UNIVERSIDADE DE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA
PPGH – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU
MESTRADO EM HISTÓRIA
PABLO MICHEL CANDIDO ALVES DE MAGALHÃES
OLHARES DA CIDADE: SENTIDOS E REPRESENTAÇÕES NAS MEMÓRIAS
DAS NAVEGAÇÕES EM JUAZEIRO/BA, DÉCADAS DE 1940-1970.
FEIRA DE SANTANA/BA
2014
PABLO MICHEL CANDIDO ALVES DE MAGALHÃES
OLHARES DA CIDADE: SENTIDOS E REPRESENTAÇÕES NAS MEMÓRIAS
DAS NAVEGAÇÕES EM JUAZEIRO/BA, DÉCADAS DE 1940-1970.
Dissertação apresentada como exigência parcial do grau de mestre em História à banca examinadora da Universidade Estadual de Feira de Santana, sob orientação do Prof. Dr. Rinaldo César Nascimento Leite.
FEIRA DE SANTANA/BA
2014
PABLO MICHEL CANDIDO ALVES DE MAGALHÃES
OLHARES DA CIDADE: SENTIDOS E REPRESENTAÇÕES NAS MEMÓRIAS
DAS NAVEGAÇÕES EM JUAZEIRO/BA, DÉCADAS DE 1940-1970.
Dissertação apresentada como exigência parcial do grau de mestre em História à banca examinadora da Universidade Estadual de Feira de Santana, sob orientação do Prof. Dr. Rinaldo César Nascimento Leite.
Aprovada em 03 de Junho de 2014.
Banca examinadora
Prof. Dr. Rinaldo César Nascimento Leite (Orientador) Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS Prof. Dr. Aldo José Morais Silva Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS Prof. Dr. Nilton de Almeida Araújo Universidade Federal do Vale do São Francisco - UNIVASF
FEIRA DE SANTANA/BA
2014
Dedico este trabalho e todos os esforços
em realiza-lo à minha família.
AGRADECIMENTOS
Enfim, terminado o trabalho árduo de pesquisa, análise, crítica e escrita, é hora de
agradecer a todos que, direta ou indiretamente, foram responsáveis em auxiliar-me
no período de feitura desta dissertação. Olhando todo o período em que me
debrucei sobre a temática e todos os desdobramentos que ela exigiu, noto que, de
fato, não fosse a presença dos queridos amigos, familiares e colegas de trabalho, tal
empreendimento teria sido muito mais difícil de ser realizado.
Agradeço grandemente ao meu orientador, prof. Rinaldo César, pela atenção,
paciência e compreensão, bem como pela grande colaboração que deu em meu
projeto. Pude, neste período de orientações, desenvolver bastante minhas análises
sobre meu objeto, aumentando e muito meu arcabouço teórico. Meu sincero
“obrigado” a este grande professor, pela sua contribuição e pela amizade.
A todos os professores do mestrado em História da UEFS, grandes mestres com
quem pude aprender muito ao longo das disciplinas que cursei, e mesmo nas
conversas informais nos corredores. Todos vocês tem parte importante nesta
dissertação. A acolhida que recebi, a atenção despendida às minhas dificuldades, as
imensas contribuições feitas a este trabalho e à minha formação enquanto
pesquisador/professor, são incomensuráveis. Muito obrigado.
Ao longo destes dois anos de curso, pude conhecer ótimas pessoas, colegas de
turma que, dentro dos debates nas disciplinas, conversas amigas e momentos de
seriedade e diversão, deram significativas contribuições para minha pesquisa. A
estes colegas ilustres de mestrado, devo minha gratidão e a honra de ter
compartilhado tão bons momentos.
Neste processo, nada poderia ser feito sem a participação e o carinho de minha
família. Minha mãe, Cleone Maria, e meus irmãos, Francisco e Bárbara. A amizade e
o apoio neste período foram fundamentais para que eu pudesse dar cabo de todas
as metas a que me propus. Muito obrigado.
Dedico, neste breve espaço, agradecimento à minha noiva Thuanne Marinho, e toda
a atenção que veio dedicando a mim e à minha carreira. Todos os momentos em
que paciência e carinho foram necessários, ela os praticou. A ela, um afetuoso
agradecimento.
Há quem busque o saber pelo saber: é uma
torpe curiosidade.
Há quem busque o saber para se exibir: é uma
torpe vaidade.
Há quem busque o saber para vende-lo: é um
torpe tráfico.
Mas há quem busque o saber para edificar, e
isto é caridade.
E há quem busque o saber para se edificar, e
isto é prudência.
(SÃO BERNARDO DE CLARAVAL, Sobre o
cantar dos cantares, Sermão 36, III).
RESUMO
O presente estudo visa analisar a relação entre rio e cidade, tendo como espaço a
cidade de Juazeiro/BA, entre as décadas de 1940 e 1970. É objeto de nossas
atenções as relações e práticas de sociabilidades construídas a partir dessa
conexão existente entre o Velho Chico e esta cidade baiana por meio das atividades
fluviais de navegação comercial e de passageiros. Para tal, as percepções,
representações e sensações expressas através dos relatos orais servirão como
peça fundamental dentro das fontes selecionadas para o desenvolvimento de
nossas análises. Além dos depoimentos, realizaremos análise de registros
fotográficos, bem como de fontes jornalísticas, no intuito de construir um panorama
amplo de olhares da cidade sobre as navegações no Rio São Francisco.
Trataremos, também, da questão da memória e da identidade, de que forma o
espaço/tempo aqui delimitado é, também, local de disputas e traumas em torno do
trabalho fluvial e da memória coletiva da cidade de Juazeiro.
Palavras chave: Memória; Identidade; Navegações; Cotidiano.
ABSTRACT
This study aims to analyze the relationship between river and city, with the space the
city of Juazeiro / BA, between the 1940s and 1970. It is the object of our attention
relations and sociability practices built from that connection between the Old Chico
and this Bahian city through fluvial activity of commercial shipping and passenger. To
this end, perceptions, representations and feelings expressed through oral reports
will serve as a key player in the sources selected for the development of our analysis.
In addition to the testimony, we will analysis of photographic records, as well as
journalistic sources in order to build a broad panorama of city looks on navigation in
the San Francisco River. We will address also the issue of memory and identity, how
the space / time here delimited is also local disputes and trauma around the river
work and the collective memory of the city of Juazeiro.
Keywords: Memory; Identity; Navigations; Everyday.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Imagem 1 – “O tempo voa”: o movimento do salto, a ação do mergulho. Euvaldo
une, numa foto, rio e cidade em uma brincadeira comum aos jovens
juazeirenses.............................................................................................................. 36
Imagem 2 – “Braços que trabalham”: remeiro, carregando a embarcação com
frutas. Cena comum no cotidiano juazeirense.......................................................... 45
Imagem 3 – As ruas de Juazeiro: pavimentação e fachadas imponentes indicavam
uma urbanização sólida em determinados pontos da cidade. A intencionalidade das
áreas retratadas nas imagens visa reforçar essa ideia............................................. 65
Imagem 4 – Rotina dos navegantes: a fumaça que anuncia partidas e chegadas e
a margem do rio repleta de produtos a serem carregados....................................... 71
Imagem 5 – Mapa da Viação Férrea Federal Leste Brasileiro............................. 93
Imagem 6 – A ponte e a estação ferroviária: o encontro na década de 1950 e o
iminente conflito espacial.......................................................................................... 95
Imagem 7 – O progresso nas rodas dos automóveis: a rodovia segue seu
rumo.......................................................................................................................... 99
Imagem 8 – A vida que agita o cais: os trabalhos das navegações compõem o
quadro cotidiano captado na imagem, antes da construção da ponte.................... 104
Imagem 9 – Praça São Tiago Maior: carros dominam a paisagem onde antes as
atividades fluviais ocupavam espaço...................................................................... 106
Imagem 10 – “Peito de aço”: remeiro, motor a óleo diesel e velas figuram numa
mesma imagem, capturada no cais de Juazeiro/BA............................................... 111
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.....................................................................................................
1. À SOMBRA DO JUAZEIRO, O VELHO CHICO DOS NAVEGANTES E
SUA RAINHA........................................................................................................
1.1 Às margens do Velho Chico, o Juazeiro dos navegantes...............................
1.2 A cidade, o rio e os espaços urbanos que os unem.......................................
1.3 Usos e representações das navegações e do São Francisco no imaginário
juazeirense......................................................................................................
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21
32
46
2. NAVEGAR É PRECISO, VIVER TAMBÉM! SUOR, VIDA E AMORES NAS
MEMÓRIAS DE EX-TRABALHADORES DAS NAVEGAÇÕES.........................
51
2.1 O ingresso nas atividades fluviais, para além do amor ao ofício ou a falta
de alternativas.......................................................................................................
57
2.2 Condições de trabalho, remuneração e a alegria do comércio juazeirense!..
2.3 “Nem tudo era permitido!” Paixões, brigas e cabarés nas viagens pelo
Velho Chico...........................................................................................................
3. TRAUMAS PARA UNS, ALEGRIAS PARA OUTROS: AS
TRANFORMAÇÕES NOS TRABALHOS FLUVIAIS.
3.1 De depósitos a casas comerciais: as transformações na orla fluvial de
Juazeiro nas décadas de 1950, 1960...................................................................
3.2 Motores a óleo diesel e a agonia dos vapores................................................
3.3 O porto de Juazeiro e as disputas pela hidrovia.............................................
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................
70
82
89
91
108
117
131
136
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INTRODUÇÃO
Passos que andam lentamente pelas ruas; passos que correm, acelerados, por
sobre as pedras dos calçamentos; passos que esperam quem se foi; passos que
voltam para quem ficou. Ao longe, apitam os vapores, gritam os remeiros; pode-se
ouvir o farfalhar das velas dos barcos; cascos singram as águas do Velho Chico,
nem sempre calmas, nem sempre revoltas, mas sempre local por onde velejam as
embarcações do Juazeiro. Logo, todos os passos se agitam, e até aqueles mais
apressados encontram no cais um local de repouso. Pelas embarcações que
chegam, rio e cidade se encontram, proporcionando uma conexão dos passos do
cais com os passos a bordo. Passageiros, tripulantes, produtos da terra, bens
industrializados e manufaturados, combustível, e uma infinidade de outros produtos;
notícias, fuxicos, informações, boas e más novas; todos estes elementos sobem e
descem as rampas de acesso da cidade, promovendo o barulho, a movimentação, o
comércio, atingindo a atividade humana cotidiana dos juazeirense.
Ao som do apito do vapor, agitação, vozes, sacos, redes, trouxas de roupa e
fumaça. Pessoas descem a rampa da orla em direção às águas do rio, onde os
“gaiolas” aguardam carregamento. Homens sobem e descem das embarcações
atracadas carregando lenha e algodão, sal e feijão, sob o sol a refletir-se no espelho
d’água do Velho Chico. Mulheres, a bordo, armam as redes e observam o ir e vir
enquanto amamentam seus bebês. Mais fumaça, e outro apito: hora de partir. Moços
de convés utilizam varas para empurrar as embarcações, tirando-as da margem,
enquanto os últimos “adeuses” são dispensados por quem fica e por quem parte.
A cena descrita acima (salvaguardando a licença imaginativa) apresenta, ainda
que resumidamente, o cotidiano das navegações na cidade de Juazeiro-BA. O
constante embarcar e desembarcar, as trocas comerciais, as viagens de quem parte
e quem chega, os observadores que acompanham os trabalhos em terra firme - as
navegações se integram ao cotidiano da urbe juazeirense.
Destarte, o presente estudo visa refletir sobre as memórias das navegações e
a relação cidade/hidrovia do ponto de vista do cotidiano urbano, a partir dos relatos
de juazeirenses que ou trabalharam em embarcações, ou utilizaram dos serviços
fluviais de transporte, ou mesmo que puderam observar as atividades na orla, entre
as décadas de 1940 e 1970 (recorte temporal que compreende o advento dos
12
motores a óleo diesel, o abandono, na atividade comercial, das embarcações “roda-
popa” movidas à lenha, a construção da ponte Presidente Dutra e o I Seminário da
Bacia do São Francisco), relacionando-as à formação das identidades sociais em
Juazeiro/BA por meio da análise das memórias dos nossos entrevistados.
Faz-se necessário aqui, neste capítulo introdutório, realizar um
questionamento: quais os elementos que constituem a identidade de uma
comunidade? A pergunta, que nada tem de simples, abre um leque enorme de
possibilidades, como o trabalho, as relações interpessoais, a dinâmica entre classes;
dessas, a memória, coletiva e particular, aparece como um dos pilares nesse
processo. Concordando com a reflexão de Michael Pollak, podemos concluir que “a
memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual
como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante
do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo”
(POLLAK, 1992, p. 204), apesar de vivermos um momento em que o imediatismo e
a constante mudança na sociedade coloque o passado e sua memória em um
sentido negativo, como se o ‘antigo’ fosse a extrema antítese do ‘novo’, e entre os
dois não existisse qualquer ligação.
Nesse contexto, a história oral nos permitiu que a presente pesquisa pudesse
analisar os depoimentos dos entrevistados, seus silêncios, revelações e
recordações, como importante ferramenta para a compreensão da construção da
identidade, não de uma maneira pronta e acabada, mas como uma nova
perspectiva, que contribuirá para demais trabalhos engajados na resolução da
problemática da identidade e memória em Juazeiro/BA. Assim, “a história oral pode
resultar não apenas numa mudança de enfoque, mas também na abertura de novas
áreas importantes de investigação” (THOMPSON, 2002, p. 27).
No processo de coleta destas narrativas, utilizamos perguntas temáticas
previamente elaboradas; entretanto, nos demos a liberdade de realizar novos
questionamentos ao longo das entrevistas, de acordo com o caminhar das
rememorações dos depoentes. Servindo de guia para nossas coletas, utilizamos
obras de autores que versam sobre os usos da História Oral, como Antônio Torres
Montenegro, Paul Thompson, Ecléa Bosi e Alistair Thomson. As memórias narradas,
mas, também, os silêncios e hesitações em rememorar, olhares, risos e sorrisos,
vozes embargadas: todos esses elementos, observados pelos autores em suas
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pesquisas, foram fundamentais para a análise e compreensão dos depoimentos
coletados no presente trabalho.
A memória que aqui analisaremos, sobre as navegações, é encarada como
tendo sido um dos pilares constituintes no processo de formação da identidade
social de parte da população idosa de Juazeiro/BA, não o único. Portanto, o
presente estudo, tendo em vista este caráter, buscará realizar uma contribuição
significativa para abertura de um promissor campo de pesquisas acadêmicas na
região, especialmente trabalhos históricos e sociológicos, sobre o fenômeno de
formação da identidade social e cultural no médio São Francisco, onde os demais
elementos desse processo possam tomar novo relevo.
Dentro dos aportes metodológicos elaborados para nosso estudo, buscamos
refletir sobre o binômio identidade social e memória, tendo com base os escritos
de Zygmunt Bauman, Michael Pollak e Mirian Sepúlveda dos Santos. Ao utilizarmos
as fontes orais, temos como premissa básica de que “o ato de recordar é tanto uma
forma de percepção quanto de reconhecimento” (SANTOS, 2003, p. 54). A frequente
resposta para a pergunta “quem sou eu?” requer, daquele que responde, um
autoconhecimento que o permita, dentro de suas rememorações, encontrar a
resposta. Não consideramos, entretanto, que as identidades em questão sejam
todas sólidas e imutáveis, e que não sofram transformações a partir de novos
contatos e novas percepções, por parte do indivíduo, do meio. Dentro de nossas
análises, pudemos ter contato com narrativas que apresentaram estas
possibilidades.
Sabemos que “a memória faz parte de conhecimento e reconhecimento do
mundo e de que este processo se define pela busca de sentido” (SANTOS, 2003, p.
58). Essa busca de sentido é, a priori, parte de um processo íntimo e individual e, ao
mesmo tempo, construído coletivamente na relação com outros indivíduos (POLLAK,
1992, p. 201). Sendo um processo, dificilmente podemos assinalar um início e um
fim que o delimitem, caracterizando-se como um “fazer-se” constante, gradual,
íntimo e, ao mesmo tempo, coletivo, uma vez que o indivíduo não está
desconectado da sociedade. Seguindo este pressuposto, “o que está em jogo na
memória é também o sentido da identidade individual e do grupo” (POLLAK, 1989, p.
10).
De tal modo, consideramos também que a identidade reconhecida pelo
indivíduo através de suas rememorações faz parte de um conjunto de escolhas, que
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o aproximam do ideal de pertencimento que possui. O modo como se relaciona, as
experiências que desenvolve dentro da sociedade, a forma pela qual apreende e
sente o grupo ao seu redor, são fundamentos importantes nesta construção.
Definimos, assim, que
o ‘pertencimento’ e a ‘identidade’ não têm a solidez de uma rocha,
não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e
revogáveis, e [...] as decisões que o próprio indivíduo toma, os
caminhos que percorre, a maneira como age [...] são fatores cruciais
tanto para o ‘pertencimento’ quanto para a ‘identidade’ (BAUMAN,
2005, p. 17).
Mas não apenas perscrutamos as memórias como elementos desconexos das
falas de nossos depoentes. Essas memórias e essas identidades em questão estão
atreladas a um espaço definido, que é a cidade de Juazeiro e mais precisamente o
espaço urbano responsável pela comunicação rio/cidade, palco das práticas de
sociabilização proporcionadas pelas navegações pelo São Francisco. Neste local,
tanto as águas do Velho Chico e as transformações pelas quais a sua hidrovia passa
dentro de nosso recorte temporal, quanto os prédios, calçadas, paralelepípedos e
asfaltos do complexo de ruas que se comunicam com o cais e o rio, e também suas
modificações, são elementos fundamentais para a reflexão, compreensão e
problematização das narrativas fornecidas pelas testemunhas vivas. Assim, dentro
do “fazer-se” das identidades, dentro do rememorar de cada fala coletada, “incluem-
se evidentemente os monumentos, [...] o patrimônio arquitetônico e seu estilo, que
nos acompanham por toda a nossa vida” (POLLAK, 1989, p. 3), e que são
responsáveis por imprimir em cada indivíduo marcas visuais, provocando
sensações. Tais “imagens urbanas trazidas pela arquitetura [...] têm, pois, o
potencial de remeter também, tal como a literatura, a um outro tempo. [...] O espaço
urbano, na sua materialidade imagética, torna-se, assim, um dos suportes da
memória social de uma cidade” (PESAVENTO, 2002, p. 16).
Daremos, ao longo da narrativa, preferência pela utilização do termo
identidades, uma vez que tratar deste tema no singular excluiria diversas
possibilidades de compreensão dos vários sujeitos em questão e suas experiências
particulares. Partindo da ideia de que as identidades não são sólidas e rígidas, e
referem-se à frequente pergunta “quem sou eu?”, buscaremos em nossas pesquisas
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compreender de que maneira os indivíduos, diante das modificações comerciais e
sociais na atividade de navegação, puderam construir e reconstruir suas próprias
identidades na relação com a cidade de Juazeiro. A análise dos seus discursos
proporcionará ao leitor um maior conhecimento acerca das particularidades destes
indivíduos, bem como significará cada ótica utilizada, dando-lhes sua respectiva
importância.
Dentro da relação rio/cidade, das memórias e identidades dos indivíduos
inseridos neste laço de sociabilidades, buscaremos também refletir sobre o cotidiano
urbano juazeirense e o modo como este reflete elementos conectados às
navegações do São Francisco. Aqui, autores como Manuel Castells, José
D’assunção Barros e Michel de Certeau serão fundamentais, principalmente no que
tange à compreensão de termos como lugar e espaço, que serão utilizados em
nossas análises: lugar, enquanto ordem na qual se distribuem os elementos nas
relações de coexistência, e espaço como um lugar praticado, vivido, compartilhado.
As relações fazem de um lugar um espaço. Ao longo das reflexões sobre as
navegações no cotidiano de Juazeiro, utilizaremos esses conceitos em nossas
análises.
Sabemos que a Historiografia da região é ainda muito carente de trabalhos
científicos, prevalecendo livros de cunho biográfico ou literário. Dentro desta esteira,
este estudo apresenta-se como uma nova oportunidade não só para explorar o
campo dos estudos regionais, mas também para contribuir com os estudos sobre a
formação da identidade social e cultural no médio São Francisco nordestino.
Mesmo possuindo uma história e uma memória muito ricas, as navegações
comerciais e de passageiro ainda configuram-se como campo pouco abordado
academicamente. O campo literário local, em contraponto, nos apresenta uma
profusão de obras predominantemente memoriais e/ou biográficas sobre este
assunto, fator que, malgrado a ausência do rigor teórico metodológico da academia,
fornece uma importante contribuição para a construção do conhecimento histórico
da localidade.
Assim, também damos espaço para os cronistas juazeirenses, e através de
análises do discurso por eles impresso através das linhas de suas obras, utilizamos
suas óticas enquanto perspectivas sobre nosso objeto de estudo, salvaguardando
suas intencionalidades.
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Sabedores disto tudo, convidamos vocês, caros leitores, a navegar conosco
por estas águas milenares, aproveitando o balanço leve da barca e observando cada
detalhe da nossa pesquisa. Tão logo, caminhamos pela cidade, e fazemos do nosso
traçado um diálogo entre o rio e a urbe, analisando por meio das fontes as formas de
interação proporcionadas pelas navegações na cidade de Juazeiro.
No primeiro capítulo, teremos como objetivo refletir sobre a atividade de
navegação no São Francisco e sua relação com a cidade de Juazeiro. Deste modo,
será nosso intuito observar a relação entre o espaço urbano e os trabalhos fluviais
em torno das embarcações e seu comércio no São Francisco. Faremos uso de uma
breve explicação acerca das navegações em fins do século XIX, aproveitando os
olhares fornecidos por navegantes técnicos do rio São Francisco, a saber os
engenheiros Halfeld e Teodoro Sampaio, problematizando suas observações e
perspectivas fornecidas em seus relatórios sobre a localidade, e sua relação com o
crescimento econômico e urbano da cidade de Juazeiro, até a década de 1940.
Também comporá nossos objetivos neste capítulo a realização de análises
sobre a disposição urbana juazeirense na região do cais, com a utilização de
registros fotográficos, promovendo um enfoque sobre o espaço de conectividade
entre rio/cidade e de que modo a construção das práticas neste local, dentro do
contexto das atividades de navegação, se interligavam com o cotidiano urbano.
Inserido neste processo, ressaltamos a importância dos depoimentos coletados de
ex-trabalhadores de vapores e barcas e de usuários dessas mesmas embarcações,
além de pessoas que simplesmente conviveram com o dia-a-dia dos trabalhos
fluviais, servirão como aportes a serem utilizados com o intuito de realizar um
diálogo com as fotografias analisadas.
O segundo capítulo se encarregará de tecer uma análise sobre as vidas de ex-
trabalhadores fluviais juazeirenses, ativos entre as décadas de 1940 e 1970,
aproveitando de seus olhares elementos que nos elucidem informações sobre o
sobreviver através da atividade com o rio. Sabemos que este período compreende
um momento de transformações nos trabalhos desenvolvidos no Velho Chico, a
saber: o advento dos motores movidos a óleo diesel, a obsolescência dos navios
roda-popa movidos a vapor, construção da ponte Presidente Dutra, o advento das
rodovias e as disputas em torno dos transportes de produtos da região. Assim,
destacamos este como um momento chave de reordenamento das relações
econômicas e sociais em Juazeiro e região. Assim, refletindo sobre as falas dos
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entrevistados, daremos destaque às suas lembranças, silêncios e sentimentos
contidos em suas narrativas. Além dos registros orais, faremos uso do livro do
cronista juazeirense Ermi F. Magalhães, também ex-navegante do São Francisco, e
que reúne em grande parte suas recordações sobre seu trabalho com o Velho
Chico. As reflexões e observações ao longo deste capítulo comporão uma análise
sobre as identidades em questão, a partir das memórias narradas pelos sujeitos e
dos elementos que estes trazem à tona ao recordar seu trabalho, o convívio familiar
e a vida na cidade de Juazeiro.
Em nosso terceiro capítulo, daremos conta das modificações que perpassaram
pelas décadas de 1950, 1960 e 1970 na atividade de navegação e, principalmente,
de como os entrevistados (ex-trabalhadores e usuários de embarcações)
apreenderam e compreenderam esse processo. Significativas transformações, como
a construção da ponte Presidente Dutra e a nova organização da orla fluvial
juazeirense, juntamente com o advento dos motores a óleo diesel, a diminuição do
tempo das viagens proporcionada pela rodovia e os debates do Seminário da Bacia
do São Francisco, em 1975, que discutia a construção de barragens e o controle dos
níveis do Velho Chico, foram fundamentais no período aqui estudado. Assim, diante
desse quadro, como as pessoas envolvidas com as navegações puderam sentir (se
sentiram) e compreender (se compreenderam) esses novos elementos configura-se
como questionamento principal neste ponto.
18
1. À SOMBRA DO JUAZEIRO, O VELHO CHICO DOS NAVEGANTES E SUA
RAINHA.
A curiosidade nasce da observação, e dela, por conseguinte, a inquietação
diante do objeto em evidência. O convite, aqui, é para sentar à sombra do juazeiro,
vislumbrando a cidade na atualidade e toda a atividade humana que a movimenta
diariamente; vamos observar o quadro que nos move a empreender esta pesquisa.
Podemos ver embarcações e pessoas, água e terra, rio e cidade; do seu
encontro, a navegação, a travessia, a pesca, o lazer, o banho. Pessoas debruçadas
no parapeito da orla miram as águas que vão, descansam a vista, ou mesmo
observam se a barca vem de volta, trazendo pessoas, buscando pessoas. Barulhos,
sons, vozes, vida urbana. O comércio funciona a pleno vapor, e os carros singram
as ruas, velozes, apressados. A ponte, elo entre pernambucanos e baianos,
petrolinenses e juazeirenses, assiste ao ir e vir rodoviário, em movimento intenso.
Sobre o balanço das águas, pescadores realizam, pacientemente, seu ofício
centenário, à espera dos cardumes são franciscanos. Num vagar contínuo, passos
são ouvidos, cruzando a orla em sentidos diversos, conduzindo os pés pela vida
ordinária na urbe.
Eis uma imagem do cotidiano de quem vive na cidade ribeirinha de Juazeiro,
na Bahia. Neste município do norte do estado, com população de 214.748, estimada
pelo INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE) em 2013,
a cidade mantém com o rio um diálogo diário. Não à toa, sua principal atividade
comercial caracteriza-se pela utilização das águas do São Francisco, a fruticultura
irrigada, o que propicia a este município, apesar de se localizar no polígono das
secas1, manter uma agricultura regular todo o ano.
No tocante às navegações, estas hoje estão focalizadas nas barcas de
travessia e nos passeios turísticos pelas ilhas e vinícolas da região. Porém, navegar
no São Francisco já foi atividade das mais fundamentais e necessárias para a
economia juazeirense, para além do turismo local. Tudo o que era produzido na
cidade, bem como em várias regiões circunvizinhas, e adicionamos neste bojo os
1 O polígono das secas foi criado por lei de 13/09/1946 regulamentada em 11/12/1968 pelo decreto-lei
nº 63.778. A partir de 11/12/1968, por novo decreto-lei, nº 63.778, a SUDENE passa a ser
responsável por declarar quais municípios fazem parte do polígono.
19
estados de Pernambuco e Piauí, além de outras várias vilas que se utilizavam da
estrada histórica entre Bahia e Maranhão, partia via vapor, barca de figura,
empurrador ou chata, para Pirapora, em Minas Gerais, e de lá para os Estados do
sul. Através da hidrovia do São Francisco, artigos advindos da Europa, por exemplo,
abasteciam as lojas juazeirenses; em contrapartida, diversos produtos ribeirinhos
eram levados para os comércios sulistas e para o exterior.
A relação constante com o Velho Chico acabou fazendo com que a cidade se
organizasse de maneira a integrar o rio ao seu centro de forma geográfica, sendo o
cais da cidade uma espécie de extensão do comércio da cidade, além de local de
chegadas e partidas de viajantes. Do mesmo modo, a conexão estabelecida neste
local proporciona a utilização deste como espaço de sociabilidades, palco onde se
desenvolvem as práticas do citadino, seja como participante das atividades (fluviário,
usuário das embarcações), ou mesmo como observador ordinário, transeunte
comum, que tinha no cais um local de passagem e que, ainda assim, acabava
praticando este espaço.
Obviamente, tal relação não nasceu num rompante. Dentro de um processo de
séculos, o aglomerado humano que se constituía às margens do rio construiu, por
meio da relação de subsistência, uma conexão de interdependência com as águas.
Em um espaço geográfico dos mais adversos que é o semiárido, com irregulares
períodos de estiagem, viver nas proximidades de um rio era um privilégio, ou uma
estratégia de sobrevivência por parte daqueles que migravam para o seu leito.
Considerando o acima exposto, neste capítulo buscaremos desenvolver
reflexões sobre a atividade de navegação no São Francisco e sua relação com a
cidade de Juazeiro. Assim, abordaremos a relação entre a urbe juazeirense e a
atividade fluvial dos vapores e barcas e seu comércio no São Francisco, recorrendo
a uma explanação sobre as práticas de navegação, desde fins do século XIX, e sua
relação com o crescimento econômico e urbano da cidade de Juazeiro, até o século
XX. Nesse aspecto, será de fundamental relevância analisar os olhares e
perspectivas de viajantes que realizaram estudos sobre o São Francisco e que
tiveram oportunidade de tecer observações sobre Juazeiro e a forma como esta
(ainda como vila, ou mesmo já como cidade) conectava-se ao trabalho de
navegação fluvial, bem como a maneira pela qual estes visitantes traduziram em
palavras suas impressões sobre o local.
20
Nesta esteira, também daremos vez e voz aos cronistas locais, na busca por
uma reflexão sobre o olhar particular que estes imprimiram em seus escritos à
história da cidade. Obviamente, como todo documento, estas obras serão
analisadas à luz da historiografia, e suas falas serão encaradas como perspectivas
sobre o objeto analisado, visões, olhares, que compõem o prisma da problemática
aqui trabalhada.
Buscaremos, também, desenvolver uma análise da organização urbana de
Juazeiro, através de registros fotográficos, observando como a cidade e as
atividades de navegação se interligavam, enfocando a região da orla fluvial e sua
função comercial (carregamento de embarcações, compra e venda de produtos) e
social (local de partidas e chegadas, de vislumbre das águas e do vai e vem dos
vapores).
E como perscrutar as sensibilidades daqueles que vemos participar desse
processo? É interessante notar que, ao nos comprometermos em analisar o modo
como rio e cidade mantinham um diálogo constante e construíam de fato um espaço
de práticas cotidianas e de sociabilidades, precisamos dar voz a esses indivíduos,
que iam e vinham, andavam, observavam, amavam, sorriam, choravam neste lugar,
e ouvir o que eles e elas têm a dizer (e não dizer). Nessa perspectiva, os
depoimentos coletados de ex-trabalhadores de vapores e barcas e de usuários
dessas mesmas embarcações, além de pessoas que conviveram, entre as décadas
de 1940 e 1970, com o fluxo constante de subida e descida de embarcações no rio,
serão fundamentais na busca por estas sensibilidades.
Além destes, há ainda uma outra contribuição fundamental para a presente
pesquisa: os cadernos de Maria Franca Pires. Esta professora normalista, nascida
em Remanso-BA, juazeirense por escolha (e paixão, assim podemos dizer), foi
responsável por desenvolver uma série de entrevistas com moradores da cidade, na
década de 1970, explorando suas memórias sobre a vida em Juazeiro. Estas
sessões de conversa foram registradas em uma série de cadernos, prontamente
catalogados e arquivados na UNEB de Juazeiro, sob a organização da Prof.ª
Odomaria Macêdo. O material foi doado post mortem pela família da professora
normalista à universidade.
Em mais de 20 cadernos, Franca Pires anotou os relatos proferidos por seus
entrevistados, versando sobre trabalho, festas, família, o rio e a cidade, dentre uma
série de outras informações. Com essa inestimável contribuição, podemos ter
21
contato com uma série de sujeitos que viveram dentro de nosso recorte temporal, e
que infelizmente não encontraremos vivos devido à inevitável e inexorável ação do
tempo; além disso, a voz mediadora de Franca Pires, envolvida no processo de
análise dos dados coletados, é significativa dentro deste contexto, e pode fornecer-
nos também suas próprias perspectivas sobre nosso objeto de reflexão.
Por fim, as matérias jornalísticas do período aqui analisado, advindas de
periódicos locais, comporão nosso quadro documental, fornecendo destarte mais um
olhar sobre a cidade, o rio e as sociabilidades construídas nesta relação. Tais fontes
jornalísticas, a serem destrinchadas, analisadas e problematizadas, servirão como
aportes importantes dentro da narrativa.
Sob o sol que ilumina estas adustas terras, ao leve balançar de águas do Velho
Chico, conheceremos um pouco mais sobre esta Juazeiro dos navegantes e
viajantes, ouvindo seus sons e seus silêncios, auscultando com atenção e cuidado a
história nos passos, remadas, apitos de vapores, chacoalhar de carroças, deslizar
de barcas, e toda a atividade humana que, de uma forma ou de outra, mesclava a
urbe às águas, fazendo do rio uma parte da cidade, bem como permitindo Juazeiro e
sua urbanidade navegar por sobre o São Francisco sem, contudo, precisar sair do
lugar.
1.1 Às margens do Velho Chico, o Juazeiro dos navegantes
Nossa caminhada começa às margens do rio, com passos firmes, porém
calmos, sem pressa. Nessa beira do São Francisco, onde a espuma das águas irriga
a areia grossa, Juazeiro viu aportar uma série de pessoas. Indo, voltando,
explorando, construindo, destruindo. O esperado “oásis” do semiárido trouxe para
essa região a atenção de muitos, e a possibilidade de utilização destas águas incitou
uma série de transformações, conflitos e disputas.
Nosso intuito neste ponto é refletir e analisar, junto ao leitor, de que maneira
Juazeiro tornou-se, através das atividades fluviais de comércio e transportes, um
dos entrepostos comerciais de maior relevância entre as demais cidades do Médio
São Francisco. Para tal, desenvolveremos um breve histórico da atividade fluvial na
cidade, a partir de fins do século XIX, com a introdução dos vapores no rio São
22
Francisco, a diminuição de tempo das viagens e o maior volume de produtos,
transportado com embarcações maiores. Nosso objetivo, aqui, é utilizar este recuo
para introduzir o leitor na problemática da relação rio/cidade; de tal maneira,
concordando com a historiadora Fonseca (2011, p. 31), compreendemos que falar
sobre o “município de Juazeiro é também falar do rio São Francisco, de sua
navegação, [...] e sua importância para essa comunidade”.
Deste modo, o histórico de exploração do rio nos parece fundamental para
compreender Juazeiro e a forma como esta se desenvolveu, beneficiando-se da
hidrovia. Nessa perspectiva, serão fundamentais documentos de cunho técnico,
como o relatório sobre a navegabilidade do São Francisco, desenvolvido pelo
engenheiro Heinrich Wilhelm Ferdinand Halfeld, de 1860, e o livro O Rio São
Francisco e a Chapada Diamantina, do engenheiro Teodoro Sampaio, publicado em
1906. Ao longo da escrita, buscaremos analisar como estes dois engenheiros
puderam conceber a região do São Francisco, em especial Juazeiro/BA na segunda
metade do século XIX, e de que forma eles, viajando através do rio, puderam
perceber a navegação fluvial neste período.
Sem sombra de dúvidas, a prática indígena, com a utilização dos ajoujos2, foi
primordialmente um dos elementos principais na construção de uma tradição de
navegação fluvial entre os ribeirinhos do Velho Chico. Em larga escala, os índios
Cariris, que povoavam as terras no entorno do rio, conforme relato do Pe. Martinho
de Nantes, missionário católico na aldeia de Aracapá, próximo à atual cidade de
Cabrobó, do lado pernambucano do rio, em sua obra Relação de uma missão no rio
São Francisco, bem como os Tupinambás, Tapuias e Amaupirás, estes últimos
citados pelo Frei Vicente do Salvador, na obra História do Brasil, representavam os
habitantes mais comumente encontrados pelos exploradores europeus. A
dominação portuguesa da região, em especial das famílias D’Ávila e Guedes de
Brito (FONSECA, 2011), formou uma sociedade, em base, miscigenada, com
elementos oriundos da relação exploratória de europeus para com índios e negros
escravizados e utilizados como mão-de-obra nos currais do São Francisco.
Juazeiro, desde o final dos oitocentos, apresentava grande vocação
comercial e de criação de gado, o que trouxe à região grande
2 Embarcação formada pela junção de duas ou três canoas, emparelhadas e unidas por paus
colocados transversalmente e amarrados com tiras couro cru.
23
população de mestiços, nômades, vaqueiros que formaram famílias
de pequenos lavradores, mulheres e homens negros. (FONSECA,
2011, p. 26).
Podemos observar, a partir do já exposto, que no processo de colonização e
exploração das águas são franciscanas, a formação dos currais, voltados para a
criação de gado para abastecimento de engenhos e aglomerados urbanos
litorâneos, fomentou a formação também de áreas populacionais no Vale do São
Francisco. Dentro desse contexto, a passagem do Juazeiro, local de tráfego intenso
de tropeiros em direção à estrada primitiva por terra dos primeiros exploradores, que
ligava Bahia e Maranhão, serviu como rota principal, por onde produtos e víveres
eram escoados, além de pousio aos viajantes (GONÇALVES, 1997).
Desta forma, beneficiada pela exploração das águas do rio São Francisco, e
estando na encruzilhada de duas rotas (a hidrovia e a estrada dos tropeiros para os
estados ao Norte), a vila de Juazeiro
ergueu-se como um importante centro econômico do interior, dominando a navegação e o comércio pelo rio, que se estendia pela Bahia e Minas Gerais adentro. A economia do interior do Piauí e de Pernambuco tornou-se também dependente de Juazeiro, por onde os produtos agrícolas, os minerais e outros artigos em geral acabavam passando em sua rota para Salvador e outros pontos do litoral. (CHILCOTE, 1991, p. 57).
É importante notar que, a despeito da recomendação feita pela Coroa portuguesa
a Tomé de Souza, no regimento de 17 de dezembro de 15483 (o memorialista
juazeirense Cunha cita este dado em seus escritos, buscando legitimar a dominação
portuguesa sobre a região), para que seus homens adentrassem o São Francisco e
o explorassem, em pleno século XVI, pouco ou nenhum empreendimento estatal foi
dispensado com o intuito de colonizar as terras às margens do rio, sendo esta
atividade praticada por iniciativas particulares, realizadas com ou sem permissão da
Coroa. Porém, isso não indica que o interesse em torno do Opara indígena não
existisse de todo. Aventureiros de todos os tipos invadiram o vale do rio,
massacrando as populações nativas já existentes, valendo-se do princípio de que,
sendo a terra virgem e disponível, não estando produtivas à ocasião da posse,
3 Este documento está disponível digitalmente no endereço
http://lemad.fflch.usp.br/sites/lemad.fflch.usp.br/files/1.3._Regimento_que_levou_Tom__de_Souza_0.
24
teriam eles o direito de nela fincar sua bandeira (COSTA, 1994). Como bem nos
relata Fonseca (2011, p. 24), “era costume entre os homens de poder do período
colonial no sertão a prática de ocupar terras antes de pleiteá-las pelo regime de
sesmarias ou extrapolar os limites” que a lei impunha. Assim, bastava ao postulante
resistir aos índios e à natureza adversa, para poder tornar-se dono de determinado
pedaço de terra, só posteriormente apresentando junto à Corte requerimento de
posse do local. Os D’Ávila e os Guedes de Brito, casos já citados, foram os
representantes destes exploradores na região de Juazeiro: primeiro ocuparam a
região, partindo do litoral, e só então apresentaram suas petições de posse
(CUNHA, 1978).
No entanto, o aproveitamento do São Francisco e dos recursos dele provenientes
não deixariam de ser assunto de alto interesse econômico por parte de grupos locais
e nacionais, fazendo com que várias expedições fossem empreendidas, em especial
a partir do século XIX, com o intuito de realizar observações, análises e relatórios
sobre a geografia, as relações sócio comerciais, as técnicas fluviais e suas
respectivas embarcações, bem como sobre as riquezas minerais produzidas no vale
do rio. Diferentemente do que vinha sendo praticado durante o período colonial
brasileiro, no cerne destes estudos estava a questão da utilização da hidrovia,
através de investimentos imperiais, como canal de tráfego de pessoas e produtos,
tendo com questão principal especular a possibilidade de introdução, por exemplo,
de embarcações maiores, como os vapores roda-popa, gestados eventualmente por
companhias de navegação estatuídas. O esforço girava em torno da sistematização
de uma atividade já há muito empreendida pela população ribeirinha do Vale, e
reportada pelos viajantes dos séculos XVIII e XIX, a navegação fluvial.
Em destaque, trataremos de dois relatos destas expedições científicas ao Vale
do São Francisco: o primeiro, fruto da viagem empreendida pelo engenheiro civil
Henrique Guilherme Fernando Halfeld por ordem do imperador do Brasil, Pedro II,
na década de 1850; o segundo consiste nas anotações do então jovem engenheiro
Teodoro Sampaio, membro integrante da Comissão Hidráulica, criada pelo
conselheiro Cansanção de Sinimbu e capitaneada pelo americano William Milnor
Roberts, entre as décadas de 1870 e 1880. O fato de receberem destaque aqui não
significa que tenham sido as únicas, muito menos as maiores ou melhores
expedições feitas. Explorá-las com mais atenção deriva do fato de que tanto Halfeld,
quanto Sampaio, puderam observar e registrar a relação entre rio e cidade,
25
registrando percepções acerca das navegações no São Francisco, em momentos
distantes trinta anos entre si, fornecendo impressões valiosas para nossas reflexões.
Compreendendo que a dinâmica entre navegação, comércio, cidade e sociedade
juazeirense é parte de um processo de construção de longo prazo, o recuo é
significativo para a compreensão de como Juazeiro atingiu sua proeminência fluvial,
transformando a navegação no São Francisco sua atividade comercial mais
importante.
A pedido do imperador Pedro II, o engenheiro civil Henrique Guilherme Fernando
Halfeld empreendeu uma viagem pelo Rio São Francisco, com o intuito de explorar a
região, apresentando sondagens, medições e indicações de detalhes sobre as
formações geológicas e a vegetação da área. Entre os anos de 1852 e 1854, Halfeld
relatou, légua por légua, suas observações sobre o rio e seus arredores, deixando a
pena correr um pouco mais além do que a mera descrição das características da
natureza e dos acidentes geográficos do rio. O engenheiro transpôs ao papel seu
olhar sobre os habitantes das vilas, freguesias e demais povoações ribeirinhas,
abordando alguns dos seus aspectos sociais e econômicos. É com esta abordagem,
por exemplo, que ele vai descrever sua passagem pela então “villa do Joazeiro”:
Sobre a margem direita está o povoado de Mourão e a importante
Villa do Joazeiro, actualmente a cabeça e residência do Juiz de
direito da comarca de Sento-Sé, 30 a 35 palmos elevada sobre o
nível das aguas do Rio [...]. A villa do Joazeiro tem uma igreja da
invocação a Nossa Senhora das Grotas, uma casa de câmara e
cadêa anexa, e 334 casas, sendo destas 287 cobertas de telhas, e
sujeitas ao pagamento de decima urbana, com 1,328 habitantes,
sendo destes 1,052 livres, e 276 escravos; porém todo o município,
cujos limites são os mesmos da freguesia da villa, tem 6,000 almas
pelos assentos da igreja; porém pelos mappas dos subdelegados
somente 4,938, sendo destas 4,203 pessoas livres e 732 escravos. A
villa do Joazeiro foi creada por acto da presidência da província da
Bahia datado de 18 de maio de 1833, quando se pôz em execução o
Código de Processo Criminal desanexando-se o Joazeiro do
município de Sento-Sé a que pertencia como freguesia. (HALFELD,
1860, p. 34).
A Villa do Joazeiro encontrada por Halfeld não era mais freguesia de Sento-Sé,
sendo tratada pelo engenheiro como “importante” à época de sua viagem.
Contrariando Edson Ribeiro e Wilson Lins, cronistas que insistiam que na região a
26
presença de escravos teria sido discreta, quase nula, podemos observar no relato de
Halfeld que havia, sim, uma prática escravagista na localidade (1 escravo para 15
libertos, proporcionalmente, de acordo com os dados levantados por ele na
localidade). Em pesquisas junto a inventários da região, Fonseca (2011), em sua
dissertação, pôde ainda observar relações de escravos que variavam entre 2 e 30,
revelando, inclusive, que havia a posse, por um único senhor, de um número
elevado de cativos.
Halfeld não pôde deixar de observar, também, o movimento entre as margens
pernambucana e baiana do rio. A estrada de tropeiros advindos dos estados ao
norte do país e que rumavam em direção a Salvador e demais paragens baianas,
encontrava no Velho Chico tanto um obstáculo natural, quanto um local de descanso
e ponto de intersecção de sua jornada. O engenheiro anota em seu relatório que a
conexão entre as duas margens é mantida através de
uma barca grande de véla, que dá cada vez passagem de 50 a 60
animaes, cujo rendimento pertence à câmara municipal da Villa da
Boa Vista da província de Pernambuco ; cada pessoa paga 80 rs. de
passagem, por cada animal cavalar ou muar 360 rs. sendo manso,
220 rs. sendo bravo, poldros 100, e 140 rs, cada cabeça de gado
vacum, carga de animal 40 rs.; porém os tropeiros ou proprietarios da
carga nada pagão de passagem. Pelas informações obtidas,
passarão em um anno 7,500 a 8,000 pessoas, 10,500 cabeças de
gado vacum, e 1,300 animaes cavalares e muares, sendo conduzido
o maior numero dos primeiros para a Bahia (HALFELD, 1860, p. 34).
Sem uma estrada de ferro disponível à época da passagem de Halfeld, uma vez
que apenas em 1895 finda-se a última etapa de construção da ferrovia Bahia-São
Francisco, após longos 43 anos de trabalhos (ZORZO, 2001, p. 80), e uma vez
tendo atravessado o rio, os produtos trazidos pelos tropeiros podiam seguir por
caminhos distintos: rumo à “Bahia”, a cidade de Salvador, pela estrada histórica dos
tropeiros, ou em direção à Minas Gerais e, consequentemente, uma série de outras
cidades ribeirinhas, seguindo o curso do São Francisco. Um aspecto a ser
observado é que a barca em questão, citada pelo engenheiro, pertencia não à vila
de Juazeiro, sendo atrelada à “Villa da Boa Vista” (atual município de Santa Maria da
Boa Vista/PE), outra localidade ribeirinha do Vale do São Francisco, da qual fazia
parte o pequeno lugarejo por onde os tropeiros passavam, que sequer era um
povoado à época da passagem de Halfeld (isso só viria acontecer em 1860), sendo
27
hoje a cidade de Petrolina (CHILCOTE, 1991). A necessidade do tropeiro de
atravessar o rio para Juazeiro, e a disponibilidade, para isso, de uma barca
pertencente à vila pernambucana mais próxima da margem diante da cidade baiana,
pode nos dizer duas coisas: primeiro, que o fluxo de viajantes e comerciantes que
seguia a rota histórica de tropeiros despertava interesse das vilas próximas, tendo a
câmara municipal de Boa Vista aproveitado a rota para cobrar rendimentos sobre a
travessia; segundo, apesar de outras vilas, a própria Boa Vista por exemplo, estarem
à margem do São Francisco, e com possibilidade de explorar suas águas para
empreender viagens, era Juazeiro quem atraía essa demanda, sendo seu porto
bastante movimentado. A propósito disto, inclusive, o engenheiro não deixou de
tomar nota sobre as dimensões encontradas: “No porto do Joazeiro tem o Rio 3,500
palmos de largura, e dá em um segundo 188,517 palmos cubicos de agua.”
(HALFELD, 1860, p. 34).
Dentro dessa perspectiva, a navegação rio acima, em direção às cidades
mineiras, torna-se atividade fundamental para o escoamento dos produtos da região.
Por possuir tal posição privilegiada, Juazeiro vai atuar como o entreposto comercial
mais importante do submédio São Francisco, de forma que tal conjuntura seria
“suficiente para incorporar parte da mão-de-obra dos beiradeiros e das populações
marginalizadas das caatingas que, mesmo de forma precária e descontínua, se
engajava na economia” (GONÇALVES, 1997, p. 80), seja diretamente na produção
de gêneros agricultáveis, seja diretamente na atividade de navegação fluvial.
O engenheiro observa tal característica em suas anotações:
A villa do Joazeiro tem a vantagem de ser situada na linha de uma
das estradas mais commerciaes entre a Bahia e as provincias do
Norte, e particularmente a cidade de Oeiras, que dista daqui 80
leguas, e com a qual a villa do Joazeiro entretem um vivo commercio.
Os habitantes desta villa e do seu município fabricão sal das terras
saliferas, particularmente nas salinas á beira do riacho do Salitre ;
tratão de criação de gado vacum, em escala mui diminuta a creação
de carneiros, cabras, porcos, aves domesticadas e de cavalos ;
plantão mandioca, que é o principal ramo de cultura, arroz, feijão,
mui pouco milho e canna de assucar, muita abobora, melancias,
algodão, mamona e algum fumo (HALFELD, 1860, p. 34).
Ainda que esta produção não satisfizesse as demandas locais da população, a
conexão proporcionada pela hidrovia com Minas Gerais e demais estados ao sul da
28
Bahia, era responsável por movimentar uma contrapartida bastante proveitosa para
Juazeiro e região. Assim, aos poucos, 2 polos ribeirinhos se destacaram dentro
dessa lógica de trocas comerciais: além da cidade baiana já citada, a mineira
Pirapora, ambas com portos naturais bastante movimentados. Assim, “os produtos
que subiam e que desciam o rio tinham em Joazeiro e em Pirapora (Alto São
Francisco) seus pontos de embarque e desembarque”. (GONÇALVES, 1997, p. 81).
Halfeld, na década de 1850, dentro de sua pesquisa em solo juazeirense, pôde
constatar tal ocorrência, apresentando um contraponto dentro de sua narrativa:
porém abstrahindo do que tenho observado, e julgando pelas
informações obtidas, é o terreno ao redor do Joazeiro mui agreste e
secco, particularmente em direção para a Bahia, e que a cultura
nesta paragem não satisfaz ás necessidades dos seus habitantes e
dos passageiros, que constantemente transitão pelas estradas, que
nesta villa se cruzão ; e portanto é indispensavel o suprimento de
mantimentos, como farinha de mandioca e milho, feijão, milho, arroz,
toucinho, assucar, rapaduras, caxaça, etc., que vem das regiões
superiores do Rio, até do Paracatú, para esta villa e seus suburbios.
(HALFELD, 1860, p. 34).
O que o engenheiro acaba testemunhando por ocasião de sua passagem pela
vila de Juazeiro é a constante movimentação fluvial em seu porto, a princípio, pela
necessidade decorrente do terreno “mui agreste e secco” do local; do mesmo modo,
Halfeld fornece testemunho da ligação comercial com as “regiões superiores do Rio”,
responsáveis por enviar os produtos complementares para a vila. O quadro
desenhado por suas observações acaba mostrando, ainda que de forma incipiente e
breve, a convergência entre a estrada dos tropeiros e a hidrovia, que fazia da então
vila um local de constantes trocas comerciais, ponto fundamental para caixeiros
viajantes, barqueiros, criadores de gado, agricultores, e toda uma sorte de pessoas
envolvidas com venda e compra de produtos. Aos poucos, esse movimento passa a
se intensificar, e em fins do século XIX e início do XX, Juazeiro, categorizada já
como cidade, passa a figurar como ponto comercial fundamental do norte baiano,
exercendo influência sobre várias cidades da região, e aí inserimos localidades
interioranas nos estados de Pernambuco, Piauí e Maranhão (CHILCOTE, 1991),
além do Ceará (NEVES, 2011) que dependiam, em grande escala, da navegação rio
acima para vender seus produtos no sul do país.
29
Outro fator que eventualmente pode ter beneficiado Juazeiro, quanto à sua
posição de principal polo comercial da sua região, foi a dificuldade de navegação
rumo à foz do rio, em Alagoas. Encontramos anotações de Halfeld sobre isso.
Podemos imaginar o velho engenheiro, um tanto impaciente com os solavancos da
embarcação, do mesmo modo que as superstições dos remeiros o enfastiavam4,
constatar a dificuldade imposta pela “natureza do leito do Rio, que daqui para baixo
cada vez mais empedrado fica, o que também põe a maior difficuldade á
navegação.” (HALFELD, 1860, p. 34). Basicamente, para além de Juazeiro, o
transporte de mercadorias seguia o curso fluvial em barcas menores, com
capacidade inferior ao que era praticado rio acima (NEVES, 2011), muito em função
da constatada irregularidade da via aquática.
Em fins do século XIX, Teodoro Sampaio, em sua viagem pelo rio São Francisco
e Chapada Diamantina documentada em livro homônimo, passa pela cidade de
Juazeiro (19 de outubro de 1879, população de quase 8 mil pessoas5) e faz a
seguinte descrição da cidade, quanto à sua urbanização:
O Juazeiro [...] tinha então para nós [...] o aspecto de uma corte do sertão. As suas construções, em que se procura observar certo gosto arquitetônico, a sua nova e boa igreja matriz, o teatro, uma grande praça arborizada, ruas extensas, comércio animado, porto profundo e amplo, exibindo uma verdadeira frota fluvial [...] nos levava a mudar o conceito que vínhamos fazendo deste rio e dos seus adustos sertões. (SAMPAIO, 2002, p. 102-103).
Entre os destaques da cidade baiana, Teodoro Sampaio apontava sua linha
férrea e sua localização, numa “encruzilhada de duas grandes artérias de
comunicação interior” (SAMPAIO, 2002, p. 103), ou seja, a estrada histórica entre
Bahia e Maranhão, através do Piauí, e a estrada fluvial e sua navegação por meio
do rio São Francisco. Tais aspectos comporiam um quadro de desenvolvimento que
levaria a cidade a um futuro prodigioso.
4 Por ocasião da passagem pela ilha do Serrote de Santa Rita, Halfeld conta o seguinte caso: “Os
barqueiros informarão-me, que seria perigoso o approximar-se do dito serrote que (como disserão) tem um sulapão debaixo do rochedo onde mora a Mãi d’agua, que já muitas vezes fez desapparecer embarcações e navegantes, vivendo com aquelles delles, que melhor lhe agrada, a quem dava depois riquezas, deixando-o livremente sahir. Contra a vontade dos barqueiros mandei dirigir a embarcação ao dito serrote, que se compõe de quartzo, e nada pude descobrir que pudesse dar motivo para semelhante fabula”. (HALFELD, 1860, p. 33). 5 Estimativa baseada em dados levantados por Francisco Vicente Vianna na obra Memória sobre o
Estado da Bahia, referentes ao ano de 1872.
30
Nesse contexto, a “Rainha do São Francisco” 6, por vários anos, viveu uma
hegemonia sem sombras no vale do velho Chico, dominando completamente a
atividade de navegação e, como bem relata Teodoro Sampaio, exibindo uma grande
frota de navios em seu porto. Além disso, Juazeiro apresentava uma organização
urbana não encontrada em outra cidade sertaneja banhada pelo São Francisco da
mesma época, fator atestado pelo engenheiro, após longa peregrinação por demais
cidades sanfranciscanas. Podemos lembrar que a cidade já possuía, na década de
1920, uma gama de edifícios públicos e privados que provocavam admiração na
população, frequentemente sendo relembrados pela memória coletiva
(CAVALCANTI, 1999). A exemplo disso, podemos citar a Estação Ferroviária e seu
imponente edifício, que se localizava na orla de Juazeiro, sendo hoje o ponto onde a
ponte Presidente Dutra 7 chega em terras baianas. O prédio, construído com uma
fachada em estilo neoclássico, ficava voltado para o outro lado do rio, uma espécie
de símbolo de poder e hegemonia.
Tendo feito uma estadia de quatro dias na cidade, aguardando a chegada do
vapor Presidente Dantas, que havia solicitado junto ao governo da Bahia para seguir
viagem para Sobradinho, Sampaio e os demais membros da expedição puderam
percorrer Juazeiro e arredores, e as impressões do engenheiro estão registradas em
seu relatório. Em determinado ponto de sua narrativa, ele chega a afirmar que “tudo,
com efeito, aqui concorre para tornar esta cidade um centro de ativas transações.”
(SAMPAIO, 2002, p. 103). Seu olhar já havia se detido sobre a frota de embarcações
no porto, bem como sobre o entroncamento viário propiciado no cruzamento entre
hidrovia e estrada dos tropeiros (valendo notar que ele também cita a via férrea que
se encaminhava para a região). Sendo Juazeiro “comumente denominada a praça
entre os sertanejos, mantendo com o porto da Bahia um grosso trato” (SAMPAIO,
2002, p. 104), título que Teodoro conheceu durante o processo de reconhecimento
do local, interagindo com os citadinos, o engenheiro baiano trouxe um fator que,
dentro de seu julgamento, poderia corroborar com a informação fornecida: “apesar
da distância e dos meios de transporte e das dificuldades vencidas, chegam aqui as
mercadorias européias por preços bem razoáveis, e ainda suportam com vantagem
o frete adicional para lugares mais distantes” (SAMPAIO, 2002, p. 104).
6 Termo de cunho popular, muito utilizado na região, para se referir à cidade de Juazeiro/BA.
7 Ponte sobre o rio São Francisco que integra Bahia e Pernambuco nas cidades de Juazeiro e
Petrolina.
31
Outro fator analisado por Teodoro, além da organização urbana de Juazeiro e
das transações comerciais locais, está relacionado com o que ele define como
“urbanidade”. Ao longo de suas anotações durante toda a viagem, este aspecto
parece ser um dos mais recorrentes, fazendo com que o engenheiro possa
comparar o trato recebido, em cada localidade, por parte dos moradores locais.
Em Juazeiro, sua impressão sobre este aspecto pode ser observada no trecho
a seguir:
Havíamos assentado acampamento, abaixo da cidade, à sombra dos
frondosos cajueiros de uma chácara situada à margem do rio. Em
poucas horas, porém, toda a população sabia da nossa chegada e o
que nela havia de mais distinto e elevado nos vinha visitar e oferecer
os seus préstimos. [...] Em breve, recebíamos convite para ceias e
jantares, bandejas de frutas e doces cobertos com toalhas de
riquíssimos bordados, e outras provas repetidas de consideração e
de simpatia. (SAMPAIO, 2002, p. 104).
Teodoro dá conta que havia notado “na população do Juazeiro a mais
obsequiosa atenção e urbanidade” (SAMPAIO, 2002, p. 104). Entretanto, a parte da
população que o interpela e o recepciona, classificada pelo engenheiro como “o que
nela havia de mais distinto e elevado” e que o presenteia com os mimos locais
(frutas, doces, ricos bordados, ceias e jantares), representa uma minoria mais
abastada dos citadinos locais. O aspecto da “urbanidade” de Sampaio, em Juazeiro,
negligencia (ou silencia ante), por exemplo, os trabalhadores presentes na frota
fluvial da cidade, que por ele foi citada em seu relato, indivíduos pertencentes a
grupos sociais menos favorecidos na localidade.
As observações fornecidas pelos dois relatos nos apresentam um panorama
sobre Juazeiro, as navegações, comércio e vida urbana na segunda metade do
século XIX, e nos servem como aporte para a compreensão da relação estabelecida
entre rio e cidade. Os relatos dos dois engenheiros forneceram, às suas respectivas
épocas, informações valiosas para que a própria exploração das navegações no
Velho Chico pudesse ser controlada ou mesmo realizada pelos poderes públicos.
Com o tráfego de vapores e o estabelecimento de um fluxo de viagens no rio, o
Estado, ainda que tardiamente, passou a desenvolver mecanismos de fiscalização
destas atividades fluviais. Em fevereiro de 1918, foi criada a Agência Capitania do
São Francisco, pelo decreto nº 12.886. Em 12 de março de 1919, foi mantida na
32
mesma categoria pelo decreto nº 13.495, passando à jurisdição da Capitania dos
Portos do Estado da Bahia, sendo nomeado seu primeiro titular, Manuel Silvano
Martins. Em 1923, em razão do aumento das atividades relativas ao transporte de
passageiros no rio, a então agência foi elevada a categoria de Delegacia, sendo
nomeado seu representante Leopoldo Torres da Silva. (FIGUEIREDO; SÁ, 1999)
Em 1940, a mudança mais significativa: pelo decreto nº 6.530 de 20 de
novembro, a Delegacia foi extinta, dando lugar à criação da Capitania Fluvial dos
Portos do rio São Francisco, englobando os estados de Minas Gerais e Bahia. No
ano seguinte, o primeiro agente a ser nomeado foi o tenente reformado Benjamin
Vilanova. Nesta mudança, Juazeiro passou a contar com uma agência fluvial, sendo,
ao lado de Pirapora/MG, sede da Marinha Mercante no São Francisco.
1.2 A cidade, o rio e os espaços urbanos que os unem
Um apito ao longe, meio cansado, anuncia que alguém chega. Sobre a ponte,
pessoas tentam buscar o melhor lugar para aguardar a parte levadiça fazer seu
trabalho: sob o comando da força dos encarregados, ela sobe, dando espaço para
que o vapor a atravesse. Lenta, seguindo o balanço das águas, a embarcação
chega ao porto; recebem-na olhares que revelam um misto de sensações. Saudade,
alegria, curiosidade, tristeza. A rampa de acesso à beira do rio se enche de pessoas,
subindo e descendo, num ritmo intenso. Contratos, vendas e compras, e também
encontros, despedidas; o espetáculo da vida social juazeirense em um ambiente
híbrido, água e terra, líquido e sólido.
Mudamos o foco de nosso olhar neste mesmo momento, e podemos
acompanhar, ainda no leve embalar das águas, os pequenos barcos que partem
rumo à cidade vizinha, Petrolina. Estudar, trabalhar, passear, brincar... O paquete
que leva e traz pessoas com tais objetivos compete, ao mesmo tempo, com a ponte
que agora fornece caminho rápido e gratuito entre as cidades.
No contínuo compasso do cotidiano, Juazeiro e o Velho Chico vão criando seus
laços, fincados, sobretudo, na prática diária de seus citadinos.
Aqui, convidamos o leitor atento a uma análise sobre a organização urbana de
Juazeiro a partir da década de 1940 e os espaços que uniam e unem a cidade ao
33
Velho Chico. Teremos como principal objetivo compreender as práticas de
sociabilidade e as dinâmicas urbanas que interligavam o rio à urbe em seu cotidiano,
utilizando nesta análise registros fotográficos de Juazeiro, bem como as memórias
de ex-trabalhadores das embarcações e pessoas que utilizaram ou puderam
conviver com o transporte fluvial entre as décadas de 1940-1970: chegadas e
partidas de vapores e barcas, transportando passageiros e produtos comerciais; o ir
e vir dos barcos à vela entre Juazeiro e Petrolina/PE; o olhar de pessoas da orla,
que acompanhavam a movimentação das embarcações ou que apenas admiravam
a paisagem do Velho Chico. O uso da fotografia e da memória oral, fontes
problematizadas aqui, fornece um panorama amplo de análise sobre os espaços em
questão, a partir das perspectivas fornecidas em cada ângulo e fala expostos.
Neste tópico, utilizaremos tais aportes para desenvolver uma perspectiva sobre a
relação cidade/navegações, porém evidenciando as reminiscências particulares de
cada entrevistado, atentando para as especificidades e sutilezas de cada olhar
(fotográfico, oral, cronístico) a maneira como estes narram suas lembranças e
reconhecem, no vai e vem cotidiano das embarcações, sua “juazeiro particular”.
A vida dura dos tripulantes das embarcações, sobretudo das chatas8; os
marinheiros que mergulhavam a qualquer hora do dia ou da noite, caso algo
interrompesse o funcionamento da hélice, o que comumente acontecia como no
caso das redes de pesca que ficavam presas ao rotor; as pessoas que, como nos
conta o memorialista Britto (1995), deslocavam-se para o cais ao escutar o apito do
vapor para observar a partida das embarcações; uma série de elementos, a serem
refletidos aqui.
Sobre este último aspecto, inclusive, há uma série de registros nos escritos de
cronistas locais, que reverberam um ideal romântico das navegações no cais da
cidade, como podemos ver no trecho a seguir:
As máquinas gemiam cansadas. Gente comprimida no convés,
subindo e descendo ao sabor dos movimentos da ‘gaiola’. Davam
adeus com as mãos ou agitavam as trouxas de chita encarnada.
Todo um mundo de homens mal vestidos, carregando sacos nas
8 São embarcações planas, sem motor, empurradas por remeiros e vareiros ou rebocadas por demais
barcos motorizados, e que serviam para o transporte de número elevado de produtos. Segundo
Neves (2009), a capacidade de carregamento destas chatas era de até 250 toneladas, em porões e
no convés.
34
costas e fumo no canto da boca. Mulheres de roupas vistosas, gente
de todas as classes. (CARDOSO apud DUMONT, 1999, p. 24).
O quadro que pintamos no início deste tópico parte de um apanhado de
fragmentos espalhados por todas as fontes coletadas e problematizadas. Os
registros fotográficos do período aqui abordado, por exemplo, nos fornecem parte
destes olhares sobre o panorama geral. Aqui, utilizamos este material tendo em
mente que as fotos “atuam no sentido de relatar, compor narrativas [...]. No entanto,
tanto a fotografia como os relatos orais dela provenientes compõem imagens-
monumentos que selecionam o que deve ser lembrado” (MAUAD apud RABELO,
2012, p. 3). Dessa forma, são os olhares e perspectivas que nos interessarão, uma
vez que “o relato oral, a fotografia e os documentos escritos não são chaves para
nos revelar o passado em sua inteireza, mas para dar acesso à uma interpretação
possível, por parte do historiador” (RABELO, 2012, p. 3).
Sabemos sem sombra de dúvidas que “o estudo da apropriação da imagem é um
desafio ao historiador interessado em mobilizar fontes visuais em suas pesquisas”
(LIMA; CARVALHO, 2009, p. 46), porém, este desafio deve ser encarado e
problematizado, com o intuito de, através do fazer historiográfico, integrá-lo ao corpo
de fontes possíveis para a construção da narrativa histórica.
De fato, quando observamos a imagem congelada de uma foto, devemos ter em
mente a intencionalidade do seu autor, bem como de que forma este imprimiu,
através da lente, sua ótica sobre o momento capturado; além disso, é preciso notar,
claro, as sutilezas, as informações involuntárias, além do intencional.
Podemos destacar com mais propriedade, no tocante às fotografias
selecionadas, a obra do fotógrafo e documentarista juazeirense Euvaldo Macedo
Filho (1952 – 1982). Através de sua lente, cenas do cotidiano urbano das cidades do
Vale do São Francisco foram captadas, sendo seu foco principal o rio e o modo
como as pessoas interagiam com ele. Entre as décadas de 1970 e 1980, Euvaldo
explorou diversas cenas diárias dos ribeirinhos juazeirenses, enfatizando situações
comuns, corriqueiras, que aos olhos dele transmitiam certo significado. Seu acervo,
bem documentado e mantido pela prof.ª Odomaria Rosa Bandeira Macedo, da
UNEB/Juazeiro, representa uma exceção na cidade. Em geral, e este é um grande
problema para a pesquisa histórica da região, boa parte das fotografias produzidas
35
em Juazeiro não possuem autoria confirmada, e muitas dessas imagens circulam de
forma aleatória entre museus e arquivos particulares.
Rabelo (2012), em pesquisas sobre as imagens e os conflitos da memória em
Juazeiro, ressalta a dificuldade encontrada no tocante à distinção e datação destas
fotografias. Por meio do uso da História oral, ele pôde identificar, a partir das falas
de pessoas ligadas ao campo fotográfico da cidade entre as décadas de 1950 e
1970, a atuação de pelo menos cinco estúdios: Foto Fialho, ArtFoto Paulista, Foto
Oliveira, Arte Foto Santo Antônio e Foto Tavares, responsáveis por grande parte das
imagens que hoje, diante do consumo aleatório, emolduram supermercados,
panificadoras, hotéis, escolas e uma infinidade de locais, de forma anônima e
totalmente desconexa de sua produção9. Algo que contribuiu de forma substancial
para isso foi a digitalização dos acervos fotográficos destes estúdios, sob pedidos do
“Museu Regional de Juazeiro, para uma exposição [...], reunindo fotografias antigas
reimpressas em formato ampliado, mas depois da qual não se devolveu os artefatos
para os familiares dos fotógrafos” (RABELO, 2012, p. 3). Sem o devido controle, tais
imagens passaram a circular, contemporaneamente, de forma livre em formato
digital.
Dentro desse contexto de consumo de massa das fotografias em Juazeiro, é
interessante ressaltar a forma como a apropriação destas imagens, que retratam,
em grande parte, as ruas, as praças, a ponte, as embarcações, telhados e suas
casas, monumentos e construções, se deu de uma forma tão forte, a ponto de
muitas delas figurarem até mesmo em paredes de estabelecimentos em nada
ligados à arte de fotografar, como uma lanchonete, uma panificadora, a nível mesmo
de decoração, a intrigar os observadores e instigar um gostoso exercício aos
moradores da cidade, o de adivinhar quando teriam sido feitas as fotos, que lugar
poderia ser aquele, tão diferente no preto e branco da tela.
De fato, a curiosidade e o prazer da observação estimulam o olhar do
expectador, da mesma forma que instigam a criatividade do fotógrafo. Em análise
das imagens captadas por Euvaldo Macedo Filho, por exemplo, pudemos
compreender bem essa premissa no foco de sua lente: seus olhos estão voltados
9 Este processo, até o presente momento de redação desta dissertação, ainda está em curso. Porém, algumas
iniciativas de identificação, datação e crédito destas fotografias vêm sendo desenvolvidas em Juazeiro e
Petrolina. O trabalho de Rabelo é um desses exemplos.
36
para o rio, a priori, e toda a atividade humana sobre ele; a posteriori, suas lentes se
deslocam para o espaço urbano, mantendo ainda a atenção para as pessoas e
aquilo que praticam na cidade.
Vamos começar, dentro dessa observação fotográfica, com uma prática das mais
simples em Juazeiro, e provavelmente das mais simples nas cidades ribeirinhas: o
banho. Caminhando pela orla dos anos 1970, podemos observar o ir e vir das
pessoas e toda a atividade humana cotidiana. Num virar de cabeça, podemos ver
um grupo de pessoas se aglomerando próximo à murada que serve de parapeito,
onde outras pessoas se debruçam para observar o rio. São homens e meninos, sem
camisa, calções curtos, e mesmo cuecas. Unem-se e pulam de encontro às águas.
Imagem 1 – “O tempo voa”: o movimento do salto, a ação do mergulho. Euvaldo une, numa foto, rio
e cidade em uma brincadeira comum aos jovens juazeirenses.
(FONTE: ASSIS, A. C. Coelho de; MACEDO, Odomaria R. B.; EGÍDIO, Chico. Euvaldo Macedo
Filho – Fotografias. Petrolina: Gráfica Franciscana, 2004).
O fotógrafo, rápido e atento, busca captar o movimento e, desta forma, dar vida
ao registro feito. Podemos destacar os elementos por ele utilizados: homens e
37
meninos em ação, no ato do salto; uma outra pessoa, já mergulhada, observando os
demais realizarem o movimento; o barco tranquilo, com dois tripulantes atentos à
diversão; por último, observamos a escolha do ângulo, mostrando as águas (em
período de cheia do Velho Chico) e o cais. Euvaldo, ao captar esse momento
através de suas lentes, nos apresenta um uso desse local, uma prática que, ao ser
desenvolvida pelos saltadores, dá um significado (dentre tantos outros possíveis, a
depender da prática) àquele lugar. Nesse caso específico, cristalizado através das
lentes do fotógrafo juazeirense, é este o local da brincadeira, do salto para o
mergulho. Concordando com Pollak (1992, p. 201-202), “existem lugares da
memória, lugares particularmente ligados a uma lembrança” que por sua vez é
construída pelos indivíduos por meio do tipo de prática desenvolvida nestes locais.
Porém, é este o local de brincadeira e mergulho para quem? A todos essa
memória é comum e pode servir como elo na teia coletiva de recordações? A
princípio, vamos definir aquilo que conceituamos como memória, e aplicamos nesta
análise:
Em primeiro lugar, são os acontecimentos vividos pessoalmente. Em
segundo lugar, são os acontecimentos que eu chamaria de “vividos
por tabela”, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela
coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. São acontecimentos
dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no imaginário,
tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível
que ela consiga saber se participou ou não. (POLLAK, 1992, p. 201).
Deste modo, concordando com Pollak e transpondo esta reflexão para o nosso
foco, nem só aqueles que pulam podem eventualmente reconhecer aquele espaço
como o local do salto para o mergulho, mas também o passante, que observa essa
brincadeira diariamente, mas que dela não toma partido; ou ainda, a mãe de um
desses meninos, que chegará molhado em casa e contará suas façanhas
acrobáticas no cais. Sem dúvida, “quando relatamos nossas mais distantes
lembranças, nos referimos, em geral, a fatos que nos foram evocados muitas vezes
pelas suas testemunhas” (BOSI, 1994, p. 406), de modo que fazemos destas
rememorações, vividas por tabela, parte de nossa própria memória. Entretanto, e
deve-se salientar isso, “por muito que deva à memória coletiva, é o indivíduo que
recorda. Ele é o memorizador e das camadas do passado a que tem acesso pode
38
reter objetos que são, para ele, e só para ele, significativos dentro de um tesouro
comum” (BOSI, 1994, p. 411).
Partindo deste pressuposto, nos perguntamos: o que podem nos dizer aqueles
que não pulam? Neste ponto, recorremos a uma conexão entre a imagem e os
relatos orais coletados durante o processo de entrevistas realizado em nossa
pesquisa. Ao longo do depoimento do Entrevistado 710, nascido em 1954, e que nos
trouxe elementos de sua infância na década de 1960, nos deparamos com um outro
tipo de memória sobre o banho de rio. Ele, advindo de uma família de comerciantes
estrangeiros, provenientes dos países da Síria e da Turquia, revela que não podia
mergulhar no rio por impedimento dos pais: “Meus primos tomava banho no rio, e a
gente ficava ‘porra, bicho, seu pai, titio num bate não?’, ‘não, ele bota a gente, dava
uns conselho’, e em casa eu apanhava mesmo”. Observamos em seu relato a
frustração do jovem garoto, à época, diante da impossibilidade de fazer aquilo que
os primos faziam (a exclamação estupefata, o medo de apanhar em casa, caso
mergulhasse). Além disso, ainda rememorando este tema, o entrevistado mais uma
vez deixou transparecer seu desapontamento: “Apesar de eu morar numa casa de
frente pro rio, mas mamãe não deixava”.
Dentro das análises feitas sobre esta narrativa, nos pareceu interessante notar
que o mergulho na orla (ou cais) da cidade poderia ser uma prática mais comum à
determinado grupo social, menos abastado. O Entrevistado 7 vem de uma família
que relativamente possui estabilidade financeira, apesar de já não deter, no período
de infância do nosso depoente, a proeminência econômica das décadas de 1940 e
1950. Outra informação que corrobora com isso é que o impedimento familiar ao
banho é anulado em um caso particular, como conta o próprio Entrevistado 7:
“Acima da capitania dos portos era uma praia, e meu pai abria ali, o povo da cidade
ia de sombrêro, de short, e ia pra praia, botava lá seu negócio e ia tomar banho no
rio, ali a gente podia com a praia”.
Se levarmos em consideração que tratamos aqui de uma cidade ribeirinha,
principalmente do fato de que boa parte de sua população trabalhadora exerce
funções ligadas ao rio, é difícil conceber que esta mesma população frequente uma
praia específica para apenas banhar-se no Velho Chico, tendo as águas disponíveis
por todo o tempo. De todo modo, observamos que o local rememorado pelo
10
Entrevista concedida em 05/12/2013.
39
Entrevistado 7, onde lhe era permitido mergulhar no rio, situa-se longe da orla e do
salto para as águas registrados por Euvaldo Macedo Filho em sua fotografia. Ou
ainda: para nosso depoente, há um local do permitido e outro do não permitido, uma
divisão que está clara dentro de sua narrativa e que expõe a relação do indivíduo
com estes lugares.
Vamos a mais um olhar: Eurípedes Alves de Lima, entrevistado em 31/12/1984
por Franca Pires, aparece nas anotações do Caderno 6 dizendo ter como principais
brincadeiras na infância tomar banhos de rio e pular dos vapores (Caderno 6, p. 8).
Seu Galo, apelido pelo qual era mais conhecido na cidade, foi cantor e compositor,
além de radialista em Juazeiro; era folião constante nos carnavais e costumava
cantar desde a infância nas casas da cidade (Franca Pires, num esforço por detalhar
as informações captadas, fornece uma série de dados em seus cadernos sobre cada
pessoa entrevistada). Os saltos de Eurípedes, temporalmente situados na década
de 1930, período de sua infância, geograficamente estão próximos do salto dos
“descamisados” que Euvaldo captou em sua foto, uma vez que os vapores
atracavam no cais da cidade e lá ficavam aportados até próxima viagem. Ao
observador contemporâneo mais atento, que se debruça na orla para observar o ir e
vir das barquinhas entre Petrolina e Juazeiro, o salto de embarcações é ainda
brincadeira corriqueira na beira do rio.
Indo mais a fundo nas reminiscências de Eurípedes, poderemos observar que,
longe de ser um local do não permitido, como o é para o Entrevistado 7, o cais e o
rio possuem ainda mais significado para si: é onde ele e alguns amigos faziam
carnaval com o bloco “Pequena do Havai”. Os integrantes tomavam paquetes e
canoas, iam à Ilha do Fogo11, soltavam fogos, dançavam, cantavam, e retornavam
ao cais de Juazeiro, onde mais convivas se reuniam ao bloco (Caderno 6, p. 15-16).
Dentro daquilo que “Seu Galo” rememora, e Franca Pires anota, aquele é o lugar do
divertimento, do banho, do mergulho, dos paquetes, do carnaval.
Porém, é também lugar de trabalho, como bem lembra a Entrevistada 812, viúva
de Eurípedes: “Ele trabalhava era... escrituração mercantil. Isso, era escrituração
mercantil, negócio de contabilidade. Era com isso que ele trabalhava. E era uma
11
Ilha do rio São Francisco, situada entre Petrolina e Juazeiro exatamente na divisa entre os estados
de Pernambuco e Bahia, e por sobre a qual passa a Ponte Presidente Dutra. Devido à sua
localização, próxima aos centros das duas cidades, costuma ser bastante frequentada pelos citadinos
petrolinenses e juazeirenses. 12
Entrevista concedida em 24/03/2013.
40
porcaria que ganhava, coitado”. Funcionário da Viação Bahiana do São Francisco,
seu cargo exigia que ele realizasse vistorias nas embarcações da companhia, como
bem explica a Entrevistada 8: “Tinha os vapores que vinha, ele tinha que ir lá nos
vapores, via, vê até as rôpa de cama dos vapores, ele tinha que fiscalizar tudo
aquilo, era aquela agonia maior do mundo”.
Durante sua narrativa, não raro, testemunhamos momentos de lamento dela em
relação ao trabalho do esposo. “Não tinha estrutura de marinheiro”, afirma, em
determinado ponto, ao citar os problemas de saúde do marido atribuídos por ela ao
fato de Seu Galo adentrar nos porões dos vapores durante o serviço.
É interessante notar que essa informação, que faz referência ao trabalho na
companhia de navegação, não faz parte daquilo que Eurípedes conta a Maria
Franca Pires em seus cadernos. Ao longo das páginas em que ela realiza suas
anotações sobre a fala dele, vemos histórias de carnaval, festas, futebol, músicas,
mas nenhuma menção ao trabalho que desempenhava nos vapores. É possível
notar que Eurípedes busca, em seu relato, passar, naquele momento, uma imagem
pública condizente com sua condição de comunicador; podemos identificar também
seu distanciamento do trabalho fluvial, algo que evidencia sua negligência no
tocante à atividade que desempenhava na companhia de navegação.
Outro ponto que precisamos destacar é que frequentemente, ao longo das outras
entrevistas, a menção às navegações acaba aparecendo, o que nos permite
considerar que Franca Pires explorava, em suas perguntas aos entrevistados,
temáticas voltadas ao rio e ao trabalho neste (inclusive o próprio Seu Galo).
De fato, vemos aqui que cada indivíduo que rememora escolhe, para si, os
momentos mais significativos e representativos (BOSI, 1994). Eurípedes traz à tona
momentos de alegria, descontração, festa; a Entrevistada 8, por sua vez, saudosa
do marido falecido, grande admiradora do companheiro, porém machucada pelos
anos de luto e pelas saudades, busca nas lembranças a imagem do homem
esforçado, trabalhador, sofrido.
Seguindo a trilha das memórias da Entrevistada 8, podemos encontrar mais uma
experiência com o local, mais um significado dado através da prática cotidiana ao
espaço em questão. Com 88 anos na ocasião de nossa conversa13, ela vive com os
netos em uma pequena casa no centro de Juazeiro; tendo sofrido uma série de
13
A ocasião da entrevista é março de 2013. A entrevistada nasceu em 1925.
41
perdas na família (marido, filho e outros parentes), nossa depoente imprime em sua
fala uma carga emocional bastante pesada, expressão possível de memórias
encaradas, no momento da recordação, como traumas. Juntamente à lembrança do
marido, que vai e volta ao longo de sua narrativa, ela resgata a imagem do pai e as
viagens de barco, em família, pelo rio.
Meu pai com minha mãe era assim: ‘eu vou viajar, mas não vou
deixar minha família. Viajo com meus filhos e minha mulher’. [...] Ele
era um apego horrível aos filhos. Aí quando ia pra cidade da Barra,
pra esses lugar por aí su... subindo o rio, ele levava imediatamente
os filhos. Tirava da escola.
Sendo seu pai comandante de embarcações da Viação Bahiana, nossa depoente
costumeiramente seguia-o pela hidrovia, juntamente com a mãe e os irmãos. Ao
acionar essa memória, observamos que a entrevistada foi da tristeza à alegria muito
facilmente: a recordação do pai e sua ausência faziam com que sua voz e seu
semblante ficassem mais pesados, porém, tão logo nos reportasse as suas
impressões de viagem, risos devolviam a leveza de sua expressão facial. Em um
desses momentos, seu relato nos aproxima das sensações da jovem, em ocasião do
embarque em um vapor:
Ah, meu Deus, num sei se é porque era criança. E papai dizia: ‘Nós
vamo pra cidade da Barra, tenho um trabalho na cidade da Barra,
prepare aí’. Arrumava tudo, a gente tudo impindurada nas grade da...
[risos] olhando: ‘Ê, adeus, adeus’, aí ia [risos] pra cidade da Barra.
O regresso à Juazeiro não é menos animado, e a depoente, ao concluir essa
memória, finalizou com um suspiro: “Era bom”. Após a morte do pai, em 1937,
cessaram as viagens nos vapores. No entanto, as lembranças que vão se
desenrolando ao longo da narrativa ainda estabelecem uma conexão com o rio, em
particular com a navegação. Podemos destacar dois pontos mais latentes e mais
expressivos. O primeiro, um olhar do cais para o rio, relacionado às viagens nos
vapores e, especialmente, ao modo como o apito do vapor era recebido por parte
dos citadinos: “Quando o Barão do Cotegipe14 dava um apito lá bem distante, é todo
mundo trocando de roupa e tudo pra vir se dibruçar no cais [...], deles pra receber
14
O navio a vapor Barão de Cotegipe.
42
parente e deles pra ver o movimento [...] da chegada dos navio”. No segundo,
embarcamos com nossa entrevistada e navegamos sobre o Velho Chico, na
travessia Juazeiro/Petrolina, antes da construção da ponte Presidente Dutra, na
década de 1950. Muito devota, ela frequentava constantemente as missas em
Petrolina/PE, alegando gostar muito do contato com as freiras Salesianas,
responsáveis pela organização e administração do Colégio Nossa Senhora
Auxiliadora, para meninas, local onde a entrevistada queria muito estudar (mas não
pôde, por questões financeiras): “Tinha umas canoinha, e tinha um velho preto,
muito direito e tudo, que era quem levava a meninada que estudava por lá, que
ficava frequentando lá”.
A frustração de não ter conseguido estudar no colégio das freiras é sentimento
presente em sua narrativa. Em determinado ponto, ela chega a afirmar,
pesarosamente, que “todo mundo queria estudar lá”.
Como a Entrevistada 8 se apropria do local e que significado atribuído por ela é
revelado em suas rememorações? A princípio, é este o local de saudades.
Saudades do pai e suas viagens em vapores, além de saudades da família e da
unidade existente entre seus membros, relatada pela depoente. Além disso, é este o
local de partidas e chegadas, de olhar pelas grades e dar adeus para aqueles que
ficam. É também local que ativa, em sua memória, sentimentos desagradáveis: a
tristeza pelo marido e seus constantes problemas de saúde no trabalho com as
embarcações, a frustração de não ter podido continuar seus estudos com as freiras
salesianas de Petrolina. Os sentimentos e apropriações são diversos dentro das
rememorações de nossa depoente. Porém, acima de tudo, o local a que nos
referimos (do mergulho dos descamisados de Euvaldo, do banho proibido do
Entrevistado 7, das festas e cantorias de Eurípedes, o Seu Galo), no depoimento da
Entrevistada 8, é um local de vivências, experiências, sociabilidades.
É também, por consequência disto, um local de disputas, de conflitos.
Na manchete “Cousas erradas” do jornal O Arauto, de 1939, podemos encontrar
um exemplo de choque entre práticas, ligadas ao espaço rio/cidade da orla, e que
ilustra bem essa questão.
Juazeiro é uma cidade que possue afamados foros de cidade rainha,
cumpre, pois que os seus filhos saibam e prôcurem dignificar-lhe
êsse merecimento. Não temos, todos sabem,um serviço de irrigação.
Por isto a agua nos è fornecida por homens e mulheres que fazem
43
disso a sua profissão. Até aí tudo bem. Acontece, porèm, que êsses
fornecedores de agua não procuram andar pelo meio das ruas, como
seria mas correto, e, quasi sempre com latas furadas, andam por
sobre os passeios, interrompendo, de certo modo os transeuntes.
Vê-se pois que está errado. Acreditamos que a Prefeitura devia
proibir êsse trânsito, principalmente na travessa do Mercado, um dos
pontos mais concorridos, e onde se espalha a fiscalização municipal,
porque si assim continuar, estamos certos que será uma mancha aos
nossos fòros de cidade civilisada. (O ARAUTO, ano I, n. 6, 1939, p.
1).
O grande problema aqui, de acordo com a matéria do jornal, é o fato de os
“fornecedores de água”, enchendo seus baldes no rio, passarem pelas calçadas (e
não pelo meio da rua) fazendo o transporte até seus clientes. Isso seria uma
“mancha aos nossos fòros de cidade civilizada”, como mostra O Arauto. O exemplo
da matéria que trazemos à luz caracteriza-se enquanto contraponto entre práticas
desenvolvidas à beira do rio (encher baldes de água) e a noção do local
permitido/proibido de que vínhamos refletindo anteriormente, em especial nos
relatos do Entrevistado 7. A controvérsia, neste caso, está no fato de que o serviço
em questão, necessário em função da falta de um serviço de encanamento de água,
estaria causando desconforto entre os passantes.
Local e espaço. O espaço é o local praticado. De acordo com Certeau, um local
“é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de
coexistência” (CERTEAU, 2012, p. 184); é uma delimitação geográfica, onde
pessoas praticam suas vivências: transitam, conversam, rumam para seus trabalhos,
para a escola, etc. Este local, quando praticado por meio destas atividades, pode ser
chamado de espaço, sendo este o palco onde se desenrolam as ações dos
indivíduos. Ao caminhar por este espaço, o citadino ordinário realiza “um processo
de apropriação do sistema topográfico” (CERTEAU, 2012, p. 164), assim como
aquele que fala se apropria da linguagem. Desse modo, compreendemos,
concordando com Certeau, que o ato de praticar o local, transformando-o em
espaço, desde uma simples caminhada até o trabalhar diário, é uma ação de
apropriação do lugar.
Este caminhar pela cidade representa “falas” traduzidas em passos, existindo
nisto “uma retórica da caminhada. A arte de ‘moldar’ frases tem como equivalente
uma arte de moldar percursos” (CERTEAU, 2012, p. 166); o percurso desenvolvido
por um indivíduo revela sua experiência com o espaço que pratica. Destarte, tal qual
44
nossas construções argumentativas, que passam por uma arte de moldar frases, e
mostram ao interlocutor uma série de características próprias, como o estilo de falar,
a linha de pensamento, a opinião sobre o assunto, nossos passos pela cidade
revelam mais sobre quem somos, o que fazemos, de onde falamos. Avançando um
pouco mais no referencial teórico que Certeau nos traz, podemos dizer que o modo
como praticamos o local, transformando-o em espaço, é uma “fala” daquilo que
somos, ou somos induzidos a ser.
Dentro dessa reflexão, é válido ressaltar que este espaço, local praticado pelas
pessoas que por ele transitam e nele exercem suas atividades,
é um produto material em relação com outros elementos materiais –
entre outros, os homens, que entram também em relações sociais
determinadas, que dão ao espaço (bem como aos outros elementos
da combinação) uma forma, uma função, uma significação social.
(CASTELLS, 2009, p. 181).
Constituindo-se como um meio fundamental de tráfego humano e comercial, a
navegação no São Francisco, trabalho cotidiano de grande parte dos homens e
mulheres de classe humilde em idade ativa, e veículo de uso por boa parcela dos
moradores da Juazeiro, configurou-se como elemento integrador entre rio e cidade,
fazendo com que, por meio da prática social, o local comunicador (o cais, a rampa
que sobe para o centro, a faixa de terra à beira do rio) fosse, de fato, significado
pelos citadinos como espaço socializador, bem como espaço de distinções e
hierarquias. Podemos identificar tal elemento nas narrativas de fluviários
aposentados e moradores da cidade que, entre 1940 e 1970, puderam utilizar este
transporte em suas possibilidades.
É preciso compreender que tanto o centro quanto a margem
(encostas do rio) são construções humanas, inseridos, portanto,
obrigatoriamente em um mesmo espaço, o urbano. Os dois
compõem cada um a seu modo, a geografia da cidade. Pois a
cidade, enquanto resultado da ação humana consegue concentrar a
pluralidade e a diferença. Pensada e compreendida através do modo
de viver, morar e sentir, delineando e imprimindo gradualmente a
constituição de espaços configurando, assim, uma cultura do urbano
(MORAIS, 2012, p. 47)
45
As práticas neste local vão variar de indivíduo para indivíduo: o homem que
carrega sacos para embarca-los nas barcas e vapores desenvolve com o local uma
experiência adversa daquela construída por um usuário, que se prepara para uma
viagem rio acima, em primeira classe. Para o carregador, o espaço entre rio e cidade
significa trabalho, esforço, suor; para o usuário, espaço de partidas e chegadas,
onde poderá ver a cidade gradativamente se distanciar ou se aproximar, ao sabor do
balanço das águas. Estes dois indivíduos praticam o mesmo local, porém as ações
que desenvolvem, e que transformam o lugar em espaço, são distintas. Portanto,
“ele não é uma pura ocasião de desdobramento da estrutura social, mas a
expressão concreta de cada conjunto histórico, no qual uma sociedade se
especifica” (CASTELLS, 2009, p. 181-182).
Imagem 2 – “Braços que trabalham”: remeiro, carregando a embarcação com frutas. Cena comum
no cotidiano juazeirense.
(FONTE: ASSIS, A. C. Coelho de; MACEDO, Odomaria R. B.; EGÍDIO, Chico. Euvaldo Macedo
Filho – Fotografias. Petrolina: Gráfica Franciscana, 2004).
Desta forma, o local que aqui refletimos é o espaço das práticas de trabalho: o
carregamento dos produtos, a navegação comercial, os contratos firmados entre
patrão e empregado; por conseguinte, é também o local da força, da explosão
muscular, do suor. O clic do fotógrafo Euvaldo (imagem 2) capta bem estes últimos
três elementos na imagem acima: o homem sem rosto, personificação do fluviário,
46
que carrega sua canoa com frutas a serem comercializadas e/ou carregadas em
uma embarcação maior, representa o pequeno trabalhador em sua lide cotidiana.
O cais, a orla, o porto (e as nomenclaturas variam para a faixa entre cidade e
rio sobre a qual nos debruçamos) é o espaço, também, dos sentimentos, das
sensações, como bem pudemos observar nos relatos citados; espaço que
representa despedidas e acolhidas.
1.3 Usos e representações das navegações e do São Francisco no imaginário
juazeirense
Por que o imaginário? Há quem considere, dentro do fazer historiográfico, ser
esse um lugar comum das pesquisas. A recorrência ao fantástico, aquilo que
aparentemente nada mais é do que imaginação, sem um claro link com a realidade,
poderia caracterizar aqui uma ruptura, por exemplo, com a proposta de análise do
aspecto memorial. O imaginário, aquilo que foge ao concreto, não poderia ser
considerado parte das rememorações, já que não trata das experiências cotidianas
dos sujeitos em questão. Durante a construção desta pesquisa, tais reflexões
estiveram presentes, muitas delas fomentadas, inclusive, em debates dos quais
pudemos participar dentro do ambiente acadêmico. Porém, insistimos em contar
com este aporte principalmente por considerarmos que
a memória é uma parte da alma à qual pertence a imaginação, e
todas as coisas imagináveis são, em essência, objetos da memória.
A experiência sensorial imprime na memória uma espécie de
imagem, como um selo que se imprime na cera com um anel
(GEARY, 2006, p. 178).
A atividade de rememorar é também um exercício da mente em resgatar, nos
cantos mais profundos de nossa memória, elementos que de fato signifiquem ser
parte do passado reclamado para si pelo sujeito; dentro deste processo, práticas,
experiências e sensações acabam sendo resgatadas e interpretadas, com os olhos
do presente, por parte daquele que recorda. Pudemos explorar este exercício
exaustivamente no tópico anterior, a partir de experiências concretas, reais,
47
vivenciadas pelos nossos depoentes. Aqui, buscaremos auscultar para além disso,
captando o aspecto imaginativo das memórias, onde residem as lembranças que
extrapolam o conceito de real, mas que demonstram a relação existente entre sujeito
e rio através das apropriações do real feitas nas recordações ditas “fantasiosas” e
pouco fiáveis. Ora, “o imaginário, como sistema de idéias e imagens de
representação coletiva, teria a capacidade de criar o real” (PESAVENTO, 2002, p.
8), ainda que este real represente as apropriações feitas pelos indivíduos sobre a
realidade.
As relações construídas pelas práticas sociais em Juazeiro, no tocante à
conexão rio e cidade, além das contribuições memoriais já trabalhadas no tópico
anterior, também foram responsáveis pela construção de uma série de “causos” e
lendas urbanas em torno da beira do rio. As leituras feitas dos cadernos de Maria
Franca Pires, uma série de relatos por ela coletados em entrevistas com moradores
de Juazeiro dão uma amostragem disso.
O caráter de nossa análise sobre estes testemunhos vai se pautar na ideia de
que estes fornecem também perspectivas daqueles que falam sobre a cidade e
sobre as navegações no São Francisco, uma vez que englobam estes elementos na
narrativa, revelando também a forma como são apropriados pelos sujeitos. Assim,
queremos evidenciar que “o espaço urbano, na sua materialidade imagética, torna-
se, assim, um dos suportes da memória social da cidade” (PESAVENTO, 2002,
p.16), nesse momento, analisadas através do imaginário construído pelos citadinos.
Considerando o acima exposto, utilizaremos trechos das anotações realizadas
por Maria Franca Pires em suas pesquisas informais com moradores da cidade.
Tendo sido utilizados já anteriormente neste capítulo, os cadernos de Franca Pires
compõem uma fonte importante, ao passo que ela, ainda que de forma autônoma e
desprovida dos métodos acadêmicos, pôde realizar entrevistas, captando as
memórias dos citadinos sobre diversos elementos culturais e sociais de Juazeiro.
Dentre estas anotações, colhemos alguns dos relatos que aliam elementos
inerentes ao imaginado, ao fantástico, ao surreal, juntamente com percepções do
concreto, do dia a dia ribeirinho, relacionado ao rio e às navegações.
Eunice Teixeira dos Santos, uma das pessoas com quem Franca Pires travou
conversação, conta em sua narrativa que “moradores de margem do rio,
costumavam dizer que, viam vapores bem iluminados no rio e [quando] chegavam
perto, não era nada”. (Caderno 6, p. 39). Aqui, a estória contada busca elementos na
48
realidade: os vapores iluminados são reflexo dos navios reais, já costumeiros na
paisagem juazeirense. O que marca esse conto é justamente a utilização de uma
imagem bastante presente nas memórias aqui trabalhadas, o vapor, embarcação
que podia ser distinguida a partir do seu apito, e que causava alvoroço ao atracar no
cais da cidade. Vemos a conexão entre o aparentemente irreal com o elemento
concreto, elucidando a permanência deste inclusive no imaginário fantástico.
Um outro elemento presente nos casos contados é o religioso. O rio, dentro da
esfera de influência deste elemento, torna-se instrumento de sua manifestação. Na
entrevista com Maria Bárbara Conceição Silva, a Maria de Joaquim Paqueteiro,
dono do paquete Brasil, Franca Pires anota a estória curiosa, contada por ela, de
Domingos, barqueiro da cidade. Passando por Bom Jesus da Lapa, em viagem
“subindo” o rio, ele se negou a parar para que os passageiros pudessem prestar
suas homenagens ao santo. Em decorrência disso, sua embarcação momentos
depois teria começado a balançar e quase virar, perdendo direção. Assustado,
Domingos prometeu ao Bom Jesus que voltaria, caso normalizasse todo esse
problema. Tendo sua prece atendida instantaneamente, o barqueiro deu meia volta
e permitiu que todos fossem ver o santo. (Caderno 6, p. 69-70). Teria o Bom Jesus,
protetor das embarcações e de todos aqueles envolvidos nas navegações do São
Francisco, segundo dona Maria de Joaquim, desgostado da desobediência de
Domingos, punindo-o com o susto? Um conto ao estilo dos Exempla medievais: o
fiel precisa corresponder ao esperado por um bom cristão; a desobediência é punida
com a ira das águas.
O sobrenatural é ainda recorrente em outra narrativa: Valdemira Maria dos
Santos, dona Didi, conta-nos experiências do tempo em que desempenhava funções
de copeira no vapor Cordeiro de Miranda. Segundo conta a Franca Pires, após a
meia-noite, em uma das viagens da embarcação, podia-se ouvir o barulho de pratos
e panelas caindo na copa da embarcação, ao que todos estariam dormindo.
Segundo ela, ao ir até o lugar constatar o que estaria acontecendo, encontrava tudo
na perfeita ordem. Outra história por ela relatada dá conta de uma camareira
fantasma, que sacudia lençóis e toalhas na embarcação (Caderno 6, p. 23-25). Vale
ressaltar, e isso Maria Franca Pires também o faz em suas anotações, que dona Didi
era espírita. As experiências “sobrenaturais” relatadas na entrevista são também
influenciadas pela sua crença religiosa, ainda que consideremos que as referências
ao sobrenatural possam extrapolar a determinação de crença do indivíduo. Porém,
49
os elementos que permeiam o que é contado (a navegação no Velho Chico, as
manifestações espirituais, sendo o palco o vapor) mostram uma proximidade entre
esta e as entrevistas anteriores.
Este fio condutor nos aproxima da relação estabelecida, nestas estórias, entre
o rio e aquilo que é tido como inexplicável. É ele, o São Francisco, palco flutuante
destes relatos; porém, isso não significa que atue apenas como elemento passivo no
imaginário. No nosso próximo relato, vemos o Velho Chico não mais como mero
palco. É na fala de Maria Isabel Ribeiro Granja, conhecida como Bela, que
observamos tal característica. Sua história remete a um personagem folclórico
conhecido da região, a Mãe d’água. Franca Pires anota o seguinte:
No início da década de 40, a entrevistada diz que, voltando uma
tarde de Petrolina, ao olhar p/ as pedras q. ficam do lado de
Petrolina, viu sentada em uma pedra, uma moça muito bonita com
cabelos longos e qdo chamou a atenção dos outros companheiros de
viagem, a moça jogou-se dentro do rio e todos ouviram o barulho das
águas. Era o paquete Brasil e dirigido por Marciano, empregado do
dono do paquete Sr. Joaquim Paqueteiro (Caderno 6, p. 84).
Dona Bela fazia a travessia entre as cidades, uma atividade bastante
corriqueira no cotidiano de moradores de Juazeiro e Petrolina. A visagem da moça
sobre as pedras a fez associá-la, na entrevista, ao ser fantástico conhecido
popularmente na região como Mãe d’água. Aqui, o rio esconde o mistério, e ainda
que na ocasião, de fato, apenas uma moça estivesse tomando banho nas águas do
rio, a conexão com o sobrenatural aparece de forma clara.
Esta atitude pode ser observada, principalmente, dentre os trabalhadores
fluviários. É possível identificar sinais de proteção espiritual, por exemplo, nos
instrumentos de trabalho com o rio. O cronista Wilson Lins observa que, nos remos
das embarcações “quase sempre tem uma cruz ou um símbolo de Salomão
desenhado na pá” (LINS apud PARDAL, 2006, p. 120). O perigo recorrente dos
seres ocultos pelas águas, como o Nego d’água e o Caboclo d’água, responsáveis
por dificultar a vida nas travessias pelo rio, suscita o desenvolvimento de técnicas de
combate. Em relação ao Caboclo d’água, “conjura-se o seu ataque, levando uma
faca no fundo da canoa” (RIBEIRO apud PARDAL, 2006, p. 120).
As figuras de proa, durante muito tempo utilizadas nas barcas denominadas
Emas, de certo modo representavam uma tentativa de proteção diante destas
50
manifestações do Velho Chico. As carrancas, nome popular destas esculturas, eram
presença constante nestas embarcações. Pardal (2006) observa a possibilidade de
um uso duplo destas figuras: primeiro, o uso protetivo, em muito baseado nas
crenças em torno dos aspectos místicos do São Francisco; segundo, a ideia de
embelezamento da embarcação por parte dos barqueiros.
É interessante notar que tais elementos permeiam o imaginário juazeirense,
bem como adentram o espaço de trabalho das navegações.
51
2. NAVEGAR É PRECISO, VIVER TAMBÉM! SUOR, VIDA E AMORES NAS
MEMÓRIAS DE EX-TRABALHADORES DAS NAVEGAÇÕES.
Vamos, neste capítulo, nos debruçar sobre o viver e o sobreviver na cidade de
Juazeiro, entre as décadas de 1940 e 1970, através da ótica dos ex-trabalhadores
das navegações do Velho Chico. Este período, que compreende uma série de
modificações nas atividades desenvolvidas no rio São Francisco, como o advento
dos motores movidos a óleo diesel, introduzidos tanto pela iniciativa privada dos
comerciantes locais, já a partir de 1940; a obsolescência dos navios roda-popa
movidos a vapor em detrimento da nova velocidade das barcas motorizadas, bem
como em decorrência do advento das rodovias e dos automóveis, em meados da
segunda metade da década de 1950, persistindo nas décadas adiante; a construção
da ponte Presidente Dutra e a conexão rodoferroviária entre Juazeiro e Petrolina/PE,
em 1950; configura-se em um momento chave de transformações nas relações
econômicas e sociais em Juazeiro e cidades vizinhas.
Este processo de transformações, identificado a nível local, também pode ser
observado em âmbito nacional. Em três décadas, o cenário político brasileiro assistiu
à queda de Vargas, que esteve 16 anos no poder, no pós-Segunda Guerra Mundial.
Após um período curto de governo interino, com José Linhares ocupando o cargo,
provisoriamente, a retomada das eleições diretas com partidos novamente
disputando um pleito democrático levou ao poder o militar Eurico Gaspar Dutra, em
31 de Janeiro de 1946. A promulgação da constituição, no mesmo ano, que trazia de
volta os direitos amplos dos cidadãos do país, ampliando-os, ventilou novamente
ares democráticos após a Era Vargas. É o próprio Getúlio, dentro deste novo
contexto, que volta à presidência, eleito para o mandato de 1951-1955, interrompido
em 1954 após seu suicídio no Palácio do Catete15. Café Filho, seu vice, o substitui,
dando lugar, após as eleições, a Juscelino Kubitschek, para o mandato de 1956 a
1961. Após JK, Jânio Quadros (1961) e João Goulart (1961 – 1964) dividiram um
15
O atentado na Rua Tonelero contra o jornalista Carlos Lacerda (que saiu ferido, tendo morrido o
major-aviador Rubens Florentino Vaz) incendiou o cenário político nacional. A pressão militar,
juntamente com toda a mídia em torno do caso, veio a tornar a continuação do mandato de Vargas
insustentável.
52
mandato que acabou suprimido pelo golpe militar de 1964. Humberto Castelo
Branco dá início, ainda no mesmo ano, ao ciclo de militares no poder durante a
ditadura, que vai perdurar por todo o restante do nosso recorte temporal, acabando
apenas em 1985.
Em Juazeiro, tais eventos tiveram repercussão na organização política a nível
local. Entre 1937 e 1945, o coronel Aprígio Duarte Filho, beneficiado com o golpe de
Vargas do dia 10 de novembro de 1937, ficou à frente do município enquanto
prefeito, até a deposição de Getúlio. (CHILCOTE, 1990). Seus principais opositores,
os Viana (ou Vianna), retomariam a posse do governo municipal, primeiramente, de
forma interina, com Edson Ribeiro, aliado político desta família; logo, em 1948, por
meio de eleições realizadas no ano anterior, Alfredo Vianna, pela UDN, assumiu o
cargo, após vitória sobre o mesmo coronel Aprígio Duarte Filho, candidato do PTB,
com uma numeração expressiva (O FAROL, ano 1, n. XXXIII, jan. 1947). A força da
família Viana em Juazeiro, representada por Edson Ribeiro e Alfredo Vianna,
perduraria até 1963, sendo ameaçada entre 1954 – 1958, quando José Padilha de
Souza, do PTB, conseguiu chegar à prefeitura municipal (CHILCOTE, 1990). As
eleições de 1962 trouxeram Américo Tanuri ao posto, representando o PTB e uma
linha política populista. Com o golpe militar, a partir de 1964, os políticos locais
passaram a compor o partido ARENA, dividido em ARENA-1 (grupo Vianna) e
ARENA-2 (grupo de Américo Tanuri).
Neste bojo, identificamos o período 1940 – 1970, seja no campo econômico,
político e técnico, como um período de transformações bastante significativas e que,
dentro da construção das reflexões e análises adiante, receberão o enfoque
necessário, a partir das questões levantadas em relação às memórias que constam
nos relatos dos depoentes. Assim, refletindo sobre as falas dos entrevistados,
daremos destaque às lembranças, silêncios e sentimentos contidos em suas
narrativas.
Além dos registros orais, faremos uso do livro do cronista juazeirense Ermi F.
Magalhães, também ex-navegante do São Francisco, e que reúne em grande parte
suas recordações sobre seu trabalho no Velho Chico. As reflexões e observações ao
longo deste capítulo comporão uma análise sobre as identidades em questão, a
partir das memórias narradas pelos sujeitos e dos elementos que estes trazem à
tona ao recordar seu trabalho, o convívio familiar e a vida na cidade de Juazeiro.
53
As embarcações movidas por caldeira à lenha, conhecidas como vapores,
reinaram absolutas durante quase um século nas águas do rio São Francisco (1870
– 1960), mas estiveram sempre ladeadas por demais tipos de navegação (em
barcos à vela, canoas, barcas de figura, lanchas, etc.). Nesse tempo, foram todas
estas responsáveis pelo transporte de passageiros e mercadorias, além de fonte de
renda para boa parte da população da cidade de Juazeiro/BA. Viagens entre
cidades, transporte dos produtos da região e de artigos advindos do sudeste do
país, travessia para a cidade vizinha, Petrolina/PE, circulação de notícias, e até
mesmo simples passeios: uma enormidade de atividades sobre as águas do Velho
Chico.
A partir dos anos 1950, com a introdução de barcos motorizados por
“barqueiros do São Francisco, provenientes do Estado de Sergipe, que se instalaram
em Juazeiro e em outras cidades do curso do médio do rio” (NEVES, 2009, pp. 27-
28), os motores abastecidos com óleo diesel imprimiram uma nova dinâmica ao
comércio e às viagens na região. Singrar as águas em menor tempo, com menor
custo e maior possibilidade de lucro ao final do trabalho, foram modificações de
grande relevância. O juazeirense estava ligado ao rio por meio do seu cotidiano de
trabalho, e a cidade de Juazeiro é edificada, assim como as demais comunidades
ribeirinhas, seguindo o ritmo dessas embarcações.
Entretanto, os motores não funcionavam por conta própria; as embarcações
não navegavam ao seu bel prazer, e o carvão não queimava por sua vontade. É
preciso que nos indaguemos sobre as mãos e os braços que conduziram as
atividades nesse processo. Sobre os ombros de quem pesou o remo? Aos dedos de
quem as grandes caldeiras das embarcações infligiram queimaduras e
machucados? Os músculos de quem se contraíram no esforço de movimentar os
remos e varas, impulsionando as barcaças, ou de carregar os pesados sacos cheios
de produtos? Quais práticas, ações, ideias, culturas puderam ser construídas por
tais pessoas? Por entre carrancas, motores, proas e popas, homens suaram o
suficiente para que passageiros e produtos fossem transportados sobre a face, às
vezes tranquila, às vezes raivosa, das águas do Velho Chico.
Faz-se indispensável, assim, ouvir aqueles que puderam viver e atuar nesse
processo. Serão fornecidos ao leitor, ao longo da escrita, trechos de alguns dos
depoimentos coletados entre março e agosto de 2012, em Juazeiro/BA, com
trabalhadores aposentados ligados ao transporte fluvial da cidade entre as décadas
54
de 1940 e 1970, oriundos de funções variadas dentro do exercício navegante no São
Francisco.
As histórias contadas, as experiências vividas, as tristezas e as angústias
presentes nas falas, representarão mais que meros personagens: serão pessoas de
carne e osso, abrindo a porta da sala de estar de suas casas, para serem ouvidas.
Seus silêncios, suas omissões, as vozes embargadas, serão detalhes que comporão
nossas análises e que podem ser tão reveladores quanto aquilo que foi dito
(POLLAK, 1989). É preciso, destarte, ter bastante cuidado com as análises em torno
deste grupo identitário, no tocante ao perigo de se homogeneizar os elementos
constituintes desta memória coletiva, uma vez que
deve-se ter em mente, ao estudar a construção das identidades
coletivas, que elas são sempre construções fluidas e cambiantes,
nas quais não se pode encontrar algo como um “núcleo duro”, um
“caroço” essencial e imutável, mesmo que muitas vezes o grupo
identitário tenda discursivamente à unificação e ao essencialismo e
busque a construção de uma memória livre de contradições
(BILHÃO, 2006, p. 222).
Antes de mais nada, devemos promover aqui a conceituação de alguns termos
definidores de sujeitos que serão mencionados ao longo deste capítulo. O intuito é
sanar as possíveis dúvidas futuras do leitor atento. Esses termos estão ligados ao
universo do trabalho com embarcações durante o recorte temporal estudado (1940 –
1970), e estiveram em uso praticamente no mesmo período, concomitantemente,
alguns caindo em desuso nas décadas seguintes, outros estando em vigor ainda no
tempo presente, e representavam as categorias de trabalho no transporte de cargas
e passageiros do rio São Francisco (categorias essas nas quais nossos
entrevistados estiveram enquadrados, durante seu tempo de serviço). São eles:
remeiro, moço de barca/moço de convés, fluviário, barqueiro e vaporzeiro.
O termo popular remeiro, que é preferível a “remador”, é muito comum entre as
comunidades ribeirinhas. Define aqueles que trabalhavam com as varas16,
empurravam as embarcações das margens e as faziam navegar pelo rio. Em geral,
16
Vareiros.
55
desempenhavam suas funções nas barcas de figura17, mas também trabalhavam em
barcos a vela, paquetes e balsas. De acordo com Neves (2011), esses
trabalhadores constituíam uma classe bastante discriminada pela sociedade
ribeirinha, muito provavelmente pelo serviço braçal pesado que desempenhavam, e
pelo fato de, sempre sujos (muitas vezes com o próprio sangue dos ferimentos no
corpo, infligidos pelo manejo das varas, informação encontrada nos relatos
coletados pelo próprio Neves, bem como em escritos de viajantes do São Francisco,
como Burton), serem apelidados frequentemente de “porcos d’água”18. Com o
aumento das embarcações de grande porte, movidas como motores a vapor ou a
óleo diesel, os remeiros, gradativamente, foram perdendo espaço, muito em função
da economia de tempo que as novas tecnologias passaram a proporcionar.
Um dos efeitos da regulamentação do trabalho fluvial, promovida pela
Companhia Fluvial de Navegação, foi a modificação do nome da categoria de
trabalhadores chamados remeiros. Moço de convés19 foi a titulação escolhida, sendo
inclusive assinada nas carteiras de marinheiro pela agência reguladora, muito
embora, popularmente, moço de barca tenha se propagado mais entre a população,
sendo a denominação que (os outrora) remeiros passaram a utilizar, referindo-se ao
trabalho que realizavam. A modificação da nomenclatura pôde ter, também, motivos
culturais: depreciado, o termo remeiro era associado à má fama, pela sociedade
urbana de Juazeiro (entre outras cidades ribeirinhas). “Raparigueiro e mentiroso”
(MAGALHÃES, 2009, p. 87), por exemplo, são os adjetivos utilizados pelo senhor
Ermi ao lembrar-se de um famoso remeiro da cidade, Né da Beirada, que
posteriormente viria a ser dono de uma embarcação própria, a Guaraína.
Fluviário, termo utilizado oficialmente pelos órgãos instituídos legalmente, como
o Ministério do Trabalho, Sindicato de trabalhadores fluviais e a Federação dos
Marítimos, era empregado para designar os trabalhadores que desempenhavam
suas funções a bordo, bem como pelos demais profissionais que permaneciam em
17
Barcas de figura devido a utilização, na proa dessas embarcações, das carrancas, arte ribeirinha
representando cabeças monstruosas que, segundo a tradição, afastavam as assombrações durante a
navegação. 18
Referência claramente negativa, derivada do fato de estes trabalhadores estarem comumente sujos
da lide de seus serviços. Entretanto, é provavelmente também referência ao peixe teleósteo (Myleus
Micans), encontrado na Bacia do São Francisco, popularmente conhecido como Pacu, segundo o
Dicionário Aulete. 19
Em entrevista coletada em 15/08/2012, o Entrevistado 2 utilizou o termo “moço de convés” ao falar
sobre seu trabalho.
56
terra e que exerciam demais funções (mecânicos, administradores, fiscais, etc.).
Muitos dos funcionários das empresas de navegação preferiam utilizar este termo
para definir seu ofício, pois soava como “algo melhor”, identificando-os enquanto
classe (NEVES, 2009).
Os barqueiros eram os donos de embarcações, chefes dos remeiros e capitães
da própria barca. Em muitos casos, poderiam ser também os “coronéis” de algumas
cidades ribeirinhas. Quando não, costumavam manter relações de compadrio ou
amizade com um coronel. Os barqueiros exerciam um poder patronal sobre seus
moços de barca, que poderiam desenvolver variadas atividades, como caldeiros,
operadores de motor, remadores, e até mesmo cabras e capangas, armados com
fuzis (NEVES, 2011). Até a década de 1930, eram eles que ditavam o ritmo do
serviço, o valor da remuneração e as condições de trabalho, uma vez que os
contratos empregatícios eram firmados através da palavra, regulados pelos
costumes.
A nomenclatura vaporzeiro refere-se a toda a tripulação dos navios a vapor,
também conhecidos como roda-popa ou gaiolas. O memorialista juazeirense (e
proprietário de embarcações) Ermi F. Magalhães relata que
ao longo do Rio São Francisco e seus afluentes navegáveis, a
palavra vaporzeiro identifica os tripulantes de vapores: comandantes,
comissários, pilotos, práticos, maquinistas, carvoeiros, foguistas,
contramestre, taifeiros, zeladores e cozinheiras. (MAGALHÃES,
2009, p. 94).
Esse termo não era oficialmente utilizado pela Companhia Fluvial,
prevalecendo nas carteiras de marinheiro a função específica de cada funcionário.
Entretanto, prevalecia entre a população o nome de vaporzeiro para designar,
indistintamente, aqueles que trabalhavam em vapores.
Eis as principais identificações dos termos relacionados ao trabalho e às
funções desempenhadas nas atividades fluviais em Juazeiro/BA (compartilhadas,
também, entre as demais cidades ribeirinhas). Fluviário e vaporzeiro, termos mais
gerais, englobam várias categorias de trabalho em si: o primeiro abrange os
profissionais relacionados direta e indiretamente ao trabalho com o rio; o segundo,
menos genérico, refere-se àqueles que especificamente desempenhavam funções
em navios a vapor. Em diversos momentos, nos documentos oficiais da marinha,
57
esses trabalhadores e suas respectivas categorias poderiam ser agrupadas sob a
denominação de fluviários (NEVES, 2009), sendo esta uma categoria genérica,
englobando todas as funções anteriores.
Apesar de ser uma cidade de grande atividade comercial e circulação de
capital, tendo a seu dispor duas vias de grande importância (ferrovia e hidrovia), a
Juazeiro das décadas de 1940-1970 não possuía muitas ofertas de formação técnica
ou superior que proporcionasse o ingresso em demais profissões consideradas, à
época, de nível superior, à exceção da FAMESF, Faculdade de Agronomia do Médio
São Francisco, criada na década de 1960. Segundo alguns entrevistados, ou se
tinha dinheiro pra ir estudar em cidades maiores, como Salvador/BA, ou adequava-
se aos serviços que eram oferecidos na região.
Queremos aqui, através dos depoimentos coletados, refletir sobre as
perspectivas dos nossos sujeitos e a maneira como eles encaravam o ofício nas
embarcações. Estariam estes indivíduos em concordância com a ideia de que
trabalhar com navegação no São Francisco era a única alternativa para ganhar um
salário melhor? Em uma cidade extremamente envolvida com o comércio fluvial, ser
um remeiro/vapozeiro correspondia a uma vocação entre os ribeirinhos, um ideal de
trabalho, ou esta profissão estava estigmatizada como inferior e relegada às classes
mais humildes? De que modo viam as oportunidades de trabalho na cidade e quais
eram seus próprios anseios na vida profissional?
Tais reflexões e indagações vêm servir como guia para as análises das falas
coletadas.
2.1 O ingresso nas atividades fluviais, para além do amor ao ofício ou a falta de
alternativas
Se você visse então nossos barqueiros
Sertanejos bem fortes bem brasileiros
Remando e cantando as mais lindas canções
Estrelas rimando com o olhar de morenas
(D’AVILA apud MAGALHÃES, 2009, p. 21)
Cantados em prosa e verso, os remeiros e vaporzeiros do São Francisco estão
sempre representados como homens fortes, “remando e cantando” sobre as águas
58
do rio, sob um céu estrelado, uma visão idealizada por artistas que viam nessa
atividade um quê de poesia. Porém, por trás de toda essa pompa imagética, quais
seriam os sentimentos desses trabalhadores fluviais em relação à atividade que
desempenhavam? Realmente amavam o ofício e, de certa forma, faziam jus aos
personagens maravilhosos das canções, ou escolhiam os remos, as velas, os
vapores e os motores por outros motivos? Eis os questionamentos primordiais,
motivadores de tantos outros, nesta pesquisa.
A princípio, precisamos atentar para os perfis dos entrevistados, que terão suas
falas analisadas neste sub tópico. Por intencionalidade, foram escolhidos ex-
trabalhadores ligados ao Velho Chico, mas que desempenhavam funções diferentes.
Dessa maneira, partindo da perspectiva plural de vários olhares particulares sobre o
trabalho com o rio, bem como da relação entre o Velho Chico e a cidade de
Juazeiro, poderemos compreender os motivos e circunstâncias para o processo de
ingresso nas navegações, o sentimento de pertencimento ao ofício, a maneira como
entendiam integrar a sociedade em que viviam, não como algo homogêneo,
fechado, determinado e determinista, mas multifacetado, heterogêneo e,
principalmente (e eis a tônica da nossa pesquisa), particular.
O Entrevistado 1 foi torneiro mecânico, filho de um ex-navegante (fluviário de
vapores e barcas), que nutria um prazer voyeur à beira do rio, observando os
trabalhos e ruídos dos motores das embarcações. Nascido em 1929, em Juazeiro,
pouco estudou, sequer tendo completado o ensino primário. Em 1945, aos 16 anos,
começou a trabalhar como aprendiz. Pude entrevistá-lo em 27 de outubro e 25 de
novembro de 2012.
Nascido em Remanso/BA, em 1937, mas vivendo em Juazeiro desde a
infância, o Entrevistado 2, além de ter sido remeiro, desde os 16 anos, em barco à
vela, onde inclusive teve seu primeiro emprego, em 1953, desempenhou várias
funções em vapores e barcas motorizadas, todas referentes ao trabalho de moço de
convés (taifeiro, maquinista, aprendiz, timoneiro). Tendo aprendido a ler e a
escrever, pouco frequentou a escola na infância. Nos dias 08, 10, 14 e 15 de agosto
e 26 de outubro de 2012, entrevistei-o em sua residência e a bordo da barca Vitória
Régia, onde hoje, apesar de aposentado, ainda trabalha.
O entrevistado 3 iniciou seus trabalhos como carregador de embarcações na
orla da cidade, em 1960, aos 18 anos. Nascido na Ilha do Massangano no ano de
1942, em Petrolina/PE, veio a tornar-se timoneiro poucos anos depois, em Juazeiro,
59
sendo que tanto esta função quanto a anterior foram desempenhadas sem registro
na FRANAVE (Companhia de Navegação do São Francisco), exercendo-as a partir
de contratos particulares. Não chegou a estudar formalmente, sequer tendo
começado estudos no ensino primário. Nossa entrevista ocorreu em 03 de novembro
de 2012.
O Entrevistado 4, nascido em Juazeiro no ano de 1938, desempenhou funções
administrativas na FRANAVE. Iniciou tardiamente a trabalhar (em relação aos
demais depoentes), em 1960, com 22 anos. Filho de um ex-navegante de barcas e
vapores, ele traçou um caminho bastante diferente dos demais entrevistados, até
chegar ao trabalho com o rio São Francisco. O contato e gravação da entrevista
deram-se nos dias 03 de junho e 24 de novembro de 2012.
Tal qual um prisma, composto por vários fragmentos que dão ao todo sua
complementaridade, os depoimentos destes senhores em idade avançada auxiliarão
na compreensão da vida dos fluviários (vaporzeiros, remeiros, funcionários
administrativos, enfim, todos os ex-trabalhadores ligados ao rio). Afinal, o que
representava o São Francisco para esses juazeirenses de remos, motores e velas?
Único meio de subsistência, um sentimento muito mais profundo de pertencimento,
ou algo mais?
Um dos primeiros elementos a chamar a atenção, dentre a maioria dos
depoimentos coletados, é o início precoce no ofício sobre as águas. Ainda garotos, o
trabalho nas embarcações se fez presente, ora através dos exemplos dos pais, ora
por vontade de trabalhar, ora pela necessidade iminente de prover o próprio
sustento. Ou ainda, todos esses motivos em um exemplo só.
Observemos a fala do nosso Entrevistado 1 (homem de máquinas e motores):
Eu pra começar, xô lhe dizer: tem um, tem um cais lá, eu sentava lá
no cais, eu garoto ainda, novo. Eu sentava e eu via as ma... a zoada
das máquina, né? E eu com aquela vontade de entrar, rapaz. É. Aí,
quando foi um dia, certo dia, surgiu lá umas vaga pra me botá pra
aprendiz lá dentro, eu digo “opa, chegou a minha vez”. Aí eu entrei.
Pronto, aí eu fiquei lá. Foi quarenta e cinco anos, já pensou?
Para este senhor, ver as embarcações e ouvir seus motores era algo
prazeroso, algo que lhe dava “vontade de entrar” e conferir de perto, acompanhar os
trabalhos, tocar, mexer e aprender a manusear os motores. Na oportunidade de
60
ingresso no trabalho fluvial, como aprendiz, confessou sua alegria (“opa, chegou a
minha vez”). Na época de nossa entrevista, 23 anos passados de sua aposentadoria
(em 1990), ele demonstrou um grande sentimento em relação ao ofício: durante as
falas, fazia questão de apresentar os quadros com fotografias de vapores-gaiola,
expostos em vários pontos de sua casa; bem disposto, convidou-me para conhecer
a oficina que ainda mantém, no quintal de sua casa, onde continua a fazer reparos
em motores de embarcações, apesar dos seus 84 anos (algo como um hobby, como
ele mesmo nos explicou).
Um dos pontos tratados ao longo da entrevista, relacionado ao nível de
instrução que possuía à época em que começou suas atividades na Companhia de
Navegação, nos trouxe a seguinte afirmativa: “Eu pouco estudei, xô20 lhe dizer logo.
Minha... minha, a vida de meu pai era meia fraca, entendeu, na época, e eu resolvi a
ir trabalhar, pra poder ajudar a necessidade de... de casa”. Um dado importante, e
que será novamente utilizado mais adiante.
Óbvio que, mesmo observando a afirmativa de nosso depoente, de que
possuía uma grande vontade de “entrar” naquele trabalho, um outro fator pode ter
pesado muito: o pai era também fluviário de máquinas, um maquinista
(diferentemente do Entrevistado 1, o trabalho com a máquina, o motor,
desempenhado pelo pai dele, estava relacionado com o funcionamento em viagem),
e viajava pelo São Francisco a trabalho.
Eu me lembro muito que ele, ele era... ele era maquinista e viajava a
bordo. E... toda vez que ele viajava, quando voltava, era aquela
alegria, e tal. Passava quinze dia, trinta, viajano, entendeu? E a
gente tinha... aquele prazer de quando ele chegava, a gente era...
aquela alegria, aquela satisfação.
Ver o pai nas embarcações, singrando as águas do rio e, ao voltar, contar
sobre suas viagens e detalhes sobre a lida com as máquinas e motores, poderia ter
influenciado um jovem que estava em busca de um emprego. Porém, surpreendente
foi ver que o próprio Entrevistado 1 negou tal possibilidade em nossa entrevista, ao
dizer “não, não, não. O cargo de embarcação era e... ele memo. Eu num... eu só
fazia manu... a manu... manutenção da, das embarcações”.
20
Correspondente a “Deixe”.
61
A partir dessa fala, podemos observar que o entrevistado vislumbra uma
divisão que praticamente opõe seu cargo ao cargo paterno, ainda que ambos
tivessem lidado com os motores das embarcações (o pai os operava e fazia-os
funcionar durante a navegação, o filho os consertava e zelava, em terra, para um
bom funcionamento ao longo das viagens).
Ainda que o Entrevistado 1 não consiga ver qualquer ligação com o ofício do
pai, é preciso observar que, dentro dessa família, houve uma influência parental na
escolha pelo ofício. Tanto seu pai, quanto um de seus tios21, eram trabalhadores das
navegações, e ajudaram o jovem Entrevistado 1 a ingressar como aprendiz,
segundo o próprio nos revelou em seu depoimento.
Outro elemento precisa ser lembrado: o costume de ir à orla, ouvir o “ronco”
dos motores e ver os trabalhos nas embarcações. O cotidiano da cidade, ligado ao ir
e vir dos vapores e barcas, aproximava o jovem Entrevistado 1 ao trabalho fluvial,
ainda que ocupasse o espaço de observador, captando os movimentos e os ruídos e
sentindo a tão incontrolável “vontade de entrar”. Tanto este senhor quanto muitos
outros estavam afeitos a esse quadro, ao passar pela orla, seguindo seu caminho
diário para a escola, para as praças, para os bares.
Esse caminhar constitui-se como um processo de significação do lugar,
apropriação do espaço e construção do ideal de pertencimento. É neste processo
que a memória apropria-se dos lugares, conferindo-lhes significações.
Compreendemos que este “espaço é um cruzamento de móveis. É de certo modo
animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram” (CERTEAU, 2012, p.
184). Nele, pessoas vão e vem diariamente, e nele praticam suas atividades mais
comuns, ordinárias. Assim, temos que “o espaço é um lugar praticado. Assim, a rua
geometricamente definida por um urbanismo é transformada em espaço pelos
pedestres” (CERTEAU, 2012, p. 184), e por eles recebe significados, sensações e
sentimentos.
O processo que se desenvolve em nosso Entrevistado 1 tem muito disso.
Sentar à orla, no cais, ou debruçar-se sobre o parapeito, vendo, ouvindo e sentindo
o lugar é conferir a ele um sentimento, uma relação de familiaridade e
pertencimento. Aquele ponto, em que cidade e rio se encontram e se comunicam, é
21
O Entrevistado 1 trata sobre esse assunto no seguinte trecho de seu depoimento: “Eu tinha, eu
tinha era meu pai e um tio meu que trabalhava lá também. E, com a ajuda os dois, aí eu consigui
entrá, comecei a trabalhá”.
62
também o espaço que o jovem Entrevistado 1 frequenta, pra ouvir os sons das
máquinas em ação.
E não somente nosso depoente: este mesmo lugar é praticado por várias
outras pessoas, seja como simples caminho para um destino final diferente, seja
como lugar de partida ou chegada de viagens, seja local de lazer, contemplação,
saudade. As diferentes percepções e apropriações do espaço vão se dar de maneira
individual, a partir dos usos e práticas de cada passante/cidadão: acompanhar o
balanço das águas, despedir-se daqueles que vão embora, pegar um barco à vela e
atravessar o rio, até a cidade vizinha, Petrolina.
Barco à vela este que em 1953, oito anos depois do ingresso do nosso
Entrevistado 1 como aprendiz na Companhia de Navegação, acolhia como mais um
de seus remeiros um jovem de 16 anos incompletos, que também precisava ganhar
dinheiro. Era o nosso Entrevistado 2.
Eu iniciei navegando antes de completar 16 anos por necessidade
financeira. Conclusão do negócio: naveguei em barco à vela, daqui
pra cidade de Remanso. Quando tinha muito vento o marinheiro tinha
uma facilidade enorme, produzia uma boa viagem, mas quando no
dia que não tinha vento se tornava bem difícil a viagem, muito
trabalhosa. Depois então passei a navegar em barco a motor. Aí a
coisa já facilitou. Como foi mais fácil navegando de barco a motor, no
decorrer da história, eu andei navegando de duas e três
embarcações.
A trajetória do Entrevistado 2, dentro das atividades de navegação, é marcada
por diversas funções e habilidades. A princípio, enquanto remeiro de um barco à
vela, também comumente conhecido como paquete na região, ele desempenhava
seu ofício, no início da carreira, em viagens que ligavam Juazeiro à Remanso/BA.
Em seu depoimento, não houve menção ao ato de sentar e observar à beira do rio,
ou o desejo de entrar, como o Entrevistado 1. Começar a trabalhar antes dos 16
anos, em um barco à vela, tendo de conduzir a embarcação com as temidas varas
de madeira (instrumentos utilizados para literalmente empurrar a barca, quando não
havia vento. Em diversos casos, esse instrumento era responsável por uma ferida
63
profunda à altura do ombro, capaz de inutilizar um remeiro22), correspondia a uma
necessidade urgente em trabalhar. O Entrevistado 2 não teve a oportunidade de
entrar na Companhia de Navegação como aprendiz e receber treinamentos. Sua
inserção na atividade fluvial foi precoce e sem etapas de aprendizagem, começou já
tendo de empurrar contra o peito a vara para garantir uma remuneração.
Assim como o Entrevistado 1, seu tempo dedicado aos estudos foi muito
reduzido. Advindo de Remanso/BA com sua mãe, as adversidades requeriam que
arcasse com as necessidades básicas da casa, e o manejo com o barco a vela foi
seu primeiro emprego. É imperativo questionar: navegar seria sua única alternativa?
Haveria a possibilidade de um outro trabalho, um outro serviço?
A Juazeiro da década de 1950 não oferecia muitas possibilidades a quem não
tinha acesso à escola. Havia três pilares principais, que moviam a economia da
cidade: agricultura, pecuária e comércio, sendo que estes três elementos dependiam
das navegações para sua consolidação, uma vez que a exportação dos víveres e
alimentos produzidos na região requeria a via fluvial para seu escoamento
(paralelamente, porém em menor escala, a estrada de ferro fazia esse papel,
transportando os produtos para a capital baiana, Salvador).
Só o comércio em Petrolina e Juazeiro, segundo Chilcote (1990), representava,
em 1950, 18% de todas as transações comerciais na região circunjacente23, e em
1960, 66%, apresentando um aumento significativo. Além disso, possuía mais de
1.000 pessoas empregadas (as duas cidades, juntas, atingiam uma marca de 1.272
trabalhadores no comércio, além de 620 estabelecimentos comerciais) 24.
No trabalho com a terra (agricultura e pecuária), havia, na década de 1960,
“138 meeiros, 23 arrendatários e 1048 trabalhadores assalariados” (CHILCOTE,
1990, p. 159), distribuídos em várias propriedades minifundiárias e latifundiárias,
22
Sobre esse assunto, vale a pena conferir o capítulo Os remeiros do São Francisco na literatura, do
livro Rio São Francisco – História, navegação e cultura, do cientista social e antropólogo Zanoni
Neves. Retornaremos a esse assunto no próximo tópico do capítulo. 23
Compreendem-se nesta delimitação territorial mais 17 cidades, pernambucanas e baianas. 24
O pesquisador norte-americano Ronald Chilcote, da Universidade da Califórnia, empreendeu uma
série de pesquisas em Juazeiro/BA e Petrolina/PE na década de 1970, que abrangeram aspectos
sociais, culturais e ideológicos da região, correspondentes a fins do século XIX e a primeira metade
do século XX. Os dados referentes ao comércio nas duas cidades foram-lhe cedidos pelo economista
Carlos Alberto Basílio, da CODESF (atual CODEVASF).
64
envolvidos com, por exemplo, uma produção agrícola que chegava a atingir 27.687
toneladas, entre tomates, milhos, uvas, mandioca, melão, etc 25.
Então, poderia ter nosso Entrevistado 2 optado por um outro ramo de serviço?
Refletir sobre isso faz com que resvalemos na questão educacional. Dificilmente, no
comércio da cidade, ele poderia conseguir algo que lhe desse uma remuneração
suficiente, uma vez que, ao balcão de um estabelecimento, ele deveria ter
habilidades com números, algo complicado para uma pessoa com pouco tempo de
estudo (porém não impossível, visto que não ter escolaridade não significa, via de
regra, ausência de habilidades com as operações matemáticas básicas). Além disso,
boa parte dos estabelecimentos comerciais da cidade era gestada por famílias
(CHILCOTE, 1990), e era comum que seus próprios membros assumissem as
funções nas lojas.
Se vivesse em um sítio ou uma fazenda, muito provavelmente o Entrevistado 2
teria engrossado as fileiras de camponeses, ligado à prática da agricultura ou da
pecuária. Juazeiro possuía, em seu entorno, uma enorme gama de propriedades
agrícolas, que se beneficiavam com a fertilidade proporcionada pelas cheias do rio
São Francisco e abasteciam as embarcações com uma produção considerável. É
provável que muitos de seus contemporâneos, parentes, amigos e conhecidos,
tenham tomado essa direção.
Mas, vivendo na urbe juazeirense, que, apesar de interiorana, já possuía uma
organização urbana que lhe rendia elogios, desde Teodoro Sampaio ainda em fins
do século XIX, e que claramente, na década de 1950, marcava uma diferenciação
entre o que era campo e o que era cidade 26 (ainda que estas duas esferas
estivessem interligadas por meio das produções agrícolas e dos transportes fluviais),
e tendo como algo muito próximo o dia-a-dia das navegações, do embarque e
desembarque de pessoas e mercadorias e o ir e vir de vapores e barcas, a vida a
bordo poderia ter lhe parecido algo mais possível de alcançar.
25
Dados obtidos a partir de Banco do Nordeste do Brasil. Petrolina-Juazeiro: aspectos sócio-
econômicos e área de influência comercial. Fortaleza, setembro de 1968, pp. 11-13 e dos registros
feitos por Ronald Chilcote (1990), sobre a agricultura em Juazeiro na década de 1960. 26
Teodoro Sampaio cita, como argumentos que corroboravam com a alcunha que dera à cidade
(“corte do sertão”), as ruas extensas, comércio animado, praças arborizadas e o porto fluvial profundo
e municiado com grande frota de embarcações.
65
Imagem 3 – As ruas de Juazeiro: pavimentação e fachadas imponentes indicavam uma
urbanização sólida em determinados pontos da cidade. A intencionalidade das áreas retratadas nas
imagens visa reforçar essa ideia.
(Fonte: Álbum da Bahia, de 1930).
Apesar de não relatar qualquer gosto em observar o trabalho dos homens no
rio, com suas embarcações, tinha como algo comum ao seu cotidiano, à sua vida na
cidade, os sons e a paisagem do trabalho fluvial. Além disso, a oferta de emprego
nas navegações pode ter sido algo determinante para seu ingresso como remeiro,
ao afirmar que “o que tinha desse rio pra sobrar era embarcação. Tanto é que eu
vou lhe re.. dizer, voltá a dizer mais uma coisa: não faltava imprego. De marinheiro a
piloto e maquinista, graças a deus, nunca me faltou imprego”.
O jovem, diante da possibilidade de trafegar pelo rio em um barco à vela,
conhecendo outras cidades em seu percurso, iniciou seus trabalhos em 1953 como
remeiro sem registro junto à marinha.
É possível que, sete anos após seu ingresso como remeiro, em 1960, já
desempenhando funções de moço de convés em uma embarcação motorizada,
nosso Entrevistado 2 tenha trabalhado lado a lado com um jovem que começava a
dar os primeiros passos no emprego, há pouco tempo, como carregador de sacos
66
nas embarcações. Aos 18 anos, o Entrevistado 3 teria a oportunidade de fazer sua
primeira viagem, sem registro na Marinha, ocupando uma vaga de moço de convés,
sendo responsável por carregar e descarregar os sacos com produtos a serem
transportados.
Reticente, desconfiado, mas sorridente em todo o tempo em que deu seu
depoimento, o então senhor de 71 anos expressava em curtas locuções aspectos de
sua vida. Sobre a escolha que fez, em trabalhar nas embarcações, explicou: “A
minha vontade foi eu mermo, ninguém me obrigou, é. Eu trabalhei muito em [19]60,
a minha primeira viagem, em [19]60 [...], aí eu comecei viajar em [19]60,
daí pra cá parei uns mês, 5 ou 6 mês, por aí.. e... então... aí por aí começou.”
Utilizando-se de silêncios e expressões do tipo “ixi, aí é difícil” e “ah, aí é ruim,
né?” (repetidas em diversos momentos ao longo da entrevista), o Entrevistado 3
buscava sempre se esquivar de assuntos que pudessem ser difíceis de tratar.
Pudemos constatar, ainda assim, que ele até a juventude morava na Ilha do
Rodeadouro, no Massangano, uma das várias ilhas do São Francisco, pertencente à
cidade vizinha de Petrolina/PE. Durante esse período, costumava ir com frequência
à Juazeiro, comprar o que ele denominou como “rango” em armazéns da cidade.
Trabalhar com as navegações pode ter-lhe parecido o único meio de
subsistência possível, ao demonstrar certa resignação sobre a falta de perspectivas
na cidade, chegando a afirmar que “achava bonito porque não tinha outra coisa pra
olhar”. Sendo morador da ilha até a adolescência (em determinado momento, ele
afirma, ao falar sobre onde residia à época: “Minha mudança foi de criança, rapaz,
novo, eu ia lá, minha mãe morava lá, eu ia, sempre eu ia e voltava”), mas
convivendo na cidade de Juazeiro quase que ao mesmo tempo, o Entrevistado 3,
com frequência, utilizava-se de balsas, uma vez que o meio fluvial era o único que
possibilitava a conexão entre cidade e ilha.
Aos 18, ao que parece, já havia fixado residência em Juazeiro, em 1960,
quando vai começar seus trabalhos. Assim como os entrevistados anteriores, sua
baixa escolarização e uma aparente resignação27 fizeram com que o Entrevistado 3
caminhasse para os pesos das cargas das embarcações e fizesse disso seu
primeiro emprego.
27
Esta observação está baseada nos elementos apresentados pelo próprio entrevistado, ao
rememorar seu ingresso nas atividades fluviais como “era só o que tinha”.
67
Motivos diferenciados e percepções distintas sobre a relação com o rio.
Pudemos observar que a tônica dos depoimentos, sobre as razões em ingressar no
serviço fluvial, mostrou-se bastante plural: o desejo de trabalhar com as
embarcações e a vontade de ajudar nas despesas de casa para o primeiro; a
necessidade financeira para o segundo, impulsionando um adolescente com menos
de 16 anos para seu primeiro emprego; a falta de “outra coisa pra olhar” e a
resignação do terceiro. No entanto, há um aspecto em particular que une esses
homens de barca: a baixa escolaridade. Tanto um quanto os demais pouco ou nada
estudaram, tendo em vista que precisavam ajudar nas despesas de suas famílias.
Assim, o trabalho com as embarcações (quer seja com os motores, como o
entrevistado 1, quer seja com o transporte de cargas e passageiros pelo rio, como é
o caso dos entrevistados 2 e 3) parecia-lhes a oportunidade de ganhar uma
remuneração razoável, apesar do pouco estudo.
Porém, tais elementos parecem não ter sido tão fundamentais para o nosso
Entrevistado 4. Nem necessidade financeira, nem a urgência de ajudar a família,
muito menos o prazer de ver e ouvir as embarcações à beira do rio. Sendo parte de
uma família com relativa tranquilidade financeira (não rica, como o próprio senhor
enfatiza em sua fala), o Entrevistado 4, juntamente com os irmãos, pôde frequentar
a escola, e via no funcionalismo público, como boa parte dos seus contemporâneos,
a oportunidade de melhoria de vida.
Na ocasião, em [19]53, eu entrei no hoje, chamava, chama Edson, lá
naquele tempo era Ginásio de Juazeiro. Eu fiz a primeira série lá,
porque o sistema era diferente, né? Primeira, segunda, terceira e
quarta séries, depois você ia fazer qualquer outra coisa, é, ou
magistério, ou, ou, científico, quando você aspirava a um outro tipo
de, de a, de atividade que não a edu..., é, o magistério, né? E, no
meu caso particular, eu estudei primeiro no [colégio] Edson Ribeiro,
depois eu fui a Salvador, porque eu queria ser marinheiro. Eu fui pra
escola de aprendiz de marinheiro. Só que eu tinha um problema de
visão que não consegui, apesar de ter até a, algumas pessoas lá
influentes, eu tinha um tio, que era capitão da marinha, e ele, e ele,
apesar, ele também num, diga-se de passagem, ele num se esforçou
muito não, né? E acho que também nem tinha como, e eu não, não,
não, não, não pude ingressar, porque tinha uma deficiência ótica,
viu?
68
Aqui, o entrevistado 4 nos expõe uma série de elementos bastante
significativos. Primeiro, ele possui um grau de instrução maior que os demais
entrevistados: completando o ensino ginasial (atual ensino fundamental) ainda em
Juazeiro, foi para Salvador, dar prosseguimento ao curso científico (atual ensino
médio). Segundo, advindo de uma família com condições financeiras relativamente
boas (o pai funcionário público era o provedor da casa), o entrevistado 4, em sua
juventude, pôde ter acesso à educação com maior facilidade, o que lhe permitiu,
posteriormente, aspirar a empregos com maior remuneração. Por fim, porém não
menos significativo, ele confessa uma frustração: o impedimento em ingressar na
escola de aprendiz de marinheiro, em Salvador, e seguir uma carreira na Marinha,
em decorrência de uma deficiência ótica. A despeito da ajuda que não veio, nosso
entrevistado 4, no entanto, em seu depoimento, não pareceu se importar tanto ao
relatar seu insucesso na Marinha, uma vez que, segundo ele, possuía uma outra
profissão em vista no campo da Agronomia. É interessante notar que à data de
ingresso do nosso Entrevistado 4 no Ginásio de Juazeiro, em 1953, paralelamente, o
Entrevistado 2 estava iniciando suas atividades, com 16 anos incompletos, em
barcos à vela.
Ao longo da análise da narrativa do Entrevistado 4, pudemos notar que, em
nenhum momento, ele apresenta como desejo seu trabalhar nas embarcações do
São Francisco. Tendo pleiteado entrar na Marinha, a princípio, é possível que tenha
se espelhado no próprio pai, que havia sido marinheiro de vapores; por outro lado,
durante sua narrativa, apesar de considerar que havia uma prática comum, por parte
da população, de visita à orla, ao rio, de observação das embarcações, ele não
atribui a si tal prática, e até revela certo distanciamento em relação ao rio,
justificando isso pelo fato de morar afastado do centro da cidade.
Seria por este serviço representar, dentro da perspectiva da sociedade local da
época, um ofício para pessoas com menor grau de instrução? Estariam os trabalhos
relacionados com o rio mais ligados à ideia de que eram exercícios profissionais
para aqueles que advinham de grupos mais humildes? De certo, o entrevistado 4
não teria problematizado tais questões. Para ele, como para boa parte dos seus
colegas de estudos, sair da cidade e ir para Salvador representava um processo
natural na vida daqueles que conseguiam “algo a mais”.
Esta última reflexão foi construída a partir de mais um trecho do depoimento do
entrevistado 4, que diz o seguinte:
69
Antes de, de entrar na viação, entrar na Franave, eu fui, eu fui em
Salvador, fui fazer o científico lá. Eu estava fazendo o primeiro ano
científico porque eu pensava na ocasião em ser agrônomo. Como
aqui em Juazeiro não tinha, aqui só tinha, o quê? Ou vo... ou você,
ou você era contador ou não era nada. Sabe? Porque você não tinha
opção e num tinha curso científico aqui. Aí então você tinha que sair
de Juazeiro. A grande maioria das pessoas, que tinha algum parente,
al... alguém lá fora ia pra lá, pra esses lugares, pra fazer.
Ou contador ou nada. Eis aí um dos dilemas que parece ter mexido com o
jovem Entrevistado 4. A carreira na contabilidade não lhe parecia nada apetecível, e
recusar esse destino seria optar pelo “nada”: e o que seria esse nada? A expressão
é vaga e, ao mesmo tempo, generalizante, com uma conotação negativa. O trabalho
como fluviário pode estar aí inserido, bem como o trabalho nas fazendas locais,
entre vários outros serviços. O “nada” generalizante do entrevistado pode se referir a
tudo, principalmente ao fato de que uma profissão de gabinete, para ele e seus
pares, seria o alvo a ser atingido, o serviço mais almejado e mais valorizado dentro
do contexto social da época.
Na capital do Estado, o Entrevistado 4 conseguiu um emprego público, porém
temporário, que lhe garantiu meios de sobreviver enquanto estudava.
Fiquei algum tempo, trabalhei um período numa subsidiária da
Cacex, que era Carteira de Exportação do Banco do Brasil, eu
trabalhei lá, e fiquei que era uma espécie de conferente da, do, do,
do, do translado de, de cacau. O cacau vinha de Ilhéus [BA] nas
embarcações e eram, e eram colocada nos armazéns ali do porto e
né... é... essa, esse... esse transbordo da embarcação para os
armazéns eram controlados por, por a gente. Tinha um, uma equipe,
e eu era um desses conferentes.
Como seu trabalho em Salvador dependia das safras (e estas precisavam ser
regulares, para a manutenção dos salários), nosso entrevistado viu-se forçado, em
um período de entressafra, a retornar a Juazeiro. Uma vez de volta à cidade
ribeirinha, por intermédio do seu pai, que possuía contatos na secretaria de Viação e
Obras Públicas do Estado da Bahia, ele conseguiu um cargo administrativo na
FRANAVE.
70
2.2 Condições de trabalho, remuneração e a alegria do comércio juazeirense!
Apitos, vapores, vozerio. Pessoas sobem e descem a rampa da orla, que liga o
centro da cidade à margem do Velho Chico. Trouxas e malas, bilhetes e lágrimas, e
o balanço das águas do rio, que teima em sacolejar as barcas encostadas. A bordo,
redes estão sendo montadas, e enquanto alguns moços de convés esperam ordem
para desamarrar as cordas que prendem as barcas na areia, outros marujos
carregam sacos e mais sacos com rapadura, feijão, arroz, milho, algodão, sal, dentre
tantos outros produtos, e os depositam nas embarcações. Motores a óleo diesel e a
vapor ladeiam-se, aguardando seus maquinistas os acionarem para que a viagem
possa começar. Mesmo com a presença destas potentes máquinas, paquetes
também se fazem presentes, com suas velas, varas e remos, e esperam ou os
passageiros para a travessia à Petrolina ou os carregamentos de produtos para as
cidades próximas.
Eis um quadro corriqueiro em Juazeiro entre as décadas de 1940 e 1970,
espaço de tempo marcado por grandes transformações, mas também por ser um
período em que as navegações desempenharam papel predominante nos
transportes de mercadoria e de passageiros. Não seria difícil, para nós, imaginar
nossos entrevistados protagonizando o quadro que pintamos, trabalhando na lide
diária e movimentando, com seus braços sob o sol, as embarcações sobre as águas
do São Francisco.
Porém, para além de nossas suposições, como os próprios fluviários
enxergavam o serviço que desempenhavam? Trabalhavam demais ou o suficiente
para o retorno salarial que recebiam? Seria essa remuneração condizente com os
anseios de cada um? Uma vez que refletimos sobre o ingresso de cada entrevistado
no trabalho com as navegações, devemos indagar, através de suas falas, como
estes viam seu ofício e, a partir dessas histórias, encontrar as conexões entre
trabalho, rio e cidade, no âmbito das sociabilidades e construção de uma identidade
social.
A imagem abaixo, que cristaliza o momento de chegada e partida dos vapores,
faz parte da série de fotografias que passou a circular livremente pela comunidade
em formato digital, sem a devida referência, como bem refletimos no capítulo
anterior. Notando a ausência da ponte Presidente Dutra ao fundo da paisagem,
71
sabemos que esta fotografia é anterior à década de 1950, e capta o período de seca
do rio, haja vista que a porção de terra que geralmente está submersa aparece-nos
em primeiro plano. Carregamentos, embarques, desembarques, transações
comerciais, mesmo o simples observar do trabalho sendo desenvolvido, são
algumas das ações captadas aqui. Com o intuito de gravar as atividades cotidianas
da cidade de Juazeiro, os estúdios de fotografia da região procuravam cenas
comuns, como esta, para fazer seus registros.
Imagem 4 – Rotina dos navegantes: a fumaça que anuncia partidas e chegadas e a margem
do rio repleta de produtos a serem carregados.
(Fonte: acervo particular do Centro Educacional Vivência)
A partir daqui, buscaremos analisar as perspectivas fornecidas pelos ex-
trabalhadores das embarcações sobre as atividades desempenhadas por eles
durante o período em que estiveram no exercício da profissão. Eles realmente
gostavam do que faziam? As condições de trabalho, para eles, eram adequadas?
Como estes trabalhadores representavam uma classe admirada (principalmente nas
produções literárias, canções e poesias) e, ao mesmo tempo, temida e repudiada na
sociedade juazeirense (são estes os “porcos d’água”), será fundamental neste sub
72
tópico observar o modo como eles mesmos lidavam com essa fama, mesmo aqueles
que levavam uma vida muito adversa aos boatos que circulavam em torno da figura
dos moços de convés. Por um lado, eram os marujos de má fama, briguentos, mal
pagadores, bêbados e “raparigueiros”; por outro, quando recebiam seus salários,
eram os clientes preferidos no comércio de Juazeiro. Até mesmo em alguns
depoimentos, os entrevistados afirmam que o dia de pagamento dos navegantes
correspondia a uma festa nas lojas da cidade, pois indicava pagamento de dívidas e
a contração de muitas outras.
A regulamentação da atividade de navegação por parte do Governo Federal,
nas primeiras décadas do século XX, pode ser um ótimo ponto de partida.
Até meados das décadas de 1920 e 1930, as embarcações que realizavam
viagens entre cidades e estados através da hidrovia do São Francisco circulavam
sem devida fiscalização governamental. Os contratos, firmados “de boca”, entre
barqueiros e remeiros, selados com um aperto de mão simples, definiam o vínculo
empregatício entre patrão e empregado.
Os barqueiros recrutavam os remeiros [...] entre os beiradeiros. Ao
serem contratados, assumiam verbalmente o compromisso de
realizarem uma viagem redonda, ida e volta, e, uma vez completa, o
contrato terminava, Não possuíam nenhum direito a ampará-los,
ficando inteiramente à mercê da vontade dos barqueiros. Estes, por
sua vez, dispensavam aos remeiros o mesmo tratamento dado aos
escravos, utilizando-se com naturalidade do expediente de açoitá-los
e submetê-los a maltratos como resposta a alguma atitude
considerada reprovável (GONÇALVES, 1997, p. 85).
Donos de suas barcas e amparados em um costume de justiça com as próprias
mãos, traço característico da sociedade sertaneja do início do século XX, os
barqueiros possuíam jagunços a bordo, que serviam como seu braço armado, e que
poderiam ser compostos pelos próprios remeiros! (comumente eram chamados de
“remeiros de repetição” 28). Na maioria dos casos, ou se sabe empunhar uma arma e
é contratado como “moço de barca”, ou não é homem suficiente (não é forte,
corajoso, valente o suficiente, reflexo da ideia de virilidade como termômetro da
28
O “remeiro de repetição” é o jagunço armado, à disposição do barqueiro, que deve cuidar da
segurança da embarcação e sua carga. Essa função poderia ser exercida, concomitantemente, com
outras atribuições, daí a necessidade de que o remeiro contratado soubesse empunhar um rifle
(“repetição” é o termo popular para esse tipo de arma) (NEVES, 2011).
73
masculinidade dos homens, típica nas comunidades ribeirinhas do São Francisco)29.
“Antes de 1930, os barqueiros tinham à sua disposição, nas barcas, um pequeno
exército de remeiros-jagunços que podia servir não apenas ao seu poder de
dissuasão em cada porto, mas às suas alianças com os ‘coronéis’” (NEVES, 2011,
p.145). Daí, a prática punitiva era algo comum e encarado como natural, enquanto o
barqueiro era o “dono” da embarcação e praticava uma ação legítima aos olhos da
sociedade.
Essa lógica trabalhista foi primeiramente abalada pela instituição do rol de
equipagem. Registrar, monitorar, observar: para essas funções é que “a Capitania
dos Portos, de Juazeiro (BA) [...] introduziu o ‘rol de equipagem’, ou seja, a relação
dos tripulantes de cada embarcação” (NEVES, 2011, p. 153), um registro dos
trabalhadores nesse órgão da Marinha de Guerra, durante a gestão de Góis Calmon
(1924 – 1928) no governo do Estado da Bahia. Servia como meio de controlar os
contratos de trabalho e fixar os valores a serem pagos por cada modalidade de
viagem, de acordo com cada serviço. A garantia de cumprimento das normas
estabelecidas era assegurada pela Marinha e seus soldados.
A utilização do rol de equipagem também proporcionou uma melhoria das
condições de trabalho dos “moços de convés” e demais empregados das
embarcações, bem como serviu de segurança contra patrões que, de alguma
maneira, buscavam exceder em sua autoridade. Assim, o Estado passa a mediar as
relações de trabalho. Essa perspectiva pode ser encontrada no depoimento do
Entrevistado 2, maquinista aposentado. Trabalhando como “mascote” 30 em
embarcação, o entrevistado alegou ter alimentado desejo em tirar a carteira de
marinheiro para “melhorar de vida”, fugindo do trabalho pesado e mal remunerado
que até então recebia.
em uma certa feita, eu navegava ni um barco e por não ter a carteira
de marinheiro, eu tinha por obrigação fazer todo aquele serviço mais
grosseiro, porque os colega aproveitava no momento eles sabia que
eu não tinha carteira. Eu era tipo o mascote, aquele menino do
recado. Então aí eu fiz alguns anos, alguns meses de navegação, eu
sendo o marinheiro sem carteira, mas numa certa feita eu cismei que
29
Zanoni Neves colhe, em sua pesquisa, uma série de relatos de ex-remeiros sobre estes jagunços-
fluviários, sua ação e o papel desempenhado durante as viagens pelo rio São Francisco. 30
Denominação utilizada pelo próprio entrevistado, para designar seus serviços enquanto menor de
idade e sem carteira de marinheiro.
74
queria por queria um documento igual os otro. Peguei um pacote de
documento, tirei fotografia, e cheguei a, cheguei até a cidade da
Barra31 aonde tinha uma agência da Capitania dos Portos.
Uma vez possuindo uma carteira de marinheiro, o trabalhador, ao ser
contratado por um barqueiro, deveria ser inscrito no rol de equipagem. Assim,
garantia-se, a princípio, que o contratado recebesse o valor de remuneração que
equivalia à função desempenhada, e permitia que a Marinha fiscalizasse o
andamento do trabalho na embarcação cadastrada.
Com a Revolução de 1930 e a centralização do poder do Estado, também a
cidade de Juazeiro, um dos entrepostos comerciais mais importantes do Médio São
Francisco, passou por modificações em seu sistema fluvial de transportes. Em 1931,
o Tenente Gentil Homem de Menezes assumiu o cargo de delegado na então
Delegacia da Capitania do São Francisco em Juazeiro, sob a jurisdição da Capitania
dos Portos da Bahia, gestada pela Marinha do Brasil, sendo o primeiro de uma série
de militares a assumir tal posto (FIGUEIREDO; SÁ, 1999).
A ascensão de um militar e a centralização do poder imposta por Vargas e
seus colaboradores foram elementos que atuaram no desarme de boa parte das
milícias particulares de remeiros de repetição, a princípio em Juazeiro, e iniciaram
um processo de intervenção federal nos assuntos relacionados às navegações no
São Francisco que, na década de 1940, culminariam na criação da Comissão do
Vale do São Francisco (CVSF) (GONÇALVES, 1997).
Assim, o que temos é o seguinte: desde o rol de equipagens, instituído na
década de 1920, até a fundação da Comissão do Vale do São Francisco, em 1946,
uma série de medidas, que passaram pela repressão aos grupos armados até a
fiscalização mais acurada da Capitania dos Portos nas relações entre barqueiros e
remeiros, promoveram uma melhoria nas condições de trabalho, desde uma
remuneração maior até a liberdade dos remeiros dos castigos infligidos pelos
patrões durante as viagens.
Em Juazeiro, como pudemos ver na fala do Entrevistado 2, adquirir a carteira
de marinheiro passou a representar um passo adiante na carreira como moço de
31
A cidade de Barra/BA também possuía uma agência da Capitania dos Portos, que estava
submetida à sede em Juazeiro/BA. O Entrevistado 2, por ocasião de uma parada da barca em que
trabalhava em Barra, aproveitou o ensejo para tirar sua carteira de marujo.
75
convés (agora, denominação utilizada no registro na Capitania dos Portos), a chance
para o jovem “mascote” de não ter de realizar o “serviço mais grosseiro”.
Quando citamos esse caso, temos em mente que o Entrevistado 2, bem como
os demais depoentes nesta pesquisa, começam suas atividades após todo esse
processo de regulamentação das navegações do São Francisco. Porém, ainda
assim, na cidade, muitos barqueiros, que possuíam barcas particulares motorizadas
ou à vela, continuavam contratando novos trabalhadores sem carteira de marinheiro
e sem registrá-los no rol de equipagens.
Nosso entrevistado 4, que foi responsável pelos registros do rol de equipagens
na década de 1960, relata o seguinte:
Eu não sei se, se naquela ocasião a Capitania dos Portos, porque já
existia Capitania dos Portos, eu não sei se ela exigia um rol de
equipagem, mas tinha meio mundo de embarcações que não tinham
nada a ver com a FRANAVE. Eram de... de caráter particular, tinha
umas embarcações, é... integradas é que é na região pelos
sergipano, eles chamavam a barca sergipana, que era um tipo de...
de embarcação dife... diferente da, das embarcações que já existiam
aqui, que a gente chamava de paquete.
Aqui cabe explicar que a FRANAVE era uma empresa estatal, responsável pela
navegação com motores a vapor (embarcações roda-popa, gaiolas) e a óleo diesel
(chatas, empurradores). No entanto, muitas outras embarcações (as sergipanas que
o entrevistado cita em seu depoimento, os demais paquetes e barcas motorizadas
de particulares da cidade) também realizavam navegações de passageiros e cargas
paralelamente. Para o Entrevistado 4, funcionário da FRANAVE e responsável por
registrar o rol de equipagens de cada embarcação oriunda da empresa onde
trabalhava, era uma obrigação rotineira realizar os registros e reportar à Capitania
dos Portos em Juazeiro.
Seu estranhamento em relação às demais embarcações decorre da falta de
contato com os procedimentos adotados pelos barqueiros particulares da cidade.
Mais adiante, em sua fala, o Entrevistado 4, apesar de não ter muito conhecimento
sobre a atividade das barcas particulares, lembrou que o cunhado, dono de barca
em Juazeiro, era obrigado a registrar o rol de equipagens na Capitania dos Portos,
isso em um momento posterior (que o entrevistado não soube precisar muito bem).
76
Então, o rol de equipagens estaria restrito à FRANAVE, órgão governamental,
e suas embarcações? Seria um erro desconsiderar, entretanto, o depoimento do
Entrevistado 2, que traçou sua carreira em barcas privadas, e nos forneceu o
seguinte relato:
Chegando aqui em Juazeiro, depois de ter feito as obrigações do
término da viagem, aconteceu que nessa rampa aqui ao lado um
piloto de uma barca por nome Aragipe necessitava de um marinheiro,
aí me fez uma pergunta: ‘José, você não sabe quem tem uma...
quem ta precisando de um imbarque não? Eu tenho uma vaga aqui
na barca Aragipe.’ Eu disse ‘bem, a gente... a gente pode chegar por
lá’. [...] Nós almoçamos, depois duas hora da tarde, nós chegamo até
a agência da Capitania dos Portos. Chegando na agência da
Capitania, foi feito um contrato do... dum rol, dum documento chama
rol de equipagem, é onde é contratado o marinheiro.
Logo após adquirir sua carteira de marinheiro, o jovem Entrevistado 2, que
ainda era o “mascote” da embarcação em que trabalhava, teve a oportunidade de
assinar um contrato, na Capitania dos Portos, e ser registrado no rol de equipagens
do novo patrão. Esse exemplo vem preencher a lacuna do depoimento do
Entrevistado 4: as barcas particulares também tinham de realizar o registro no rol de
equipagens, na Capitania dos Portos.
A legislação sobre esse assunto vem corroborar com esta informação. A lei nº
556, de 185032, art. 46633, diz que toda a embarcação brasileira em viagem é
obrigada a ter a bordo o rol de equipagem. De acordo com as Normas da Autoridade
Marítima para Aquaviários, NORMAM-13/DPC de 2003, o Rol de Equipagem
(modelo DPC-2303) é registro hábil e obrigatório de maneira geral para as
embarcações que realizam navegação em mar aberto e interior, servindo para
garantir os direitos decorrentes dos embarques e desembarques de tripulantes
verificados em uma única embarcação.
Ainda há mais um elemento significativo na fala aqui analisada: o Entrevistado
2, enquanto “mascote”, sem carteira de marinheiro, não estava registrado pelo
patrão anterior, e a ele eram relegadas tarefas pesadas e “mais grosseiras” (como o
32
A parte referente ao rol de equipagem não foi revogada, estando ainda em vigor no momento de
sua consulta (maio de 2014). 33
O texto da lei pode ser conferido no endereço http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l0556-
1850.htm
77
próprio entrevistado mencionou). Após conseguir sua carteira (ainda com 16 anos)
foi que ele conseguiu um emprego mediante registro na Capitania dos Portos, e com
um salário superior ao anterior: “eu ganhava 250 mi réis, como mascote. Fiz uma
viagem de vinte e seis dia, quando cheguei aqui no porto de Juazeiro fiquei
impressionado com o que o home me pagou, me deu 960 mi réis”.
Precisamos nos atentar aos elementos desta fala: nosso depoente, diante do
valor que recebia, afirma em sua narrativa ter se “impressionado” com o novo
ordenado, mais que três vezes o saldo anterior. Teria ele compreendido que estava
ganhando bem, o condizente ao que ele achava suficiente? Não, este argumento
inexiste em sua fala. O que podemos distinguir em sua afirmativa é a surpresa do
jovem moço de convés, ao perceber que receberia mais do que vinha ganhando, e
isso após o registro feito na Capitania dos Portos.
Retornando à questão do rol de equipagens, vemos que este era exigência da
Capitania dos Portos tanto para as embarcações governamentais, da FRANAVE,
quanto para as barcas particulares, salvaguardando que o moço de convés, para
entrar no registro, deveria ter sua carteira de marinheiro. Caso contrário, poderia
trabalhar com o barqueiro através de um contrato informal, sem as mesmas
garantias trabalhistas.
Dois elementos importantes foram levantados nesta última análise, e
deveremos nos debruçar com mais afinco nas próximas reflexões. Primeiro, a
questão da remuneração do trabalho nas navegações; segundo, tendo em vista que
nosso Entrevistado 2 só teve um registro no rol de equipagens ao trabalhar com
embarcações motorizadas, teria sido este instrumento de fiscalização da Capitania
dos Portos respeitado, também, em demais embarcações menores, como os barcos
à vela?
Primeiro o dinheiro. A fala do Entrevistado 2 nos chama a atenção para a
remuneração ao trabalho que desempenhava nas embarcações. Ainda segundo ele,
“não faltava imprego. De marinhêro a piloto e maquinista, graças a deus, nunca me
faltou imprego”. No entanto, apesar desta frequência de trabalhos no rio, o valor
recebido à época parecia-lhe insuficiente:
Inda tem mais, agora uma coisa que num tinha igual era salário,
porque a gente trabalhava num era pa impresa, era pa patrão pobre
que mal tinha o barco, comprava mercadoria fiado, pra conduzi,
vender de cidade em cidade, e tinha uns bom de situação, né? Mas
78
só que o salário num era lá essas coisa, mas era o imprego da
época, né? E todo mundo com aquele salário que ganhava se
mantinha, né?
Seguindo o curso de suas rememorações, notamos que aquela surpresa ao
receber os “960 mi réis”, logo após conseguir sua carteira de marinheiro e ter um
considerável aumento em relação ao que recebia enquanto “mascote” da
embarcação, parece ter desvanecido no decorrer de sua carreira fluviária. Família
para sustentar, patrões mal pagadores, custo de vida, uma série de elementos
podem ter atuado para tornar o ganho obtido em algo insuficiente. Mesmo assim, ao
final do trecho aqui separado, notamos certa resignação em relação a isso: era o
emprego da época, aquele que poderia ter, e ele e os demais colegas se
sustentavam (ou tentavam se sustentar) dele.
O Entrevistado 3 também contemplou este assunto em seu depoimento. A
princípio, do tempo em que trabalhava como carregador, ele expressou certa
insatisfação em relação aos serviços desempenhados: “meu trabalho foi muito
duro, eu carregava saco, sabe o que é carregar saco? Pois é, daquele jeito”. Porém,
não mostrou o mesmo em relação ao salário recebido, o qual não soube fixar
certamente, citando os valores 100 e 200 cruzeiros (a confusão com as moedas,
cruzeiro e real, acabou comprometendo a precisão na fala do entrevistado). Assim
como o Entrevistado 2, demonstrou resignação ao afirmar que “não tinha outra
coisa”.
Em outra parte da entrevista, ele retornou ao assunto, ressaltando que “o
trabalho era muito ruim. Era muito ruim. É brincadeira você dá um duro danado, o
peso esquisito que você pega”, quadro que só viria a melhorar, de acordo com o
próprio entrevistado, a partir da sua promoção a timoneiro; não em relação ao
salário, mas em relação ao serviço desempenhado: “Só pilotar. Chegava nos porto,
ancorava pra lá e quem quiser que se virasse”.
Analisando as rememorações do Entrevistado 3, pudemos constatar que o
ponto central de suas reclamações está na quantidade de serviço, e não
propriamente na remuneração recebida. O salário seria o possível, dentro do que
encarava como normal, comum para si e para os demais colegas fluviários, uma vez
que não havia outra coisa a fazer; a carga de trabalho é que correspondia a um
terrível problema.
79
Mas há quem tenha uma opinião diferente, em relação à questão da
remuneração aos trabalhadores do rio. O Entrevistado 4, por exemplo, ressalta uma
melhoria do poder aquisitivo dos fluviários após a criação da FRANAVE, em 1955:
As pessoas que ganhavam um salário relativamente pequeno
começou a ter uma fa... a entrar numa faixa salarial bem melhor e
consequentemente um poder aquisitivo bem melhor, e havia até um,
uma certa brincadeira que diziam que o comércio só funcionava a...
havia um divisor de águas entre antes de sair o salário da FRANAVE
e depois que saía, porque havia o incremento do comércio de
Juazeiro nunca antes visto.
Para este depoente, os fluviários haviam conseguido uma melhoria na
remuneração desde que a Companhia de Navegação do São Francisco havia sido
criada pelo Governo Federal. Com salários melhores e pagos com regularidade,
passaram a potenciais clientes no comércio juazeirense, desejados pelos
negociantes da cidade. Representando um “iceberg social” (palavras do Entrevistado
4), o dia de pagamento aos trabalhadores do rio vinculados à FRANAVE fazia a
alegria do comércio juazeirense.
Porém, cabe aqui um esclarecimento. A Companhia de Navegação do São
Francisco, FRANAVE, foi criada pela lei nº 2.599, de 13 de setembro de 1955. Em
seu artigo 12, a lei ressalta que este novo órgão englobaria, mediante
desapropriação, as empresas particulares Companhia Industrial e Viação de
Pirapora S. A. e Empresa Fluvial Ltda (DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO, 1955, seção 1,
pp. 2-3); posteriormente, em 1963, as empresas estatais Navegação Mineira do São
Francisco e Viação Baiana do São Francisco, respectivamente pertencentes ao
Governo de Minas Gerais e ao da Bahia, também foram englobadas. Uma vez
unificadas, e sob a nova denominação (Companhia de Navegação do São
Francisco), ficaram sob a tutela do Estado, e todos os seus funcionários passaram a
ficar sujeitos às normas trabalhistas referentes ao funcionalismo público, segundo o
inciso 8 do artigo 12. A melhoria dos salários, citada pelo Entrevistado 4, é fruto
dessa nova organização do trabalho fluvial, por parte do governo.
No entanto, nem todos os trabalhadores fluviais eram funcionários da
FRANAVE! Ainda que possamos considerar que aqueles que eram vinculados ao
órgão governamental tivessem realmente um incremento em sua renda, grande
parte dos demais trabalhadores do rio, e aí encontramos os entrevistados 2 e 3,
80
desempenhavam suas funções para modestos barqueiros, pequenos empresários
da navegação.
De fato, sendo um dos trabalhos mais populares dentre os cidadãos de
Juazeiro no período em que estudamos (1940-1970), o ofício de fluviário
representava um pequeno mas estratégico número de consumidores citadinos, e
quando possuíam dinheiro, era nos estabelecimentos juazeirenses que iam comprar
gêneros alimentícios, roupas, calçados, além de frequentar bares e casas de lazer
(dentre os quais, os prostíbulos). Porém, como pudemos observar a partir dos
relatos de nossos entrevistados, a remuneração não era a mesma para todos, sendo
os funcionários da FRANAVE melhor pagos do que aqueles que trabalhavam para
patrões de pequeno capital.
Ainda assim, mesmo oferecendo um salário relativamente melhor, haviam
práticas alternativas para garantir a renda, práticas consideradas ilegais por parte da
fiscalização da companhia de navegação, e que eram desenvolvidas pelos próprios
funcionários. É o caso dos “cururu”, revelados pela Entrevistada 8, que nos explicou
o funcionamento deste comércio clandestino:
Por exemplo, o sinhô, trabalhando e viajando nos vapores, chegava
numa numa cidadezinha daquela, aí o sinhô via uma coisa bunita,
comprava, aí comprava, comprava, e ia botando dento de um saco,
botava lá no porão, essa coisa toda que chamavam cururu.
O “cururu” servia como complemento para a renda de Eurípedes, marido da
Entrevistada 8, que vendia os produtos trazidos em Juazeiro. Há que se notar algo
importante: Eurípedes era um dos fiscais da companhia de navegação. Seu trabalho
era justamente impedir tais práticas.
Podemos partir para nosso segundo elemento: o rol de equipagens teria sido
obrigatório, inclusive, em embarcações menores, movidas à vela, e com poucos
trabalhadores envolvidos em sua navegação?
Devemos ficar atentos, para o seguinte: ao tirar sua carteira de marinheiro, o
Entrevistado 2 já era moço de convés em barcas motorizadas (propulsão a óleo
diesel), tendo sido registrado no rol de equipagens também em uma barca movida
por motor a óleo diesel. Então, o que dizer sobre os remeiros remanescentes nas
embarcações a vela? Também eles teriam a oportunidade de possuir uma carteira
de marinheiro e serem registrados no rol de equipagens das barcas em que
81
trabalhavam? E mais, teriam as barcas sem motor (sergipanas, barcos a vela,
paquetes) a obrigação de fornecer um rol de equipagens à Capitania dos Portos?
Ofício primordial nas navegações do São Francisco, o remeiro por muito tempo
foi o principal motor propulsor de embarcações no São Francisco, principalmente
das Emas ou barcas de figura (que levavam em sua proa uma figura ou carranca) e
persistiu em larga escala até a década de 1940 em Juazeiro, quando a introdução
das barcas sergipanas34 deu uma nova dinâmica para estes profissionais, que
passaram a aproveitar os ventos utilizando duas velas de pano feito de algodão
(LOPES, 1997). O cronista Ermi F. Magalhães conta um pouco sobre essa história:
o proprietário, Manoel Vieira da Rocha, sergipano de Propriá, que
emigrou para Juazeiro, e verificando as possibilidades de navegação
com as barcas que existiam no rio do trecho Piranhas a Penedo,
trouxe carpinteiros e construiu a sergipana, primeira barca de duas
velas que navegou no alto do São Francisco, com sucesso e gerando
lucro. Notícia correu e, muitos sergipanos, que viviam em Propriá, se
deslocaram com suas barcas até Juazeiro. (MAGALHAES, 2009, p.
37).
Ainda assim, o uso da força humana para impulsionar as embarcações não
havia sido descartado completamente. O Entrevistado 2, que navegou nas
sergipanas e em barcos à vela (paquetes, como ele se referiu) explica que ele e os
companheiros de bordo manuseavam “uma vara mais ou menos assim com seis a
seis metro e meio de... de... de comprimento e esse era o motivo da gente conduzir
a embarcação. Levava muito tempo”. Quando não tinha vento suficiente, eram essas
varas que, empurradas contra as margens do rio e bancos de areia no meio do
trajeto, garantiam o prosseguimento da viagem.
Dessa forma, os remeiros continuavam fazendo parte da população
trabalhadora em Juazeiro, sendo contemporâneos dos vapores e barcos
motorizados, inclusive adaptando-se a essas tecnologias de navegação, como é o
caso do nosso Entrevistado 2.
Em seu livro Navegantes da Integração – Os remeiros do Rio São Francisco, o
pesquisador Zanoni Neves já identifica, através de registros orais de ex-remeiros do
34
As barcas sergipanas já eram utilizadas no São Francisco antes, mas a década de 1940 assistiu a
uma utilização em maior escala desse tipo de embarcação, paralelamente aos vapores, que
despontavam como meio mais rápido de navegar.
82
Velho Chico, que o rol de equipagens era utilizado em barcas de figura desde fins da
década de 1920. Para este autor, o registro de tripulantes e embarcações servia,
inclusive, para coibir eventuais fugas dos remeiros, algo que interessava e muito aos
barqueiros (NEVES, 2011). Obviamente que, além disso, o rol de equipagem
funcionava na fiscalização do trabalho desenvolvido e da atuação dos patrões, bem
como as relações empregatícias e os contratos de serviços.
De acordo com o Regulamento da Capitania dos Portos, em seu artigo 422, as
condições do contrato são lançadas no rol de equipagem, estando subentendidos o
contrato por viagem redonda35 e o direito à alimentação (DIÁRIO OFICIAL DA
UNIÃO, 1948, seção 1, p. 10). Assim, através da Capitania dos Portos, o serviço, a
remuneração e a alimentação do fluviário ficam garantidos, e é este órgão da
Marinha que deve fiscalizar se realmente o acordo firmado foi respeitado
prontamente.
Podemos concluir, após as reflexões apresentadas, e tendo em vista a
legislação sobre o assunto, que também as embarcações sem motor (sergipanas,
barcos à vela, paquetes e demais barcos movidos pela força humana por meio das
varas) também estavam sujeitas ao rol de equipagens, e seus tripulantes deviam
estar inclusos no ato de registro da embarcação por parte do barqueiro. Porém, não
parece ser aconselhável descartar a possibilidade de existirem embarcações
clandestinas, sem qualquer permissão da Capitania dos Portos para navegar e
desenvolver atividades comerciais. Ao longo das entrevistas empreendidas durante
o período de pesquisas, não foi possível localizar e identificar barqueiros e remeiros
que tivessem agido dessa forma.
2.3 “Nem tudo era permitido!” Paixões, brigas e cabarés nas viagens pelo
Velho Chico
De início, silêncio, um sorriso meio forçado, o olhar que se perde de vista,
talvez por acanhamento. Depois, um riso desconfortável e a frase “Aí não pode dizer
não”. A entrevista continua e, quando retomamos a conversa sobre os
35
Ida e volta, do porto de origem para a cidade de destino e o retorno para o local de partida.
83
“divertimentos” em sua juventude e vida adulta nas viagens pelo rio, a negativa “não,
não, não” alerta para uma zona perigosa e desconfortável nas memórias do senhor
de 71 anos.
As expressões acima citadas, presentes no depoimento do nosso Entrevistado
3, apontam para um assunto caro para alguns dos entrevistados, e que é
responsável por alguns dos silêncios mais significativos nas narrativas coletadas.
Em suas viagens comerciais e de passageiros, a tripulação repetia sempre o
exercício de atracar e desembarcar nos portos das cidades ao longo da hidrovia. Em
muitas vezes, precisavam passar mais de um dia no mesmo local, ora esperando
carregamentos de produtos, ora aguardando a chegada de mais passageiros. Não
havendo qualquer ordem ou orientação da Capitania dos Portos em relação à
obrigatoriedade da permanência dos tripulantes nas embarcações, os trabalhadores,
após cumprir as tarefas a bordo, podiam descer para terra firme.
O que faziam ao adentrar nas cidades? Como passar o tempo até a próxima
viagem? Quais os divertimentos desses marujos durante essas paradas? E, ao
voltar pra casa, o que dizer às suas famílias? Esses questionamentos são os pontos
principais neste tópico.
Os silêncios acusadores ou eloquentes, os sorrisos meio frouxos, e mesmo os
olhares desconfiados compõem elementos a serem observados e refletidos, a
exemplo das percepções sobre o Entrevistado 3 acima citado. A distância de casa, a
relativa liberdade para ir e vir nas cidades em que paravam e o tempo de estadia em
cada porto eram características constantes na vida destes ex-moços de convés,
sempre envolta em histórias e estórias no imaginário popular.
A princípio, sabemos que os contratos de trabalho firmados entre barqueiro e
trabalhador cobriam geralmente uma viagem redonda. Nestas viagens, a depender
da embarcação utilizada e do destino almejado, a duração poderia variar entre 2 e 6
meses. Havia, não raro, a necessidade de atracar a embarcação no porto de uma
das cidades (ou em muitas outras no caminho até o destino final) e lá passar a noite,
a depender, claro, do trajeto a ser percorrido. Uma vez atracados, e com o serviço já
feito, os moços de convés, bem como toda a tripulação presente, poderiam descer
da embarcação e ir à cidade. Segundo o Entrevistado 3, quando “chegava nos porto,
ancorava pra lá e quem quiser que se virasse. [...] Quem quisesse ia, quem não
quisesse podia ficar parado”.
84
O que faziam, então, nesse meio tempo? Há aí um sem número de
possibilidades: rever amigos, visitar parentes, comprar mantimentos, encontrar
divertimentos e fugir do ócio. O Entrevistado 3 buscou se eximir de detalhar suas
atividades durante o período de parada, respondendo ora com silêncios, ora com as
expressões citadas no início deste tópico, vagamente.
Já o Entrevistado 2 tratou do assunto durante seu depoimento ao falar sobre
aspectos que reprovava no comportamento dos colegas de bordo:
Existia pessoas que só interessava cabaré, mulherismo, e num
interessava ter um alto cunhecimento, entendeu? Por exemplo, você
tá numa cidade num domingo, você é católico, o que custa você
chegar até a um colega da cidade, amigo, uma pessoa de família da
cidade, chegar até lá também na igreja, ter bons custumes. Isso era
importante, já tinha gente que não, num dava essa crença, num
ligava, queria só viver naquela vida anormal.
Ao explicar ter sido um jovem bastante curioso em relação aos assuntos da
embarcação, afirmando sempre estar em contato com os timoneiros e os
maquinistas com os quais trabalhou nas viagens, para aprender mais sobre o ofício,
ele demonstrou certa insatisfação ao falar sobre os companheiros de bordo que
tinham outros interesses (citados no trecho acima). Além disso, pudemos atentar,
em seu depoimento, que havia casos em que os moços de convés tinham de ficar
presos, em decorrência das confusões em que se metiam.
Teve vez de alguns ficá até preso ni alguma cidade por aí, como em
Januária mesmo, né. Umas duas vez chegou o dia da gente navegar
e tê que ficá um, porque tinha feito alguma coisa que com vinte e
quatro hora ele não tava liberado pela justiça, né. Então ele ficava, o
comandante da embarcação, o propietário, se dirigia até o delegado
e ia ver qual era a sentença daquela criatura.
Então, que tipos tão perigosos de conduta praticavam esses marujos durante a
estadia nas cidades ribeirinhas?
Em seu livro de memórias sobre as navegações em Juazeiro, o cronista local
Ermi F. Magalhães, proprietário de embarcações na cidade, conta um pouco sobre
um personagem caricaturado e muito conhecido na região, o Né da Beirada ou Né
Beiradeiro. Segundo o cronista, ele era o “barqueiro mais raparigueiro do seu tempo,
e até nas viagens a sua esposa, D. Sinhazinha viajava com ele fazendo companhia,
85
Né sempre inventava desculpas quando a barca encostava nos portos para ir até a
cidade, dançar cabaré e raparigar” (MAGALHÃES, 2009, p. 87). O Né da Beirada
desenhado por Ermi acaba incorporando uma ideia de libertinagem e exotismo
caricatural, elementos que permeiam o imaginário social em torno destes moços de
convés.
Porém, é nosso Entrevistado 536, moço de convés durante 27 anos, que nos
conta, sem pudores, boa parte das suas “histórias do rio”, como bem intitula.
Personagem novo em nossa narrativa, necessário é que o apresente, como os
demais. Nascido em 1956, iniciou suas atividades aos 23 anos, em 1979, sendo o
mais jovem dos depoentes, próximo ao limiar final do nosso recorte temporal. Assim
como os entrevistados 2 e 3, estudou pouco e logo ingressou nas atividades fluviais,
apontando necessidade financeira e ajuda nas despesas familiares como principais
motivos. Por contar com conhecidos e parentes na Companhia de Navegação do
São Francisco, conseguiu ser admitido ainda em 1979 no órgão. Foi moço de
convés nos chamados empurradores, barcos motorizados que literalmente
empurravam várias chatas, carregadas com toneladas de produtos da região.
Enquanto o Entrevistado 3 prefere silêncios e sorrisos culpados, e o
Entrevistado 2 prefere atividades muito menos comprometedoras (em seu
depoimento, diz que mantinha amigos nos locais pra onde ia e preferia armar sua
rede e ler os manuais dos motores das embarcações), o Entrevistado 5 preferia
preencher suas horas nas cidades com um pouco mais de emoção.
No depoimento, ele chegou a concluir que, muito pelas punições que recebeu,
entrou marinheiro e se aposentou marinheiro, no sentido de que não conseguiu
ascender profissionalmente. Em um dos casos que contou (e não foram poucos) ele
nos revelou uma de suas primeiras punições: “Quando chegou no porto [de
Juazeiro] pedimos licença para o comandante e aí saímos. ‘Nós volta logo’. Tudo foi
dá nove horas, bebo, tomei uma punição.”
Um de seus argumentos é o de que era solteiro e “banda vuô”, expressão
característica da região para dizer que gostava de diversão, sem se preocupar com
as possíveis consequências. Mesmo punido no caso anterior, por ter voltado bêbado
ao trabalho 9 horas depois do previsto, ele ainda nos relatou nova ocasião em que
desapareceu das vistas do comandante:
36
Entrevista realizada em 25/05/2013.
86
Tomei uma cana terrível outra vez, tinha pagamento e ele [o dono da
barca] não queria deixar a gente receber, e tinha um colega e aí
‘vamo pra rua rapaz’, ‘não sei não, tamo sem dinheiro’, ‘umbora,
vamo tocá no cabaré da Paratinga’. Eu não morava nem com essa
mulher minha não, em solteiro mesmo, banda vuô, e fomos passear
para Paratinga, tocar nesse cabaré.
Nova escapada furtiva, nova punição: retornando apenas 4 horas da
madrugada, encontrou “motor tudo ligado e me esperando”. Tentou fingir que estava
dormindo, mas foi descoberto pelo maquinista.
Certa feita, num baile em uma das cidades onde a embarcação estava
atracada, e, inclusive, com a presença do comandante da embarcação, um incidente
mais complicado ocorreu.
O comandante [disse] ‘vamos para o forró’, no forró da cega. Já tava
com ela [a esposa] e vi uma neguinha. ‘Vamo dançá’, ‘não, eu não
danço não’, ‘por quê?’, ‘Ah, porque ela é casada e não pode dançar’,
aí o comandante disse ‘pra quê vem pro forró se é casada’, e a
neguinha ‘não’, comandante ‘dance comigo’. A neguinha desdentada
véia, feia do diabo, um fedor de mocó, e eu disse ‘rapaz, não quero
dançar com você não’, e eu disse ‘agora lascou’ e aí agarrei ela e eu
com a barriga ruim e lá vai. ‘Pa, pa’, lá saiu o tiro e ai que ela quis
correr e eu segurei e emprensei, rapaz foi um rebu nessa festa, vi
quase dá briga e ‘vamo embora pra botar o rebocador pro outro lado
do rio’.
Tiros, confusão e o tal rebu. Fugindo para a embarcação (no caso, um
rebocador) tanto o Entrevistado 5 quanto o comandante escaparam de uma possível
prisão na festa.
Vemos, com esse último relato, que os divertimentos em festas e possíveis
confusões não eram privilégio apenas dos moços de convés. A presença do
comandante da embarcação, bem como o caricato Né da Beirada, lembrado por
Ermi F. Magalhães, dono de barca e conhecido frequentador de cabarés, mostra que
havia um costume em comum, entre os fluviários de bordo, de preencher as horas
nos portos com a satisfação dos prazeres.
Na vida urbana portuária do São Francisco, tais divertimentos eram frequentes,
uma vez que
87
[...] Os cabarés eram espaços em que múltiplas relações eram
vivenciadas. Simultaneamente, eram espaços de lazer, de
sociabilidades, de prazer e de perigo. Foi grande a importância dos
cabarés na vida da cidade. Situados, sobretudo, em áreas
específicas, em geral recebiam o nome de suas proprietárias.
Compunham os cabarés o restaurante, o bar, as mesas e o salão de
danças. (CARDOSO apud MORAIS, 2012, p. 95)
Tratar sobre este tema é, ao mesmo tempo, delicado e esclarecedor. Primeiro,
porque foi possível abordar um assunto que, até o momento, era um tabu (e
continua sendo). Esses senhores puderam falar (ou silenciar) sobre algo que existia,
mas que é tido como “vergonhoso”, que deve ficar “por baixo do tapete”, escondido.
Segundo, porque suas reações, expressões, falas e silêncios foram elementos
responsáveis por mostrar como os próprios entrevistados percebiam e
compreendiam os prazeres e divertimentos dos tempos em que ainda trabalhavam
nas embarcações.
A diversidade de posturas, inclusive, também é um dado interessante, e que
podemos ilustrar aqui. O Entrevistado 2, por exemplo, falou abertamente sobre as
diversões de viagem, enfocando, porém, um ponto de vista distanciado, do convés
da embarcação, um olhar desaprovador, ressaltando sua adversidade em relação
aos companheiros que frequentavam cabarés e arrumavam confusões; a todo
momento, em sua fala, ele buscou demonstrar que não gostava dessa conduta. Isso
pode nos indicar duas coisas: ou realmente desaprovava essa conduta, ou buscou
resguardar suas próprias histórias, preservando-se.
Já com o Entrevistado 3, pareceu mais claro o intuito de se esquivar e
resguardar-se. Relutante, desconfiado, sorridente, ele preferiu relatar mais sobre o
trabalho e a dureza de carregar sacos para abastecer as embarcações ao invés de
continuar falando sobre o assunto. “Nem tudo era permitido” foi sua resposta mais
direta sobre aquilo que buscava durante as paradas nas cidades e sobre seu lazer
em Juazeiro. A presença da esposa em determinados momentos da entrevista
pareceu inibi-lo, reforçando a ideia de que a delicadeza do assunto poderia
corresponder a um tabu familiar, ou sérias sanções no presente.
O mesmo não pode ser aplicado ao Entrevistado 5. Desinibido do início ao fim
de sua narrativa, não teve pudores em contar sobre suas incursões à vida noturna
das cidades por que passou durante as navegações, bem como suas escapadas no
88
porto de Juazeiro. Durante a fala, ressaltou sempre ter sido um rapaz direito, mas
que gostava dos divertimentos.
Claro que muito ainda ficou sob o véu do esquecimento ou da prudência.
Afinal, “nem tudo era permitido”.
89
3. TRAUMAS PARA UNS, ALEGRIAS PARA OUTROS: AS TRANFORMAÇÕES
NOS TRABALHOS FLUVIAIS
Em 1950, a ponte Presidente Dutra pôde, enfim, ligar Juazeiro e Petrolina por
meio da linha férrea, a priori, e da rodovia, a posteriori, proporcionando a circulação
de pessoas e produtos sem a necessidade de utilização de embarcações entre as
cidades. Sua construção, ainda que representasse o dito “novo” e privilegiasse o
tráfego de carros e do trem, respeitou a navegação e as embarcações que
continuavam a fazer seu trajeto. Uma de suas partes elevava-se para que os
vapores de maior porte pudessem seguir seu curso. Essa característica nos conecta
com um outro fator: ainda que a ferrovia representasse uma virtual concorrente ao
tráfego pela hidrovia, tanto uma quanto outra desempenhavam funções bem
distintas, no tocante aos serviços prestados, aos produtos comercializados, e
principalmente, aos destinos que possuíam. Essa complementaridade pôde ser
observada ao longo das reflexões desenvolvidas, as quais, neste tópico, iremos
destrinchar com mais acuidade e atenção.
Que modificações os citadinos puderam sentir com a construção da ponte
Presidente Dutra? Ou ainda, houve significativamente diminuição nos transportes
fluviais, a partir do momento em que a ponte passou a conectar as duas cidades por
sobre as águas? Aliado a essas questões, observaremos quais percepções nossos
entrevistados tiveram das transformações na orla fluvial, antes local de embarque e
desembarque de produtos e passageiros nos vapores e demais embarcações, de
escritórios das empresas fluviais e seus respectivos depósitos, e que passou a ser
zona de casas comerciais de varejo. Com essas mudanças, este espaço passou a
significar algo diverso para os sujeitos em questão? Provocou estranhamento ou
estes continuaram reconhecendo a orla como um local de pertencimento?
Continuamos, deste modo, perscrutando as percepções e sensações dos
depoentes, bem como dos cronistas locais. Na busca pela compreensão do modo
pelo qual estes sujeitos compreendiam (ou não) as transformações ao seu redor e
as sentiam (se sentiam), poderemos delinear, nas particularidades das memórias
narradas, representações da relação cidade/citadino, e dentro desse binômio, o
espaço nestas rememorações referente ao rio e às atividades de navegação.
90
Por compreendermos que Juazeiro organiza-se em torno do Velho Chico (ou
melhor, à sua margem), consideramos que o espaço já identificado aqui como
conector entre rio e cidade também está sensível às modificações advindas das
atividades fluviais, a exemplo de um organismo, ligado de forma interdependente e
refletindo através de suas transformações e reações o elo estabelecido entre as
partes do seu todo. Indo mais fundo nesta assertiva, e levando em consideração a
organicidade da relação rio/cidade aqui tão explicitada, podemos considerar que
Juazeiro é uma “cidade orgânica”, seguindo a concepção definida por Barros (2007,
p. 23-24):
‘Cidades orgânicas’, que são aquelas que vão se formando e
crescendo mais ou menos à maneira dos organismos vivos,
adaptando-se a um terreno em que se viram inseridas de maneira
não planejada, e sobretudo fazendo concessões permanentes à vida
em toda a sua imprevisibilidade. Estas cidades modificam os seus
traçados para se adaptar a um rio que lhes serve de fronteira,
contornam morros ou os absorvem, sobem e descem ladeiras de
variados tamanhos.
Na esteira destas concessões e da imprevisibilidade inerente à vida, Juazeiro
margeia o São Francisco, e constrói seu centro na área próxima à orla do rio, fato
ainda hoje bastante latente ao observador mais descuidado. Seguindo o inverso de
sua cidade-irmã, Petrolina, a orla fluvial juazeirense não impele o passante cotidiano
para outros locais, ou antes, não representa um local à parte daquele que é
praticado com atividades diárias comuns (ir ao banco, comprar roupas, móveis,
trabalhar, e também se divertir, observar, etc.). A orla, ou o cais, como muitos dos
entrevistados aqui costumam dizer, na cidade de Juazeiro está integrada ao fluxo
urbano ordinário.
Podemos atribuir isso, primeiramente, ao rio e às atividades que este propiciou
aos citadinos durante anos a fio. Mas isso só não garante que essa faixa de local
seja integrada às práticas diárias dos juazeirense; precisa-se que haja significação
por parte das pessoas que frequentam o local. Debruçamo-nos sobre isso
anteriormente, no capítulo I, quando buscamos analisar práticas, costumes,
sensações e conexões da vida urbana nas falas dos depoentes que os ligavam ao
Velho Chico. Aqui, um outro tipo de significação nos fará refletir, e que está ligado
91
aos deslocamentos dos espaços tidos como familiares pelos sujeitos que ora
mostram a voz.
Este último capítulo, desta forma, refletirá sobre as modificações que
perpassaram entre as décadas de 1950 e 1970 na atividade de navegação, nos
espaços de conexão entre rio e cidade e, principalmente, sobre o modo como os
nossos depoentes (ex-trabalhadores e usuários de embarcações, bem como
cronistas e observadores cotidianos) apreenderam e compreenderam esse
processo. Elementos significativos, como a construção da ponte Presidente Dutra e
a nova organização da orla fluvial juazeirense, juntamente com o advento dos
motores a óleo diesel, a diminuição do tempo das viagens proporcionada pela
rodovia e os debates do Seminário da Bacia do São Francisco, em 1975, que
discutia a construção de barragens e o controle dos níveis do Velho Chico, foram
fundamentais no período aqui estudado. Assim, diante desse quadro, como os
citadinos, envolvidos com o cotidiano das navegações, puderam sentir (se sentiram)
e compreender (se compreenderam) esses novos elementos é o que se configura
como questionamento principal neste ponto.
3.1 De depósitos a casas comerciais: as transformações na orla fluvial de
Juazeiro nas décadas de 1950, 1960
Começamos falando sobre os embates entre as vias de transporte em
Juazeiro. Rodovia, ferrovia e hidrovia se entroncam na cidade, e fazem desta um
importante entreposto de trocas comerciais, algo que lhe marca profundamente por
décadas. Complicado é falar em três diferentes vias sem pensar em antagonismos
entre elas. No entanto, necessário é relativizar tal pensamento. Os mais simplistas
podem chegar a afirmar que, por causa da ferrovia, a hidrovia teve seus dias
contados; consequentemente, a rodovia suplantou a via férrea, dando maior
agilidade ao escoamento de produtos. Ainda que este argumento, em parte (e esse
“em parte” é bastante profundo), esteja concordante com uma série de fatores, a
simplicidade que mostra é extremamente frágil. Precisamos falar, a princípio, da
complementaridade existente entre a hidrovia do São Francisco e a ferrovia que
ligava Juazeiro a Salvador.
92
A Estrada de Ferro da Bahia ao S. Francisco, também denominada
de Bahia and S. Francisco Railway, foi uma estrada de ferro de 578
km de interligação de Salvador com Juazeiro, o ponto onde se
situava o porto fluvial do referido trecho navegável do Rio S.
Francisco no interior da província. [...] Como foi pequeno o
desenvolvimento da sua região tributária do vale do S. Francisco a
montante de Juazeiro, a estrada redundou em gastos exagerados,
pois atingiu apenas um patamar debilitado sem alcançar os
grandiosos alvos a que se propôs. (ZORZO, 2000, p. 101).
De todo modo, a estrada de ferro representou para a região uma importante via
de conexão com a capital e um caminho alternativo e mais rápido para o
escoamento e recebimento de produtos. De acordo com Zorzo (2003), 10.831
habitantes da área urbana de Juazeiro foram beneficiados com os trilhos do trem, a
7ª maior população dentro das cidades que receberam as estradas de ferro na
Bahia.
Além da própria Juazeiro, bem como Petrolina, as demais cidades dentro da
sua zona de influência na Bahia, Pernambuco e Piauí, que mantinham no porto
juazeirense um intenso tráfego comercial, também tiveram suas mercadorias
escoadas pelos trilhos. O caminho das águas e o caminho dos dormentes37 seguiam
destinos então distintos: as embarcações mantinham comércio com as cidades
ribeirinhas do São Francisco, com destino final em Minas Gerais, no porto de
Pirapora; os vagões dos trens da Leste38 seguiam rumo à Salvador, conectando o
norte do estado à sua capital, num caminho que até então era feito por tropeiros e
caixeiros. Podemos observar o caminho dos trilhos e o sentido tomado pelo rio
através da imagem 5. Assim, a coexistência da hidrovia e da ferrovia funcionava em
um regime de complementaridade para a região de Juazeiro/Petrolina e seu
comércio, e não de antagonismo, fornecendo destinos diferentes para a distribuição
dos produtos locais.
37
Madeiras colocadas transversalmente, onde os trilhos de ferro eram colocados. 38
Comumente, os moradores locais abreviavam Viação Férrea Federal Leste Brasileiro, nomenclatura oficial da estrada de ferro desde 1930, para apenas “Leste”. A expressão foi utilizada diversas vezes nos depoimentos coletados.
93
Imagem 5 – Mapa da Viação Férrea Federal Leste Brasileiro.
(FONTE: http://vfco.brazilia.jor.br/39
).
Com a pavimentação das estradas, tanto em Pernambuco quanto na Bahia,
entre as décadas de 1950 e 1960, um novo elemento passa a integrar o sistema de
transportes, oferecendo uma terceira via à população. Durante pesquisas realizadas
na região, já em fins da década de 1970, o pesquisador Ronald H. Chilcote (1991)
pôde observar, à época, que além da hidrovia
O comércio depende, porém, de outros meios de transporte,
principalmente rodoviário e ferroviário. Com a pavimentação das
estradas entre Juazeiro e Salvador e entre Recife e Petrolina, o
transporte rodoviário tornou-se particularmente importante, reduzindo
à metade o tempo de viagem entre aquelas cidades. A rodovia
pavimentada para Recife facilitou também a comunicação com Santa
Maria da Boa Vista, Cabrobó e Belém do São Francisco – cidades às
margens do rio e que dependem de Petrolina. Há também uma
estrada entre Petrolina e Remanso. De Juazeiro parte uma estrada
federal não pavimentada para Aracaju, no estado do Sergipe, a qual,
39
Disponível em: <http://vfco.brazilia.jor.br/ferrovias/mapas/1965-Viacao-Ferrea-Leste-
Brasileiro.shtml>, acesso em mar. 2014.
94
em Canudos, encontra-se com a auto-estrada principal que vai de
Fortaleza a Feira de Santana. O sistema ferroviário liga Petrolina a
Paulistana, a oeste, no estado do Piauí. De Juazeiro, passa por
Bonfim e Alagoinhas e segue para Salvador e Sergipe. (CHILCOTE,
1991, p. 173).
Redução do tempo de viagem, redução consequentemente dos gastos;
podemos assinalar, deste modo, que a partir principalmente das décadas de 1950-
1960, a rodovia passou a concorrer no quesito transporte comercial e de
passageiros. Nesse caso, afirmamos a existência de uma concorrência,
principalmente com a via férrea, uma vez que o caminho para Salvador era também
destino da rodovia. Cada vez mais o fluxo de carros aumentava, e o contexto
nacional auxiliava nesse sentido, uma vez que a “União e os Estados rapidamente
concederam prioridade para a expansão das estradas de rodagem e
secundarizaram as ferrovias” (MARTINS, 2011, p. 416), principalmente a partir
governo JK (1956-1961).
Já na década de 1950, por exemplo, a família de imigrantes turcos e sírios
Khoury detinha, em Juazeiro, uma concessionária da Ford (CHILCOTE, 1991). O
entrevistado 7, já citado em nosso primeiro capítulo, membro da família, foi mais
longe em seu relato: “Nós representávamos Ford, Volks, Chevrolet e DKV, eram
quatro marcas, é, naquele tempo eram quatro marcas”. A crescente oferta de
automóveis seguia uma demanda que já existia, embora em estágio inicial, uma vez
que as conexões comerciais ligavam a região a vários “municípios baianos [...] entre
Juazeiro e Salvador, servidos por rodovia e ferrovia. Essa área abastece Juazeiro e
Petrolina de frutas, mandioca, milho, manteiga, algodão, sisal e outros produtos
essenciais. As fibras e óleos são utilizados pela indústria local”. (CHILCOTE, 1991,
p. 173).
Ainda assim, isso não quer dizer que a rodovia e a ferrovia coexistiam de forma
pacífica, sem conflitos. Um caso emblemático é a construção da ponte Presidente
Dutra, ligando Juazeiro a Petrolina, e a consequente destruição da estação
ferroviária da cidade baiana. Demorada e cara, a linha férrea que chegou a Juazeiro
em 1896 recebeu a estação aqui mencionada em 1907. Em pouco mais de 40 anos,
a mesma estação, tida como símbolo de progresso, foi suplantada pela ponte e pela
conexão rodoferroviária com Petrolina, que passou a ligar Bahia, Pernambuco e
também Piauí, já que na cidade pernambucana havia uma estrada de ferro até
95
Paulistana. A despeito desta ligação de trilhos, a rodovia prevaleceu, muito pelo fato
da crescente pavimentação de novas estradas nestes Estados e no Brasil como um
todo. De fato, a “febre rodoviária” do período beneficiou e muito esta superioridade
das novas estradas, suplantando o discurso anterior de que “as ferrovias seriam
prioritárias no desenvolvimento nacional, necessárias tanto para o processo de
ampliação de fronteira quando para assegurar a presença do Estado no interior”
(MARTINS, 2011, p. 415), muito reproduzido pelas elites e autoridades brasileiras.
Na análise dos depoimentos coletados, pudemos identificar sensibilizações por
parte dos entrevistados em relação às transformações da cidade. Três elementos
que chamam a atenção são a destruição do prédio da estação, a construção da
ponte e a transformação do cais da cidade. Estes eventos estão interligados com
todo o contexto já trabalhado aqui (o desenvolvimento das rodovias, a suplantação
do transporte ferroviário, o desequilíbrio da relação ferrovia/hidrovia/rodovia, a
mudança de mentalidade das elites e dirigentes brasileiros), traduzindo-o em
concreto, em pedras, em tijolos, visíveis aos observadores comuns.
Imagem 6 – A ponte e a estação ferroviária: o encontro na década de 1950 e o iminente conflito
espacial.
(FONTE: Forum on-line Skyscrapercity.com40
).
40
Disponível em: <http://farm7.static.flickr.com/6020/6204436614_c5df04ff11_z.jpg>, acesso em mar.
2014.
96
Na imagem 6, abrimos um panorama sobre o local de disputa. Rio, ponte,
estação ferroviária (à esquerda) compõem o quadro; do encontro das três vias em
Juazeiro, é a via férrea quem vai ceder espaço para o asfalto que segue seu rumo
pela nova estrada. Em contrapartida, com uma parte levadiça do lado baiano, a
Presidente Dutra continua cedendo passagem aos vapores e demais embarcações
de grande porte. Nesta nova conjuntura, a cidade se organiza em função deste
reordenamento, evidenciando um novo equilíbrio na questão dos transportes da
região.
Uma das vozes que pudemos analisar sobre o assunto é a do cronista local
João Fernandes da Cunha. Em sua obra memorialística Memória Histórica de
Juazeiro, em que busca dentro de suas limitações de leigo montar uma crônica de
eventos da cidade, ele não esconde o descontentamento com a extinção do prédio
da estação.
Juazeiro ainda hoje lamenta a decisão tomada pela administração da
Rede Ferroviária Federal, quando para fazer a ligação dos trilhos da
estrada à ponte Presidente Dutra, que fez a conexão da antiga
ferrovia da Bahia a Juazeiro à de Petrolina a Terezina, resolveu
demolir a Estação de Juazeiro, festivamente inaugurada a 15 de
novembro de 1907, um edifício em cuja arquitetura se identificava um
verdadeiro primor de arte, no estilo colonial. (CUNHA, 1978, p. 109).
Cunha claramente mostra-se avesso ao rumo levado pela estação ferroviária
da cidade. Obviamente que não podemos deixar de levar em conta seus interesses
particulares neste assunto: foi também pela ação do senador do Império, Joaquim
Jerônimo Fernandes da Cunha41, seu tio-avô, que a ferrovia e a estação foram
viabilizadas até Juazeiro. Em prosseguimento ao protesto tardio, Cunha ainda afirma
que “até hoje a sociedade de Juazeiro deplora a sua demolição e não entende como
administradores e técnicos, em altas funções públicas, são, por vezes, tão
insensíveis às manifestações da cultura” (CUNHA, 1978, p. 110).
Da pena do cronista, passemos às vozes dos depoentes. A insatisfação de
João Fernandes da Cunha encontra eco nas reminiscências de parte de nossos
41
A todo momento, no livro citado, ao referir-se ao seu tio-avô, o autor utiliza letras maiúsculas. O
“senador FERNANDES DA CUNHA” aparece mais algumas vezes ao longo da narrativa sobre a
construção da ferrovia.
97
entrevistados; porém, os motivos e as sensações se mostram diferentes, e neste
ponto queremos ressaltar a nossa observação sobre a multiplicidade das narrativas.
Como já trabalhado nos capítulos anteriores, os olhares da cidade são encarados
como únicos, particulares, e revelam muito dos sujeitos que observam e ora falam
sobre suas memórias.
Ao longo das entrevistas, deixamos cada sujeito livre para falar sobre a cidade
e quais modificações no ambiente urbano vinham à memória no momento. Tendo
como intuito observar aspectos relevantes à relação rio e cidade e os espaços
urbanos responsáveis por este diálogo, a liberdade dada aos depoentes no quesito
transformações urbanas tinha a finalidade de permitir que os relatos pudessem
elucidar a forma como estes indivíduos, inconscientemente, faziam (ou não) alusão
ao nosso foco de estudo.
Ouçamos a voz do Entrevistado 642. Este depoente, nascido na cidade baiana
de Sento Sé em 1927, mas morando em Juazeiro desde os seus 4 anos de idade, é
conhecido na região por montar réplicas em miniatura dos vapores mais lembrados
pelos citadinos. Tendo iniciado seus trabalhos na Viação Bahiana como carvoeiro
aos 17 anos, posteriormente sendo transferido para a FRANAVE, em 1963, ele
desempenhou suas funções até 1979, quando se aposentou. Com um falar
tranquilo, no início de sua narrativa, após se apresentar, deixou claro que o Vapor
Juracy Magalhães era o vapor de suas paixões.
Seu destino dentro das atividades fluviais tem muito a ver com o fato de sua
família ser composta por navegantes, como o próprio depoente afirma em sua fala:
Meu pai navegava. Meu pai era marinhêro, de marinhêro meu pai
passô a mestre de lancha, de mestre de lancha passou a praticante.
[...] Aí tinha meus irmão também, meus irmão, nós tu... a família toda.
Aí nóis cor... seguimo todo mundo a carreira de meu pai.
Dentro das análises já desenvolvidas no capítulo 2, podemos observar que,
também aqui, a influência parental foi bastante forte para o ingresso nas
navegações; além disso, nosso Entrevistado 6 se enquadra na característica dos
demais ex-funcionários que iniciaram cedo seu trabalho com o rio e, tal como o
42
Entrevista concedida em 26/03/2013
98
Entrevistado 3, apresentou a falta de opções para justificar a “escolha” do trabalho
fluvial.
Ao adentrar no ponto da narrativa sobre a questão das transformações da
cidade, o Entrevistado 6 utilizou-se de um argumento saudosista: “Juazeiro era um
lugar que tinha tanta coisa bunita, e distruiro tudo, acabaro com tudo”. Em se
tratando de um senhor de idade, com tantos anos de vida, podemos compreender
sua aversão à ação do homem sobre os espaços da cidade, além do sentimento de
que no passado tudo era melhor. Transformações, fim de espaço de sociabilidades,
locais familiares destruídos; tais elementos nem sempre são bem vindos, e nosso
depoente demonstrou, de fato, seguir essa máxima. Sua narrativa nos conduz até a
antiga estação e ao encontro com a ponte:
Você vê a estação que tinha aqui. Porque o trem era pa passar por
dentro, né? Aí pegaro e distruiro, fizero aquilo ali. Agora porque, que
disse que num teve ninguém pa chegá e falá, pa num fazê aquilo.
“Aquilo ali”, para o que tanto apontou o Entrevistado 6 durante sua fala, é a
atual “banca”, elevação feita em concreto, por onde a pista, ao terminar a ponte e
adentrar na cidade, corre até os bairros mais afastados. Diante da estação
destruída, seu olhar percorre o cais (que prefere chamar pelo nome orla), e
novamente encontra motivos para se indignar. Segundo ele, “o cais era uma coisa
fantástica. O cais num num tinha esse negócio de... de... daqueles tubo não. Ali era
um cais que tinha aqueles comungol. E distruíro, acabaro aquilo ali pa fazer aquilo”.
Em sua fala, dois elementos bastante significativos são citados, ambos
pertencentes ao cais/orla. De fato, podemos observar que eles remetem para nosso
depoente conexões memoriais com seu passado, e que compunham o seu ambiente
diário. Entre a estação destruída e o cais com os tubos (barras de metal que
passaram a substituir a murada de tijolos decorados), o Entrevistado 6 nos passa
locais da cidade que lhe eram familiares, e com os quais nutriu (e nutre) uma
sensação de pertencimento. Sua indignação em face do que se perdeu com as
transformações da orla nada mais é do que o sentimento de perda do que lhe era
comum, daquilo que fazia parte da sua noção de posse ou identidade; no caso,
lugares com os quais este senhor firmou um contrato por meio dos passos, do
caminhar cotidiano (CERTEAU, 2012).
99
Entre a indignação do cronista Cunha e a do nosso depoente, há sensações
particulares, olhares que se encontram em um mesmo ponto, revelando
intencionalidades peculiares. De fato, a busca do cronista, quando intenta defender
através das linhas de seu livro o monumento ora destruído, gira em torno da defesa
da memória de seu ancestral e de uma obra que, para ele, pertence à iniciativa de
sua família, algo quase particular; nosso depoente, fornecendo um olhar daquele
que contempla pelo caminho, revela a frustração do fim daquilo que representava
para si uma conexão com o passado, além da tristeza em constatar que a sua
Juazeiro (que era tão bonita, como ele mesmo afirmou em sua narrativa) estaria
sendo “destruída”. Ambos, contudo, partilham do sentimento de perda ante a
destruição do prédio.
Imagem 7 – O progresso nas rodas dos automóveis: a rodovia segue seu rumo.
(FONTE: Forum on-line Skyscrapercity.com43
).
Com a imagem 7, vemos o mesmo panorama da fotografia anterior. Podemos
observar, contudo, que os elementos em disputa desta vez sofreram modificação
significativa. Não há mais a estação ferroviária, substituída pela estrada que segue
adiante; carros agora marcam maior presença; a ponte conecta-se com a orla por
meio da rampa de acesso construída. Fim da ferrovia? Não, ela manterá seu
43
Disponível em: <http://farm7.static.flickr.com/6005/6203911341_2a5367e75e_z.jpg>, acesso em
mar. 2014.
100
funcionamento por todo o período aqui estudado. No entanto, o signo de prestígio
representado pela estação fora destruído, sendo substituído por um outro símbolo,
marco de uma outra via, a rodoviária: a Ponte Presidente Dutra.
Vamos andar mais um pouco pela orla, e observar este panorama com os
olhos de mais um dos nossos depoentes. O Entrevistado 4, ex-funcionário
administrativo da FRANAVE, é quem nos fornece mais esta perspectiva. A princípio,
sua narrativa percorre outros locais, conectados a lembranças da infância e suas
brincadeiras. O assunto relacionado às transformações da cidade provoca um
retorno ao menino, brincando pelas ruas da cidade de Juazeiro.
As reminiscências da gente onde a gente brincou, aonde a gente
passeou, sobretudo onde hoje é... funciona o colégio Edson Ribeiro,
era uma praça muito bonita, uma praça... e... simplesmente, a gente
não sabe como, porque era uma praça pública, dizem que foi
construído com o dinheiro público, porque o prefeito foi que construiu
o Edson, depois de algum tempo o Edson passou, que era ginásio de
Juazeiro, passou a... a ter dono.
Os olhos da criança, que já não veem mais a praça de suas brincadeiras
diárias, percorrem outros espaços, e acabam desembocando na orla da cidade, local
em que nos debruçamos com maior atenção. O Entrevistado 4 já é um adolescente
quando, na década de 1950, a ponte sobrepuja a estação ferroviária do cais.
A destruição do... a destruição da estação ferroviária, que era um
monumento de caráter, inclusive arquitetonicamente falando,
internacional. Podia ser uma das boas maravilhas do Estado da
Bahia e do Brasil, porque a... o... a estação daqui era semelhante
mais ou menos aqueles prédios tombados pelo histórico, que tem em
Amazonas, que tem em Pelourinho, em Salvador.
Na tentativa de explicar o aspecto físico da estação, o depoente recorreu aos
termos “histórico” e “monumento”, construindo paralelo com locais que, para ele,
representavam, tanto quanto a estação, prédios importantes para a história. Na
humildade de sua locução, podemos notar que também sua memória particular se
conecta às demais aqui exploradas, havendo uma teia que interliga, por meio deste
trauma, as rememorações dos nossos entrevistados.
101
Sigamos adiante, ouvindo nosso depoente. Como dissemos anteriormente, é
ele também ex-fluviário, responsável pelo trabalho administrativo da Companhia de
Navegação, e seu olhar, agora de adulto, observa um outro fator importante dentro
de nossas análises, referente à relação entre a ferrovia e as navegações no São
Francisco. Este fato recordado (a destruição do prédio da ferrovia) é uma memória
ruim, que lhe causa “pesar”, como chega a afirmar em momentos de sua narrativa;
porém, o fim da estação, a chegada da ponte e as transformações ocorridas na
orla/cais da cidade não representam para nosso entrevistado, de fato, um fim do
transporte ferroviário e da interdependência deste com as embarcações do Velho
Chico.
Seguindo os passos de sua narrativa, encontramos este trecho:
Ali era o terminal. É... a Bahia terminava em Juazeiro.
Consequentemente, todos os produtos que eram trazidos de
Salvador praqui, é... eram transportados nas embarcações de
Juazeiro. Daí eu di... eu falar im carga de terceira. Carga de terceira
é justamente isso: tudo que era produzido ao longo aqui do São
Francisco, ou a... aqui ao longo da ferrovia, é... era transportado
pelos navios da Companhia de Navegação do São Francisco.
A tentativa de empregar uma linguagem técnica, por parte do nosso depoente é
característica marcante em praticamente toda a sua narrativa. A conexão
estabelecida com o terminal ferroviário o faz acrescentar uma informação deste
aspecto, acerca do trabalho de transporte fluvial, ao citar a “carga de terceira”, que
nada mais é que todo tipo de produto repassado pelos trilhos para o caminho das
águas em direção às Minas Gerais, e que percorre o caminho inverso, trazida pelo
Velho Chico e levada em direção à Salvador pela ferrovia. Dentro das
rememorações do Entrevistado 4, falar sobre o fim da estação ferroviária estabelece
uma conexão com as navegações e, consequentemente, com seu trabalho na
Companhia de Navegação. Por conseguinte, e aí seguimos o desenrolar de sua
narrativa, estes elementos o levam a falar sobre a orla da cidade:
Eu acho, com pesar inclusive, que houve um descaso com a
estrutura física da cidade, porque Juazeiro era considerada a cidade
mais bonita do São Francisco e uma das mais bonitas da Bahia e do
Nordeste, por conta da orla, que a orla era ao invés de ter aqueles
102
canos, aqueles... tinha um parapeito, o cais era protegido por um
parapeito tecnicamente bem trabalhado.
Como nas falas anteriores aqui analisadas, a beleza de Juazeiro acaba sendo
atrelada à sua extensão urbana próxima ao rio, ora chamada de cais, ora chamada
de orla. Entre a estação destruída, por sobre a qual a ponte passa soberana, e a
murada ou parapeito, substituídos pelos canos que até hoje servem de apoio a
quem quiser se debruçar, os encantos de Juazeiro, segundo as óticas até aqui
analisadas dos nossos sujeitos, vão se perdendo. É interessante notar que, para
estes citadinos, a parte significativa da urbe, e que reservava sua maior beleza,
localiza-se justamente no ponto de intersecção entre rio e cidade.
Devemos ressaltar que tais percepções sobre as modificações na orla
representam o modo como nossos sujeitos encararam a transformação do espaço
por eles praticado em seu cotidiano. Inserido nesta assertiva, temos o argumento de
que este espaço, de fato, era significativo para nossos depoentes, e que a ruptura
imagética dos elementos da orla/cais (no caso, estação ferroviária e parapeito/muro)
foi sensivelmente absorvida pelas memórias particulares em questão. A ponte, e
com ela a rodovia, juntamente com os carros cada vez mais numerosos, são
responsáveis por induzir a um deslocamento e modificação das práticas urbanas
cotidianas. Ir a Petrolina, por exemplo, poderia ser uma atividade mais rápida por
meio da Presidente Dutra.
Ainda assim, é interessante notar que, ao mesmo tempo que a ponte significa
progresso, também desperta sensações adversas quanto à sua utilização. É da fala
de nossa Entrevistada 8 que coletamos um testemunho relativo a este assunto:
Uma senhora amiga de minha mãe, que trabalhava com minha mãe,
chegou: ‘eu, que vou atravessar nessa ponte, pra essa disgraça caí
no meio e eu morrer? Vô nada, num entro pra isso não’, aí mamãe:
‘Olha, pensa duas vezes, a ponte é bem sucida, é bem forte’, e tem
ainda aquele subir, pra o vapor passar, num tem? Você sabe, e tem
de baixar, agora é tudo baixo mesmo. Aí, mamãe: ‘Olha, você num
diz que num vai porque você vai, Petrolina também tem muita coisa
boa, você vai lá comprar, chega aqui vende, chega daqui vai pra lá
vender, você gosta de niguciar, você vai passar nessa ponte’. E
quando começou a ponte a funcionar, essa amiga de papai, de
mamãe, papai já tinha morrido [a entrevistada canta nesse
momento]: ‘Quebrei, minha jura, quebrei. Ai, ai, ai, meu Deus, pra
103
que eu jurei. Quebrei minha jura, quebrei’. ‘Que foi que houve,
Maria?’. ‘Quebrei a jura, passei por cima da ponte’.
De onde parte a desconfiança dentro dessa narrativa? Nossa depoente buscou
entre as rememorações de sua mãe este diálogo bastante pitoresco, e que a fez rir
bastante no momento da entrevista. A amiga da mãe, desconfiando da ponte e de
sua segurança, jurou não fazer a travessia para Petrolina por sobre ela. Ao final de
tudo, a jura é quebrada, e finalmente a senhora passa por cima da ponte. A
utilização desta história por parte de nossa entrevistada nos mostrou, durante as
análises de seu discurso, que, ao tentar rememorar as possíveis transformações na
cidade, sua primeira lembrança a reportou, primeiramente, à ponte, e em seguida,
ao estranhamento de sua conhecida, à época, em relação à Presidente Dutra, num
misto de desconfiança e medo do gigante de concreto por sobre o rio. Como já
pudemos observar sobre esta depoente, sabemos que ela partilhava do costume de
ver a chegada dos vapores ao cais, além de frequentar com assiduidade a cidade
vizinha; ao buscar lembranças sobre possíveis transformações sobre a cidade, seu
olhar recai sobre o rio, e é na ponte e na história engraçada que ela busca expressar
sua percepção em face das transformações em Juazeiro.
Como dissemos anteriormente, é a Presidente Dutra quem vai promover a
conexão rodoferroviária entre Juazeiro e Petrolina; mais importante, é através dela
que a rodovia submete a antiga estação, e com ela traz o tráfego de carros entre as
cidades. Neste item, partiremos para um terceiro elemento de transformações, o
próprio cais da cidade. Para além do parapeito citado pelos entrevistados anteriores,
este espaço de sociabilidades até aqui refletidas (trabalho, lazer, e mesmo a
caminhada cotidiana com direções múltiplas) vai também ceder espaço para os
pneus dos automotivos, provocando um desequilíbrio na relação rio/cidade,
construída a partir das navegações do São Francisco.
A imagem 8 reúne elementos até aqui levantados pelos depoentes: vemos
pessoas debruçadas sobre a murada antiga, algumas em tom contemplativo, outras
em diálogo, outras desempenhando suas funções junto às embarcações atracadas.
Carroças de burro, sacos empilhados, o ir e vir dos passantes, a agitação cotidiana
juazeirense a cada barco aportado. Na parte superior, ao fundo, vemos o teto e
parte lateral do primeiro andar da estação ferroviária; consequentemente, a ausência
da ponte é algo notável. Vamos pegar emprestado um olhar que parte do rio para o
104
cais, mais precisamente, de dentro de uma das embarcações em direção ao casario
que compõe toda a rua que margeia o trecho urbano juazeirense do Velho Chico.
Imagem 8 – A vida que agita o cais: os trabalhos das navegações compõem o quadro cotidiano
captado na imagem, antes da construção da ponte.
(FONTE: Forum on-line Skyscrapercity.com44
).
Fornecendo sua perspectiva sobre as modificações da cidade, o Entrevistado
2, moço de convés aposentado, mas que ainda navega a despeito disso, chega até
o local cais/orla, e sua fala dá conta de uma reorganização funcional bastante
importante:
A orla ela era normal, como se encontra ainda hoje, agora a frente da
cidade aqui, toda casa que hoje é uma loja [...], essas empresa muito
alta que tem aí, bem abastecidas de eletrodoméstico, tudo enfim,
essas casa antigamente era depósito de mercadoria, como mamona,
algodão, couro de boi, pele de criação, sal, querosene, gasolina,
álcool, era as mercadoria depositada armazenada nessas
embarcações, nesses depósito, pra ser transportado para as
embarcações.
44
Disponível em: <http://farm7.static.flickr.com/6164/6203943683_1a34862854_b.jpg>, acesso em
mar. 2014.
105
A fala do depoente faz alusão ao seu trabalho: o transporte de produtos nas
embarcações, exercício por ele desempenhado por toda a vida de moço de convés,
serve de suporte à memória das transformações por ele vistas e/ou sentidas (se
sentidas) na cidade. Seu olhar percorre o palco onde ele, até hoje, desempenha
suas atividades fluviais. Ressaltamos este ponto ainda mais um pouco: a mesma
orla em que começou a trabalhar ainda menino, o antigo cais da cidade, é hoje o
local em que ele insiste em praticar o serviço de piloto de barquinhas de travessia
entre Juazeiro e Petrolina. O local por ele praticado, tornado espaço por meio de
suas atividades de sociabilidade (CERTEAU, 2012) passa por uma ressignificação
geográfica, por parte do nosso entrevistado. Em contraponto ao saudosismo e à
indignação dos depoentes anteriores, o Entrevistado 2 demonstra em sua narrativa
otimismo em face às alterações observadas na cidade. Ao apontar a mudança dos
depósitos para as casas comerciais, hoje vistas por ele como “essas empresa muito
alta que tem aí”, ele busca explicitar o quanto melhor teria Juazeiro ficado com o
“desenvolvimento”, palavra recorrente em sua narrativa e utilizada como sinônimo de
“crescimento”, dentro da lógica argumentativa de nosso entrevistado.
Para exemplificar seu elogio, o sujeito do passado encontra o do presente, e
sua justificativa acaba misturando sua percepção de trabalho e as facilidades
proporcionadas na cidade em torno da aquisição dos seus instrumentos de ofício:
olha, nós trabalhamo no rodeador45 cum MWF, os motores da gente
é tudo MWF. não precisa nós pedi pra recife nem pra salvador nada.
se você necessitar do vira-breque você encontra aqui! [...] se cê
chegar numa empresa como a mecânica bahia faz um orçamento e o
cara começa a caminhar de prateleira em prateleira e botano em
cima do balcão.
Os motores evocados pela memória recente são argumento inconsciente de
que, para ele, não havia decerto trauma em torno das transformações sofridas tanto
pela cidade quanto pelas navegações com o advento da rodovia, da ponte, e do
reordenamento urbano pelo qual passou o cais/orla de Juazeiro. Sua fala, pelo
contrário, demonstra sentimentos positivos em torno deste assunto.
A transformação dos depósitos em casas comerciais, observada por nosso
depoente, também se insere neste contexto. Como podemos bem observar na
45
Ilha do Rodeadouro, famosa na região e uma das mais frequentadas pela população local.
106
imagem 7, o espaço do então cais serve para o desembarque de mercadorias, de
chegada de passageiros, de trânsito de carroças de burro; é um espaço
predominantemente caminhado, numa tentativa de definição mais clara. Com a
crescente demanda rodoviária aqui já citada, que suplantou a “febre ferroviária”
anterior ao período 1950 - 1960 (MARTINS, 2011), também podemos ver em
Juazeiro significativas modificações nas ruas e, em especial, no cais/orla da cidade,
cada vez menos cais (espaço de práticas relativas às navegações do São
Francisco), cada vez mais orla (espaço urbano de margem fluvial, em nosso caso,
desprovido do caráter anterior de zona portuária).
A intervenção feita pela ponte neste sentido, fazendo com que o trânsito de
carros estivesse cada vez mais próximo às ruas que compunham o complexo
urbano conectado ao rio, atua como agente neste processo de transformação.
Voltando a fazer uso dos registros fotográficos disponíveis, convidamos o leitor
atento a uma observação entre a imagem 8 e a imagem 9:
Imagem 9 – Praça São Tiago Maior: carros dominam a paisagem onde antes as atividades fluviais
ocupavam espaço.
(FONTE: Forum on-line Skyscrapercity.com
46).
46
Disponível em: <http://farm7.static.flickr.com/6148/6204032605_8e784caa71_z.jpg >, acesso em
mar. 2014.
107
Dois ângulos do mesmo espaço em questão é o que temos aqui. A imagem 8,
anterior à construção da ponte, nos dá um panorama rio/cais, explorando toda a
movimentação humana em torno das navegações. A imagem 9, fornecendo uma
perspectiva cidade/orla/rio, captura a Praça São Tiago Maior, construída na década
de 1970 durante a gestão do prefeito Arnaldo Vieira do Nascimento (1976 – 1982), e
são os carros quem tomam conta do plano da imagem. Esta segunda fotografia
corresponde a uma etapa do processo em que o cais já não é palco das atividades
relativas às navegações do Velho Chico, momento em que inclusive o porto de
Juazeiro passa por um processo de disputas, assunto que trataremos no último
tópico deste capítulo.
O que queremos assinalar aqui, após a análise das fontes orais e fotográficas,
é que, entre os elementos responsáveis por uma ruptura na relação atividade
fluvial/cotidiano urbano, o advento da rodovia, atrelado à construção da ponte
Presidente Dutra, e a primazia desta via sobre as demais que compunham o
entroncamento viário em Juazeiro, contribuíram para promover um deslocamento
social do local cais, fazendo com que as práticas fluviais ali fossem realocadas para
dar passagem aos carros. Compreendemos, deste modo, que
Este ‘deslocamento social do espaço’ também acaba por se constituir
em uma forma de escrita que pode ser decifrada. As motivações para
este deslocamento podem ser lidas pelo historiador: a história da
deterioração de um bairro pode revelar a mudança de um eixo
econômico ou cultural, uma reorientação no tecido urbano que tornou
periférico o que foi um dia central ou um ponto de passagem
importante. (BARROS, 2007, p. 42).
Em nosso caso, a mudança do eixo das atividades fluviais, que passaram por
uma reorientação, deslocando-se daquele que até então era considerado o centro
da cidade, em função de uma nova demanda urbana nascida da urgência do asfalto
e dos carros a partir de 1950-1960. Este processo, apreendido por nossos
entrevistados de modo indireto, em suas rememorações e captado pelas lentes dos
registros fotográficos, constitui um dos elementos de um quadro geral de
transformações na relação rio/cidade dentro do nosso período estudado.
Nesse ínterim, é a “imagem urbana” do cais/orla juazeirense que sofrerá
modificações, uma vez que consideramos que
108
Só existe imagem quando ligada a uma prática social. Não só porque
ela é produzida socialmente, mas porque não pode existir [...] a não
ser dentro das relações sociais, da mesma forma que,
definitivamente, não existe linguagem sem palavra (CASTELLS,
2009, p. 305).
São as práticas que transformam o local em espaço de sociabilidades e que
dão significado a determinado ponto da cidade que delineiam esta “imagem urbana”.
A mudança das práticas é, consequentemente, o redesenhar desta imagem, dando
novas cores, novos contornos e significados ao local. Aos poucos, são nossos
próprios entrevistados que vão fornecendo perspectivas neste sentido, ao identificar
aquilo que já não se conecta com sua noção de pertencimento; os locais que se
modificam, os sentidos que se perdem diante do estranhamento com o novo; e
mesmo a ressignificação do local através de novas práticas. Estes elementos
puderam ser observados nas falas aqui exploradas.
Não podemos afirmar, contudo, que o processo analisado neste tópico foi autor
único do desequilíbrio e reconstrução de uma nova relação rio/cidade para além das
navegações e das sociabilidades por elas proporcionadas; encaramos este como um
elemento dentre outros que aqui buscaremos observar, e que de fato, em conjunto,
promoverão uma modificação nas atividades fluviais em Juazeiro.
3.2 Motores a óleo diesel e a agonia dos vapores
Até que ponto a mudança de motores significou a ruína para uns e a
oportunidade para outros? Com este questionamento, procuraremos neste sub
tópico analisar de que maneira o advento dos motores movidos a óleo diesel, a partir
da década de 1960, impactou nas relações de trabalho existentes. Para alguns dos
entrevistados, a modificação dos motores e a consequente dinamização das
embarcações significou desemprego para boa parte dos colegas que não conseguiu
se adaptar; para outros, foi apenas a inclusão de mais um tipo de motor, e que
requereu uma nova aprendizagem por parte dos “moços de convés” e demais
profissionais relacionados com o funcionamento dos motores. Ao mesmo tempo, a
competição com as rodovias fazia com que as viagens dos vapores se tornassem
109
obsoletas, pois estes gastavam em dias o mesmo trajeto que os automóveis faziam
em horas.
Antes de qualquer coisa, iniciamos nossa problemática seguindo o rastro
daquilo que refletimos no parágrafo anterior: quais impactos foram causados pelas
transformações no transporte fluvial, enfocando em especial as inovações
mecânicas dos motores das embarcações? Como numa linha de acontecimentos
sucessivos, poderíamos dizer que os remeiros, enquanto força propulsora, foram
superados pelos vapores e suas caldeiras fumegantes, que por sua vez foram
superados pelos motores a óleo diesel e elétricos, de modo linear e prático?
Obviamente que a simplicidade de tais argumentos nos faz responder com uma
negativa. Para chegar ao cerne da problemática, precisamos questionar mais estas
transformações.
As potências propulsoras, de fato, possuíam distinções bem características.
Enquanto os vapores eram impulsionados pela combustão à lenha das caldeiras,
requerendo o emprego de mão-de-obra em sua alimentação, os motores utilizados
nos empurradores/rebocadores, por exemplo, possuíam uma potência de 270 CV47
(NEVES, 2009), dispensando a necessidade de um posto de trabalho apenas para
reabastecimento do tanque.
Devemos levar em consideração alguns fatores importantes do período 1940-
1970: a criação da Companhia Hidrelétrica do São Francisco, em 1945, através do
decreto-lei nº 8.031, e da Comissão do Vale do São Francisco, em 1948, pela lei nº
541 (transformada em SUVALE em 1967 e CODEVASF em 1974), caracterizam um
esforço governamental em promover políticas públicas para o desenvolvimento da
região ribeirinha, tendo como foco o Velho Chico e as possibilidades de exploração
de suas águas; a fusão das companhias de navegação existentes em uma única, a
FRANAVE, em 1955 e 1963, com sede em Pirapora/MG e escritório de
representação em Juazeiro (CAMELO FILHO, 2005); além disso, a chegada da
energia elétrica da usina de Paulo Afonso na segunda metade da década de 1960; o
advento das rodovias, conectando Juazeiro e Petrolina às suas respectivas capitais
e demais cidades da região (CHILCOTE, 1991); e ainda, ao final do período aqui
recortado, a construção da Barragem de Sobradinho, com a criação do lago artificial,
eclusa e usina hidrelétrica. Direta ou indiretamente, estas transformações e ações
47
Medida de cavalo-vapor.
110
influenciaram o cotidiano das cidades ribeirinhas e, principalmente, o dia a dia dos
trabalhos fluviais no São Francisco.
Dentro deste contexto de grandes modificações, situamos o momento de
profusão de novas tecnologias de propulsão para as embarcações em Juazeiro, a
princípio, com a chegada das barcas sergipanas à cidade entre 1950-1960, com
velas duplas e consequentemente maior rapidez, seguidas pela introdução dos
motores bolinder (MAGALHAES, 2009), movidos a óleo diesel, e que passaram,
gradativamente, a trabalhar em várias embarcações particulares, além da própria
FRANAVE.
Voltamos mais uma vez à pergunta inicial deste tópico: até que ponto a
mudança de motores significou a ruína para uns e a oportunidade para outros?
Estendendo a questão, teriam os motores a óleo diesel provocado a agonia da
navegação a vapor no São Francisco? Como havíamos dito anteriormente, a
sucessão linear dos motores não é suficiente para explicar esta questão. Para tal,
exploraremos ainda mais os olhares da cidade.
Vamos recorrer, novamente, à análise histórica de registros fotográficos da
região como ponto de partida de nossas reflexões aqui. Debruçamo-nos sobre mais
uma cena do cotidiano do cais juazeirense, e pegamos emprestado das lentes do
fotógrafo uma visão sobre as águas.
O olhar de Euvaldo Macêdo Filho capta o instante (imagem 10), e serve de
reflexão dentro da nossa problemática. Em primeiro plano, o vareiro na popa de uma
embarcação, utilizando o ombro para fazer força e promover o movimento sobre as
águas; logo atrás, podemos distinguir um motor movido por combustão,
provavelmente um bolinder, motor comum em barcas menores, com potência de
50HP48, muito comum entre as embarcações juazeirenses; ao fundo, numa
complementação do quadro, flutua um pequeno paquete, como popularmente eram
chamados os barcos de vela única que faziam a travessia Juazeiro/Petrolina.
Num único registro, podemos distinguir três tipos de embarcação, convivendo
juntos na década de 1970, momento em que Euvaldo captura o instante, o que
levanta a perspectiva de que, apesar das transformações na tecnologia de
navegação, principalmente no que tange à propulsão dos barcos (saímos do ombro
do vareiro para o ronco dos motores a diesel, passando pelas caldeiras dos vapores,
48
Aproximadamente, 50 CV.
111
até chegar aos motores elétricos da FRANAVE), estas embarcações, distintas em
seu modo de navegar, coexistiam no porto juazeirense.
Imagem 10 – “Peito de aço”: remeiro, motor a óleo diesel e velas figuram numa mesma imagem,
capturada no cais de Juazeiro/BA.
(FONTE: ASSIS, A. C. Coelho de; MACEDO, Odomaria R. B.; EGÍDIO, Chico. Euvaldo Macedo
Filho – Fotografias. Petrolina: Gráfica Franciscana, 2004).
Este apontamento, obviamente, suscita questionamentos acerca da
intencionalidade do autor da fotografia em registrar este quadro específico. A
observação e análise que viemos realizando da obra de Euvaldo nos dá a
perspectiva de que este fotógrafo, atento às contradições urbanas e às cenas diárias
juazeirenses, escolheu este momento em especial por enxergar nele as variações
de trabalhos desempenhados nas navegações, evidenciando tal contraste.
Isso nos faz indagar se, devido a esta coexistência, conflitos acabaram
acontecendo. Analisando a fala do Entrevistado 1, pudemos identificar o momento
em que ele, torneiro mecânico da FRANAVE, começou a conviver com uma
diversidade de motores na oficina da empresa.
112
Não, tudo foi... continuou a mesma... a mesma coisa. [...] Só quando
veio a ener... energia de Paulo Afonso, foi em sessenta e três, aí que
foi modificando. Que aqui aí era... era movido a... a vapor, com a
caldeira a vapor. Aí quando veio a energia de Paulo Afonso, aí foi
que botaram todo as máquina tudo elétrica.
A princípio, vemos a afirmativa de que as coisas teriam continuado da mesma
forma, tendo cessado a calmaria com o advento da energia elétrica da usina de
Paulo Afonso, na década de 1960. Sendo funcionário da companhia de navegação
estatal, desempenhando atividades ligadas ao concerto de motores, o Entrevistado 1
esteve em constante contato com o maquinário utilizado na FRANAVE. Ao ser
perguntado se havia trabalhado também com motores a óleo diesel, o entrevistado
demonstrou desconforto e irritação, respondendo: “Isso aí não. [...] Tinha um motor a
diesel lá, mais... era um... tinha um rapaz lá que trabalhava, eu num usei isso não”.
Ficou evidente que ele não se sentia à vontade de falar sobre os demais motores,
haja vista o grande sentimento que tinha demonstrado pelo ofício e a alegria ao
longo da entrevista, até aquele momento. Podemos elencar duas impressões mais
relevantes sobre sua reação. Primeiro, porque não eram aqueles os motores que
estiveram sob sua responsabilidade; segundo, porque representavam aquilo que ele
apenas conseguiu exprimir como “lá”. Sem um outro recurso linguístico mais urgente
no momento, o advérbio de lugar utilizado pelo depoente passa a ideia de
distanciamento, alheamento.
Dentro dessa memória, trazida à tona na narrativa do Entrevistado 1, podemos
encontrar um conflito: recordar aqueles motores com os quais ele, tão orgulhoso das
funções que desempenhava enquanto torneiro mecânico, não tinha tanta
familiaridade desconforta-o. Estampadas na parede de sua casa, várias fotos de
vapores dos quais ele tanto se recorda, e dos quais tantas histórias conta, criam um
ambiente em tudo saudoso das caldeiras em que trabalhou.
A introdução dos motores a óleo diesel, promovidos pela FRANAVE a partir da
década de 1960, foi responsável por uma dinamização das navegações comerciais e
de passageiros. Empurradores, lanchas-ônibus, lanchas-rebocadores, com sistema
de propulsão a hélice utilizando o óleo diesel como combustível aumentaram os
números de passageiros transportados, bem como a quantidade de produtos
comercializados (NEVES, 2009). De acordo com Camelo Filho (2005), entre 1942 e
113
1948, somadas as médias anuais de carga transportada pelas três principais
empresas de navegação do São Francisco (Viação Baiana, Viação Mineira e
Companhia e Indústria), teríamos o valor de 48.141 toneladas. Já entre 1965 e 1970
a FRANAVE, única empresa a fazer o serviço desde 1963, fazia um transporte de
51.199 toneladas em média anual, já tendo em sua frota as embarcações movidas a
óleo diesel.
Aos poucos (de acordo com Neves [2009], a partir da década de 1960, a
FRANAVE passa a introduzir de forma sistemática os empurradores na atividade
fluvial do rio São Francisco), os empurradores/rebocadores passaram a suplantar os
vapores no quesito capacidade de transporte de carga, haja vista que os
empurradores não carregavam propriamente os produtos, e sim literalmente
“empurravam” chatas, embarcações metálicas sem cobertura, “com capacidade para
transportar até 250 toneladas de carga em seus porões e no convés” (NEVES, 2009,
p. 32). Ainda assim, vapores e empurradores continuavam sendo utilizados pela
FRANAVE, realizando as navegações no trecho Juazeiro-Pirapora.
Ainda seguindo os levantamentos de Camelo Filho (2005), tendo como base os
Relatórios do Ministério dos Transportes, GEIPOT, 1964 a 1990 e o Anuário
Estatístico dos Transportes, GEIPOT, 1965 a 1989, o volume em toneladas
transportadas pela FRANAVE aumentou, de 25.466 em 1964, para 50.490 no ano
seguinte, atingindo a média citada anteriormente de 51.199 entre 1965 e 1970 (este
último ano apresenta o pico de 57.948 toneladas transportadas pelo rio). Notamos,
deste modo, que a década de 1960, a partir de sua segunda metade, observará um
elevado número de carregamentos em tonelada através de suas embarcações.
Dentro deste contexto de modificações, vamos recorrer novamente a um olhar
da cidade. Se para o Entrevistado 1 os motores novos representavam
distanciamento, aquilo hipoteticamente do lado de “lá”, para nosso Entrevistado 8
eles foram ainda mais determinantes de modo negativo para a existência da
navegação no São Francisco. Filho de ex-remeiro (o pai tinha empurrado as barcas
de figura com varas antes de trabalhar nos vapores), lembra das cicatrizes do pai, e
do fato de passarem sebo para curar a ferida que ele carregava no ombro; além
disso, em suas rememorações, o depoente afirma que os remeiros ainda
trabalhavam durante o período em que já era funcionário fluvial. A afirmativa vai de
acordo com as reflexões em torno da fotografia de Euvaldo, sobre a coexistência de
várias embarcações de tipos diferentes realizando os trabalhos fluviais.
114
Recordando os momentos de trabalho pela companhia de navegação, o
Entrevistado 6 demonstrou orgulho ao falar da frota de navios que faziam parte da
FRANAVE: “Nóis tinha 45 vapôr que fazia, viajava daqui pa Pirapora, Barreira, Santa
Maria da Vitória, Santa Rita Formosa”. Observando esta e outras afirmações da
narrativa deste senhor, ficou claro que as memórias desengatilhadas em torno dos
vapores e do seu trabalho neles faziam parte de suas recordações mais positivas.
Porém, o que mais nos interessará neste ponto é o modo como nosso depoente
encarou a lembrança da chegada nas novas embarcações e o destino que levaram
os vapores a partir daí:
Quando começou os vapôr parado, sem viajá, quando começou e, e,
e... acabar com a viação, com os vapôr, quando começaro a fazer
aqueles rebocadô, que o rebocadô ia pa fazer isso, fazer aquilo, e
risultô no acabô com tudo. Foi cortado, foi cortado aí, pa vender
como chapa, com... com... como ferro velho. Tá vendo como é?
O tom de revolta empregado nesta fala foi bastante destacado, e sua reação de
indignação transparecia a impressão de que aquela ferida ainda não havia
cicatrizado por completo: os vapores tão amados por si, como já havia falado antes,
dos quais ele elaborou réplicas em miniatura que decoram toda a sua casa, haviam
sido suplantados pelos rebocadores. Em um segundo momento, ao falar
espontaneamente sobre notícias de recriação da hidrovia, sua reação não foi menos
acalorada: “Como é que vai fazê? Onde é que eles vão achar mais operário pa fazê
os vapôr? Pa fazê... onde é que eles vai achar mais caldeira, máquina, tudo pa
fazê? O que eles fizero com o que tinha, que vendero tudo como ferro véi”
O trauma presente nas falas adverte para uma transição não tão bem aceita,
muito menos tranquila. No bojo destas reflexões, contudo, há a voz daqueles que se
beneficiaram com tais transformações. Tendo se manifestado anteriormente com
uma opinião adversa daqueles que encaravam com maus olhos as modificações
urbanas da cidade, o Entrevistado 2 expõe aqui, novamente, uma ótica distinta
sobre mais um assunto.
Para ele, os vapores passaram a ser ultrapassados. Claramente, seu discurso
parte de alguém que acompanhou as metamorfoses dos motores e das
embarcações, e pôde constatar as sensíveis alterações proporcionadas pelas
inovações tecnológicas instaladas nas atividades fluviais. Entretanto, ao invés de
115
nutrir certo ressentimento deste processo, ele busca deixar claro que conseguiu se
adaptar. Ao tocar na questão do maquinário dos vapores, sua reação é bastante
sintomática: “mas aquilo ficou muito antigo, muito arcaico, aí veio umas embarcação
a motor. Essas embarcação a motor surgiu porque era mais econômica, era motor a
óleo diesel, impurrando dez chatas”.
Sua fala, novamente, resvala na palavra que ele usou com bastante
recorrência: “desenvolvimento”. Os vapores aparecem em sua narrativa como
embarcações “antigas”, no sentido de pouco funcionais. Enquanto maquinista,
função que também desempenhou ao longo dos anos em que esteve em atividade
nas navegações, torna-se prático para ele traçar um paralelo entre a caldeira dos
Roda-popa e os motores a óleo diesel das chatas e demais barcos menores, com os
quais ainda hoje mantém contato.
Longe de uma ligação afetiva, seu olhar parte de um distanciamento em muito
baseado pela sua preferência pelas novidades proporcionadas pelos motores. Sua
narrativa segue adiante, e seu foco são os empurradores, principalmente o modo
como estes haviam reduzido os gastos com as viagens pelo rio:
depois então veio os empurradores, cada um tinha um motor de
quinhentos hp, dois motores de quinhentos hp cada um, mas
acontece que ele empurrava uma embarcação de duzentos e oitenta
tonelada ao todo. [...] Aí você calculando isso você vê que se tornou
mais barato o frete com um volume muito maior em cada uma viage,
e o número de tripulante de quarenta e oito reduziu pra sete.
De fato, e pudemos observar a partir de dados levantados anteriormente, o
fluxo de cargas e a dinâmica nas navegações receberam um novo impulso com os
empurradores, principalmente no tocante à redução de gastos com tripulação,
elemento citado por nosso entrevistado neste trecho. Mais adiante, ele vai retornar a
este assunto, dando conta de que “bastava dois motorista pra um barco daquele ser
conduzido. Bastava um piloto e um auxiliar pra um barco daquele ser navegável. Na
cozinha tinha um e dois marinheiro”.
Precisamos ressaltar que sua fala não vem carregada de qualquer
ressentimento quanto a esta modificação. Pelo contrário, ao contar estas
informações, buscando sempre empostar a voz, dando um ar de aula (característica
observada em todos os trechos relativos a aspectos técnicos das embarcações com
116
as quais ele teve contato), nosso depoente se orgulha de ter sido sempre “curioso”,
tendo aprendido os diversos trabalhos e técnicas referentes ao serviço de moço de
convés.
Entretanto, a sombra de uma ruptura em suas memórias pode ser identificada
a partir do momento que nosso depoente traz ao palco de suas recordações a
lembrança dos companheiros de profissão e a tristeza pelos colegas que não se
adaptaram às modificações nos motores e à nova (e reduzida) oferta de emprego.
Quanto os meus cumpanheros que navegavam, de acordo que foi
diminuindo o número de embarcação, a coisa foi ficando muito triste,
porque o marinhêro do São Francisco num se dislocô pra outra
região. E muitos deles se acanhô naquele lema de navegá e achá
que a única coisa que ele tinha aprendido era trabalhá navegando
em uma imbarcação. [...] Essa foi uma das coisa que mexeu muito
com a cabeça de nóis que continuamo a trabalhá.
Aqui um ponto de convergência com as outras falas. Apesar de este depoente
mostrar otimismo quanto ao processo de modernização dos motores das
embarcações, observamos que mesmo ele não saiu ileso do evento, carregando
consigo não um ressentimento por si do trabalho que se foi, ou qualquer saudosismo
por parte das embarcações que se foram; a ruptura aqui fica a cargo da tristeza em
ver seus companheiros, de uma hora para outra49, desempregados. Seu lamento
quanto ao fato de seus colegas marinheiros serem marinheiros, terem carta para
isso, e não quererem outro rumo também nos conduz a este raciocínio.
Apesar disso, com um sorriso nos lábios, quase ao fim desta seção de
entrevista, ele mais uma vez se orgulhou de continuar desempenhando atividades
fluviais, tendo se adaptado, nunca tendo parado.
Podemos abstrair aqui, após análise destas narrativas, que as disputas em
torno dos motores que propulsionavam as embarcações, longe de representar
homogeneamente um trauma para os fluviários, puderam ser percebidas de formas
diferentes.
49
O entrevistado constrói em sua narrativa a percepção de que o processo de suplantação dos
vapores se deu de forma rápida, impedindo muitos de seus colegas de profissão de se adaptar ao
novo contexto fluvial.
117
3.3 O porto de Juazeiro e as disputas pela hidrovia
A construção da barragem de Sobradinho compõe mais uma etapa do
processo de transformações sofrido pelo rio São Francisco, e que alterou
significativamente diversos campos do modo de vida da comunidade local; em nosso
caso, damos enfoque às atividades de navegação, afetando diretamente Juazeiro e
sua população ribeirinha, principalmente no aspecto econômico e trabalhista. O país
vivia o período de ditadura civil-militar, e na presidência estava o general Emílio
Garrastasu Médici, dos mais autoritários presidentes do período militar. Na questão
econômica,
o Brasil passava pela fase denominada de internacionalização da
economia e a construção da gigantesca obra estava em total
consonância com os planos elaborados pelo governo militar de criar
obras de infra-estrutura, voltadas para a viabilização do projeto
‘Brasil grande potência’” (ESTRELA, 2008, 116).
Por ocasião da construção, iniciada em 1973, também a posição de destaque
que a cidade de Juazeiro possuía até então corria risco, visto que havia a
possibilidade de interrupção da navegação até o porto local, inviabilizando desta
maneira as transações comerciais e a continuidade do trabalho de barqueiros e
fluviários.
Esta questão foi responsável por uma série de debates acalorados em
Juazeiro. Ainda na década de 1970, apesar de não mais serem o principal trabalho a
absorver a mão-de-obra local, as embarcações particulares do Velho Chico
empregavam muitos dos citadinos juazeirenses do sexo masculino; paralelamente, a
FRANAVE, companhia única de navegação desde a década de 1960, mantinha
ativos vapores e empurradores no trecho Pirapora-Juazeiro, sendo responsável
também pelo emprego de grande parte da população da cidade e da região.
Navegar continuava sendo negócio rentável para os donos de embarcação. Quando
o projeto da Barragem chega, ainda em 1972, até a região, a calmaria cede espaço
ao agito das águas bravas.
Outro momento significativo a ser refletido aqui é a realização do I Seminário
da Bacia do São Francisco, ocorrido nas cidades de Juazeiro e Petrolina/PE, e que
118
fazia parte de uma iniciativa dos governos estaduais e do governo federal, com o
intuito de instalar, no São Francisco, hidroelétricas. A exemplo do complexo
hidroelétrico de Paulo Afonso, em funcionamento já na década de 1950, o seminário
discutia a construção de uma hidroelétrica também em Sobradinho/BA, justamente
no trecho navegável comumente utilizado (Pirapora/MG – Juazeiro/BA, a hidrovia
responsável pelo intercâmbio de produtos e pessoas entre sul/norte). Até então, o
projeto da barragem em Sobradinho previa apenas a retenção de água, controlando-
a para um melhor aproveitamento do fluxo hidráulico nas demais barragens do São
Francisco (MENDES; GERMANI, 2010).
Amplamente noticiado nos jornais locais Rivale e o Jornal do Juazeiro, o evento
era visto pela imprensa como marco desenvolvimentista do rio São Francisco, o
progresso que tanto Juazeiro precisava. Em contraponto, a instalação de uma
barragem, e posteriormente da hidroelétrica adicionada ao projeto, em Sobradinho
significava, a princípio, a inviabilização das navegações de produtos e passageiros
para as demais cidades ao sul do estado da Bahia e do norte de Minas Gerais, da
forma como até então eram feitas. Por esta ambivalência, a profusão dos artigos
publicados nestes jornais refletiu os anseios de setores da sociedade juazeirense
sobre este assunto.
Além destes elementos já citados, o ponto de desacordo principal dentro das
discussões gira em torno da possibilidade de fim das navegações, sendo estas
limitadas pela barragem, abrindo espaço para a criação de um porto em Santana do
Sobrado, povoado localizado geograficamente antes da barragem. Para uma cidade
acostumada ao epíteto de Rainha do São Francisco, semelhante arranhão em sua
coroa punha em risco uma série de atividades comerciais que ainda eram vitais para
Juazeiro, e que dependiam da via navegável para sua alimentação.
É dentro desse debate, levado a cabo através dos jornais citados, que
buscaremos observar a maneira como os agentes envolvidos no processo
(barqueiros, Companhia de Navegação, imprensa), e que tiveram voz através das
matérias jornalísticas, compreendiam o processo pelo qual o rio São Francisco
estava passando. Na iminência de perderem a via navegável, em função da
barragem, mas, principalmente, de Juazeiro ser eclipsada por um novo porto em
Santana do Sobrado, estas vozes disputavam o lugar que, até então, era tido como
parte da cidade, uma extensão sobre as águas do urbano juazeirense.
119
Um dos donos destas vozes foi Ermi Ferrari Magalhães, colaborador do jornal
RIVALE e também cronista local. Barqueiro dos mais antigos de Juazeiro e grande
interessado dos assuntos da hidrovia e das atividades fluviais do Velho Chico, é ele
quem assina um artigo na edição nº 43 do jornal, de 1973, sobre a questão do porto
de Juazeiro, logo após o início das obras de construção da barragem de Sobradinho.
Neste momento, como havíamos falado, o projeto propunha a construção
unicamente de uma barragem de águas, para a regulação dos níveis. A execução
das obras foi feita de forma autoritária, sem maiores acertos com os possíveis
prejudicados dentro do processo. Sabemos que
o contexto sociopolítico nacional era de um governo militar autoritário
com sua política desenvolvimentista, que ignorava a possibilidade de
diálogo sério com os cidadãos, aqui os atingidos pelo
empreendimento, expropriados e desterritorializados (MENDES;
GERMANI, 2010, p. 31).
A falta de uma proposta para a navegação, sem uma via que permitisse o
tráfego das embarcações até então utilizadas pelos ribeirinhos, mobilizou Ermi,
principalmente pelo fato deste ser dono de embarcações. A preocupação com seu
negócio fê-lo se pronunciar sobre a questão, utilizando o Rivale como mecanismo de
amplificação de sua opinião. Seu principal foco é a defesa do porto de Juazeiro, e a
permanência deste enquanto principal local de atracação das embarcações que
desciam o rio. Constatando a quantidade de notícias que haviam chegado até à
cidade sobre este assunto, Ermi comenta o seguinte:
Verifica-se que estão fazendo tempestade em copo dágua e em
torno do porto que entrou para a área política e, também estão
procurando sentimentos de bairrismo regional, que já não se
coadunam com o Brasil da atualidade. Deputados sentindo a
aproximação de eleições, estão interessados no assunto que
representa promoção traduzida em possíveis votos. Aqueles que
publicaram notas sensacionalistas sobre o assunto, seguem um
caminho completamente errado, pois não procuram ouvir os
interessados no problema – localização do porto – ou seja, a
Companhia de Navegação do São Francisco, e, a União dos
Barqueiros do Médio S. Francisco. (RIVALE, 1973, n. 42, p. 10)
120
O barqueiro faz alusão à grande especulação que havia se iniciado em torno
da possibilidade de transferência do porto. A insinuação que Ermi faz aos
deputados, de forma genérica e não identificada, abre margem para especulação
quanto a quais políticos estiveram interessados na possível modificação portuária.
Sabemos que a facção Viana (ou Vianna) era a politicamente mais influente na
cidade. Boa parte da população juazeirense havia dado votos para Prisco Viana,
Lomanto Júnior e Manoel Novais, deputados federais eleitos em 1970 ligados a este
grupo, além da estadual Ana Oliveira; feito repetido em 1974, com a permanência
destes políticos e a entrara de Otoniel Queiroz e Raulino Queiroz, como deputados
estaduais (CHILCOTE, 1991).
Por sua vez, Ermi não tinha destaque na política local. Porém, sua
aproximação com Jorge Khoury e Paganini Nobre Mota, fundadores do jornal Rivale
(onde o próprio Ermi é colunista e eventual diretor anos depois), membros da
Associação dos Estudantes Universitários de Juazeiro e opositores dos Viana, pode
nos dar um sinal sobre sua visão dentro dos jogos de poder da cidade.
Em continuação de seu argumento, o barqueiro tenta desenvolver uma defesa
de sua classe enquanto principal interessada na questão, tendo em vista obterem
suas rendas do trabalho com a navegação. Além dos barqueiros, a própria
FRANAVE deveria ser outra instituição consultada neste processo. Podemos
observar que a crítica do autor do artigo reside no fato de as decisões sobre a
continuação do tráfego de embarcações até Juazeiro estarem sendo especuladas e
supostamente tomadas por agentes externos ao trabalho fluvial. Assim, Ermi reitera
em seu texto que
a Companhia de Navegação, órgão estatal e, os Barqueiros, são
indiscutivelmente os maiores interessados no problema, pois da
atividade da navegação vivem diretamente, mais de cinco mil
pessoas; portanto, esse agrupamento humano o qual depende a sua
subsistência da navegação, é que tem, sem nenhuma dúvida,
elementos e condições através [de] seus Diretores, para informar,
reivindicar e pleitear a solução do momentoso assunto – porto
Juazeiro. E, por mais absurdo que pareça, até o momento, não foram
ouvidos; se o forem, deixarão os atuais “donos do problema”, em
situação difícil, pois a Cia. De Navegação e Barqueiros, são
frontalmente contra a localização do porto neste ou naquele local.
Sim, a Cia. De Navegação e Barqueiros, desejam e lutarão até onde
possam, para que a navegação continue franca até o porto de
121
Juazeiro-Petrolina, como está atualmente. (RIVALE, 1973, n. 42, p.
10, grifo nosso).
Buscando respaldar seu argumento, Ermi dá conta de que barqueiros e
companhia de navegação já haviam negociado com a Companhia Hidroelétrica do
São Francisco o “derrocamento do Canal do Ingá ou Saco do Meio, onde a CHESF,
conservará, até fevereiro de 1977, um canal de 400 metros de largura” (RIVALE,
1973, n. 42, p. 10), por onde as embarcações poderiam continuar livremente seu
curso até o porto juazeirense, sem maior dolo. Esta solução, ainda segundo Ermi,
satisfaria as necessidades tanto dos barcos particulares quanto dos navios e
empurradores da FRANAVE, mais uma vez ressaltando que a transferência do porto
para outra localidade significaria
o estrangulamento da navegação, pois o atual volume de cargas
embarcadas e desembarcadas em Juazeiro-Petrolina, se
descarregada, ou a ser embarcada em qualquer dos portos acima
citados, não encontrará transporte suficiente para evacuar essas
cargas, seja no porto desta ou daquela localização (RIVALE, 1973, n.
42, p. 10).
Outra preocupação latente em seu artigo é a carestia do transporte rodoviário.
O barqueiro não poupa esforços para explicar que se a “navegação for obrigada a
utilizar caminhões para levar ou trazer mercadorias para um porto em qualquer
distância do seu ponto inicial e, terminal de movimento, não poderá sobreviver”
(RIVALE, 1973, n. 42, p. 10), uma vez que o frete rodoviário poderia onerar os
preços e, consequentemente, diminuir os lucros do empreendimento. Obviamente,
Ermi teme pelo próprio bolso ao tecer este argumento.
A Cia. De Navegação do S. Francisco, talvez tenha condição de
continuar operando, pois conta com a ajuda do Ministério dos
Transportes através da SUNAMAN, que cobre os déficits; porém os
barqueiros, forçosamente paralisarão suas atividades. Então
veremos na região, uma crise sem precedentes atingindo mais de
cinco mil pessoas diretamente ligadas à navegação, afetando
também o comércio, a indústria e as rendas estaduais.” (RIVALE,
1973, n. 42, p. 10).
122
Ermi ainda critica os “donos do problema” (por ele identificados genericamente
como órgãos de classe, Clube de Serviço), por enviarem um memorial solicitando a
transferência do porto de Juazeiro para outras localidades durante o período de
construção da Barragem de Sobradinho. Para o autor do artigo, também barqueiro
do São Francisco, tal modificação seria absurda, ao passo que acreditava serem os
únicos possíveis responsáveis sobre esta transferência a Companhia de Navegação
(FRANAVE) e a união de barqueiros, muitos deles organizados em assembleia em
Juazeiro. O artigo conclui ainda que os tais “donos do problema” deveriam aceitar
que o melhor meio seria a continuação do tráfego até o porto em Juazeiro-Petrolina,
através da desobstrução de um canal (Canal do Ingá).
O caso do porto na década de 1970 toma uma proporção ainda maior quando
mesmo Juazeiro e Petrolina passam a disputar a primazia em relação às
navegações. A família Coelho, da cidade pernambucana, já desenvolvia articulações
com políticos e empresários nacionais e estrangeiros, com o intuito de captar
recursos para os empreendimentos particulares que pretendiam realizar em
Petrolina e região. Uma emblemática visita a cidade foi a de Rockefeller, empresário
norte-americano de grande vulto à época, que foi recepcionado, hospedado e guiado
pelos Coelho pelos projetos agrícolas por eles gerenciados. A visita, coberta pelo
jornal O Farol na matéria de capa Missão Rockefeller em Petrolina, da edição de 30
de Janeiro de 1972, e posteriormente o andamento do projeto Bebedouro, financiado
pelo norte-americano, noticiado na manchete Rockefeller: “Bebedouro está
transformando humildes agricultores em homens produtivos” da edição de 23 de
Março de 1977, fazia parte do projeto da família em atrair os investimentos privados
às suas iniciativas. No âmbito do investimento público, a atuação à época de
Oswaldo, Geraldo e Nilo Coelho, que alternavam mandatos públicos a nível estadual
e federal, angariou uma série de recursos públicos direcionados à Petrolina,
claramente beneficiando a família dominante e suas propriedades (CHILCOTE,
1991). A influência política dos Coelho ainda irradiava para Juazeiro, através da
parceria firmada com o político baiano Prisco Viana, membro da facção Viana tão
forte politicamente na cidade baiana, mas carente da unidade que os petrolinenses
haviam construído na política em família que praticavam.
Em 1973, as lideranças públicas das duas cidades passam a discutir a
barragem, a reorganização do transporte fluvial e, principalmente, a nova dinâmica
123
do porto. A manchete “Câmara discute porto”, do jornal Rivale, nos conta sobre esta
questão:
O assunto do pôrto está realmente causando sensações a diversas
camadas da cidade. A Câmara de Vereadores [de Juazeiro] que está
em recesso, realizou uma reunião extraordinária no dia 03 do
corrente, quando na oportunidade, o presidente da Casa fêz leitura
do documento assinado pelos Prefeitos das duas cidades,
presidentes das Associações Comerciais, e CODESF (há inclusive
quem afirme que o presidente da CODESF tenha se negado a
assinar o documento) para o conhecimento dos edis. Depois foi
discutido o assunto com manifestação de quase todos os
vereadores. Alguns acharam o documento muito bem feito, porém
tendencioso, alegando inclusive alguns que o documento foi
elaborado com a finalidade quase que precípua de beneficiar a
cidade vizinha, omitindo certos fatores positivos, deixando
escondidos nas entrelinhas, alguns pontos que também marcam o
desenvolvimento de Juazeiro, provocando assim, maiores vantagens
para Petrolina.
A reunião demorou cerca de três horas, e ficou acertado que aquêle
Colegiado iria estudar e elaborar um documento baseado em dados
técnicos, esclarecendo certos esquecimentos cometidos com
respeito a Juazeiro. O poder legislativo juazeirense toma uma
posição de defesa do nosso povo, procurando através de
elucidações, deixar os munícipes realmente inteirados do que se
passa a respeito do porto provisório de Sobradinho. (RIVALE, 1973,
n. 42, p. 3)
Neste ano, o prefeito petrolinense era Geraldo de Souza Coelho, da Arena, e
que detinha ampla maioria na câmara municipal; em juazeiro, o prefeito era Durval
Barbosa da Cunha, da Arena-2 (facção dissidente do partido), apoiado
discretamente pelos Viana e pelos comerciantes locais, com pouca
representatividade na câmara municipal. Podemos observar que a notícia, não
assinada especificamente, mas dentro da proposta editorial já exposta, desenvolve
seu discurso dentro da ideia de protecionismo em relação à questão portuária,
criticando o documento conjunto das cidades por beneficiar Petrolina em detrimento
de Juazeiro. Como pudemos ver, os Coelho tinham total interesse nas questões
econômicas regionais, e sua conexão com o ramo político hegemônico juazeirense
poderia, a princípio, ter pendido favoravelmente às suas aspirações nas discussões
entre as cidades sobre o novo porto.
124
Seguindo as discussões levantadas pelo artigo de Ermi Ferrari, a Companhia
de Navegação enviou carta para o jornal Rivale. Nos pontos elencados pelo então
presidente do órgão, José Alonso Sartte, e pelo gerente em Juazeiro, Esmeraldo de
Oliveira Brito, os dois que assinam o texto publicado pelo jornal, podemos observar
uma série de críticas ao texto de Ermi Ferrari Magalhães, bem como uma tentativa
de esclarecer a questão do porto em relação ao período em que estaria sendo
construída a barragem, dando visibilidade à opinião tida como oficial da FRANAVE
ao público leitor do jornal. A todo o momento, sem citar nomes, o texto trata como
“os líderes” aqueles que se opõem à criação de um porto provisório em um ponto
próximo à cidade.
Entre outros argumentos, o artigo tenta esclarecer que tanto a FRANAVE
quanto a União dos Barqueiros haviam sido ouvidas pela CHESF, quanto à liberação
do canal do Ingá, para liberar água e velocidade no rio para a navegação, permitindo
a chegada das embarcações à Juazeiro. Outro ponto dá conta de que também a
Companhia de navegação, ladeada mais uma vez pela União dos Barqueiros,
consideraram a possibilidade e
insistiram pela utilização do pôrto mais próximo possível de Juazeiro,
isto tendo em vista que as Empresas ou os Armadores
independentes só podem sobreviver comercialmente se seus
negócios apresentarem algum lucro (RIVALE, 1973, n. 44, p. 7).
Em um extenso texto explanatório e argumentativo, os autores buscam rebater
as críticas feitas anteriormente por Ermi, mas também oferecer uma resposta às
pressões existentes por parte de políticos, comerciantes e demais indivíduos
interessados nesta realocação (ou na manutenção) do porto fluvial. Em torno disto, o
texto busca deixar claro que
entre gastar somas para construir um pôrto provisório a 68
quilômetros de Juazeiro e nada gastar para utilizar um pôrto já
existente a apenas 42 quilômetros desta Cidade, bastava usar o bom
senso e o equilíbrio, pois qualquer que fosse o local preferido ou
escolhido pelos ‘líderes’, os Armadores só utilizariam o pôrto mais
próximo de Juazeiro (RIVALE, 1973, n. 44, p. 7).
O que se torna claro na carta é a preocupação dos juazeirense no tocante ao
destino das navegações, e a possibilidade que a cidade vizinha saia beneficiada de
125
todo esse imbróglio provocado por Sobradinho e sua barragem. Para os autores,
isso não passa de “medo da própria sombra”.
São ‘os líderes’, ainda, as pessoas que estão dando a entender que
usando-se agora o pôrto de Sobradinho [Santana do Sobrado]
quando êle não mais tiver função os Armadores [navegantes]
passarão a usar só o pôrto de Petrolina, desaparecendo assim o
pôrto de Juazeiro. Queremos explicar ao povo – e não aos ‘líderes’, -
que qualquer Cidade que tenha um rio navegável pode ter o seu
próprio pôrto e ninguém impedirá êsse direito legal, da mesma forma
qualquer Armador atracará a sua embarcação no pôrto que melhor
lhe convier e nenhuma Lei o impedirá de fazê-lo; acontece que, por
circunstâncias especiais, tanto físicas como geológicas, do lado de
Petrolina o São Francisco corre sôbre um vasto leito de rochas
ligeiramente submersas, que devido a este fator a navegação do lado
de Petrolina torna-se bastante problemática e até mesmo perigosa
[...]; diante destes dados, será que os ‘líderes’ não estão com medo
da própria sombra? (RIVALE, 1973, n. 44, p. 7).
O texto ainda trata do “memorial que criou tanta celeuma” (RIVALE, 1973, n.
44, p. 7). Neste aspecto, os pontos básicos abordados foram: tomadas de água para
irrigação e a infraestrutura de Juazeiro e Petrolina, que dispensaria a criação de
nova cidade na área da Barragem.
as ditas tomadas irrigariam 50 mil hectares no Estado de
Pernambuco e 60 mil no Estado da Bahia, vejamos que a superfície
de Pernambuco é de noventa e oito mil quilômetros quadrados e a da
Bahia é de quinhentos quilômetros quadrados, conclui-se que a
Bahia é cerca de seis maior que o Estado de Pernambuco; porque
será que os ‘líderes’ não reivindicaram uma irrigação proporcional à
área dos dois Estados? Cinquenta mil hectares para Pernambuco e
seis vezes cinquenta mil (trezentos mil) para a Bahia se a Bahia é
seis vezes maior que o Estado de Pernambuco? Os ‘líderes’ não
viram isto? (RIVALE, 1973, n. 44, p. 7).
Aqui, o discurso se direciona não mais aos “líderes” baianos, mas aos
pernambucanos, diante do argumento de que, na divisão de áreas para irrigação
proposta pelo memorial, o estado da Bahia teria saído prejudicado. Influências
políticas petrolinenses? Discutimos anteriormente a questão do interesse dos
Coelho sobre tais empreendimentos, e diante da proeminência desta família na
126
política local petrolinense, bem como em âmbito estadual e federal, não seria
impensável constatar tal interferência.
Um elemento dentro da própria carta corrobora com a interferência petrolinense
neste processo: “Pergunta-se: onde está a infra-estrutura de Juazeiro capaz de
receber e alojar esses seis mil novos trabalhadores, isto sem contar no mínimo os
dezoito mil dependentes?” (RIVALE, 1973, n. 44, p. 7). As empresas responsáveis
pelas obras da barragem encontravam-se instaladas em Petrolina, juntamente com
seus funcionários. Diante disso, em tom irônico e crítico, os autores do texto
questionam: “Que fizeram os “líderes” no sentido de, por razões óbvias, trazerem-
nos para a Bahia?” (RIVALE, 1973, n. 44, p. 10). Para exemplificar a crítica e dar
maior vasão à criticidade da carta, o texto cita o caso da Servix, outra empresa
envolvida com a construção da barragem. Com muito esforço, ela conseguiu “alugar
um velho bar e o está remodelando para instalar seus escritórios” (RIVALE, 1973, n.
44, p. 10).
Na mesma edição, novo artigo de Ermi Ferrari vinha publicado. Sob o título de
“Porto de Juazeiro”, o texto é mais informativo que opinativo, mas é possível notar
um tom melancólico na forma como seu autor trata as questões levantadas. Dividido
em 5 tópicos, dá conta da desistência da SUNAMAM50 – Superintendência Nacional
da Marinha Mercante – em realizar a abertura do Canal do Ingá, o que possibilitaria
a navegação para além das obras da barragem, chegando à Juazeiro; da
interrupção da navegação durante a construção da barragem, cabendo unicamente
à CHESF – Companhia Hidroelétrica do São Francisco – a decisão de criar novo
porto; da inexatidão de onde este poderia ser construído, cabendo ao Departamento
Nacional de Portos e Costa e a SUNAMAM a decisão final; do fechamento definitivo
do canal de navegação em Sobradinho, entre setembro e outubro.
O último tópico mais parece uma despedida às embarcações, impedidas de
romper os limites da barragem.
Consequentemente, a partir daquela data, barcas e vapores deixarão
por muito tempo o nosso Porto. A paisagem alegre de Barcas com
velas brancas singrando as águas, Barcas a motor, com seus
motores ligados chegando ou saindo do pôrto. Vapores com suas
50
A Companhia de Navegação do São Francisco, FRANAVE, era submetida à SUNAMAM, criada
pelo Decreto nº 64.125 de 19 de fevereiro de 1969, que por sua vez, era um órgão ligado ao
Ministério de Transportes.
127
rodas em movimento ou hélices de empurradores, deixarão até 1977
de se constituir uma paisagem alegre para os olhos dos que
frequentam o cais e constituir uma fonte de renda para o comércio e
indústria locais (RIVALE, 1973, n. 44, p. 14).
De todo modo, o lamento de Ermi neste trecho não deixa de ter um quê de
lógico. O temor deste barqueiro é também o temor de um juazeirense acostumado
com os trabalhos fluviais na paisagem de sua cidade. A barragem, posteriormente
hidroelétrica, a princípio, não esboçava alternativas à hidrovia. Filha do pacote de
construções de obras gigantescas, típicas do período ditatorial militar do Brasil, a
barragem serviria para o único fim que interessava aos militares: represamento de
água e geração de energia elétrica.
No projeto original, a Barragem impediria o tráfego de embarcações
pra o Porto de Juazeiro, uma vez que não haviam projetado eclusa.
Só depois de realizadas algumas pressões é que resolveram, as
autoridades, determinar a sua construção com a finalidade de
permitir a continuidade da navegação (GONÇALVES, 1997, p. 168).
Por ocasião do Seminário da Bacia do São Francisco, o Jornal de Juazeiro,
órgão gerenciado pelo médico Paganini Nobre Mota, tendo como diretor Moacyr dos
Santos, vereador da cidade à época, publicou um editorial em que se esforçava no
intuito de fazer com que os leitores (e os líderes locais em especial) de fato
acreditassem que, juntamente com outras iniciativas recentes, este Seminário
poderia ser fundamental para a cidade e a região.
O Governo Federal, através de um de seus poderes, abrirá um
grande Seminário Sobre o São Francisco, aqui na região, numa hora
muito oportuna. Nada mais lógico e sensato do que vir buscar os
problemas na fonte, ouvindo os seus interrogadores, e depois enviar
as soluções dentro PNDS já elaborados. Desta maneira o poder
central está irradiando a sua área física de ação para ouvir de perto
as angustias e os dramas desse imenso país, que por ser grande
apresenta-nos igualmente problemas maiores. Chamamos de
oportuno a este Seminário pois ele vem, no momento dos grandes
deslanches econômicos – vide Projeto Curaçá, Agrovale, Alfanor,
DISF, Sobradinho – que estão a modificar a “costumeira” paisagem
do médio São Francisco. Em pleno campo de atividade as forças
políticas irão de sentir e observar os pontos positivos e as distorções
128
desse colosso potencial que está a sacudir-se. (JORNAL DE
JUAZEIRO, 1975, n. 82, p. 2).
Na edição seguinte deste mesmo jornal, a matéria “E os barqueiros para onde
vão?”, assinada por Mário Vicente dos Santos, comerciante e um dos mais antigos
barqueiros de Juazeiro, segue na esteira dos debates em torno das navegações no
São Francisco. Dois anos após a querela entre Ermi e a Companhia de Navegação
por meio das publicações no Rivale, é a vez deste outro barqueiro levantar a voz,
aproveitando a organização do Seminário, na tentativa de defender a classe.
Utilizando-se de trechos de trabalho feito pelo economista José Maria Isola, o
artigo buscava, em nome da união dos barqueiros do Médio São Francisco, chamar
a atenção das “autoridades constituídas para a situação em que eles ficarão em
consequência da construção da Barragem de Sobradinho” (JORNAL DE JUAZEIRO,
1975, n. 83, p. 6). A ocasião, neste caso, parecia ser oportuna para tal reivindicação.
O desejo expressado pelo barqueiro em seu texto era o de que as informações
que seriam ora lançadas pudessem ser recebidas e refletidas pelos envolvidos nos
debates.
É do estudo supracitado as seguintes afirmações, às quais damos
total assentimento: ‘A navegação no Rio São Francisco enfrentará
sério desafio em futuro próximo, logo que o projeto Sobradinho for
construído...’ ‘Em vista dos resultados, pode-se concluir que os
barcos atuais, com toda a certeza, não têm condições de enfrentar o
problema da navegação com tempo ventoso’. ‘As previsões
preliminares mostram que a altura das ondas que podem ocorrer ao
longo das vias navegáveis, ou nas zonas de arrebentação, podem
criar condições adversas aos barcos atuais.’
Coerentemente com o Programa Especial para o Vale do São
Francisco – PROVALE – a União dos Barqueiros quer aproveitar a
oportunidade da realização do Simpósio sobre a Bacia do São
Francisco para lembrar às autoridades participantes que o dilema a
que foram lançados os barqueiros não pode deixar de merecer a
atenção devida. (JORNAL DE JUAZEIRO, 1975, n. 83, p. 6).
Mário utiliza em seu texto as principais argumentações sobre a questão da
barragem de Sobradinho, vistas pelos barqueiros como grandes entraves para a
continuação do tráfego fluvial. Neste trecho, e falando em nome da União dos
Barqueiros, ele direciona o apelo aos participantes do Seminário (Simpósio, no
texto), ressaltando o dilema no qual estavam inseridos diante das obras no rio. Em
129
seguida, o barqueiro enfatiza seu posicionamento, levantando as principais
solicitações da classe.
Reafirmo meu total apoio às reivindicações contidas no Relatório que
a União dos Barqueiros já enviou aos nossos governantes – e que
são as seguintes:
a) financiamento para aquisição de embarcações adequadas à
navegação, após a conclusão da Barragem de Sobradinho;
b) prazo de resgate: 12 anos, com 3 (três) de carência;
c) juros: 10% (dez por cento) ao ano.
Esta situação, pelos profundos reflexos sociais que envolve a classe
dos barqueiros, não pode e nem deve ficar esquecida.
Outro ponto que não pode ser esquecido é o que diz respeito às
indenizações a que têm direito os barqueiros, pois com todo este
tempo parados criaram muitos compromissos que precisam ser
saldados. E que não haja demora para que os problemas em que
nós vivemos não mais se agravem.
Assina um dos mais velhos barqueiros do São Francisco.” (JORNAL
DE JUAZEIRO, 1975, n. 83, p. 6).
As navegações, a despeito de todos estes debates, sofreu profundo golpe ao
fim das obras em Sobradinho. O lago impossibilitou a continuidade das viagens em
embarcações de pequeno e médio porte, as mais utilizadas pelos barqueiros
individuais. A Companhia de Navegação manteve o transporte de cargas com
chatas rebocadas por Empurradores. Os barqueiros, contudo, foram indenizados
pelo governo: “56 barcas do rio São Francisco foram indenizadas em juízo uma vez
que elas não ofereciam a segurança necessária para enfrentar as novas condições
de navegação do lago, que terá eventualmente formações de ondas de até três
metros de altura.” (JORNAL DA BAHIA, 1978, p. 2).
No entanto, o fator Sobradinho não pode ser identificado como único a
corroborar com o fim do tráfego fluvial. Ao longo deste capítulo, pudemos observar
que um conjunto de transformações e suas implicações atuaram de forma a
secundarizar a atividade de navegação tal qual era. A nova lógica dos transportes,
com a introdução das rodovias e a consequente expansão destas; o reordenamento
da orla da cidade, dando então espaço para o tráfego de carros em detrimento do
fluxo de embarque e desembarque neste mesmo local; a questão dos motores e a
disputas em torno das inovações tecnológicas; por fim, as transformações no canal
de navegabilidade em função da construção da barragem e hidrelétrica de
130
Sobradinho. Todos estes aspectos acabaram competindo na diminuição das
atividades fluviais, no tocante às viagens longas, subindo e descendo o rio, rumo à
Minas Gerais.
De longe, este processo não pode ser definido como pacífico, e os relatos dos
entrevistados, além do embate jornalístico exposto neste último tópico, dão conta de
uma intensa disputa, desde o motor que se transforma, passando pelos espaços
urbanos transformados pela ação do “progresso” (o carro, a rodovia), até a questão
da transferência do porto para outra localidade.
É importante ressaltar que navegar no São Francisco, em Juazeiro, não deixou
de ser exercício praticado pelos citadinos. A despeito das grandes navegações, e
usamos “grandes” no sentido de maiores, mais longas, o rio continuou navegável,
por parte das embarcações menores, no tocante às cidades mais próximas, nas
travessias entre Petrolina e Juazeiro, nos passeios pelas ilhas, na atividade de
pesca.
131
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um ponto. Para todos os efeitos, de continuação. Assim, chegamos ao espaço
conclusivo de nossas reflexões sobre o objeto. O intuito, e por isso a ideia de
continuidade, é que estas perspectivas e as possibilidades de resolução dos
problemas levantados possam suscitar eventualmente novos trabalhos, novas
abordagens, sobre Juazeiro e região e sua relação com o rio São Francisco no que
tange às práticas construídas dentro desse contato.
Na pesquisa que aqui empreendemos, tomamos como palco das ações a
serem analisadas o cais/porto/orla juazeirense, e dentro deste local pudemos
observar os modos como os citadinos o praticavam, tornando-o espaço de
sociabilidades construídas mediante as ações por eles empreendidas. O trabalhar, o
observar, o despedir-se, o simples caminhar; ações cotidianas, responsáveis por
promover uma significação do local praticado, permitindo que os indivíduos
pudessem senti-lo.
Dentro do que pudemos refletir sobre a construção das sociabilidades na
esfera de influência da intersecção rio/cidade, as atividades de navegação
empreendidas no Velho Chico desempenharam papel preponderante. O seu aspecto
agregador, englobando os indivíduos ribeirinhos em seu exercício, aliado às
condições geográficas da cidade, constituindo-se em local de convergência entre
vias de transporte e viagens, permitiu que Juazeiro pudesse ser edificada enquanto
polo comercial. Neste aspecto, a conexão estabelecida pelo fluxo do rio com estados
ao sul do país, através das cidades ribeirinhas mineiras, possibilitou que a produção
local encontrasse destino para seu escoamento, ao mesmo tempo em que o
comércio local se abastecia com o que era produzido nas indústrias sulinas.
Aproveitando a ótica dos engenheiros Halfeld e Sampaio, observamos como
estes elementos já vinham constituindo-se na segunda metade do século XIX. De
um relato a outro, aspectos da vida urbana e comercial e das atividades de
navegação empreendidas foram evidenciadas em seus relatórios, servindo com
base para nossas análises.
É preciso deixar claro que procuramos observar a todo o momento os sentidos
e representações nas memórias sobre a atividade de navegação, estabelecendo
contato com Juazeiro, buscando problematizar tais olhares. Levando esta assertiva
132
como diretriz em nossas observações, seguimos adiante em nossa narrativa,
propiciando o encontro e problematização das fontes orais e fotográficas, além de
matérias jornalísticas que de certa forma abordavam o espaço em questão (orla) e
os indivíduos que desempenhavam suas atividades cotidianas neste local.
Neste exercício, o panorama que foi construído através destes olhares pôde
nos mostrar uma série de fatores que, dentro de nossas reflexões, foram
considerados em caráter plural: os olhares mostraram que o espaço conectivo entre
rio e cidade, longe de representar a mesma coisa para todos, pôde ser identificado
como espaço do proibido e do permitido; também é espaço apropriado enquanto
elemento constituinte das memórias agradáveis, ao passo que também figura entre
as rememorações que podemos classificar como traumas (referência a maus
momentos, rupturas dentro daquilo que é lembrado); é ainda espaço de conflitos, de
disputas, palco onde se desenrola, por exemplo, a “querela” dos motores,
responsável por uma modificação significativa nas atividades de navegação,
principalmente no tocante ao trabalho desempenhado pelos moços-de-convés.
Através das narrativas destes ex-fluviários, inclusive, pudemos observar que,
muito além da ideia romântica construída em torno do trabalho com as
embarcações, suas motivações para ingressar neste ofício são muito mais plurais do
que se supunha. Desejo de ter um emprego, admiração em relação às
embarcações, necessidade financeira, falta de oportunidades e perspectivas, ou
mesmo opção, contraponto ao argumento anterior: as vozes que contaram suas
histórias expuseram a diversidade de elementos levantados, apresentando um
panorama diferenciado.
Atrelado a isso, também pudemos observar a maneira como cidade e rio,
Juazeiro e São Francisco mantinham-se interligados através das práticas sociais:
seja o jovem rapaz, sentado à orla, observando o ir e vir de vapores e demais
barcas, seja o transeunte a caminho de sua casa e que tem, como quadro cotidiano,
um pano de fundo diário, os trabalhos fluviais, seja o próprio fluviário, ao rememorar
sua vida e seu trabalho em Juazeiro.
O apito, o ronco dos motores, o vai e vem de passageiros, a despedida dos
viajantes, a movimentação de mercadorias e do comércio juazeirense. A hidrovia
que abastece a cidade acaba integrando-se ao cotidiano citadino, atuando como um
elemento familiar e constituinte das identidades sociais em Juazeiro, além de,
133
enquanto espaço físico, figurar nas lembranças particulares como um local de
memória e de reconhecimento identitário.
Outro elemento bastante importante relaciona-se a questão em torno das
transformações ocorridas nos transportes fluviais e a consequente diminuição no
fluxo hidroviário pelo São Francisco, algo significativo para a vida urbana de
Juazeiro, uma vez que esta estava bastante envolvida com as atividades de
navegação. A partir das análises realizadas sobre fontes orais, fotográficas e
jornalísticas, pudemos observar este fator para além da explicação simplista de que
a barragem de Sobradinho teria posto um fim às navegações. Obviamente que este
evento foi também fundamental para o processo de enfraquecimento da utilização
da via fluvial enquanto meio de transporte e escoamento de produtos. No entanto,
desde a construção da ponte Presidente Dutra, fazendo consigo uma conexão entre
Juazeiro e Petrolina por meio da estrada férrea, mas, especificamente, pela rodovia,
que passava a desempenhar um papel preponderante já a partir das décadas de
1950 e 1960, a cidade baiana e sua população já assistiam a um deslocamento de
importância, na organização urbana, para o asfalto e os automóveis que chegavam.
Não à toa, as modificações ocorridas na orla da cidade, seguindo a esteira das
percepções fornecidas pelos olhares dos entrevistados, cronistas locais e registros
fotográficos, apresentaram fragmentos da memória coletiva sobre o processo de
transformação em Juazeiro: a estação destruída, onde, por sobre, passou a ponte; a
rampa para automóveis construída logo após; o parapeito da orla, modificado em
sua estrutura; o asfalto que obrigou os passantes, bem como os trabalhadores
fluviais que descarregavam ali suas mercadorias, a ceder espaço aos automóveis.
Até a década de 1970, o cais/porto da cidade já não representa mais o local de
atracação (ou o único local para esta atividade), relacionando-se cada vez menos
com a atividade fluvial de navegação de mercadorias e viagens intermunicipais e
estaduais. Os depósitos que recebiam estas mercadorias deixam de ter
funcionalidade diante do deslocamento de função do local, cedendo espaço para
outras práticas de sociabilidade.
Os reflexos destas transformações não passaram despercebidos, sem
fomentar uma série de questões e disputas dentro da sociedade juazeirense, bem
como da região circunvizinha. Logicamente, isto pôde ser observado já nas falas dos
depoentes, quando estes constatavam as principais modificações na cidade que
mais haviam sido significativas para si. Porém, o deslocamento do porto e suas
134
funções fluviárias proporcionou uma disputa política bastante profunda, e pudemos
analisar tal questão a partir de uma série de artigos, publicados principalmente nos
jornais Rivale e Jornal de Juazeiro. Os agentes envolvidos, com suas respectivas
intencionalidades, debateram o assunto da localização do porto de Juazeiro durante
o período de construção da barragem de Sobradinho. Diante da grandiosidade da
obra, e das profundas transformações que esta prometia fazer à região e aos
ribeirinhos, as navegações pelo São Francisco, sua situação pré e pós construção
da barragem, tornou-se questão das mais disputadas, principalmente porque mexia
em um elemento que simbolizava uma hegemonia que Juazeiro possuía desde fins
do século XIX (algo refletido no primeiro capítulo). A atividade fluvial representava,
na década de 1970, espaço temporal dos debates refletidos no tópico 3.3 desta
dissertação, uma conexão com um passado tido como “áureo” para os barqueiros
juazeirenses, e que ainda era o diferencial que ostentavam em face à cidade vizinha,
Petrolina, que fazia neste período uma oposição forte à sua cidade-irmã baiana, no
quesito do deslocamento do porto.
Assim, o que concluímos quanto a esta questão é que, para além da simples
construção da barragem, a relação entre rio e cidade vem sofrer uma grande
modificação a partir de elementos diversos, em etapas que permeiam a segunda
metade da década de 1950 até fins da década de 1970. Isso não significa, em
hipótese alguma, que Juazeiro e o Velho Chico perderam a conexão entre si, bem
como as práticas de sociabilidade foram extintas dentre a população local. As
transformações ocorridas concorreram para o abandono de certas práticas em
detrimento de novas, construídas a partir dos novos elementos em questão.
O local orla (mais orla do que cais ou porto, visto que o sentido anterior de
espaço praticado pela chegada e partida de embarcações, carregadas de
passageiros e produtos a serem comercializados, havia caído em desuso) passa a
adquirir um novo sentido a partir das novas práticas estabelecidas pelos citadinos. A
instalação de bares e restaurantes, por exemplo, abre o local para práticas
culinárias; é local também onde se desenrolam práticas de divertimentos em nada
conectados ao rio, como espaço de música e dança nestes estabelecimentos; os
depósitos cedem espaço às lojas de varejo, e em nada se assemelham aos locais
onde se guardavam os produtos comercializados pelo rio.
Alertamos que isso não significa, também, que práticas relacionando rio/cidade
não tenham sido construídas a partir daí, no tocante à atividade de navegação. As
135
barcas de travessia entre Petrolina e Juazeiro, compondo atividade cotidiana de boa
parte da população empregada nas casas comerciais de ambas as cidades; as
embarcações que realizam viagens às ilhas do São Francisco; o crescimento das
práticas esportivas e de lazer de navegação no trecho do rio inserido no cotidiano
urbano da cidade de Juazeiro. São alguns exemplos que podemos citar brevemente
aqui.
Tais elementos novos, contudo, escapam ao nosso olhar, extrapolando nosso
recorte temporal, mas podem compor uma nova análise, sobre as práticas de
sociabilidade construídas em Juazeiro a partir destas transformações urbanas.
136
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140
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Seguindo orientação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP-UEFS), a identidade
dos entrevistados foi mantida em sigilo, e as citações dos depoimentos ao longo
desta dissertação foram referenciadas em nota de rodapé, identificando a data de
coleta da fala em questão. Os nomes dos depoentes foram substituídos por
numeração (Entrevistado 1, Entrevistado 2, etc.).
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