libertador,
especificamente aquelas publicadas durante o ano de 1881 por membros das
libertadoras dentre eles, Antônio Bezerra e Juvenal Galeno. As poesias escritas
por Antônio Bezerra no periódico O Libertador, na sua grande maioria, são de
cunho ufanista. Entoou glória aos membros da libertadora e os incitou a lutar,
agir, trabalhar, e a buscar todos os meios que levassem ao fim da escravidão.
Juvenal Galeno, por sua vez, na obra Lendas e Canções Populares
retratou os costumes e práticas sociais dos tipos existentes na população do
Ceará, do rude lavrador passando pelo vaqueiro, pescador e escravo. Galeno
cantou em alguns momentos a condição do cativo. Descreveu através de
versos as amarguras, emoções, paixões e gostos sentidos pelos escravos. Dos
poemas presentes na obra, Cativeiro é aquele que melhor expressa o lamento
do escravo por ser privado da liberdade.
Analisaram-se também algumas poesias escritas por Castro Alves,
dentre elas O Século, onde o poeta se refere à moral cristã para expressar seu
descontentamento com o sistema servil.
Em Tragédia do Lar, escrito em 1865, Castro Alves apontou a
perversidade da escravidão. Contou a história de uma escrava que se viu aflita
ao sofrer a ameaça de ser separada do seu filho. Mostrou a insensibilidade do
sistema escravista para com o direito à maternidade, um dos mais
fundamentais princípios humanos. O poeta denunciou a estrutura do sistema
através da experiência do principal elemento do escravismo: o próprio escravo.
A poesia não foi o único gênero literário utilizado por intelectuais,
populares e abolicionistas, como meio de criticar o sistema escravista. O
romance, especificamente o romance realista-naturalista, também foi um
importante instrumento de contestação. Trabalhou-se especialmente com três
romances: O Mulato, de Aluízio Azevedo, escrito em 1881, obra responsável
por inaugurar o naturalismo no Brasil; assim como, A Normalista e Bom
Crioulo, ambos de Adolfo Caminha, sendo o primeiro publicado em 1893 e o
segundo em 1895.
22
CAPÍTULO 1
O PROCESSO ABOLICIONISTA DOS ESCRAVOS NO CEARÁ: TRAJETÓRIA
1.1 – AS LIBERTADORAS: O MOVIMENTO E SEUS FINS
Entendemos que o surgimento das libertadoras cearenses foi fruto das
mudanças que ocorreram na província do Ceará a partir da segunda metade do
século XIX. A criação da Santa Casa de Misericórdia, em 1861, a criação da
Biblioteca Pública, em 1867, a instalação da estrada de ferro Fortaleza-
Baturité, em 1873, a implantação do plano urbanístico do engenheiro Adolpho
Herbster, em 1875, como também a criação da Academia Cearense de Letras,
da Academia Francesa, do Instituto Histórico e Geográfico e de algumas
agremiações literárias são características significativas dessa época. Nesse
cenário emergiram novas forças sociais, uma elite intelectual composta de
letrados e profissionais liberais, dentre eles funcionários públicos, advogados,
professores, médicos e farmacêuticos.7
É importante observarmos que as mudanças ocorridas na província do
Ceará, a partir da segunda metade do século XIX, não estavam acontecendo
isoladamente. Outras províncias do Brasil imperial, principalmente depois de
1850, passaram por transformações sociais, políticas e econômicas onde as
cidades, suas capitais, constituíram-se como as sínteses dessas
transformações. A urbanização exigiu um complexo quadro administrativo que
foi preenchido por burocratas, bacharéis, engenheiros e médicos.
As mudanças que aconteceram a partir dos anos 50 trouxeram como
conseqüência uma forte urbanização. O rápido crescimento das cidades seguiu
um aumento considerável da população citadina, cujos valores tornaram-se
bem diferentes daqueles da população do campo. O meio urbano constituiu-se
espaço bastante propício à difusão de novas idéias. A forte concentração de
pessoas, consoante ao desenvolvimento dos meios de comunicação, jornais,
folhetins e transporte, estradas de ferro e navios a vapor, favoreciam a
transmissão de notícias e sua discussão, estimulando a formação de uma
opinião pública forte.8 Nos centros urbanos observou-se nessa época uma
enorme adesão à causa abolicionista. Através da imprensa, aqueles que 7 Ver: PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque: Reformas Urbanas e Controle Social (1860-1930). Fortaleza: Demócrito Rocha, 1999.
24
simpatizavam com o fim do elemento servil procuravam angariar fundos que
seriam destinados à libertação dos cativos.
Quando as sociedades libertadoras surgiram, o sistema escravista
cearense estava bastante desgastado. A forte estiagem que começou no ano
de 1877 e terminou em 1879 foi responsável por obrigar grande parte dos
fazendeiros da província a vender, como uma das alternativas de
sobrevivência, quiçá os únicos bens que ainda possuíam: os escravos.
O escritor e memorialista Rodolfo Teófilo escreveu uma obra de ficção
intitulada A Fome, publicada pela primeira vez no ano de 1898, onde retratou a
calamidade ocasionada pela seca de 1877-79 na província do Ceará. Ainda
que se trate de uma obra de ficção, acreditamos que A Fome não foge da
realidade ocorrida naqueles anos de estiagem. Segundo o autor, o personagem
principal, um pequeno fazendeiro do interior:
Passava os dias meditando: estudava os planos da salvação, que procurava acertar para depois executá-los. A imigração para a capital era a única esperança. Decidiu-se por ela: mas era preciso víveres ou dinheiro, e onde havê-los? A cruz do Santo Lenho vendida ao usurário pouco produziria. Os escravos dariam um produto suficiente às necessidades da viagem, mas quem os compraria naquelas paragens, se os mascates desenganados tinham saído para outra localidade? O fazendeiro compreendia o perigo da situação. Algumas semanas mais de expectativa tornariam impossível a retirada. Estava resolvido a emigrar, mas não sabia onde achar forças para vender os escravos e a cruz da família. Os seus parentes tinham saído todos, exceto seu primo Inácio da Paixão, que vindo despedir-se para no dia seguinte emigrar para a capital, despertou em Freitas uma idéia: mandar por ele os cativos para serem vendidos.9
Através da citação é possível perceber a situação do senhor que morava
no interior da província e não tendo outro recurso ao qual recorrer para
sobreviver naqueles anos de estiagem, optou por vender os únicos bens que
ainda tinham algum valor naquela ocasião, seus escravos. A historiadora
Viviane Lima de Morais, em sua dissertação, corrobora essa assertiva quando
escreveu:
O vaqueiro [...] foi forçado a comercializar suas vestes, motivo de orgulho, representativas de sua identidade; e objetos que, mesmo com valor extremamente depreciado, foram vendidos por ninharias, porque naquele momento só a comida tinha valor...10
8 Ver: MONTENEGRO, Antônio Torres. Abolição. São Paulo: Ática, 1988. 9 TEÓFILO, Rodolfo. A Fome. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1979. p. 09. 10 MORAIS, Viviane Lima de. Razões e Destinos da Migração: trabalhadores e emigrantes cearenses pelo Brasil no final do século XIX. 2003. Dissertação de Mestrado (História Social). Pontifícia Universidade
25
Segundo Robert Conrad, durante a seca a venda de escravos para o sul
do Império foi uma das principais fontes de renda do Ceará. Em 1879 o
imposto cobrado sobre a exportação de escravos rendeu 125:880$000 réis
para os cofres públicos, quantia que representava 7% do orçamento provincial.
Os escravos em grande maioria pertenciam a pequenos proprietários rurais,
fazendeiros e pessoas de classe média das cidades.11
Com a eclosão da guerra do Paraguai, em 1865, o número de escravos
alforriados cresceu consideravelmente. Dos 5.462 homens enviados para a
guerra, 350 eram escravos alforriados.12 Alguns senhores, quando sorteados
para o serviço militar, libertavam seus escravos e os mandavam em seu lugar.
O governo imperial gastou uma boa soma com cartas de alforrias. Dos 350
cativos da província do Ceará que foram enviados para a batalha13, a grande
Católica: São Paulo. p. 74. Ver ainda: MOTTA, Felipe Ronner Pinheiro Imlau. Progresso, Calamidade e Trabalho: Pobreza e Urbanidade Incipiente na Cidade em Fins do Oitocentos. Revista Trajetos, vol. 2, número 04, 2003. Nesse artigo o autor analisa documentos como jornais, relatórios de presidente da província e anais da assembléia legislativa, buscando perceber no contexto da seca de 1877 a 1879, na província do Ceará, as implicações e mudanças ocorridas nesse momento na província. "Não devemos nos distanciar do sofrimento real dos homens e mulheres que foram diretamente atingidos pela calamidade, porém se faz necessário estarmos sóbrios para que possamos captar não somente martírios mas também as estratégias empreendidas por uma classe que soube se utilizar, com destreza, desse apelo emocional, que é bem peculiar aos momentos de seca e escassez." Ibidem, p. 158. 11 CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil (1850 – 1880). Rio de Janeiro, Brasília: Civilização Brasileira, 1975. p. 75. 12 ALBUQUERQUE, Diogo Velho Cavalcanti de. Fala recitada na abertura da Assembléia Legislativa da Provincial do Ceará pelo Exmo. Presidente da Província Diogo velho Cavalcanti de Albuquerque no dia 1o de novembro de 1868. Fortaleza, Typ. Brasileira, p. 19. No dia 28 de dezembro de 1868 foi sancionada pelo presidente da província Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque, a lei de número 1254 que se destinou a liberar os escravos de preferência do sexo feminino que fossem nascendo. As alforrias seriam realizadas no ato do batismo, sendo fixada a importância para cada um de 150$000 réis pagos pelo cofre público. Somente em 8 de novembro do ano de 1869 foi ela posta em prática pelo presidente João Antônio de Araújo Freitas Henriques, vigorando até 1872, quando prevaleceu a Lei do ventre livre. Ver: GIRÃO, Raimundo. A Abolição no Ceará. 4o edição. Fortaleza: Prefeitura Municipal de Maracanaú, 1988. 13 No dia 06 de novembro de 1866 o governo imperial expediu um decreto concedendo liberdade àqueles escravos da nação que servissem ao exército, estendendo esse benefício às suas esposas se fossem casados. Muitos escravos receberam carta de alforria para lutarem na guerra do Paraguai. O convívio íntimo entre ex-escravos e os demais membros do exército possibilitou a alteração gradativa da opinião desses últimos sobre o cativeiro. Quando a guerra terminou, em 1870, o exército passou a ter uma maior importância política e social dentro da sociedade. Como afirma Lilia Moritz "a elevação política e social do exército e o fortalecimento da campanha abolicionista. A força militar do império era até então a Guarda Nacional, formada por grandes latifundiários, comerciantes e políticos voltados para o controle da ordem e a manutenção do poder da aristocracia agrária. O exército não possuía então qualquer significado social, sendo formado por homens livres, não-proprietários, recrutados mais por castigo ou desemprego. É só com a guerra do Paraguai que o exercito passa a Ter uma posição política e social de destaque, negando-se depois a capturar escravos fugitivos e dando dessa forma importante apoio à campanha em favor da abolição." SCHWARTZ, Lilia Moritz. Retrato em Branco e Negro: jornais, escravos, cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 33. Terminada a guerra o exército se opunha a perseguir escravos fugitivos, pois os identificava enquanto companheiros que haviam combatido durante as batalhas sob a mesma condição. Joaquim Nabuco escreveu na sua obra: "Essa cooperação dos escravos com o exército era o enobrecimento legal e social daquela classe. Nenhum povo, a menos que haja perdido o sentimento da própria dignidade, pode intencionalmente rebaixar os que estão encarregados de defendê-lo, os que fazem profissão de manter a integridade, a independência e a honra nacional... desde esse dia pelo menos o Governo deu aos escravos uma classe social por aliada: o exército". NABUCO, Joaquim. Abolicionismo. 6o edição. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 35.
26
maioria foi com o auxílio pecuniário do governo. Os preços variavam entre
1:000$000 réis a 1:500$000 réis pagos em espécie ou com "apólices da dívida
pública". Em Fortaleza essas alforrias foram mais numerosas em 1867 quando
foram libertados 126 escravos.
No ano de 1870, precisamente no dia 22 de outubro, foi sancionada a
resolução de número 1.344 estabelecendo a quantia de quinze contos de réis
para a libertação dos escravos, sendo alforriados 83 indivíduos, 21 na capital e
62 no interior. A lei 1254, durante os quatro anos de existência, alforriou 377
escravos.
Com a resolução da lei 2040 de 28 de setembro de 1871 foi destinado
às províncias um fundo de emancipação proveniente de impostos sobre a
venda e transferências de escravos, de loterias, de multas e de outras fontes.
Na província do Ceará, a primeira cota foi distribuída no ano de 1876, no valor
de 81:537$164 réis repartidos entre os 46 municípios existentes na época,
sendo libertados apenas 110 cativos, em sua maioria do sexo feminino, no
valor total de 48:116$983 réis. Cada escravo custou em torno de 437$000 a
420$000 réis. Juntamente com os 110 cativos libertados, somaram-se mais 14
alforriados a título oneroso e 280 a título gratuito, perfazendo um total de 404,
conforme constam nos números oficiais de 1880. Entretanto, dos 46
municípios, apenas 20 usaram o fundo e isso aconteceu devido ao descaso de
alguns senhores, como também às dificuldades de ordem burocrática.
A partir de 1870, com a queda do cultivo algodoeiro, a exportação de
escravos tornou-se uma importante fonte de renda para alguns proprietários.
De 1871 a 1876 foram 3.256 escravos. A saída desses cativos não abalou
economicamente a província devido ao fato da mão-de-obra servil ser pouco
empregada nas atividades agropecuárias.
O tributo cobrado por cada escravo exportado da província em 1851
custava 5$000 réis, em 1852 passou para 20$000 réis por cada cativo com
idade até 12 anos e 30$000 réis para os que tivessem acima dessa idade. Em
1853, subiu para 30$000 e 60$000 réis respectivamente. Em 1854, passou
para 60$000 réis sem discriminação de idade. Em 1855, aumentou para
27
100$000 réis, permanecendo até 1860, quando baixou para 40$000 réis.
Sendo que, em 1868, novamente baixou para 30$000 réis, permanecendo até
1871, quando subiu novamente para 60$000 réis.14 Isso significa que nesse
período, uma das principais rendas na receita orçamentária da província foi o
imposto cobrado sobre a exportação dos escravos.
O livro de notas relativo às transações de compra e venda de escravos,
como também procurações e hipotecas envolvendo os mesmos, realizadas
durante o período de 1865 a 1872 na capital da província, mostra-nos que dos
254 escravos negociados, grande parte era destinada à exportação. A maioria
dos escravos negociados vinha do interior da província, onde 116 eram
homens e 138 mulheres. 242 não possuíam nenhuma qualificação profissional
e dos doze que sobraram, nove mulheres eram cozinheiras, dois eram
pedreiros e um era sapateiro. Tal documento nos apresentou nomes de
grandes negociantes de escravos da província como, Jacob Cahu, Joseph
Alcain, Guilherme Augusto de Miranda, Joaquim da Cunha Freire e Francisco
Coelho da Fonseca.15
Foram arrolados no censo realizado na província do Ceará no ano de
1872, 721.686 habitantes, onde 31.913 eram escravos. 182.760 pessoas
trabalhavam na agricultura sendo cativos 7.375 desses trabalhadores. Os
escravos foram pouco empregados na atividade da agricultura, grande parte
realizou atividades de jornaleiros e criados, um total de 21.613 indivíduos. Dos
11.363 escravos restantes foram inclusos como “outros”. Acreditamos que essa
classificação “outros” dizia respeito àqueles escravos que não desenvolviam
uma atividade específica, mas várias.
Contudo, ao ser feito pelo governo, em 1873, o controle da "matrícula
especial" como determinava a lei 2040, verificou-se que o número de escravos
diferentemente daquele apresentado no censo de 1872 era de 32.652, onde foi
constado que durante o período de 1871 a 1873 nasceram 2.597 filhos livres
de mulheres escravas, demonstrando que a população oriunda do cativeiro
crescia numa proporção de 4% ao ano. 14 Ver: SILVA, Pedro Alberto de Oliveira. Declínio da escravidão no Ceará. 1988. (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de Pernambuco: Recife, 1988. 15 Ver: Arquivo Público do Estado do Ceará, Livro de Notas, Fortaleza, 1865-1872, Livro Número 1515.
28
Com a seca advinda no ano de 1877, intensificou-se o tráfico
interprovincial de escravos. A província exportou oficialmente nos três anos de
estiagem mais de seis mil escravos, 19% dos escravos existentes na província
no ano de 1872, precisamente, 6.559 cativos. Acompanhando o raciocínio de
Pedro Alberto de Oliveira chegaremos à cifra de 12.867 escravos a menos na
província durante o período de 1877 a 1880.
O número total de escravos exportados nos três anos da seca totalizou 6.559 cativos. Se acrescentarmos 1.108 referentes a 1880, com o último ano do tráfico interprovincial, e ainda sob as conseqüências diretas da estiagem, aquela quantidade sob para 7.667 indivíduos. Acrescentando-se, ainda, a esses escravos exportados aqueles possíveis 5.200, que devem ter morrido no mesmo período.16
Como se vê as sociedades libertadoras surgiram numa forte crise
escravista, pelo menos no que diz respeito ao Ceará. Foi na região do maciço
de Baturité que surgiu a primeira libertadora, precisamente no dia 25 de maio
de 1870. Dela faziam parte indivíduos ilustres da sociedade cearense, dentre
eles o juiz municipal Antônio Pinto Nogueira Aciolly. Em junho do mesmo ano,
no município de Sobral, foi fundada a libertadora sobralense, destinada a
alforriar somente as crianças escravas do sexo feminino. Na capital da
província, a Perseverança e Porvir foi a primeira libertadora a se instalar, em
1879.
Um poeta abolicionista, em homenagem a libertação de Acarape,
escreveu:
Foi assim que Acarape levantou-se, E o manto enoitado que vestia, Em sublime roupagem transformou-se, Pois o negro não mais, ali, gemia, E a louca phalange encorajou-se Prevendo as victorias que teria, A dizer entre palmas, entre bravos: Tenhamos cidadãos em vez de escravos.17
A libertadora Perseverança e Porvir foi fundada com o objetivo de
alforriar escravos, bem como cuidar dos interesses comerciais e econômicos
de seus membros. Seus primeiros sócios fundadores e diretores foram homens
ilustres. Presidente: José Correia do Amaral, cearense, filho de portugueses. O
16 Ver: SILVA, Pedro Alberto Oliveira. Op. cit., p. 85. 17 Revista da Academia Cearense de Letras, ano LXXXIX, número 45, número especial, 1984, p. 61.
29
pai era dono de uma casa de ferragens, a primeira do ramo a se instalar em
Fortaleza. Vice-presidente: José Teodorico de Castro, também cearense e
comerciante. O tesoureiro: Joaquim José de Oliveira Filho, livreiro e sócio do
pai na livraria Oliveira. O secretário: Alfredo Salgado, formado em Comércio na
Inglaterra era também intérprete junto ao comércio, cabendo-lhe os negócios
realizados nos idiomas inglês, francês e alemão. Os diretores da sociedade:
Antônio Cruz, comerciante dono de uma casa de negócios e Barros da Silva
dono de uma casa comercial chamada "Bolsa do comércio", ambas localizadas
em Fortaleza.
A princípio a sociedade não tinha sede própria. Realizava as reuniões
em muitos lugares. Somente a partir de 1880, passou a funcionar
definitivamente no “castelo da rocha negra”, residência de José Correia do
Amaral. A associação era mantida através de contribuições espontâneas de
seus sócios, como também com uma determinada quantia vinda de cada
transação comercial realizada pela sociedade. Os diretores da Perseverança e
Porvir foram responsáveis pelo planejamento e criação da Sociedade Cearense
Libertadora, instalada e inaugurada no dia 08 de dezembro de 1880 no salão
de honras da Assembléia legislativa da província.
Nesse dia foram alforriados alguns escravos. Três adultos e três
crianças. Maria Correia do Amaral mãe do presidente da Perseverança e
Porvir, alforriou seu escravo Ricardo. O tenente Filipe de Araújo Sampaio
libertou sua escrava Joana. E os membros diretores da Perseverança e Porvir
deram as cartas de liberdade de Filomena com três filhos. Um dos sócios,
Antônio Dias Martins, narrou os acontecimentos daquele dia:
O resultado não poderia ser mais compensador, nem mais auspicioso para nós e para vós: - a libertação de três adultos, sendo uma mãe com três filhos, uma mulher e um homem e, mais que tudo, a inscrição de 225 sócios. Se os nossos pequenos esforços produziram tão imensos resultados, vós que encetais a vida da Sociedade Cearense Libertadora, tão cheia de adesões sinceras, tão rica de esperanças e tão santa aspirações, com o vosso elevado conceito e dedicação de patriotas provados e cearenses distintos que sois e que estremeceis o querido torrão natal, vós, como dizíamos, tereis muito maior colheita nesta seara luxuriante que enriquece de patriotismo o coração do generoso e nobre povo cearense"18
18 Relatório do secretário Antônio Dias Martins. Apud. GIRÃO, Raimundo. Op. cit.., p. 88.
30
Um dos sócios da Perseverança, o Sr Antônio Bezerra, por ocasião da
fundação da Sociedade Libertadora, declamou:
Moços! Uma grande idéia Vos anima os corações, O mais belo dos padrões! Sim, que vos sobra energia E tendes n' alma a magia Que gera as revoluções; Se a turba não vos entende Dos moços é que depende O destino das nações. Avante, pois, que este século É o século de grande ação, Repugna à luz do progresso A idéia da escravidão; Bem firmes no vosso posto A pátria de tantas glórias Que viu-nos livre nascer, Embora lh'embarquem a marcha Não pode escravos conter; É tempo que a liberdade Aos brados da mocidade Erga os brios da nação, Que igualados aos direitos Batidos os preconceitos, Seja o escavo um cidadão19
Terminada a sessão, os sócios da Sociedade Perseverança e
Porvir escolheram a diretoria que iria compor a recém criada Sociedade
Libertadora. João Cordeiro ficou como presidente; José Correia do
Amaral como vice-presidente; Frederico Borges 1o secretário; Antônio
Bezerra de Menezes 2o secretário; Advogados, Manuel Portugal e
Justino Francisco Xavier; João Crisóstomo da Silva Jataí, tesoureiro; e
como procuradores José Caetano, João Carlos Jataí, João Batista
Perdigão e Eugênio Marçal.
Na verdade, pouco se sabe sobre todos os integrantes da Sociedade
Cearense Libertadora e sobre a sua origem social. Enquanto alguns autores,
dentre eles Almir Leal e Gleudson Passos ressaltam alguns aspectos da
formação intelectual de parte dos membros da diretoria da Libertadora
Cearense os posicionando enquanto oriundos de uma aristocracia agrária,
19 Antônio Bezerra, Revista da Academia Cearense de Letras, ano LXXXIX, V, 45, 1984, número especial, p. 98-99.
31
outros encontram nessas pessoas representantes de novos segmentos
urbanos bem distintos da aristocracia proprietária de terras.
Entendemos que uma das maneiras que temos para melhor defini-los
seja seguir de perto suas atividades em atos, gestos e palavras. Esses
indivíduos não eram originários das camadas mais pobres da população
cearense, mas também não eram totalmente oriundos e porta vozes exclusivos
dos interesses das classes dominantes. Por outro lado, é certo que sua
composição social os situaria enquanto membros das camadas mais altas da
sociedade. Sua atuação não pode ser explicada exclusivamente em termos de
defesa de interesse de classes. Apesar de possuírem estreitos laços de
parentescos, que os atavam a famílias proprietárias de terras, sua atuação se
dava no contexto urbano. Logo entendemos que esses indivíduos em grande
parte eram intelectuais que procuravam legitimar e respaldar cientificamente
suas ações e posições em determinadas instituições do saber, como Academia
Francesa, Academia Cearense de Letras e posteriormente Instituto Histórico
Cearense.
Os membros das libertadoras cearenses, especificamente, Sociedade
Cearense e Perseverança e Porvir, pertenciam ao meio urbano, faziam parte
da elite letrada cujo pressuposto supunha o engajamento nos ideais europeus.
Para esses abolicionistas, o fim da escravidão levaria o país ao
desenvolvimento social, político e econômico.
Grande parte dos membros da diretoria da Sociedade Cearense
Libertadora interpretou a realidade na qual viviam sob o prisma de teorias
positivistas e evolucionistas, que foram introduzidas no cenário brasileiro a
partir de 1870. Contudo, não seguiam à risca tais doutrinas, mas as
interpretavam segundo seus interesses, como afirma Lilia Schwarcz:
[...] a entrada coletiva, simultânea e maciça dessas doutrinas acarretou, nas leituras mais contemporâneas sobre o período, uma percepção por demais unívoca e mesmo coincidente de todas essas tendências. Tais modelos, porém, foram utilizados de forma particular, guardando-se suas conclusões singulares, suas decorrências teóricas distintas. Dessa forma, se a noção de evolução social funcionava como um
32
paradigma de época, acima das especificidades das diferentes escolas, não implicou uma única visão de época, ou uma só interpretação.20
Grande parte dos membros da diretoria da Sociedade Cearense
Libertadora teve como objetivo defender preceitos norteadores da ordem
burguesa como: liberdade política e econômica, industrialismo e
desenvolvimento tecnológico.
Os sujeitos da mocidade cearense potencializaram sua máquina discursiva apropriando-se de enunciados e conteúdos simbólicos coletivos daquele espaço social como a moral e a força. Decodificando para aquele campo de experimentações subjetivas os enunciados da ordem burguesa como liberdade política e econômica, industrialismo, desenvolvimento tecnológico, progresso científico, produtos de intensidade desejantes do iluminismo, romantismo e do positivismo, aqueles homens tiveram um interesse em comum: integrar-se nas relações de poder [...]21
No dia da solenidade oferecida em homenagem à instalação da
Libertadora Cearense, muitas pessoas de outras associações compareceram
ao evento: indivíduos pertencentes à sociedade Cavalheiros do Prazer,
membros da Associação Democracia e Extermínio, Gabinete Cearense de
Leitura, Sociedade Artística Beneficente Conservadora e aqueles pertencentes
à Beneficente Portuguesa 2 de Fevereiro. Nesta ocasião grande parte dos que
discursaram enfatizaram temas como progresso e civilização.
Sucedeu-lhe na tribuna o ilustre secretário da Beneficente Portuguesa 2 de fevereiro que, representando a sua benemérita associação, traz-no dela a sincera adesão que tributamos a todos os acontecimentos em que a liberdade, ao sol benemérito de todas as nações, irradia-se nos horizontes onde assinalam o progresso e a civilização; o orador retira-se da tribuna ao som de palmas.22
O público era bem distinto: bacharéis, intelectuais, estudantes, párocos,
médicos, militares e algumas autoridades.
Diversas pessoas contribuíram com o que podiam, o ilustre Dr. Picaço ofereceu em adesão à causa da emancipação o produto de benefício da récita da opereta Madame Angot na Munguba, de que é autor, e lhe foi oferecido pelo empresário do Teatro S. José e cujo produto deverá ser aplicado à libertação de um escravo.23
O francês Pedro Hipólito Girard, dono de um quiosque localizado no
passeio público, ofereceu o produto da venda de uma noite à causa da
liberdade:
20 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870 – 1930). São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 43. 21 CARDOSO, Gleudson Passos. Op. cit., p. 46. 22 Ibidem, p. 89-90. 23 Ibidem, p. 92.
33
a diretoria da sociedade << Cearense Libertadora >> de acordo com a da <<Perseverança e Porvir>> resolveu em sessão de 22 de dezembro para findo promover um bazar expositor de prendas para juntar no passeio publico ao beneficio offerecido pelo Sr. P. Hypolito Girard; sendo, de entre os socios presentes à sessão, nomeada uma comissão composta dos Sr. Antonio Bezerra de Menezes, José Correa do Amaral, José Barros da Silva, José Theodorico de Castro24
A loja maçônica Fraternidade Cearense ofereceu 50$000 réis, o cônsul
alemão César de la Camp ofereceu 20$000 réis. O periódico Libertador
noticiou:
Às seis horas da tarde do dia 31 de dezembro estava armada no centro do passeio publico uma barraca [...] onde se achavam exposta todas as prendas colhidas.
Esta profusão de objetos dava uma vista esplendida pela projecção de bello effeito produzido pela illuminação, apresentado cambiantes belissimas.
A illuminação principal foi devida ao illustre engenheiro M. Seddon Morgan, a quem daqui tributamos os nossos cordiaes agradecimentos
Igual aspecto de phantazia offerecia o magnifico repuxo que ficava em frente ao bazar produzindo pelo effeito da luz atravez das lanternas de papel de cor-ora chuva de ouro, ora de perolas e as vezes ligeiros iris que assemelhavam-se as azas de beija-flores nas rapinas ondulações feitas pelas brisas do mar
Um concurso de cerca de setecentas pessoas animava ruidosamente a grande festa.
A musica do 15o batalhão de infantaria cedida pelo seu benemerito ... Eram 7 horas da noite e ia começar o leilão Muitos objectos foram vendidos – um bouquet de flores naturaes produziu,
depois de arrematado pelo Sr. Salgado, diretor da sociedade Perseverança e Porvir e pelo mesmo de novo offerecido , 30$000
O lanço teve suas alternativas: uma caixinha com perfumarias offerecida por uma jovem cearense deu 40$000
Assim continuou o leilão mais animado até as 10 horas, tendo produzido cerca de 900$000.
Ficando ainda por vender mais de dous terços das prendas expostas, e sendo a hora adiantada, ficou o leilão adiado para as duas noites seguintes.
O bom do Sr.Hypolito preparara então uma surpresa convidando a directoria e diversas familias para um bem servido banquete que os esperava no hotel L, Univers.
De facto alli encontramos uma profusa mesa, havendo um salão preparado para dança, abrilhantado com a sympathica presença de muitas senhoras, entre as quais se achava a jovem pianista brazileira Idália França que para logo recebeu-nos com uma brilhante execução de piano
Discursos, brindes e hurrahs foram proferidos inspirados na mais ardente idea – a liberdade, na mais perfeita cordialidade – a familia, no mais excelso sentimento – o enthusiasmo
Terminou-se as duas horas da manha (...) No dia 1 e 2 continuou sempre animado e concorrido o leilão; não sendo
possível, porém, concluir a venda de todos os objectos, adiou-se ainda para o dia 5 à noite.
No dia 5 as 5 horas da tarde começou o leilão das ultimas prendas, terminando animado, as 9 da manhã...25
24 O Libertador, 12 de janeiro de 1881, Número 01, p. 3. 25 O Libertador, 07 de fevereiro de 1881, Número 03, p. 6.
34
1.2 – O LIBERTADOR E SEUS IDEAIS
A Diretoria da Sociedade Cearense Libertadora utilizou a atividade da
imprensa enquanto instrumento de divulgação de seus anseios e ideais
políticos, sociais e econômicos. Os meios de comunicação foram para esses
indivíduos o principal instrumento de transmissão de seus ideais,
possibilitando-lhes formar uma opinião pública conivente com seus interesses.
No dia 1º de janeiro de 1881 a Sociedade Libertadora editou o primeiro
número do jornal Libertador:
Com o título – Libertador – veio a luz nesta capital mais órgão de publicidade, da Sociedade Cearense Libertadora [...] destina-se à sustentação do problema mais difícil que preocupa actualmente o pensamento nacional – a extinção do elemento servil.26
O Libertador apresentou publicação irregular. Do número 01 ao número
07 saiu quinzenalmente com oito páginas em média, do número 08 ao número
18 circulou semanalmente com quatro páginas. Em 28 de setembro de 1881 foi
editado um número especial em comemoração ao aniversário da Perseverança
e Porvir, outro no dia 08 de dezembro em comemoração à fundação da
Sociedade Cearense Libertadora e mais um em comemoração ao aniversário
da Sociedade Libertadora Cearense que fazia um ano de existência.
A creação do libertador é ainda um facto de maxima importancia, porque é a imprensa um grande agente para a realização de grandes ideias principalmente esta, que deve ser discutida com toda a largueza e lucidez, portanto nossos emboras àqueles que promoveram esse grande meio poderoso, essa alavanca potente, que se chama imprensa.27
O jornal poderia ser adquirido em avulso pelo valor de quatro réis e a
assinatura trimestral pelo custo de 2:000 réis. Foi impresso na Typogragia
Brasileira até o número 06, depois passou a ser editado na typografia do jornal
O Cearense. Tinha como formato 21,5x30 cm., 8 páginas divididas em
secções: Libertador, Gazetilha, Expediente, Folhetim, Literatura e Páginas do
Povo. Os redatores eram Antônio Bezerra de Menezes, José Teles Marrocos e
26 O Libertador, 15o de Janeiro de 1881, Número 02, p. 4. 27 O Libertador, 24 de março de 1881, Número O7, p. 2.
35
Antônio Martins. Como colaboradores, Frederico Borges, Justiniano de Serpa,
Martinho Rodrigues, João Lopes, Abel Garcia, Almino Álvares Afonso.
O jornal surgiu com o propósito de atuar na campanha publicitária em
favor da emancipação da escravidão na província do Ceará, primava por uma
escrita eloqüente e poética, sempre se remetendo à "consciência pública",
como maneira de convencimento de suas idéias.28
Em homenagem à fundação do jornal, escreveu um poeta anônimo:
O grande campeão da liberdade, O temido jornal – "libertador" – Se fez o horóscopo da verdade O erro profligando com fervor; A carne apodrecida da maldade Queimava com prazer, embora a dor, Viesse despertar o escravismo, O qual inda sonhava o despotismo.29
O Libertador, nas edições que antecederam o dia 25 de março de 1884,
sempre se referiu à liberdade enquanto elemento principal para o
desenvolvimento das letras, artes, indústria, lavoura, agricultura e que tais
desenvolvimentos somente poderiam ocorrer com o fim da escravidão. A
abolição permitiria a nação crescer e ser tão forte política e economicamente
quanto alguns países do velho mundo, dentre eles, França e Inglaterra.
Os membros da Libertadora Cearense desejavam ver a província do
Ceará como a primeira do Império a libertar seus escravos, "podemos exclamar
cheios de prazer aos nossos irmãos do sul: vinde apprender comnosco a ser
livres!" Ainda exaltavam o espírito empreendedor do povo cearense, "vinde ver
como um povo acabrunhado de mil calamidades naturaes, encara os perigos, e
a despeito de todas as desgraças só sonhara com as grandezas que lhe inspira
o esforço de sua constancia."30.
28 "...a consciência pública revoltou-se, e a liberdade reclamou justiça.” O Libertador, 1o de Janeiro de 1881, Número 01, p. 1. 29 Revista da Academia Cearense de Letras, ano LXXXIX, V, 45, 1984, número especial, p. 61-97. 30 Ibidem, p. 2.
36
Enfatizavam o quanto era vergonhoso para uma nação ainda possuir
escravos: "em meio das grandes idéias que nobilitam o nosso século, uma
grande vergonha faz ainda corar a nossa pátria."31 A grandeza do país, com
seu imenso território, rico em recursos naturais, rios, oceanos e matas, torna-
se diminuta com a existência da escravidão.
Em quanto a liberdade não congraçar-nos no mesmo amplexo, como irmãos que somos perante Deus e a humanidade, perante a civilização e o progresso, seremos um povo sem autonomia, sem consciência do nosso valor...32
Acreditavam que a escravidão representava uma violação às leis
econômicas, políticas e sociais do mundo contemporâneo. Os membros da
sociedade viam a escravidão como um entrave à racionalidade econômica e ao
desenvolvimento de uma nação:
Considerar nos effeitos da emancipação dos escravos dos Estados Unidos, da qual, não obstante Ter sido effectuada de chófre, resultaram grandes benefícios para aquelle paiz.
Ali, os antigos escravos tem feito extraordinário progresso em sua educação moral, scientifica, e industrial como se acha perfeitamente demonstrado em alguns artigos sobre a epigraphe <<educação de libertos>> publicado em novo mundo de junho e julho de 1879.
Quando muitos philantropos da Europa não podiam acreditar na possibilidade de conseguir, que em poucos annos a raça africana fizesse a evolução da semi-barbaria da escravidão para o maximo estado de civilização, no goso de todos os direitos de cidadão de uma Republica perfeitamente democratica, vemos que esse prodigio esta realizado: há negros nas universidades, nas academias, nos collegios e nas escholas; há negros medicos, advogados e em todas as profissões; há negros deputados e senadores; há negros padres e em todos os ramos da religião christan
Sejamos por tanto, ousados e resolutos em affirmar os princípios de uma pura e radical democracia, clamando sem cessar pelo resgate dos captivos.
O progresso, como a religião da humanidade, tem por scopo supremo a fraternidade dos homens e dos povos, commungando todos os mesmos agape os mesmos direitos e os mesmos deveres.
Nós que representamos a opinião, queremos a consagração politica e social dos princípios de liberdade, de justiça de solidariedade, que constituem a sciencia moderna. 33
Os abolicionistas da Sociedade Cearense Libertadora utilizaram-se do
jornal Libertador para expressarem-se politicamente, criticando duramente
aqueles que agiam contra seus interesses. Os que se manifestavam contra ou
se negavam a ajudar eram execrado pelos membros da diretoria: "verificou-se
e está provado que o homem que negou uma pequenina offerta a sympathica
31 O Libertador, 1o de Janeiro de 1881, Número 02, pág 01. 32 Ibidem, p. 1. 33 O Libertador, 15 de Janeiro de 1881, Número 02, p. 3.
37
comissão de senhoras, sob o futil pretexto de ser contra a ideia (logo é
escravocrata)."34
O juiz municipal José Gonçalves de Moura sentiu a cólera dos diretores,
pois mantinha em cativeiro uma mulher de nome Esperança que se dizia livre.
Os abolicionistas denunciaram e condenaram tal situação:
Os escravagistas, os miseraveis especuladores de carne humana, estes pequenos miseraveis, q' tem accumulado fortuna à custa de tantas lagrimas e gemidos, acossados abolicionista, vendo que a cada momento lhes fugirá das mãos essa nova especie de velocinio de ouro.
E que os infames negociantes de negros rastejam-se até o crime, reduzindo pessoas livres à escravidão.
Mas não nos abandona a fé na generosa e grandiosa propaganda, que levamos por diante. Um dia o escalbello de reo há de ser o throno de ouro desses nojentos e asquerosos egoistas e ambiciosos vulgares, que tem os esgares do avarento, a alma de lama [...]35
E novamente no dia 29 de junho do mesmo ano investiram contra
Petrolina Alves Pontes e Fideralino Ribeiro da Silva, acusados de manter em
seu poder, “mettidos a ferro”, escravos considerados livres. Os abolicionistas
denunciaram o fato ao chefe de polícia da província:
Hoje que a idéa da libertação dos escravos na província não é mais uma utopia, que todos os verdadeiros cearenses se esforçam por estirpar de uma vez o cancro do elemento servil que tem sido o motivo do retardamento do progresso, que de coração anhelamos para este querido paiz, existe ainda alguém que se oppõe ao impulso do grande movimento, lançando mão de meios ignóbeis para neutralisar-lhe toda ação
Existem ainda creaturas que não corando do ridículo papel que representam perante os homens de verdadeiro merecimento, escudam-se na infâmia, praticando actos que na phase presente bem os recommendão a execraçam publica [...]
Em 30 de setembro de 1878 [...] D. Guilhermina Hermilina Freire, concedeu cartas de liberdade a seus escravos Salustiano, Luiza e Rufino [...]
Pois bem; agora aparece Fidelino Ribeiro da Silva, protestando serem os ditos escravos considerados libertos, porquanto aquella senhora , que falleceu em dezembro do ano passado, havia ficado a dever Petrolina Alves Pontes, e quer a todo o transe que os escravos, que entretanto a três anos gozavam de inteira liberdade, fiquem por pagamento da divida [...]
Denunciando-lhe ao Ilm.Sr.Chefe de Polícia, confiamos que, tomando em consideração os soffrimentos dos mesmos perseguidos, mandará informar-se do ocorrido e punira o criminoso com o rigor da lei, para desse modo desbaratar a audacia dos negreiros, que ainda se atrevem a escravisar pessoas livres [...]"36
Os sócios diretores da Libertadora Cearense também questionaram como estava sendo feita a classificação dos escravos na capital:
Vem apelo chamar também a atenção do senhor Fleury para a classificação nessa capital
Seria de grande interesse para o fundo de emancipação a reforma desse serviço que como se sabe foi feito com toda a indifferença e por tanto inçado de defeitos que se notam a primeira vista de observação; além de que hoje o valor dessa
34 O Libertador, 12 de janeiro de 1881, Número 01, p. 4. 35 O Libertador, 16 de junho de 1881, Número 11o, p. 1. 36 O Libertador, 29 de julho de 1881, Número 15, p. 1.
38
criminosa propriedade está entre nos tão depreciado que vale a pena ser a tal classificação totalmente reformada
Com o movimento abolicionista promovido no imperio, fechados os portos das provincias do rio de janeiro, são paulo, minas gerais, como actualmente se acham com a promoçõa da proibição da exportação pelo porto desta capital obtida pela Sociedade Cearense Libertadora, um escravo da capital e mesmo do interior da provincia não pode Ter maior valor de 40$000 reis
É portanto uma propriedade completamente depreciada e assim não pode absolutamente vingar a avaliação anteriormente feita, nesta capital, em sobral, e em outros municipios
E por tanto appellamos para as autoridades competentes, cuja responsabilidade tornar-se-há solidaria com os delinquentes se não houverem severas e promptas providencias37
Outras vezes utilizavam discursos comoventes, procurando sensibilizar seus leitores, posicionando-se como “irmãos”, “amigos” e “pais” dos cativos.
<< hontem as 3 da tarde por ocasião de atracar a bordo do vapor Ipojuca uma lancha que ia receber carga, vinte escravos dos 52 que se achavam no mesmo vapor, saltaram na lancha procurando ganhar terra>>
<< um dos mesmos escravos dispondo, porém, de mais energia, lançou-se ao mar, e não obstante a grande distancia em que se achava da terra, conseguio a nado chegar até o trapiche, onde mais morto do que vivo, foi aprisionado e levado a bordo.>>
<< na hora em que se deu essa ocorrencia a praia estava quase deserta e assim os escravos não poderam receber nenhum auxilio externo>>
registrando esse acontecimento externamos o mais profundo pezar que nos invadio a alma, por não termos a felicidade de acharem-se na praia, em tal emergencia, os nossos abolicionistas
ah!... si elles lá estivessem-os infelizes teriam encontrado o pae, o irmão e o amigo que nunca tiveram em sua vida!38
1.3 – COMPRAS, VENDAS E FUGAS
Do mesmo modo que a imprensa contribuiu para a campanha
abolicionista, também serviu aos interesses escravocratas. Os periódicos da
província a partir da segunda metade do século XIX, estão repletos de
anúncios de compra, venda e fugas de escravos. Nesses anúncios vinham
normalmente assinalados o nome ou alcunha do cativo, como também a
descrição física, temperamento, hábitos e deformações.
Ha oito dias desapareceram [sic] da casa do abaixo assignado um escravo de nome Matheus, com 25 annos de idade, mulato claro, cor pallida, palpebras grossas, com uma cicatriz de ferida recente em uma das pernas, acual tem atada uma corrêa de veado. Levou camisa e cerola de algodãozinho branco e um chapéo de palha velho. Sem motivo algum para fugir, visto que era livre andar e trabalhar na rua quando lhe parecia; suspeita-se que tenha acostado a algum abarracamento onde tenha deparado algum conhecido. Recommenda-se aos srs. Comissarios e administradores respectivos
37 O Libertador, 03 de março de 1881, Número 05, p. 5. 38 O Libertador, 17 de março de 1881, Número 06, p. 2-3.
39
e gratifica-se aquem der delle exacta noticia ou o trouxer á casa, sendo dispensável qualquer violência. Fortaleza, 9 de janeiro de 1880. Fenelon Bomilcar da Cunha.39
Havia algumas constâncias em relação aos escravos descritos.
Normalmente, a idade variava de 10 a 60 anos, sendo mais constante a
compreendida entre 15 e 30 anos. Aqueles com estatura alta ou "bastante alta"
eram mais freqüentes do que os de estatura baixa, sendo os de estatura
"regular" ou mediana os mais numerosos. Quanto a cor, os escravos eram
descritos de modos bem variados, sendo mais freqüente a designação de
tonalidade "cor mulata" ou "parda".
Gratifica-se bem quem aprehender os escravos Lourenço, pardo, de 28 annos de idade, baixo, cabellos crespos, olhos pretos, nariz chato, barbado, e boa physionomia; Roberto, preto, de 22 annos de idade, alto, cabellos carapinhos, olhos pretos, nariz chato, pouca barba e boa physionomia, entregal-os na Imperatriz ao senhor Henrique Cordeiro dos Santos, e na capital ao Dr. Meton da Franca Alencar. Supõe-se que elles andão nos abarracamentos dos retirantes.40
Os corpos eram descritos como, "franzino", "regular" ou "bonita figura".
Os cabelos eram em geral descritos como "carapinhados" ou "pixains", mas
também havia aqueles assinalados como "crespos", "cacheados" ou "corridos".
O rostos eram "compridos" ou "redondos". Os dentes geralmente vinham
descritos como "podres" ou "quebrados", ou então com algumas distinções que
indicava uma característica da tribo ao qual pertenciam.
Desapareceu da capital do Ceará, em 23 de setembro de 1879, o escravo José, trajava camisa de algodão grosso e calça de riscado americano, tendo ido ali ser vendido ao Sr. Barão da Ibiapaba, da casa de quem se evadio; quem o pegar e entregar na capital ao mesmo Barão, ou aos senhores João Cordeiro & Cia, no Acarahú ao senhor Antonio Ferreira Junior, ou ao major Francisco Theophilo Ferreira será gratificado com cem mil réis Signaes: idade 19 annos, nariz regular, cabellos quasi carapinhos, olhos pretos, altura baixa, rosto redondo, tem os dentes abertos a faca em um delles na frente quebrado com uma lasca tirada, já querendo mudar de cor.41
Os escravos presentes nos anúncios dos periódicos cearenses, em sua
grande maioria, apresentavam-se como "bastante ladinos" ou "espertos e bem
falantes". Quanto ao temperamento, "prosistas", "risonhos", "muito
despachados". Com relação as preferências lúdicas, as mais freqüentes eram
aquelas relacionadas com dança e música, "toca bem gaita", "Mete-se a
cantador", "é apaixonado por samba é cantador de chulas". Os hábitos são
39 Cearense, 11 de julho de 1880. 40 Cearense, 09 de julho de 1878. 41 Cearense, 02 de maio de 1880.
40
aqueles relacionados com bebida, fumo e jogos, "um tanto amigo de bebidas",
"toma tabaco e fuma", "vício de jogar a dinheiro".42
Nos anúncios de escravos fugidos publicados, nos periódicos cearenses,
a partir da segunda metade do século XIX, constatou-se a presença de severas
sevícias. Foi possível perceber as péssimas condições sob as quais os
escravos estavam sujeitos, os anúncios vinham acompanhados de informações
como: tinham nas costas "marcas de chicotes" ou "grandes cicatrizes", ou
ainda, "sem o dedo midinho", como também, queimaduras pelo corpo,
membros mutilados e outras atrocidades do gênero.43
1.3 – A LIBERTADORA EM MOVIMENTO
Essas organizações e associações libertárias, dentre elas a
Perseverança e Porvir e a Libertadora Cearense, tinham como objetivos em
comum fazer conexões entre si, visando a ampliação da campanha
abolicionista. Promovendo encontros, atuando na imprensa, apelando para o
público, formando uma opinião pública, criavam um clima de agitação. Seus
encontros e reuniões freqüentemente eram realizados em teatros, salões,
lugares alegres e exuberantes, e reuniam grande número de pessoas.
A SCL promoveu comemoração da data de 18 de fevereiro aniversario da abolição dos escravos de Cuba, uma festa literária que teve lugar no passeio publico na noite do dia 17 de fevereiro
Substituíram-no seguidamente os senhores... que recitaram eloquentes discursos ... e terminados entregue por parte do cidadão Luiz Eustaquio Vieira uma carta de liberdade a escrava Maria de 38 anos
No dia 18 a mesma hora(7 horas) partiu do passeio publico uma grande passeata que tranzitando algumas ruas foi dissolver-se as 7 horas no teatro S.José onde subiu a cena o drama de propaganda – A Libertadora, produção de José de Lima Penante ... até o desfecho final no ultimo acto onde o phrenesi do enthusiasmo levou a tribuna L.Pessoa Barbosa de Freitas e F.Severo tendo este ultimo lido a carta de liberdade de um escravo ...44
42 Ver: RIEDEL, Oswaldo. Escravo no Ceará: Perspectiva Antropológica do Escravo no Ceará. In: Das senzalas para os salões. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1988. Como Também, SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. cit.. 43 Ver: CAMPOS, Eduardo. Revelação da Condição de Vida dos Cativos do Ceará. In: Da Senzala para os Salões. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1988. 44 O Libertador, 03 de março de 1881, Número 05, p. 6.
41
Era comum nessas festas ou encontros alforriarem-se escravos em
homenagem ao evento. De fato podemos considerar essas ocasiões como
grandes espetáculos. No dia 15 de janeiro de 1881, na inauguração da via-
férrea da cidade de Sobral, foi dada liberdade a alguns escravos, como noticiou
o Libertador de 17 de fevereiro de 1881.
Assim não há uma festa mais imponente, um regozijo publico, um soirée mais importante, que não seja sellado com uma carta de liberdade
Os engenheiros da via-ferrea de sobral, inaugurando o trafego de sua primeira secção, se cotisaram para alforriar uma escrava, a quem entregaram carta de liberdade no meio do esplendido festim que teve lugar no dia 15 de janeiro
Os amigos do senhor Cordolino Barbosa Cordeiro, juiz de direito de Baturité, para tornar mais importante o baile, que lhe ofereceram no dia 7 deste, contribuiram com mais 200 e manumitiram uma escrava
Pelo mesmo motivo o sr Joaquim José de Assis e sua sogra libertaram também uma escrava de 15 annos45
Um pouco mais de um mês depois da instalação da sociedade, no dia 30
de janeiro de 1881, os membros diretores da Libertadora Cearense voltaram a
se reunir. O abolicionista Antônio Bezerra, na sua obra O Ceará e os
Cearenses, narrou os acontecimentos desse dia. Os membros da Sociedade
Cearense se reuniram num ambiente denominado “sala de aço”, onde se
achava uma mesa coberta por um pano preto com duas lanternas na
extremidade e rodeada por vinte cadeiras; nesse ambiente eles decidiram os
caminhos a tomar. João Cordeiro, que estava sentado à cabeceira da mesa,
levantou-se e retirou do seu colete um punhal o qual fincou no meio da mesa e
disse:
Meus amigos exijo de cada um de nós um juramento sobre este punhal, para matar ou morrer, se for preciso, em bem da abolição dos escravos. Vamos travar uma luta horrivel com o governo, e por isso está em tempo de se retirar aquele que for amigo do mesmo governo ou dele for dependente. Quem não tiver coragem para tanto pode sair, que ainda sai em tempo; e logo se retiraram onze [...}46.
Logo depois, João Cordeiro ditou e Antonio Bezerra escreveu o seguinte
estatuto: "Art.1o – Um por todos e todos por um. Parágrafo único – A sociedade
libertará escravos por todos os meios ao seu alcance”. Depois de encerrada a
reunião, assinaram a ata os seguintes sócios: presidente, João Cordeiro; o
vice-presidente, José do Amaral; o 1o secretário, Dr. Frederico Borges; o 2o
45 O Libertador, 17 de fevereiro de 1881, Número 04, p. 4. 46 BEZERRA, Antônio. O Ceará e os Cearenses. Fortaleza: Tip. Minerva, 1906. P. 43-45.
42
secretário, Antônio Bezerra; os diretores, Antônio Martins, José Teodorico,
José Barros, José Marrocos e Isac do Amaral.
João Cordeiro, nas memórias publicadas na revista do Instituto do
Ceará, deu outra versão para o fato. Segundo ele, no dia 30 de janeiro de
1881, foi decidido pelos membros da libertadora, que seria destinada uma
comissão encarregada de elaborar um estatuto para a sociedade. Dias depois
os membros se reuniram para ler e aprovar o estatuto, mas houve muita
discórdia e João Cordeiro declarou:
[...] o projeto de estatutos que acaba de ser lido não convém. Nós queremos uma sociedade carbonária, sem ligações com o governo, que ocupe-se revolucionariamente da libertação dos escravos por todos os meios ao alcance dos nossos recursos pecuniários, da nossa inteligência e da nossa energia. Os estatutos que nos convém devem ser simplesmente estes: – Art.1o – libertar escravos, seja por que meio for. Art 2o – todos por um e um por todos.47
O abolicionista Isac do Amaral, por sua vez, numa entrevista publicada
no jornal O Nordeste no ano de 1934, afirmou que os estatutos não foram
propostos por João Cordeiro, mas sim por Antônio Bezerra:
[...] a idéia triunfou e se formou um grupo de resistência que prosseguiu na luta, sendo de justiça destacar os nomes do punhado desse núcleo: João Cordeiro, Antônio Cruz, Antônio Martins, Antônio Bezerra, José Teodorico de Castro, Padre Frota, Alfredo Salgado, Frederico Borges, Almino Álvares Afonso, Manuel Albano Filho, João e José Albano, José Barros, João Carlos Jataí, José Marrocos, J. Cândido Maia, Justiniano de Serpa, Rodolfo Teófilo, Filipe Sampaio e Isac do Amaral... eram estes os tais dez libertadores [...] do lado da libertadora – ficamos com a maioria do povo, e do lado dos legalistas, tendo a frente o então Dr. Guilherme Studart, Julio Cesar da Fonseca Filho, João Lopes Ferreira Filho, Antônio Miranda e muitos outros filiados, ficou o apoio oficial e grande parte do funcionalismo público e dos proprietários, que não se queriam aventurar em lutas subversivas, que atentavam contra a constituição do império. Mas todos trabalhavam pela mesma causa [...] 48
A maioria dos membros da Cearense Libertadora entendia que a
abolição da escravidão era o mecanismo pelo qual a sociedade alcançaria o
desenvolvimento econômico, político e social. Tinham como referências leituras
cientificistas e evolucionistas, como também comungavam dos ideais liberais.
Eram a favor do livre comércio e do liberalismo econômico. Baseavam-se na
economia política inglesa. Entendiam que o Estado deveria intervir em algumas
decisões que envolvessem o direito público. Assim como Joaquim Nabuco,
entendiam que a escravidão era um mal que deveria ser superado.
47 Revista do Instituto do Ceará, Vol. 59, 1945. Apud. GIRÃO, Raimundo. Op. cit.
43
Para o abolicionista Joaquim Nabuco a escravidão deveria acabar
porque era um mal para a economia do país, pois lhe tirava a energia e a
resolução, desmoralizava-lhe e a rebaixava politicamente frente a outros
países. Ainda lhe impossibilitava o progresso material, pois a escravidão,
segundo o abolicionista, "impede a imigração, desonra o trabalho manual,
retarda a aparição das industrias, promove a bancarrota, desvia os capitais de
seu curso natural, afasta as máquinas, excita o ódio entre as classes, produz
uma aparência ilusória de ordem [...]"49.
Nabuco tinha 34 anos quando publicou o Abolicionismo. Defendeu uma
abolição moderada quanto aos métodos e formas de lutas. Foi claro: "[...] a
escravidão não há de ser suprimida no Brasil por uma guerra servil, muito
menos por insurreições ou atentados locais", 50 mas virá de "uma lei que tenha
os requisitos, externos e internos de todas as outras."51 Foi o abolicionista,
nesse sentido, o defensor da causa e o responsável por advogar a favor de
"duas classes sociais que, de outra forma não teriam meios de reivindicar seus
direitos, nem consciência deles. Essas classes são os escravos e os
ingênuos."52
A propaganda abolicionista para Nabuco, não deveria ser dirigida aos
escravos, mas aos homens "idôneos" que se encarregariam de defender os
interesses dos "míseros cativos" que, segundo ele, não teriam condições de
defenderem seus interesses por serem ainda "selvagens" e "bárbaros."
A propaganda abolicionista, com efeito, não se dirige aos escravos. Seria uma cobardia, inepta e criminosa, e, além disso, um suicídio político para o partido abolicionista, incitar à insurreição, ou ao crime, homens sem defesa, e que a lei de Lynch, ou a justiça pública, imediatamente haveria de esmagar. Cobardia, porque seria expor outros que a perigos que o provocador não correria com eles; inépcia, porque todos os fatos dessa natureza dariam como único resultado para o escravo a agravação do seu cativeiro; crime, porque seria fazer os inocentes sofrerem pelos culpados, além da cumplicidade que cabe ao que induz outrem a cometer um crime; suicídio político, porque a nação inteira – vendo uma classe, e essa a mais influente e poderosa do Estado, exposta a vindita bárbara e selvagem de uma população mantida até hoje ao nível dos animais e cuja as paixões, quebrado o freio do medo, não conheciam limites no modo de satisfazer-se [...]53
48 Entrevista apresentada no jornal O Nordeste, Fortaleza, edição de 24-03-1934. Apud. GIRÃO, Raimundo. Op. cit. 49 NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. 6o edição. Petrópolis: Ed. Vozes, 2000. 50 Ibidem, p. 35. 51 Ibidem, p. 35. 52 Ibidem, p. 35. 53 Ibidem, p. 39-40.
44
O emancipacionista elegeu alguns motivos pelos quais a abolição, com
requintes de emancipação, deveria acontecer o mais breve possível:
porque a escravidão, assim como arruina economicamente o país, impossibilita o seu progresso material, corrompendo-lhe o caráter, desmoralizando-lhe os elementos constitutivos, tira-lhe a energia e a resolução, rebaixa a política; habitua-o ao servilismo, impede a imigração, desonra o trabalho manual, retarda a aparição das indústrias, promove a bancarrota, desvia os capitais do deu curso natural, afasta as máquinas, excita o ódio entre as classes, produz uma aparência ilusória de ordem, bem estar e riqueza, a qual encobre os abismos de anarquia moral, de miséria e destruição, que do norte ao sul margeiam todo o nosso futuro."54
Acrescentando ainda:
Porque a escravidão é um peso enorme que atrasa o Brasil no seu crescimento em comparação com os outros Estados sul-americanos que a não conhecem; porque, a continuar, esse regímen há de forçosamente dar em resultado o desmembramento e a ruína do país; porque a conta dos seus prejuízos e lucros cessantes reduz a nada o seu apregoado ativo, e importa em uma perda nacional enorme e contínua; porque somente quando a escravidão houver sido de toda abolida, começara a vida normal do povo, existirá mercado para o trabalho, os indivíduos tomarão o seu verdadeiro nível, as riquezas se tornarão legítimas, a honradez cessará de ser convencional, os elementos da ordem se fundarão sobre a liberdade, e a liberdade deixará de ser privilégio de classe [..]55
Grande parte desses jovens intelectuais abolicionistas, denominados de
“mocidade cearense” tinha concepções bem próximas das de Nabuco, por
vezes idênticas. Nos seus discursos procuravam demonstrar que a escravidão
era um empecilho ao desenvolvimento, como também à organização de uma
sociedade inserida dentro dos padrões europeus de civilização. Cabendo ao
Estado a função de intervir em questões que envolvessem o direito público.
Como já foi dito, tinham ideais evolucionistas e cientificistas.
Acreditavam que uma nação só alcançaria a prosperidade seguindo um ideário
evolutivo-positivista, conforme pregavam os mestres europeus Darwin,
Spencer, Comte e outros que buscavam associar conceitos de ciência e
modernidade para o desenvolvimento dos povos. A abolição foi o modo
encontrado por esses indivíduos para alcançarem o ideal de uma sociedade
com valores burgueses. 56
O movimento abolicionista desencadeado pelos membros das
libertadoras, principalmente a Perseverança e Porvir e a Sociedade Cearense,
54 Ibidem, p. 91-92. 55 Ibidem, p. 91-92. 56 Ibidem, p. 91-92.
45
não foi um movimento de cunho humanitário e filantrópico. Para tais
abolicionistas, o fim da escravidão consistia na negação da grande
propriedade, na luta pela oportunidade de instrução pública para toda a
sociedade e por uma reforma eleitoral que permitisse uma maior participação
da população. Esses abolicionistas tinham como intenção mudar a estrutura de
produção de forma que outros setores da sociedade, que não somente o dos
grandes proprietários de terra, mas também pequenos produtores e as
camadas médias, passassem a ter uma participação política mais direta e uma
certa parcela de poder. Ainda buscavam um reconhecimento, sobretudo
político, onde o fim da escravidão era também o de uma instituição que
legitimava até então a ordem política e social vigente.
Esses abolicionistas estavam pensando a organização do mercado de
mão-de-obra, de forma que o fim imediato do regime de trabalho escravo viria
acompanhado de uma instrução educacional que formasse o ex-escravo nos
novos valores e comportamentos correspondentes ao modo de produção
capitalista que estava se instituindo. A mudança do sistema servil ao livre
deveria vir acompanhada da garantia de que a organização do trabalho não
seria ameaçada. A liberdade deveria vir atrelada às formas de exploração
capitalistas que estavam surgindo, se assim não fosse, qualquer outra forma de
comportamento seria analisado e interpretado como ociosidade, vício e crime.
Quando a Sociedade Libertadora Cearense foi fundada, o presidente
provincial André Augusto de Pádua Fleury mostrou-se simpático à formação de
uma sociedade com aqueles fins. Ele propôs aos seus membros cuidado
especial com a educação dos libertos, principalmente crianças e mulheres,
entendidos enquanto pontos basilares na constituição da família. O presidente
se preocupou principalmente com a questão moral, recebendo como resposta à
sua preocupação a promessa de que essa questão estaria presente no estatuto
da Sociedade. O presidente tinha como intenção fazer com que a província do
Ceará fosse a primeira a libertar os escravos no Brasil.
Alguns membros da libertadora entendiam que ao Estado cabia a função
de cuidar e dar "educação moral e intelectual" ao ingênuo, o instruindo a "ser
46
homem" e "cidadão", como ficou exposto no artigo publicado em 19 de agosto
de 1881, no periódico Libertador:
Aos poderes do Estado compete criar asylos onde os ingenuos sejam recebidos onde se lhe dê educação moral e intelectual, onde se lhe dê um officio, um meio de vida.
Nestes estabelecimentos o ingenuo aprendera a ser homem, virá a ser um cidadão. Apprenderá á moldar o seu procedimento pelas boas normas de moralidade, será um ente aproveitavel.
O ingenuo circunscripto à vida mesquinha que lhe dá a lei de 1871, será um auxilio para as revoltas de escravos, um contingente para os seus desmandos
O ingenuo educado livremente será o intermediário entre o senhor e o escravo, abrandará o rigor do primeiro, evitará a ferocidade do segundo
Não consideramos o escravo uma fera, ao contrario, julgamo-lo uma vectima, e quando fallamos em ferocidade reconhecemos um facto, cuja culpa recahe antes no agoz, do que no violentado, que se vae embrutecendo aos poucos, pelo seu regimen de vida.
A educação dos ingenuos, sobre ser uma garantia futura, um meio de desenvolvimento, é a effectuação de um princípio verdadeiro.
A moral e os costumes, a industria e a lavoura, tem tudo a lucrar com a educação dos ingenuos, e tudo à perder com a continuação do seu estado presente57
Ainda entendiam que a escravidão era incompatível com a moral cristã,
tinha caráter antieconômico, provocava a desagregação da sociedade e
causava insegurança:
É a própria biblia que condemna a escravidão, estabelecendo que todos os homens são irmãos, e como taes se devem amar uns os outros: é ella que manda cada um amar ao seu próximo como a si mesmo.
E será, por ventura, amar ao próximo como a si mesmo, Ter qualquer individuo um seu semelhante, um seu irmão, adstricto a sua vontade, obrigando-o a trabalhar sem lhe pagar salario algum, e muitas vezes suppliciando-o atrozmente?
Não quem é deveras catholico não pode querer a escravidão; e aquelles que se dizem catholicos e a appoiam , não passam de vis hypocritas58
1.4 – AS SENHORAS ABOLICIONISTAS
Os membros da Sociedade Cearense Llbertadora contaram também
com a ajuda das mulheres na empreitada contra a escravidão na Província.
Mimosas filhas de Moema, generosa e santa seiva do coração cearense! A vós que tendes a virtude de crear em vossos regaços de mães, varões illustres como Alencar – o espelho de vossa alma plena de poesia e amor; ou Sampaio – a
57 O Libertador, 19 de agosto de 1881, Número 17, p. 3. 58 O Libertador, 08 de agosto de 1881, Número 16, p. 2.
47
apotheose do vosso coração viril e esforçado de heroismo a vos viemos depor aqui em face do mundo sobre o altar da liberdade: publicas – a imprensa – um voto de sincera gratidão, um brado de jubiloso enthusiasmo pelo modo extremamente patriotico com que acudiste ao reclamo da bendita idéa da emancipação dos escravos que gemem ainda sob o nosso esplendido ceo, nos ferros do captiveiro."59
No dia 17 de fevereiro de 1881 o Libertador lançou um artigo em
homenagem às mulheres cearenses, principalmente, àquelas que ajudaram ou
contribuíram de alguma forma com a realização do Bazar Beneficente:
Na cruzada humanitária que o ceará levantou em prol da mais santa das causas, a mulher cearense tomou a posição mais nobre
Seu nome figurou logo na primeira pagina do livro que recolhia os sufragios abolicionistas
Seus serviços também não se fizeram esperar e ellas nos prestaram com extremo de amor e dedicação
[...] e muito que fizeram as senhoras cearenses no bazar expositor
a mesma dedicação nos veio ainda penhorar no concerto que teve lugar em beneficio da SLC.60
Foi fundada na noite do dia 18 de dezembro de 1882, na chácara do
abolicionista José do Amaral, localizada no Bairro do Benfica, na cidade de
Fortaleza, "uma sociedade abolicionista das distintas filhas do Ceará, das
dignas irmãs de Iracema", a reunião terminou às duas e meia da manhã, e em
homenagem à fundação foram alforriadas seis escravas. A instalação solene
aconteceu no dia 06 de fevereiro de 1883.61
A diretoria provisória foi constituída pelas senhoras: Diretora–Geral: Maria Thomázia Figueira Lima;
1o Vice-Diretora – Carolina Cordeiro; 2o Vice- Diretora – Luduvina Borges; 1o Secretária – Jacintha Augusta Souto; 2o Dita – Euvira Pinho; Tesoureira – Eugênia Amaral. Diretoras: Virgínia Salgado; Maria Farias de Oliveira; Joana Antônia Bezerra; Isabel
Rabelo Silva; Francisca Rangel Bezerra; Luisa Torres de Albuquerque; Francisca Borges da Cunha Mamede; Isabel Vieira Teófilo; Jovina Jataí; Branca Rolim; Francisca Nunes da Cruz; Francisca Joaquina do Nascimento; Jesuina de Paula Pimentel; Maria D'Assunção dos Santos Castro; Maria Teófilo Martins; Estefânia Nunes de Mello; Marieta Pio de Castro e Nerina Martins de Sá.62
59 O Libertador, 17 de fevereiro de 1881, Número 04, p. 2. 60 Ibidem. 61 Ver: SCHIMMELPFENG, Gisela Paschen. A Mulher e a abolição. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1984. 62 Ibidem. p. 28-29.
48
1.5 – PRESSA E LIBERDADE
Parte dos membros da diretoria da Sociedade Cearense Libertadora
abandonou o caráter moderado do movimento e passou a pregar a abolição
imediata e incondicional:
A cruzada que se levanta pujante do sul ao norte, vai ganhando terreno aos inimigos.
E a frente da cruzada marcha a mocidade generosa, que não se corrompeu ainda ao contacto das seducções da riqueza.
Não é só com o dinheiro que intentam a victoria os mandões das senzalas, mas com ameaças, a arrogância dos que não tem consciência do merito de uma boa causa.
Não recuemos antes as iras de suas ameaças que se enervam de encontro ao delirio da propaganda desta propaganda heroica que vae já ganhando os postos avançados de seus entricheiramentos e escarnece dos desesperados esforços que ainda recorrem para contel-ª
Seja cada um de nos o soldado decidido que há de lançar no altar da pátria o protesto de salval-a do opprobio, que por tanto tempo a tem humilhado.
Pelo contrario procura-a, e para ella se prepara armada de gladio da palavra, mais destruidor que as armas de exterminio.
Somos moços, somos revolucionários. Se, alem dos recursos de nossa palavra de fogo, que fulmina execrações sobre
os traidores da patria, for-nos preciso deitar mãos as armas, sejamos guerreiros. Sirva-nos de exemplo o procedimento magnanimo dos filhos da grande
república americana, que atiraram aos quatro ventos o grito da revolta e libertaram a republica63
Até a década de 80 o movimento abolicionista na Província do Ceará
sempre foi prudente. A cautela sempre se revelou nas táticas de luta, os
abolicionistas sempre procuraram agir dentro da legalidade. Nas demais
províncias do Império, principalmente na Corte, as ações mais radicais também
iriam acontecer, mas somente depois de 1880. Segundo Suely Queiroz, "até lá
[...] o poderio dos senhores de escravos, bem como dos políticos e estadistas a
eles vinculados, obriga seus oponentes a atuarem dentro do estreito espaço
legal em que se podiam mover."64
63 O Libertador, 07 de fevereiro de 1881, Número 3, p. 3. 64 QUEIROZ, Suely R. Reis de. A Abolição da Escravidão. São Paulo: Brasiliense, 1999. p. 54.
49
De fato, alguns membros da diretoria da Sociedade Cearense
Libertadora não pouparam esforços para libertar alguns escravos e é
novamente Raimundo Girão que nos dá detalhes sobre os acontecimentos dos
dias 27, 30 e 31 de janeiro de 1881, quando Pedro Arthur de Vasconcelos,
funcionário da Casa Comercial Inglesa, num intervalo do espetáculo teatral
ocorrido no teatro São Luís, na noite de 26 de janeiro de 1881, discursou sobre
a possibilidade dos jangadeiros deixarem de realizar o transporte dos escravos
para bordo dos navios.
Também lá estava Júlio Cesar da Fonseca, que testemunhou depois:
Pedro Artur de Vasconcelos, tão esquecido, foi o iniciador do movimento, José do Amaral. O toque de clarim cabe ao primeiro, o comando das forças ao segundo. O primeiro levantou o grito, o segundo uniu fileiras. Acudiram logo com o seu apoio e o seu aplauso, para dar corpo à aspiração, diversas pessoas. No Ceará não embarcará mais escravo! Era o lema, o motor do novo lábaro; e com ele, somente, seria vencida a escravidão. Foi no intervalo da representação de um drama, do teatro São Luís, que Pedro Arthur lembrou a necessidade do movimento e que se apelasse para os jangadeiros. O sonho tornou-se realidade. E das brancas e pandas velas das jangadas, alciones da liberdade, se fizeram bandeiras de combate.65
Estava marcado para o dia 27 de janeiro de 1881 o embarque dos
escravos no vapor Espírito Santo com destino ao Rio de Janeiro. Pedro Arthur
juntamente com José do Amaral entraram em contado com o liberto José Luís
Napoleão66, chefe de capatazia no porto e pediram seu auxílio na intervenção
do transporte dos escravos para o vapor.
No dia 26, Antonio Bezerra, Isac do Amaral e João Carlos Jataí saíram à
noite com a função de aliciarem pessoas para acharem-se na praia na hora do
embarque dos cativos. Se devido algum imprevisto a greve dos jangadeiros
não vingasse, essas pessoas causariam tumulto e os escravos fugiriam.
Raimundo Girão afirma que mais de mil e quinhentas pessoas estavam na
praia e clamavam: "no porto do Ceará não se embarca mais escravos!"
Os traficantes buscaram auxílio junto à polícia para tentarem embarcar a
"mercadoria," mas de nada adiantou. Diz Girão:
Apenas, muito cedo, haviam embarcado nove peças, porém dessas os libertadores, por meio legais, retiraram algumas, entre elas, do vapor Pará uma infeliz
65GIRÃO, Raimundo. Op. cit., p. 103-104. 66 Napoleão comprara a própria liberdade e com algumas economias comprou também a liberdade de quatro irmãs bem como de outros colegas de cativeiro. Ver GIRÃO, Raimundo. Op. cit., p. 104.
50
mãe 'seminua e quase morta de fome', com quatro filhas, despachadas do Maranhão para o Rio de Janeiro – todos desembarcados 'debaixo da bandeira brasileira, ao som da música e ao ribombar de foguetes.67
E mais uma vez, no dia 30, os jangadeiros se recusaram a embarcar 38
escravos no vapor Espírito Santo com destino às províncias do sul do império.
O poeta anônimo escreveu:
O nobre jangadeiro nascimento Que o povo batisou pelo Dragão, Na praia foi o nosso salvamento, Jamais se despertou um só irmão. Era belo de ver, foi um portento. Tinha o povo da praia pela mão, Trancou com chave d`ouro o nosso porto, De muito desgraçado foi conforto.68
Em outro momento, Jataí, Bezerra e Isac ao saber que haviam escravos
depositados num determinado estabelecimento, arquitetaram um plano, que
seria tocar fogo numa casa ao lado do depósito para chamar a atenção das
autoridades e com a distração dos policiais derem fuga aos escravos. Assim,
"pela madrugada o incêndio começou. E, ao repicar dos sinos da Sé e da Igreja
da prainha, e ainda ao som das cornetas da polícia, o povo se aglomerou em
torno. Arrombadas as portas, verificou-se, com maior decepção dos traficantes,
constantemente apupados, que a mercadoria havia fugido."69
O jornal o Libertador noticiou o acontecimento na edição do dia 07 de
fevereiro de 1881:
Assim entendeu elle de seu dever protestar contra o deshumano trafico, e um por um affluiram a praia mais de 1,500 anos homens de todas as classes e condicções.
Lá já estavam os jangadeiros prestando os valiosos e indispensaveis serviços de sua profissão.
A elles, pois, se dirigiram os negreiros solicitando o embarque dos infelizes que destinavam vender no sul.
No porto do Ceará não se embarca mais escravos Esta resposta terminantemente e decisiva partio ao mesmo tempo de todos os
labios Era uma idéa que estava em todas as intelligencias, um sentimento que
brotava em todos os corações Entre elles se achava a escrava Luiza que o Sr.Galdino Francisco Linhares
tinha convertido em propriedade sua, e que entretanto não podia ser vendida em face das garantias legaes de que dispunha.
Em nome, pois, da lei foi arrancada de bordo à mandado da autoridade competente trazida à terra, debaixo da bandeira brazileira, ao som da musica, ao ribombar dos foguetes e no meio das aclamações de um numeroso concurso de povo.
67 Ibidem. p. 105. 68 Revista da Academia Cearense de Letras, ano LXXXIX, Volume 45, 1984, número especial, p. 61-97. 69 GIRÃO, Raimundo. A Abolição no Ceará. Op. cit., p. 107.
51
No porão de vapor <<Pará>> agonisava uma mãe infeliz, que muito embora livre, fora embarcada no Maranhão, com quatro filhas, para ser vendida no Rio de Janeiro!
Foi a requerimento do presidente da Sociedade Cearense Libertadora que o Sr. Dr. chefe de polícia fez desembarcar essa família:
Confrangiu o coração vel-a chegar, em terra, semi-nua, esqualida e morta à fome.70
Novamente, no dia 30 de agosto de 1881, os abolicionistas praticaram
mais um ato radical. O sr. Camerino de Castro Meneses adquiriu duas
escravas no Ceará e pretendeu levá-las para Belém. Tentou enviá-las pelo
porto do Acaraú até o Maranhão. O sr. Magalhães também tinha interesse em
enviar para Belém uns escravos comprados no Ceará. O chefe de policia se
encarregou de efetivar pessoalmente o despacho dos negros. O vapor Espírito
Santo encontrava-se atracado no porto quando começou o protesto de
populares contra o aparato policial que se encontrava na praia: "duzentas e dez
praças (guardas civis, policiais e soldados do 15 batalhão) postavam-se para
manter o "princípio da autoridade"; mas os libertadores respondiam que “210
era, sem tirar nem por, o número de infelizes negros até aquele instante por
eles declarados livres!"71
No meio da confusão entre policiais e populares, as escravas do
Camerino fugiram auxiliadas pelo abolicionista João Carlos Jataí. Esse evento
custou a demissão de Frederico Borges do cargo de promotor público, Siqueira
Mano e Ferreira do Vale, oficiais da guarda cívica, e Francisco do Nascimento,
da função de prático mor da barra. Outros sofreram suspensão e o 15o
batalhão foi transferido para Belém, como ressalta Gisela Paschen:
o infeliz 15o batalhão só porque desempenhou um papel influente durante a campanha abolicionista, como castigo foi mandado a 7 de março do mesmo ano, no navio de guerra "Purus" para o alto amazonas. Foi uma injustiça, que os anos superiores iriam revelar. Esses soldados e oficiais, além das medalhas ganhas durante a guerra do Paraguai, traziam orgulhosos em suas fardas uma nova "decoração", oferecida, em sinal de saudades e reconhecimentos pelas bravas mulheres libertadoras, lideradas por Maria Thomázia.72
Alguns abolicionistas dentre eles, José e Isac do Amaral, Marrocos,
Carlos Jataí, Cândido Maia e Antônio Bezerra eram mestres em "roubar”
escravos e envia-los para lugares seguros como alguns sítios localizados em
70 O Libertador, 07 de fevereiro de 1881, Número, 03, p. 1-2. 71 GIRÃO, Raimundo. Op. cit., p. 129. 72 SCHIMMELPFENG, Gisela Paschen. A Mulher e a abolição. Op. cit., p. 28.
52
cidades limítrofes de Fortaleza. O presidente da câmara municipal, coronel
Antônio Pereira de Brito Paiva teve cinco escravos seus furtados pelos
abolicionistas Isac do Amaral, Carlos Jataí, Cândido Maia e Teles Marrocos. O
coronel entrou com uma ação por “delito de furto” e por “indenização de danos”
contra os “ladrões.” Mas depois de um hilário e conturbado processo73 optou
por perdoar os “infratores
Entretanto, esse abolicionismo radical não estava acontecendo
isoladamente na província do Ceará. Maria Helena Machado, na obra O Plano
e o Pânico, tratou em algumas páginas sobre o movimento dos abolicionistas
radicais que atuavam na província de São Paulo. Os caifazes e os cometas
eram grupos de indivíduos que na maioria das vezes tomavam atitudes
extremistas, ora penetrando nas fazendas e estabelecendo contato com os
escravos, estimulando-os a abandonarem o trabalho e fugirem para os
quilombos localizados nas redondezas e, noutras ocasiões, obrigando os
senhores a libertarem seus escravos sob pena de retaliação:
Entretanto, foi na cidade de São Paulo que as atividades desse grupo se tornaram mais conhecida. O episódio da invasão de uma chácara do Braz, pela associação abolicionista do bairro, por exemplo, tornou-se famoso, marcando época na cidade. Em agosto de 1884, o cidadão João Christovão Mendes Gonçalves, morador do Pari( então distrito policial do Braz),queixava-se à polícia “que no dia anterior as 9 horas da noite sua casa foi assaltada por 20 e tantas pessoas que aos gritos ‘Vivão os abolicionistas, morram os escravocratas’, o intimaram a trazer seus escravos, sob pena de morrer e praticarem atos de vandalismo na casa. 74
Nesse sentido, esse capítulo buscou demonstrar que a campanha
abolicionista desencadeada na província do Ceará pelas libertadoras
cearenses, principalmente a Sociedade Libertadora Cearense e a
Perseverança Porvir foi um movimento que teve suas especificidades, onde
grande parte dos indivíduos pertencentes a essas sociedades possuía a
mesma convicção política, mas apresentava posturas e comportamentos bem
distintos.
Buscou-se também demonstrar que os membros das libertadoras eram
oriundos dos centros urbanos que acreditavam no fim da escravidão enquanto 73 Segundo Girão o processo foi tumultuado por audiências intermináveis e barulhentas, um dos réus Isac do Amaral mandou passar repetidas vezes em frente ao prédio do fórum carroças cheias de objetos de flandres causando uma "barulheira infernal", testemunhos de populares como, José Basófia, Zé da Hora e Piau contribuíram para deixar ainda mais cômico o processo. Ver: GIRÃO, Raimundo. Op. cit., p. 138. 74 MACHADO, Maria Helena. O Plano e o Pânico. Rio de Janeiro: Edusp, 1994. p. 155.
53
um meio que permitiria o desenvolvimento econômico, político e social do país.
Entendiam ainda que o Estado deveria possuir o papel de intervir em questões
que envolvessem o direito público.
Achamos importante salientar que quando essas libertadoras surgiram o
sistema escravista na província do Ceará estava em estado bem avançado de
desestruturação ocasionado pela seca e pelo tráfico interno, como também
pelas alforrias custeadas pelo cofre público. Esses abolicionistas tinham como
intenção mudar a estrutura de produção de forma que outros setores da
sociedade que não somente aqueles que possuíam muitas terras, mas também
pequenos produtores e as camadas médias, passassem a ter uma maior
participação política e uma certa parcela de poder. Buscavam um
reconhecimento, sobretudo político, onde o fim da escravidão era também o de
uma instituição que legitimava até então a ordem política e social vigente.
No próximo capítulo buscaremos evidenciar que a abolição do elemento
servil na província do Ceará não contou apenas com a participação de
indivíduos oriundos das camadas abastadas da sociedade, mas também de
forros, homens livres pobres e escravos. Ressaltaremos o papel ativo do
escravo enquanto sujeito de sua liberdade, lutando no campo jurídico contra
seu senhor.
54
CAPÍTULO 2
RUMO À LIBERDADE
2.1 – A LEI 2040 E OS PROJETOS QUE A RESULTARAM
Mando, portanto a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução da referida lei pertencer, que a cumpram e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nella se contém. O secretario de Estado dos Negócios da Agricultura, Commercio e Obras Publicas a faça imprimir, publicar e correr. Dada no palácio do Rio de Janeiro, aos vinte e oito de setembro de mil oitocentos e setenta e um, quinquagesimo da independencia do Imperio.75
Em 28 de setembro de 1871 foi decretada pela princesa Isabel a lei de
número 2040, mais conhecida como Lei do Ventre Livre. A Lei 2040, como
preferimos chamá-la, é objeto de análise desse capítulo. Esse mecanismo
jurídico foi fruto de um demorado e controverso processo de discussão política.
Desde a data em que a discussão foi introduzida na Assembléia Geral,
em 1850, pelo deputado Pedro Pereira Guimarães, até a promulgação da lei,
passaram-se 21 anos onde a emancipação e a extinção da escravidão foram
questões centrais nos debates.
Os projetos que resultaram na lei 2040, especialmente aqueles
discutidos no Conselho do Estado Imperial, constituem-se num importante
ponto de desenvolvimento para esse trabalho. Esses projetos devem ser
analisados a partir do objeto ao qual se prende a Lei. Um aspecto importante
no processo de formulação da lei 2040 foi o encaminhamento jurídico definidor
das relações entre senhores e escravos.
Procuramos a partir dos embates parlamentares, jurídicos, discursos e
discussões parlamentares, captar as experiências sociais do sistema escravista
vivenciados por senhores e escravos e concomitantemente relacioná-las aos
projetos de encaminhamento da abolição e duma sociedade livre.
A sociedade escravista foi conseqüência da dinâmica social, entre
senhores e escravos. Sociedade concentrada em torno desses dois elementos,
mas não resumida, seu campo de influência perpassa uma complexa rede de
relações sociais entre diferentes segmentos sociais, mesmo daqueles não
necessariamente implicados no sistema escravista.
75 Coleção das Leis do Império do Brasil de 1871, Tomo XXXI, parte I, Typographia Nacional, Rio de Janeiro.
56
Ao tratarmos da escravidão e das relações entre senhores e escravos,
privilegiamos a noção de que as relações históricas são construídas por
homens e mulheres num movimento contínuo, realizado através de lutas,
resistências, conflitos e acomodações, sendo as relações entre senhores e
escravos fruto dessas ambigüidades.
Como dissemos anteriormente, no dia 28 de setembro de 1871, foi
promulgada pela então Regente Princesa Isabel, a protetora mais ilustre dos
escravos da Corte76, em nome do Imperador do Brasil, D. Pedro II, a Lei 2040
referente ao “elemento servil”. Para os emancipacionistas a Lei teve como
intenção apaziguar os ânimos dos abolicionistas, resguardar os interesses dos
senhores, concedendo indenização no tocante a perda de sua propriedade,
como também realizar uma política abolicionista legalizada, lenta e gradual.77
No entanto, a historiografia vem demonstrando que a Lei Rio Branco foi mais
do que apenas uma providência legalizada em relação a libertação dos
escravos. Como afirma Maria Aparecida Papali, “em torno da lei do Ventre
Livre foi edificada uma estratégia política de avanço e recuo em relação aos
objetivos históricos que a referida legislação pretendia alcançar.”78
Estudos recentes demonstram que a relação senhor-escravo, antes da
promulgação da Lei 2040, passou por algumas mudanças, sendo uma delas a
perda do poder moral do senhor. Pois mesmo com a prerrogativa da concessão
de alforrias estando nas mãos dos senhores, os cativos se empenhavam em
conquistar a liberdade, buscando várias possibilidades e requerendo, às vezes,
até a intervenção do governo imperial.79 Nesse sentido, parafraseando Sidney
76 Segundo o historiador Eduardo Silva, de todos os presentes recebidos pela princesa Isabel no dia 13 de maio o que "mais sensibilizou os contemporâneos" foi um simples e quase despercebido buquê de Camélias" vindo de um quilombo situado no bairro do Leblon do Rio de Janeiro, que, segundo o autor, existiu com o consentimento e apoio da princesa Isabel. Ainda segundo Silva: "as camélias representavam o projeto da abolição imediata e incondicional. Atravessando de uma ponta a outra a sociedade imperial, o simbolismo das camélias nos permite entrever, por detrás dos panos, momentos-chave da história brasileira, a contribuição da princesa imperial, a contribuição fundamental da elite negra e do próprio escravo." Ver.SILVA, Eduardo. As Camélias do Leblon e a abolição da escravatura: uma investigação de história cultural. Companhia das Letras: São Paulo, 2003. p. 8. 77 CONRAD, Robert. Op. cit., p. 114-121. 78 PAPALI, Maria Aparecida Chaves Ribeiro. Escravos, Libertos e Órfãos: A construção da liberdade em Taubaté (1871-1895). Tese de doutorado (História Social). Pontifícia Universidade Católica: São Paulo, 2001. p. 40. A autora utiliza como fontes principais ações de liberdade do período de 1871 a 1888, envolvendo 192 libertandos, conceituou os referenciais de liberdade de homens e mulheres escravizados em Taubaté. Procurou compreender os significados da liberdade construídos a partir das experiências vividas por escravos e libertos. 79 Ver: CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista ( Brasil XIX ). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993; GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da
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Chalhoub, a Lei Rio Branco mais do que uma ampla política emancipacionista
conduzida pelas elites imperiais, constituiu numa grande conquista dos
escravos.80
Desse modo, encontramos nos trabalhos desenvolvidos pelo historiador
inglês E. P.Thompson, acolhida profícua para os nossos estudos. Achamos
que a provocação feita por Silvia Lara81 na revista Projeto História cai bem
nesta circunstância: “[...] que relação poderia haver entre estudos sobre a
formação da classe operária inglesa, as relações gentry-plebe ou as leis e o
direito na sociedade inglesa setecentista e a escravidão africana, o processo
da abolição e a história dos negros depois da emancipação no Brasil.”82
Thompson fez uma importante reflexão sobre a Lei Negra na Inglaterra
do século XVIII.83 Segundo sua análise a Lei é um instrumento da classe
dominante “ela define e defende as pretensões desses dominantes aos
recursos e à força de trabalho – ela diz o que será propriedade e o que será
crime [...]”84; mas a lei também pode ser entendida como um campo de
conflitos, onde apresenta características próprias e lógica de desenvolvimento
independente.
[ ...] de um lado, é verdade que a Lei realmente mediava relações de classe existentes, para proveito dos dominantes; não só isso, como também, à medida que avançava o século, a lei tornou-se um magnífico instrumento pelo qual esses dominantes podiam impor novas definições de propriedade, para proveito próprio ainda maior, [ ...] Por outro lado, a lei mediava essas relações de classe através de formas legais, que continuamente impunham restrições às ações dos dominantes [...] E não só os dominantes (na verdade a classe dominante como um todo) estavam restringidos por suas próprias regras jurídicas contra o exercício da força direta e sem mediações
ambigüidade – As Ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no Século XIX. Rio de Janeiro: Relumé-Dumará, 1994 80 CHALHOUB ,Sidney. Visões da Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 81 LARA. Silva, Hunold. Blowin’in the wind: E. P. Thompson e a experiência negra no Brasil. Revista Projeto História, n 12, outubro/1995. Silvia Lara, nesse artigo, utilizou como referência o texto “ La sociedad inglesa del siglo XVIII: lucha de clases sin clases?“. In: THOMPSON, E. P. Tradición, revuelta y consiencia de clase. Estudios sobre la crisis de la sociedad preindustrial. Barcelona: Critica, 1979. Nesse texto Thompson rejeitou os termos feudal, capitalista e patriarcal por considerá-los imprecisos e recuperou o conceito de paternalismo para o estudo da luta de classes na sociedade inglesa setecentista, onde a reciprocidade gentry-plebe e a armonia estrutural da relação gentry-multidão foram estudados a partir dos conceitos de hegemonia e luta de classes. Segundo Silva Lara a historiografia brasileira que estudou a experiência negra, na sua grande maioria, sempre deu mais ênfase na análise da violência e dos interesses econômicos. Privilegiavam desse modo a exclusão dos escravos enquanto sujeitos da história. No entanto, já há alguns anos historiadores influenciados pelas análises teóricas e políticas thompsonianas sobre o século XVIII inglês, começaram a insistir na necessidade de incluir a experiência escrava na história da escravidão no Brasil, privilegiando as relações históricas construídas por homens e mulheres realizadas através de lutas, conflitos, resistências e acomodações permeadas de ambigüidades. 82 Ibidem. p. 43. 83 THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 348-361 84 Ibidem. p. 349.
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[...] como também acreditavam o bastante nessas regras, e na retórica ideológica que as acompanhava, para permitir, em certas áreas limitadas, que a própria lei fosse um foro autêntico onde se tratavam certos tipos de conflito de classe [...]85
Wilson Roberto de Mattos em seu estudo sobre resistências e práticas
negras na cidade de Salvador, situado no período corrente entre os anos 1850
e 1888, realizou um proveitoso diálogo com Thompson. Segundo o autor:
mas se tomarmos como modéstia, historiograficamente justificada, o fato de Thompson alertar para o caráter restritivo de sua análise, ao século XVIII inglês, confessando ignorar sua validade transcultural, ao contrário de esgotar a discussão, devemos abri-la e, ao gosto metodológico do mesmo Thompson, transformar suas reflexões sobre o papel da lei ou o que nos parece mais importante, os aspectos das relações sociais de classe, por ela mediadas, em expectativas de interpretação da dinâmica das relações escravistas modificadas a partir da intervenção legal do Estado Imperial [...]”86
O autor concluiu que, mesmo com Thompson excluindo os escravos dos
critérios lógicos para o funcionamento das leis modernas, por não possuírem
“foros de cidadania”, já que estavam fora dos padrões de universalidade e
igualdade, mesmo assim a Lei de 1871, transformou parcialmente os escravos
em sujeitos portadores de direitos, incluídos no universo dos critérios
jurídicos.87
A Lei do Ventre Livre permitiu ao escravo dar um grande salto frente ao
direito de domínio tido pelos senhores até então, pois a legitimidade da
propriedade senhorial foi colocada em xeque. Tal Lei fez com que o senhor se
deparasse com uma situação inusitada até aquele momento ao ser colocado
no papel de réu num processo, situação nada agradável para aqueles que
estavam acostumados apenas a cobrar, ordenar e reclamar. Como afirma
Papali, “[...] mesmo saindo perdedor no judiciário (o que não era raro) o
escravo libertando já teria deixado sua marca; nem ele seria o mesmo daí em
diante, nem o judiciário sairia ileso [...].”88
85 Ibidem. p. 356 86MATTOS, Wilson Roberto. Negros Contra a Ordem: Resistências e práticas negras de territorialização no espaço da exclusão social – Salvador – BA (1850-1888). Tese de doutorado (História Social). Pontifícia Universidade Católica: São Paulo, 2000. p. 175. 87 Oito dias antes de outorgada a lei 2040, Lei do Ventre livre, foi sancionada a reforma do judiciário, permitindo dessa forma, uma maior autonomia desse poder frente ao executivo. A partir dessa reforma os juizes tiveram um pouco mais de independência frente aos membros do executivo, principalmente, frente os Presidentes das Províncias e o próprio Imperador. Ver: KOERNER, Andrei. Judiciário e cidadania na constituição da República Brasileira. São Paulo: Hucitec, 1988. 88 PAPALI, Maria Aparecida Chaves Ribeiro. Op. cit., p. 65.
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Manuela Carneiro Cunha no seu texto Sobre os silêncios da lei: lei
costumeira e positiva nas alforrias de escravos no Brasil no século XIX,
revendo o percurso traçado pela Lei de 1871, chegou a conclusão de que as
alforrias, antes da lei, eram legitimadas pelos costumes. A prática de comprar
alforrias através do pecúlio vinha desde os tempos coloniais. A autora se
questiona por que esse costume de comprar alforria com o pecúlio não foi
aprovado em nenhum projeto antes da lei 2040. Observou que esse fato se deu
principalmente devido a uma questão política. Pois os senhores não queriam
se ver na condição de serem obrigados a conceder alforrias a seus escravos,
pois desse modo teriam seu poder moral abalado sensivelmente.89
Mesmo existindo no direito costumeiro a prática do escravo comprar sua
alforria via pecúlio, até 1871 não se fez constar em nenhuma Lei. Antes dessa
data, foram poucas às vezes que o Estado interveio concedendo alforria. Como
afirma Manuela Carneiro “creio que com isso se exaurem as ocasiões em que
o governo se arrogou o direito de interferir na concessão de alforria: razões
imperiosas de Estado, todas entendidas como medidas excepcionais. Sempre,
de qualquer forma indenizava-se os senhores e cabia a estes a concessão da
carta de alforria.”90 Nesse sentido estava em poder dos senhores a faculdade
de decidir sobre a liberdade ou não do escravo.91
Entretanto, esta faculdade estava inserida dentro de determinadas
regras que eram respeitadas pelos senhores. Além da pressão da opinião
pública, principalmente a partir do século XIX, instando as alforrias, mesmo por
indenização, havia também o temor por parte do senhor de perder sua “peça”
por fugas e suicídios. Em suma, no sistema escravista um pacto mínimo entre
escravos e senhores devia ser mantido.
89 CUNHA, Manuela Carneiro da. Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e positiva nas alforrias de escravos no Brasil do século XIX. In: Antropologia do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1987. 90 Ibidem. p. 47. 91 Analisando cartas de alforrias, o autor percebeu que o senhor, ao conceder liberdade ao escravo, deixava implícita "uma série de medidas que pudessem contemplar o processo de ‘transição’ do trabalho escravo para o livre, principalmente com relação ao direito de propriedade do senhor sobre as peças". Chegou a conclusão de que o processo de alforria tinha como intenção reforçar a autoridade do senhor de modo que fosse garantida a ordem e o controle social. Ver: ALENCAR, Alênio Carlos Noronha. Nódoas da Escravidão: Senhores, Escravos e Libertandos em Fortaleza (1850-1884). Dissertação de Mestrado (História Social). Pontifícia Universidade Católica: São Paulo, 2004. p. 132.
60
O direito de o escravo constituir pecúlio, antes de ser inscrito na lei de 28
de setembro de 1871, vinha sendo praticado no cotidiano de senhores e
escravos. A partir desta data, muitos dos direitos conseguidos
costumeiramente e incorporados na relação senhor-escravo passaram a
vigorar em lei, possibilitando aos escravos, através da experiência cotidiana do
cativeiro, construírem estratégias de luta embasadas numa consciência própria
dos seus direitos e fazendo o máximo para alcançá-los.
É possível considerar que a Lei de 1871 permitiu aos escravos se
apropriarem de alguns direitos, especialmente aqueles referentes à legalização
do pecúlio, à permissão de compra de alforria e à proibição de separação das
famílias, incluindo-os deste modo, ainda que parcialmente, no universo jurídico.
Paralela a essa luta por inserção jurídica, deve-se considerar que a referida Lei
atingiu impreterivelmente algumas prerrogativas do domínio senhorial, dentre
elas a da disposição irrestrita da propriedade escrava. Como afirma Wilson de
Mattos:
[...] as estratégias e lutas individuais dos escravos nas quais eles se utilizam de expedientes legais para conseguirem a liberdade, se por um lado, contribuíram para a definição de um campo legal, legitimador da dominação escravista, por outro lado, fizeram reconhecer alguns direitos, ampliando nos escravos as noções de cativeiro justo ou injusto92
Em 1867, o jurista Perdigão Malheiro publicou o ensaio jurídico e social,
Escravidão no Brasil, onde defendeu medidas que visavam regularizar a prática
do pecúlio.
Entre nós, nenhuma lei garante ao escravo o pecúlio; e menos a livre disposiçãosobretudo por ato de última vontade, nem a sucessão, ainda quando seja escravo da Nação. Se os senhores toleram que, em vida ou mesmo causa mortis, o façam, é um fato, que todavia deve ser respeitado. No entanto conviria que algumas providências se tomassem, sobretudo em ordem de facilitar por esse meio as manumissões e o estabelecimento dos que se libertassem.93
Perdigão Malheiro, fazendo uma analogia entre as Leis romanas e as
práticas presentes na relação senhor–escravo na sociedade brasileira,
principalmente na segunda metade do século XIX, entendeu que no Brasil
diferentemente de Roma, as relações escravistas apresentavam certas
92 MATTOS, Wilson Roberto. Op. cit., p. 178. 93 MALHEIRO, Perdigão. A Escravidão no Brasil: Ensaio Histórico, Jurídico e Social. Brasília: Vozes, 1976. p. 62.
61
peculiaridades que mereciam maior atenção. Uma dessa particularidades era o
pecúlio.
A primeira discussão sobre o direito de o escravo constituir pecúlio
surgiu nos debates parlamentares em março de 1850 e, posteriormente, em
1852,94 fez parte do quarto artigo do projeto do deputado Pedro Pereira
Guimarães. Depois apareceu, em 1866, no projeto do Conselheiro São Vicente,
e dois anos mais tarde, em 1868, no projeto elaborado pela comissão de
Conselheiros do Estado. Em 1870 foi incluso no projeto deliberado em
Assembléia Geral. Sendo que em 28 de setembro de 1871, inseriu-se
definitivamente na lei 2040, artigo segundo, parágrafo quarto.
No Brasil, a prática do escravo economizar para comprar sua liberdade,
mesmo não estando inscrita em Lei, antes de 1871, esteve presente no direito
consuetudinário. Na cidade havia escravos que trabalhavam no ganho dando
aos senhores um jornal estipulado previamente. Em outras ocasiões, fora
dessa jornada estabelecida em acordo anterior, trabalhavam em fábricas e no
arsenal de guerra da corte, em troca de salários cujo destino principal era a
emancipação.95 No campo, plantavam em terras dos senhores, sendo o fruto
do cultivo destinado à constituição do pecúlio.96
94 Antes dessa data houve referência a essa disposição em alguns momentos, sendo a primeira delas em 1817 quando Moniz Barreto ofereceu a D. João VI suas memórias. Depois, em 1823, no projeto de José de Bonifácio e, em 1826, no projeto de José Eloy e, em 1852, no projeto de Pereira da Silva. Ver: CUNHA, Manuela Carneiro. Op. cit., p. 48. 95 A autora fez importantes considerações acerca das práticas e experiências dos escravos de ganho e de aluguel, na cidade de São Paulo, no final do século XIX: “no contexto histórico do século XIX, os senhores viabilizaram, mediante o sistema de ganho e de aluguel, a aproximação, a adequação e mesmo a simbiose do regime de trabalho escravo ao mercado em sua fase proto-assalariada. [...] travestindo concretamente os escravos em trabalhadores remunerados e autônomos adestrou-os ao movimento histórico que apontava em direção ás formas livres, ao mesmo tempo em que resguardou, em tempo hábil, o conteúdo maior da situação escravizada. [...]”. WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos Africanos, Vivências Ladinas: Escravos e forros em São Paulo (1850-1880). São Paulo: Editora Hucitec, 1998. p. 77-79. As atividades de ganho e de aluguel desempenhadas por determinados escravos em São Paulo, em meados do século XIX, atingiam amplos setores do trabalho urbano principalmente nas atividades do pequeno comércio, como também, no setor de construção, na criação e na manutenção da infra-estrutura urbana e nas manufaturas. Estendiam-se, ainda, as funções braçais e aos trabalhadores semiqualificados – carregadores, agricultores, ajudantes ou serventes, pedreiros, engomadeiras, quitandeiras, barbeiros, alfaiates, ferreiros e outros. O autor traz importantes considerações sobre a atividade de ganho realizadas por escravos em Salvador no século XIX, principalmente as mulheres ganhadeiras: “as mulheres ganhadeiras, de presença bastante marcante nos centros escravistas urbanos, eram as responsáveis pela circulação dos gêneros alimentícios, venda de algumas miudezas, e pela própria alimentação cotidiana dos escravos e libertos “ao ganho”, preparando e vendendo comida em tabuleiros levados na cabeça ou barracas fixas”. MATTOS, Wilson Roberto de. Op. cit., p. 87. Ver ainda sobre escravos de ganho: SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro. A pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982.; REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: a história do levante dos malês. (1835). São Paulo, Brasiliense, 1986.; DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. 2o edição. São Paulo: Brasiliense, 1995.; ALGRANT, Leila Mezan. O
62
As possibilidades derivadas do exercício das funções de ganho e de
aluguel, organização do trabalho, a ausência do controle exacerbado do
senhor, necessidade de prover alimentação, moradia e vestimentas, permitiam
aos escravos ter mais autonomia frente ao rígido código das relações
escravistas e do controle social aos quais estavam sujeitos, imprimindo, deste
modo, perspectivas múltiplas à vida em meio à escravidão urbana.
Aluízio de Azevedo na obra inaugural do naturalismo brasileiro, O
Mulato, descreveu alguns serviços realizados por escravos e libertos urbanos
nas ruas de São Luís:
[...] da praia de Santo Antônio enchiam toda a cidade de sons invariáveis e monótonos de uma buzina, anunciando que os pescadores chegavam do mar; para lá convergiam, apressadas e cheias de interesse, as peixeiras, quase todas negras, muito gordas, o tabuleiro na cabeça, rebolando os grossos quadris trêmulos e as tetas opulentas.
Mencionou também as lavadeiras que iam "em caminho da fonte, com a
trouxa de roupa suja equilibrada na cabeça"; as pretas minas que vendiam
"mingau de milho"; e ainda os escravos que se dirigiam para o açougue com a
cesta de compras debaixo do braço; como também os negros carregadores
que ficavam no porto embarcando as bagagens dos passageiros
[...] À medida que se aproximava do mar , ia avultando ao seu lado o número de carregadores de bagagens; pretos e pretas passavam com baús, malas de couro e de folhas-de-flandres, cestas de vime de todos os feitios, cofos de pindoba, caixas de chapéu de pêlo e gaiolas de pássaros [...]97
O jurista Perdigão Malheiro compreendeu que a prática de constituição
do pecúlio, presente na sociedade escravista brasileira, foi uma concessão dos
senhores aos escravos. Todavia entendemos que o direito do cativo constituir
pecúlio, presente na lei de 28 de setembro de 1871, mais do que uma
permissão, foi uma conquista dos escravos, direito adquirido com estratégias,
negociações, lutas e pelo costume.98
feitor ausente. Estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro. 1808-1822. Petrópolis: Vozes, 1988.; KARASCH.M.C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 96 MALHEIRO, Perdigão. Op. cit., p. 63. 97 AZEVEDO, Aluísio. O Mulato. Fortaleza: Verdes Mares, 1998. p. 07. A mesma página para serve à citação anterior. 98 Segundo o autor: “[...] o costume constituía a retórica de legitimação de quase todo uso, prática ou direito reclamado. Por isso, o costume não codificado – e até mesmo o codificado – estava em fluxo contínuo. Longe de exibir a permanência sugerida pela palavra “tradição”, o costume era um campo para
63
A constituição do pecúlio foi apenas um dos vários momentos de tensão
presente no cotidiano do senhor e do escravo. Perdigão Malheiro, enquanto
membro da classe proprietária, entendeu que a propriedade privada deveria ser
respeitada como também os princípios da liberdade. Isso refletia a atitude
zelosa de senhores de escravos com suas propriedades, em confronto com a
de escravos ansiosos por sua liberdade. Propriedade privada versus princípios
da liberdade, constituiu, portanto, o dilema vigente entre proprietários e
governantes.
Sidney Chalhoub99 retrata bem a questão do princípio da propriedade
privada versus princípio da liberdade ao analisar uma ação de liberdade
movida pelas escravas Rubina e Fortunata, em junho de 1864. Na cidade do
Rio de Janeiro, quando Custódio Manoel Gomes Guimarães, no seu leito de
morte, pediu à sua esposa, dona Rosa Guimarães, que depois de morto
concedesse cartas de alforria `a africana Rufina e à sua filha Fortunata houve
uma complicação. Como dona Rosa se recusara a realizar o pedido do marido,
em junho de 1864, nove anos depois, as escravas deram entrada num
processo de liberdade contra a esposa do falecido e seu segundo marido
Joaquim.
O curador alegou ser desejo do falecido libertar as escravas. Os
proprietários, dona Rosa Guimarães e seu esposo Joaquim, por sua vez,
alegaram que não era desejo de Custódio alforriar as escravas, mas apenas
não vendê-las para sanar as dívidas existentes. O raciocínio dedutivo de
Chalhoub ao analisar essa ação correu no sentido de perceber que os
argumentos do curador, como os dos proprietários partem de um pressuposto
em comum: a vontade do senhor teria que prevalecer.100 Nesse sentido, o autor
concluiu que é difícil saber se existia apenas um falso argumento do escravo
sobre a intenção do senhor de alforriá-lo ou se de fato era esta a sua vontade:
[...] é sempre difícil sabermos se as alegações dos escravos eram verdadeiras, e tudo se complica ainda mais porque a lutas dos cativos pela alforria aparece geralmente num tecido mais amplo de relações e conflitos que, como temos visto, pode incluir desde histórias de amor até brigas entre herdeiros. De qualquer forma, a leitura
a mudança e a disputa, uma arena na qual interesses opostos apresentavam reivindicações conflitantes [...].” THOMPSON, E. P. Op. cit., p. 16-17. 99 CHALHOUB, Sidney. Op. cit., p. 101-102. 100 Ibidem. p. 102-103.
64
de cartas de alforria e de testamentos do século passado mostra que era relativamente comum que senhores determinassem que um ou mais de seus escravos ficariam livres quando do seu falecimento [...]101
A necessidade de regulamentar as práticas que vinham ocorrendo na
sociedade escravista, como também a perda de controle dos senhores sobre
seus escravos fez com que em 1866 o imperador D. Pedro II solicitasse ao
Conselheiro São Vicente que elaborasse um projeto visando discutir e
normalizar as experiências instituídas na relação entre senhores e escravos.
São Vicente, ao todo, elaborou cinco projetos e determinou a criação em
cada província de juntas “protetoras de emancipação”, que se encarregariam
de zelar pela liberdade dos cativos. Esta junta concederia aos mesmos o direito
de constituir pecúlio, enfim, o direito de alforriar-se pagando o seu valor.
Também permitiu a criação de um fundo de redenção para a libertação anual
de certo números de escravos, declarou que era proibido separar cônjuges e
estipulou que depois de passados três anos o escravo teria direito a um dia
livre por semana para fazer o que bem entendesse.
O projeto não foi bem visto pelo presidente do Conselho Ministerial, o
Marquês de Olinda. Somente depois que esse foi exonerado do cargo e no seu
lugar entrou o ministro Zacarias, o projeto teve discussão no Conselho de
Estado, no dia 1 de fevereiro de 1867. A sessão foi aberta com a seguinte
questão para discussão: “convém abolir diretamente a escravidão? Como, com
que cautelas e providências cumpre realizar essa medida?”102 Os conselheiros
receavam uma abolição “imprudentemente” caminhada, pois previam que,
assim sendo, a paz e a ordem estariam ameaçadas. Porque uma coisa era
atacar a escravidão enquanto “instituição” que atravancava o progresso e a
civilização e outra era debruçar-se sobre questões relativas a utilização do
trabalho, principalmente, sobre como os ex-escravos viveriam em liberdade.
Nesse sentido, os conselheiros pressentindo a inevitabilidade da abolição,
pensaram em realizá-la de forma “prudente” e encaminhada, preservando-a
contra a “desordem” e o “caos social”.103
101 Ibidem. p. 111. 102 NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império. São Paulo: Instituto Progresso material, 1949. p. 32. 103 MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Entre a Mão e os Anéis: A lei dos sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. São Paulo: Unicamp, 1999. p. 97.
65
Ainda no ano de 1867, o Conselho de Estado se reuniu nos dias 2 e 9 de
abril para deliberar sobre a questão. Os conselheiros mostraram-se divididos,
um grupo era contra o projeto de São Vicente: Muritiba, Olinda, Itaboraí e
Eusébio de Queiroz. Outro a favor: Jequitinhonha, Souza Franco, Sales Torres
Homem, Nabuco de Araújo, Abaeté e Paranhos, sendo que se ausentaram das
deliberações do Conselho, o Marquês de Sapucaí e de Bom Retiro. 104
Os conselheiros estavam relutantes quanto à reforma. Achavam mais
conveniente adiá-la para um futuro se possível bem distante. As incertezas que
pairavam sobre os membros do Conselho não eram somente quanto ao
segundo projeto referente ao Pecúlio, mas também quanto aos demais. O
primeiro projeto estabelecia a liberdade dos nascituros e dava à mãe escrava o
direito de decidir sobre o futuro do recém-nascido.105 O terceiro se preocupava
em mapear os escravos existentes nas áreas rurais através da matrícula
destes. O quarto dava a liberdade aos escravos do Império dentro de um prazo
de cinco anos; o quinto e último, autorizava a alforria dos escravos dos
conventos em sete anos.
Na primeira sessão de 2 de abril de 1867, um dos pontos mais
discutidos pelos conselheiros foi sobre a liberdade dos nascituros.
Jequitinhonha concordou com o primeiro projeto de São Vicente, todavia fez
um acréscimo, que os filhos livres nascidos de mãe escrava fossem
considerados libertos e não ingênuos. Essa pequena alteração aos olhos de
um leigo não diz muito, mas significava mexer com um dos preceitos mais
importantes da sociedade brasileira no século XIX, o direito de propriedade.
Conceber o escravo enquanto liberto e não ingênuo desautorizava o senhor a
receber os serviços do libertando até a idade de vinte anos.
Os ministros Itaboraí e Eusébio de Queiroz também foram favoráveis à
liberdade do ventre, mas somente depois de um prazo que duraria até o final
da guerra do Paraguai. O conselheiro Paranhos também foi da mesma opinião.
104 NABUCO, Joaquim, Op. cit., p. 33. 105 Muitas vozes se manifestaram contra a liberdade do ventre. Segundo Joseli Maria Nunes Mendonça, “[...] julgava-se que da possibilidade de retirar-se as crianças do domínio dos senhores de suas mães poderiam advir grandes danos, dentre os quais incluía-se a quebra da força moral dos senhores.” MENDONÇA, Nunes Joseli de. Op. cit., p. 99.
66
Entendeu que a liberdade dos nascituros, por mais legítima que fosse, só
estaria livre de “perigos” 106, quando se desse o término da guerra.
Parlamentares e senhores estavam conscientes da crise do sistema
escravista nas suas bases. O controle sobre os escravos estava lhes
escapando. Fugas e revoltas estavam cada vez mais freqüentes. Nas páginas
dos periódicos de época encontramos um considerável número de fugas. Os
anúncios traziam o nome, idade, descrição física, como também vícios e
habilidades dos fugitivos:
Fugio da casa do abaixo assignado em 20 do mez de setembro de 1869 o escravo de nome Ricardo, cabra fusco, quasi preto, alto e seco, cara bexigosa e toma tabaco, e fuma, é cantador e tocador, elle recommenda as auctoridades policiaes ou mesmo a qualquer cidadão que quiserem o capturar será bem gratificado participando para o districto de Sacco de Orelha, do districto da Serra do Pereiro, á José Alexandre da Silva, sendo o dito escravo d seu genro Florencio, Sacco de Orelha, 1 de Fevereiro de 1870. Francisco José Xavier.107
As fugas, revoltas individuais e coletivas, as grandes insurreições como
também os assaltos às fazendas tiravam o sono dos senhores.108As
insurreições que aconteceram na Bahia nas três primeiras décadas do século
XIX, organizadas pelos haussás e nagôs, comprovavam as expectativas.109 A
tomada do poder pelos negros e escravos permeava o imaginário dos senhores
antes mesmo da proclamação da independência do Brasil, em 1822.110
Segundo Maciel da Costa, devido apenas a “felizes circunstâncias”,
entenda-se por essa expressão, “pelo bom tratamento dado aos (escravos)
pelos senhores, que os alimentavam, vestiam, curavam, instruíam e até mesmo
lhes davam por vezes a liberdade e continuavam a assisti-los enquanto
106 O conselheiro temia que tal medida executada antes do fim da guerra do Paraguai pudesse trazer sérias conseqüências a economia. O conselheiro também temia que os escravos se rebelassem e trouxessem perigos à ordem pública e à segurança individual. Ver: NABUCO, Joaquim. Op. cit., p. 38. 107 A Constituição, 29 de julho de 1865. 108 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco: o negro no imaginário das elites século XIX. São Paulo: Paz e Terra, 1987. 109 Ver: MOURA, Clovis. Rebeliões da Senzala. São Paulo: Ciências Humanas, 1981.; REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil - A história do levante dos Malês (1835). Op. cit. 110 Em 1821, João Severiano Maciel da Costa, marquês de Queluz, publicou Memória sobre a necessidade de abolir a introdução dos escravos africanos no Brasil, tratando sobre o modo e condições com que esta abolição deveria ser feita, e sobre os meios de remediar a falta de braços que ela poderia ocasionar. Célia Marinho diz: “a obra desse mineiro que governou a Guiana Francesa de 1809 a 1819 questiona não só o tráfico como o próprio sistema escravista, responsável pela ‘multiplicação indefinida de uma população heterogênea inimiga da classe rica’. Além da heterogeneidade decorrente de sua condição social de escravos, o autor lembrava também sua natureza bárbara, africana, de gente que vive ‘sem moral, sem leis, em continua guerra, [...] vegetam quase sem elevação sensível acima dos irracionais’ “. Ver: AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Op. cit., p. 40.
67
livres”111 tinham impedido uma rebelião em dimensão mais ampla, atingindo
grandes proporções e abalando a estrutura política e social do Império.
Em 1823, José de Bonifácio Andrada e Silva já alertava para a
necessidade do término do tráfico de escravos da África para o Brasil. Tal
medida, para o eminente político, era posta como uma solução essencial para
o futuro do país, como forma de superar a heterogeneidade física e civil da
população.112
É nítido nas falas parlamentares e nos textos impressos da primeira
metade do século XIX, analisados por Jaime Rodrigues113, o medo das "ações
escravas" que a todo o momento se faziam presentes, atormentando os nervos
dos políticos. A presença majoritária dos africanos nas principais províncias do
Brasil não dava sossego aos senhores. Era-lhes delegada a culpa pelo atraso e
pobreza material em que viviam os habitantes do Império. Para alguns autores
contemporâneos114 os "bárbaros" costumes africanos juntamente com a
escravização propiciavam os males sociais que afligiam toda a população.
Nesse sentido, o tráfico era um mal que deveria ser combatido através de uma
legislação mais rigorosa.115
Ainda na segunda sessão do dia dois de abril de 1867, o Conselheiro
Nabuco de Araújo apresentou algumas propostas que também tinham como
111 COSTA, João Severiano Maciel da. Memória sobre a necessidade de abolir a introdução dos escravos africanos no Brasil; sobre o modo e condições com que esta abolição se deve fazer; e sobre os meios de remediar a falta de braços que ela pode ocasionar. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1821. p. 13. In: AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Op. cit. 112 SILVA, José de Bonifácio Andrade e. Representação à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Imperio do Brasil Sobre a Escravatura. Rio de Janeiro: Cabral, 1840. Apud. AZEVEDO, Maria Marinho de. Op.cit., p. 41. 113 Ver: RODRIGUES, Jaime. O Infame Comércio. Campinas: Unicamp, 2000. p. 118. O autor estudou o fim do tráfico de escravos da África para o Brasil. Partiu do pressuposto de que a lei de 1850 antes de ser oriunda da pressão inglesa e da necessidade do Brasil garantir sua soberania, foi fruto da concordância de idéias da elite política do império, como também do esgotamento do projeto de construção do mercado de mão-de-obra baseado exclusivamente no escravo como alicerce da produção e, ainda devido ao vínculo estreito entre "corrupção dos costumes" e escravidão, aliando tudo isso à identificação dos traficantes a piratas, sem esquecer também do medo dos senhores com as ações coletivas escravas. 114 VILHENA, Luiz dos Santos. Recopilação de notícias soteropolitanas e brasílicas. Bahia: Imprensa Oficial, 1921.; COUTINHO, José Joaquim da Cunha Azeredo. Análise sobre a justiça do comércio do resgate dos escravos da costa da África. Lisboa: Nona oficina de João Rodrigues Neves. 1808. Apud. RODRIGUES, Jaime. Op. cit., p. 33. 115 Em meados do mês de maio de 1831 o marquês de Barbacena apresentou um projeto no senado sobre o fim do tráfico, alegando para tal fins humanitários e morais, e propondo o julgamento dos traficantes pela justiça brasileira, conforme o código penal do Império. Ver: Projetos de Lei, Anais do senado, 31 de maio, 1831. p. 254. Apud. RODRIGUES, Jaime. Op. cit., p. 87-88.
68
objetivo regular as relações senhor/escravo e encaminhar a emancipação
gradual da escravidão no Brasil.
As propostas exibidas por Nabuco continham muitas particularidades
tiradas do projeto de São Vicente, por exemplo: estipulação do ventre livre,
criação de um fundo destinado à emancipação anual dos escravos, concessão
de um dia livre na semana e o direito do cativo constituir pecúlio através do seu
trabalho, de doações ou de heranças.
Acrescentou também “a alforria invito domino”116. Esse acréscimo traria
como conseqüência a obrigatoriedade do pecúlio para a compra da alforria.
Nabuco receava que o emprego da quantia em poder do escravo tivesse outros
fins que não a compra da liberdade, “[...] sem a aspiração da liberdade
garantida, o escravo perderia todos os estímulos do trabalho e da economia; o
que adquirisse seria para alimentar os vícios, porque tal é o destino que se lhe
permite.”117
Na segunda sessão, realizada alguns dias depois da primeira, no dia 9
de abril de 1867, as opiniões de alguns conselheiros afastaram-se um pouco
daquelas defendidas dias antes. O Ministro Jequitinhonha defendeu uma
emergente mudança na estratificação social presente na sociedade brasileira,
pois considera que a nossa organização social não se podia considerar perfeita
se a sociedade continuasse dividida entre senhores e escravos. Já os
conselheiros Paranhos e Abaeté mantiveram a opinião de que melhor conviria
à nação brasileira realizar a emancipação e não a abolição e, mesmo assim, só
depois de finda a guerra entre Brasil e Paraguai. O ministro Paranhos, por sua
vez, defendeu uma proposta semelhante àquela apresentada por
Jequitinhonha, na sessão de 2 de abril, que fossem considerados libertos e não
ingênuos os filhos de escravas nascidos depois da Lei.
Nabuco nas suas observações sobre os cinco projetos do Conselheiro
São Vicente foi concorde com o primeiro, quarto e quinto, entretanto, ao
primeiro, acrescentou uma emenda, estabelecendo que o recém-nascido
prestaria serviços gratuitos para o senhor de sua mãe até a idade de 20 anos, 116 Nabuco, Joaquim.Op. cit.,p. 44.
69
se fosse homem e 18 se mulher, sendo que, havendo recusa por parte do
senhor, o projeto deveria permitir que alguma pessoa idônea ou uma
associação autorizada pelo governo se encarregasse de criá-lo e educá-lo.
Quanto ao terceiro projeto, Nabuco fez a ressalva de que a liberdade
seria alcançada pelos escravos se o senhor deixasse de matriculá-los por dois
anos sucessivos, sendo que este senhor pagaria multa de 20$ a 100$ reis se
omitisse a matrícula dos recém-nascidos filhos de suas escravas. No segundo
projeto, manifestou desacordo com a instalação das juntas centrais, municipais
e paroquiais, pois as achava ineficazes. As atribuições desta deveriam ficar a
cargo das autoridades locais, sendo nomeado um coletor para arrecadar e
guardar o fundo destinado à emancipação. Cabia aos promotores públicos e
curadores gerais requererem a quantia a ser arrecadada que fosse “a bem do
escravo”. O pecúlio ficaria sob os cuidados dos párocos da região, cabendo-
lhes a função de conceder as alforrias anuais, que tinham como referência o
valor disposto pelo fundo de emancipação. Os escravos alforriados seriam
aqueles indicados pelos senhores.
Nabuco de Araújo defendeu a elaboração de um projeto que se
apresentasse tutelar, onde ao governo cabia a função de decidir sobre o
destino dos escravos e libertos. O projeto deveria proteger e sustentar o poder
do senhor em conformidade com a religião e as leis. A escravidão não era para
ser abolida, mas apenas regulamentada. O processo da abolição deveria ser
conduzido de forma que a relação de domínio entre senhores e escravos não
se rompesse absolutamente.
Em 11 de abril de 1868 o conselheiro Zacarias foi encarregado de
compor uma comissão para discutir o projeto ou projetos que iriam ser
deliberados nas câmaras. Como presidentes desta comissão foram nomeados
Nabuco de Araújo, Sales Torres Homem e Souza Franco sendo, o último
substituído pelo ministro Sapucaí.
Nabuco redigiu um novo projeto e enviou ao conselheiro Zacarias que o
remeteu aos colegas São Vicente, Sapucaí e Sales Torres Homem,
117 Ibidem. p. 44.
70
responsáveis por alterar o texto acrescentando as seguintes emendas:
familiares do filho recém nascido de uma escrava teriam o direito da posse da
criança mediante o pagamento de uma quantia determinada ao senhor da mãe;
os recém-nascidos permaneceriam na posse dos senhores e et seriam
dispensados de alguns serviços obrigatórios; os escravos que fossem
maltratados severamente pelos seus senhores teriam a liberdade decretada; o
escravo não poderia receber herança e os filhos recém-nascidos dificilmente
poderiam ser separados de sua mãe.
Nabuco de Araújo pouco atendeu as emendas acrescidas pelos
conselheiros. Em 16 de abril de 1868, o Conselho de Estado se reuniu pela
primeira vez naquele ano para tomar conhecimento do projeto da Comissão. A
discussão consumiu quatro sessões, a primeira no dia 16 de abril e as demais
nos dias 23, 30 e 7 de maio simultaneamente. Na primeira sessão, os membros
do conselho apresentaram discordâncias em muitos itens do projeto
apresentado por Nabuco. O marquês de Olinda, por exemplo, mostrou-se
avesso a todos os itens expostos no projeto: “Se temos de dispor dos escravos
da nação, apliquemos o produto de venda dos mesmos para a dívida ou para
algum estabelecimento de caridade. Quanto a matrícula: já temos o
assentamento dos párocos: isto é o que basta. Quanto ao pecúlio, resgate
forçado, etc: não estamos fazendo lei de moral.”118 O conselheiro
Jequitinhonha discordou do colega quanto a empatia da população à causa da
abolição: “a população está impressionada como diz o marquês de Olinda, mas
é a favor.”
O conselheiro São Vicente, por sua vez, achou mais sensato a não
indenização pelo filho menor que acompanhasse a mãe alforriada. Nabuco
retaliou: “se é duro que a mãe liberta ou para libertar-se preste essa
indenização, o Estado que a tome para si. O que não é justo é que a
expectativa do senhor, confiado na proposta da lei, seja iludida [...]”119. O
conselheiro Rio Branco foi a favor que somente os filhos menores de quatorze
anos acompanhassem a mãe escrava e não todos como propunha o projeto de
Nabuco.
118 Ibidem. p. 64. 119 Ibidem. p. 64.
71
O marquês de Bom Retiro, baseando-se na máxima presente no direito
cível romano relativa à escravidão – “do partus sequitur ventrem, << pelo direito
ao fruto tão rigoroso como o que há sobre toda a propriedade escrava>>”120,
fez um acréscimo ao dispositivo do projeto relativo a liberdade do ventre. Os
recém-nascidos filhos das escravas só teriam liberdade mediante a
indenização do senhor. Bom Retiro foi a favor da indenização não somente
com a prestação de serviços dos menores, mas também por meio de uma
soma em dinheiro que seria paga pelo fundo de emancipação.
A Lei 2040 de 28 de setembro de 1871 foi fruto de vários projetos e
debates, que por sua vez não eram novos. Em 1831, Pereira de Brito já
levantava questões na Câmara referentes à alforria forçada dos cativos
brasileiros e, em 1850, o deputado cearense Pedro Pereira da Silva
Guimarães apresentou um projeto no parlamento nacional cujos principais
artigos eram: 1o) referente a liberdade daqueles que nascessem do ventre
escravo a partir da data da Lei; 4o) que consistia no direito ao pecúlio e o 6o)
proibindo a venda separadamente de escravos casados.121
Pedro Pereira Guimarães ainda tentou argumentar em favor de seu
projeto, mas os colegas deputados o impediram designando que esse tipo de
discussão deveria ser debatida em sessão distante do público: “são matérias
melindrosas que sempre tem sido tratadas em sessão secreta”122. Pedro
Pereira mostrou-se insistente, mas não conseguiu muito, os deputados
manifestaram-se irredutíveis.
O projeto que tenho a honra de submeter à sua consideração (ao presidente da câmara) e ao seu patriotismo contém três partes distintas, mas todas elas relativas ou tendentes a um só fim, melhorar a condição da raça escrava entre nós. Na primeira parte trata-se, em minha humilde opinião, do meio menos gravoso à sociedade para emancipação daqueles ao cativeiro pela infelicidade de terem nascido de um ventre escravo. Na Segunda parte trata-se da emancipação daqueles que, já tidos e havidos em cativeiro, querem sair dele obtendo por dinheiro a sua liberdade. Na terceira e última parte do projeto trata-se de tomar providências para obstar o abuso da venda de escravos casados123
O deputado Guimarães destoava de seus companheiros de Câmara.
Poucos parlamentares, neste momento, ousaram defender a emancipação e 120 Ibidem. p. 65 121 Ver em anexo no final do texto o conjunto de artigos do projeto. 122 Anais da Assembléia Legislativa, sessão de 22 de março de 1852.
72
abolição da escravidão no Brasil. Pedro Guimarães defendeu a emancipação,
tendo em vista, que já considerava o cativeiro um sistema amoral e ilegal:
[...] a liberdade não é um direito de herança, mas sim um dom da natureza tão precioso ou mais do que a vida, dom do qual não podemos despojar os outros, nem nós mesmos [...] e por isso, para mim, nada mais estranho e absurdo em jurisprudência que esta denominação de pessoas e cousas, do que este princípio do direito romano do partus sequitur ventrem [...]”124
Ainda nesta ocasião não estava elucidado para os deputados que a
escravidão representava um entrave para o desenvolvimento nacional,
impossibilitando o crescimento político, social e econômico brasileiro. Essa
concepção encontrou morada nas mentes parlamentares só a partir de 1867,
quando foi apresentado e deliberado no Conselho de Estado o projeto de São
Vicente, ilustrado nas páginas anteriores. Porém, mesmo neste momento, no
ano de 1867, as discussões apresentadas na imprensa, assembléias
legislativas, Comissões de direito, etc., normalmente giravam em torno dos
aspectos de cunho moral negligenciados pela conjuntura escravista.
Nos debates das sessões de abril de 1867, como nas de 1868, a maioria
dos conselheiros mostrou-se receosa em tratar da questão da emancipação. A
emancipação deveria ser tutelar, onde ao Estado caberia o papel de velar pelo
bem do cativo. As idéias eram combinadas de modo que a liberdade fosse uma
concessão dos senhores aos escravos numa tentativa de melhorar as
condições do cativo e não de eliminar a escravidão.
As deliberações apresentadas em 1868 pela comissão de conselheiros,
ao tentarem defender o projeto de emancipação frente o Conselho de Estado
trouxeram pela primeira vez para o debate político, a necessidade de substituir
a mão-de-obra escrava pela livre:
[...] é para que as províncias, onde a escravidão deve extinguir primeiro, possam, sem a concorrência de braços escravos, organizar o trabalho livre e chamar mais facilmente a colonização européia; é para que as províncias, onde há poucos escravos, animadas pela disposição da lei, se esforcem para que seja mais pronta a extinção dos seus escravos [...]125
Somente depois de dois anos, na primeira sessão do dia 21 de abril de
1870, a questão seria novamente debatida e esclarecida em Assembléia Geral. 123 Ibidem. 124 Ibidem.
73
Foi criada uma “comissão especial”, encarregada de reunir todos os elementos
existentes sobre a questão servil e elaborar um ou mais projetos sobre o
assunto.126
O deputado Perdigão Malheiro se encarregou de apresentar alguns
projetos contendo seu juízo sobre a questão, “as minhas idéias são públicas
[...] abolicionista de cabeça e de coração, não desejo, todavia a emancipação
precipitada e irrefletida [...]”127. Perdigão, como os conselheiros do Império
responsáveis pelo projeto de 1868, pretendeu uma abolição gradual sem
prejuízo para os senhores e para agricultura: “que tomemos providências que
gradualmente, como que por uma escada conduzam aquelle fim”.
O deputado defendeu o emprego da mão-de-obra livre, pois uma nação
progressista e civilizada não possuía na sua organização social, política e
econômica, o emprego da mão-de-obra escrava: “se o Brasil ou qualquer outra
nação entendesse que o seu desenvolvimento, o seu progresso industrial,
material, ou moral, enfim, sua civilização, dependia essencialmente do
elemento servil, essa nação seria indigna de figurar na comunhão das nações
civilizadas.”128
Todavia a emancipação deveria acontecer gradualmente, sem pôr em
perigo a ordem econômica e social. Perdigão pretendeu uma emancipação
passiva, dentro da ordem e conduzida pelos senhores. Temia uma revolução:
“é sempre ou quasi sempre a revolução que determina a reforma [...] não
desejo isso; e eis porque entendo que devo concorrer, offerecendo, como base
de estudo, synthetisados neste projeto as minhas idéias. “129
125 NABUCO, Joaquim. Op. cit., p. 68. 126 Fala do deputado Teixeira Junior: “[...] para realizar este accordo redigimos requerimento, que é o objeto que me obrigou a pedir a palavra para apresentá-lo a consideração da casa. Parece-me inútil dizer que a esta comissão não faltarão elementos para sua decisão, porque além de lhe serem remettidos os diversos projectos sobre este assumpto, que hão de ser apresentados na sessão de hoje e já teriam sido lidos Sábado se nesse dia tivesse havido sessão, poderá auxiliar-se também de muitos outros trabalhos, importantes que já existem. Refiro-me aos estudos que sobre esta questão tem feito o governo imperial desde 1867, pois que a falla do trono de 1868 declarou ao paiz que semelhante materia continuava a ser objeto de assiduo estudo.” 127 Annaes – Câmara dos deputados. Volume I. Rio de Janeiro: Typografia Imperial e constitucional de J. Villenenve, 1870. p. 56. 128 Ibidem. p. 56. 129 Ibidem. p. 56.
74
Os projetos de Perdigão visavam garantir o direito de propriedade do
senhor, como também, o direito de liberdade do escravo. À primeira vista a
afirmação parece paradoxal, mas percebe-se que sua intenção estava
consonante com a maioria dos parlamentares. O escravo teria direito a sua
liberdade somente mediante a compensação do senhor pela perda de sua
propriedade, que viria na forma de prestação de serviços ou reparo pecuniário:
[...] providência a respeito do direito daquelle que resgata em juizo ou fora delle a liberdade de algum escravo; indenizando-se, se quiser, pelos serviços do mesmo escravo, mediante certas condições; e toma outras providências para que este direito e obrigações sejam effectivamente cumpridas e respeitadas.130
O escravo teria o direito de resgatar sua liberdade mediante o
pagamento de seu valor, disposição presente em projetos passados131. Como
tivemos a oportunidade de ver nas páginas anteriores, o cativo teria direito ao
pecúlio: “conferir-lhe portanto (ao escravo) o direito de propriedade em relação
a seu pecúlio, garante a livre disposição do mesmo, principalmente em bem da
sua manumissão, da do cônjuge, descendentes e ascendentes.”132
Outro ponto nevrálgico num dos projetos de Perdigão Malheiro diz
respeito ao preceito presente no direito civil, que concedia a “titulo de
propriedade ou de hereditariedade a escravidão.“133 No entendimento de
Perdigão a escravidão ainda persistia no Brasil devido, principalmente, ao
nascimento. Novamente a questão: era salutar modificar essa prescrição,
todavia, sem causar prejuízo ao direito da propriedade e ao desenvolvimento
da agricultura. O deputado temia o esvaziamento de mão-de-obra na produção
agrícola:
[...] Aqueles que ficam obrigados a prestar os serviços, segundo o projecto, dado o caso do falecimento do senhor,continuaram a servir; os direitos e obrigações passam ao conjuge, para os herdeiros, e, portanto, não ficam eles desamparados; mas se pertencem ao estabelecimento agricola, acompanham o estabelecimento. Se o estabelecimento couber a um dos herdeiros ou interessados, esses servos para bem dizer acompanham o estabelecimento, não são retirados delle; salvo a única hypothese de infantes ou menores de sete anos, que terão de acompanhar as mães no caso em que elas sejam transferidas por qualquer título de transmissão ou se retirem libertas.134
130 Ibidem. p. 56. 131 Projetos de São Vicente de 1866 e os discutidos pela Comissão de Conselheiros de 1867 – 1868. 132 Annaes – Câmara dos deputados. Op. cit., p. 56. 133 Ibidem. p. 56. 134 Ibidem. p. 59.
75
Perdigão Malheiro, enquanto jurista e representante dos interesses
senhoriais, pretendeu com seu projeto não atacar a escravidão ou promover a
emancipação dos cativos, mas sim impedir que o descontrole sobre as ações
dos escravos viesse a acontecer. Perdigão temia a imprevisibilidade de uma
revolta, tinha receio que esta abalasse a estrutura social, política e econômica
do Brasil. Como também temia uma emancipação onde o direito de
propriedade fosse ilibado.
Pareceu-me que com esse conjunto de providências nos poderemos conseguir um resultado muito satisfatório, sem termos necessidade de atacarmos diretamente a questão da emancipação, a escravidão, sem retirarmos da propriedade de ninguém contra a sua vontade um só escravo, e por conseqüência mantida a ordem social, mantida a organização do trabalho como ella se acha, apenas, sujeitas, a essas modificações que hão de ir auxiliando a transformação do organismo social a que todos nos tendemos e a que eu entendo que devemos aspirar. 135
Na sessão de 21 de abril de 1870, além dos projetos de Perdigão
Malheiro, outros foram lidos, impressos e entraram na ordem dos trabalhos do
dia, ou seja, foram deliberados. Alguns projetos trouxeram novamente para o
palco das discussões relativas a relação escravista no Brasil, o litígio que diz
respeito à defesa da propriedade privada. Desta maneira, foi intento dos
legisladores, ao elaborarem os projetos, darem garantias aos proprietários pela
perda de sua propriedade.
Se o senhor resolvesse libertar algum escravo estaria garantida por lei a
sua indenização, que seria efetuada em forma de serviços prestados pelo
escravo alforriado durante um período que não poderia ultrapassar cinco anos.
O projeto de Lei também alcançou as relações escravistas cujo escravo
possuía mais de um senhor: o escravo alforriado por um dos senhores teria de
continuar prestando serviços aos demais até alcançar a liberdade definitiva.
O projeto também atingiu as relações escravistas que envolviam a
família escrava. O escravo em vias de ser libertado, como o já liberto, teriam a
chance de redimir do cativeiro seu cônjuge, como também, seus ascendentes e
descentes, mediante a apresentação do pecúlio.136
135 Ibidem. p. 59. 136 Annaes – Câmara dos deputados. Op. cit., p. 59. “Considerou-se pecúlio: ‘dinheiro, moveis e semoventes adquiridos pelo escravo, quer por seu trabalho e economia, quer por benefício do senhor ou de terceiro, ainda a título de legado, nos semoventes não se compreendem escravos’.
76
Esses projetos avançaram frente aos demais. Pois, pela primeira vez,
ocorreu a possibilidade do senhor não ser ressarcido pela perda de sua
propriedade. Se o senhor abandonasse seu escravo por motivo de enfermidade
ou invalidez não teria direito a indenização; como também, se o escravo
prestasse algum serviço considerado de “grande valor” para seu senhor. Outra
medida foi acrescentada: ficou proibido possuir escravo enquanto garantia para
sanar dívidas. Todavia, excetuando-se, quando interferisse em interesses
primorosos no cenário econômico da época, a agricultura.
Nos projetos discutidos no dia 21 de abril de 1870 havia também a
proposta de libertar os filhos de escravas que nascessem depois de
promulgada a Lei. Os recém-nascidos estariam parcialmente livres, pois teriam
que servir ao senhor de sua mãe até atingirem a idade de 18 anos. Os
legisladores responsáveis por esse projeto entenderam ser justa esta condição,
pois que seria uma espécie de retribuição pelos “favores” prestados aos
menores quanto a “criação”, “educação” e “alimentação”. Querendo o recém-
nascido remir-se da sua condição, pagariam a importância referente ao tempo
decorrido da criação e educação, ou, uma importância referente ao tempo de
serviço que ainda faltasse.
Houve também a proposta de alforriar os escravos pertencentes à
nação, às ordens regulares e demais corporações religiosas. O texto propunha
a alforria imediata desses escravos. Os escravos de propriedade de ordens
religiosas prestariam serviços durante um período de cinco anos como forma
de indenização, ou então, se as ordens preferissem, receberiam a importância
pecuniária no valor de 400$ reis por cada indivíduo liberto, paga em apólices
da dívida pública que ficaria a encargo do governo.137
No dia 23 de maio de 1870 foi deliberado o projeto final que suscitaria a
Lei 2040. O projeto conteve seis artigos, sendo o primeiro: “as leis que regulam
o estado servil continuam em vigor”. O segundo dividiu-se em cinco parágrafos
e tratou da liberdade do ventre livre. O terceiro, sobre o pecúlio. O quarto,
sobre a matrícula obrigatória de escravos de todas as províncias do império. O
quinto, concernente também a matrícula. O sexto, sobre a obrigatoriedade do 137 Annaes – Câmara dos deputados. Op. cit., p. 60.
77
governo na execução dessa lei, podendo o mesmo “estabelecer pena de até
30 dias de prisão simples e até 200$000 reis de multa, contra os infractores
della; bem como o respectivo processo e competência”. Optamos por não
detalhar os artigos presentes no projeto por entendermos que os mesmos já
foram tratados e esclarecidos no decorrer do capítulo.
A lei 2040 é o resultado de todas as discussões e deliberações dos
projetos apresentados no Conselho de Estado como na Câmara dos deputados
de 1850 até 1870.
2.2 – ESCRAVOS BUSCANDO A LEI NA LUTA PELA LIBERDADE
2.2.1 – Bernardo
As ações cíveis pesquisadas no Arquivo do Estado do Ceará,
compreendendo um total de vinte, envolviam juizes, escrivães, curadores,
testemunhas, escravos, senhores, promotores e englobaram o período
referente ao decênio de 1870; são ricas em nuanças relativas às disputas de
liberdade pelo escravo, mostraram peculiaridades sobre a obstinação do
escravo em fazer prevalecer seu anseio de obter a condição de homem livre.
Sendo assim, importa a exposição mais acurada de um desses
processos. Mais especificamente trataremos do processo do escravo Bernardo,
que reivindicou o direito de ser livre no dia 06 março de 1874, na cidade de
Fortaleza, Província do Ceará. Bernardo, mulato de mais ou menos 36 anos de
idade, escravo de João Antônio do Amaral, veio por meio de seu curador, o
advogado e abolicionista Justino Francisco Xavier, pedir em audiência pública
ao juiz de direito substituto da 2ª vara civil, Coelho Machado da Fonseca, para
nomear e aprovar árbitros que determinassem o valor de sua alforria.
Bernardo possuía a quantia de 800$000 réis. 470$000 nas mãos do
indivíduo chamado Jurubué Canaverde, 130$000 réis com Manuel Leonardo de
Araujo Feitosa e uma casa de taipa avaliada, presumivelmente, em 200$000
78
réis. Soma essa adquirida por doação, pelo produto do seu trabalho e por
economias feitas com o consentimento de seu ex-senhor Cipriano de Araújo
Feitosa.
Com a lei de 28 de setembro de 1871138 foi possível o escravo constituir
pecúlio para comprar sua liberdade. Foi permitida ao escravo a formação de
uma economia advinda de doações, legados, heranças ou do seu trabalho e
economias destinada à compra de sua liberdade como da de seus familiares.139
O preço correspondente ao valor da alforria do escravo, que estivesse a
venda judicialmente ou que estivesse presente em inventário, seria aquele
estabelecido pela avaliação. Nos demais casos, o preço fixado era aquele
conseguido mediante negociação entre senhor e escravo e, no caso de não
existir acordo, seria fixado por arbitramento.
Sendo assim, o juiz substituto da 2ª vara cível, Coelho Machado da
Fonseca, estabeleceu três avaliadores para Bernardo: Arcadio Lindolfo de
Almeida, o negociante Antonio dos Santos Neves e o próprio senhor, João
Antônio do Amaral. Bernardo foi avaliado por 800$000 réis, no entanto apenas
possuía seiscentos réis. A casa de taipa que deveria complementar o restante
da soma não foi considerada por João Antônio do Amaral, como se fez constar
no processo “[...] entendendo que a casa que o libertando alega ter nesta
cidade não equivale ao preço razoavel de sua alforria [...] “.140
Quando o senhor e o escravo não chegavam a um consenso, eram
nomeados três árbitros para realizar a avaliação, seguindo o seguinte critério: o
representante do senhor – ou ele próprio – indicava uma lista de três nomes,
dentre os quais o representante do escravo escolhia um, sendo que o
representante do escravo, o curador, também apresentava uma lista onde a
outra parte escolhia um dos nomes indicados; o terceiro árbitro ficava a critério
138 No dia 28 de setembro de 1871 foi outorgada pela Princesa Imperial Regente a Lei N 2040, denominada Lei do Ventre Livre, que declara de condição livre todos os filhos de mulher escrava que nascerem a partir daquela data, providenciando criação e tratamento dos filhos menores de mulheres escravas como também se comprometendo a tratar sobre a libertação anual de escravos. 139 Coleção das Leis do Império do Brasil de 1871. Tomo XXXI, parte I. Rio de Janeiro: Typographia Nacional. Artigo 4o da Lei número 2.040, de 28 de setembro de 1871. 140 Arquivo Público do Estado do Ceará. Tribunal da Relação, Ação de Liberdade, pacote número 64.
79
de escolha do juiz, não podendo ser rejeitado pelas partes em questão a
menos que fosse comprovado comprometimento no caso.141
Como Bernardo não apresentou a imediata exibição de dinheiro ou título
de pecúlio equivalente ao valor 800$000 reis, a ação foi invalidada, perdendo
Bernardo o direito naquele momento de conseguir sua liberdade. 142
o apelante reclamou contra a violência provou a não existência do pecúlio e ate de meios suficientes para a sua indenização e todavia o juízo continuou e veio por fim uma apelação ex-oficio priva-lo por mais tempo dos serviços do seu escravo, embora ficasse reconhecido que Bernardo não estava nas condições da lei para pedir manumissao e consequentemente o deposito inda que coubesse no caso não tinha lugar na hipótese dada por falta de base para o pedido143
Como ficou exposto acima, João Antônio do Amaral, em sua defesa,
recorreu ao argumento de inexistir pecúlio em poder de Bernardo. A intenção
de João Antônio do Amaral era ganhar tempo para embarcar Bernardo para o
Rio de Janeiro,144 pois certamente lucraria mais com a transação. Nesse
sentido buscou invalidar o processo de arbitramento concedido pelo Juiz.
O processo não nos permite saber ao certo quais eram as intenções de
Bernardo, porém é possível imaginar seu desinteresse em embarcar para o Rio
de Janeiro. Sidney Chalhoub, na obra Visões da Liberdade, estudo sobre os
escravos e os negros livres da cidade do Rio de Janeiro, no final do século XIX,
traz importantes considerações sobre a “transferência maciça” de escravos do
norte para as províncias do sudeste, principalmente Rio de Janeiro e São
Paulo.
Os negros transferidos eram em geral jovens e nascidos no Brasil, no máximo filhos e netos de africanos que haviam sofrido a experiência do tráfico transatlântico [...] muitos desses negros estavam passando por uma primeira experiência mais traumática dentro da escravidão. Separados de familiares e amigos e de suas comunidades de origem, esses escravos teriam provavelmente de se habituar ainda com tipos e ritmos de trabalhos que lhes eram desconhecidos [...]145
141 Ver: MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Op. cit., p. 222. 142 Arquivo Público do Estado do Ceará. Tribunal da Relação, Ação de Liberdade, pacote número 64 143 Ibidem. 144 Ver: OLIVEIRA, Pedro Alberto de. Op. cit., p. 70-81. Com o crescente aumento do cultivo de café na região sudeste e com a proibição do tráfico de africanos, a partir de 1850 , a Província do Ceará passou a ser no Nordeste “um dos maiores fornecedores de cativos para o Sudeste “. De 1871 a 1876 oficialmente foram exportados da Província do Ceará 3.252 escravos. Número esse considerado alto, levando em conta que em 1872 a população escrava na província era de 31.913 indivíduos. 145 CHALHOUB,Sidney. Op. cit., p. 58.
80
Provavelmente, Bernardo estava receoso em ir para o Rio de Janeiro. As
informações e experiências que circulavam entre seus companheiros de
cativeiro não deviam ser favoráveis à imigração para a região sudeste. Tal
empreitada os privaria de um certo bem estar que haviam conseguido no
decorrer do tempo. Os anos de cativeiro ensinaram a Bernardo que
determinados valores nutridos por ele deveriam ser respeitados de alguma
forma. Suas relações afetivas tinham de ser consideradas. Os embates e
negociações com os senhores ensinaram aos cativos que as relações sociais
estabelecidas tinham caminhos de mão dupla.
É apropriado perceber que a luta dos escravos não se resumia apenas
na defesa de padrões materiais de vida, mas também na defesa de uma
autonomia espiritual e lúdica.146 Quando os escravos pediam, exigiam e
lutavam era para viver, muito mais que simplesmente sobreviver.
2.2.2 – José, Joaquim, Antônio, Alexandrina e Maria
Numa ação movida pelos irmãos menores de 12 anos, José, Joaquim,
Antônio, Alexandrina e Maria, através de seu curador João Pedro de Oliveira,
contra o indivíduo Joaquim Carneiro de Araújo Costa, no ano de 1873, na
Província do Ceará, constatamos que as testemunhas classificadas para depor
a favor dos apelantes primaram por salientar situações que evidenciasse a
relativa independência dos irmãos com relação a seu senhor: "[...] os menores
nunca estiveram em sujeição do réu porque este nunca os chamou a seu
domínio e que os menores até o ano de 1870 estiveram em casa em
companhia de seus pais [...]"147.
Pesquisas recentes vêm demonstrando que tanto casamentos como
uniões estáveis e prolongadas entre escravos eram consideráveis no Brasil do
século XIX. Robert Slenes, num artigo publicado na Revista de História em
146 Ibidem. p. 08. 147 Arquivo Público do Estado do Ceará. Ação de Liberdade, Número 32, pacote 71.Fala de Vicente Ferreira Guilherme, casado, 41 anos de idade, lavrador, testemunha. Na província do Ceará não temos números que comprovem a intensidade dos relacionamentos entre escravos. Não sabemos se houve ou não com muita freqüência casamentos entre cativos na igreja.
81
comemoração aos cem anos da abolição, salienta que relacionamentos entre
cativos com duração de 10 anos ou mais eram bastante comuns. Como
também eram comuns os casos de filhos que conheciam o pai e passavam os
anos de sua formação em companhia dele. Pesquisando em Campinas, o autor
encontrou, através de registros de matrículas de 1872-1873, nos plantéis com
dez ou mais escravos, um quadro onde 67% das mulheres acima de 15 anos
eram casadas ou viúvas; 87% das mães (com crianças menores de 15 anos
presentes na mesma lista de matrícula) eram casadas ou viúvas; e 82% dos
filhos menores de 10 anos viviam junto com os dois pais, ou com mãe ou pai
viúvo. Constatou também que isso não era apenas uma realidade de São
Paulo, onde os índices de casamento pela Igreja Católica entre escravos eram
bem mais elevados do que em outras províncias. Segundo o autor, o que
diferenciou São Paulo de outras regiões é o fato de que na terra dos
bandeirantes as uniões consensuais entre os cativos teriam sido abençoadas
pela igreja católica e, portanto, documentadas mais freqüentemente do que em
outras províncias. Todavia, o autor também evidencia o fato de que o
percentual de casamentos entre escravos, a proporção de mães casadas e de
filhos que viviam com os dois pais, eram bem menos freqüentes nos plantéis
pequenos, "por seu tamanho e instabilidade, limitavam severamente as
chances de o escravo encontrar um cônjuge ou manter a família nuclear
unida".148
Os embaraços jurídicos dos irmãos José, Joaquim, Antônio, Alexandrina
e Maria começaram naquele dia 20 de agosto de 1873, quando Ricardo Manuel
Barbosa e a liberta Filippa, pais dos menores, solicitaram ao juiz municipal da
villa de Santa Anna, comarca do Acaraú, que se nomeasse um curador e um
depositário para seus filhos. Foi nomeado como curador João Pedro de
Oliveira, que propôs em juízo uma "competente" Ação de Liberdade contra
Joaquim Carneiro de Araújo Costa, senhor dos apelantes, por motivo de
abandono.
148 SLENES, Robert. Lares Negros, Olhares Brancos: histórias da família escrava no século XIX. In. Escravidão. Revista Brasileira de História. São Paulo, ANPUH/Marco Zero, vol 8, n 16, março de 1988/ agosto de 1988. p. 193.
82
Os foros judiciários nas últimas décadas da escravidão foram de fato
lugares de embates consideráveis envolvendo senhores e escravos. O
princípio da liberdade e do direito à propriedade eram duas naturezas que não
se associavam.
Ricardo e Fillipa achavam que seus filhos tinham direito à liberdade e
não admitiam que o réu os submetesse a um cativeiro que eles tinham como
injusto, ou exercido indevidamente. Os pais estavam ainda motivados pelo
desejo de se manterem junto aos filhos.
A história de Ricardo e Filippa impressiona principalmente pela
resolução dos mesmos em fazer prevalecer sua vontade, ver os filhos libertos e
definidamente longe da possibilidade de os terem separados de si. As relações
estabelecidas entre eles e o réu haviam sido sobrepujadas por transações
comerciais cuja lógica fugia do que os dependentes entendiam por justo. A
contenda jurídica travada contra Joaquim Carneiro demonstra que os apelantes
conviveram no cativeiro somente enquanto o consideraram justo ou pelo
menos dentro de uma situação que permitia a convivência entre todos. A partir
do momento em que os laços familiares foram partidos, e se acenou a
possibilidade de separação dos membros da família, Ricardo e Fillipa lutaram
para atingir seus objetivos.
Em seu testemunho, Ferreira Guilherme, testemunha juramentada de 41
anos de idade, casado e lavrador, confirmou o que o curador disse em juízo ao
juiz municipal, " que sempre Barbosa forneceo vestuario e alimento necessario
a seus filhos e bem assim os tem tratado em suas enfermidades, sem que o
senhor Carneiro tenha concorrido com quantia alguma para o sustento dos
mesmos."149 Vicente Ferreira expôs em poucas palavras a total insubmissão
dos cativos a seu senhor. Demonstrando que os apelantes desde sempre
estiveram sob a posse de seus pais e que em nenhum momento o senhor
arcou com os deveres básicos de um proprietário – alimentação, vestuário e
assistência médica. Os menores estiveram sempre fora do domínio de seu
senhor. Vicente falava com total conhecimento de causa, pois morou dois anos
149 Ibidem.
83
como agregado do coronel Manuel Carneiro da Costa, e ficou bem
familiarizado com o cotidiano dos implicados na contenda.
Ao ser inquirido sobre não saber que o réu não tinha os menores sob
seu domínio, se os mesmos estavam na casa e em terras do réu em
companhia de seu vaqueiro e de Filippa, sua escrava até o ano de 1870, ano
em que foi alforriada, respondeu convincentemente, com todo conhecimento
que lhe cabia, que os menores não eram escravos de Joaquim Carneiro de
Araújo Costa. Isto porque este nunca os manteve em seu domínio, ou seja,
esses nunca lhe prestaram obediência. Afirmou também que o réu nunca
cumpriu com suas obrigações dando alimentação, vestuário e assistência aos
menores, ficando isso ao encargo dos pais dos mesmos.
A alegação de que os menores viviam em liberdade e foram deixados ao
desamparo pelo seu senhor eram justificadas por Fillipa e Ricardo, como
também pelas testemunhas. Princípios essenciais que definiam a escravidão
foram deixados de lado. O regime de trabalho, a produtividade da fazenda, a
obrigação de subsistência com alimentação e vestuário e o domínio são
elementos fundamentais das relações escravistas, e estes não eram
implementados na fazenda. O argumento, enfim, era que "seu senhor não os
mantinha em sujeição", "não os explorava como escravos" e não manifestava
"poder dominial".
Como Vicente Ferreira, Ricardo Manuel Barbosa também vivia como
agregado, prestando serviços em terras de outros em troca de alguma
remuneração e moradia. Nesse regime, o pagamento podia ser efetuado
também por "quarteação", prática em que o agregado, pelos seus serviços
prestados, recebia um animal de cada quatro que nasciam.
A atividade do criatório permitiu a formação de uma unidade social em
que cada fazenda representou uma família caracterizada principalmente pelo
paternalismo, onde laços de parentescos consangüíneos e convencionais
uniam todos ao senhor.150 Uma das testemunhas arroladas no processo,
150 Segundo Valdenice Girão nas fazendas de criatório "o fazendeiro quando residia na fazenda dirigia os trabalhos, cercados dos parentes [...] não havia pagamento de salário e sim, troca de serviço. O fazendeiro sustentava seus agregados de comida, casa e roupa, em troca de seus trabalho." Ver: GIRÃO,
84
Antônio Vicente da Silva, afirmou em seu depoimento, quando perguntado
sobre os bens que Ricardo Manuel Barbosa, sua esposa Filippa e seus filhos
usufruíam na fazenda, respondeu "que o réu em ajuste de vaqueirice com ele
(Ricardo Barbosa) só lhe deu no primeiro ano – um garrote e cinco Quarta de
farinha e no segundo um boiote e um alqueire de farinha e no terceiro um boi
[...]"151
Segundo a versão oferecida por Antônio Vicente, Ricardo Barbosa viveu
como agregado do pai do réu, o coronel Manuel Carneiro da Costa, durante 12
anos, trabalhando como vaqueiro na sua propriedade, uma pequena fazenda.
Quando a fazenda foi vendida, Ricardo foi despedido. Fato não muito comum
de acontecer numa unidade social onde as relações se caracterizam pelo
regime de troca de favores. Infelizmente o processo não nos permitiu saber
quais motivos levaram à desestruturação dos laços que uniam todos ao regime.
Mas o fato é que tal ruptura fez com que os pais das crianças recorressem ao
poder judiciário contra seu senhor.
E agora, Ricardo teria de abandonar algumas tradições peculiares do
sistema de criatório e adaptar outras à lógica econômica do mercado onde leis
particulares de oferta e procura, e as relações entre patrão e empregado,
determinavam as condições materiais do trabalhador. Leis outras que iam de
encontro aos costumes e à justiça da dependência pessoal.152 Ou então teria
de procurar outro senhor que o empregasse nas mesmas condições de
agregado. Fato este difícil de acontecer, pelo menos nas redondezas da villa
de Santa Anna, pois a atitude de colocar seu senhor no banco dos réus,
possivelmente, causou descontentamento em outros fazendeiros da região. O
fato é que o processo não nos possibilita saber o que aconteceu com Ricardo
depois de ser despedido da fazenda Serrote.
Valdenice Carneiro. Da conquista à implantação dos primeiros núcleos urbanos na capitania do Siará Grande. In: SOUZA, Simone de. (Org.). História do Ceará. 4o edição. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1995. p. 35. 151 Arquivo Público do Estado do Ceará. Ação de Liberdade, Número 32, pacote 71. Fala de Antônio Vicente da Silva, casado, 35 anos de idade, vaqueiro. 152 FONNER, Eric. O significado da liberdade. Trad, Célia Maria Marinho de Azevedo. Revista Brasileira de História – São Paulo, ANPUH/Marco Zero, vol. 8, n 16, março de 1988/ agosto de 1988. Nesse artigo o autor discutiu a liberdade enquanto um campo de conflitos onde seu significado era distinto tanto para o branco como para o negro no período posterior a guerra Civil norte americana.
85
Antônio Vicente Guilherme ainda afirmou que um menor chamado
Antônio, de 10 anos de idade, viveu sob os cuidados do réu até seus cinco
anos, depois disso foi morar com a escrava Valentina. Lamentavelmente não
sabemos se Valentina era escrava do réu Joaquim Carneiro de Araújo Costa
ou de seu pai, Coronel Manuel Carneiro da Costa. Antônio Vicente, apenas
disse que Valentina era "escrava da Casa", ou seja, ela trabalhava na casa
grande da fazenda, realizando serviços domésticos. Também não sabemos o
que fez a escrava sair da dependência direta dos seus senhores e ir morar em
outra casa juntamente com o liberto Luís, ex-escravo de Raimundo Carneiro,
irmão de Joaquim Carneiro; presumivelmente, Luís ao ser alforriado recebeu a
permissão do pai do seu senhor, o coronel Manuel Carneiro da Costa, para
viver como agregado nas suas terras. Sendo assim, logo depois de estabelecer
um relacionamento com Valentina, recebeu o consentimento do coronel para a
mesma ir morar em sua companhia, vivendo todos dentro da unidade
econômica e social característica do regime social dos domínios rurais
sertanejos.
Os escravos que fossem abandonados pelos seus senhores tinham
amparo legal na lei de 1871, que determinava a imediata alforria. Consistia
abandono o senhor que não mantinha o escravo sob sua sujeição, sob seu
domínio, exercendo sua autoridade. O abandono também era reconhecido
quando o senhor deixava de cumprir com algumas obrigações, dentre elas a
manutenção de subsistência de seus escravos.
Joseli Maria Nunes Mendonça, ao analisar uma documentação presente
no Arquivo do Tribunal Judiciário de Campinas, constatou que a relação
senhor-escravo para se definir e para se manter deveria ser reconhecida
também como legítima pelo escravo, "este entendimento era completamente
plausível naquele mundo da escravidão”.153 O exercício do domínio por parte
do senhor e tal reconhecimento pelo escravo consistiam em dois elementos
fundamentais na sustentação das relações sociais da escravidão no Brasil a
partir da segunda metade do século XIX, "defender a propriedade escrava
significava manter a possibilidade – ou a viabilidade – do exercício do domínio
153 MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Op. cit., p. 157.
86
dos senhores sobre seus escravos, afastando ao máximo as possíveis
contestações sobre a legitimidade de tal domínio."154 Além das obrigações com
alimentação, vestuário, e cuidados nas enfermidades, os senhores deveriam
aplicar também castigos que cumprissem papel pedagógico, mais do que uma
medida punitiva pelas faltas cometidas; nesse sentido, para que o castigo
tivesse esse caráter, deveria ser reconhecido pelos escravos como legítimo.
Como afirma Silvia Lara só esse castigo "moderado", "pedagógico" e "justo"
poderia desempenhar o papel de preservar os laços do domínio senhorial. 155
O advogado Manuel Firmino Maria alegou ser sem procedência a Ação
intentada pelos escravos devido ao fato de não considerar que os menores
foram abandonados pelo seu senhor, pois constou no processo que os
mesmos foram matriculados, como manda o artigo 76 do decreto de 13 de
novembro de 1872. Decreto este que considera abandonado apenas o escravo
cujo senhor, residindo no lugar, não o mantém em sujeição e não manifesta o
querer manter sob sua autoridade.156 Seguindo esta máxima, Manuel Maria
argumentou: "ora a liberdade concedida por paga a escrava mãe, o facto de
acharem esses escravos matriculados pelo suplicante como se legitima o
senhor, são mais que suficientes para provarem não haver tal abandono
[...]"157. O advogado ainda tentou provar ao juiz, "que Ricardo Barbosa em duas
petições confessa por muitas vezes pertencerem esses escravos menores ao
suplicante"158, como também, "que para sustento concorreu o suplicante com
farinha e matalotagens sem em tempo algum revelar a intenção de abandonar 154 Ibidem. p. 160. 155 Ver LARA, Silvia Hunold. Campos da violência, escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro – 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. 156 Ver Coleção de Leis do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1872. 157 Arquivo Público do Estado do Ceará. Ação de Liberdade, Número 32, pacote 71. A pedido do réu foi acrescentada nos autos a ratificação da certidão contendo a matrícula especial dos menores e constando o nome, idade, profissão. Maria era a menor, tinha quatro anos e José, o maior, com nove anos. Todos foram registrados como aptos para o trabalho e com profissão de servente. Ver: MATTOSO, Kátia de Queirós. O filho da escrava ( em torno da lei do ventre). Revista Brasileira de História – São Paulo, ANPUH/Marco Zero, vol. 8, n 16, março de 1988/ agosto de 1988. p. 37-55. Nesse artigo a autora através de testamentos e inventários post-mortem, constatou que nos últimos 30 anos da escravidão no Brasil, as crianças escravas estavam classificadas em duas etárias, "de zero aos sete para oito anos, o crioulinho ou crioulinha, o pardinho ou a pardinha, o cabrinha ou a cabrinha, são crianças novas, geralmente sem desempenho de atividade do tipo econômico; dos sete para os oitos até os doze anos de idade os jovens escravos deixam de ser crianças para entrar no mundo dos adultos [...]'". Ver ainda: MOTT Lúcia Barros. A criança escrava na literatura de viagens. In: Caderno de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas. Número 31: 57-67, dezembro 1972. Segundo a autora: “a idade de 5 a 6 anos parece encerrar uma fase na vida da criança escrava. A partir dessa idade ela aparece desempenhando alguma atividade (...) descascar mandioca, descaroçar algodão e arrancar ervas daninhas". É muito improvável que Maria de apenas quatro anos realizasse alguma atividade regularmente, acredito que seu senhor, ao matriculá-la como apta para o serviço de servente, queria com isso valorizar seu preço para uma futura negociação.
87
taes escravos"159. Com isso Manuel Firmino pretendeu convencer o juiz de que
o réu Joaquim Carneiro, sempre teve os escravos em sua sujeição como as
demais propriedades que tinha na fazenda, "que esses escravos o suplicado os
tinha em sua fazenda Serrota, onde o suplicado tem gados, cabras, porcos
[...]"160. Ainda pretendeu persuadir o magistrado da falta de propósito do
depósito dos menores escravos, alegando que os mesmos, depositados na
casa de João Pedro de Oliveira, não estavam em segurança por que "o
depositario João Pedro de Oliveira he pauperrimo, nada absolutamente
possue, não tem como garantir o valor dos mesmos escravos que não é inferior
a dous contos e quinhentos mil reis"161. Na verdade a pretensão do advogado
com esse argumento era livrar José e Joaquim do depósito, pois os escravos
nessa condição ficavam impedidos de serem negociados, mas José e Joaquim
já estavam praticamente vendidos para José Feurico Alberto de Araújo e
Alexandre Carneiro da Costa.
No dia 14 de março de 1874, o juiz Antônio de Sabóia deu causa ganha
a Carneiro de Araújo Costa. Porém menos de quatro meses depois, Ricardo
Manuel Barbosa e Filipa apelaram da sentença junto ao Tribunal de Relação de
Fortaleza.162 E pediram que fosse nomeado para defendê-los o Sr. Manuel
Pires Camargo, que reforçou as teses argumentadas por João Pedro de
Oliveira, abandono e falta de domínio senhoril: "[...] os menores desde que
nascerão morarão com seu pai que nem sempre foi agregado do reo, e que
morava na fazenda de serrote [...],como não exigia delles serviço algum, pelo
qual demonstrasse querer tel-o em escravidão e que somente depois da lei
2040 de 28 de setembro de 1871 [...] os dera matricula especial"163 e
acrescentou, " a matrícula não desfaz o abandono porque ella por si só não é 158 Arquivo Público do Estado do Ceará. Ação de Liberdade, Número 32, pacote 71. 159 Ibidem. 160 Ibidem. 161 Ibidem. 162 Alguns autores divergem a respeito da data exata da fundação do primeiro Tribunal da Relação do Brasil. Segundo o desembargador Paulino Nogueira Borges da Fonseca o Tribunal da Relação do Brasil teve sua primeira sede na província da Bahia no ano de 1587. Joaquim Inácio Ramalho, por sua vez, diz que isso se deu no ano de 1602, mas que não vigorou por falta de ministros e de presidentes, sendo reinstalado em 1652. Já Tristão de Alencar Araripe insistiu que o Tribunal foi criado em 1609 na Bahia, sendo que no dia 05 de abril de 1626 foi suprimido por um alvará, retornando somente em 1652. O fato é que no dia 03 de fevereiro de 1874 ele foi instalado na província do Ceará, ficaram sob sua jurisdição as províncias do Ceará e do Rio Grande do Norte, sendo sua sede fixada na cidade de Fortaleza. Seu quadro era formado por sete desembargadores, ocupando os cargos de Presidente, Procurador da coroa, fazenda, soberania nacional e desembargadores. Ver: SOUZA, Eusébio de. Tribunal da Apelação do Ceará. 1945.
88
bastante para fazer alguem captivo é preciso que se prove que esse alguem
era escravo e que prestava serviço ao seu senhor [...]"164. Mas, o
desembargador não considerou os argumentos e no dia 15 de novembro de
1874 negou a apelação.
2.2.3 – Benedicta
A escrava Benedicta, residente na cidade de Fortaleza, por meio do seu
curador Justino Francisco Xavier intentou uma Ação no ano de 1874 contra
Margarida Ferreira de Jesus. Disse o advogado de defesa Francisco Brígido
dos Santos:
Margarida Ferreira de Jesus residente nas proximidades da praia desse termo, que sendo possuidora e senhora da escrava benedicta creola a qual houve por compra, há quasi dezoito annos [...] assim de uma filha desta de nome Damiana, nascida antes da lei de 28 de março de 1871; devia matricular a uma e outra na alfandega desta cidade [...] ocorreo que a suplicante residente num lugar muito pouco frequentado, ou alias deserto, onde nunca sahi, e vivendo no maior isolamento e numa idade avansadissima, e sem uma pessoa que cuide de seus interesses, nunca teve notícia a obrigação que lhe impunha aquelle regimento e sorte extincto o praso, ficou obrigada a provar seo dominio ou senhorio sobre a dita escrava [...]165
Disse mais, que dona Margarida Ferreira de Jesus sempre possuiu
Benedicta na "pacífica posse" pelo menos há 18 anos e que das duas
Benedcta era a única que possuía conhecimento da lei e agiu "maliciosamente"
sem comunicar a obrigação a sua senhora.
O curador de Benedicta, Justino Francisco Xavier, defendeu a tese que:
sendo a residencia da senhora no lugar Boa Esperança no municio dessa capital,- distante apenas 8 léguas – foi ahi sabido por todos os vizinhos a obrigação de serem dados os escravos a matricula especial.
Que a igorancia de direito não se presume, nem se pode allegar, tanto mais quando a lei de que se trata foi publicada pelos jornais da provincia e os prasos para a matricula especial dos escravos, alem de muito extensos, foram também repetidamente annunciados pela imprensa e por editaes.166
163 Arquivo Público do Estado do Ceará. Ação de Liberdade, Número 32, pacote 71. 164 Ibidem. 165 Arquivo Público do Estado do Ceará, Ação de Liberdade, Número 139, pacote 71. 166 Ibidem.
89
Foi chamado para depor o lavrador Antônio Francisco Dias, morador
próximo à casa da ré. Quando perguntado pelo advogado de defesa Francisco
Brígido se tinha conhecimento que a acusada Margarida de Jesus sabia da
obrigação de ter de matricular seus escravos, respondeu: “[...] é verdade que a
autora deixou de matricular Benedicta e sua filha como era obrigada , e isto
não foi de vontade sua mas por ignorar que houvesse tal disposição da lei"167
Disse ainda que a ré morava muito distante da cidade, vivendo só, sem ter
comunicação com ninguém, sendo esse o motivo pelo qual deixou de efetuar a
matricula da escrava Benedicta.
Antônio Francisco não foi convincente nas suas respostas. Ao ser
interrogado pelo curador Justino Xavier afirmou que: “conhecia o filho da
mesma autora de nome Vicente Alves como João Rafael os quais morão perto
da caza da autora tendo comunicação com esta”. E também disse que a
acusada tinha conhecimento da existência da Lei 2040, desconhecendo
apenas o preceito que obriga os senhores a efetuarem a matrícula especial de
suas escravas.
O lavrador José Alves Pereira, por sua vez, quando intimado pelo
advogado Francisco Brígido para depor, afirmou que o finado marido de dona
Margarida de Jesus, Bento Alves Ferreira comprou Benedicta quando esta
tinha apenas seis anos de idade e que o casal sempre a manteve sob "pacífica
posse". Também disse que depois da morte do seu marido, dona Margarida
morou praticamente isolada: "visto como não tem moradores no lugar onde
mora sem vizinhos mais ou menos distantes". Ainda afirmou que a escrava
Benedicta tinha conhecimento da lei, pois: "sem nenhum motivo deixou a
authora conduzindo sua filha Damiana".
No segundo depoimento tomado pelo curador Justino Xavier, José Alves
respondeu que conhecia algumas pessoas que moravam próximo à casa de
Margarida que haviam dado a matrícula a seus escravos.Também disse que a
ré era muita bem quista pelos moradores da vizinhança, e quando perguntado
"se a authora tinha comunicações com algum vizinho que frequentassem sua
167 Ibidem.
90
caza", respondeu que tinha conhecimento do filho chamado Vicente Alves e do
neto Manuel de Azevedo.
O advogado Francisco Brígido defendeu a tese de que não houve
omissão por parte da ré em deixar de matricular Benedicta e sua filha: "culpa e
omissão só não dá sempre quem concorre à força maior; e este é o caso em
que se acha a authora". Também destacou que não houve intenção da ré, mas
apenas desconhecimento da lei, porque "residindo em um lugar ermo e
longínquo da cidade umas nove léguas talvez, não teve conhecimento de que
havia uma semelhante disposição de lei."
A batalha foi acirrada e venceria o melhor, ou seja, aquele que se
locomovesse mais habilmente nos trâmites jurídicos. Justino Xavier foi bem
competente. Disse o curador: "O artigo 8o parágrafo 2o da lei n 2040 de 28 de
setembro de 1871, dispõe o seguinte: os escravos que por culpa ou omissão
dos interessados, não forem dado a matricula até um ano depois do
encerramento desta, serão por este facto considerados libertos"168. Justino fez
questão de citar a lei para com isso afirmar: "esta disposição, como se vê, é
expressa e terminante: não faz exceção alguma pela qual deixasse de produzir
imediatamente a liberdade do escravo, o facto de não ter sido ele matriculado
no praso marcado", e mais adiante prossegue: "para a execução do citado
artigo, na parte concernente ao processo da matricula, promulgou-se o decreto,
n 4835 de 1 de dezembro de 1871, e ahi, no art 19 foi estabelecida a exceção
que permite aos senhores de escravos, ou interessados, provarem não ter
havido culpa ou omissão da sua parte".
Justino Xavier realizou uma considerável discussão sobre as
disposições e decretos referentes à obrigação do senhor de matricular seu
escravo, demostrando no final, que o advogado da ré cometeu um grave erro
jurídico ao enquadrar na hipótese de defesa o decreto de 1o de dezembro de
1871, pois esse diz: "a exceção: salvo os mesmos interessados o meio de
provarem em acção ordinaria e audiencia dos libertos e de seus curadores: 1o
168 Idem. Fala de Justino Francisco Xavier.
91
o dominio que tem sobre eles; 2o que não houve culpa ou omissão de sua parte
me não serem dadas a matricula dentro dos prasos dos artigos 10 e 16."169
O curador demonstrou a impossibilidade do advogado de defesa utilizar-
se daquele decreto para amparar os interesses da ré, evidenciando as
contradições presentes nas falas das testemunhas. Margarida de Ferreira de
Jesus disse ter comprado Benedicta há 18 anos, entretanto não exibiu o título
de aquisição, tentando prová-lo com os depoimentos das testemunhas. Antônio
Francisco Dias disse conhecer a escrava Benedicta e sua filha Damiana desde
menino, sendo que tinha 25 anos, e Damiana três: "há impossibilidade de ter
conhecido desde menino a Dammiana, que, achando-se com apenas três
anos, presentemente, não existia ao tempo em que a testemunha era menino".
José Alves Pereira disse que Benedicta fora comprada pelo finado Bento Alves
Ferreira, mas no seu depoimento Margarida Ferreira de Jesus afirmou ter
comprado Benedicta há 18 anos, dessa forma o curador demonstrou a
impossibilidade da ré contar com os depoimentos das testemunhas para provar
o domínio sobre Benedicta:
nem mesmo a autora provou que tivesse havido a ignorância alegada desde que residindo ella proxima a cidade; morando nas suas vizinhanças seu filho Vicente Alves, seu neto Manuel de Azevedo, João Rafael e muitas outras pessoas que frequentão essa cidade, evidencia-se que há constante comunicação entre a autora e seus vizinhos, sobre tudo com seus filhos e netos, como afirmão as proprias testemunhas produzidas pela mesma authora: em tais condições ella não podia deixar de Ter tido notícias da lei de que se trata170
No dia 28 de setembro de 1874 o juiz de direito da 2o vara cível de
Fortaleza, Antônio Coelho Machado da Fonseca, considerou os argumentos
apresentados pelo curador Justino Francisco Xavier e deu causa ganha a
Benedicta e sua filha Damiana.
Causa uma certa surpresa encontrarmos casos como o de Benedita,
onde a escrava mais do que sua senhora tem conhecimento das
determinações legais que regulam a relação escravista. Ainda que tenhamos
trabalhado com poucas ações e não disponhamos de um número grande de
escravos que agissem como a escrava Benedicta, pensamos que o fato de tal
escrava ter buscado o auxílio da justiça sob o argumento da ilegalidade de sua
169 Ibidem. 170 Ibidem.
92
condição, por si só já é uma evidência surpreendente de como os escravos
eram mais do que meras peças, bens semoventes, "coisas". Esse processo
demonstra o quanto o escravo poderia ser astuto e hábil na realização de seus
objetivos.
2.2.4 – Escrava Maria Luiza da Conceição
Infelizmente nós não tivemos a mesma felicidade de outros autores,
dentre eles Maria Cristina Wissenbach e Maria Helena Machado171, que
encontraram documentos comprovando o envolvimento de advogados e oficiais
de justiça conduzindo os embates judiciais que abrangiam escravos na
província de São Paulo. Não temos como saber até onde os curadores
estavam envolvidos na condução dos processos. Ignoramos de quem partiu a
intenção de iniciar os litígios, se foi dos curadores ou dos escravos.
Acreditamos que as ações foram conduzidas tanto pelos advogados
abolicionistas quanto pelas iniciativas dos cativos. Percebemos em algumas
ações a destreza desses advogados em desdobrar os processos.
No dia 11 de julho de 1877, a senhora Anna Joaquina de Freitas,
representada pelo seu advogado o senhor Belmiro de Souza, em audiência
com o juiz da primeira vara civil da comarca de Fortaleza, solicitou a presença
da escrava Maria Luiza da Conceição para “fallar aos termos da acção
ordinaria que a dita sua constituinte move a mesma parda Maria, a fim de
provar a verdadeira condição desta, e requeria que aprovados se houvesse a
citação por feita e acusada, e a acção por proposta"172.
Maria Luiza da Conceição, através do seu curador Virgílio de Morais
disse que "sua ex senhora Anna Joaquina de Freitas Barros, intenta-lhe
171 “[...] o movimento abolicionista , em sua feição paulistana, teve sua origem mais marcante no legalismo de advogados abolicionistas. Utilizando-se das brechas abertas tanto pela lei de 1831, que passava a considerar ilegal a escravização dos africanos e seus descendentes, entrados no país após esta data, quanto pela de 1871, que institucionalizava os pecúlios e a arbitragem judicial do valor do escravo nos casos de conflito, muitos advogados e oficiais de justiça passaram a dedicar-se à defesa gratuita dos cativos.” Ver: MACHADO, Maria Helena. Op. cit., p. 151. 172 Arquivo Público do Estado do Ceará, Ação de Liberdade, Número 909, pacote 64. Fala de José Feijó Fidélio Barrozo, escrivão interino.
93
atualmente uma Ação para chama-la ao captiveiro, apesar de não ter sido
contemplada na matricula especial por omissão de sua ex senhora"173
Segundo o advogado de defesa, Brígido dos Santos, a suplicante (Anna
Joaquina de Freitas) alegou ser "analfabeta [...] pediu a seu protector e amigo o
capitão Zeferino de Ferreira e Silva, em 20 de abril de 1872, que fizesse
matricula na alfandega dessa cidade a sua escrava Maria, comprada de José
Gomes Rodrigues de Albuquerque em 30 de junho desse ano"174 Disse mais o
advogado: "a petição pela qual se pedia a matricula [...] nella pedia que se
abrisse matricula da dita escrava, sem que se dissesse qual seria a matricula,
si a especial para os effeictos da lei de 28 de setembro de 1871, si a geral,
para lançamento da taxa anual a que os escravos estão sujeitos."175
João Brígido pretendeu provar que não foi intenção de Anna Joaquina
não efetuar a matrícula. Situação essa ocorrida devido ao fato de sua cliente
ser analfabeta e ter pouco entendimento em leis: "Ora seguramente se pode
dizer que houve omissão de sua parte; que teve sciencia e consciencia do que
se passava naquela repartição?". Atribuiu a culpa pela omissão da matrícula à
alfândega.
Os argumentos do advogado não foram muito convincentes, o juiz da 1o
vara cível, Julio de Barbosa, deu o veredicto final favorável à Maria por
considerar que houve omissão de Anna Joaquina em matriculá-la.
Os escravos podiam, muitas vezes, eles próprios, reconhecerem os
caminhos mais sensatos para atingirem a liberdade. O processo de Maria é
profícuo no sentido de nos mostrar isso. Ele sugere que os cativos,
provavelmente auxiliados pelos curadores, advogados, ou através dos contatos
com os moradores da vizinhança, tinham conhecimento de um elemento
nevrálgico para atingirem sua liberdade, a obrigatoriedade de serem
matriculados pelos seus senhores.
173 Segundo o artigo 8o da Lei n 2040 de 28 de setembro de 1871, os senhores que deixassem de matricular seus escravos por culpa ou omissão, dentro do prazo marcado pela mesma lei, perderiam o direito de propriedade sobre o escravo. 174 Arquivo Público do Estado do Ceará, Ação de Liberdade, Número 909, pacote 64.
94
2.2.5 – Eufrásia e Theodora
Numa outra ação de liberdade encontrada no Arquivo Público do Estado
do Ceará, deparamo-nos com as escravas Eufrásia e Theodora, que no dia 29
de março de 1880, recorreram à instância superior, o Tribunal de Relação de
Fortaleza, em apelação da sentença auferida contra elas, movida por suas ex-
senhoras, as irmãs Thereza e Francisca Maria Pereira. O curador, Justino
Francisco Xavier argumentou:
a injustiça em que, pela sentença de 20 se negou as suplicantes Eufrásia e Theodora, a titulo de liberdade que requereram é manifesta em fase das disposições de direito que regulou a materia controversa...
[...] passamos a demonstral-o com a clareza que nos é possível, sem necessidade de deduções duvidosas nem de extenso desenvolvimento as nossas humildes argumentações176
Nem sempre a lógica aplicada pelo juiz seguia a jurisprudência. Às
vezes, os magistrados eram influenciados por outros motivos, dentre eles
políticos e ideológicos, como afirma Mendonça: "é possível ver também que a
aplicação das leis estava longe de seguir critérios estritamente "lógicos". As
decisões judiciais tornavam-se cada vez mais políticas"177. O campo da lei
oferecia rudimentos que permitiam tanto os defensores da propriedade servil,
quanto àqueles que eram contrários, alcançarem seus objetivos. A partir da Lei
2040 se tornou mais habitual na relação escravista discutir a legalidade da
escravidão. Os próprios escravos, como também advogados, políticos,
funcionários públicos e outros passaram a questionar e a atuar mais
eficientemente para o fim do regime.
Como tivemos a oportunidade de ver, a partir da lei do Ventre Livre, os
escravos utilizaram-se cada vez mais de argumentos acerca da ilegalidade da
"propriedade servil", para romper a relação de domínio senhorial. Conseguiam
com isso colocarem seus senhores numa situação nada agradável, sentá-los
no banco dos réus, acusando-os, muitas vezes, sob o argumento de que
exerciam sobre eles um direito ilegal.
175 Ibidem. 176 Ibidem. 177 MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Op. cit., p. 183.
95
Justino Francisco Xavier conseguiu provar através de certidão, que no
dia 1o de abril de 1865, Eufrásia e Theodora foram arrematadas em praça
pública por Antônio Santos neves, provou também que no dia 10 de abril o
arrematante pagou o valor das escravas e que mãe e filha depois foram
entregues pelo porteiro do auditório Francisco Feliciano da Costa Catolé, o
mesmo que fez o pregão na praça e assinou os atos ao senhor Santos Neves:
"que ficou effectivamente na posse dellas". E prosseguiu: "ora para que as
suplicadas possam dizer-se senhoras das suplicantes é necessário mostrar
que Santos Neves transferiu a ellas as apelantes [...] não podendo effectuar-se
a transmissão se não for escriptura publica,"178 tendo em vista que as
suplicantes não exibiram nenhum documento que comprovasse o título legal de
posse ou domínio. O curador concluiu o raciocínio argumentando:
o "artigo 3o do decreto n 4835 de 1o de dezembro de 1871 satisfez a exigencia da lei definindo as pessoas a quem incumbia a obrigação de dar a matricula [...] que não pode ser satisfeita por um terceiro senão representando legalmente o interessado obrigado
A lei citada estabeleceu semelhante obrigação no intuito de fornecer a libertação dos escravos; mas fica burlado o seu precisamento toda vez que uma terceira pessoa isentar o interessado da culpa ou omissão, dando o escravo a matricula sem ser representante legal do mesmo interessado"179
O juiz chamou para depor o pernambucano e agente de leilões Antônio
dos Santos Neves de 39 anos, responsável por arrematar em praça pública as
duas escravas em questão, Theodora e Eufrásia. Disse que as escravas foram
penhoradas ao requerente Frederico José Pereira por execução de seu irmão
João Manuel Pereira. E no dia seguinte do arremate, quando foi receber as
escravas na casa do Frederico Pereira, "a familia do executado se mostrou
muito consternada que elle testemunha deixou de recebel-as indo ao João
Manuel Pereira communicar o ocorrido que restitui-lhe o dinheiro pago em
juízo pela arrematação de mencionadas escravas."180 Disse-lhe João Manuel
Pereira, nessa ocasião, que as escravas ficariam para suas sobrinhas,
Francisca e Maria, filhas de seu irmão, João Manuel Pereira.
O advogado de defesa, Paulino Nogueira Borges da Fonseca, utilizou o
depoimento de Antônio dos Santos para provar que as suplicantes Eufrásia e
Theodora de fato eram escravas das suplicadas Francisca Maria Pereira e
178 Arquivo Público do Estado do Ceará. Ação de Liberdade, Número 1582, pacote 32. 179 Ibidem. 180 Ibidem.
96
Thereza Maria Pereira. Buscava, desse modo, provar o domínio e posse das
irmãs sobre as escravas, para isso serviu-se do artigo 8o da lei de 28 de
setembro de 2040, como do artigo 85 do regimento nº 5135 de 13 de novembro
de 1872 e também do artigo 19 do decreto número 4835 de 1o de dezembro de
1871, que determinam: "que no caso vertente proceda o juiz
administrativamente."181 Mas não foi convincente nas suas argumentações
decidindo o egrégio Tribunal da Relação, no dia 19 de outubro de 1880, ganho
de causa para Theodora e Eufrásia.
2.2.6 – Custódio
No ano de 1879, na vila de Pacatuba, província do Ceará, o escravo
Custódio, através do seu curador Baltazar Ferreira Lima, entrou com uma ação
de liberdade contra seus senhor Manuel Antônio da Costa. Custódio alegou:
Ter sido abandonado por seo senhor desde o ano de 1871 [...] e que tem vivido fora do poder do seu senhor morando distante dele uma legua pouco mais ou menos que o não tem tratado em suas molestias antes pelo contrario o tem votado o mais completo desprezo, entregando-o aos seus proprios recursos e deixando-o viver fora da sujeição dominada182
Custódio vivia com sua mulher e filhos, trabalhava por conta própria
plantando e prestando serviços na comunidade. Pois a testemunha, João de
Meneses Filho, de 26 anos, casado e agricultor afirmou que "o escravo em
questão mora vivendo de trabalho alugado e faz roçado com seus filhos e
mulher."183 Outra testemunha afirmou que Custódio até se casar vivia na casa
de seu senhor e que não sabe "se o réu deu licença para o casamento do
escravo"184. Entretanto, sabia-se que o réu tinha outros escravos e todos o
abandonaram sem seu consentimento.
181 O artigo 19 do regimento 4835 determina: "os escravos que por culpa ou omissão dos interessados a meio de provarem em acção ordinaria com citação e audiencia dos libertos e de seus curadores: 1o o domínio que tem sobre elles, e 2o que não houve culpa ou omissão de sua parte em não serem dados a matricula dentro do prazo estabelecido" e determina o artigo 85 do regimento n 5125 "que nos casos para que o mesmo regimento não designar forma de processo o juiz proceda administrativamente". Arquivo Público do Estado do Ceará. Ação de Liberdade, Op. cit. 182 Arquivo Público do Estado do Ceará, Ação de Liberdade, Número 21, pacote 48. Fala do curador Baltazar Ferreira Lima. 183 Arquivo Público do Estado do Ceará, Ação de Liberdade, n 21, pacote, 48. 184 Idem. Testemunha Francisco da Silva, agricultor, casado e com 40 anos de idade
97
A versão dos fatos oferecida pelas testemunhas do autor reforçou a
independência de Custódio. Enfatizou que Manuel Antônio da Costa não
detinha nenhum poder sobre o escravo, tendo o mesmo total liberdade para
fazer o que bem entendesse, inclusive prestar serviços para outros sem
precisar ressarcir seu senhor com nenhum valor. Entretanto, ressaltou
também, que Manuel Antônio à algum tempo vinha demonstrando um certo
comportamento estranho, "sucede que as vezes vê alguém e corre para dentro
de casa."185 E que o réu já vinha apresentando essa conduta há algum tempo:
"não sabe se o réu é doido, mas não tem bom juízo [...] pois o reu quando ve
gente corre e se esconde e que este estado do reo não é de pouco tempo mais
de alguns anos."186
Com bases nesses depoimentos o Juiz municipal, Augusto Gurgel, no
dia 20 de fevereiro de 1879, deu o veredicto a favor do réu. Concluiu que as
“condições não se pode razoavelmente presumir o pretendido abandono, nos
restritos termos do artigo 76 do regimento Número 5135 de 13 de novembro de
1872,187 pela ausencia absoluta de uma vontade relfetida e consciente."188
Ainda disse que o abandono do escravo se deu "pouco mais ou menos da data
em que o reu começou a sofrer o desarranjo mental que o impossibilitou para
promover por si seus interesses."189 Considerou também como prova o fato do
suplicante Custódio, como outros escravos, terem sido matriculados antes da
data em que começou a sofrer surtos piscóticos, "por si seus interesses como
atenta a matricula junta a estes autos, pela qual vê que na integridade de suas
faculdades, mantem ele o animo de conservar outros seus escravos na
permanência de seu dominio."190 E somou o fato de ter sido Custódio quem
abandonou seu senhor e não o contrário.
Custódio não se deu por vencido e, através do curador Baltazar, apelou
da sentença junto ao juiz de direito, Avelino Lima. Baltazar apresentou novas
185 Ibidem. 186 Idem. Testemunha, Mathias Lopes de 50 anos, agricultor. 187 O artigo diz: "considera-se abandonado cujo senhor residindo no lugar e sendo conhecido não o mantem em subjeição e não manifesta querer mante-lo sob sua autoridade". Ver: Coleção de Leis do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1872. 188 Arquivo Público do Estado do Ceará. Ação de Liberdade, Número 21, pacote 48. 189 Ibidem. 190 Ibidem.
98
provas no processo que buscaram alegar a sanidade do réu, para isso pediu ao
magistrado que citasse mais quatro testemunhas:
Excelentíssimo senhor juiz de direito: o escravo custodio de Manuel Antônio da Silva acompanhando a apellação ex-officio que o juiz doutor municipal do termo de Pacatuba interpoz da sentença que julgou não abandonado pelo seu senhor [...] verá vossa excelência o depoimento das 4 testemunhas testes e contestes, proprietários, negociantes, homens de probidade que afirmam de ciencia e comercio compridamento, que o senhor do apelado não sofre de loucura, não passa porem de um anacoreta ressalvando bem seus negocios comprando e vendendo nessa villa e acrescenta ainda o tenente Antero da Costa Albano que elle é bem razoável em suas convenções191
Disse mais:
tratando-se de loucura não se encontra nos autos um só acto desses praticados por elle, não joga, não embreaga, e ao contrario vive se concentrando em sua casa, vivendo de seu trabalho agricola, sem encomodar a pessoa alguma, tratando bem seus vizinhos tudo isso se evidencia da justificação junta por documento192.
Julgou o juiz:
Considerando que desde1871 o escravo mora fora da casa do reo mas que este nunca manifestou intenção de não querer mais conservar em sujeição.
Considerando que a intenção não se pode presumir pelo simples facto de morar o auctor fora da casa do reo e ao contrario dos autos consta que depois de Ter o auctor ausentado-se da casa do reo este o fez matricula como os outros seus escravos.
Considerando o estado mental do reo que claramente se manifesta a mais de seis anos pode-se presumir que quando o auctor abandonou já elle tivesse a inteligencia de tal sorte enfraquecida que não podesse mais zelar pelos seus bens
Por tudo isso julgo o auctor carecedor de direito na presente ação e como tal sujeito ao dominio do reo"193 Custódio ainda apelou para a última instância do Tribunal de Relação de
Fortaleza, no dia 15 de outubro de 1879, mas os desembargadores Joaquim
Tiburcio Ferreira Gomes e Antônio de Souza Mendes fizeram os autos
conclusos e, no dia 04 de novembro de 1879, deram ganho de causa ao
senhor Manuel Antônio da Costa e Silva.
Apesar da história não ter tido um final feliz para Custódio, através dela
podemos refletir sobre algumas questões relativas às relações estabelecidas
entre senhor e escravo na sociedade escravista. Os escravos contestaram o
domínio senhorial ao qual não pretendiam mais se sujeitar, buscando para isso
amparo na legislação e no argumento da ilegalidade da "propriedade servil"
caminhos viáveis para alcançar a liberdade. Defendiam a ilegitimidade de sua
191 Ibidem. 192 Ibidem. 193 Ibidem.
99
condição servil tendo como fundamento a noção de ilegalidade constituída nos
domínios mais altos da legislação do século XIX, usufruindo dos avanços de
intensos debates ocorridos ao nível dos conselheiros e deputados do império,
nível este, que era sem dúvida influenciado constantemente pelos usos que o
dia a dia imprimia às leis, criando novas interpretações, enfim, jogando com
seus sentidos em busca de soluções adequadas aos anseios de liberdade.
2.2.7 – Antônio Joaquim
No dia 09 de outubro de 1879 o escravo Antônio Joaquim, através de
seu curador Luis Francisco de Miranda, entrou com uma Ação de Liberdade
contra seu senhor, Joaquim da Cunha Freire, o barão de Ibiapaba, alegando
que:
tendo o seu senhor o abandonado por invalidez desde o mez de janeiro do ano passado o expulsando de sua caza, e que durante aquella data que já hoje fazem um ano e nove mezes, não o tratou em sua molestia, não o manteve em cativeiro, nem manifestou o Ter em sujeição pelo contrario o deixou sempre viver fora da caza senhorial, vivendo de seus recursos e nem sequer o defendeu em seus crimes"194
O advogado de defesa Justino Francisco Xavier, representante dos
interesses do Barão apresentou outra versão para os fatos:
"[...] que tendo elles (a firma joaquim da Cunha Freire e Irmão), comprado o escravo Antônio, pardo, 29 annos, em 09 de janeiro de 1877, - contratando com seu senhor Manuel Ferrreira de Lima, representado por seu curador – João Guilherme da Silva, de quem recebeu matricula e passaporte juntos. – pagarão effectivamente o preço ajustado de 900 reis [...]"
E, que sendo o referido escravo remetido para o Rio de Janeiro a fim de
ser vendido, não o pode por alegar ser doente de beribéri regressando a
Fortaleza no dia seguinte, chegando a cidade no dia 20 de maio do referido
ano, e que "continuando a fingir-se doente de beribéri foi constantemente
tratado pelo médico da casa do Reo" até o mês de setembro de 1878,
momento "em que elle o escravo, fugio – surpreendendo a todos a Ter elle
podido andar". O réu procurou-o por todos os lugares, mas são foi possível
encontrá-lo "portanto, é falsa a allegação deter sido elle, apelante, abandonado
194 Arquivo Público do Estado do Ceará. Ação de Liberdade, n 1761, pacote 32.
100
e expulso da sua caza, em janeiro de 1878". Com relação aos crimes, Justino,
salientou que o Barão não tinha conhecimento desses, não foi procurado pelo
escravo para defendê-lo e que durante todo esse tempo o mesmo procurou "a
proteção dos parentes de seu antigo senhor, os quais, não o bastante serem
moradores em outro termo e muito distante desta capital onde melhor se deve
saber do facto alludido em sua petição".
Em fevereiro de 1881 foi dado o veredicto final, com ganho de causa
para Joaquim da Cunha Freire.
2.2.8 – Macária
Numa Ação de Liberdade movida pela libertanda Macária através de seu
curador, o advogado Justino Francisco Xavier, contra os indivíduos Joaquim
Soares Carneiro, Antônio Carneiro Soares e Alexandre José Soares,
encontramos elementos que nos possibilitaram enxergar variadas táticas do
escravo lutando para atingir sua liberdade.
Macária, escrava de José Carneiro da Costa e de sua esposa D. Anna
Theodora de Meneses, através de seu curador e depositário, Justino Francisco
Xavier, contestou judicialmente sua escravização, alegando que:
[...] sendo escrava do sobredito José Carneiro da Costa e de sua mulher Anna Theodora de Meneses, moradores da villa de Santa Anna, elles lhe prometteram verbalmente alforria logo que lhes desse oito crias.
2o Que aceita esta promessa, teve a mesma escrava nove filhos ou crias. 3o Que não obstante o direito a liberdade, adquirido por aquelle facto, - ou
virtude da promessa feita -, succedeu que a preta forra de nome Isabel, mãe da curada do suplicante, dera aos senhores desta diversas quantias no intuito de a libertar; e o próprio suplicado Joaquim Soares Carneiro recebeu a quantia de 200 reis, que lhe coube em partilha no valor da mesma preta Macária, de cujo pagamentos não exigiu recibo de boa fé."195
A promessa feita por D. Anna Theodora de Meneses não fora cumprida.
A pedido do advogado de defesa dos acusados, Manuel Ambrosio da Silveira,
foi acrescida aos autos a revisão do inventário realizada pelo tabelião e
escrivão Domingos Marques, a qual não constou o item dando direito de
195 Arquivo Público do Estado do Ceará, pacote 71, número 135, Ação de Liberdade de 1875. Fala de Justino Francisco Xavier, curador da escrava Macária, pronunciada no dia 10 de novembro de 1873.
101
liberdade a Macária, mas sim a permissão dada aos filhos herdeiros de Anna
Theodora de a partilharem.196
É importante na história de Macária atentarmos para o fato de termos
uma escrava lutando por sua liberdade com o argumento de que era vontade
de sua senhora que ela ficasse livre depois de sua morte. É difícil se não
impossível sabermos se as alegações de Macária eram verdadeiras,
entretanto, a questão não reside aí, pois a leitura de cartas de alforrias e
inventários do século XIX nos mostram que era mais ou menos comum,
senhores determinarem que depois de sua morte um ou mais escravos
ficassem livres. A consciência desse tipo de freqüência, da alforria
testamentada, interessa como manifestação cabal das capacidades dos
escravos de assimilarem do mundo dos brancos suas práticas, fazendo um uso
inteligente dessas informações, visando ao jogo que poderia lhes garantir uma
vitória, a vitória, cuja conquista representava a liberdade tão almejada.
Fazendo uma análise rápida de 30 cartas de alforria da província do
Ceará, a partir da segunda metade do século XIX, especificamente, entre 1860
e 1870, constatamos que 13 delas determinavam a alforria dos escravos
depois de falecidos seus senhores.
A História de Macária descreve práticas e experiências pelas quais
muitos escravos devem ter passado – a morte de seus senhores representava
um momento de incerteza entre a alforria e a possibilidade de ser comprado ou
vendido, ser remetido para outra província, donde fatalmente teriam que se
submeter a outro modo, fosse ele rural ou urbano. Certamente era o início de
um período de desconfianças. Existia a ameaça de serem afastados de seu
cotidiano, hábitos, costumes e amizades, como também o temor de serem
surpreendidos por senhores perversos com manias e caprichos desconhecidos.
Devemos atentar para o fato de que a relação com o antigo senhor imbricou
numa série de conquistas para Macária. Às custas de muito esforço e conflito,
196 Idem. Revisão do inventário feita por Domingos Marques "[...]pagamento ao orphão Joaquim de sua legítima materna da quantia de seiscentos quatorze mil oitocentos e cinco reis a margem [...] a Terça parte do valor da escrava Macária, crioula de idade de trinta e um anos que foi avaliada em setecentos e cinqüenta mil reis [...] pagamento ao órphão Antônio de sua legítima materna da quantia de seiscentos quatorze mil oitocentos e cinqüenta rei Alexandre de sua legítima materna da quantia de seiscentos quatorze mil oitocentos cinco reis que vai a margem, mais a Terça parte da escrava Macária [...]."
102
indubitavelmente, ela se preocupou em garantir alguns direitos conseguidos
com os anos de convivência ao lado de dona Anna, sendo um deles a sua
liberdade.
Os processos cíveis referentes à luta jurídica pela liberdade nos
apresentam questões que merecem uma análise mais acurada. O processo
jamais pode ser visto homogeneamente, mas sim enquanto um campo de
conflitos onde vários interesses estão em jogo, principalmente, os anseios
sociais e políticos de duas classes antagônicas que combatem por interesses
tão díspares.
Tal ação nos possibilitou visualizar os múltiplos estados de tensões que
envolviam os sujeitos da contenda – senhor e escravo. O processo não nos
permitiu saber quem estava falando a verdade. Mas repetimos, a questão não
reside na veracidade das alegações. Fossem verídicas ou não as afirmações
feitas por Macária, podemos constatar que os argumentos pretendiam alcançar
um objetivo almejado, a liberdade. É importante notarmos as sutilezas que
envolviam tais processos. Eles trazem, como afirma Papali, "ricos testemunhos
sobre o parecer da época em torno da lógica da construção de uma liberdade
constantemente confrontada com as premissas do direito à propriedade
privada."197 Tais ações envolviam complicadas nuanças que se moviam em
direção aos direitos do homem em busca da liberdade.
Nos autos ainda constou que Macária possuía uma certa liberdade de
ação, pois além de ser escrava de aluguel, depois da morte de D. Anna
Theodora de Meneses passou a morar numa casa distinta da dos seus
senhores. Enquanto esses moravam em uma fazenda chamada Sapió, Macária
vivia numa casa nas imediações da mesma vila, chamada de Santa Anna, de
propriedade de José Carneiro da Costa Júnior. Conforme afirma uma
testemunha: "sempre Macária morou nessa villa na caza de seu senhor, porem
morando seu senhor na fazenda sapió e tendo nesta villa uma outra morada de
caza, Macária occupara esta caza, sendo isso depois que sua senhora Anna
Theodora de Menezes falleceu."198
197 PAPALI, Maria Aparecida. Op. cit., p. 66. 198 Arquivo Público do Estado do Ceará, pacote 71, número 135, Ação de Liberdade de 1875.
103
Nesse sentido podemos considerar que Macária, morando sozinha, tinha
uma relativa liberdade de movimentação, que lhe permita, desse modo,
desfrutar algumas experiências distantes do controle de seus senhores. Sendo
assim, cogitamos que Macária vivendo só, em parte independente de seus
senhores, e, possivelmente suprindo suas necessidades com alimentação e
vestuário, visualizou sua independência decidindo confrontar o que ainda a
impedia de fato vivenciar essa independência integralmente: o aluguel que
tinha de pagar todo mês a seus senhores. Contava nos autos "que esse
aluguel a que ella Macária se prestara era sob sua responsabilidade, a quatro
mil reis por mez; isto é tinha Macária por obrigação de dar a seus senhores
quatro mil reis mensais por aluguel."199
Todas as testemunhas presentes nos autos disseram que Macária
morava só havia algum tempo e se sustentava sem o auxílio de seus senhores,
como também "que sabe por ouvir da própria autora que seus referidos
senhores haviam prometido a alforria se ela desse oito crias." Macária se
encarregou de divulgar em toda a villa a promessa feita por D. Anna Theodora
de Meneses. Possivelmente, Macária estava ciente do proveito desse relato
nas bocas de testemunhas num futuro processo de liberdade.
Podemos observar no processo que todos que testemunharam em favor
de Macária tiveram como amparo de suas elocubrações o fato da escrava viver
como se "forra fosse" ou habitar e se sustentar sem o auxílio de seus senhores.
Como afirma Papali: "questões pautadas em observações retiradas do
cotidiano do libertando, de suas vivências diárias."200 Em todos os depoimentos
verificamos que as testemunhas buscaram deixar evidente que Macária se
sustentava por seus próprios serviços, pagando apenas um aluguel a seus
senhores. Ou seja, Macária na prática vivia quase como se livre fosse, sendo
esse um dos principais argumentos que sustentava sua contenda.
Podemos pensar que para Macária, a liberdade era muito mais do que
apenas um conceito abstrato presente no direito. Ser livre para Macária
representava ter autonomia de trabalhar para si, eximir-se do amparo de seus
199 Ibidem. 200 PAPALI, Maria Aparecida. Op. cit., p. 68.
104
senhores, escolher sua própria direção, permitir-se trabalhar para quem quiser
e com que quiser. Ou seja, ser livre para Macária era muito mais do que o jogo
retórico dos tribunais dava a entrever nos fógos-fátuos da diáletica
empreendida pelos interlocutores da lei, era viver e sentir a vida como bem
desejasse, como melhor lhe parecesse, era a possibilidade de alcançar a
dignidade, mesmo aquela que diz respeito aos modos mais simples de viver.
Tanto é assim, que as testemunhas classificadas para depor em favor da
escrava faziam questão de enfatizar a parcial autonomia de Macária nas suas
realizações cotidianas, sua independência em algumas situações. As
testemunhas sempre se remetiam à condição de Macária como se forra fosse.
Uma dessas testemunhas, Sra. Tereza Maria de Jesus, lavadeira, solteira de
cinqüenta anos de idade, quando perguntada sobre a condição de Macária,
respondeu o seguinte: "[...] disse mais que Macária morava em outra caza qual
não era de seus senhores por consentimento de seus senhores e trabalhando
como uma mulher forra."201
A testemunha aludida, talvez, imperceptivelmente, refutou uma das
premissas básicas nas quais se sustentavam a escravidão e a submissão.202
Mesmo se remetendo à anuência dos senhores de Macária para que ela
morasse só, a mesma trabalhava "como uma mulher forra", ou seja, se auto
geria, sem dar conta do olhar de sentinela dos senhores. Macária, depois da
morte de D. Anna Theodora de Meneses passou a viver de modo diferente,
principalmente nas questões relativas à vida cotidiana e ao trabalho. Sendo
assim, ciente da sua condição de semi-liberta, buscou através dos meios
jurídicos negar o princípio de submissão, última ligação que a mantinha sujeita
à escravidão.
É possível perceber nos depoimentos das testemunhas a existência de
uma relação de subordinação menos rígida de Macária com seus senhores,
como também, está tacitamente aludida a importância dada ao modo de vida
da escrava, evidenciando que as práticas e experiências no cotidiano e no
201 Arquivo Público do Estado do Ceará, pacote 71, número 135, Ação de Liberdade, 1875. 202 PAPALI, Maria Aparecida. Op. cit., p. 69. Segundo Papali a escravidão se sustentava na sociedade brasileira através de três premissas básicas, hereditariedade, obediência e submissão.
105
mundo do trabalho tinham tanto valor enquanto evidência quanto qualquer
outro documento escrito remetendo à condição de cativa de Macária.
O depósito203 do cativo enquanto procedimento legal do judiciário para
iniciar-se uma Ação de Liberdade pode ser considerado um fator responsável
pela sujeição do escravo à condição de coisa. O termo depósito subentende
local a ser depositada alguma coisa ou mercadoria, uma espécie de armazém.
Sendo praxe que o escravo, depois de depositado, recebia um tutor para
defender seus interesses. No caso de Macária o depositário e o curador foram
os mesmos, Justino Francisco Xavier, mas não necessariamente tal conjunção
ocorria constantemente, na maioria das vezes as atribuições de depositário e
curador eram destinadas a pessoas distintas.
Presumivelmente, o fato de ser vendida como se fosse mercadoria ou
posta "em depósito" tinha para Macária a mesma conotação, como também o
fato de ter de se submeter à sujeição servil a seus supostos senhores. Tais
questões talvez tivessem a mesma importância para muitos escravos da
época. Devia ser bem constrangedor para Macária ter de remunerar seus
senhores com seu trabalho. Possivelmente tornava menor sua existência, ou
pelo menos, em termos materiais, diminuía-lhe as capacidades de
movimentação. Mesmo não estando sob o controle excessivo de seus
senhores, nos moldes feitorizados ou sob rígida disciplina, sentir-se presa a
alguém ou a algumas pessoas subtraía de Macária essenciais referências de
dignidade.
Se deixarmos de lado todas as contendas jurídicas arroladas na Ação de
Liberdade da escrava Macária, se desconsiderarmos os depoimentos
favoráveis ou não a sua liberdade e fizermos somente uma leitura desse
documento relativa aos indícios de sua vida, teremos uma mulher realizando
vários trabalhos como os de lavadeira, arrumadeira, cozinheira, em troca de um
salário cuja parte era destinada a outros. Veremos ainda uma pessoa vivendo
numa zona rural da vila de Santa Anna, comarca do Acaraú, província do 203 Segundo Sidney Chalhoub o depósito poderia ser público ou particular e tinha como finalidade garantir a segurança dos "libertandos" e afastá-los de possíveis represálias e retaliações que pudessem sofrer de seus senhores. Idem: Visões da Liberdade. Op. cit., p. 108. E ainda, MENDOÇA, Joseli Maria Nunes. Op. cit., pág, 108. A autora como Sidney Chalhoub afirma que os depósitos "tinham um claro sentido de promover a proteção de um escravo que pretendia ser livre".
106
Ceará, possivelmente tendo algum relacionamento amoroso na região, mais ou
menos satisfeita com sua parcial autonomia, uma mulher pobre, mas sem
dúvida em uma posição digna, com uma extensa rede de amizades, e sempre
transitando entre os bairros e vilas da comarca.
Se caso contrário, preferirmos olhar Macária como uma escrava,
encontraremos uma cativa que trabalha para outras pessoas em troca de um
determinado valor, que será destinado a seus senhores. Devido a sua
condição, encontraremos, sem dúvida, uma boa ladina, astuta, perspicaz e
ardilosa no trato com o mundo do trabalho e no modo de levar a vida. Aqui
também descobriremos uma escrava com um amplo e diversificado ciclo de
amizades, uma escrava com muito trânsito entre os moradores da região,
comprometida com a constituição de uma vida mais apropriada, de uma maior
proximidade com a condição de liberta.
De qualquer forma avessos ou não a causa de Macária, encontraremos
uma escrava descontente com sua situação, insubordinada em alguns
momentos, loquaz, com muita astúcia, que não se acomodou e não aceitou
viver sob a dependência de outras pessoas, tentando fazer valer seus anseios.
Ao utilizar como argumentos na defesa de sua liberdade a promessa
feita por D.Anna Theodoro Menezes, como também, o fato de morar a algum
tempo só e arcar inteiramente com seu sustento, Macária, como afirma Papali
"ultrapassa o limite dos ‘tratos de trabalho’ sendo estabelecidos com um
senhor, sob um determinado cativeiro".204 Buscava fazer valer outros preceitos
ancorados em outras condições que não aquelas de tempos mais antigos,
tempos em que vivia sob o domínio de outros senhores.
*
As histórias de Antônio Joaquim, Theodora, Eufrásia, Custódio, Macária
e os demais escravos encontrados nos processos cíveis, revelam-nos uma
relação de dominação e exploração que, de modo contraditório, unia e
separava homens e mulheres, senhores e escravos, através de práticas e
experiências cotidianas, costumes, lutas, resistências, acomodações,
107
solidariedades, modos de viver, agir, pensar, que construíram o que
entendemos por sistema escravista.
Sendo assim, nesse capítulo buscamos privilegiar as relações
estabelecias entre senhores e escravos. Entende-se que os senhores até
podiam considerar os escravos enquanto indivíduos destituídos de vontade
própria, incapazes de atitudes políticas, que deveriam se comportar conforme a
deliberação de seus proprietários, entretanto, eram homens e mulheres que
mesmo comprados para serem dominados e expropriados, impunham limites
às decisões senhoriais. Possuíam projetos e concepções próprias pelos quais
lutavam, chegando às vezes a conquistar pequenas e grandes vitórias, as
quais os senhores nem sempre entendiam enquanto tais, mas apenas como
favores e concessões paternais. No entanto os escravos as traduziam como
conquistas, conseguidas a custa de muito sofrimento e que de alguma forma
deveriam ser mantidas como direitos.
204 PAPALI, Maria Aparecida. Op. cit., p. 74.
108
CAPÍTULO 3
SER NEGRO NA LITERATURA
Que brados, tão lamentosos Echoam n’este Brazil? - São de filhos desgraçados que soffrem tormentos mil -São homens escravos feitos [...] Lei absurda, cruel, Contraria em tudo a rasão, Um homem de outro escravo! Oh! É terrível baldão! Mas qual a causa, o motivo De haver senhor e captivo Quando iguaes deviam ser? Entre todos os humanos Só d’uns sobre outros notamos A nobreza do saber. 205
Temos como intenção nesse capítulo demonstra mais uma das muitas
facetas presentes no movimento abolicionista deflagrado na província do
Ceará. A literatura se constituiu um meio profícuo para muitos autores
expressarem seu descontentamento com o sistema escravista. A prosa, o
verso e a narrativa foram utilizados por muitos abolicionistas como um
importante instrumento de combate. Lamentamos muito não termos encontrado
nenhum tipo de material escrito por escravos ou libertos. Os textos que
pesquisamos foram produzidos por aqueles que, de um jeito ou de outro, foram
contra o sistema escravista; ou atacavam o sistema sem incluir o escravo, ou
consideravam as experiências e vivências dos cativos .
3.1 – LIBERTADOR: LITTERATURA
Inicialmente, tentando entender o significado da palavra literatura, nos
deparamos com sua denominação vulgar: "arte de compor obras literárias (em
prosa ou verso); conjunto das obras literárias de um país ou de uma época; os
homens de letras; bibliografia."206 Sendo assim, procuramos nos aprofundar um
205 Libertador, 07 de fevereiro de 1881, p. 08. 206 Moderno Dicionário Enciclopédico Brasileiro. 12a edição, Paraná, 1985.
110
pouco mais sobre o assunto. Encontramos na obra, Marxismo e Literatura, do
intelectual britânico Raymond Williams, uma boa discussão sobre a questão.207
O conceito de literatura está inserido dentro de um processo histórico,
onde a descoberta de novos meios, novas formas e novas definições de uma
consciência prática em transformação contribuem imensamente para a
evolução do termo.
Na contemporaneidade estudos reconhecem a literatura enquanto uma
categoria social e histórica especializada, "exatamente por ser histórica, um
conceito-chave de uma importante fase de uma cultura, constitui evidência
decisiva de uma forma particular de desenvolvimento social da linguagem"208
Entendemos que a literatura se constitui enquanto parte do social e não
apenas reflexo, sendo possível nesse sentido de revelar determinados
elementos que compõem a sociedade. A literatura tem um papel essencial na
composição e expressão de sentimentos e ideais que permeiam o político e o
social. Concordamos com a historiadora Ivone Cordeiro quando escreveu:
Apesar da sua dimensão material – produção discursiva escrita, a literatura, pela sua própria natureza, produz uma dimensão imaterial – desperta sensibilidades estéticas, sentimentos de amor, prazer, angústia etc., construindo uma sensibilidade que se mobiliza na produção de imagens que se incorporam socialmente como práticas e representações, constituindo-se, assim, numa dimensão necessária da experiência social passível de ser apreendida na sua temporalidade.209
207 Para Williams a palavra literatura começou a ser usada na Inglaterra a partir do século XIV. O termo tem sua raiz no latim, littera, que significa uma letra do alfabeto. Nessa época a literatura era entendida como sendo, apenas, uma situação de leitura, "ser capaz de ler e de ter lido. No século XVII adquiriu o sentido de capacidade e experiência de leitura, ‘literary’. Cem anos depois, no século XVIII, adquiriu o significado próximo à alfabetização e estado de alfabetizado, denominação sedimentada na linguagem inglesa a partir do século XIX, cujo termo será ‘literacy’.” Ainda no século XVII a palavra "literature" foi compreendida como composição métrica escrita e impressa, sendo utilizada enquanto categoria empregada nas áreas de retórica e gramática: "literature era uma categoria de uso e uma condição mais do que de produção". Até o século XVIII o termo "literature" foi entendido também enquanto um conceito social que expressou um certo nível de realização educacional, "uma definição alternativa potencial, e que se acabou realizando, de literature como ‘livros impressos’: os objetos os quais, e através dos quais essa realização se demonstrava". A palavra perdeu o sentido mais antigo de prática e experiência de leitura e se tornou uma categoria de obras impressas. A partir, principalmente dos séculos XVIII e XIX três tendências passaram a prevalecer na definição do termo literatura, "primeira, uma passagem do "conhecimento" para "gosto" ou "sensibilidade" como critério para a definição da qualidade literária; segunda, uma crescente especialização da literatura como obras "criativas", ou de "imaginação"; terceira, um desenvolvimento do conceito de "tradição", em termos nacionais, resultando na definição mais eficiente de "uma literatura nacional". Tendências, que se consumaram totalmente no século XX, foram responsáveis por ampliar o significado da palavra literatura. Adquirindo o termo uma ressonância nova, uma "ressonância especializada". Ver: WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro, Zahar, 1979. p. 51-52. 208 Ibidem. p. 58. 209 BARBOSA, Ivone Cordeiro. Sertão: Um Lugar Incomum. O sertão do Ceará na literatura do século XIX. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. p. 22.
111
A partir das primeiras décadas do século XIX, a representação210 da
condição do africano e do afro-descendente no Brasil ocupou maior espaço na
literatura nacional. Estimulada, sem dúvida, pelo sentimento antiescravista que
começou a ganhar maior proporção nessa época, jornais e revistas foram os
principais veículos divulgadores desse trabalho.
A imprensa foi um importante instrumento de propaganda das
sociedades libertadoras. O Libertador teve um papel significativo na formação
da opinião pública. Contribuiu, através de suas seis colunas, para tornar notório
o pensamento de seus membros. A coluna Litteratura permitiu aos
abolicionistas expressarem por meio de versos seus anseios e sentimentos.
Entretanto, poucos eram os poemas presentes na coluna que falam da família,
dos valores e dos sentimentos dos escravos.
Na edição de 17 de março de 1881 foi publicada uma poesia do senhor
Mello Moraes Filho intitulada A família. Uma das raras poesias publicadas no
Libertador que fez alusão ao escravo enquanto homem que sente e age como
tal.
A Academia Francesa foi a primeira agremiação literária que surgiu no
Ceará, isso se deu em 1872, foi instalada na cidade de Fortaleza. Seus sócios
fundadores foram: Rocha Lima, Capistrano de Abreu, João Lopes, Tomaz
Pompeu de Souza Brasil e Xilderico de Farias. Seu caráter mais do que literário
foi filosófico. Nos encontros realizados periodicamente os sócios liam e
debatiam, principalmente, pensadores europeus, dentre eles, Augusto Comte,
Spencer, Taine e outros. Essas leituras foram trazidas das faculdades donde
realizaram seus estudos.
Logo em seguida surgiu o Gabinete Cearense de Leitura, fundado em
02 de dezembro de 1875, em Fortaleza. Seus fundadores foram: Antônio
Domingues, João da Rocha Moreira, Fausto Domingues, Joaquim Álvaro
Garcia, Francisco Perdigão e Antônio Domingues dos Santos, posteriormente
outros se juntaram ao grupo. Como a Academia Francesa, também tinha 210 No século XX alguns críticos, dentre eles Michel Foulcault, entenderam que a linguagem literária tinha por função nomear, isto é, suscitar uma representação, indicá-la e não julgá-la, a natureza dessa
112
caráter literário e filosófico, seus membros acreditavam que o conhecimento
advindo das letras em formas de idéias e teorias seria capaz de renovar a
sociedade e lançar a coletividade nos rumos do progresso e da civilização.
Utilizavam-se nesse sentido do discurso científico como legitimador de um
saber sobre a dinâmica da sociedade, impregnando e remontando a estrutura
dominante de modo que novas relações de aceitação e novos exercícios de
poder se estabelecessem. Também se empenharam em combater as
estruturas de valores mais conservadores do poder tradicional. Utilizaram o
discurso científico como elemento renovador da sociedade, buscaram romper
com o passado “atrasado” e caminhar rumo ao progresso.
Essas duas agremiações foram marcadas indubitavelmente por um
legado de teorias eurocêntricas. A realidade vivenciada política, econômica e
socialmente pelos países da Europa, em parte, foi responsável por conduzir as
experiências sociais e posturas políticas dos sócios dessas academias.
Os membros dessas duas agremiações entendiam que não somente,
mas principalmente a cultura letrada seria capaz de transformar a sociedade
cearense, de modo que o caos social e a desordem política que estava
instalada na província fosse substituída por uma nova ordem. Esses ideais
encontraram profícua acolhida nas práticas e experiências vivenciadas pelos
membros da Sociedade Cearense Libertadora.
Os letrados da Sociedade Cearense Libertadora, que escreveram na
coluna Litteratura, buscavam nos seus discursos legitimar-se política e
economicamente através da ciência. As leituras cientificistas e evolucionistas
que impulsionaram suas paixões legitimariam suas práticas sociais. A escrita
desses letrados referendava-se nos conceitos que apreciavam a realidade
política, social e econômica da Europa. Acreditavam que os fluxos de idéias
que conduziram a dinâmica daquele continente, contribuiriam, em parte, para a
melhoria da realidade brasileira. O instrumento letrado foi para os membros da
Sociedade Libertadora um importante meio de alcance dos seus ideais
linguagem tem uma relação com as coisas totalmente diferente da forma proposicional.Ver, especielmente, FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. Lisboa: Portugália, 1967.
113
civilizatórios, utilizando-os nas suas atuações políticas em favor de uma nova
ordem.
3.2 – A FAMÍLIA
Partes, Josepha? – Não parto. Não partes, Josepha?! – Não! Que sortes terás? Tu sabes? A sorte da escravidão. Tu vais deixar-me? Tu deixas-me Não sou casada contigo? Oh triste escrava! Meus filhos? Aves do ceu sem abrigo Hontem à tarde abraçava-te Sonhando um sonho fingido, Hoje, Josepha – a desgraça! Hoje, Josepha – vendido! Nossa senhora, vendido! Tu zombas, dize, não é? Ai pobre escrava! Aos escravos Negou Jesus Christo a fé? Amo-te muito. Os rigores Si os supportei, foi por ti; Não vêr-te, é estar morto n'alma Perdoa, esquece, eu menti. Mentiste, sim. A manhã, O que serei, mal fadada, Quando teus filhos disserem, Não vendo mais tua enxada: <Onde meu pai? Foi-se embora?> O que lhes responderei?... Chorava a escrava, choravam ... Responde, <– Filhos não sei!>211
Nessa poesia Mello Morais Filho denunciou a aflição por que passou
uma família212 escrava ao perder um de seus entes. Josepha foi mais uma das
211 Libertador, 17 de março de 1881, Número 06, p. 08. 212 Pesquisas recentes vêm demonstrando que ao contrário do que afirmaram alguns pesquisadores –dentre eles Gilberto Freire, Emilia Viotti da Costa e Florestan Fernandes –, a existência da família escrava não foi tão atípica assim. Segundo Robert Slenes, "na verdade as uniões sexuais de ‘longa duração’ – não evidente, as de 40 anos, que seriam relativamente raras em qualquer sociedade com altos índices de mortalidade, mas , digamos, as de 10 anos ou mais – eram bastante comum entre os escravos". Ver: SLENES. Robert. Lares Negros, Olhares Brancos: Histórias da Família Escrava no Século XIX. Revista Brasileira de História, número 16, ANPUH, Ed Marco Zero, São Paulo, 1988.
114
muitas esposas que viu seu marido ser vendido para trabalhar nas plantações
de café das províncias do sul do Império.
A Lei do Ventre Livre não remediou a prática de senhores venderem
escravos separado-os de seus cônjuges. A poesia de Morais Filho tem o intuito
de denunciar tal atitude. A lei do ventre livre é de 1871, a poesia foi escrita em
1881, ou seja, dez anos depois da proibição de separar escravos casados.
Provavelmente Mello Morais, estando ciente de tal prática continuar
acontecendo na província do Ceará, decidiu denunciá-la através da poesia.
Morais na mesma edição do dia 17 de março de 1881 mais uma vez
denunciou o opróbrio vivenciado por uma família escrava. A poesia falou de
uma escrava que foi vendida pelo seu antigo proprietário, juntamente com seus
dois filhos a uma nova senhora que decidiu alforriar a escrava, mas não os
filhos. Os filhos seriam postos em liberdade somente depois que os netos da
senhora morresse. Enquanto isso não se realizou, a escrava mendigou fundos
para alforriar os filhos.
Elle vendera a escrava e mais as duas crias; Uma, depois da lei, só tinha quinze dias, Estátua do infortunio, a dor mais cruciante Que a miseria levara ao seio agonisante, Foi um supplicio e atroz: o derradeiro adeus D'm grito de blasphemia, um desafio ao céo! Trez longos annos, sim! De pranto e de martyrios Ella os curtira inteiro: - ella com seus delirios! Fui mãe, eis o meu crime: a condição o quer, Não é serviço à escrava o ser também mulher?!. Assim pensava a triste. O duro captiveiro Lhe consumira o corpo. Esforço derradeiro A subscripção lhe fora: - a graça (ilegível) Da bárbara senhora que n'isso fez-se humana << Aqui tens teu papel; o preço está marcado, não p'ra ti, p'ras crianças ... eu tenho destinado que ficas forra. Espera, espera o teu momento, por morte dos meus netos ... já fiz meu testamento. E quando ella sahira, horrenda de mau trato, Uma criança ao collo, outra sustendo, (ilegível) Aonde a compaixão errante da cidade, Redime a escravidão aos pés da caridade. Ella encontrara elle que empalleceu de assombro,
115
E toma do mais velho, os dois erguendo ao hombro Com voz já quasi extincta e os olhos já sem brilho. << esmola, meu senhor, p'ra libertar meus filhos>>213
Acreditamos que Moraes teve como intenção comover os leitores,
utilizando para isso um vocabulário saturado de palavras lancinantes: "Estatua
do infortunio, a dor mais cruciante, que a miseria levara ao seio agonisante, foi
um supplicio atroz: o derradeiro adeus, d'um grito de blasphemia, um desafio
ao céu!".
Através dessas impressões o poeta conseguiu denunciar algumas
práticas ilícitas que vinham sendo realizadas por senhores na província do
Ceará. A venda de filhos de escravas que nasceram depois de promulgada a
lei do ventre livre foi uma delas, "Elle vendera a escrava e as duas crias; Uma,
depois da lei, só tinha quinze dias [...]."214 A outra, manter pessoa livre em
cativeiro, "<<aqui tens teu papel; o preço está marcado, não p'ra ti, p'ras
crianças [...] eu tenho destinado que ficas forra. Espera, espera o teu momento,
por morte dos meus netos ... já fiz meu testamento.>>".
Mas como já foi dito, grande parte das poesias publicadas na coluna
Litteratura do periódico Libertador foi muito mais no intuito de difundir o fim da
instituição, a extinção da escravidão. Da mesma forma visavam abrilhantar
aqueles que compunham a Libertadora, muito mais do que apregoar as
característica e qualidades que remetem ao ser escravo. Aquelas
características que iluminariam nos leitores um outro tipo de escravo, aquele
típico ser humano que pensa, sente e age como homem.
No primeiro número do jornal, editado em 1o de janeiro de 1881, o
abolicionista Antônio Bezerra escreveu uma poesia em homenagem à
fundação da Sociedade Cearense Libertadora:
Moços! Uma grande idéa Vos anima os corações, Quereis erguer no futuro
213 Libertador, 17 de março de 1881, Número 06, p. 08. 214 Ibidem.
116
O mais bello dos padrões! Sim, que vos sobra energia E tendes n'alma a magia Que gera as revoluções; Se a turba não vos entende, Dos moços é que depende O destino das nações. Sois poucos, mas resolutos Cheios de crença e valor, São nobres vossos esforços E nobre mais vosso amor: Amor a causa sublime Daquelles aquem opprime O estigma da escravidão A quem só coube por sorte Miséria e dor – té que morte Os livre a degradação Avante, pois, que este seculo É o seculo de grande acção, Repugna a luz do progresso A ideá de escravidão; Bem firme no vosso posto Oh! Nunca volteis o rosto Aos inimigos da luz, Si vos é dura a provança Tende no ceu confiança Que a gloria ao fim vos conduz A pátria de tantas glorias Que viu-nos livre nascer, Embora lhe embarquem a marcha Não pode escravos conter; É tempo que a liberdade Aos brados da mocidade Erga os brios da nação Que igualados os direitos Batidos os preconceitos Seja o escravo um cidadão Eia, moços, attonita Vos contempla a multidão, Vinde aqui lançar as bases Da mais santa instituição; Cheios de nobre coragem Deixais na vossa passagem Um sulco immenso de luz, Luz que derrama victorias, Que illustra ainda mais as glorias Da terra da Santa Cruz. Seja-vos, pois, a constancia Companheira de labor, Não temam agres trabalhos Quem sabe lutar com ardor: Avante, que a vossa idéa Resume a grande epopeia Que há de um povo remir, Pois já com fé verdadeira
117
Gravaes em vossa bandeira Persevernaça e Porvir.215
Essa poesia foi uma espécie de missiva aos colegas abolicionistas e os
incitou a lutar contra a escravidão. É interessante observar que o termo
revolução apareceu na poesia sutilmente. Antônio Bezerra apenas o sugeriu. A
mocidade possui energia que "gera revoluções". Nessa primeira fase da
Libertadora ainda não estavam definidas as posturas que deveriam ser
tomadas em prol do fim da escravidão na província. Os membros estavam
divididos em emancipacionistas ativos e emancipacionistas passivos.216
Em outro momento, por ocasião de abertura de um congresso
abolicionista acontecido na cidade de Maranguape, em 26 de maio de 1881,
Antônio Bezerra recitou a seguinte poesia:
Chamae-nos? –eis-nos precipites Ao vosso apello de irmãos. Que a mesma idéa nos prende, Apertam-se as mesmas mãos! Trasemos com a mocidade Os cantos que a liberdade Dedica aos moços - heroes, Aquelles que mais que a vida Querem a patria engrandecida, A patria de seus avós. É nobre e grande e sublime A vossa resolução, Erguendo do opprobio o escravo Para fazel-o um irmão; Tentaes refundir de novo N'um mesmo e brioso povo
215 Libertador, 01 de janeiro de 1881, Número 01, p. 07–08. 216 Antônio Bezerra disse que quando os membros da diretoria da libertadora se reuniram no dia 30 de janeiro de 1881 para decidirem sobre quais estatutos seriam convenientes para a libertadora, houve grande desacordo entre os sócios, optando o presidente provisório João Cordeiro por criar apenas um artigo que seria: Um por Todos e Todos por Um; com um único parágrafo – A sociedade Libertará os Escravos Por Todos os Meios ao seu Alcance. João Cordeiro num artigo publicado na Revista do instituto do Ceará, vol.59, de 1945 disse, por sua vez, que depois de organizada uma comissão para pensar sobre os estatutos da libertadora, marcou-se um dia para discuti-los, nesse dia houve tumulto entre os sócios e o próprio João Cordeiro. Para encerrar tal discussão, Cordeiro falou: "O projeto de estatutos que acaba de ser lido não convém. Nós queremos uma sociedade carbonária, sem ligações com o governo, que ocupe-se revolucionariamente da libertação dos escravos por todos os meios ao alcance dos nossos recursos pecuniários, da nossa inteligência e da nossa energia. Os estatutos que nos convém devem ser simplesmente estes:- "art. 1o - Libertar escravos, seja por que meio for. Art. 2o – todos por um e um por todos". Isac do Amaral afirmou que a fórmula dos revolucionários estatutos foi proposta por Antônio Bezerra. Ver: MENEZES, Antônio Bezerra de. O Ceará e os Cearenses. Fortaleza: Tipografia Minerva, 1906. GIRÃO, Raimundo. Op. cit.
118
Os restos d'Africa infeliz, E nesta nacção denodada Seguis a nobre crusada Que o nosso seculo bemdiz. Sois moço, tende no craneo A chamma da intrepidez, Que apura os vossos esforços Na lucta com a insensatez! Embalde!.. não pode a inveja Deter a luz que dardeja No futuro do Brazil, Vence a ideá ao despotismo, Na treva tomba o egoismo, Surge a patria mais gentil. É tempo! Os povos caminham Pras plagas da perfeição, Da vida os rudes problemas Tiveram já solução: E vós no florir dos annos Com o sangue de americanos Deixae-vos aquem ficar? Não – mocidade, - á victoria! É vosso trabalho a gloria! Vosso destino é marchar. Avante! Não nos medronte A distancia da viagem, Quando a fé dirige o impulso Sobeja n'alma a coragem; Avante ! por toda parte Tremule o vosso estandarte Symbolo de amor e de paz! – Onde á sombra a escravatura, Visando ambição mais pura, Não córe de opprobio mais!
Essa poesia foi publicada no décimo número do Libertador, em 07 de
junho de 1881. Nela Antônio Bezerra estimulou os colegas libertadores à
"nobre cruzada" contra a escravidão. Os incitou a lutar pelo “bom futuro da
nação”. Na sua ótica, futuro indicava progresso. O progresso só seria possível
com o fim da escravidão.
Depois da reunião de 30 de janeiro grande parte dos membros
provisórios da Sociedade Cearense Libertadora abdicou da agremiação. Dos
poucos que ficaram, Antônio Bezerra de Menezes foi um deles. Raimundo
Girão o entitulou mosqueteiro juntamente com João Carlos Jataí e Isac do
Amaral. Essa alcunha foi dada devido à postura tomada por esses membros
em alguns momentos da campanha abolicionista cearense.
119
Das poucas atitudes consideradas de cunho radical e revolucionário
realizadas pela Libertadora, Bezerra de Menezes participou de duas delas.
Sendo a primeira quando aliciou pessoas e as levou ao porto com o objetivo de
tumultuar o embarque de alguns escravos. A segunda, quando participou de
uma ação que permitiu dar fuga a alguns escravos que estavam guardados
para serem vendidos para as províncias do sul do Império. Os casos já foram
aludidos no primeiro capítulo desta dissertação.
As poesias escritas por Antônio Bezerra no periódico Libertador, na
grande maioria, eram de cunho ufanista. Entoou glória aos membros da
Libertadora, incitou-os a lutar, agir e buscar todos os meios que levassem ao
fim da escravidão. O poeta enalteceu seus pares. A mocidade tinha como
missão engrandecer a pátria e marchar em direção ao futuro, ao progresso;
posição, no seu entender, que somente seria alcançada com o fim da
escravidão.
Na edição do dia 17 de fevereiro de 1881 do jornal Libertador um poeta
anônimo celebrou a mocidade libertadora:
Quando o gênio das nações O verbo de amor traduz, Convidando as gerações Para as conquistas da luz, O mundo inteiro ness'hora, Com quem marcha p'r'aurora D'uma esplendida manhã, Surge e busca o seu destino, Esse El-dourado divino – Do progresso a Cannan. Tal é a grande cruzada Deste sec'lo humanitario Que por bandeira sagrada Tem o symb'olo do Calvario; Tal a immensa romaria, A que tambem se associa A cearense mocidade, Que em favor dos opprimidos Acolhe e sente os gemidos Do anjo da liberdade. Contra a violencia corrupta Que o sec'lo tisnando vai Soou a hora da lucta, É tempo, ó moços, marchai:
120
Marchai que o dia da gloria Reserva sempre a victoria Que eternamente reluz, Para os heroes da epopea Apost'los da grande idéa, Que encerra o poema da cruz. Eia pois quebre-se a ponta Do septro do opressor, Não mais se veja esta affronta As faces do redemptor; Cortem-se as garras da féra, Do abutre que dilacera As entranhas da nação; Dê-se em fim no ardor da lucta Morte a negra prostituta, Que se chama – escravidão. Que essa hydra que oriunda Foi do crime e da torpeza Mais não mostre a face immunda Que horrorisa a natureza, Que essa megera fatal Filha da treva e do mal, Que deshonra o Christianismo, Para bem das gerações Seja, envolta em maldições, Aurada ao negro abismo. Tyranuos, sabei e crede Que o redemptor em verdade Sô chorou por quem tem sêde De justiça e liberdade: E si, Cains, despresaes Os tristes prantos e ais Dos captivos ultrajados; No fogo dos corações Vereis fundir-se os grilhões Que algemam os desgraçados.217
É possível notar que o poeta anônimo semelhante a Antônio Bezerra
preconizou a "grande cruzada" da mocidade libertadora em busca do prestígio.
Bezerra falou de "progresso", "futuro", "coragem" e "trabalho". O poeta anônimo
se referiu a "luz", "aurora", "esplendida manhã", "redemptor e 'lucta". Essas
palavras têm a mesma conotação quando empregadas na composição das
duas poesias.
O poeta anônimo apregoou uma luta contra a "negra prostituta", alegoria
à escravidão. O poeta fez alusão à mocidade como "apost'los da grande idéa"
217 Libertador,17 de fevereiro, Número 04, p. 06-07.
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que possuem como missão marchar em romaria rumo as "conquistas da luz”.
Tratava-se de "heroes da epopea", que tinham o encargo divino de acolher o
gemido dos "opprimidos" cativos. Semelhante a Bezerra de Menezes, Melo
Morais apregoou a liberdade enquanto uma conquista da mocidade e não dos
escravos. Os escravos eram os "opprimidos", "ultrajados" e "desgraçados".
Consideramos a linguagem um importante meio de composição e
expressão de sentimentos e ideais que permeiam o político e o social. Um meio
que torna possível ao historiador interpretar múltiplas experiências humanas,
através dessa mesma linguagem, apreendida enquanto representação em uma
determinada temporalidade.
Grande parte dos membros da Libertadora Cearense almejaram
alcançar uma mudança histórica onde seus planos e ações, impulsos
emocionais e racionais se transformassem em modelos de civilização. Também
tentaram atingir uma ordem social em que as relações humanas se dessem de
forma racional e planejada. De um certo modo a transformação da sociedade
viria com novas necessidades, fundidas em novas maneiras, gostos e
linguagens, permitindo a esses indivíduos alcançarem o progresso social com a
mudança de certos padrões comportamentais. E na medida que mudaram a
estrutura das relações humanas e desenvolveram novas funções sociais
baseadas num novo código de conduta davam movimento a uma nova
realidade histórica.
O trabalho servil era visto pelos membros da Libertadora Cearense
como uma ocupação inferior, pois, devido ao emprego de escravos, a
sociedade era forçada a adotar uma estrutura de trabalho relativamente
simples, servindo-se de técnicas que podiam ser utilizadas pelos escravos e,
que, por essa razão, tornavam-se menos permeáveis à mudanças, ao
melhoramento e à adaptação a novas situações. Daí vem a preocupação dos
abolicionistas das libertadoras em reformular a situação social de modo que
novas maneiras e comportamentos transformassem essa sociedade.
Os membros da Libertadora Cearense constituíam uma classe em
ascensão que prosseguia seu caminho com avanços e recuos. Era de certa
122
forma um estrato social marginal com funções e características peculiares, que
pressionavam a partir de seu lugar social contra o sistema vigente. E na
medida que se destacaram e se firmaram em um forte grupamento, buscaram
pressionar os adeptos de um sistema contra o qual tinham fortes
animosidades. Seguiram suas paixões e sentimentos de forma direta e
espontânea, regulando sua conduta menos rigorosamente que a dos
respectivos estratos superiores. Suas compulsões eram de natureza direta,
intelectual e física, induzindo a sociedade a uma transformação social.
Uma das particularidades dessa sociedade libertadora consistiu na
difusão de um código de conduta buscando atingir todas as classes sociais,
defendendo a idéia de que todas as pessoas “capazes” ganhassem a vida
através de um trabalho remunerado e regulado. O trabalho passou a ser visto
não mais como uma das características das classes baixas. A mudança social
que buscaram estava embasada em novas relações de trabalho como também
em novos hábitos e padrões de comportamento.
Visto de perto, onde apenas um segmento desse movimento é
perceptível, as diferenças na estrutura da situação social entre os membros da
Libertadora Cearense podem parecer ainda consideráveis. Mas se for
focalizada toda amplidão do movimento ao longo do processo abolicionista
podemos notar que estavam diminuindo os grandes contrastes de
comportamento entre os membros. Essa redução dos contrates entre os
membros da sociedade cearense, essa mistura peculiar de padrões de conduta
que derivavam de níveis sociais bem próximos, eram altamente características
das sociedades libetadoras, e constituíam uma das peculiaridades mais
importantes do movimento abolicionista da Sociedade Cearense Libertadora
O movimento abolicionistas desencadeado pela Libertadora Cearense
disseminou padrões de conduta ocidentais cujas tendências e padrões
característicos, incluindo a ciência, a tecnologia, a literatura e outras
manifestações, em parte, foram assimilados pelos demais estratos da
sociedade.
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Mas, por um lado, os membros da Libertadora Cearense, fazendo parte
de uma das camadas superiores da sociedade cearense foram compelidos a
manter, a todo custo, o controle das suas pulsões como uma marca de
distinção. Esses abolicionistas disseminaram pela sociedade cearense seu
próprio estilo de conduta e instituição. O mais das vezes sem uma intenção
deliberada, trabalharam numa direção que levou à redução das diferenças de
poder social e conduta entre duas camadas da sociedade, a saber, a pequena
e média burguesia e os grandes proprietários de terras. Nessa perspectiva a
literatura para os membros da Libertadora Cearense constituía num meio de
avanço em direção ao progresso social.
Grande parte dos membros da Sociedade Cearense Libertadora viam
nos padrões europeus e nas teorias do liberalismo clássico, nas idéias
evolucionistas e cientificistas, no industrialismo e cosmopolitismo, meios de
superação das relações sócio-culturais presentes no poderio senhorial e nos
valores oriundos desse tipo de relação. Acreditavam que novas relações de
trabalho, com o emprego de novas técnicas e tecnologias, como também novas
formas de produção e novo modelo político-econômico mudariam a estrutura
social de modo que eles próprios se inserissem na nova ordem.
Nesse sentido, é possível perceber nas poesias publicadas no
Libertador, nos enunciados de caráter progressista, a pregação de um mundo
moderno como forma de superar o arcaico. Utilizavam como forma de
convencimento artifícios lingüísticos. Nas poesias, a palavra ganha potência e
se transforma num importante instrumento de ação. Os discursos se
materializam em desejos, a retórica ganha força e se torna um importante
mecanismo de penetração social.
As relações que permeavam a estrutura social da sociedade cearense
estavam calcadas em práticas de coerção física e psicológica, sustentada e
executada muitas vezes pelos pais da Mocidade Cearense. Entretanto, essa
mocidade enxergava tais práticas como sendo responsáveis pelo atraso
político e econômico da província. Consideravam a realidade social cearense
bastante arcaica e propuseram uma nova ordem social sustentada, em boa
medida, por instituições fundamentadas num modelo ordenado e progressista.
124
É possível perceber nos discursos proferidos pelos membros da
Sociedade Cearense Libertadora enunciados que culpam o atraso da estrutura
política e econômica da província e o imputam ao modelo arcaico das relações
sociais praticadas pelas instituições vigentes. A literatura era para esses
sujeitos uma instituição capaz de regenerar e reconstruir os aspectos políticos
e morais da sociedade cearense.
A coluna Litteratura, presente no periódico Libertador, combatia a
realidade social vigente, dando ênfase, principalmente, ao aspecto discursivo
que entendia a escravidão como a grande responsável pela decadência da
ordem social, política e econômica em voga naquele momento. A imagem do
progresso presente em grande parte das poesias publicadas no periódico
contrastava com o modelo político vigente, que por sua vez, se encontrava em
deterioração.
A literatura para os membros da Sociedade Cearense Libertadora tinha
o papel político e moral de regeneração da sociedade. As letras se constituíam
em importante mecanismo de transformação social, que tinha a função de
doutrinar a sociedade, seguindo as premissas teóricas da época, positivista,
determinista e evolucionista. As letras também eram um importante meio de
ação forjada nas práticas discursivas e em produções periódicas, sendo ainda,
um importante instrumento de luta, elemento doutrinador e legitimador. Nesse
sentido, a sessão Litteratura foi um importante instrumento doutrinário, onde a
palavra tornou-se arma em ação, que tinha a função de regenerar o caráter
político e moral da sociedade cearense.
3.3 – GALENO: LENDAS E CANÇÕES POPULARES
Galeno também foi membro da Libertadora Cearense, mas
diferentemente de outros abolicionistas que escreveram na coluna Litteratura,
deu atenção ao escravo, liberto ou libertando, enquanto indivíduo que pensava
e sentia como tal. Análogo a Mello Moraes também buscou reivindicar, na
edição de número 08, do dia 23 de maio de 1881 do jornal Libertador, a
125
pesarosa condição do escravo na sociedade brasileira. Buscou evidenciar o
difícil percurso da vida de um escravo.
Nessa poesia Galeno se referiu ao cativo como um desafortunado, um
infeliz por ter presenciado a morte da mãe e não poder chorar:
Oh! Sim morreu! Chorei tanto, quando morta a vi no chão..., o magro corpo estragado, pelo azorrague e grilhão..., que o meu senhor castigou-me, mandando calar-me então"; também por ter apanhado ainda criança quando os filhos do seu senhor insistiam em chorar, "bem pequeno... inda criança , começou o meu penar! Duas, três vezes por dia, vinham-me o corpo açoutar ... que os filhos de meus senhores chorava no seu brincar"; ainda por ser forçado a trabalhar durante a infância," fui crescendo, a minha infancia, gastou-se no padecer, quasi nu, ao sol e chuva, trabalhava sem poder.
Em 1865, Juvenal Galeno218 publicou Lendas e Canções Populares,
obra que retratou os costumes e práticas sociais dos tipos existentes na
população do Ceará, do rude lavrador passando pelo vaqueiro, pescador e
escravo. No prólogo da primeira edição escreveu:
Reproduzindo, ampliando e publicando as lendas e canções populares, tive por fim representai-lo tal qual êle é na sua vida íntima e política...
Se o consegui, não sei; mas para consegui-lo procurei primeiro que tudo conhece o povo e com ele identificar-me. Acompanhei-o passo a passo no seu viver, e então, nos campos e povoados, no sertão, na praia e na montanha, ouvi e decorei seus cantos, suas queixas, suas lendas e profecias, - aprendi seus usos, costumes e superstições falei-lhe em nome da Pátria e guardei dentro de mim os sentimentos de sua alma, - com ele sorri e chorei, - e depois escrevi o que ele sentia, o que cantava, o que me dizia, o que me inspirava.219
Galeno denunciou nessa obra, em vários momentos, a funesta condição
do cativo. Descreveu através de versos as amarguras, emoções, paixões e
gostos sentidos pelos escravos. Dos poemas presentes na obra, Cativeiro é
aquele que melhor expressa o lamento do escravo por ser privado da
liberdade. O poeta comparou a presença da liberdade na vida do pássaro e, a
ausência na do escravo. A analogia foi o instrumento preciso utilizado pelo
poeta para demonstrar ao leitor o desdouro da condição do cativo.
Cativeiro
218 Juvenal Galeno da Costa e Silva nasceu em 27 de setembro de 1836, na cidade de Fortaleza. Escreveu Geraldo Torres sobre o poeta: “[...] deixando-nos um valioso acervo de realizações de interesse permanente porque espelham toda a estrutura sócio-cultural de uma época. A essa fonte de informações poderão recorrer sempre todos os que precisarem – hoje e no futuro – conhecer os costumes básicos do homem nordestino, do Ceará por excelência, porque o nosso poeta, sempre adstrito ao realismo e à verdade, deixou obra de grande, sério e precioso conteúdo sociológico [...]” Ver: VERAS, José Geraldo Torres. Juvenal Galeno o Poeta do Povo. Fortaleza, Imprensa Oficial do Ceará, 1994. p. 28. 219 GALENO, Juvenal. Lendas e Canções Populares. 4o edição. Fortaleza: Casa Juvenal Galeno, 1978. p. 407-408.
126
Passarinho, vai-te embora Dêste raminho fronteiro, Que em meu rosto cor da noite, De prantos cai um chuveiro... Vai cantando a liberdade, Que eu choro o meu cativeiro. És ditoso; alegre e solto, Tu cantas o ano inteiro; Não te escute o desgraçado, Cuja vida é o desespero! Vai cantando a liberdade! Que eu choro o meu cativeiro. Tua lei é o teu desejo, Sempre assim desde janeiro! Minha lei – capricho alheio... Meu carinho o mais fragueiro! Vai cantando a liberdade Que eu choro meu cativeiro Tens os filhos no teu ninho, Linda esposa, amor primeiro... Ai de mim, que na ventura Nunca sou nem derradeiro! Vai cantando a liberdade, Que eu choro meu cativeiro Quando é noite, tu descansas Sôbre o teu ramo altaneiro, E eu por entre meus soluços, Ferido neste espinheiro... Vai cantando a liberdade, Que eu choro meu cativeiro. Tua lei é o teu desejo, Sempre assim desde janeiro! Minha lei – capricho alheio... Meu caminho o mais fregueiro! Vai cantando a liberdade, Que eu choro meu cativeiro. Entre os teus nos verdes prados, Tu divagas prezenteiro; Eu só nas lidas do campo, Ou gemendo no terreiro... Vai cantando a liberdade, Que eu choro meu cativeiro. De manhã, quando despertas, Vens banhar-te no ribeiro, E eu de enxada ao ombro marcho Mais triste para o cafeeiro! Vai cantando a liberdade, Que eu choro meu cativeiro. Como invejo a tua vida, Teu destino lisonjeiro! Bem quisera ser – não posso...
127
No riso teu companheiro!... Vai cantando a liberdade, Que eu choro meu cativeiro. Bate as asas, vai-te embora... Voa ao céu, voa ligeiro; Pede a Deus misericórdia... Que me salve justiceiro... Vai cantando a liberdade, Que eu choro meu cativeiro.220
Além do Cativeiro ainda estão presentes na obra os poemas A Escrava
e A Noite na Senzala. Versos que também retrataram os sentimentos de rancor
e tristeza experimentados pelos cativos. No poema A Escrava, Galeno revelou
a recordação de uma cativa que viu chorar numa senzala. Era uma "pobre
velha, sentada junto a fogueira, nos contava assim a lenda duma escrava
brasileira." A escrava por quem a "velha" chorava chamava-se Maria,
proveniente do Congo, capturada e embarcada ainda jovem para ser vendida
no Brasil:
A Escrava Não posso lembrar-me dela, Sem logo os olhos molhar... Pois neste vale de lágrimas Sem trégua foi o seu penar; Não pude nunca esquecê-la Nas horas de recordar! Seu pranto correndo em fio Seus gritos no padecer, Aquela doce toada De seu dorido dizer... Me ficaram dentro d'alma Com seu penoso gemer! Inda a escuto...quando chora Alta noite a viração, Como ouvi-a na senzala Com profunda comoção, Quando a infeliz recordava Seus males... ao grilhão! Coitada dela, coitada... No cativeiro cruel! Nascera livre na pátria,
220 GALENO, Juvenal. Op. cit., p. 407-408.
128
Como as auras do vergel... E depois quantos espinhos... Que amarga taça de fel! Vou contar-vos sua história... Francisco, dá-me um tição; Antônio, traz-me o cachimbo, Tira o fumo no surrão: Silêncio agora... escutai-me, Meus filhos, muita atenção. E fumando a pobre velha Sentada junto a fogueira, Nos contava assim a lenda Duma escrava brasileira. Era Maria – a cativa De atribulado viver – Filha do Congo, portanto Livre fora o seu nascer, Como o vento do deserto Nas terras do seu prazer. Passara a ditosa infância Na sua pátria natal, Ora gozando os carinhos Do regaço maternal, Ora brincando contente A sombra do bananal. Ficou moça... veio a cisma, Com ela veio o amor... Que doce afeto primeiro... Que sonhos... quanto langor! Maria amava extremosa... Amava com muito ardor. Quando um dia... passeando Sozinha pelo pomar, Viu-se preia dos infames, Viu seu destino mudar... Não gritou...que o não podia... Chorando viu-se amarrar! Chorando viu-se embarcada... Vendida em breve também... Curtindo extrema saudade De suas terras d'além... Contar-vos seus sofrimentos, Ai, quem podera? Ninguém! Que o diga porém o canto, Aquela triste canção, Que muita vez escutei-lhe, Quando á noite, no grilhão, Seu destino lamentava Ao gemer da viração:
129
[... ]221
No poema A Noite na Senzala, Juvenal Galeno demonstrou o desgosto
que nutria pela escravidão. Declamou a mágoa que sentia pelo traficante e
pelo proprietário de escravos.
A Noite na Senzala Maldição sobre aquelle que imano Em seus lares sustenta a opressão; Sobre aquele que a pátria envilece... Traficando...vendendo um irmão! Oh, que nódoa na história brasília... Maldição... maldição... maldição!... Que noite... que noite aquela, Que na senzala passei! Que cenas... que horrível quadro Ai, chorando contemplei! Desde então tornei-me inimigo Dos malvados opressores... Carpindo tantos horrores, O pobre cativo amei. Amei-o sim... deplorando As dores do meu irmão, Que por lei a mais infame Morria na escravidão; Qu'eu via então miserável, Pelo trabalho alquebrado, Quase nu... ali deitado Sobre trapos, sobre o chão! Amei-o pois padecia; Amei-o... senti-lhe a dor; Amo o fraco, odeio o forte Quando exerce o seu rigor: Amo o gemido, o queixume Do cativo desditoso, Como odeio impiedoso O desumano senhor Pobre irmão! Vinde tiranos, Alta noite o contemplar; Vede... dorme o desgraçado Sem da ventura o sonhar... O cristão... o brasileiro... O cativo miserando... Té que venha o algoz nefando Com chicote o despertar!
221 Ibidem. p. 278-280.
130
Aqui fraco delirando Aquele que não comeu, Perto a mãe, a desgraçada, Que todo o dia gemeu... Vendo o filho de sua alma Sob os açoutes gritando... O sangue seu derramando... Té que os sentidos perdeu! Ali o velho que chora Com tristeza e dissabor, Apesar de escravo, honrado, Dá largas a sua dor... Pois viu a filha donzela, A sua filha querida, Que rôla imbele... perdida... Nos braços de seu senhor! Além a esposa aviltada Aos olhos do esposo seu; A triste mãe sem o filho, Que o fero branco vendeu! O pobre filho que aflito Viu sua mãe açoutada... O quadro da lei malvada Da pátria que Deus me deu! Ó, vinde, vinde, tiranos, Contemplai-os sobre o chão, Enquanto meia-noite Geme a fria viração... Chorando talvez sentidas Tantas dores e torturas, Desta vida as amarguras, Ás mágoas da escravidão! Maldição sobre aquele que imano Em seus lares sustenta a opressão; Sobre aquele que a pátria envilece... Traficando... vendendo um irmão! Oh, que nódoa na história Brasília... Maldição... maldição... maldição! ...222
Das quatro poesias citadas acima, as três primeiras reproduziram a fala
do escravo. A poesia foi uma espécie de lamento declarado pelo próprio
escravo. O cativo apresentou ao leitor sua aflição, sua dor e o tormento da
escravidão. No verso A escrava quem chorou sua sina foi uma cativa "pobre
velha", que sentada junto a uma fogueira recordou a lenda de uma escrava
brasileira, "– Não posso lembrar-me dela, sem logo os olhos molhar... pois
neste vale de lágrimas sem trégua foi o seu penar; não pude nunca esquecê-la 222 Ibidem., p. 211-213.
131
nas horas do recordar!". Na poesia A noite na Senzala, por sua vez, não foi
mais o escravo quem evidenciou sua condição, quem chorou a triste sorte,
quem pranteou o infortúnio de sua vida foi o próprio abolicionista Juvenal
Galeno. O poeta denunciou a atrocidade do sistema escravista e fez duras
censuras aos traficantes e proprietários de escravos.
Praticamente com o mesmo teor do verso A noite na Senzala, Juvenal
Galeno escreveu O Abolicionista, em 1882, e A Abolição, em 1887. Assumia
claramente uma postura radical contra o sistema escravista. Do mesmo modo
que seus companheiros da Sociedade Libertadora Cearense se denominou
Soldado Abolicionista.
Pregou a militância contra a escravidão, que segundo ele era um
sistema de afronta, por desrespeitar todos os princípios relativos ao homem,
principalmente aqueles relativos ao cristianismo. No verso O Abolicionista
prevaleceu, dentre outros, os termos "santos evangelhos", "alma" e "irmãos",
O Abolicionista Sou com todo o entusiasmo Soldado abolicionista! Da falange remidora Meu nome escrevi na lista; E nos santos evangelhos De minh'alma, pondo a mão, Jurei dar a própria vida Pra acabar a escravidão! Sim, jurei, sentando praça Nas hostes da abolição! Que me importa que me condene O desumano negreiro? Quem seus irmãos compra e vende. Eu desprezo sobranceiro! Amo somente o que é nobre, Amo somente o que é são; E darei por isso a vida Pra acabar a escravidão! Sim, jurei, sentando a praça Nas hostes da abolição! Enquanto houver um cativo Na minha pátria adorada, Não darei costas à luta, Não largarei a estacada! Meu cartucho derradeiro
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Queimarei na grande ação; E darei a própria vida Pra acabar a escravidão! Sim, jurei, sentando praça Nas hostes da abolição! Antes, porém, da batalha Vitoriosa e final, Jamais cesse o tiroteio... Não durma quem é leal: Avante, meus camaradas! Ninguém descanse ora, não, Que eu darei a própria vida Pra acabar a escravidão! Sim, jurei, sentando praça Nas hostes da abolição! Pouco a pouco embora! Avante! Ah, sob o nosso estandarte Proteção ao flagelado... Sejamos seu baluarte!... Derrocando o cativeiro, Eduque-se a multidão! Que eu darei a própria vida Pra acabar a escravidão!... Sim, jurei, sentando praça Nas hostes da abolição! E vós, fugi de vergonha, Sanhoso espumando, ó mar... Quando forem traficantes Nossos irmãos embarcar! Na praia deixando a vítima Da mas nefando opressão! Que eu darei a própria vida Pra acabar a escravidão! Sim, jurei, sentando praça Nas hostes da abolição! Já cintila a estrela d'alva Perto o dia em que o Brasil Ai mundo dirá: - não tenho Mais elemento servil! Os prantos do cativeiro Mais não banham meu torrão! Ah, darei a própria vida Pra acabar a escravidão! Sim, jurei, sentando praça Nas hostes da abolição! Que danças então, que festas Ao redor de mil fogueiras, Onde arderão os malditos Troncos, chicotes, coleiras... Ao som dos hinos dos livres, Ao som da minha canção!... Ah, darei a própria vida Pra acabar a escravidão! Sim, jurei, sentando praça Nas hostes da abolição!
133
Ó pátria, pátria, que glória! Que prazer, que f'elicidade! Não coraras mais de pejo No meio da humanidade: Sim, jurei, sentando praça Nas hostes da abolição!... Pra acabar a escravidão! Ah, darei a própria vida Ergueremos nossas frontes, Fitando a civilização!... 223
Escrito cinco anos depois do poema O Abolicionista, o verso A abolição
também condenou a escravidão. Espécie de missiva que reclamou a plena
abolição dos escravos no império brasileiro, o poema A Abolição apresentou
também um vigoroso conteúdo cristão. Nesse verso Juvenal Galeno apelou
constantemente aos valores inerentes ao cristianismo.
A Abolição Salve, salve, liberdade! Não mais o vil cativeiro Livre exulte a humanidade Neste império brasileiro! Neste império brasileiro Não mais escravos, não mais; Todos livres no terreiro, No meio dos cafezais! Nos poços da cristandade De livres encham-se as salas, Que o jogo da liberdade Se acenda e queime as senzalas. Se acenda e queime as senzalas E ensanguentados grilhões! Da f'elicidade as opalas Cintilam nos meus clarões! Não mais de nossas bandeiras As côres ... enegrecidas! Nesta terra brasileira Somente frontes erguidas! Somente frontes erguidas, De livres – tocando o céu ! E do azorrague as feridas Da cicatriz sob o véu!
223 Ibidem. p. 499-502.
134
Que chorem debalde ignavos Os desumanos senhores, Do vício e ócio – escravos, Escravos de seus credores. Escravos de seus credores ... O chão aprendam a cavar; Que o reguem com seus suores Pra nova planta brotar. A nova planta – igualdade! Planta de amor, de Jesus... Que abraçou a humanidade, Abrindo os braços na cruz. Abrindo os braços na cruz, Cristo não fez exclusão: Raiou a aurora da luz ... Salve, salve, redenção! Salve, sim, sol radiante, Que surge nesta nação! Salve! Ergueu-se a rola avante A onda da abolição! A onda da – abolição Já lava a pátria gentil! Morre a treva – escravidão... A luz inunda o Brasil!...224
3.4 – ROMANCE: REALISTA NATURALISTA
A poesia não foi o único gênero literário utilizado por intelectuais,
populares e abolicionistas, como meio de criticar o sistema escravista. O
romance, especificamente o romance realista naturalista225 também foi um
importante instrumento de contestação.
O romance realista naturalista se caracterizou pelo objetivismo como
negação do subjetivismo romântico e visualizava o mundo voltado para aquilo
que está diante e fora dele, o não-eu; como também lançava mão do
224 Ibidem. p. 524-525. 225 O romance naturalista foi inaugurado na literatura universal, em 1867, por Émile Zola, com a obra Thérése Raquin, e no Brasil, em 1881, com a obra O mulato de Aluísio Azevedo.
135
materialismo que negava o sentimentalismo e a metafísica. Rejeitava o
sentimento nacionalista e o passado se preocupando totalmente com o
presente, o contemporâneo. Ainda apresentou antipatia pela burguesia, atacou
aquilo que foi considerado célula mãe da classe, a família. Ideologicamente os
autores desse período eram antimonárquicos e assumiam uma defesa clara do
ideal republicano.226
A obra O mulato que inaugurou o naturalismo no Brasil foi escrita por
Aluízio Azevedo227, em 1881. Diferentemente dos romances que tinham como
objetivo divertir e comover, o naturalismo teve como objetivo incomodar o leitor
da época. Segundo o escritor Sânzio de Azevedo, em nota de introdução da
edição de O mulato de 1998: “O Mulato, em 1881, conseguiu, pelo menos a
princípio, despertar não a indignação dos leitores contra a hipocrisia reinante
na Província, mas o ódio dos próprios conterrâneos que não gostaram nada de
se ver pintados com tintas tão fortes..."228
Esta obra foi um retrato, um libelo cáustico contra a vida e os costumes
maranhenses da época. O Maranhão naquele momento era uma província
caracteriza por uma sociedade escravista influenciada por padres, pela
servidão da mulher e pelo predomínio do português sobre o nacional.229
Um dos principais aspectos do livro é a escravidão, outro é o preconceito
de cor, a adaptação do mestiço à sociedade e o conflito social disso resultante.
A escravidão se apresentou através do drama do personagem principal, 226 NICOLA, José de. Literatura Brasileira das origens aos nossos dias. 3o edição. São Paulo: Ed. Scipione, 1989. 227 Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo nasceu no dia 14 de abril de 1857 em São Luís do Maranhão. José de Nicola escreveu sobre o autor: “Aluísio escreveu uma obra propositalmente diversificada: de um lado os romances românticos, que o próprio autor chamava de comerciais ; de outro os romances naturalistas, chamados de artísticos. Ao primeiro grupo pertencem Memórias de um condenado, Mistérios da Tijuca, Filomena Borges, O esqueleto e A mortalha de Alzira, descontado o romance de estréia, Uma lágrima de mulher. São romances de consumo, que seguem perfeitamente a melhor receita folhetinesca. Ao segundo grupo, entre outros, pertencem os três romances maiores de Aluízio: O mulato, Casa de Pensão e O cortiço [...]” Ibidem. p. 136. 228 AZEVEDO, Sânzio. Introdução. In: AZEVEDO, Aluízio. Idem. p. 03. 229 Fernando Góes escreveu na introdução da obra O Mulato, em 1971, "A situação que o Maranhão está vivendo não é das melhores. A aura abolicionista , que varre todo o Norte começa também a soprar por ali, talvez o reduto mais forte e intransigente do escravismo, na região. E a intensa procura de trabalhadores, disputados a bons preços pelos proprietários das lavouras cafeeiras do sul, num auspicioso florescimento, faz com que os agricultores maranhenses transfiram, aos poucos, o braço escravo – que tem sido o sustentáculo do Maranhão, como do resto de todo o Brasil – para aquela zona. Como conseqüência, assiste-se ao despovoamento das fazendas, ao abandono das lavouras de algodão e dos engenhos, à desorganização completa da produção... É uma época ruim para a província, época de desolação e de decadência, que se vai refletir agudamente sobre os costumes,". Ver: GOES, Fernando. Introdução. In: AZEVEDO, Aluísio. O Mulato. São Paulo: Martins Claret, 1971. p. 11.
136
Raimundo oriundo dela e por isso vítima da sociedade que o continha; ainda
através dos sofrimentos, dos bárbaros castigos impostos aos cativos, o
romancista não deixou de descrever o instrumento de tortura que era o tronco,
"com os buracos redondos, que serviam para prender as pernas , os braços ou
o pescoço dos escravos"230, da vida que levavam nas fazendas e nas cidades,
da situação dos forros, largados pelo sertão, aos bandos. E também tratou da
influência das negras sobre as sinhás-donas, contando-lhes intimidades,
despertando, aguçando-lhes maliciosamente a sensualidade. O escravo, de
certo modo, tornando-se senhor, influenciando, quase dominando os amos, a
senzala passando a impor muitos de seus costumes ao sobrado, à casa
grande. Tudo isso se mistura ao ciúme, ao despeito, à humilhação, à vergonha
das brancas, vendo-se tantas vezes preteridas pelos maridos, que buscavam
nos dengues, no amor lascivo das negras, a plena satisfação do sexo.
Aluízio Azevedo descreveu nos primeiros capítulos de O Mulato as
atividades e práticas de escravos que transitavam pelo espaço urbano do
Maranhão.
Era um dia abafadiço e aborrecido. A pobre cidade de São Luís do Maranhão parecia entorpecida pelo calor. Quase que se não podia sair à rua: as pedras escaldavam; as vidraças e os lampiões faiscavam ao sol como enormes diamantes; as paredes tinham reverberações de prata polida; as folhas das árvores nem se mexiam; as carroças d'água passavam ruidosamente a todo instante, abalando os prédios; e os aguadeiros, em mangas de camisa e pernas arregaçadas, invadiam sem sem-cerimônia as casas para encher as banheiras e os potes. Em certos pontos não se encontrava viva alma na rua; tudo estava concentrado, adormecido; só os pretos faziam as compras para o jantar ou andavam no ganho.231
No trecho acima, Aluízio Azevedo pintou o ambiente de São Luís à
maneira naturalista. A cena transmite ao leitor um certo desconforto, um leve
incômodo. As fortes tintas usadas pelo escritor para ilustrar o ambiente urbano
de São Luís passam para quem lê o livro uma imagem hostil da capital do
Maranhão.
Nesta cena a representação do escravo urbano que realiza a atividade
do ganho apareceu pela primeira vez. O escravo de ganho foi uma figura
constante nas cidades brasileiras, principalmente, a partir da segunda metade
do século XIX.
230 AZEVEDO, Aluízio. O Mulato, p. 14 231 Ibidem. p. 07.
137
Aluízio Azevedo, além de evidenciar os costumes dos escravos e
libertos nas atividades relacionadas às transações de produtos e serviços pelas
ruas de São Luís, também descreveu o “baile dos pretos”, espaços lúdicos de
sociabilidade de africanos e afro-descendentes:
— os chinfrins , como lhes chamava o meu defunto Espigão, acudiu Maria do Carmo. Conheço! Ora se conheço!... Bastante quizília tivermos nós por amor deles!...
— É uma sem-vergonheira! Ver as escravas todas de cambraia, lagos de fita, água de cheiro no lenço, a requebrarem as chandangas na dança!...
— Ah, um bom chicote!... disseram as duas velhas ao mesmo tempo. – E elas dançam direito?... perguntou a do Carmo.
— Se dançam!... O serviço é que não sabem fazer a tempo e a horas! Lá pra dançar estão sempre prontas! Nem o João Enxova!
A indignação secava-lhe a voz. — Até parecem senhoras, Deus me perdoe! Todas de fazerem de gente! Os
negros a darem-lhes excelência. “ E porque minha senhora p’ ra cá! Vossa senhoria pra lá!” É uma pouca vergonha, a senhora não imagina!... Uma vez que fui espiar um chinfrim, porque me disseram que meu defunto tava lá metido, fiquei pasma! E o melhor é que os descarados não se tratam pelo nome deles, tratam-se pelo nome dos seus senhores!... não sabe o Filomeno?... aquele mulato do presidente...Pois a esse só davam ”Sr. Presidente!.” Outros são “Srs. Desembargadores, doutores, majores e coronéis!”. Um desaforo que devia acabar na palmatória da polícia!232 Azevedo também fez referência aos mocambeiros, negros libertos que
viviam em quilombos localizados no sertão do Maranhão.
Os mocambos formavam grupo á parte; nunca apareciam publicamente, viviam escondidos nos seus quilombos e só se mostravam na estrada real para atacar os viajantes. Os agregados, eram pretos forros, forros em geral com a morte dos seus senhores, e que, habituados desde pequenos ao cativeiro, não tendo já quem os obrigasse a trabalhar e não querendo sair do sertão, ficavam por aí ao deus-dará, pedinchando pelas fazendas um bocado de arroz, para matar a fome, e um pedaço de chão coberto para dormir...233
As práticas e costumes inerentes ao sistema escravista ilustram a obra
do começo ao fim, mas o ponto nefrálgico do livro é o preconceito da cor, o
conflito social resultante da inserção do mestiço na sociedade. A primeira
indicação do preconceito contra o negro na sociedade maranhense surge no
segundo capítulo. Num diálogo entre o cônego Diogo e o rico comerciante
Manuel:
— ora deixe disso! Retrucou Diogo, levantando-se com ímpeto. Nós já temos por aí muito padre de cor!
[...] — ora o que, homem de Deus! É só – ser padre! é só ser padre! E no fim das
contas estão se vendo, as duas por três, superiores mais negros que as nossas cozinheiras! então isto tem jeito?... O governo – e o cônego inchava as palavras – o governo devia até tomar uma medida séria a este respeito! Devia proibir aos cabras certos misteres!
[...]
232 Ibidem. p. 52. 233 Ibidem. p. 137.
138
Pois você queria ver sua filha confessada, casada, por um negro? Você queria seu Manuel, [...] se você viesse a ter netos queria que eles apanhassem palmatoadas de um professor mais negro que essa batina?234
O diálogo acima estabelecido entre os dois personagens, Diogo e
Manuel, diz respeito à figura de Raimundo, personagem central no enredo do
livro. Raimundo é um homem de 26 anos de idade, “tez morena e amulatada,
mas fina; dentes claros que reluziam sob a negrura do bigode; estatura alta e
elegante; pescoço largo, nariz direito e fronte espaçosa.”235 Raimundo nasceu
“numa fazenda de escravos na vila do Rosário.”236 Seu pai era o negociante de
escravos José da Silva “que havia enriquecido no contrabando dos negros da
África”.237 Sua mãe era a negra Domingas, escrava que, depois de ter dado à
luz Raimundo, recebeu de José a carta de alforria.
Após a morte de José da Silva, Raimundo foi enviado ainda criança à
Europa para estudar e, ao retornar já adulto a sua terra Natal, Maranhão,
deparou-se com uma sociedade hostil e agressiva aos mestiços. Raimundo
voltou ao Maranhão com o propósito de liquidar os bens herdados do pai e
para tentar reconstruir seu passado. Descobrir quem era afinal sua mãe, “quem
seria ela? [...] talvez irmã daquela santa senhora que foi para ele uma segunda
mãe [...] Mas porque tanto mistério? [...] Seria alguma história, a tal ponto
vergonhosa, que ninguém se atrevesse a revelar-lhe?”.238 Somente no final do
livro, especificamente no capítulo XII, Raimundo descobriu que sua mãe era a
negra Domingas. Uma negra louca que morava na antiga fazenda de seu pai:
“[...] ela as vezes passava meses inteiros na fazenda; os pretos gostavam de
ouvi-la cantar e vê-la dançar. Doida varrida! Estava sempre resmungando lá
consigo...”239.
O enredo do livro gira em torno do conflito de Raimundo de não ser
aceito pela sociedade maranhense por ser filho de uma ex-escrava. Aluísio
Azevedo escreveu O mulato em tom de denúncia. Buscou chocar e mostrar à
sociedade escravista do Maranhão e do Brasil as nefastas relações existentes
no sistema escravocrata.
234 Ibidem. p. 20. 235 Ibidem. p. 36 236 Ibidem. p. 35 237 Ibidem. p. 41 238 Ibidem. p. 45 239 Ibidem. p. 48.
139
No final da década de 1880, uma nova intelectualidade surgiu na
província do Ceará, foram denominados de Novos do Ceará, esse grupo de
indivíduos era bem mais distinto do que os da Mocidade Cearense, vinham dos
setores médios e baixos da província, profissionais liberais, pequenos
agricultores, funcionários do governo e outros. Suas posturas eram variadas
iam da ortodoxia comtiana até o simbolismo.
As praticas letradas dos Novos do Ceará se diferenciaram daquelas da
Mocidade Cearense, principalmente, no que diz respeito ao modo de ação, pois
evitaram o modelo retórico, acadêmico e científico. Teceram duras críticas aos
setores abastados da sociedade cearense, ao consumismo exacerbado
praticado por essas camadas.
Esse grupo utilizou a literatura para intervir na esfera dos poderes
públicos. Suas práticas discursivas legitimavam posturas contra a ordem
burguesa. A literatura foi para esses sujeitos um importante mecanismo de
combate contra os valores burgueses, cabendo às letras uma função
missionária contra o avanço da ordem burguesa na província do Ceará.
Diferentemente daqueles jovens que compunham a Mocidade Cearense esses
intelectuais não enxergaram na literatura uma instituição regeneradora da
sociedade.
A literatura era para esses sujeitos o elemento capaz de expressar e
compreender o real, sendo ainda um importante meio de ação política,
intelectual, responsável por criar desejos e exercer no público leitor certas
experimentações interpretativas do real. Um dos principais meios de divulgação
dos seus anseios foi o periódico O Pão, que circulou na província do Ceará de
1892 a 1896. Esse jornal se constituiu o principal órgão da Padaria Espiritual.
A Padaria Espiritual surgiu em maio de 1892 e teve como intenção ser
uma sociedade literária de caráter “informal”. Dessa forma ficou conhecida
pelos críticos literários como uma sociedade de boêmios, sarcásticos e
revolucionários. Seus membros combatiam principalmente os valores e
desejos burgueses. O mais radical de seus sócios foi Adolfo Caminha.
140
Caminha escreveu periodicamente na coluna Sabbatina do jornal O
Pão, expressando veemente seu descontentamento com os valores da
burguesia e com os ditames da ordem capitalista, também foi contra o
aformoseamento urbano das cidades da província cearense e contra o
controle e a disciplina pregados pela nova ordem. Contestou tenazmente a
cultura burguesa e a racionalização urbana, características do sistema
capitalista que estava avançando na província, ameaçando os valores
tradicionais e a sociedade rural.
A burguesia ou os setores emergentes da capital cearense foram, sem
sombra de dúvidas, a classe social mais perseguida pelos membros da Padaria
Espiritual. Caminha criticou, principalmente, a lógica do trabalho capitalista e os
modos e valores presentes numa sociedade burguesa. Segundo o autor as
relações trabalhistas presentes na ordem burguesa condicionavam
completamente o trabalho às leis do capital, ou melhor dizendo, aos interesses
do mercado. Fazendo, desse modo, o trabalhador proletário trabalhar somente
para suprir suas necessidades básicas e sustentar as extravagâncias dos
proprietários burgueses. Ainda acusou que numa sociedade burguesa a
satisfação pessoal se dava, apenas, com a aquisição de bens materiais, o que
tornava as pessoas pobres espiritualmente.
Em 1893 o escritor Adolfo Caminha240 publicou A Normalista, obra de
caráter naturalista escrita no Ceará e inspirada nos costumes e práticas sociais
da população local. O crítico literário Sânzio de Azevedo, na introdução de uma
edição do romance, escreveu, “escritor cuja vida não se pode separar
rigorosamente da obra”.241 De fato, os três romances escritos pelo autor, A
Normalista, Bom Crioulo e a Tentação são o resultado de sua insatisfação com
a sociedade que o cercava. A Normalista foi um revide à sociedade
fortalezense do final do século XIX , pelo fato de não ter aceito sua união com
240 Adolfo Ferreira Caminha nasceu na cidade de Aracati no dia 29 de maio de 1867. Ainda jovem ingressou na Escola Naval, sendo Guarda Marinha em 27 de novembro de 1885 e segundo tenente em 27 de novembro de 1888. Participou da agremiação denominada Padaria Espiritual, onde foi expulso em 1896. Também foi jornalista e também funcionário. Publicou os romances A Normalista, Bom Crioulo e Tentação, como também os contos: Judite e Lágrimas de Um Crente e, os poemas: Vôos Incertos além de Cartas Literárias. 241 CAMINHA, Adolfo. A Normalista. Rio de Janeiro: Ed. Tecnoprint, 2001. p. 18.
141
uma mulher casada, o que acabou em escândalo.242 Na obra A Normalista,
Adolfo Caminha buscou salientar uma tendência dos personagens para a
paixão, tara, cobiça e hipocrisia.
A Normalista praticamente gravita em volta de três personagens
principais, são eles: João Marciel da Mata Gadelha, conhecido como João da
Mata; sua afilhada Maria do Carmo e o Zuza, filho do coronel Souza Nunes.
João da Mata é um amanuense de vida modesta:
[...] esgrouvinhado, esguio e alto, carão magro de tísico, com uma cor hepática denunciando vícios de sangue [...] noutros tempos fora mestre-escola no sertão da província, de onde se mudara para a capital por conveniências particulares [...] De uma feita escapou milagrosamente de ser preso por defloramento numa menor [...] por sinal que tinha uma cicatriz oblonga e funda na têmpera esquerda, e não largava o mau de roer o canto das unhas [...] A sua grande paixão, o seu fraco era a Maria do Carmo, a menina de seus olhos, a afilhadinha.243
Maria do Carmo era uma jovem estudante de 15 anos, “esplêndido tipo
de cearense morena, olhos de cor de azeitona onde boiava uma névoa de
ingenuidade, cabelos cumpridos descendo até a altura dos quadris,
desmanchando-se em ondas de seda finíssima [...], carnes rijas, e cuja atenção
volvia-se insistentemente para o Zuza”.244 Zuza, filho do coronel Souza Nunes,
“passava uma vida regalada, usufruindo largamente a fortuna do pai avaliada
em cerca de cem contos de réis. O coronel franqueava a burra ao filho com
uma generosidade verdadeiramente paternal. Queria-o assim mesmo, com
todas as suas manias aristocráticas e afidalgadas, com os seus jeitos
elegantes, arrotando grandeza e bom-gosto...”245
242 O escritor Cavalcanti Proença na biografia de Caminha escreveu, “O oficial da marinha se apaixona pela esposa de um oficial do exército , escândalo grande em cidade pequena. Rivalidade de forças armadas; a moça, de dezenove anos, rompe com o marido, com a sociedade, com os preconceitos, e vai viver com o seu amado. A cidade ficou em brasa, como incêndio em estopa ou serragem. Uma que outra labareda, pequena; o mais, pura brasa, temperatura elevadíssima. Os alunos da escola militar querem “ vingar a farda do exército”, as famílias puritanas exigem que seja transferido do Ceará o profanador dos bons costumes. Faça suas aventura onde quiser menos em Fortaleza... Correm os dias e parece que o escândalo vai terminar ,quando o Ministro chama o oficial a corte. Ele vem, conta a verdade, o Ministro Acha que o assunto nada tem haver com os regulamentos navais, e o casal continua em Fortaleza Feliz... O novo ministro, Almirante Wandenkolk, manda chama-o urgentemente ao Rio. A intriga renasce e Caminha é transferido para um navio que está de saída para a Europa. Tenta explicar ao comandante a impossibilidade de viajar assim, de uma hora para outra, diz que pedirá uma licença para tratar de saúde. Inútil. É acusado de prática de rebeldia... pede demissão da marinha... em fevereiro de 1890 obteve a demissão.” Ver: PROENÇA, Cavacalti. Biografia de Adolfo Caminha. In: CAMINHA, Adolfo, A Normalista, Rio de Janeiro: Ed, Tecnoprint, 2001. 243 Ibidem. p. 16-7. 244 Ibidem. p. 16-7. 245 Ibidem. p. 35
142
Pode-se perceber o funcionamento do romance pela descrição que o
autor faz das qualidades que caracterizam os personagens. João da Mata,
além de ser uma figura que apresenta desvios morais e sinais de desequilíbrio,
tinha a aparência, que de início, já causa repugnância. Sua descrição física
provoca repulsa no leitor. Sua afilhada, ao contrário, é uma figura pura, ingênua
e face à depravação da sociedade, não possui maldade nas suas atitudes. O
Zuza, por sua vez, é um jovem que estava sujeito às manias do pai. Pode-se
considerar Zuza o porta voz do autor no romance. Zuza diz ao pai que
despreza a cidade pequena, chama “canalhismo de província ao falatório sobre
seu namoro”246; e, quando um jornalzinho o calunia, acha a “província
estúpida” e vai para casa com “nojo do Ceará”. Quando melhora o humor, julga
com menos rigor, mas ainda pensa com desgosto na “vida pacata da
província”, em que “se trabalha um quase nada e fala-se muito da vida alheia”.
Como diz Cavalcanti Proença: “com um pouco de deformações, Zuza será, no
fundo, o próprio Caminha...247”
No romance A Normalista, Adolfo Caminha poucas vezes fez referência
à figura do negro. A primeira alusão é feita no quinto capítulo, quando
escreveu: “Então o Zuza [...], disse que estava aborrecido com as mulheres
que se entregavam facilmente. Em Pernambuco, namorava a filha de um barão
[...] Era uma rapariga esplêndida, mas tão depravada, tão poluta que acabou
fugindo com um jóquei do Prado de Pernambuco, um Negro”.248
O segundo momento ocorre no sétimo capítulo, quando a jovem Maria
do Carmo sonha com Romão249:
De repente...! ouviu a voz aguardentada do Romão, o mesmo que fazia a limpeza da cidade, e logo surgiu-lhe em frente a figura nauseabunda e miserável do negro. Era um Romão colossal, ..., nu da cintura pra cima, as espáduas largas, reluzentes de suor, calças arregaçadas até os joelhos, preto como carvão..., os braços levantados segurando na cabeça chata um barril enorme transbordando imundícias!
246 Ibidem. p. 23 247 Ibidem. p. 12. 248 Ibidem. p. 56. 249 A cidade de Fortaleza até o começo do século XX não possuía esgotos nem fossas. Os dejetos das moradias eram armazenados em barris especiais, denominados cartolas, cumoas ou cambrones. Romão fora um desses indivíduos responsáveis por retirar e lançar os excrementos ao mar. Gustavo Barroso nas suas memórias descreveu Romão como sendo um ex-escravo “bestializado pela miséria”. Era “imundo, fedorento e sórdido, anda meio curvo ,arrimado a um varapau, rosnando sempre nomes feios. Sustenta-se de cachaça e come vísceras cruas que compra ou lhe dão na feira, misturados com farinha de mandioca no fundo do seu fedido chapéu de palha de carnaúba...” Ver: BARROSO, Gustavo. Memórias de Gustavo Barroso. 1º volume. Fortaleza: Governo do Estado do Ceará, 1989. p. 183-184.
143
[...] gania o negro no silêncio da noite clara, cambaleando muito bêbado... , o negro atirou ao chão o barril de porcarias, que se despedaçou empestando o ar. E o Romão cambaleando sempre, muito fedorento, atirou-se a ela, rilhando os dentes num frenesi estúpido, beijando-a, besuntando-a... ela, mais que depressa, cobrindo o rosto com as mãos quis fugir, sentindo toda a hediondez daquele corpo imundo, mas o negro deito-a no chão com força e... E Maria do Carmo acordou...”250
No nono capítulo, novamente o negro Romão apareceu nos sonhos de
Maria do Carmo:
...e logo tornou-lhe a aparecer em sonho o negro Romão, com as calças arregaçadas, um barril na cabeça a gritar – arre como! [...] depois o preto deixou cair o barril que se derramou, inundando a calçada de imundícias, e ei-lo montado num cavalo branco, a fazer de palhaço de circo, uivando uma porção de asneiras [...] vendo ainda esboçada na sua imaginação a figura hedionda do negro com os bugalhos injetados, a boca abrindo-se num riso nervoso e alvar, o peito à mostra, a venta chata, ela permaneceu imóvel...251
Adolfo Caminha, no seu segundo romance, Bom Crioulo, publicado pela
primeira vez em 1895, e escrito na cidade do Rio de Janeiro, narrou a história
do negro Amaro, um marujo da Marinha imperial. Amaro era um escravo fugido
que depois de alguns anos servindo na marinha, ocupando o cargo de gajeiro
de proa, se apaixonou por Aleixo, um companheiro de embarcação. A questão
de maior relevo da obra será a paixão do negro Amaro pelo marinheiro Aleixo.
Como afirmou Sânzio de Azevedo:
... Bom Crioulo é o ponto mais alto da obra do escritor cearense: focalizando um caso de homossexualismo entre marinheiros, o romance apresenta logo no primeiro capítulo, o negro Amaro... sendo submetido, com dois outros marujos, ao castigo da chibata, então vigente nos navios de guerra, e contra o qual Adolfo Caminha sempre se insurgiu, desde os tempos de aluno. Amaro estava sendo castigado não por ter andado bêbado, provocando arruaças, o que era seu costume, mas por haver esmurrado um segunda classe...252
O primeiro capítulo da obra praticamente é todo ele uma descrição do
costume presente na marinha imperial de castigar com chibatadas os
marinheiros que não se portassem conforme a “ordem e disciplina” interna.
Tinha-se feito silêncio. Uma outra voz segredava baixinho, timidamente. E agora, no silêncio da mostra, é que se ouvia bem o cachoeirar da água no bojo da corveta caturrando...
— Agüenta! Por fim apareceu o comandante abotoando a luva branca de camurça, teso na
sua farda nova, o ar autoritário, solta a espada num abandono elegante, as dragonas tremulando sobre os ombros em cachos de ouro, todo ele comunicando respeito.
[...] os presos... fez o comandante, sem se alterar, dando um puxão na manga da
farda. [...]
250 CAMINHA, Adolfo. Op. cit., p. 70. 251 Ibidem. p. 87. 252 AZEVEDO, Sânzio Introdução. In: CAMINHA, Adolfo. Bom Crioulo. Fortaleza: Ed. ABC, 2001. p. 04.
144
chegam os presos: um rapazinho magro, muito amarelo, rosto liso completamente imberbe; outro regulando a mesma idade, mas um pouco moreno, também grumete; e um primeira classe, negro alto, espadaúdo, cara lisa.
Vinham em ferros, um a um, arrastando os pés num passo curto e demorado, e encaminharam-se para o meio do convés, fazendo alto a um aceno do comandante....253
O ambiente em que se passou o primeiro capítulo do romance Bom
Crioulo foi o interior de uma corveta da marinha imperial. Adolfo Caminha, por
já ter sido oficial e conhecer bem esse tipo de embarcação, descreveu com
minúcias a parte interna do navio; como também os tripulantes e suas
atividades. A tripulação da corveta era em grande parte composta de negros e
mulatos, os quais eram denominados por Caminha de: “moreno carregado, cor
de bronze”, “moreno cor de jenipapo”, “mulatinho”, Bom-Crioulo”, “marinheiro
negro” e outras designações da mesma natureza.
Das últimas décadas do século XIX até as primeiras do século XX a
marinha possibilitou a escravos e ex-escravos vislumbrar aspectos promissores
referentes ao futuro. Pode-se considerar a liberdade o mais valioso deles.
Adolfo Caminha descreveu satisfatoriamente o que poderia significar para o ex-
escravo a liberdade:
[...] e, assim que a embarcação largou do cais a um impulso forte, o novo homem do mar sentiu pela primeira vez toda a alma vibrar a uma maneira extraordinária, como se lhe houvessem injetado no sangue de africano a frescura deliciosa de um fluido misterioso. A liberdade entrava-lhe pelos olhos, pelos ouvidos, pelas narinas, por todos os poros, enfim, como a própria alma da luz, do som, do odor e de todas as coisas etéreas... enfim todo o conjunto da paisagem comunicava-lhe uma sensação tão forte de liberdade e vida, que até tinha vontade de chorar...254.
Outro aspecto promissor para o ex-escravo era o ofício de marinheiro.
Tal ofício, mesmo estando circunscrito dentro de um rigor disciplinar, permitiu
ao liberto vivenciar outro modo de vida. Ser marinheiro nessa época era uma
garantia para o ex-escravo de ter uma profissão remunerada como também
direito à boa alimentação e moradia. O negro Amaro, personagem principal do
romance de Caminha, é um negro fugido que encontrou na marinha um
ambiente mais digno e esperançoso. Descreveu Caminha:
A disciplina militar, com todos os seus excessos, não se comparava ao penoso trabalho da fazenda, ao regime terrível do tronco e do chicote. Havia muita diferença... Ali ao menos, na fortaleza, ele tinha sua maca, seu travesseiro, sua roupa limpa, e comia bem, a fartar, como qualquer pessoa... ali não se olhava a cor ou a raça do
253 CAMINHA, Adolfo. Bom Crioulo .Op. cit., p. 09-10. 254 Ibidem. p.18-19.
145
marinheiro; todos eram iguais, tinham as mesmas regalias – o mesmo serviço, a mesma folga.255
Amaro era um negro fugido vindo “ninguém sabe donde, metido em
roupas de algodãozinho, trouxa ao ombro, grande chapéu de palha na
cabeça...”256 Caminha começou o segundo capítulo de Bom Crioulo
descrevendo a aparência e condição de Amaro. A imagem descrita pelo autor
condiz com aquela dos escravos empregados no eito das fazendas de café do
Sul do Brasil. O personagem principal do romance de Caminha, Bom Crioulo, é
um negro fugido com pouca idade, que encontrou na marinha imperial
esperança para seu futuro. Eis a descrição da fuga de Amaro: “[...] menor (teria
18 anos), ignorando as dificuldades por que passa todo homem de cor em um
meio escravocrata e profundamente superficial como era a corte – ingênuo e
resoluto, abalou sem ao menos pensar nas conseqüências da fuga.”257
Nesse tempo o negro fugido preocupava as populações citadinas, ao
ponto de ser literalmente caçados como animal, quando o caso era outro, e o
negro se embrenhava na mata, passava-se a caça-lo de espora e garrucha,
mato adentro. “saltando precipícios, atravessando rios a nado, galgando
montanha ... logo que o fato era denunciado – aqui-del-rei! – enchiam-se as
florestas de tropel, saíam estafetas pelo sertão num clamor estranho, medindo
pegadas, açulando cães, rompendo cafezais. Até fechavam-se as portas, com
medo... Jornais traziam na terceira página a figura de um “moleque” em fuga,
trouxa ao ombro, e, por baixo, o anúncio, quase sempre em tipo cheio,
minucioso, explícito, com todos os detalhes, indicando estatura, idade, lesões,
vícios, e outras características do fugitivo.“258
Esse é um dos trechos mais expressivos do romance no que diz respeito
ao tratamento brutal deferido pelos senhores contra os escravos fugidos.
Amaro, ao fugir para a cidade se deparou com um mundo completamente
estranho e inóspito a pessoas como ele. Caminha evidenciou a terrível situação
do escravo fugido oriundo das fazendas de café, ao encontrar nas cidades uma
realidade tão hostil ou mais do que aquela vivida quando escravo do eito.
Adolfo Caminha teve como intenção ao escrever Bom-Crioulo, evidenciar, 255 Ibidem. p. 19. 256 Ibidem. p. 23 257 Ibidem. p. 23
146
assim como Aluízio Azevedo na obra O Mulato, determinadas práticas e
costumes presentes na sociedade escravista.
Apesar de Bom-Crioulo ter sido escrito e publicado em 1895 alguns anos
após a abolição da escravidão no Brasil, a sociedade vivida por Adolfo
Caminha ainda guardava traços profundos do sistema servil. Principalmente,
aqueles relativos ao preconceito de cor.
Nesse sentido entendemos que Adolfo Caminha, na obra Bom Crioulo,
alcançou seu intento – de denúncia e evidência de determinadas
peculiaridades existentes numa sociedade escravista.
A obra, quando publicada pela primeira vez, sofreu duras críticas da
sociedade da época. Escreveu Antônio Sales colega de Adolfo Caminha: “uma
novela escabrosa e pouco feliz em que, a pretexto de fabular recordação de
sua vida de marinheiro, o autor desanca a classe que o abandonou e
repeliu...”259. E mesmo depois de passados alguns anos, já no século XX,
escritores insistiram em atacar a obra. Escreveu em 1959 a escritora Lúcia
Miguel-Pereira: “o tema, já de si abjeto, é tratado de modo que o torna
extremamente chocante, com pormenores de todo em todo desnecessários”.260
As críticas eram devidas não ao fato de Caminha ter evidenciado questões
relativas à escravidão, mas pelo fato do romance abordar o homossexualismo,
tema tabu na literatura brasileira.
258 Ibidem. p. 18. 259 SALES, Antônio. O Ceará Literário. In: Almanaque do Ceará. Fortaleza: Tipografia Gadelha, 1932. p. 444. 260 PEREIRA, Lúcia Miguel. Adolfo Caminha. Rio de Janeiro: Agir, 1960. p. 09.
147
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nossa intenção inicial foi, através da análise de documentos oficiais,
dentre eles correspondências expedidas e ofícios expedidos, como também
anais da assembléia legislativa, e ainda, através de periódicos da época,
entender o processo abolicionista desencadeado na província do Ceará a partir
da segunda metade do século XIX. Buscamos demonstrar alguns fatores que
consideramos serem importantes para o entendimento da abolição prematura
da escravidão dos escravos na província do Ceará, no dia 25 de março de
1884.
Um desses fatores foi sem sombra de dúvidas a seca que assolou a
província de 1877 a 1879. Alguns memorialistas contemporâneos do evento
foram responsáveis por deixar registrados os impactos causados pelo
fenômeno na vida social, política e econômica da província. Consideramos
Rodolfo Teófilo o principal deles. Na sua clássica obra, A fome, retratou com
precisão os estragos causados por tão nefasto acontecimento. O personagem
principal da obra, um agricultor interiorano, ao ver-se na aflição causada pela
estiagem, sem ter como sobreviver, sem água nem comida, decidiu migrar
juntamente com a família para a capital da província, mas sem rendimento
nenhum para realizar tal empreitada, seu intento tornou-se quase impossível,
então decidiu vender o único bem que lhe restou, o escravo.
Foi comum a venda de escravos para outras províncias do império,
principalmente para aquelas localizadas no sul, que despontavam no cenário
nacional desenvolvendo o plantio de café. Durante o período em que durou a
estiagem um dos principais rendimentos dos cofres públicos da província era
derivado dos impostos cobrados sobre as transações de venda dos cativos.
Nesse sentido, configurou-se o tráfico interprovincial como outro fator
preponderante no processo precoce da abolição no Ceará. Um terceiro
elemento considerado foram as alforrias concedidas por senhores,
principalmente durante a guerra do Paraguai em 1865. O senhor, para se ver
livre da obrigação de servir na guerra alforriou seus cativos e os enviou em seu
148
lugar. A província do Ceará foi responsável por mandar 350 cativos para
lutarem no Paraguai. As demais alforrias concedidas aos escravos foram pagas
com o auxílio do governo imperial que deu preferência àqueles escravos
menores de idade e do sexo feminino.
O governo imperial foi responsável por distribuir cotas à província do
Ceará com o objetivo de auxiliar nas alforrias dos cativos, a partir de 1871.
Essas cotas eram provenientes do fundo de emancipação, dos impostos
cobrados sobre as transações de compra, venda e transferência de escravos,
como também de loterias e multas. A primeira cota foi distribuída na província
em 1876, responsável por manumitir 110 escravos, sendo a maioria do sexo
feminino.
Entendemos que, quando as libertadoras surgiram, o sistema escravista
cearense já estava em estado bem avançado de desestruturação devido aos
fatores expostos acima. Os membros das libertadoras eram indivíduos oriundos
de camadas abastadas da sociedade cearense, inseridos num contexto urbano
e literário, onde os ideais de desenvolvimento social, político e econômico
orientavam suas idéias, intenções e atitudes. Eram leitores, dentre outros, de
Darwin, Spencer e Conte, respectivamente teóricos do evolucionismo,
determinismo e positivismo. Interpretavam as concepções desses autores a
seu modo aplicando-as à realidade vivenciada na província.
Contudo, buscaram mudar a estrutura de produção de modo que outros
setores da sociedade e não somente os grandes proprietários de terras, mas
também pequenos e médios comerciantes, pequenos e médios proprietários de
terras e profissionais liberais participassem da conjuntura política da província,
tentando obter maior poder de decisão em questões de ordem política, social e
econômica.
Grande parte, se não a maioria dos membros das libertadoras
cearenses, principalmente a Perseverança e Porvir e Libertadora Cearense
pretendiam uma abolição conduzida por eles, os únicos capazes de
promoverem a extinção do elemento servil na província sem causar o pânico e
149
o caos na sociedade. Utilizaram a imprensa como meio de divulgar seus
anseios e ideais políticos, sociais e econômicos.
Outro foco de estudo que privilegiamos foi a atuação de alguns
indivíduos da Libertadora Cearense em atividades de cunho ilegal. Os
abolicionistas Isac e José do Amaral, Antônio Bezerra, Carlos Jataí e Pedro
Arthur foram responsáveis por realizar, com a ajuda dos jangadeiros, atividades
consideradas ilícitas pelas normas legais da época, como impedir que escravos
com destino às províncias do sul do império embarcassem no vapor Espírito
Santo. Em outro momento entraram em contado com os jangadeiros,
responsáveis por realizar a travessia do trapiche para os navios, e pediram que
eles aderissem ao movimento, interrompendo o transporte dos cativos. Ainda
atuaram auxiliando fugas e roubando escravos, enviando-os para sítios
localizados nas redondezas da capital da província.
Entretanto ressaltamos também a atuação dos cativos no processo
abolicionista desenvolvido na província do Ceará. Através da lei 2040 foi
possível ao escravo lutar pela sua liberdade no campo jurídico, âmbito até
então considerado exclusivo dos senhores. A lei 2040 foi fruto de controversos
debates e projetos, determinados e discutidos em sessões parlamentares.
Desde a primeira vez que a discussão foi introduzida na Assembléia Geral, em
1850, pelo deputado cearense Pedro Pereira Guimarães, até sua promulgação,
passaram-se 21 anos.
A lei teve como intenção acalmar os ânimos dos senhores de escravos
procurando resguardar seus interesses, ao conceder-lhes indenizações no
tocante à perda de sua propriedade e ainda assim realizando uma política
emancipacionistas lenta e gradual. Entretanto, a lei 2040 permitiu também aos
escravos e advogados abolicionistas construírem estratégias políticas de
avanços e recuos na defesa de escravos que, pela lei, buscavam a liberdade.
Insistimos em afirmar que a lei 2040 foi, principalmente, uma conquista
para os escravos, pois permitiu incluí-los, ainda que parcialmente, no campo
jurídico. A lei proporcionou ao escravo questionar o direito de legitimidade e
150
propriedade dos senhores que, em determinadas situações, se viram obrigados
a conceder alforrias a seus escravos.
A lei 2040 permitiu ao escravo, através da experiência cotidiana do
cativeiro, construir estratégias de luta baseadas na consciência própria de seus
direitos e fazendo de tudo para alcançá-los.
As ações de liberdade, ricas de nuanças e determinadas peculiaridades,
permitiram-nos perceber as disputas envolvendo senhores e escravos no
âmbito jurídico e captar o escravo obstinado em fazer prevalecer seu direito de
homem livre. O processo de Bernardo é significativo nesse sentido, como
também os de José, Joaquim, Alexandrina, Maria, Maçaria e os demais
analisados no decorrer do trabalho. Não perdemos de vista que as ações
judiciais jamais podem ser vistas uniformemente, mas sim como um campo de
luta, onde estão em jogo múltiplos interesses, principalmente os anseios de
duas classes antagônicas.
Outros sujeitos sociais que também apareceram nesses litígios foram os
advogados, curadores e juízes. Os documentos que pesquisamos não nos
permitiram conhecer a dimensão do envolvimento desses sujeitos no
direcionamento dos processos e se as ações foram intentadas inicialmente
pelos escravos ou pelos advogados abolicionistas. Entretanto, foi possível
perceber a destreza desses indivíduos em conduzir os processos, como
tivemos a oportunidade de ver na ação intentada por Benedicta, através de seu
curador Justino Francisco Xavier. No que se refere aos julgamentos
conduzidos pelos juízes é possível aceitar que nem sempre suas decisões se
pautaram no mérito da lei, mas que outros motivos os impeliram a fazer uma
leitura e interpretação da lei que arbitrava a favor de interesses nos
testamentos declarados, mas possíveis de encontrar acolhimento nos
interstícios dos termos e da redação da lei.
A literatura foi um ambiente profícuo de manifestação contra o
escravismo. Foi muito bem utilizada por abolicionistas e outros sujeitos. O
periódico Libertador, órgão da Sociedade Cearense Libertadora, foi
responsável por publicar numa de suas colunas denominada Litteratura os
151
sentimentos e anseios de determinados indivíduos que se identificavam com a
causa abolicionista na província. Antônio Bezerra foi um dos principais
abolicionistas que escreveu nessa coluna. Suas poesias foram uma espécie de
missiva aos colegas. Os incitou a lutar pelo futuro da nação. Suas poesias são
de enaltecimento e de cunho fortemente saudosista. Pregou o fim da
escravidão como forma de se chegar ao progresso. Nessa coluna poucas são
as poesias que se referem ao escravo enquanto indivíduo que fala da sua
tristeza, dos seus sentimentos. Melo Morais e Juvenal Galeno foram dos
poucos que escreveram nessa coluna e deram atenção ao escravo, liberto ou
libertando, entendendo-os enquanto indivíduos que pensam e agem como tais.
Descreveram as amarguras, emoções, paixões e gostos experimentados pelos
cativos.
Os abolicionistas não utilizaram somente a poesia como meio de
criticarem o sistema escravista. O romance naturalista também foi um
importante instrumento de contestação. O Mulato, de Aluízio Azevedo, escrito
em 1881, foi preciso em evidenciar o preconceito de cor existente na sua
província natal, São Luiz. A obra foi um libelo contra os costumes e práticas
escravistas presentes na sociedade maranhense na época. Adolfo Caminha,
nas obras A Normalista e, principalmente, Bom Crioulo, também evidenciou
determinados aspectos vivenciados por escravos e libertos na sociedade da
época.
Infelizmente devido ao limitado prazo de conclusão da pesquisa não foi
possível deter-se na compulsão e análise mais acurada de Processos Crimes,
um tipo de fonte que consideramos extremamente esclarecedora das práticas
e experiências de escravos e senhores no sistema escravista. Vamos aguardar
um momento adequado para realizar um trabalho mais detalhado com tais
documentos. Como os Processos Crimes, consideramos de muito valor social,
no que diz respeito as práticas escravistas do pós-abolição, as Ações de
Liberdade. Apesar de termos desenvolvido um estudo com as ações que
tínhamos em nosso poder, muitas outras ainda se encontram depositadas em
caixas lacradas e vedadas ao público pesquisador no Arquivo Público do
Estado do Ceará. Acreditamos que quando houver boa vontade das
autoridades responsáveis em investir em pessoal e na melhor manutenção do
152
Arquivo, muitas ações virão à tona e, assim, será possível estudar com mais
acuidade as relações estabelecidas entre os vários sujeitos presentes nessa
contenda judiciária. Com relação ao estudo dos trabalhos literários que tratam
da condição do africano e do afro-descente no Ceará acreditamos ser um
campo promissor que aguarda por ser melhor explorado.
153
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Fundo: Câmara Municipal, série: Correspondências expedidas, período:
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162
ANEXOS ANEXO A – Lei N 2040 – 28 de setembro de 1871
Declara de condição livre os filhos de mulher escrava nascerem desde a
data desta lei, libertos os escravos da nação e outros, e providencia sobre a
criação e tratamento daqueles filhos menores e sobre a libertação anual de
escravos.
A princesa imperial regente, em nome de sua majestade, o senhor D.
Pedro II, faz saber a todos os súbditos do Império que a assembléia geral
decretou e ela sancionou a lei seguinte:
Art.1o Os filhos da mulher escrava, que nascerem no Império desde a
data desta lei, serão considerados de condição livre.
Parágrafo 1o Os ditos filhos menores ficarão em poder e sob a
autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão obrigação de criá-los e
tratá-los até a idade de oito anos completos.
Chegando o filho da escrava a esta idade o senhor da mãe terá a opção,
ou de receber do Estado a indenização de 600$000, ou de utilizar-se dos
serviços do menor até a idade de 21 anos completos.
No primeiro caso o governo receberá o menor, e lhe dará destino, em
conformidade da presente lei.
A indenização pecuniária acima fixada será paga em títulos de renda
com o juro anual de 6%, os quais se considerarão extintos no fim de 30 anos.
A declaração do senhor deverá ser feita dentro de 30 dias, a contar
daquele em que o menor chega a idade de oito anos e, se a não fizer então,
ficará entendido que opta pelo arbítrio de utilizar-se dos serviços dos mesmo
menor.
Parágrafo 2o Qualquer desses menores poderá remir-se do ônus de
servir, mediante prévia indenização pecuniária, que por si ou por outro ofereça
ao senhor de sua mãe, procedendo-se a avaliação dos serviços pelo tempo
que lhe restar a preencher, se não houver acordo sobre o quantum da mesma
indenização.
163
Parágrafo 3o Cabe também aos senhores criar e tratar os filhos que as
filhas de suas escravas possam Ter quando aquelas estiverem prestando
serviçso.
Tal obrigação, porém, cessará logo que findar a prestação dos serviços
das mães. Se esta falecer dentro daquele prazo, seus filhos poderão ser postos
á disposição do governo.
Parágrafo 4o Se a mulher escrava obtiver liberdade, os filhos menores
de oito anos, que estejam em poder do senhor dela por virtude do parágrafo 1o
, lhe serão entregues, exceto se preferir deixá-los, e o senhor anuir a ficar com
eles
Parágrafo 5o No caso de alienação da mulher escrava, seus filhos
livres, menores de 12 anos, a acompanharão, ficando o senhor da mesma
escrava sub-rogado nos direitos e obrigações do antecessor.
Parágrafo 6o Cessa a prestação de serviços dos filhos das escravas
antes do prazo marcado no parágrafo 1o , se, por sentença do juízo criminal,
reconhecer-se que os senhores das mães os maltratam , infligindo-lhes
castigos excessivos.
Parágrafo 7o O direito conferido aos senhores no parágrafo 1o transferi-
se nos casos de sucessão necessária, devendo o filho da escrava prestar
serviços a pessoa a quem nas partilhas pertencer a mesma escrava.
Art. 2o O governo poderá entregar a associações por ele autorizadas os
filhos das escravas, nascidos desde a data desta lei, que sejam cedidos ou
abandonados pelos senhores delas, ou tirados do poder destes em virtude do
artigo primeiro parágrafo 6o .
Parágrafo 1o As ditas associações terão direito aos serviços gratuitos
dos menores até a idade de 21 anos completos e poderão alugar esses
serviços, mas serão obrigados:
1o A criar e tratar os mesmos menores
2o A constituir para cada um deles um pecúlio, consistente na quota que
para este fim for reservada nos respectivos estatutos.
3o A procurar-lhes, findo o tempo de serviços, apropriada colocação.
Parágrafo 2o As associações de que trata o parágrafo antecedente serão
sujeitas a inspeção dos juizes de órfãos, quanto aos menores.
164
Parágrafo 3o A disposição desse artigo é aplicável as casas de expostos,
e as pessoas a quem os juizes de órfãos encarregarem a educação dos ditos
menores, na falta de associações ou estabelecimentos criados para este fim.
Parágrafo 4o Fica salvo ao governo o direito de mandar recolher os
referidos menores aos estabelecimentos públicos, transferindo-se nesse caso
para o Estado as obrigações que o parágrafo 1o impõe ás associações
autorizadas.
Artigo 3º. Serão anualmente libertados em cada província do Império
tantos escravos quanto corresponderem a quota anualmente disponível do
fundo destinado para a emancipação.
Parágrafo 1o o fundo de emancipação compõe-se:
1o Da taxa de escravos
2o Dos impostos gerais sobre transmissão de propriedade de escravos.
3o Do produto de seis loterias anuais, isentas de impostos, e da décima
parte das que forem concedidas d'ora em diante para correrem na capital do
Império.
4o Das multas impostas em virtude desta lei
5o Das quotas que sejam marcadas no orçamento geral e nos provinciais
e municipais.
6o De subscrições, doações e legados com esse destino.
Parágrafo 2o As quotas marcadas no orçamento provinciais e
municipais, assim como as subscrições, doações e legados com destino local,
serão aplicadas a emancipação nas províncias, comarcas, municípios e
freguesias designadas.
Artigo 4o É permitido ao escravo a formação de um pecúlio com o que
lhe provier de doações, legados e heranças, e com o que, por consentimento
do senhor, obtiver de seu trabalho e economias. O governo providenciará nos
regulamentos sobre a colocação e segurança do mesmo pecúlio.
Parágrafo 1o Por morte do escravo metade do seu pecúlio pertencerá
ao cônjuge sobrevivente, se o houver, e a outra metade se transmitira a seus
herdeiros, na forma da lei civil. Na falta de herdeiros, o pecúlio será aplicado ao
fundo de emancipação de que trata o artigo 3o .
Parágrafo 2o O escravo que, por meio de seu pecúlio, obtiver meios
para indenização de seu valor, tem direito a alforria, se a indenização não for
165
fixada por acordo o será por arbitramento. Nas vendas judiciais ou nos
inventários o preço da alforria será o da avaliação.
Parágrafo 3o É, outro sim, permitido ao escravo, em favor de sua
liberdade, contratar com terceiros a prestação de futuros serviços por tempo
que não exceda de sete anos, mediante o consentimento do senhor e
aprovação do juiz de órfãos.
Parágrafo 4o O escravo que pertencer a condôminos, e for libertado por
um destes, terá direito a sua alforria, indenizando os outros senhores da quota
do valor que lhes pertencer. Esta indenização poderá ser paga com serviços
prestados por prazo não mais de sete anos, em conformidade do parágrafo
antecedente.
Parágrafo 5o A alforria com a cláusula de serviços durante certo tempo
não ficará anulada pela falta de implemento da mesma clausula, mas o liberto
será compelido a cumpri-la por meio de trabalho nos estabelecimentos
públicos ou por contratos de serviços a particulares.
Parágrafo 6o As alforrias, quer gratuitas, quer a titulo oneroso, serão
isentas de quaisquer direitos, emolumentos ou despesas.
Parágrafo 7o Em qualquer caso de alienação ou transmissão de
escravos é proibido, sob pena de nulidade, repassar os cônjuges, e os filhos
menores de 12 anos, do pai ou mãe.
Parágrafo 8o Se a divisão de bens entre herdeiros ou sócios não
comportar a reunião de uma família, e nenhum deles preferir conservá-la sob o
seu domínio, mediante reposição da cota parte dos outros interessados, será a
mesma família vendida e o seu produto rateado.
Parágrafo 9o Fica derrogada a ord. Liv.4o , TIT.63, na parte que revoga
as alforrias por ingratidão.
Artigo 5º. Serão sujeitas a inspeção dos juizes de órfãos as sociedades
de emancipação já organizadas e que de futuro se organizarem.
Parágrafo único As ditas sociedades terão privilégios sobre os serviços
dos escravos que libertarem, para indenização do preço da compra.
Artigo 6o Serão declarados libertos:
Parágrafo 1o Os escravos pertencentes a nação, dando-lhes o governo
a ocupação que julgar conveniente.
Parágrafo 2o Os escravos dados em usufruto a coroa
166
Parágrafo 3o Os escravos das heranças vagas
Parágrafo 4o Os escravos abandonados por seus senhores se estes o
abandonarem por inválidos, serão obrigados a alimentá-los, salvo o caso de
penúria, sendo os alimentos taxados pelo juiz de órfãos.
Parágrafo 5o Em geral os escravos libertados em virtude desta lei ficam
durante cinco anos sob a inspeção do governo. Eles são obrigados a contratar
seus serviços sob pena de serem constrangidos, se viverem vadios, a trabalhar
nos estabelecimentos públicos.
Cessará, porém, o constrangimento do trabalho sempre que o liberto
exibir contrato de serviços.
Artigo 7º. Nas causas em favor da liberdade
Parágrafo 1o O processo será sumário
Parágrafo 2o Haverá apelações ex-ofício quando as decisões forem
contrárias a liberdade.
Artigo 8o. O governo mandará proceder a matrícula especial de todos os
escravos existentes no Império com declaração do nome, sexo, estado, aptidão
para o trabalho e filiação de cada um, se for conhecido.
Parágrafo 1º O prazo em que deve começar a encerrar-se a matrícula
será anunciado com a maior antecedência possível por meio de editais
repetidos, nos quais será inserta a disposição do parágrafo seguinte:
Parágrafo 2o Os escravos que, por culpa ou omissão dos interessados,
não forem dado a matrícula até um ano depois do encerramento desta, serão
por este fato considerados libertos.
Parágrafo 3o Pela matrícula de cada escravo pagará o senhor por uma
vez somente o emolumento de 500 reis, se o fizer dentro do prazo marcado, e
de 1$000 se exceder o dito prazo. O produto deste emolumento será destinado
as despesas da matrícula o excedente ao fundo de emacipação
Parágrafo 4o Serão também matriculados em livros distintos os filhos da
mulher escrava que por esta lei ficam livres.
Incorrerão os senhores omissos, por negligência, na multa de 100$ a
200$, repetida tantas vezes quantas forem os indivíduos omitidos, e, por
fraude, nas penas do artigo 179 do código criminal.
167
Parágrafo 5o Os párocos serão obrigados a ter livros especiais para o
registro dos nascimentos e óbitos dos filhos de escravos, nascidas desde a
data desta lei. Cada omissão sujeitará aos párocos a multa de 100$000.
Artigo 9o O governo em seus regulamentos poderá impor multas até
100$ e penas de prisão simples até um mês
Artigo 10o Ficam revogadas as disposições em contrário.
Manda portanto a todas as autoridades, a quem o conhecimento e
execução da referida lei pertencer, que a cumpram e façam cumprir e guardar
tão inteiramente como nela se contém. O secretário de Estado dos negócios da
Agricultura, Comércio e obras públicas o façam imprimir, publicar e correr.
Dada no palácio do Rio de Janeiro, aos vinte e oito de setembro de mil
oitocentos e setenta e um, qüinquagésimo da independência do império.
Princesa Imperial Regente.
Theodoro Machado Freire Pereira da Silva
Para vossa alteza imperial ou
O conselheiro José Agostinho Moreira Guimarães a fez.
Chancellaria-mor do Império – Francisco de Paula de Negreiros
Sayão Lobato.
Transitou em 28 de setembro de 1871 –André Augusto de
Padua Fleury.∗
∗ Colleção de Leis do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Nacional,1871.
168
ANEXO B – Projetado apresentado pelo Deputado Pedro Pereira da Silva Guimarães no ano de 1852 na Assembléia Legislativa do Império.
A ASSEMBLÉIA GERAL LEGISLATIVA DECRETA:
Art.1o - São livres da data da presente lei em diante todos os que no
brasil nascerem de ventre escravo.
Art.2o - São igualmente considerados livres os que nascidos em outra
parte vierem para o Brasil da mesma data em diante.
Art.3o - Todo aquele que criar desde o nascimento até a idade de 7 anos
qualquer dos nascidos no art. 1o , o terá por outro tanto tempo para servir,
e só então aos 14 anos ficará emancipado para bem seguir a vida que lhe
padecer.
Art.4o – Todo o escravo que der em remissão de seu cativeiro uma soma
igual ao preço que ele tiver custado a seu senhor, ou este o houvesse por
título oneroso ou gratuito, será o senhor obrigado a passar carta de
liberdade, sob pena do art. 139 do código criminal.
Art. 5o - Não havendo preço estipulado, o valor do escravo para ser
alforriado será designado por árbitros, um dos quais será o promotor
público da Comarca respectiva.
Art. 6o - Nenhum escravo casado será vendido, sem que seja igualmente
á mesma pessoa o outro consorte.
Art. 7o - O governo fica autorizado a dar os regulamentos precisos para a
boa execução da presente lei e igualmente a criar os estabelecimentos
que forem necessários para a criação dos que nascidos da data desta lei
em diante forem abandonados pelos senhores dos escravos.
Art. 8o - ficam revogadas as leis e disposições em contrário∗.
∗ Apud. GIRÃO, Raimundo. A Abolição no Ceará. Fortaleza: Prefeitura Municipal de Maracanaú, 1988, p. 36-37.
169
ANEXO C – Decreto N 4960 – De 08 de maio de 1872 Altera o regulamento approvado pelo decreto n 4835 do 1o de dezembro
de 1871 na parte relativa a matrícula dos filhos livres de mulher escrava
Para evitar que a lei n 2040 de 28 de setembro do anno passado se
torne vexatória em sua execução, e que incorram na penalidade nella
communada as pessoas que de boa fé deixarem de matricular no mez de abril
próximo findo, os filhos livres de mulher escrava, nascidos até 24 de dezembro
do ano passado, hei por bem decretar.
Art. 1o Serão dadas as matrículas respectivas, até o fim de agosto de
1872, todos os filhos de mulher escrava nascidas desde o dia 28 de setembro
do anno passado até 31 do corrente mez de maio: e desta data em diante
dentro do prazo de trez mezes contados do nascimento. Os senhores das
escravas declararão nas relações que devem apresentar, quaes os menores
livres que tenham fallecido antes de serem dadas as matrículas.
Art.2o As relações dos matriculados até junho do corrente ano serão
enviadas no mez de outubro próximo futuro a diretório geral de estatística e aos
juizes de órfãos.
Art.3o Ficam revogados o art. 26 e a Segunda parte do art. 29 do
regulamento aprovado pelo decreto n 4835 de 1o de dezembro do anno
passado.
O Barão de Itaúna, no meu conselho, senador do Império, ministro e
secretário de Estado dos negócios da agricultura, commercio, obras públicas,
assim o tenha entendido e faça executar. Palácio do Rio de Janeiro, em oito de
maio de mil oitocentos e setenta e dois, quinquagésimo primeiro da
independência do Império.
Com a rubrica de sua majestade o Imperador Barão de Itaúna.∗
∗ Colleção de Leis do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Nacional,1872.
170
ANEXO D – Acta da Sessão Magna realizada pela Associação Perseverança e Porvir que celebrou a criação da Sociedade Cearense Libertadora
Aos vinte dias do mez de maio do anno civil de mil oitocentos e oitenta
e oito, n'esta cidade de Fortaleza, capital da heroica província do Ceará, em
um dos salões do club iracema, a uma hora da tarde, o cidadão José Correia
do Amaral abrio a presente sessão magna.
Que esta democratica associação, progenitora dessa grande epopeia
civica que opulentou a historia patria sob o nome libertadora cearense,
solenemmente reconhecida ao governo imperial, que fez da vontade nacional
a ponte de apoio de seu programa de acção e reacção, vem prestar as suas
homenagens de amor e de gratidão aos poderes constituidos que fizeram, pela
vez primeira no segundo reinado, da opinião do paíz o mote de ordem para a
nova evolução do progresso, da reorganização politica e social do povo
brazileiro.
A – perseverança e porvir – que abrio diante da noite do seo paiz
escravisado a primeira pagina da libertação do Ceará, que tomou, na fila dos
mais fortes da vanguarda, lugar perpetuo em todas as lutas d'esses imortais
triunphadores, conquistando – posição que lhe assignala a rapida e gloriosa
historia d'essa evolução humanitaria, que foi começo d'essa grande reforma
realisada entre flores e hymnos por honrra nossa e amor da humanidade; vem,
agora, com o justo direito que lhe conferem os factos ainda palpitantes de
emoção na memoria publica, em pleno dia da gloria, diante da confraternização
comum de todos os brazileiros, saudar a patria livre e engrandecida perante o
congresso civico das nacionalidades
E justo que aquelles liberrimos carbonarios, que começaram a lucta e
evoluiram n'esta esplendida campanha, tendo por armas de combate a penna
como espada, a opinião como artilharia o povo como exercito e a imprensa
como campo aberto e vasto das vitorias proficuas; é justo, sim, que venham
com essa assemblea fortalecida e livre congratular-se com o ponto final do
triunfo completo da liberdade...
171
Causou-nos um jubilo inefavel a espectação desse deslumbramento e
estupendo facto por nostão ansiosamente esperado:- a sanção da aurea lei
que iniciou a presente legislatura; desse projeto de dez dias que deslumbrou
as duas casas do parlamento percorrendo apenas a distancia que identificou
a coroa com o povo, a lei com a opinião, de cujo contacto nasceo como
cohesão social a igualdade brazileira:
- o sol da patria que alevantou-se por sobre a Bahia da
guanabara na aurea data da redempção nacional, devia Ter as
mesmas cores ardentes e iradas do sol de 14 de julho na França ,
da alvorada do 1o de janeiro no Acarape, da nossa aurora do 25 de
março
- a pequena história da perseverança e porvir- associação
constituída sob os mais solidos preceitos de confraternidade moral
e social para fins economicos, derivou, por uma gloriosa fatalidade,
para a ideia libertadora em cuja evolução se fundio, alistando os
mais activos de seus consorcios a sua primogenitura obra social – a
libertadora cearense.
- Organizada para negócios economicos e sem fim comercial
teve sempre em vista a repulsão do tráfico dos negros e d'essa
idéia que faz cohesão natural com a data de sua constituição, veio a
creação do peculio para escravos, a libertação por unidade a
construção popular da libertadora, a emancipação dos municipios ,a
redempção da provincia, a abolição total da escravidão no Brasil∗.
∗ Acta da Sessão Magna realizada pela Associação Perseverança e Porvir que celebrou a criação da Sociedade Cearense Libertadora . Fortaleza: Typ universal, 1890.
172