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Page 1: ORSER JR - Introducao a Arqueologia Historica-libre

Coleção Mínima

Série Ciências Sociais

Tftulos publicados:

Memória da Fazenda Bela Aliança

Edgard Carone

Introdução à arqueologia histórica

Charles E. Orser /r.

Questões de história contemporânea

Osvaldo Coggiola

Próximo lançamento:

Introdução à Escola de Frankfurt

Goran Therborn

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CHARLES E. ORSER JR.

INTRODUCÃO ..

À

ARQUEOLOGIA HISTÓRICA

Tradução e apresentação Pedro Paulo Abreu Funari

Belo Horizonte 1992

dficina de Livros

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© Charles E. Oi·ser fr .

Composição: G iselk Composições Gráfkas

Capa : Paulo Guilherme Alvares

N." de catálogo: 0044

Direitos reservados:

OFICINA DE LIVROS LTDA. Rua Tupinambás, 360, 12.º andar, sala 1210

30.120 - Belo Horizonte, MG - Te!. : (031) 222-1577

Rua da Quitanda, 113, 10.º andar, conjs. 102/ 104

01012 - São Paulo, SP - Te!. : (011) 37-9872

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Sumário

Apresentação, 7 Pedro Paulo Abreu Funari

Introdução, 13

O que é a arqueologia histórica?, 17

As diferentes fontes da arqueologia histórica, 31

Diferentes visões sobre o que a arqueologia nos informa; . em particular a arqueologia histórica, 59

Especificidades da arqueologia histórica: solos e artefatos, 83

Um exemplo de arqueologia histórica: as fazendas do Novo Mundo, 103

Arqueologia histórica e reconstrução, 121 Conclusão, 127

Vocabulário crítico, 131

Bibliografia comentada, 139

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Apresentação

A trajetória da arqueologia no Brasil

Um dos nossos primeiros pensadores nacio­nais, Frei Caneca, afirmava que não escrevia "para os homens letrados, e sim para o povo rude e que não tem aplicação às letras". A arqueologia estuda, justamente, a cultura iletrada, ou melhor, os aspectos da cultura que não são escritos, os ob­jetos, as coisas, o mundo material usado e trans­formado pelos homens. Na medida em que a cul­tura material refere-se, sempre, ao trabalho huma­no, remete, necessariamente, ao modo de vida do "povo rude" de Frei Caneca, aos seus costumes e tradições, mas também à sua exploração. Gera­ções e gerações de iletrados nos são acessíveis ape­nas por sua civilização material: por seus instru­mentos de trabalho, por seus grilhões, por seus en­feites e por seu artesanato. O estudo deste mundo material pode levar o arqueólogo, como bem ressalta Bruce C. Trigger, a adotar uma concepção

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materialista que procura explicar, a partir da cul­tura material, a estrutura espiritual da sociedade e, a partir da exploração material, a estrutura e as relações de poder. A proximidade da arqueologia com o materialismo acaba por levá-la a tornar-se não apenas o "estudo do antigo", mas também, como propuseram recentemente M. Shanks e C. Tilley, "estudo do poder", retomando o sentido original de arkhé em grego, antigo e poder a um só tempo. Isto significa que a arqueologia possui, inevitavelmente, um forte caráter político como potente instrumento de análise das relações de poder e de exploração material no interior das so­ciedades de classe.

Embora antiga no Brasil, a arqueologia ape­nas se tornaria uma preocupação acadêmica a par­tir das décadas de 1950 e 1960. A intervenção mi­litar de 1964 viria atingir este campo de maneira particularmente dura. Paulo Duarte, eminente ar­queólogo humanista, relatava, em 1968, que "mui­ta água correu sob a Ponte das Bandeiras, e essa água, muitas vezes turvada pela indiferença das universidades brasileiras, sem verbas e relegadas pelo poder público, não permitia esperarem os ar­queólogos brasileiros alimentar grandes esperanças sobre a qualidade dos trabalhos a serem desenvol­vidos". Sua desesperança, às vésperas da sua ex­clusão arbitrária da vida acadêmica, viria confir­mar-se com a escalada repressiva que culminaria na ascensão de "espiões e delatores em todos os

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níveis, com notórios agentes de segurança calma­mente instalados na universidade, dando palpites, proibindo conferências, sendo até considerados como parte do corpo universitário", nas palavras de Antonio Candido, datadas de 1974. Apenas re­centemente, e mais tardiamente do que as outras ciências humanas, começa a arqueologia a adquirir um papel crítico em nosso meio. Crítico em dois sentidos: em primeiro lugar, como disciplina, pro­duzindo estudos que ultrapassam a mera coleta de objetos, produzindo interpretações. Isto implica uma revolução mental, na qual a descrição é subs­tituída pela crítica ou, parafraseando Fígaro, "un volcano la mente già comincia a diventare" (a men­te começa a tornar-se um vulcão). Em segundo lu­gar, em relação à sociedade, o estudo da cultura material comeca a relacionar-se com a valorizacão de bens sociaÍs, patrimônio material de com~ni­dades concretas, podendo "nos ensinar muita coisa, não só a respeito das práticas do dia-a-dia, mas também a respeito dos sonhos e da imaginação, das artes do fazer e do viver de uma sociedade" , como propuseram A. Vogel e M.A.S. Mello.

A arqueologia histórica: "a parceria entre os homens e as coisas''

Décio de Almeida Prado, há pouco, bem lem­brou que "se o passado não servisse para falar do futuro, para que serviria?". Neste sentido, nada

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melhor do que a cultura material, os objetos, o mundo material que nos envolve, para compreen­der a sociedade, suas transformações e conflitos. Machado de Assis, em seu Quincas Borba, notava que "quem conhece o solo e o subsolo, sabe muito bem que um trecho de muro, um banco, um tapete, um guarda-chuva, são ricos de idéias ou de senti­mentos, quando nós também o somos, e que as re­flexões de parceria entre os homens e as coisas compõem um dos mais interessantes fenômenos da terra". A arqueologia histórica, tal como proposta por Charles E. Orser Jr., trata desta parceria na sociedade moderna, capitalista ou protocapitalista. Refere-se, portanto, à nossa sociedade, ao mundo do qual somos integrantes e ,diretos herdeiros. Abrange o que se designa por arqueologia colonial (ou do período escravista) . e arqueologia pós-co­lonial (ou do período capitalista) e toca em pro­blemas candentes, como a cultura material associa­da aos grupos subalternos, sejam indígenas, ne­gros, imigrantes ou outros trabalhadores em socie­dade de classe. Como lembra Arno. A. Kern, "esta imensa tarefa de resgate do passado para o pre­sente é uma responsabilidade da qual dificilmente alguém poderá se furtar, pois é um compromisso com a própria socie.dade".

No Brasil, têm-se desenvolvido, nos últimos anos, os estudos arqueológicos das missões jesuí­ticas no Sul do país, de patrimônios materiais urba­nos, iniciam-se os estudos de quilombos e da cul-

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tura material de origem africana. Como ressalta C. M. Guimarães, este estudo "tem permitido a reconstrução de aspectos da realidade mais próxi­mos da vida quotidiana, e a desmistificação da vi­são de mundo erigida a partir da documentação oficial, bem como um outro 'olhar' sobre aqueles que aí aparecem de forma oblíqua ou mesmo figu­rativa". A arqueologia histórica pode, portanto, contribuir_ significativamente para uma mais com­pleta compreensão da sociedade brasileira, recons­tituindo, através dos artefatos, vozes abafadas, prá­ticas esquecidas, culturas reprimidas. Numa so­ciedade brasileira cujos registros escritos restrin­gem-se a uma reduzida elite letrada, a massa, seus sofrimentos e alegrias, as culturas populares, en­fim, podem ressurgir graças ao seu trabalho, aos seus artefatos. Por detrás dos documentos escritos da elite podem-se entrever os homens comuns ou, como diz o ditado, "olha-se o circo por baixo do pano "; sob o manto diáfano do discurso escrito

· encontra-se a cultura material dos iletrados .

O autor e a obra

Charles E. Orser Jr. alia algo incomum, mas instigante: uma formação múltipla em história, an­tropologia e arqueologia, tendo trabalhado com temas referentes às culturas indígena, européia e negra norte-americana. Destacou-se, nos últimos

· anos, como grande conhecedor das fazendas es-

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cravistas ou plantations do Sul dos Estados Uni­dos, conduzindo escavações em diversos sítios su­listas e escrevendo o livro A base material das f a­ze,n.das poste.riores à guerra civil: arqueologia his­torica no Piemonte da Carolina do Sul ( 1988). Propôs a mudança da atenção, no estudo das fa­zendas, da casa-grande para a senzala, estabelecen­do, ainda, que a inter-relação entre espaço e poder constitui uma chave fundamental para o estudo do passado.

. ~ ~ publicaçã~ de sua Introdução à arqueologia hzstorzca, no Brasil, obra que fez questão de editar primeiramente em português nesta tradução, mar­cará seguramente uma nova etapa na compreensão do nosso passado. No campo específico dos estudos sobre a cultura de raiz africana, já há muitos anos Clóvis Moura ressaltava a importância dos quilom­bos e, muito recentemente, Robert Slenes lembra­va que para "penetrar no mundo do escravo, ou­tros tipos de informação e métodos de análise são necessários". Neste sentido, os métodos propostos por Orser adequam-se precisamente a este resgate, através do mundo material das culturas subalter­nas, fornecendo um verdadeiro manancial de meios de interpretação da cultura material histórica re­cente.

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São Paula, abril de 1991. Pedro Paulo Abreu Funari

Introducão .~

. , ~ste manual introdutório trata da arqueologia histonca. Meu quadro de referência é a arqueologia histórica tal como praticada no Novo Mundo, prin­cipalmente nos Estados Unidos, p_ois aí tenho tra­balhado. Entretanto, como demonstro, os interes­ses da arqueologia histórica são muito mais am­plos que os Estados Unidos ou a América do Nor­te. Os exemplos que apresento, relativos à Amé­rica do Norte, podem, certamente, ser aplicados ao Brasil, considerando-se seu grande potencial para a arqueologia histórica.

Meu objetivo, neste pequeno livro, consiste em explicar o que é a arqueologia histórica, mos­trar como esses arqueólogos conduzem sua pesqui­sa, como estudam os artefatos que encontram e como usam as muitas fontes de informação dispo­níveis. Antes de começar, contudo, creio que o autor de um manual deste tipo deve explicar por que está qualificado para escrevê-lo.

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Iniciei-me na arqueologia histórica em 1971 como estudante de história, apenas quatro anos após a fundação da maior organização profissional de arqueologia histórica americana. Obtive meu doutorado em antropologia em 1980. Minha tese refere-se às transformações sociais e culturais ocor­ridas nos séculos XVIII e XIX entre os índios ari­kara, habitantes das planícies centrais dos Estados Unidos, como resultado do tráfico de peles com franceses, britânicos e americanos. Em seguida, voltei-me para o estudo das fazendas ou planta­tions americanas, escavando sítios na Carolina do Sul, Geórgia e Luisiana. No momento, leciono ar­queologia histórica na Universidade Estadual de Illinois e dirijo as atividades de seu Centro de Pesquisa Arqueológica do Meio-Oeste.

As razões para a redação deste livro são mui­tas, mas entre as principais encontra-se minha con­vicção de que todos os arqueólogos têm certas res­ponsabilidades, duas sendo as principais. Em pri­meiro lugar, os arqueólogos têm o dever de es­cavar os sítios de maneira cuidadosa e de tratar os artefatos que encontram de maneira a respeitar os objetos do passado. A arqueologia é um pro­cesso destrutivo já que, após a escavação de um sítio, esta parte do passado deixa de existir. Em geral, restam somente os artefatos, notas, registros e fotografias conservados pelo arqueólogo. Os ar­queólogos coletam informações, das quais os arte-

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fatos constituem apenas uma parte, e desde que o sítio deixou de existir, a informação proveniente do sítio será perdida irremediavelmente caso re-. , g1stros preciosos e cuidadosos não sejam conserva-dos. Em segundo lugar, os arqueólogos têm uma grande responsabilidade de comunicar suas desco­bertas tanto para outros arqueólogos como para o público em geral. Muitos arqueólogos têm cons­ciência de que as descobertas da arqueologia de­vem ser apresentadas como algo significativo para as pessoas comuns da nossa sociedade moderna. A arqueologia não deveria ser um campo de pesquisa importante apenas para outros arqueólogos. Creio, firmemente, que os arqueólogos devem aos não-ar­queólogos uma explicação do que fazem e qual sua significação para sua vida diária. A arqueolo­gia histórica possui ainda uma carga adicional na medida em que boa parte de sua pesquisa refere-se a questões ligadas ao colonialismo e ao imperia­lismo. Quando confrontados com estes importan­tes temas, os arqueólogos são obrigados, com fre­qüência, a fazer interpretaçoes que podem ser en­caradas como acarretadoras de implicações políti­cas, ao menos a partir da percepção atual do pas­sado.

Este livro não poderia ter sido escrito sem o encorajamento, apoio e ~ssistência de minha es­posa, Janice, e de Pedro Paulo Abreu Funari, pro­fessor universitário em São Paulo. Não apenas o

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Dr. Funari encorajou-me a escrever este livro como, compreendendo o nível elementar de i:ieu português, atenciosamente dispôs-se a traduzi-lo. Por estas razões, dedico-lhe este livro, como reco­nhecimento de sua devoção à arqueologia e ao ensino.

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O que é a arqueologia histórica?

Definindo o campo

Na medida em que existe um campo chamado "arqueologia histórica", poderia-se pensar que se­ria fácil encontrar uma definição aceitável por todos. Infelizmente, este não é o caso, pois há di­ferentes abordagens sobre o que ela seja. Para ex­plicar as divergências devo, antes, expor a natu­reza do problema.

Parte do problema ocorre porque a arqueolo­gia histórica, como uma subdivisão autônoma da arqueologia, tem apenas cerca de trinta anos de idade. Ainda que a arqueologia histórica tenha sido conduzida, nos Estados Unidos, por arqueó­logos profissionais, de uma maneira ou de outra, desde os anos da década de 1930, o campo de pes­quisa . foi organizado oficialmente apenas nos anos 1960. Em 1960, a Conferência sobre a Ar­queologia de Sítios Históricos teve início e, em

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1967 a Sociedade de Arqueologia Histórica, ago­ra a ~aior organização profissional de arqueologia histórica , foi fundada . Em 1967, a Sociedade de Arqueologia Pós-Medieval era organizada, parale­lamente, na Grã-Bretanha. Apesar de a arqueolo­gia histórica e a arqueologia pós-medieval estuda­rem exatamente o mesmo período histórico e as mesmas culturas, ainda que em contextos diver­sos, há uma importante diferença entre elas. Esta diferença ajuda a definir mais precisamente a ar­queologia histórica.

Na América do Norte, os arqueólogos tratam de dois períodos históricos: pré-história e história. O período pré-histórico, domínio de estudo de ay­queólogos pré-historiado,r~s, inicia-se c~m as mais antigas ocupações abongmes do contmente, em cerca de 10000 a .C. , e termina com a presença dos colonos europeus. O período histórico, época estu­dada pela arqueologia histórica, começa com ~s europeus e estende-se até o presente. Estes dois períodos históricos existem em qualquer parte do Novo Mundo com presença de europeus. No Novo Mundo, o período pré-histórico foi ha,bitado ~p:­nas por povos nativos, enquanto, e~ epoc~-h1sto­rica, outros povos começaram a habita~ reg1oes an­teriormente povoadas somente por nativos.

A situação histórica era muito diversa na In­glaterra e na Europa em geral~ local o~de se de­senvolve a arqueologia pós-medieval, pois os povos indígenas ali eram, com freqüência, da mesma as­cendência dos povos pré-históricos. Por exemplo,

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apesar de a Inglaterra ter sido invadida muitas ve­zes, os povos pré-históricos podem, ali, ser rela­cionados à população atual da Inglaterra sem gran­des problemas. A população inglesa atual possui uma longa ascendência nas Ilhas Britânicas. No Novo Mundo, os povos aborígines pré-históricos eram, claramente, os ancestrais das populações ín­dias modernas, mas os elos precisos entre estes povos pré-históricos e as populações indígenas mo­dernas são, muitas vezes, difíceis de .estabelecer com certeza. Além disso, muitos índios, no Novo Mundo, foram exterminados ou transformaram-se radicalmente, graças ao contato com os europeus, que estão no centro principal da atenção da ar­queologia histórica.

No Novo Mundo, a diferença entre os perío­dos pré-histórico e histórico parece fácil de enten­der, exceto pelo fato de que o início do período his­tórico nem sempre é facil de determinar. Ao menos duas razões explicam esta dificuldade. Em pri­meiro lugar, a presença mais antiga de europeus no Novo Mundo é, não poucas vez.es, difícil de documentar. Muitos viajantes, como os mais an­tigos exploradores do interior do Brasil, com fre­qüência deixaram apenas traços fraquíssimos de suas visitas. Seus sítios são de difícil localização e, quando achados, não raras vezes são difíceis de es­tudar, já que a duração de sua ocupação foi dema­siadamente breve. O segundo problema deriva das questões levantadas pela presença de artefatos eu­ropeus em sítios indígenas: receberam estes indí-

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1:1 J 1. genas aqueles itens exóticos dos europeus ou de ou­

tros índios, os quais, por sua vez, podem tê-los recebido de outros índios ou europeus? As datas de verdadeiros contatos diretos entre europeus e índios, em geral considerados corno delimitadores do início do período histórico, são difíceis e, mui­tas vezes, impossíveis de se estabelecer. Como re­sultado, o início do período histórico apenas pode ser estabelecido a nível regional e, com freqüência, de maneira um tanto imprecisa.

Na tentativa de resolver o problema de deci­dir quando, precisamente, começa o período his­tórico, os arqueólogos do Novo Mundo falam, em geral, de três períodos:, pré-históric?, p7oto:histó­rico e histórico. O penedo proto-h1stónco e con­siderado, geralmente, como o tempo durante o qual os exploradores europeus visitaram a~senta­rnentos indígenas. Este é o período colonial, no qual povoamentos indígenas estavam sendo conta­tados por povos colonizadores interessados em fa­zer seus próprios assentamentos no que lhes pare­cia serem terras novas e estranhas. ·

Em 1965, Bernard L. Fontana criou urna clas­sificacão de sítios históricos com vistas a ajudar a definlr o domínio da arqueologia histórica. Estes tipos de sÚios seriam: "prato-históricos", nos quais sítios indígenas, não contatados diretamente por europeus, contêm objetos europeus; "de contato '', habitados por índios durante a época de assenta­mento europeu; "pós-contato", ocupados por ín-

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dios depois, e não antes, do contato direto com os europeus; "de fronteira", nos quais ocorriam con­tatos recorrentes entre índios e europeus; e "não­aborígines ", que envolviam apenas marginalmente os índios, ou nos quais estavam completamente ausentes.

Infelizmente, apesar de a classificação ser in­teressante e ajudar a explicar o centro de atenção da arqueologia histórica, não resolve a questão de como distinguir entre os períodos pré-histórico e histórico. Seu ponto de partida é a cultura indí­gena, objeto de estudo dos arqueólogos pré-histo­riadores do Novo Mundo. Muitos arqueólogos pré­historiadores têm trabalhado com sítios indígenas que são basicamente pré-históricos, embora conte­nham uns poucos artefatos europeus. Estes sítios, ainda que "históricos". são estudados, em geral, usando-se métodos, idéias e quadros referenciais da arqueologia pré-histórica.

Outros arqueólogos preferiram definir a ar· queologia histórica como um tipo de arqueologia que estuda sítios que estão associados a povos e locais notáveis na história. Definida deste modo, a arqueologia histórica centra sua atenção nos co­lonizadores, deixando de lado os povos nativos contatados. Esta abordagem tem, em geral, signi· ficado que estes arqueólogos examinam sítios que estão associados aos membros da elite da socieda­de, já que seriam estes os notáveis na história den­tro da ideologia dominante de muitas sociedades.

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i i Estas duas definições da arqueologia histó­

rica centram-se na mesma questão, mas a partir de perspedivas diversas. No primeiro caso, a ar­queologia histórica é encarada em relação aos po­vos indígenas e, no segundo, em relação aos colo­nizadores. Ambas as perspectivas, ainda que, tal­vez, aparentemente distintas, referem-se ao mesmo problema: a criação de um mundo novo através da interação de povos como resultado de um sistema cultural, tecnológico e econômico que encorajava a exploração e a colonização de novas terras. Em­bora esta visão pareça eurocêntrica, na verdade não o é. De fato, esta abordagem não é eurocên­trica porque significa que a arqueologia histórica não pode basear-se, exclusivamente, nas persona­lidades e localidades famosas, podendo estudar pessoas que não pertenciam à elite, como escravos, operários e imigrantes exilados de suas pátrias. O que, em verdade, distingue a arqueologia histó­rica não é o período histórico estudado (histórico ou pré-histórico), os povos aborígines contatados pelos europeus (vários povos indígenas), os coloni­zadores europeus (portugueses, ingleses, france­ses e outros) ou nem mesmo grupos populares (es­cravos africanos, trabalhadores migrantes e assim por diante), mas, ao contrário, como cada elemento se adaptou e foi transformado pelo processo que, de início, levou o europeu a estabelecer assenta­mentos coloniais em todo o mundo e, posterior­mente, a formar novas nações.

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Tendo em vista esta consideração, a defini­ção de arqueologia histórica que está emergindo atualmente é a que define a arqueologia histórica como o estudo arqueológico dos aspectos materiais, em termos históricos, culturais e sociais concretos, dos efeitos do mercantilismo e do capitalismo que /oi trazido da Europa em fins do século XV e que continua em ação ainda hoje (figura 1). Obvia­mente, vista desta maneira, a arqueologia histó­rica abrange um campo com interesses amplos. Como arqueologia, contudo, a maior atenção da arqueologia histórica refere-se às manifestações materiais do mundo, em rápida transformação, posterior a cerca de 1500 d.C. Temas que a ar­queologia histórica pode estudar incluem os tipos de artefatos traficados pelos indígenas, as mudan­ças sociais acarretadas nas sociedades indígenas graças à introdução de objetos materiais europeus, os assentamentos e a cultura de africanos escravi­zados, a arquitetura e as plantas dos fortes euro­peus e das cidades coloniais, a relação entre arte­fatos e classes econômicas entre trabalhadores ur­banos, imigrantes, e assim por diante. Assim, em­bora a arqueologia histórica examine questões que possam interessar a uma série de diferentes tipos de pesquisadores - historiadores, economistas e geógrafos, por exemplo-, sua maior atenção vol­ta-se para os aspectos materiais do passado e o modo como estes são usados p_ara manter e criar a vida em todas as suas manifestações.

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FIGURA 1

GRANDES TEMAS DA ARQUEOLOGIA

DO NOVO MUNDO

Pré-histórica Histórica

Origens dos

povos nativos

· Sociedade, Sociedade,

história e história e

cultura nativas culturas nativas

·Interações pré Sociedade e

ou não cultura da

capitalistas colonização européia

Interações

mercantilistas

·e capitalistas

A arqueologia histórica é história ou antropologia?

O problema da definição do campo da ar­queologia histórica deriva de uma questão muito importante, que se refere à sua conceituação como parte da história ou da antropologia. A resposta a esta questão dominou grande parte da discussão teórica no interior da arqueologia histórica, pois a perspectiva do arqueólogo a respeito desta disci­plina pode determinar o sentido e a abrangência de seu campo de pesquisa.

Para alguns pesquisadores, a arqueologia his­tórica pertence, realmente, à história, estudando, em particular, documentos provenientes do solo, além dos documentos de arquivo. Nesta perspec­tiva, um fragmento de um prato possui a mesma utilidade, para a compreensão do passado, que um manuscrito antigo; ambos são "documentos" que fornecem informação sobre o passado. Os arqueó­logos que mantêm este ponto de vista tendem a conduzir sua pesquisa arqueológica como uma pes­quisa histórica e a encarar suas questões científi­cas como sendo aquelas que possuem importância histórica. Arqueólogos que mantêm esta perspec­tiva podem estar interessados em quando um sítio específico foi construído, de que maneira foi edi­ficado, para que era usado, quem o usava e por quanto tempo continuou em uso.

Este ponto de vista faz sentido - pois toda arqueologia é um estudo de história, de uma ma-

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neira ou de outra-, mas o problema é que, ao me­nos nos Estados Unidos, quase todos os arqueólo­gos voltados para o Novo Mundo são formados em antropologia. A maior parte da formação em ar­queologia ocorre em departamentos de antropolo­gia e não em departamentos de história (com a ex­cecão da arqueologia clássica, cuja formação en­co~tra-se, em geral, em departamentos de histó­ria). Quando considerada como parte da antropo­logia, a pesquisa arqueológica é encarada como um meio de compreensão dos processos e tradições que operam em sociedades e culturas. Os arqueó­logos são uma espécie de etnógrafos que, em vez de fornecer informações sobre culturas vivas, re­cuperam informações sobre culturas mortas, an­tigas ou do início do período moderno. A arqueolo­gia, portanto, fornece instrumentos para compreen­der certos problemas gerais enfrentados pelos se­res humanos - o desenvolvimento urbano, a di­visão social do trabalho, relações de parentesco, e assim por diante - independentemente de quan­do viveram. A arqueologia histórica simplesmen­te permite o estudo destas questões em um pas­sado recente. Os documentos históricos são, por­tanto, considerados como "artefatos", algo produ­zido pela ação humana consciente.

A questão de saber se a perspectiva histórica ou antropológica iria dominar a arqueologia histó­rica foi um grande tema de discussão nos anos 1960 e 1970, período de formação e desenvolvimento

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inicial desta disciplina. Apesar de essa questão não ter sido nunca verdadeiramente resolvida, a grande maioria dos arqueólogos diria, hoje, que seu cam­po de pesquisa compreende tanto a história como 1 antropologia, mais um grande número de cam­pos correlatos, incluindo a geografia histórica e cultural, a economia política e a cartografia. A ar­queologia histórica não é nem apenas história nem antropologia, ou nem mesmo uma junção da história e da antropologia, mas, simplesmente, a arqueologia histórica, um campo muito diverso de investigação que combina um grande número de abordagens. Questões "históricas" e "antropológi­cas" não podem ser, necessariamente, opostas, já que a maior parte das questões antropológicas pos-1ui uma base histórica, e muitas questões históri­cas envolvem problemas claramente antropológi­cos. Bons arqueólogos deveriam ser capazes de es­tudar ambos os tipos de questões referentes aos aeus sítios. Para que serve um conhecimento cultu­ral sobre os habitantes de um sítio sem dados sobre quando o sítio foi construído. e por quanto tempo foi utilizado? Da mesma maneira, para que serve o conhecimento sobre quando e como um sítio foi construído sem alguma idéia sobre a cultura e sociedade dos habitantes que ali nasceram, e que ali dormiam, trabalhavam e morreriam?

As questões científicas da arqueologia histó~ rica, assim como ocorre com a arqueologia pré-his­tórica e outros tipos de arqueologia, referem-se a

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temas históricos, culturais e sociais. O que diferen­cia a arqueologia histórica é seu foco de atenção no passado recente ou moderno, um passado que incorporou muitos processos, perspectivas e obje­tos materiais que ainda estão sendo usados em nossos dias. Estes elementos históricos do passado recente constituem o mundo moderno, e grande parte desta constituição, ainda que extremamente complexa em sua compreensão, é levada a cabo com objetos materiais.

Como Chandra Mukerji demonstra em seu li­vro A partir de imagens entalhadas: padrões do capitalismo moderno, os objetos materiais possuem muitas características que apenas podem ser en­tendidas em termos tanto de·história como de cul­tura. Objetos, pela sua própria presença física, es­tabelecem condicionamentos para o comportamen­to humano e induzem o homem a agir ou a mu­dar sua atitude, de acordo com itens materiais. Por exemplo, a impressão de mapas e de narrativas de viajantes, assim como o refinamento da tecnologia de construção de navios, tornou possível - em as­sociação com uma atmosfera econômica favorá­vel - que povos explorassem novas terras e espa­lhassem as idéias materialistas do início da era mo­derna da Europa através do mundo. Como observa Mukerji, "os objetos podem ajudar a retirar for­cas autônomas a partir de idéias ao permanecerem ~o ambiente físico muito tempo após sua produ­ção" . A arqueologia histórica fornece um meio

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ónico de examinar a difusão do materialismo de cunho europeu através do mundo, o impacto que li idéias sobre a acumulação de artefatos exerceu em diferentes povos e o modo como responderam a 01tes desafios. Obviamente, estes problemas não pertencem nem à antropologia nem à história, mas 10 estudo científico, em geral, da ligação entre o passado e o presente.

O caráter multidisciplinar da arqueologia his­tórica significa que ela possui um amplo leque de fontes de informação. Os materiais específicos que ião disponíveis podem variar, dependendo do sí­tio que está sendo estudado, mas alguns tipos de fontes geralmente são utilizáveis pelo arqueólogo. Estas fontes são objeto de estudo do próximo ca­pítulo.

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As diferentes fontes da arqueologia histórica

A arqueologia histórica usa uma série de fon­tes de informação em sua pesquisa. As principais 110 os artefatos e as estruturas, a arquitetura, os documentos escritos, as informações orais e as ima­aens pictóricas. Cada uma delas é usada pela ar­queologia histórica de maneira específica.

Artefatos e estruturas

Tanto a arqueologia pré-histórica como a his­tórica estudam artefatos. Os arqueólogos definem os artefatos como aqueles itens feitos ou modifica­dos como resultado da ação humana. Os artefatos incluem fragmentos de cerâmica, ferramentas, obras de arte, mesas, garrafas e todos os outros ob­jetos que apresentam alguma evidência de ativida­de humana em sua manufatura. Assim como na arqueologia pré-histórica,. estes artefatos são estu­dados em termos de seus métodos de manufatura,

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os materiais de que são feitos, onde foram feitos, para que serviam e como foram encontrados. Ar­tefatos que, normalmente, seriam encontrados e es­tudados por arqueólogos pré-historiadores incluem facas, brocas, lascadores e pontas de flecha de pe­dra, objetos de cerâmica e ferramentas feitas de ossos. A arqueologia histórica estudaria os objetos que são semelhantes, tanto em forma quanto em função, àqueles hoje em uso: vasos de cerâmica pintados em azul, verde, vermelho e amarelo, gar­rafas de vidro usadas como recipientes de vinho, remédios e outros líquidos, fragmentos de vidraças, partes de pistolas, botões, partes de relógios e assim por diante.

Artefatos são, evidentemente, de extrema im­portância para os arqueólogos, mas, como escre­veu o grande pensador social Lewis Mumford, "artefatos materiais podem, obstinadamente, desa­fiar o tempo, mas o que podem informar sobre a história do homem é muito menos do que a ver­dade, toda a verdade e não mais que a verdade". Conseqüentemente, além dos próprios artefatos, os arqueólogos, tanto os voltados para a pré-história como os voltados para a história, interessam-se pelo contexto de um artefato. O contexto refere-se à localizacão exata do artefato, em termos verticais e horizontais, em um sítio arqueológico. Os arqueó­logos podem, muitas vezes, aprender bastante sobre as funcões de artefatos e de sítios a partir do exame dos objetos encontrados em associação direta com

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tl11. Um artefato e seu contexto são dois tipos de Informação que os arqueólogos obtêm de sítios uqueológicos.

Tanto a arqueologia pré-histórica como a hl1tórica estudam, ainda, objetos que foram usados t modificados por povos antigos, mas que não fo­ram feitos, necessariamente, por eles. Estes obje­COI incluiriam fibras e sementes de plantas e ossos d1 animais. Os arqueólogos podem aprender mui­to sobre a dieta alimentar de povos antigos atra­v•a do estudo dos tipos de comida disponíveis em aeu ambiente natural e o modo como estas comidas eram usadas em diferentes culturas. Nas diversas •pocas, os arqueólogos, geralmente com o concurso ele especialistas altamente especializados, estudam as espécies utilizadas como comida, o montante de calorias ganho com essa alimentação e a propor­ção de produtos selvagens e cultivados que eram consumidos.

A arqueologia pré-histórica e a histórica preo­cupam-se, também, com as estruturas encontradas em sítios. Uma estrutura é qualquer evidência de presença humana que não pode ser removida do sítio, mas que fornece informações abundantes sobre as atividades desenvolvidas no sítio. Estru­turas pré-históricas incluem poços para armazena­gem ou para sujeira, buracos de fogueiras, trin­cheiras para paliçadas e bases de traves; estrutu­ras históricas incluem poços, trincheiras, lareiras,

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fossas sanitárias, bases de traves e compartimen­tos.

Além destas estruturas, geralmente pequenas, há algumas estruturas que são, com freqüência , tão grandes que podem ser consideradas corno par­te da paisagem cultural. Em arqueologia pré-his­tórica estas estruturas englobam colinas usadas co­rno templo ou como local de sepultamento, mono­litos (grandes peças de pedra) e trincheiras . Na ar­queologia histórica, estas grandes estruturas abran­gem, em geral, casas, fortes e outras edificações. Ainda que povos históricos tenham construído, certamente, e continuem a construir muitas e.stru­turas de barro - como fortes e paliçadas de barro -, a maior parte das estruturas de época histó­rica, ao menos quanto mais nos aproximamos do presente, foi construída de pedra, tijolos e ar­gamassa. Na medida em que foram utilizado~ mé­todos de construção bastante rígidos e que sua da­tação, em termos relativos, é muito recente, mui­tas destas estruturas ainda estão de pé. A presen­ça destas arquiteturas, ainda em bom estado, for­nece informações que, em geral, não são disponí­veis para os pré-historiadores. Esta arquitetura monumental - indo de postos militares espeta­culares, como o Forte Jesus, construção portugue­sa, do século XVI, na África Oriental, e o Forte Louisbourg, dos franceses , no século XVIII, na Nova Escócia, Canadá, até obras industriais, como as cidades mineradoras no Nordeste de Mi-

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uhJ11n, ou as fazendas comuns em Illinois 0 -•1 L · · u sen-

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Arquitetura

Edi~cios fornecem uma importante fonte de lnformaçao para a arqueologia histórica. Duas tradições, em geral, podem ser consideradas como "d11tentes: acadêmica e vernacular A t d' -•e dê · , · . ra 1çao a tn~c~ as vezes chamada "alta arquitetura", Ia trad1çao d~ construção que é ensinada e prati­Otda por a~q.u1.tetos profissionais. Esta arquitetura pode. ser d1v1d1da em diversos estilos distintos -ohtss1:0, grego, ro~anesco, gótico, rococó, e assim por ~i~nte_ -, cu1as características são de fácil ldenttf1caç?º· A arquitetura vernacular, por outro lado, consiste em estilos que refletem a tradiçã cultura~ mais do que formas arquitetônicas puras~ A arquitetura vernacular demonstra em geral as verdadei~as atitudes e crenças deu~ povo de ~a­neira mais clara do. que a arquitetura acadêmica. Entretanto, as arquiteturas acadêmica e vemacu­lar tendem a in.~eragi~, co~ o decorrer do tempo 1 com a consequente mfluencia recíproca.

? arqueólogo James Deetz apresenta um es­tudo mteressante da antiga arquitetura ·americana em seu livro Esquecidos em pequenas coisas. Atra­vés do uso de diversas fontes, Deetz demonstra. como os colonizadores ingleses, estabelecidos na

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_________ .. ____ _ Novu Inglaterra, transformaram sua arquitetura, com o passar do tempo. Durante os primeiros tem­pos da colonização, os colonizadores construíam casas em estilos arquitetônicos que conheciam na Inglaterra. Com o tempo e o isolamento de sua pátria, seus estilos de construção tornaram-se me­nos semelhantes aos da Inglaterra, mais "america­nizados" e mais distintos regionalmente. Não era mais possível ligar, com facilidade, estilos espe­cíficos a estilos acadêmicos da Grã-Bretanha, em­bora as casas tenham mantido alguns elementos das formas acadêmicas puras. Estas formas, con­tudo, foram executadas de modo a misturar,. com criatividade, estilos acadêmicos com formas ver­naculares.

Outra importante conclusão da pesquisa de Deetz refere-se ao fato de que, com o tempo, as ca­sas da América colonial inglesa começaram a refle­tir um interesse crescente na criação do espaço in­dividualizado. Enquanto as mais antigas casas ten­diam a conter espaços que poderiam ser usados por todos os membros da família, em casas mais recentes estes espaços comunitários foram dividi­dos em áreas que poderiam ser usadas por apenas um ou dois membros da família. Posteriormente, as atividades específicas - como comer, cozinhar e dormir - foram completamente separadas umas das outras.

Uma das razões que permitem que questões sociais possam ser abordadas a partir de estruturas

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arquitetônicas refere-se à descoberta, por parte dos arqueólogos, de que elas podem ser "lidas" da mesma forma que os estratos arqueológicos do 1clo. Todos os arqueólogos estudam os solos nos quais se encontram artefatos a fim de obter info~­mações sobre quando estes artefatos foram deposi­tados e que forças naturais - vento, chuva e en­chentes - atuaram após seu depósito original. O mesmo se refere às estruturas arquitetônicas.

Edifícios,· quando examinados com cuidado, produzem informações sobre quando foram .con~­truídos, quando foram feitas reformas e quais. co­modos eram mais importantes. Camadas de tmta · e de papel de parede podem ser "escavadas" como 1e fossem estratos do solo, a fim de se descobrir que cores e estampas estavam na moda ou eram aces­síveis aos habitantes em determinados momentos do passado. Janelas e portas que foram fechadas ou acrescentadas podem ser analisadas com vistas a descobrir quando foram construídas ou para docu­mentar o aumento do tamanho da famíli!l e, pos­sivelmente, da riqueza. Alterações no tamanho dos cômodos, com a passar do tempo, também podem ser usadas como uma medida de mudanças de atitudes sociais e culturais. Por exemplo, 11a passagem do séc~lo, a maioria das fazendas no centro dos Estados Unidos foi construída com cozinhas enormes. Esta construção era necessária

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porque a maioria dos fazendeiros, por esta époc~, tinha famílias grandes e, também, porque a cozi-

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nh11 01·u, llm geral, a principal área de atividade da fnmfllu. Além disso, as mulheres - que, comu­mente, tinham um grande papel na economia da fazenda, ao cuidar das verduras e do preparo da comida diária da família, proveniente da horta - usavam a cozinha como uma área de produção da fazenda . Hoje em dia, poucas casas de fazenda são construídas com cozinhas tão grandes, já que poucos agricultores possuem famí­lias numerosas e porque a agricultura é tão meca­nizada que as mulheres não têm mais o mesmo pa­pel na garantia do sucesso da fazenda. As fazendas nos Estados Unidos, hoje, são menos auto-suficien­tes do que antes, e as suas casas refletem esta trans­formação.

A parte as construções domésticas, edifica­ções não-domésticas para uso específico podem, também, ainda estar preservadas em sítios arqueo­lógicos históricos. Estes edifícios podem incluir celeiros, defumadores, galpões e outras constru- . ções externas. Alguns fortes militares, talvez re­construídos por um exército conquistador, podem, também, ainda estar em pé. O mesmo se aplica a missões religiosas que foram, originalmente, cons­truídas com o propósito de converter os povos na­tivos ao cristianismo, mas que, no presente, são usadas para funções religiosas regulares. Tais edi­fícios, freqüentemente vistos por não-arqueólogos simplesmente como prédios velhos, fornecem ao arqueólogo indícios do passado que, de outra ma-

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nelra, muitas vezes seria extremamente difícil visualizar.

Documentos escritos

Na arqueologia histórica os documentos es­critos são tão importantes quanto os artefatos e os edifícios. Sem dúvida, uma das mais marcantes características da arqueologia histórica consiste na informação adicional que deriva da presença de documentos escritos. De fato, Deetz ressaltou que 11 a capacidade de ler e escrever do p~vo ~u: ~la estuda é o que diferencia a arqueologia h1stonca da pré-histórica". Ainda que considere que Deetz está apenas parcialmente correto - porque, para mim, o que as separa é o estudo, po.r parte.da.ar­queologia histórica, da vida mercantil e ~apitahsta (que inclui a alfabetização) -, ele esta certo na medida em que a disponibilidade de documentos, escritos pelo e sobre q povo que outrora viveu no que hoje são sítios arqueol?gicos, faz da ar~ueo­logia histórica um tipo úmco de arqueologia · no contexto do Novo Mundo. Estes documentos per­mitem que os arqueólogos trabalhem, parcialmen­te, como historiadores, já que devem compr~en­der como achar e interpretar documentos escritos da mesma maneira que os historiadores. Como ar~ queólogos, contudo, devem, também, saber como integrar a informação proveniente dos documen­tos com suas descobertas arqueológicas.

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Historiadores e arqueólogos usam tanto fon­tes históricas primárias quanto secundárias. Estas últimas são aquelas que foram produzidas por pessoas que não testemunharam os acontecimen­t~s do. passado, incluindo os livros que os próprios historiadores escrevem. Este tipo de fonte é im­portante, tanto para historiadores quanto para ar­queólogos, porque pode revelar o progresso do conhecimento histórico em determinados perío­dos históricos, que questões históricas são im­portantes e que vieses tinham os historiadores de épocas passadas. As fontes secundárias estão constantemente sendo reescritas pelos historiado­res, na medida em que novos dados são descober­tos, novas interpretações são propostas e, até mes­mo, novas atitudes e sensibilidades sobre o que im­porta surgem constantemente.

Todos os trabalhos históricos secundários ba­seiam-se em fontes primárias, ou seja, escritos de valor histórico que foram produzidos por observa­dores diretos ou por pessoas que foram contempo­r.âneas dos acontecimentos relatados. São documen­tos primários que historiadores e arqueólogos usam com freqüência: registros oficiais (certidões de nascimento e de óbito, material de recenseamen­tos, estatísticas oficiais) e registros pessoais (car­tas, diários e memórias). Estes registros são impor­tantes para o arqueólogo porque fornecem infor­mações sobre o passado que podem não ser dispo­níveis em nenhuma outra fonte.

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Registros históricos fornecem o que os an­tropólogos denominam informação "ética" e "êmi­ca n . :E:tica refere-se ao ponto de vista exterior e

, 8mica, à visão do interior. Fontes secundárias serão quase sempre éticas, enquanto os registros primários podem ser tanto éticos quanto êmicos.

Os conceitos de ético e êmico são, t~lvez, de mais fácil compreensão quando explicados atra­vés de um exemplo. Suponhamos que existam dois documentos sobre uma fazenda brasileira do século XVIII, um deles escrito por um viajante alemão e o outro, por um escravo fugido. Pode-se supor que o quadro da comunidade de escravos seria apresentado de forma diversa em cada um destes documentos. O comentário do viajante apre­sentaria uma visão ética, pois ele estaria fora desta comunidade. Sua percepção dos escravos seria deli­mitada por sua própria experiência anterior, in­cluindo compreensões e incompreensões, mas não incluiria uma experiência direta e duradoura com a fazenda. Por outro lado, a percepção do escravo fugido desta mesma comunidade deveria ser com­pletamente diferente, sua narrativa representaria uma visão a partir do interior, ou êmica. Quando confrontadas, as duas narrativas podem parecer re­ferir-se a dois locais muito diferentes. Os arqueólo­gos, como os historiadores, devem aprender adis­tinguir as diferentes visões sobre o passado, as quais podem ser verdadeiras em alguns sentidos, mas cada uma delas de maneira ligeiramente di­versa.

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Documentos históricos constituem uma im­portante fonte de informação que os arqueólogos podem usar para conhecer o passado, em termos de assentamentos e seus habitantes, mas estes do­cumentos ta~béI"? permitem aos arqueólogos, ~orno aos historiadores, propor interpretações interessantes e potencialmente significativas. Por exemplo, alguns arqueólogos usaram registros de fazendas sobre a alimentação dos escravos em associação a coleções de ossos de animais prove­nientes de choupanas de escravos, para demons­trar que alguns escravos não recebiam a alimenta­ção que os fazendeiros indicavam em seus regis­tros. Ossos de animais comparados com registros históricos apresentam um relato que nenhuma das fontes de informação, de forma isolada, poderia fornecer.

Ainda que muito importante, o uso de docu­mentos históricos relativos a sítios arqueológicos de época histórica apresenta-se como uma espécie de paradoxo. Por um lado, a informação adicional que os documentos históricos podem fornecer au­menta, enormemente, o poder de interpretação da arqueologia histórica. O material histórico contribui, _de maneira incomensurável, para a compreensao dos dados arqueológicos. Por outro lado, entretanto, a disponibilidade de documentos históricos sobre sítios arqueológicos levou algu­mas pessoas a perguntar: por que escavar, se há document?~ históricos? Em outras palavras, por que perm1t1r que um arqueólogo escave um sítio

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. -· ,,, __ ,, ___________ _ 1e um historiador pode fornecer praticamente as mesmas informações? Portanto, o uso de docu­mentos históricos foi tanto uma tremenda vanta­gem para a arqueologia histórica, em termos de pesquisa, como uma desvantagem, já que a presen­ça destes documentos, freqüentemente, tornou difí­cil demonstrar o poder da arqueologia histórica para muitos leigos que acreditam ser a arqueologia muito cara e demorada.

Questões relativas à presença de documentos escritos em períodos históricos são válidas e de­vem ser respondidas. Os arqueólogos aprenderam, através de sua própria pesquisa e dos esforços de historiadores, que os documentos primários apre­sentam certos problemas que fazem com que seu uso em sítios arqueológicos seja muito complexo. Em primeiro lugar, os documentos primários po­dem ser imprecisos, contendo falsidades desconhe­cidas pelo autor do texto. B possível aparecerem declaracões, nos documentos, que podem não refle­tir a re~lidade de uma situação passada específica, mas, ao contrário, referir-se ao que o autor pen­sava que sabia ou lembrava a respeito. Um escri­tor da época pode, simplesmente, estar errado. Em segundo lugar, documentos primários podem con~ ter falsificações conscientes. O registro de declara­ções errôneas poderia ocorrer por qualquer motivo, incluindo inveja, autopromoção ou simplesmente falsidade. Em qualquer dos casos, a arqueologia histórica pode servir para corrigir o registro escri­to, um registro que, de outro modo, poderia ser

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similar, poucos autores históricos escreveram !lobrt: os tipos de pratos com os quais comiam ou sobre u cor das garrafas que usavam. Estes aspectos co­muns do passado são de importância vital p~ra .º arqueologia histórica, mas raramente encontrave1s nos registros escritos.

Os registros históricos, os artefatos, as estr,.:i­turas arqueológicas e os edifícios aind~ em.us? ~ao todos importantes para a arqueologia histo.nca, mas não constituem a totalidade das fontes dispo­níveis. Duas fontes adicionais de informação, em geral disponíveis apenas para sítios d.e ocupa~ã? mais recentes, são as informações orais e p1cton-cas.

Informação oral

A informacão oral, à semelhança dos docu­mentos escritos: fornece dados sobre sítios arqueo­lógicos de um período histórico que, m~itas vez:_s, não são disponíveis em outras fontes. A mformaçao oral torna-se muito útil, em geral, nos casos em que o arqueólogo está estudando um sítio que, f ?i ocupado em tempos ainda presentes na me~ona de testemunhas, ou nos casos em que o arqueologo deseja conhecer a história do sítio ap~s seu uso pelo povo que originalmente o ~onstrm.u e usou. Um arqueólogo poderia estar mais capacitado para interpretar a história de um sítio sabendo qu: .º terreno foi semeado nos anos 1940 ou que o sitio

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foi usado como um local de reunião popular nos anos 1950. Este tipo de informação pode não estar presente em fontes escritas, embora possa ser cen­tral ~ar~ ? compreensão, por parte do arqueólogo, da htstona completa de um sítio. Conseqüente­mente, as informações orais podem ser encaradas como a história que as pessoas comuns carregam consigo. Obviamente, as informações transmitidas oralmente podem ser de caráter ético ou êmico. Quando baseada na experiência direta, a informa­ção oral abrange um período máximo de cerca de oitenta anos antes de sua anotação.

A informação oral pode ser usada, em sítios arqueológicos, de duas maneiras: como comple­men.to e suplemento à informação arqueológica e escrita e como fornecedora de informação nova. Cada tipo de uso é extremamente importante para muitos projetos de pesquisa da arqueologia his­tórica.

Usada como suplemento a detalhes previa­mente conhecidos do passado, a informação oral ajuda a arqueologia histórica tanto em termos es­pecíficos como gerais. Em relação a artefatos, por exemplo, ela pode ser usada para mostrar como um artefato específico era feito e usado. Este uso da informação oral é particularmente importante para a documentação dos estilos da arquitetura vernacular - estilos que, em geral, não merecem comentários escritos em sua própria época - e para a indicação de como os objetos podem ter

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aido usados no passado. Em um sentido mais ge­ral, o conhecimento pessoal de sítios e artefatos pode fornecer um contexto para os objetos que podem ajudar o arqueólogo a obter uma verdadeira compreensão do passado de um povo.

Informações transmitidas oralmente são igualmente úteis ao refletirem um ponto de vista emico, já que permitem ao arqueólogo começar a entender como a vida era, na realidade, no passado e a partir da perspectiva de um agente social con­creto. Isto permite que o arqueólogo se aproxime da visão de mundo de um povo do passado e de sua percepção, na maior medida possível. Neste sentido, a informação oral pode ser usada para completar o quadro do passado que o arqueólogo cçmstruiu usando material escrito e arqueológico.

A informação oral que serve como documen­to primário constitui, talvez, sua fonte mais importante pois, quando usada juntamente com evidências escritas, fornece dados adicionais sobre o passado. Ela pode dar idéias a um arqueó­logo sobre uma nova linha de pesquisa que pode não estar óbvia na leitura dos documentos escri­tos. Além disso, a informação oral pode ser a úni~ ca fonte não-arqueológica de dados sobre alguns sítios. Uma falta absoluta de outra documentação pode ocorrer no que tange a sítios pequenos (como acampamentos), a sítios de ocupação muito curta (como fortes ou postos de observação), ou a sítios

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que possuíam funções que os ocupantes não cfese­javam tornar públicas (como quilombos) .

Quando a informação oral é usada como fon­te primária, os arqueólogos deparam-se com o pro­blema de verificar a exatidão da informação. Ob­viamente, ela não pode ser checada com documen­tos escritos, já que é a única documentação primá­ria. Pode, em alguns casos, ser confrontada com a informação arqueológica, mas o melhor guia que o arqueólogo pode ter é um conhecimento exaus­tivo dos escritos históricos secundários sobre o tema em discussão. Domínio destas obras, além de compreensão e bom senso, podem, normalmente, ajudar o arqueólogo a avaliar a qualidade da infor­mação transmitida oralmente .

De qualquer forma, o uso da informação oral na arqueologia histórica significa que os arqueó­logos devem aprender, com a história oral e a et­nografia, que as pessoas nem sempre se lembram do passado como ele foi. Além de serem nostálgi­cas sobre "os bons velhos tempos" de outrora, as pessoas, algumas vezes, não respeitam padrões cronológicos precisos e esquecem a seqüência exa­ta dos acontecimentos, juntando-os ou comprimin­do o tempo histórico e lembrando dois fatos como se fossem mais próximos no tempo do que na verdade foram. No primeiro caso, uma pessoa pode dizer "abandonamos a fazenda em 1935, logo antes de começar a Grande Depressão", em­bora a Grande Depressão tenha iniciado em 1929.

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No segundo caso, alguém pode dizer "a grande eeca veio e fomos obrigados a nos mudar", en­quanto, na realidade, podem ter se passado seis me­tes entre a seca e a mudança. O problema é que o arqueólogo não pode deixar de lado estes seis meses, uma vez que haverá evidências deles nos estratos de solo escavado.

Ainda que o uso da infomação oral seja par­ticularmente útil para o estudo do passado recente em sítios históricos, alguns arqueólogos pré-histo­riadores praticam, atualmente, algo chamado etno­arqueologia. A etno-arqueologia asse~el~a-~e. ao uso da informação oral na arqueologia histonca, mas com a diferença de que ela é definida, em ge­ral, como o trabalho de campo etnográfico com questões puramente arqueológicas em mente. Por exemplo, em vez de visitar um povo pré-indus­trial para saber qual sua estrutura de parentesco,

.,.,.·'_:···· regras de matrimônio ou religião - como fa­ria um etnógrafo - , o etno-arqueólogo pode visi-tá-lo para descobrir como faz cerâmica, cons­trói suas casas ou usa ferramentas de pedra para esfolar animais. Os etno-arqueólogos estão interessados em usar informação etnográfica (suas próprias observações antropológicas) em associa­ção com informações orais (observações de outros) para responder questões sobre problemas arqueo­lógicos básicos.

Uma importante diferença entre a etno-ar­queologia e a arqueologia histórica, no uso da in-

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formação oral, consiste no fato de que, quando os etno-arqueólogos coletam informações, · eles não estão, em geral, interessados no povo fornecedor da informação, mas apenas nos métodos de produ­ção e uso dos artefatos, na esperança de que estes dados esclareçam métodos antigos de produção e uso dos artefatos. Assim, a fim de descobrir como um determinado tipo de cerâmica encontrado em sítios arqueólogicos de 1100 d.C. era feito, o etno­arqueólogo· pode estudar os métodos de confecção de uma cerâmica semelhante atual, feita por des­cendentes dos ceramistas originais. Uma correla­ção simples poderia, assim, ser feita entre os dois tipos de cerâmica. O arqueólogo, por outro lado, pode estar interessado em como estes descendentes dos antigos ceramistas faziam seus vasos em 1920, pois ele pode estar escavando o próprio sítio em que a cerâmica era feita.

O uso de informação oral pertinente aos sí­tios exatos e aos tipos de artefatos escavados pelos arqueólogos demonstra que a arqueologia histórica é um tipo único de arqueologia. Outras fontes são também utilizáveis, sendo as pictóricas algumas das mais interessantes .

Informação pictórica

Em termos de arqueologia histórica, a infor­mação pictórica pode ser dividida em três tipos: mapas; desenhos; e pinturas e fotografias. Cada ca-

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tegoria de fontes possui um gra~de ~ot~~cial c.omu apoio na pesquisa da arqueologia h1stor1ca.

Os mapas são úteis para a arqueologia histó­rica na medida em que apresentam uma represen­tação gráfica da localização de edifícios e sítios, ou ao menos de sua suposta disposição. Mapas podem ser particularmente i~portantes para .ª~­queólogos que estudam o per10~0 de con~ato m1-cial entre nativos e europeus, pois podem ilustrar, entre outras coisas, a localização de muitas aldeias nativas a compreensão européia dos nomes dos grupos' autóctones, o traçado de trilhas e estr~d~s primitivas. Mapas pode~, tam.bém, fornecer vitais informações sobre o meio ambiente e sobre mudan­ças que podem ter ocorrido como resultado do contato e assentamento europeu.

Os arqueólogos sabem, contudo, gr~ça_s .aos geógrafos, que os mapas são docum.ent~s his~oncos primários que, simplesmente, são visuais e nao tex­tuais. Assim, os mapas contêm os mesmos proble­mas, de forma potencial, que qualquer outro docu­mento histórico. Um cartógrafo, ao fazer um mapa espeéífico, pode ter tentado apresentar uma pai­sagem não como era, mas como ele esperava que fosse. Neste sentido, o traçado de estradas por montanhas e florestas pode refletir apenas uma via planejada ou, até mesmo, imagina.da. lg~al­mente, a localização e o número de aldeias nativas podem ser usados como propagand~ p~r uma na­ção européia para induzir uma naçao rival a crer

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que possuía mais aliados nativos do que em reali­dade contava. Esta situação ocorreu, por exem­plo, quando a França e a Grã-Bretanha lutàram pelo controle colonial da América do Norte em meados do século XVIII.

Desenhos e pinturas são outra fonte de in­for~aç~o pi~tórica que podem ser úteis na arqueo­logia hist6nca. Apesar de os arqueólogos deve­rem sempre, estar conscientes de que os artistas po­dem tomar certas liberdades em seus trabalhos -por motivos estritamente criativos e artísticos -desenhos e pinturas podem, com freqüência' dar informações únicas. '

Um tipo de informação que pode ser retirado de desenhos e pinturas refere-se aos artefatos. Po­dem mostrar, por exemplo, quando e como cer­tos artefatos eram feitos. Informações sem para­lelo podem ser obtidas sobre artefatos encontrados pela primeira vez e que de outra maneira seriam desconhecidos. A arqueologia histórica tem usado pinturas dos séculos XVI, XVII e XVIII desta forma, para descobrir a função de artefatos, de outra maneira não identificados, mas encontrados em sí!ios coloniais. Estas representações pictóricas tambem apresentam artefatos inteiros e em uso. Mesmo escavando sítios recentes, encontram-se, em geral, artefatos em pedaços ou, ao menos, parcial­mente deteriorados. As imagens gráficas destes ob- · jetos ajudam os arqueólogos a entender como eles pareciam quando em uso real.

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Desenhos e pinturas têm sido impo1·tnnl~K. também, para demonstrar como certos sítios his­tóricos pareciam quando ainda estavam de pé. Por exemplo, as pinturas do artista suíço Karl Bod­mer, retratando o Oeste Americano nos anos 1830, mostraram-se valiosas para os arqueólogos. Suas pinturas do interior de uma cabana dos índios man­dan - mostrando cavalos e cães vivendo em seu interior - apresentam detalhes não disponíveis através da arqueologia e uma qualidade visual au­sente nos documentos. Além de serem bonitos exemplos de arte, a exatidão dos desenhos e pin­turas de Bodmer é inquestionável. Outras imagens, como a pintura de Frans Post, no século XVII, de um moinho d'água no Nordeste do Brasil ou a pintura de Hércules Florence de um engenho de cana em 1840, fornecem detalhes espetaculares sobre edificações industriais coloniais e sobre os trabalhos executados nesses lugares.

Desenhos e pinturas, além de documentar a data, o uso e a aparência física dos artefatos, dão, também, informações sobre a vida e a transforma­ção culturais. Por exemplo, as pinturas de George Catlin de um índiio americano que, em uma visão, usa roupas nativas e, em outra, veste um conjunto completo de roupas européias, transmitem uma forte mensagem visual a respeito do severo im­pacto social e psicológico que a interação cultural exerceu sobre povos nativos forçados, muitas ve­zes, a adaptar-se a modos de vida estranhos . Dese-

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nhos do século XVII, relativos a trabalhadores africanos e indígenas em fazendas brasi1eiras, pas­sam a mesma mensagem, como acontece com dese­nhos e pinturas semelhantes provenientes de diver­sas partes do globo.

Da mesma maneira que os mapas , entretanto, desenhos e pinturas podem conter informação en­ganosa. Criaturas fantásticas, desenhadas pelo cartógrafo franco-canadense Charles Bécar de Granville, no século XVII - como unicórnios e monstros marinhos com cabeças humanas -, ser­viam para amedontrar os aventureiros do Novo Mundo. Este tipo de quadro, contudo, também poderia ter o efeito oposto, atraindo exploradores ousados na busca destas criaturas. Os arqueólo­gos devem aprender a avaliar estas imagens pic­tóricas com cuidado.

Fotografias são úteis para os arqueólogos de maneira semelhante a outras informações pictóri­cas. Ao contrário de mapas, desenhos e pinturas, entretanto, simples fotografias não exigem nenhum talento gráfico ou artístico para serem produzidas. Fotografias podem ser batidas por qualquer um com uma câmera. Portanto, enquanto mapas, de­senhos e pinturas encontram-se, normalmente, apenas em museus, arquivos e outros depósitos pro­fissionais, as fotografias podem ser achadas nas casas de muitas pessoas.

As fotografias podem documentar sítios ar­queológicos sem que o fotógrafo pensasse íaf'.ê-lo.

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Um exemplo poderia ser uma foto de duuP1 pllli ·

;~ 1oas sentadas diante de um prédio, almoçando, cm 1~ -1932. Embora a intenção do fotógrafo possa ler

1ldo registrar o feliz reencontro de dois velhos amigos, um arqueólogo, olhando a foto , ~ode estar mais interessado na condição e construçao do pré­dio apresentado ao fundo.

As fotografias, como toda inform~~ão de fon­te não arqueológica, não podem ser utilizadas sem cuidado. Os fotógrafos podem montar seus qua· dres e alterá-los para mostrar imagens falsas. Este tipo de problema, felizmente, não é comum na arqueologia histórica.

Resumindo, a arqueologia histórica usa u_ma série de fontes de informação em sua pesquisa. Algumas destas fontes podem ser encara~as como pertencentes à história ( documen~os escntos, ma­pas, a história oral), à antropologia cultural (et?o-

; grafias, espécimes de museus e testemunhos orais) , J à história da arte (pinturas, desenhos e fotogra­! fias), à geografia histórica e cult~ral (ma~as, ~s­,_ sentamentos e paisagens), à arquitetura h1~tónca

(edifícios) , ao folclore (tradição oral e arqmtetura vernacular) e à arqueologia (artefatos, estruturas e contexto do sítio). Todas estas fontes são dispo­níveis pela especificidade da arqueo.logia histórica. Estas disciplinas podem ser consideradas como o conjunto das fontes da arqueologia (figura 2) ·

Os arqueólogos têm a sorte, algu?1~s _ve~es, de trabalhar em amplas equipes mult1dtsc1plma-

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res, compostas de estudiosos de todas ou mui­tas das disciplinas relevantes, embora trabalhem, com freqüência, sozinhos. Em qualquer caso, o arqueólogo deve ter, ao menos, algum conheci­mento de todas essas disciplinas, já que diferentes especialistas, trabalhando em um projeto especí­fico, terão de discutir problemas e questões comuns.

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FIGURA 2

F.ONTES DA ARQUEOLOGIA HISTÓRICA

artefatos, estruturas, contextos de sítio (arqueologia)

documentos, mapas, histó-· ria oral (história)

etnografia. tes­. temunhos orais (antropologia cultural)

ARQUEOLOGIA

HISTÓRICA

pinturas, de­senhos, fotos (história da arte)

uso (arquitetura histórica)

tradição oral, arquitetura verna­cular (folclore)

assentamentos, paisagens (geografia histórica e cultural)

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Diferentes visões sobre o q u~ a arqueologia nos informa; em particular, a arqueologia

histórica

}!. Anos de estudo levaram os arqueólogos a "" ~- concluir que os restos arqueológicos podem ser in-

terpretados de diferentes maneiras. Estes diversos modos de examinar e apreender o passado a partir da arqueologia mudaram, com o passar do tempo, na medida em que a arqueologia e, em especial, a arqueologia histórica, amadureceram. Cada abor­dagem possui seu próprio mérito e nenhuma pers­pectiva pode ser considerada absoluta e completa­mente certa ou errada. Decerto, cada perspectiva tem seus pontos fortes e cada arqueólogo pode es­colher esta ou aquela perspectiva. Neste capítulo exporei, brevemente, várias perspectivas usadas na arqueologia do Novo Mundo a partir de exem­plos da arqueologia histórica.

Arqueologia como história da cultura

Talvez a mais longa tradição na arqueologia do Novo Mundo tenha sido a análise dos restos

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materiais como fornecedores de .informação histó­rica, ou mais precisamente cronológica, sobre o passado. Este tipo de abordagem arqueológica foi chamado "integração histórico-cultural" por Gor­~on R. Willey e Philip Phillips. Este termo signi­fica que os arqueólogos deveriam ser capazes de colocar qualquer cultura arqueológica, a evidência coletiva de uma cultura do passado, tal como exis­te nos restos arqueológicos, em um quadro histó­rico e cultural que faça sentido e seja coerente com o conhecimento arqueológico da região cir­cundante. Para levar esta integração a cabo o arqueólogo deve possuir três tipos de informação. O primeiro refere-se às unidades básicas do estu­do arqueológico, ou o que Willey e Phillips deno­minam a "fase " (composta de tipos característicos de artefatos que ocorrem em uma área limitada por um período de tempo relativamente limitado) o "horizonte" (tipos característicos de artefato~ que aparecem em uma ampla região, mas não por longo período de tempo) e a "tradição" (tipos ca­racterísticos de artefatos que persistem por longo tempo, mas em área geográfica ljmitada). Em se­guida, o arqueólogo deve situar estas unidades ar­queológicas de análise em unidades geográficas: sítios, localidades (diversos sítios), regiões (duas ou mais localidades), subáreas (duas ou mais re­giões) e áreas (duas ou mais subáreas). Finalmen­te, o arqueólogo deve estar habilitado a formular

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.. Interpretações sobre a duração de umu i.:ullurn ~~ arqueológica. · f A ênfase da integração histórico-cultural cen-

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tra-se no estabelecimento de um quadro histórico e cultural para inteiras regiões e, até mesmo, con­tinentes, em relação a povos antigos que são co­nhecidos, principalmente, e talvez inteiramente, através da arqueologia. Willey e Phillips propuse­ram uma seqüência de desenvolvimento para todo o Novo Mundo, composta pelas seguintes catego­rias: lítico, arcaico, formativo, clássico e pós-clás­sico. As tradições arqueológicas no Brasil, chama-das também "séries", incluem as tradições Itaipu, Umbu e Humaitá.

Para construir tais quadros abrangentes, os arqueólogos devem produzir bons relatos de esca­vação de sítios, ou estudos detalhados de sítios ar­queológicos específicos. Estes relatos devem con­ter descrições exaustivas dos artefatos encontrados e das estruturas escavadas, de maneira a permitir a inserção do sítio em uma seqüência histórico­cultural.

E importante perceber que a informação usa­da para construir as fases , horizontes e tradições - as unidades básicas da análise histórico-cultu­ral - deriva, principalmente, das características físicas dos artefatos. As fases podem ser definidas com base na decoração que aparece na superfície da cerâmica, na maneira de entalhar pontas de fle­chas líticas ou numa combinação de traços físicos

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encontrados em diferentes artefatos . A questão é que os artefatos são teoricamente similares aos documentos históricos, no sentido de que fornecem informação sobre a história; são usados para escre­ver uma espécie de história cronológica, em geral sobre a época pré-histórica.

Na arqueologia histórica, o equivalente mais ·semelhante da integração histórico-cultural consis­te na visão que considera a arqueologia como uma ciência auxiliar da história, ou, como disse Ivor Noel Hume, "uma serva da história" . Um excelen­te exemplo desta abordagem, às vezes criticada como "particularista", no sentido de que se refere a apenas um sítio e não propõe nenhuma ampla questão de pesquisa nem oferece nenhuma conclu­são mais geral, consiste no estudo de Noel Hume sobre Martin's Hundred, um assentamento inglês do século XVII, na Virgínia. Neste completo e exaustivo estudo, Noel Hume não tem a pretensão de apresentar algo mais do que uma interpretação histórica relativa a apenas um sítio. Ele não tenta. colocar Martin's Hundred em um contexto histó­rico mais amplo, pois isto pode ser feito por histo­riadores do período colonial. Empreende uma sé­ria e bem-sucedida tentativa de descrever a histó­ria do sítio em termos dos artefatos coletados du­rante a escavação com o concurso de documentos históricos, pinturas, fotografias, coleções de mu­seus e dados da antropologia física (na análise de restos de esqueletos). O leitor desse livro obte-

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rá uma compreensão exaustiva da históriu deste assentamento colonial, até o ponto de ser capaz de "conhecer" um dos habitantes do local, graças à reconstrução facial de uma caveira. Pode-se dizer. sinceramente, que o estudo de Noel Hume deste assentamento inglês colonial - e, na verdade, de muitos estudos similares referentes à Virgínia co­lonial - contribui muito para a história de uma parte, muitas vezes de outra maneira mal com­preendida, do período histórico inicial.

Arqueologia antropológica

Até o fim dos anos 1960, a maior parte dos arqueólogos concluía suas análises, em geral, com a integração histórico-cultural ou, até mesmo, com a simples descrição do sítio, e procurava cons­truir, apenas, cronologias regionais. Alguns so­mente tentavam fornecer informação suficiente para que outros pudessem usá-la para construir uma cronologia. Com o surgimento da chamada New Archaeology, em fins dos anos 1960 e no início dos anos 1970, entretanto, tentou-se trans­formar · a arqueologia em algo mais antropológico. Para muitos, a arqueologia deveria ser antropoló­gica em termos de objetivos e perspectivas. O ob­jeto da pesquisa arqueológica, tal como direcio­nado por arqueólogos americanos no Novo Mundo. deveria centrar-se nas culturas dos povos do pas­sado, em vez de preocupar-se, simplesmente, com a localização de sítios específicos em cronologias.

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Enquanto os pesquisadores da integração históri­co-cultural estavam, em primeiro lugar, interes­sados, em sentido histórico, nas pessoas por detrás dos artefatos dos sítios arqueológicos, a New Ar­chaeology estava interessada, principalmente, em sentido antropológico, nos processos culturais do. sistema por detrás dos artefatos. Por este motivo, a New Archaeology é, freqüentemente, chamada ar­queologia processual.

Parte da arqueologia processual envolve o es­tudo dos artefatos como representantes do modo de vida de um povo do passado. Examinando os tipos de artefatos encontrados em sítios arqueoló­gicos, seu número, e assim por diante, os arqueó­logos podem visualizar a cultura de um povo an­tigo. Neste sentido, pode ser dito que os artefatos e outros. materiais arqueológicos podem ser usa­dos para fornecer tima reconstrução cultural. Estas reconstruções culturais podem ser pensadas quase como etnografias que, em vez de serem produzidas por antropólogos a partir de sua observação direta de culturas vivas, se baseiam em interpretações e observações arqueológicas de vestígios materiais.

Uma das bases teóricas da New Archaeology consiste no modelo de cultura "bolo em camadas", adaptado de Marx pelo antropólogo americano Les­lie A. White. Nesta perspectiva, a cultura consiste de três camadas que, de cima para baixo, incluem os aspectos ideológico, sociológico e tecnológico da cultura. A camada tecnológica, com as outras duas

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acima, ergue-se sobre o ambiente natural. A muiur parte dos arqueólogos considerava que os dados arqueológicos eram os mais aptos a fornecer infor­mações sobre tecnologias passadas, e que informa­ções sociológicas e sobre sistemas de crença seriam muito mais dificilmente perceptíveis, devido a suas características aparentemente imateriais. Em­bora os arqueólogos se preocupassem, principa1-mente, com os níveis ambiental e tecnológico, fo­ram feitas tentativas de obtenção de informação sociológica a partir de restos arqueológicos. Estas tentativas foram possíveis, já que a cultura era de­finida como a habilidade dos seres humanos em adaptar-se ao meio ambiente - um processo ativo - e não simplesmente como uma coleção de arte­fatos. Como tal, questões sobre como e por que se tornaram tão importantes quanto sobre, quando e onde. Esta abordagem mais antropológica dife­rencia-se, ainda mais, da perspectiva anterior, ao centrar-se na explicação em vez da simples des­crição, encarando a arqueologia mais como uma ciência do que como um tipo de história, e ao pro­curar descobrir leis gerais sobre o comportamento humano.

Esta nova abordagem mostrou-se extrema­mente importante para o amadurecimento da ar­queologia histórica. A arqueologia histórica, em grande parte por seu próprio nome e por seu óbvio foco em temas "históricos", era encarada, geral­mente, como parte da disciplina de história, du­rante o predomínio da arqueologia da integração

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histórico-cultural. A explicação deste fenômeno reside no fato de que não era necessário desenvol­ver seqüências históricas amplas para o passado mais recente, já que este período histórico recaía no domínio da história . Diferentes povos históricos não exigiam sua identificação pelos arqueólogos, pois as várias culturas do pós-1500 - portuguesa, espanhola, francesa , inglesa, africana, e assim por diante - podiam ser delimitadas através de regis­tros históricos, e sua extensão geográfica podia ser clarificada por esses documentos. A New Archaeo­logy, contudo, ao propor que a arqueologia podia estudar a adaptação material de todas as culturas e analisar os problemas comuns da vida humana, tor­nou a arqueologia histórica também antropológica. A arqueologia histórica poderia ser usada, da mes­ma forma que a arqueologia pré-histórica, para pes­quisar questões relativas à adaptação ao meio am­biente antigo, à organização social, e assim por diante. Diferentes artefatos, encarados no contexto de sua cultura, poderiam ser interpretados como re­flexos dos aspectos tecnológico, sociológico e até mesmo ideológico de suas culturas. Assim, a ar­queologia histórica não mais devia se preocupar apenas com questões relativas a seqüências his­tóricas, já que poderia concentrar-se em proble­mas antropológicos mais amplos.

Talvez o mais conhecido defensor deste tipo de arqueologia histórica - embora muitos arqueó­logos se filiem a esta perspectiva - seja Stanley

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South. Ele propôs que a arqueologia hislórit:n, , · como parte da arqueologia pré-histórica d~ Novo

I·_ Mundo, pode ser uma ciê~cia qu~nt~tatiya, tal _ como as ciências puras, física e qmm1ca, 1e deve

:J basear-se, quase exclusivamente, n~ ~ontagem d?s t artefatos, em porcentagens e em formulas estatts­·t ticas. Para South, a quantificação pode ser usa_da ~, pela .arqueologia histórica para. ~ormular padr~es

gerais dos artefatos a serem ut.1hzados , post7r1~r­mente para explicar a regularidade e a var1açao em te;mos de processos culturais específicos. Co~o conseqüência, South criou uma série, ~e padroes usando os artefatos encontrados em s1t1os que es­cavou. Estes padrões compõem-se de contagens e percentuais de artefatos classificados_ em c~t~go­rias baseadas em sua suposta funçao: ativida­des ligadas a cozinha, a ossos (implicando trat~r-se de restos de comida), a arquitetura, a móveis, a armas, a roupas, a bens móveis e a cachimbos de tabaco. Baseado nas percentagens destas catego­rias South criou o Padrão de Ar~efatos da Caro­lina' (a partir de restos de cinco sítios domésticos, do século XVIII, no Sudeste dos ~stados Unidos) e o Padrão de Artefatos da Fronteira (a partir de restos arqueológicos de feitorias comerciais e for­tes, também do século XVIII, no Leste dos Esta.dos Unidos). Estes padrões foram completados, ref1~a­dos e corrigidos por diversos arqueólogos e, h.01e. muitos padrões foram criados para diferentes t1pos de sítios.

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Estes padrões não pretendem refletir a histó­ria ou episódios históricos, e sim os processos cul­turais responsáveis pela criação destes padrões americanos do século XVIII. Segundo South, estes padrões representam "a dinâmica de sistemas cul­turais passados". Para ele, o arqueólogo que não usa esta abordagem "arrisca envolver-se de manei­ra particularista com meras coisas, tornando-se um colecionador de relíquias do passado em vez de tornar-se um manipulador de idéias sobre o pas­sado do homem e seu atributo exclusivo, a cultura, seus processos dinâmicos e o modo como funcio­nam".

Os arqueólogos continuam a usar os dois ti­pos de abordagem, e Noel Hume e South têm, ainda, muitos seguidores. Uma parte da pesquisa em arqueologia histórica volta-se para a solução de questões "históricas" básicas, sobre quando os sí­tios foram habitados e por quem. Este tipo de pes­quisa mostra-se particularmente importante na do­cumentação dos períodos mais antigos de sítios co­loniais ou de assentamentos completamente desco­nhecidos ou sem outra referência documental. Um grande número de arqueólogos trabalha, também, para responder questões mais antropológicas. A busca de respostas para questões de interesse hu­mano comum é importante para demonstrar ova­lor da arqueologia histórica como uma ciência da humanidade. Deve-se deixar claro, contudo, que estas abordagens não se opõem necessariamente,

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-já que um arqueólogo pode levar a cubu p~t1qul111111

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- ... : com objetivos, a um só tempo, cronológicos e 1111-

tropológicos,

~· Arqueologia social

Em fins dos anos 1970 e inícios dos anos 1980, alguns arqµeólogos abandonaram a preocu­pação geral com a cultura, típica da New Archaeo­logy, privilegiando questões mais limitadas refe­rentes à sociedade. Definindo sociedade, em sen· tido tradicional, como uma composição de grupos de pessoas que interagem e partilham uma cultura comum, estes arqueólogos preferiram, em geral, encarar os materiais arqueológicos não como re­flexo de processos culturais gerais, m~s com~ fon­te importante de informação sobre a mteraçao so­cial dos grupos. Um elemento central desta pers­pectiva consiste em que a sociedade é composta não simplesmente de indivíduos que interagem, mas de redes complexas de relações sociais que formam e conformam a sociedade como resultado de sua interação. A arqueologia social usa mate­riais arqueológicos na tentativa de escla~cer e entender a natureza destas complexas relaçoes so­ciais. Não perdendo de vista o fato de que estas. r~­lações sociais são históricas, os arque~logos socia~s encaram a natureza de qualquer con1unto especi­fico de relacões sociais como fortemente ligada a um local e'época específicos. Qualquer tentativa

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fie remoção das relações sociais de seu contexto histórico acarretará um entendimento frágil a seu respeito.

Um importante aspecto desta abordagem é o conceito de modo de produção. Embora este con­ceito tenha sido usado de diferentes maneiras, o antropólogo Eric R. Wolf fornece uma definição útil quando afirma que o modo de produção é "um conjunto de relações sociais, atuando historica­mente, através do qual o trabalho social é utili­zado para retirar energia da natureza por meio de ferramentas, habilidades, organizações e conheci­mentos"; As técnicas produtivas ajudam a definir as forças de produção, e a alocação de trabalho, do excedente produtivo e da riqueza ajuda a definir as relações· de produção. A produção, entretanto, não se refere apenas ·à manufatura de objetos fí­sicos (o elemento tecnológico da sociedade), mas também à · produção de poder (o elemento polí­tico) e de pensamento ·(o elemento ideológico). A produção., em qualquer esfera, incorpora ao me­nos dois grupos de pessoas, muitas vezes refe­ridbs cc;imo ·"classes": os produtores e os contro­ladores da produção.

Embora as sociedades reais sejam, obvia­mente., mais complexas e possam conter mais de dois grupos sociais, estes conceitos permitiram aos

·arqueólogos formular questões relativas à aloca-' . ção .·de recursos, ao desenvolvimento das classes sociais, à importância de outras categorias sociais,

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como raça e etnicidade, e a muitas outt'ns qucl'llÔCH que possuem relevância social. Nestes c~udoH, u foco não está na cultura como uma coleçao de 111 ..

tefatos e estruturas que contêm informação sobre cronologia ou sobre processos cu~t~rais ?eruis. mas ao contrário, nos aspectos sociais de mtera-, . - . . ção entre pessoas de diferentes pos1çoes sociais.

E evidente que alguns elementos das arqueo­logias da integração histórico-cult~ral e ~rocessual foram incorporados à arqueologia social. Parte da razão do uso de idéias de outras abordagens ar­queológicas se deve ao fato de que os arqueólogos sociais, em geral, formaram-se como arque?logos processuais e porque este~, ~or su.a vez, ~nha_m sido formados sob a influencia da mtegraça? ?,is­tórico-cultural. Outra razão para o ~so da~ ideias das abordagens mais antigas consiste, simples­mente, no valor intrínseco de muitas de suas con­tribuições.

Exemplos da arqueologia histórico-social po­dem ser encontrados em alguns dos meus estudos de fazendas do Sul dos Estados Unidos. Em diver­sas publicações, procurei demonstrar que as fa­zendas escravistas eram locais complexos que p~­dem ser encarados a partir de diferentes perspecti­vas. Diversos arqueólogos analisaram as fazendas em termos de documentação das culturas dos es­cravos africanos. Este trabalho de reconstrução cultural é importante, já que mostra que os es;ra­vos africanos não tinham suas culturas destrmdas

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pela experiência brutal da viagem da Africa para o Novo Mundo. Vários arqueólogos puderam do­cumentar, em termos materiais - como historia­dores, folcloristas e antropólogos fizeram com ou­tros aspectos da cultura -, que os escravos afri­canos não perdiam suas culturas, mas, simples­mente, adaptavam-se à realidade do cativeiro, em locais distantes de seus lares originais.

A arqueologia histórica da escravidão tornou­se mais sofisticada quando John Otto procurou de­monstrar que a escravidão rural representava a in­terconexão de, ao menos, três sistemas sociais: um sistema racial, de casta, que separava negros (es­cravos) e brancos (administradores e donos das fa. zendas); um sistema ocupacional, que separava do­nos, capatazes e escravos uns dos outros; e um sis­tema hierárquico, que separava os proprietários rurais de seus trabalhadores, capatazes e escravos. Embora a pesquisa de Otto seja muito sofisticada,

.·. procurei demonstrar que, ainda que as fazendas fossem locais complexos da maneira que Otto des­creveu, a mais importante características da fazen­da, do ponto de vista arqueológico, era sua função econômica. Depois que os escravos eram trazidos para as fazendas, o que os distinguia, em geral (e, na verdade, o que a arqueologia iria, inicialmente, tender a apresentar), era sua posição econômica no interior da sociedade do escravismo rural. Os es­cravos, ainda que certamente membros de dife­rentes culturas, formavam uma classe distinta de

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-----trabalhadores, como resultado de seu l'Uliv~ll'U ..:u· mum.

Os escravos de uma fazenda potlcrlum 101·

vindo de dez culturas diversas, e o que serviu pnrn ligá-los, em uma rede de relações sociais, eru su11 herança africana (em um sentido muito genérico) e sua posição social como escravos. Embora os his­toriadores estejam começando a mostrar que pode ter existido uma base social para a alocação de es­cravos com certas características exteriores a cer­ta:; tarefas na fazenda (por exemplo, tendo a pele mais escura, trabalhariam no campo, enquanto es­cravos mais claros serviriam na casa-grande), en­carar os escravos estritamente como membros de distintas culturas torna difícil explicar as diferen­ças entre escravos e mestres negros, em uma mes­ma fazenda. De qualquer maneira1 a pesquisa cen­tra-se na sociedade escravista rural, composta por grupos de indivíduos interagentes, de diversas cul­turas, mais do que, isoladamente, nas culturas de escravos e mestres.

Arqueol,ogia pós-processual

Alguns arqueólogos, hoje, ultrapassam todas as abordagens anteriores usando um esquema ge­ral chamado" arqueologia pós-processual" , um ter­mo cunhado pelo arqueólogo britânico Ian Hod­der. Esta abordagem, à semelhança da arqueologia social à qual está associada, desenvolveu-se, em

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grande parte, a partir da insatisfação com a arqueo­logia processual, e em parte devido à sua perspec­tiva histórica. De acordo com Hodder, "a arqueo­logia deveria restabelecer seus laços tradicionais com a história".

Hodder ressaltou que a arqueologia pós-pro­cessual possui, ao menos, três princípios que a se­param da arqueologia processual. A primeira ca­racterística é que os indivíduos são encarados como sendo negociadores ativos das regras sociais, em vez de serem vistos como pessoas controladas, passivamente, por sua cultura e seus processos. Nesta visão, as ações individuais trabalham cons­tantemente na criação e recriação da ordenação social. Como na arqueologia social, a sociedade não é vista como uma estrutura estática, mas como uma rede social dinâmica em constante transfor­mação. Uma segunda característica da arqueologia pós-processual envolve a tentativa de incluir os processos cognitivos, ou relativos ao pensamento, dos atores, na análise, em vez de simplesmente ignorá-los em favor de ações observáveis ou de ex­pressões materiais. Na arqueologia pós-processual, os arqueólogos tentam entender os sentidos da ex­periência pessoal de maneira a conformar-se às idéias dos atores sociais. Um terceiro elemento re­laciona-se aos dois anteriores, no sentido de que os arqueólogos pós-processuais pensam que as variá­veis e transformações sociais devem ser, e na ver­dade apenas podem ser, entendidas em termos his-

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tóricos. Toda interpretação do passado <leve lcvnr em conta a idéia de que todas as ações humttnllN

acontecem em um contexto cultural e histórico que é inteligível pelos próprios agentes sociais. Os ho­mens criam seu mundo através de suas ações dentro de limites culturais que existem em sua épo­ca histórica. Assim, os elementos· essenciais da ar­queologia pós-processual incorporam os conceitos de ação, sentido, contexto e história.

Segundo o arqueólogo americano Mark L. Leone, três tipos de arqueologia, que agora se tor­nam proeminentes, devem ser considerados como pós-processuais. Estas "arqueologias" são a sim­bólica, a estrutural e a crítica.

A arqueologia simbólica baseia-se na idéia de que os símbolos estão no centro da vida humana e que a cultura material, quando no seu correto con­texto sócio-cultural, assemelha-se à linguagem em sua habilidade de ordenação da vida humana. A arqueologia simbólica rejeita o modelo de cultura como um bolo em camadas e favorece uma visão na qual os agentes sociais usam, constantemente, símbolos para atuar em sua sociedade. A tecnolo­gia, ainda que seja importante, não tem importân­cia primordial. Neste contexto, o passado é enca­rado como uma criação social que existe, na maio­ria das sociedades, com variações praticamente in­findáveis. O papel da arqueologia simbólica con­siste em tentar entender como povos antigos usa­vam os símbolos, de maneira ativa, para criar e re-

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criar o mundo social. Estes símbolos podem con­sistir em marcas na cerâmica ou na direção de orientação de um conjunto de casas.

Embora a arqueologia estrutural fosse pratica­da antes da cunhagem do termo "arqueologia pós­processual", seus princípios assemelham-se mais à arqueologia pós-processual do que à arqueolo­gia processual. Como a arqueologia simbólica, ela enfatiza o sentido. A arqueologia estrutural inte­ressa-se, em geral, pela reconstrução das regras do pensamento que estavam por detrás das expressões da cultura popular, como lápides ou a arquitetura vernacular. Refere-se, à semelhança dos antropó­logos estruturais, a estas regras como sendo "gra­máticas", similares às reférentes à linguagem. O interesse da maior parte dos arqueólogos estrutu­rais reside na consistência das regras de pensamen­to e na determinação de seus elementos primários, representados no estilo das lápides ou no tamanho dos aposentos de uma casa.

A arqueologia crítica é, talvez, a mais con­trovertida devido à posição de seus defensores de que nenhum conhecimento, mesmo quando atingi­do através da arqueologia, é isento e totalmente ob­jetivo. Os arqueólogos críticos argumentam que, de acordo com Marx, a história tende a ser produ­zida no interesse de uma classe específica, em ge­ral a elite, e que a arqueologia contribui para per­petuar esta situação ao agir (segundo os processua­listas) como se suas descobertas representassem a

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·-"verdade". Em sentido contrário, os arqucólogu!i críticos utilizam-se, essencialmente, do conceito <.lc ideologia.

Embora este termo tenha sido usado de dife­rentes maneiras, os principais arqueólogos críticos usam "ideologia" para designar as maneiras como as desigualdades e contradições em qualquer sociedade apresentam-se escondidas em expres­sões aceitas culturalmente. Este encobrimento é le­vado a cabo, algumas vezes inconscientemente, a fim de evitar uma resistência social consistente por parte dos membros da sociedade exteriores à elite, em geral muito mais numerosos. Os arqueó­logos críticos, contudo, não rejeitam, forçosamen­te, o modelo de cultura como um bolo em camadas, mas crêem que a camada superior - a ideológica - merece um lugar mais importante na pesquisa arqueológica. De acordo com este ponto de vista, acreditam que o passado pode ser construído de diferentes modos, dependendo da perspectiva do pesquisador, seus vieses e categorias analíticas. Assim, os objetivos principais da arqueologia crí­tica consistem em apresentar os liames entre o pas­sado e o presente e em demonstrar que o conheci­mento arqueológico do passado é determinado pelo modo de pesquisa.

Um exemplo de arqueologia histórica pós­processual é o estudo de Leone do horto de William Paca, uma mansão do século XVIII, cm Anápolis, Maryland. Leone mostra como o pio-

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no de um grande horto, na parte de trás da casa, serve como um instrumento ideológico criado para parecer como controlador da natureza circuns­tante. Partindo da idéia de que o horto não era um adorno, um local destinado à produção de alimen­tos, ou simplesmente um modismo, Leone demons­tra que o horto consistia em um local no qual as elites, das quais William Paca fazia parte - foi um advogado de nome, governador e juiz-, po­deriam contemplar a ordem social e econômica dos Estados Unidos em pleno desenvolvimento.

O horto compunha-se de duas áreas, uma par­te altamente formalizada, com plano simétrico, mais próxima da mansão, e uma área deserta, sem plano, mais distante da casa. Para Leone, as duali­dades controlado/ descontrolado e ordem/ desor­dem, representadas no horto, podem ser relaciona­das às contradições de uma sociedade, e de ho­mens como Paca individualmente, que, por um lado, proclamavam a liberdade, a justiça e a inde­pendência, mas que, por outro lado, mantinham a escravidão.

Leone acredita, também, que o arquiteto do horto foi habilidoso ao usar elementos visuais para criar e manipular a percepção. Por exemplo, ao construir plataformas no horto e ao usar sebes de modo criativo, os visitantes, no fundo do hor­to e perto da região deserta, teriam a impressão de estar mais distantes . da casa do que, em realidade, estavam. Este uso da perspectiva era

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uma continuação, na paisagem, de técnicus Llsu ­

das por pintores do Renascimento para produzir ilusões. O horto aparece como um espaço manipu­lado que pode ser visto como uma representação visual da tentativa, de homens como Paca, de ma­nipular e controlar o meio ambiente social.

Ainda que muitos arqueólogos possam consi­derar o trabalho de Leone como pura imaginação com pouca ou talvez nenhuma relação com a ar­queologia, seu estudo representa a arqueologia his­tórica pós-processual de maneira excelente. Leone usa o horto de Paca como um "superartefato". como uma estrutura do passado que foi criada, conscientemente, por agentes humanos com um propósito determinado. O fato de não poder ser removido, como acontece com um artefato menor, não diminui o sentido que pode ser retirado dele. Em vez de encarar o horto simplesmente como uma decoracão da mansão, Leone considera-o contendo um sentido que não é imediatamente óbvio. Al­guns poderão questionar suas descobertas, mas sua abordagem aponta; claramente, para uma nova direção que alguns arqueólogos estão preferindo seguir.

Em resumo, a informação arqueológica pode ser interpretada a partir de diferentes perspectivas, cada uma delas enfatizando diversos aspectos do passado (figura 3) . Embora um número crescente de arqueólogos volte-se, hoje, para a arqueologia social e pós-processual, uma considerável parte du

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arqueologia histórica continua, ainda, a ser levada a cabo dentro de esquemas processuais e histórico­culturais, de maneira particularista, Esta diversi­dade significa que a arqueologia histórica, como disciplina, avança em muitos sentidos, todos sau­dáveis.

Tendo explicado estas perspectivas, posso, agora, voltar-me para questões mais metodológi­cas. O próximo capítulo refere-se aos problemas específicos com que a arqueologia histórica se con­fronta ao analisar solos e artefatos de sítios his­tóricos.

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FIGURA 3 --

Diferentes perspectivas sobre o uso da informação arqueológica

Abordagem Enfoques gerais de estudo

Arqueologia Cronologia de culturas histórico- História de sítio cultural

Arqueologia Processo cultural processual Reconstrução cultural

Leis gerais de comportamento humano

Arqueologia Interação social social Contexto histórico-

cultural

Arqueologia Sentido pós-processual Contexto histórico-

sócio-cultural Indivíduos na sociedade

Simbólica Uso de símbolos Estrutural Gramáticas e regras Crítica Ideologia

Liames entre passado e presente

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Especificidades da arqueologia histórica: solos e artefatos

No terceiro capítulo apresentei as estruturas como evidência da atividade humana em sítios ar­queológicos e os artefatos como os objetos mate­riais feitos e usados por um povo. Neste capítulo, aprofundo-me nestes temas e explico alguns dos aspectos específicos sobre como a arqueologia his­tórica retira conhecimentos dos solos e artefatos estudados.

Estratigrafia e tempo

Ao contrário de seus colegas que estudam a pré-história, os arqueólogos do período histórico não estudam, em geral , longos períodos de tempo. Como ressaltei no segundo capítulo, a arqueologia pré-histórica do Novo Mundo estuda o período de tempo das mais antigas ocupações nativas até u presença dos europeus; a arque9.logia históricu estuda a história apenas desde a expansão das

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nações européias pelo mundo. Esta diferença sig­nifica que a arqueologia pré-histórica estuda mi­lhares de anos da história humana, enquanto a arqueologia histórica estuda só cerca de quinhen­tos anos. Este curto período de tempo pesquisado pela arqueologia histórica levanta problemas es­pecíficos quando se trata de solos de escavação.

O primeiro problema é que não muitos sítios foram ocupados, .:.ontinuamente, pelos inteiros qui­nhentos anos. A maior parte dos sítios foi ha­bitada por apenas curtos períodos de tempo no quadro total da história humana. Sítios que ou­trora podem ter incluído uma arquitetura monu­mental e que são bem conhecidos pelas fontes es­critas, podem ter sido ocupados por períodos mui­to curtos. Um exemplo seria o forte francês da época colonial, Fort de Chartres, no centro dos Estados Unidos. Este forte serviu como uma im­portante feitoria do colonialismo francês, no sé­culo XVIII, no centro dos Estados Unidos, e, em­bora construído de pedra, o forte foi ocupado pe­las forças militares francesas apenas de meados dos anos 1750 até 1765, por menos de quinze anos. Muitos exemplOs similares, espalhados por todo o mundo, poderiam ser citados.

A conseqüência de tais ocupações curtas, para a arqueologia histórica, consiste em que, em quinze anos, haveria pouca probabilidade de acú­mulo de camadas no sítio. Neste sentido, a arqueo­logia histórica defronta-se, muitas vezes, com solos

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-----que exigem uma leitura de sua microe.~lrutiµ.rn/la . Estratigrafia é um termo que se refere à scqllCndn de estratos de solo, uns sobre os outros. Usumlo u princípio da superposição, os arqueólogos podem identificar, facilmente, quais artefatos foram usa­dos antes e depois. Se não houve remoção de terra no terreno, pode-se concluir, logicamente, que estes artefatos (e estratos do solo) que estão mais pró­ximos da superfície atual foram usados (ou depo­sitados) mais recentemente do que os artefatos e estratos mais profundos. Este método de datação relativa foi usado pelos primeiros arqueólogos para propor seqüências temporais aproximadas de culturas antigas antes que métodos de datação ab­soluta mais sofisticados fossem criados. Com efei­to, este método permitiu a elaboração das gran­des fases da pré-história européia, as idades da pedra, do bronze e do ferro.

O problema da arqueologia histórica é que os estratos, em sítios históricos, aparecem como microestratos, ou camadas de solo extremamente finas. Para ela, as zonas do solo de maior interes­se, os pisos de ocupação ou de habitação - os ní­veis superficiais sobre os quais outrora viveram as pessoas -, podem ter uma espessura de so­mente alguns centímetros. Embora possa ser ver­dade que os arqueólogos pré-historiadores encon­tram, com freqüência, estratos rarefeitos, a arqueo­logia histórica depara-se quase sempre com mi­croestratos nos sítios que estuda. A presenc;u de

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tais estratos finíssimos pode dificultar intensamen­te a formulação de interpretações na arqueologia histórica.

Outro problema que complica a escavação de sítios históricos é que as técnicas de construção de povos históricos podem, facilmente, destruir a evidência de ocupações anteriores. Isto significa que um forte holandês construído em 1640 podia ser destruído pela construção de um forte portu­guês, no mesmo local, em 1660. Todos os arque­ólogos, em qualquer período estudado, defrontam­se com o problema de ter seus sítios destruídos por projetos arquitetônicos posteriores, mas a di­ferença da arqueologia histórica consiste em que os ocupantes posteriores podem, também eles, ser objeto de estudo. Enquanto um pré-historia­dor pode deixar de lado as perturbações históricas de um sítio pré-histórico, o historiador deve estu­dá-las também, já que representam parte da trama histórica do sítio.

Como resultado das perturbações em sítios históricos, com freqüência estudam-se aterros. Ca­madas de terraplenagem são os depósitos de areia, pedra, cascalho e até mesmo artefatos que são, intencionalmente, usados em alguns projetos de construção. A presença de aterros ajuda os arqueó­logos a entender o processo de formação do sítio. Por exemplo, os restos de uma construção de tijo­los, feita em 1780 e posta abaixo em 1830, podiam estar no caminho de uma construção, em 1860. Os

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·-----construtores de um novo edifício poderiam ne­cessitar de um nível de superfície e, paru con­segui-lo, poderiam utilizar-se de areia e cuscu­lho como componentes para um aterro. A cons­trução seria edificada sobre este nível de terraple­nagem. A estratigrafia deste sítio consistiria de, ao menos, três camadas : um piso de ocupação, ao fundo , e restos de construção, datando de 1780 a 1830; um aterro intermediário, datado de 1830 a 1860; e um piso superior de ocupação posterior a 1860. O piso de ocupação mais antigo consisti~ ria, provavelmente, de uma fina microcamada, pois abrangeria apenas quinze anos. A zona de aterro seria tão volumosa quanto necessária para a construção posterior, mas poderia conter artefa­tos de qualquer data anterior a 1860,. dependendo da proveniência do material usado no aterro. Po­deria, teoricamente, conter até artefatos pré-his­tóricos, se os construtores decidissem usar um sí­tio pré-histórico como fonte de material para o aterro.

A interpretação de aterros, na arqueologia histórica, é importante porque numerosos sítios históricos aparecem no interior de cidades. Em uma cidade moderna típica, não é incomum se en­contrarem muitas ocupações sucessivas entremea­das por camadas de aterro. Parte das áreas urba­nas pode, também, ter sido construída sobre ater­ros, na medida em que a cidad.e se expande em áreas costeiras ou ribeirinhas.

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Artefatos e tempo

Os artefatos escavados pela arqueologia his­tórica são diferentes dos artefatos pré-históricos por uma série de razões. A distinção ocorre por­que a maior parte dos artefatos históricos foi feita por pessoas que não pretendiam usá-los. Os artefatos de época histórica foram feitos, geral­mente, para a venda. Em época pré-histórica, em­bora algumas culturas tenham comerciado exten­samente e por grandes áreas geográficas, a grande maioria das pessoas fazia artefatos para seu pró­prio uso. Retornarei a esta questão no capítulo se­guinte, mas no final deste exporei como as circuns­tâncias específicas de manufatura ajudam os ar­queólogos na interpretação das datas de artefatos de um período histórico.

Os arqueólogos que escavam restos de cultu­ras com domínio da escrita (caso da arqueologia histórica e da arqueologia clássica) encontram, ocasionalmente, artefatos que têm datas impres­sas. Os artefatos mais obviamente datados são as moedas. Além de moedas, contudo, encontram-se também outros objetos que possuem datas. Os artefatos mais provavelmente datados são as cerâ­micas finas e as garrafas de vidro.

Tanto cerâmicas como garrafas, particular­mente as dos séculos XVIII e XIX, apresentam, algumas vezes, datas escritas diretamente. No caso da cerâmica, estas datas são aquelas referentes ao

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momento em que um tipo espedfit:u de co1·nmlcu ou de padrão decorativo foi registrado junto nu governo do país de fabricação. Na metlldu cm quo mudanças tecnológicas ou novas decorações pupu· lares eram introduzidas no mercado, um fobl'itun­te obteria, provavelmente, o direito de exclusivi­dade em seu uso através do registro de uma pu­tente. Esta patente asseguraria que ninguém mais poderia, legalmente, usar o produto sem permis­são. Um exemplo de patente é a cerâmica lisa bran­ca registrada pelo ceramista inglês Charles Mason, em 1813, como "porcelana patente 6 res" (Pa­tent Irontone China). Esta cerâmica durável, muito popular, foi copiada por outros oleiros sob outros nomes, como "porcelana de pedra" (Stone China) e "nova porcelana" (New China) , presumivelmente com fórmulas pouco diversas, mas nenhuma delas podia ser chamada, legal­mente, "porcelana patente 6 res" . Em muitos ca­sos, uma data de registro aparece no fundo de um vaso cerâmico para indicar quando um estilo ou padrão foi registrado junto ao governo. Por exem­plo, marcas de registro foram usadas em cerâmi­cas britânicas de 1842 a 1883.

A mesma situação ocorre com garrafas de vi­dro. Elas apresentam, freqüentemente, uma data que indica não necessariamente quando a própria garrafa foi produzida, mas quando o conteúdo foi registrado. Datas podem indicar, também, quando um tipo de garrafa, um nome de produto ou uma

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marca registrada foram reconhecidos legalmente, já que, em muitos casos, os fabricantes não deseja­vam revelar as fórmulas de seus produtos aos ór­gãos registradores de patente. Tal informação, apa­recendo com freqüência em garrafas de remédiob sem receitas, algumas vezes também declara quan­do certo tipo de remédio foi feito pela primeira vez. Isto ajuda os arqueólogos a determinar uma data aproximada para a garrafa que continha o remédio datado.

Além de marcas nos próprios artefatos, os arqueólogos possuem outra maneira, ainda mais importante, de datar os artefatos que encontram: registros escritos. Os fabricantes de período histó­rico - . usualmente depois que suas indústrias pro­grediram além de seus estágios iniciais - mantêm, em geral, alguma informação sobre os tipos de ar­tefatos que fabricavam. Por exemplo, quando o oleiro inglês J osiah Wedgwood aperfeiçoou uma cerâmica que chamou "louça da rainha" ( Queens­ware), em 1762, manteve registros cuidadosos e desenhos ilustrativos dos vários nomes de padrões de lábios de pratos . Conseqüentemente, quando os arqueólogos encontram cerâmicas em sítios, po­dem referir-se a elas por seus próprios (ou êmicos) nomes, como, "cevada", "real", "da rainha." e "com borda em pena", em vez de ter de inventar nomes analíticos (ou éticos) para elas, como devem fazer os pré-historiadores com sua cerâmica. O uso destas classificações êmicas que tinham senti-

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do para seus produtores fornece uma imp~rtuntc ferramenta interpretativa para a arqucologiLl his­tórica.

Registros históricos também pode,m ser rnm­dos para identificar as marcas de fabricantes que aparecem no fundo de muitas cerâmi~as histó~icas ou mesmo em algumas garrafas. Muitos fabrican­tes de cerâmica e de garrafas usavam (e, na verda­de ainda usam) emblemas distintivos no fundo de se~s vasos para identificá-los como sua pr~d~~ã~. Estes símbolos - âncoras, águia~. letras 1mcia1s decorativas ou outros desenhos - podem ser iden­tificados, em geral, a partir de livros de re~erên­cia (trabalhos históricos secundários) comp1la~os a partir de documentos históricos das c.omp~nhias manufatureiras (materiais históricos primários) .

Além das marcas de fabricantes, algumas ce­râmicas decoradas podem ser identificadas pelos padrões que aparecem em sua superfície. i?-lgumas decorações foram populares por certos penedos de tempo - como as multicoloridas, serpen~ea?as, nebulosas que apareceram em algumas ceram1cas inglesas de 1750 a 1780 - e al,.?umas .e:_am alta­mente distintas - como o "padrao de v1sao Bryon com o desenho central Bologna", colocado em cer­tos pratos de jantar entre 1833 e 1847.

Os catálogos são outro tipo importante de registro histórico que os arqueólogos podem us~r para datar artefatos. No século XIX, um~ série de grandes empresas varejistas e de fabricantes

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publ.icou catálogos que ilustravam os artigos que fabricavam ou vendiam. Estes catálogos são im­portantes, pois fornecem datas de alguns artefatos e também indicam que tipos de itens eram popu­lares em determinados períodos do passado.

Outra maneira de datar artefatos consiste em entender as transformações tecnológicas que ocor­reram na história de sua manufatura. O vidro for­nece um bom exemplo. Vasos de vidro foram pro­d,u~idos primeiramente. cerca de 1500 a.C. pelos smos, que enrolavam fios de vidro em um molde. Cerca de 1.200 anos depois, começaram a fazer vasos de vidro por sopro bucal. A qualidade do vaso baseava-se, exclusivamente, na habilidade do soprador de vidro. Em fins do século XV, fabri­ca.n~es de vidro co!_lleçaram a usar moldes que per­mitiam a produçao de vasos de igual tamanho e forma. · Por volta de 1820, as primeiras fer­ramentas de lábios foram usadas. Estas fer­ramentas permitiam que os sopradores produzis­sem garrafas com lábios de forma definida. Em 1857, inventou-se a caixa em mola, que permitia que os fabricantes mantivessem a base de uma gar­rafa soprada em uma ferramenta que a segurava enquanto o láb.io era feito. Antes desta invenção, uma vara de vidro, chamada pontil, era ligada à base da garrafa. Este pontil era segurado por um t;abalhador en~uanto o lábio .era aplicado. O pon­til, que se fundia ao vidro na base, era arrancado quando a garrafa estava completa, deixando uma

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cicatriz no fundo da garrafa. A invc1u.:no du cnl1'11 em mola significou que as garrafas nilu lllH'CH~11t11 · riam mais a cicatriz do pontil , freqfü: 111c..•mL'lll~ grosseira e feia , sendo, agora, o fun<lo lii-;u. 11.111

1902, Michael J. Owens aperfeiçoou uma nuíqu j. .na de fazer garrafas automática, eleminan<lo u 111:­

cessidade dos sopradores de vidro. No ano seguin­te, a Companhia de Máquinas Fabricantes de Gar­rafas Owens já produzia .nove garrafas por minu­to, ou 12.960 por dia, em cada máquina.

A importância destas inovações tecnológicas - e há outras, relativas a tipos de garrafas, tipos de tampamento e de letras e outras gravações em relevo encontradas em garrafas - é que todas deixam marcas materiais que podem ser identifi­cadas. Por exemplo, garrafas sopradas podem con­ter bolhas no vidro ou finas estrias que demons­tram o movimento do vidro durante o processo de sopro; o uso de moldes deixa cicatrizes nas gar­rafas, que indicam o tipo de molde usado.

Toda informação sobre artefatos de período histórico - datas diretas, emblemas datáveis, re­gistros históricos .do fabricante, catálogos, livros de analistas de artefatos e modificações tecnológi­cas - significa que a arqueologia histórica pode usar artefatos para datar sítios e estruturas de ma­neira única. Retornando ao exemplo usado ante­riormente, ainda neste capítulo, suponhamos que o estrato de aterro, localizado entre uma ocupu­ção de 1780-1830 e outra posterior a t 860, conti-

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vesse artefatos. Suponhamos, ainda, que uma moe­da, datada de 1829, tenha sido encontrada no ater­ro. Esta moeda significaria o terminus post quem, ou a data após a qual o aterro teria sido feito. Se­ria impossível que o aterro fosse anterior a 1829 (supondo que não tenha havido uma grande per­turbação no solo), já que moedas datadas de 1829 não eram feitas antes desta data. Suponhamos, ainda mais, que um tipo cerâmico datável entre 1865 e 1875 foi encontrado no estrato acima do aterro. Este padrão significaria o terminus ante quem, ou a data antes da qual o aterro foi feito. Sem outras informações, um arqueólogo poderia saber que a zona de aterro seria datável após 1829 (data da moeda) até, ao menos, 1865 (a data mais antiga do padrão cerâmico encontrado).

Além do uso de artefatos, desta maneira, para datar a ocupação de um sítio, os arqueólogos pro­puseram uma série de métodos de datação por fór­mula. Estes métodos envolvem o uso de informa­ções históricas descritivas em fórmulas que forne­cem datas. Substituem os métodos de datação mais sofisticados usados pelos pré-historiadores - por exemplo, datações por carbono 14 e potássio-argô­nio - que não funcionam na maior parte da ar­queologia histórica, já que o período de tempo es­tudado é muito recente. Em geral, estes métodos científicos de datação possuem uma variação para mais ou para menos, de modo que uma data de 1800 d.C., mais ou menos duzentos anos, sena,

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em condições normais , sem sen I ido p11 l'll 11 tlflllll'll

logia histórica. Os mais famosos método11 clr dnltt· ção baseados em fórmulas usados na urqlll'PlllHln histórica foram criados para as cerârnicus llsnN 111-glesas e para os cachimbos de argila brunc11.

A fórmula usada para datar os cachimbos h11 seia-se na idéia de que, com o passar do tempo, Ju .. rante os séculos XVII e XVIII, o tamanho do bu­raco na ponta, chamado diâmetro do furo, torna­se menor. Por exemplo, entre 1620 e 1650, a maior parte media cerca de 32mm de diâmetro, mas entre 1750 e 1800 media apenas 16mm, em sua maioria. Uma fórmula foi feita a partir destes dados e, se certas condições forem cumpri­das, uma data aproximada pode ser obtida, para uma coleção de cachimbos, a partir do diâmetro dos furos. Estas condições são as seguintes: 1) os cachimbos devem ter sido feitos antes de 1780; 2) a amostra deve ter sido coletada sem critérios ou, em outras palavras, de maneira absolutamen­te aleatória; 3) a amostra deve representar, pro­porcionalmente, todos os cachimbos realmente existentes no sítio, implicando uma amostragem relativamente ampla; e 4) os cachimbos devem ter sido depositados no sítio por um longo perío­do de tempo, ou seja, não devem ter sido depo­sitados em poucos e breves episódios. A fórmula não pode ser usada para amostras pequenas de sí­tios recentes, mas é útil para muitos sítios colo­niais.

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Provavelmente, o método de datação por fór­mula mais importante e mais amplamente usado, entretanto, seja o de Stanley South para a cerâ­mica inglesa. Usando datas conhecidas de manufa­tura cerâmica, tal como estabelecidas por Ivor Noel Hume a partir de documentos e outros es­critos, South pôde propor uma fórmula para da­tação de uma coleção cerâmica inteira. Embora tenha sido inventada para ser usada com a cerâ­mica lisa britânica do século XVIII, a fórmula foi adaptada, com sucesso, para coleções cerâmicas do século XIX de todo tipo, desde a cerâmica colo­nial espanhola até a dos índios americanos. A fór­mula não possui restrições específicas, já que se baseia, simplesmente, em uma equação matemá­tica derivada de médias de datas de manufaturas conhecidas.

A explicação acima apresenta uma brevís­sima introdução a como a arqueologia histórica analisa e estuda estratos e artefatos históricos. Mui­tos detalhes adicionais poderiam ser fornecidos. Por exemplo, tem-se escrito extensamente sobre vários tipos de artefatos, alguns mencionados (ce­râmica e vidro), outros não (botões, bens trafica­dos em época colonial, tijolos, e assim por diante). Estes estudos fornecem poderosas ferramentas ana­líticas e interpretativas dos sítios de época histó­rica. Contudo, em vez de me aprofundar nos aspec­tos técnicos da análise dos artefatos, volto-me para a questão, socialmente mais significativa, do es­tudo do artefato em arqueologia histórica.

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----A vida social dos artefatos

Embora os arqueólogos usem uma !iérlti d~ fontes materiais em sua pesquisa, não há dúvic.lu li~ que os artefatos têm grande importância. Quundo se pensa em arqueólogos, a maioria das pcssom1 pensa, em geral, que são aqueles que trabalham com artefatos do passado. Como procurei mostrar, os artefatos do período histórico têm semelhanças e diferenças em relação aos do período pré-histó­rico. Assemelham-se na medida em que são o resul­tado da ação humana consciente e em que podem ser usados pelos arqueólogos para o conhecimento do passado. São diversos, contudo, por um motivo muito importante. Esta diferença está no centro da minha definição da arqueologia histórica como uma arqueologia que estuda a expansão do capi­talismo e do mercantilismo europeu pelo mundo não-europeu.

Todas as sociedades fazem objetos físicos para ajudá-las a sobreviver e a compreender o mun­do em que vivem. Como escreveram a antropóloga Mary Douglas e o economista Baron Isherwood, "o homem busca bens para comunicar-se com os outros e para compreender o que se passa a seu redor". O homem torna-se homem ao criar obje­tos e dar-lhes sentido.

Com o decorrer da história, contudo, os ho­mens perceberam que queriam ou precisavam de coisas que eles não podiam produzir por si mcs-

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mos, por falta de conhecimento, habilidade ou ma­téria-prima. Para obter objetos que de outra forma não seriam disponíveis, perceberam que deveriam entrar em contato com outros povos que possuíam os itens desejados e obtê-los, com seu ativo con­sentimento, através do comércio, ou à força, atra­vés de conquista e roubo. A obtenção de objetos pelo comércio implica a ação consciente de, ao menos, dois grupos de pessoas - produtores (ou coletores, no oaso de itens provenientes do meio ambiente) e consumidores. As vezes, há três gru­pos em ação: produtores, comerciantes e consumi­dores. Quer as pessoas façam seus próptios obje­tos, quer os comerciem, a aquisição destes bens en­volve uma interação social. As pessoas envolvidas na troca podem ser membros da mesma cultura, de culturas diversas ou até de uma mesma famí­lia ou grupo de parentesco.

Os tipos de objetos que podem, em potencial, ser trocados são. vastos. Todos os objetos cria­dos especificamente para o comércio, . não impor­tante o que seja, são chamados mercadorias. Mas as mercadorias são mais do que meros objetos ma­teriais com certas características físicas exteriores. Todos os artefatos têm "vidas sociais", já que são possuidores de importantes sentidos sociais e são usados de diferentes modos, para significar coisas diversas, no decorrer de sua existência. As mercadorias possuem, ao menos, três tipos dife­rentes de valor: valor de uso, o potencial de um

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objeto de ter uma função clara; valor ele troca, 11

quantia que um objeto pode esperar valer cm umn t~oca; e o valor de estimação ou estético, a c.:upu· cidade que um objeto tem de evocar o prazer ou um sentido específico.

A importância destes tipos diversos de valor, que parecem abstratos, reside em sua ligação com relações históricas, sociais e culturais específicas. Um determinado objeto pode ter valor de uso troca ou estimação dependendo de como, quand~ e por que é usado. Por exemplo, um relógio de bolso pode não ter valor de uso para uma cultura que não tem o conceito de tempo dividido em ho­ras, mas pode ter valor de troca, se for considerado valioso para o comércio, ou valor de estimacão na medida em que pertenceu a alguém importa~te 'ou simplesmente, porque é considerado bonito. '

A maior parte dos artefatos encontrados em sítios históricos eram mercadorias, feitas em am­biente industrial e vendidas e usadas por pessoas que não as produziam. Os compradores ou recepto­re.s destes objetos podem viver em culturas comple­tamente diferentes, a milhares de quilômetros dos produtores. Produtores e consumidores, provavel­mente, nunca se encontrariam. Isto separa, radical­mente, os períodos histórico e pré-histórico. Em­bora alguém possa encontrar uns poucos casos nos quais povos pré-históricos do Novo Mundo pareçam fazer e vender mercadorias , de modo al­gum pode ser dito que estas atividades f ormnvnm

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uma parte significativa da vida pré-histórica. Ape­nas no período histórico, após cerca de 1500, podem-se comprar objetos manufaturados em vá­rios locais do mundo. Só então puderam, homens e mulheres comuns, tornar-se parte de uma rede glo­bal de comércio e troca que ligava Europa, Ásia, África e o Novo Mundo.

Entretanto, como demonstra Mukeji, o mate­rialismo que existiu após os anos 1500 não era completamente novo, mas uma simples continua­ção dos padrões medievais. Ela demonstra que os portugueses, por exemplo, continuaram a pensar como na época medieval e usaram as inovações que possibilitaram a expansão global - novos tipos de barcos, velas e mapas - para engajar-se em uma guerra santa com o império islâmico. Eles tratavam os mapas dos exploradores e as memó­rias de viagem como algo a ser escondido, cuida­dosamente guardado, inacessível ao uso público. Logo que estas inovações. foram usadas para tra­zer benefícios econômicos para Portugal, come­çou-se a usar as mercadorias de modos que não mais possuíam sentidos ·medievais. Estes objetos tornaram-se, então, "parte da cultura materialista do início da época· moderna", uma cultura que era, claramente, "internacionalista".

Deve-se deixar claro que estas mercadorias possuíam mais do que simples importância econô­mica. O desenvolvimento da chamada "sociedade de consumo", na Europa, foi levado para todo o

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mundo, com graus variados de sucesso, e cxh1tc ainda hoje em muitos locais, sempre com umu di­mensão social. Coisas materiais, assim como o de­sejo social de sua aquisição, agem como uma forçu social. Os objetos podem ser comprados, usados. ou até mostrados como símbolos materiais para in­dicar quem uma pessoa, ou um grupo social, é ou pretende ser. Além disso, a disponibilidade de mercadorias pode causar a mudança social, ou ao menos contribuir para ela. Como o historiador Neil McKendrick nota em seu livro O nascimento da sociedade de consumo, a revolução consumi­dora que ocorreu no século XVIII transformou o caráter da sociedade porque bens que eram aces­síveis apenas aos muito ricos puderam ser possuí­do por pessoas comuns, poucas gerações depois. Pessoas que sempre pensaram que apenas pode­riam adquirir o que herdassem de seus pais, re­pentinamente puderam comprar suas próprias coisas. As pessoas começaram a encarar os obje­tos não mais em termos de suas necessidades vi­tais, mas a partir de desejos relacionados à moda. Muitos objetos materiais tornaram-se, nas pala­vras de Adrian Forty, "objetos de desejo".

O desenvolvimento e a expansão da sociedade de consumo são um importante foco de estudo da arqueologia histórica. Escavando uma aldeia in­dígena do século XVI que contém objetos euro­peus comerciados, ou uma mina de ferro de fins do século passado, o arqueólogo tem de consldc·

1 Ot

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rar o papel das mercadorias na estrutura simbó- · lica, social e econômica do povo que vivia no sítio. Alguns arqueólogos preferiram estudar as merca­dorias em termos de redes de mercado através do mapeamento dos pontos de origem ou manufatura de certos artefatos, como vasos de cerâmica, gar­rafas de vidro, do cálculo da distância que tais ar­tefatos teriam de viajar para chegar ao sítio onde foram encontrados. Outros analisaram o papel dos objetos materiais na transformação de culturas in­dígenas. Outros, ainda, começam a examinar as mercadorias em termos de sua habilidade para sim­bolizar a posição social e as relações de poder em sociedades passadas. Em qualquer caso, o papel das mercadorias em período histórico e o modo que os arqueólogos escolherão para estudá-las estão, ainda, em elaboração. Com efeito, esta pes­quisa sobre a importância das mercadorias em época histórica, sua rápida aceitação ou rejeição e seu efeito na sociedade são os temas que fazem da arqueologia histórica um campo excitante, e que a transformam numa área de ponta da pes­quisa em ciências sociais.

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\ 1

Um exemplo de arqueologia histórica: as fazendas

do Novo Mundo

Nos capítulos anteriores, expliquei o que é a arqueologia histórica, que tipos de fontes usa e os vários referenciais que pode usar para interpretar a informação que recolhe. Neste capítulo, exploro mais profundamente a questão do que é a arqueo­logia histórica e que conhecimento pode oferecer aos estudos históricos, sociais e culturais das fa­zendas do Novo Mundo, em especial do Sul dos Estados Unidos e do Caribe.

Concentro-me nas fazendas· por quatro ra­zões. Em primeiro lugar, muitas pesquisas arqueo­lógicas foram feitas em fazendas e, embora muito reste por fazer, avanços interpretativos importan­tes foram conseguidos. Em segundo lugar, traba­lho, pessoalmente, em arqueologia de fazendas, tendo escrito diversos artigos a respeito. Graças u estes estudos, tenho um bom conhecimento dos progressos que têm sido feitos neste campo. Em terceiro lugar, na medida em que as fazcnduH c1·um

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lugares multiculturais complexos e diversificados, oferecem muitas possibilidades de pesquisa e gran­des oportunidades para aprender como funcionava a interação de povos de diferentes culturas, um as­pecto significativo da história do Novo Mundo. Finalmente, considerando a importância das fazen­das durante séculos de história do Brasil, a arqueo­logia das fazendas poderia adquirir, no Brasil, um importante papel como contribuição para a com­preensão arqueológica desta instituição histórica no Novo Mundo e, desta forma, contribuir imen­samente para o conhecimento da arqueologia his­tórica.

Os arqueólogos pesquisaram uma série de sí­tios de fazendas escravistas do Novo Mundo, da­tada desde o início do período colonial até perío­dos mais recentes, e examinaram muitas questões científicas. Entre os muitos aspectos estudados, ressaltam as análises dos tipos de artefatos, o tamanho e natureza das casas e as transformações que ocorreram nas fazendas, com o passar do tem­po. Todos estes estudos envolvem questões histó­ricas, sociais e culturais amplas e, embora as des­cobertas tenham sido variadas e complexas, uma breve explanação pode ser apresentada.

Artefatos de fazendas

Em geral, os tipos de artefatos encontrados em sítios de fazendas não diferem muito dos

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\ ~ncontrados em outros sítios arqueológit.:011 u11 µiesma época. Coleções de artefatos de fazcndm1 ~onsistem, comumente, de pratos quebrados, pcc.lu· çbs de garrafas, botões de latão, partes de canalizu· ções, ferramentas de ferro, e assim por diante. Oca­sionalmente, contudo, os arqueólogos encontram artefatos únicos em relação às fazendas. Em gera], estes artefatos únicos são produtos dos escravos africanos. Transportados através do Atlântico con­tra sua vontade, estes escravos podem ter perdido suas famílias, amigos, ambientes conhecidos e, até mesmo, seu status tradicional, mas não perderam sua cultura. Trouxeram suas culturas consigo em suas mentes. Esta cultura expressava-se em objetos materiais, assim como em canções, danças, folclo­re e outros elementos da vida diária. Os arqueólo­gos ocasionalmente encontram evidências destes traços africanos em sítios de fazendas do Novo Mundo. Por exemplo, cachimbos de aparência afri­cana foram encontrados em Barbados, nas fodias Ocidentais e em Chesapeake, no Leste dos Es­tados Unidos, colares com óbvios componentes africanos foram descobertos em Barbados, e um botão com um desenho de tipo africano foi, recen­temente, encontrado no Texas.

De todos os artefatos de cunho africano en­contrados nos sítios de fazendas do Novo Mundo, a maior parte das pesquisas centrou-se, talvez, nu cerâmica local encontrada em algumas fazcndos da costa Leste dos Estados Unidos e no Curibo.

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,i 11 " Estes vasos de barro, simples e sem polimento,

foram primeiramente identificados como indíge­nas, mas os arqueólogos puderam depois associá~ los, ao menos em parte; com escravos africanos ou com escravos africanos que interagiam com povo~ indígenas.

Este tipo de cerâmica foi feito entre 1680 e 1840. Sua presença em fazendas do Novo Mundo levanta uma série de questões que os arqueólogos estão tentando responder . Algumas destas ques­tões são: quando e por que esta cerâmica foi feita? Apenas alguns escravos a produziam? Por que há diferentes estilos? Alguns escravos eram força­dos a produzi-los por seus donos? Qual era a po­sição social dos oleiros, tanto na comunidade es­crava como na casa-grande? E por que a produ­ção cerâmica teve início e por que terminou? Além destas importante questões, outra linha de pesqui­sa refere-se ao uso destes vasos na fazenda. Pes­quisas crescentes, por parte de arqueólogos, indi­cam que a cerâmica feita por escravos pode ter sido usada tanto por escravos como por seus se­nhores, em certas circunstâncias. Por exemplo, em uma fazenda produtora de arroz na Carolina do Sul, datada dos anos 1720, a cerâmica de tipo africano foi encontrada em depósitos tanto das ca­banas dos escravos quanto da cozinha da casa do senhor. Este dado parece sugerir que esta cerâmica pode ter sido usada pelos escravos para a prepara­ção da comida do senhor, mas se a família do se-

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--nhor a utilizava, não se sabe. Em outr11 l'uzcndn de arroz da Carolina do Sul, a evidência 111·q11coll'>~k11 parece sugerir que os vasos de estilo ufric11110 l!rlllll

utilizados pelos habitantes da fazenda quu ndo 11

cerâmica lisa européia era difícil de se oblcr. l•'.ntt't' 1725 e 1749, a cerâmica não-européia rcpn.:sc11lav11 82 % de toda a cerâmica coletada, mas cm 182•1 esta não ultrapassava os 21 % . Ao mesmo tempo. o percentual de cerâmica européia aumentava c.k: 18% para 79%. Embora seja possível que fatores econômicos e tecnológicos, como o rápido cresci­mento da indústria cerâmica inglesa durante o início do século XIX e a maior presença de cerâ­mica inglesa no Novo Mundo após esta data, pos­sam ter exercido um papel no declínio da produ­ção não-européia , as razões exatas de seu declí­nio e posterior desaparecimento são uma questão de real importância. Infelizmente, o motivo deste declínio continua a ser desconhecido.

Usando informação de duas fazendas da Ca­rolina do Sul, datadas dos séculos XVIII e XIX, um grupo de arqueólogos propôs que o declínio da cerâmica de estilo africano indica uma trans­formação na cultura escrava, com o passar do tempo. Estes arqueólogos em geral privilegiam a aculturação como motivo do declínio. Acultura­ção significa mudanças que as culturas sofrem quando em contato umas com as outras, adqui­rindo características mutuamente. Nesta 1inh11 tlc raciocínio, os escravos das fazendas americanus cs-

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queceram, simplesmente, como fazer esta cerâmica de tipo africano, na medida em que se tornavam mais europeizados, nas primeiras décadas do sé­culo passado.

O arqueólogo Leland Ferguson, da Universi­dade da Carolina do Sul, entretanto, questionou recentemente esta interpretação, argumentando que a produção de cerâmica de tipo africano re­presentava uma forma de resistência escrava, ex­pressa em seu consumo de comida, uma esfera de vida sobre a qual mantinham algum controle. Nes­ta perspectiva, a manufatura desta cerâmka clara­mente não-européia representava uma tentativa, por parte dos escravos, de estabelecer e manter suas diferencas culturais no interior da estrutura da fazenda. 'outro arqueólogo, James Deetz, de­fendeu que os vasos de estilo africano foram feitos apenas depois que os escravos foram mudados das casas dos senhores para suas próprias habitações, quando do surgimento das grandes fazendas es­cravistas depois de 1680.

De qualquer forma, os arqueólogos desco­briram uma importante linha de pesquisa que re­laciona diretamente a questão da autonomia es­crava, do controle do senhor, das relações senhor­escravo, com a preservação de traços culturais africanos no Novo Mundo. A arqueologia está longe de fornecer respostas claras a muitas ques­tões relativas à produção dessa cerâmica, aos moti­vos para seu aparente uso por alguns fazendeiros e

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às circunstâncias envolvendo seu desaparecimento, mas pesquisas constantes continuam a tratar deli· tes temas. Os arqueólogos também não sabem quilo difundida era a produção destes vasos ccrfimicoH não-europeus em fazendas. O que se sabe é que u distribuição destes vasos apenas pode ser determi­nada por meio da arqueologia, já que esta indús­tria não é mencionada em nenhum documento es­crito até agora descoberto.

Além da atenção aos materiais de estilo afri­cano de fazendas do Novo Mundo, a arqueologia histórica tem se interessado, também, por muitos outros objetos e pelo modo como tais objetos fo­ram usados por seus usuários para exprimir ou simbolizar aspectos de suas vidas em sociedade. Uma série de arqúeólogos que escavaram restos de casas de fazendeiros tiveram interesse em determi­nar como expressavam, materialmente, sua riqueza e sua posição social. Embora o número de escra­vos possuídos e a quantidade de terras controladas fossem duas medidas usuais de riqueza dos fazen­deiros, os arqueólogos sabem que riqueza e status podem ser expressos por outras manifestações ma­teriais, principalmente por meio de artefatos. Assim, uma série de arqueólogos tem analisado ar­tefatos de sítios de fazendeiros - cerâmica de mesa, vasos de vidro, itens de vestuário e objetos pessoais - tentando determinar como diversos fa. zendeiros, de pequenos a grandes proprietário1.1, simbolizavam sua riqueza. Algumas vezes, u ri-

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queza pode ser demonstrada pela quantidade de porcelana fina, de botões de prata ou de partes de relógios de ouro, em depósitos arqueológicos, mas até o momento nenhuma medida consistente foi identificada, que permita determinar a riqueza ou posição social do fazendeiro apenas a partir dos artefatos. Encontra-se, ocasionalmente, um exem­plo no qual os registros históricos indicam que um fazendeiro possuía grande riqueza, mas cujos res­tos arqueológicos não contêm artefatos que, clara­mente, pudessem indicar esta riqueza. Estes casos mostram que muita pesquisa sobre as relações entre posição social, riqueza e uso de artefatos, resta ainda por fazer.

Edüícios de fazendas

Como acontece com os artefatos usados por habitantes das fazendas, como quer que sejam fei­tos e por quem, os arqueólogos podem fornecer in­formações importantes e únicas sobre as casas das fazendas. Esta infol'mação inclui dados sobre o tamanho e a construção de edifícios da fazenda, da mansão senhorial até as choupanas dos escravos, assim como sobre as distâncias entre os diversos prédios.

A escavação de casas de fazendeiros permi­tiu documentar seu tamanho, as dimensões e nú­mero de aposentos, o momento em que cômodos foram divididos ou acrescentados e, em alguns ca­sos, suas funções. Podem-se determinar a presença

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e localização de diferentes anexm;, t:omu t:uzlnhns exteriores, defumadores, oficinas artesu11uis e edi­fícios industriais. Estas construções, em ~erul l!H­

senciais para o funcionamento e existência pcrnw· nente das fazendas, muitas vezes não eram regis­tradas por escrito. Além da localização dos edifí­cios, diversos arqueólogos também analisam pai­sagens, como as estruturas não-arquitetônicas usa­das para dar forma física à fazenda . Neste sen­tido, a arqueologia histórica pode contribuir signi­ficamente para a compreensão da disposição es­pacial de fazendas específicas em termos tanto ar­. quitetônicos como não-arquitetônicos. Uma série de arqueólogos começa a analisar paisagens a fim de entender melhor as atitudes e conceitos de be­leza, assim como a utilidade, expressos no uso da terra, de modo similar ao estudo de Leone do hor­to de Paca, mencionado no quarto capítulo.

Além da análise das casas de fazendeiros, muitos arqueólogos voltaram-se para o estudo das habitações dos escravos. Este tema é particular­mente interessante porque possuímos descrições, em registros escritos, sobre como deveriam ser os aposentos dos escravos. Por exemplo, escritores sulistas americanos recomendavam, nos principais periódicos agrícolas publicados antes da guerra ci­vil americana de 1861, que a choupana escrava de­veria ter no mínimo de 27 a 30 metros quadru­dos, sendo às menores planejadas para acolher 11111-

rido, mulher e de três a quatro filhos. Os rc~ist1·01:1

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queológicos demonstram, entretanto, que o tama­nho da choupana na prática variava muito, haven­do desde algumas com apenas 21 m2 na Flórida e na Carolina do Sul; 30 na Geórgia e 37m2 na Vir­gínia.

Na medida em que as fazendas eram lugares vivos e ativos, cuja organização e plano podem ser alterados com o tempo, pode-se presumir que tam­bém mudavam as habitações dos escravos. Mo­cambos anteriores a 17 40 eram construídos com postes próximos alinhados em trincheiras de ma-. ' ne1ra semelhante à construção em vigas da África Ocidental. Casebres posteriores foram construí­dos com vigas mais espaçadas colocadas tanto em trincheiras como em buracos individuais. As caba­nas mais recentes, construídas no século XIX, pos­suíam pilastras de tijolos em vez de vigas. Os três planos de casebres também mudaram de retangu­lares e irregulares para quadrados e uniformes, menores com o passar do tempo. Embora as trans­formações nos planos das cabanas tenham sido ob­servadas em duas fazendas. da Carolina do Sul, não se pode determinar se esta mudança reflete a aculturação dos escravos africanos nas fazendas (esquecendo o estilo africano de construção) ou o crescente poder do proprietário (obrigando os es­cravos a viver em cabanas de estilo mais europei­zado).

Além de estudos de casas específicas de se­nhores e escravos, alguns pesquisadores estudaram

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as distâncias entre os edifícios e.las fuzcndu!l. O CK·

tudo antropológico do espaço e seu uso, chnmndo proxemística, tem papel destacado nesta árco . l ll· ventada por Edward Hall, a proxemística cst.u<l11 "u distância entre os homens na conduta de ativi<lmlcs diárias, a organização do espaço em casas e c<liff­cios e até o espaço urbano". Toda sociedade usu o espaço de maneira específica, e seu uso inclui fato­res relativos a visão, audição, olfato e tato. A pes· quisa histórica sugere que cada tipo de espaço era usado, em várias fazendas , para estabelecer a dis­tância entre os lares de fazendeiros e os de seus es­cravos. Por exemplo, um ex-escravo do Tennessee disse, quando entrevistado em nosso século, que a família do senhor, em sua fazenda, localizava as cabanas de escravos de maneira a que não "estra­gassem a vista da casa-grande" (distârtcia estabele­cida com base na visão); um francês do século XVIII , na Louisiana colonial, afirmava que as choupanas localizavam-se distantes da casa do se­nhor o suficiente para não ofender sua família com "o cheiro natural de algumas nações de pretos" (distância estabelecida com base na percepção so­cial olfativa); outro ex-escravo erttrevistado no sé­culo XX afirmou que, em sua fazenda, as cabanas deveriam estar a uma "distância de convocação" da casa-grande (distância estabelecida com base na audição) . O comentário do francês, em relação ao cheiro, mostra que o espaço pode ter também um aspecto ideológico.

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Além de considerações rel~tivas à visão au· diçã~ e ao cheiro, real ou imaginário, as cab

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anas locahz~vam-se, ainda, de mapeira a que os escra· vos estivessem perto dos seus lugares de trabalho Arqueólogos trabalhando no Sul dos Estados Uni~ dos e no Caribe documentaram ser este o caso e mostraram que a distância entre as casas dos fa­zendeiros, aldeias de trabalhadores e locais de tra­balho aumentou com a abolição da escravidão.

Todos estes estudos demonstram que infor­mações sobre edifícios de fazenda, seu tamanho c?nstrução e distância recíproca podem ser forne~ c1das pela arqueologia histórica. Grande parte de­las não pode ser obtida por nenhuma outra fonte. Registros históricos raramente contêm dados so­bre a loca~ização de anexos, as distâncias que os escravos tmham de percorrer até seus locais de trabalho, ou a distância entre os lares de escravos ' capatazes e senhores. Silenciam também, em ge-ral, sobre os estilos de construção e suas modifica­ções com o tempo. Para a maioria dos escritores históricos, tais aspectos de suas vidas diárias eram, simplesmente, muito comuns ou talvez considerados -por demais sem importância para que fossem descritos.

Transformações das fazendas

Outro tipo de estudo que a arqueologia his­tórica tem levado a cabo em sítios de fazendas re-

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i:

fere-se às significativas modi fic11çl'1t'N q 11r , u.•or r~ram no decorrer de sua existêndu. s~111lo pl'ln· c1palmente instituições econômicas, us 1'11 ·1.~ntl11N sofreram transformações para se adaptarem 11 dll't1 -rentes condições econômicas. Estas condiçücs p11-dem ter sido locais (relacionadas, talvez, a umu co· lhe~ta p~rticularmente boa em fazendas da regiiío), nac1ona1s (provavelmente relacionadas a determi­nadas decisões políticas sobre embargos ou aumen­to de impostos), ou até internacionais (relaciona­das, talvez, aos efeitos de desastres climáticos ou à fome em um continente distante da fazenda). A ar­queologia histórica adapta-se bem ao estudo de transformações das fazendas em reação a tais acon­tecimentos - provavelmente representadas por mudanças em planos de edifícios, no uso dos arte­fatos ou em densidades de artefatos-, já que as alterações, em fazendas específicas, podem não ter sido documentadas em registros históricos ou, en­tão, podem não ter sido percebidas pelos próprios habitantes do local.

Além dos fatores puramente econômicos de transformação, uma importante alteração social teve lugar nas fazendas após a libertação dos es­cravos: Os historiadores constataram que, por di­versos motivos, muitos forros continuaram a resi­dir, como assalariados, nas fazendas anteriormente escravistas. Os arqueólogos, na medida em que analisam o registro completo do solo encontrado em sítios de fazendas, têm a oportunidade de in-

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vestigar os aspectos materiais das fazendas, cap­tando dados que não podem ser obtidos por ne­nhum outro tipo de pesquisa.

Por exemplo, na Fazenda Drax Hall, na Ja­maica, o arqueólogo Douglas Amstrong descobriu algumas importantes transformações na alimenta­cão dos trabalhadores entre o período de trabalho ~scravo (1760-1810) e o período de trabalho livre (1840-1925). Percebeu que, durante a escravidão, a administração da fazenda distribuía aos escra­vos bacalhau, carne fresca, milho e farinha. lnfor­macões históricas e arqueológicas sugeriram que os pei~es salgados e a carne fresca forneciam a maior parte das proteínas dos escravos. Ao mesmo tem­po, depósitos arqueológicos de ossos de vaca tes­temunham o uso de carne de vaca como alimento, mas mostram que poucas espécies selvagens e ape­nas um limitado número de espécies marinhas eram usadas pelos escravos. Estas descobertas in­dicam que os escravos da fazenda Drax Hall de­pendiam muito dos donos da propriedade para a obtenção de suas proteínas. No período de trabalho livre, entretanto, houve uma mudança na alimentação. Depósitos arqueológicos desta época mostram um grande aumento no uso de espécies marinhas, como o marisco, para sua alimentação. Além disso, os restos arqueológicos mostram um aumento no consumo de ovelhas, cabras'e galinhas e uma diminuição no de vacas e porcos. Os regis­tros históricos confirmam esta mudança, ao mos-

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trar que menos carne fresca passou a ser compra­da pelos fazendeiros após a emancipação.

Ao mesmo tempo que ocorria esta mudança na alimentação, acontecia outra importante altera­ção, em termos arqueológicos. Houve um aumen­to na produção local, na fazenda, após a abo­lição. Vasos de ferro para o cozimento foram subs­tituídos por vasos de barro, feitos no local, e tige­las inglesas importadas eram usadas juntamente com produções locais.

A pesquisa de Amstrong sugere que os liber­tos, em Drax Hall, procuravam sobreviver usando como comida espécies selvagens locais, manten­do e talvez revitalizando determinadas técnicas africanas de manufatura cerâmica para vasos de cozinha. Isto significa que os escravos não esque­ceram certas habilidades tradicionais, como o tra­balho com o barro. Na tentativa de sobreviver no novo mundo da liberdade, ex-escravos, em Drax Hall, contribuíram para a formação de uma cul­tura jamaicana única.

Em outra fazenda, Millwood, na Carolina do Sul, descobri que uma grande modificação na loca­lização da casa ocorreu do período escravo (1832-1861) para o período livre, com arrendatários (1865-1925). Durante a escravidão, os escravos vi­viam em aldeias compostas de habitações pouco espaçadas e espalhadas pelo amplo terreno da fa­zenda. Informações históricas e arqueológicas su­gerem que, aproximadamente a partir do fim du

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guerra civil americana, em 1865, até 1875, houve um período no qual os recém-alforriados habita­ram pequenas aldeias agrícolas, organizadas com base nas relações de parentesco. Cada aldeia, ou esquadrão (squad), como era chamada, continha um grupo de trabalho que atuava sob a direção de um membro da família , ou líder do esquadrão. O proprietário da fazenda, em vez de lidar com es­cravos individuais ou com capatazes, relacionava­se com apenas sete líderes de esquadrão. A dissolu­ção do sistema de esquadrões, por volta de 187 5, significou que cada unidade familiar poderia tra­balhar para si mesma como arrendatária. Os lares destas fazendas familiares espalharam-se pelas ter­ras da fazenda. Quando os sítios destas casas fo­ram analisados e mapeados, pareceram represen­tar agrupamentos na paisagem. Ao analisar uma série de variáveis ambientais (como tipo de solo, elevação e distância da mais próxima corrente) e de variáveis sociais (distância das mais próximas li­nhas de trem, estradas, correntes e cidades) rela­tivas aos sítios dos arrendatários, tornou-se claro que a localização das casas baseava-se na proxi­midade em relação a estradas e vizinhos. Esta des­coberta parece indicar que a localização de casas, em fazendas pós-abolição, pode ter sido escolhida por razões tanto sociais (distância dos vizinhos e possíveis parentes) quanto econômicas (distância das estradas e mercados).

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\ ' . Tentei, neste capítulo, mostrar que as fazen-~s fornecem um excelente exemplo de como a arqueologia histórica pode contribuir para o co­nhecimento geral do passado. As fazendas, con­tudo, representam somente um tipo de sítio an.a­lisado pela arqueologia histórica do Novo Mundo. A arqueologia histórica abrange, agora, as arqueo­logias urbana, de sítios militares, do período de contato, industrial e subaquática. Cada especiali­dade, como a arqueologia das fazendas, continua a demonstrar o valor da arqueologia histórica para o conhecimento histórico. Além de fornecer informação antropológica e histórica sobre o pas­sado, entretanto, ela pode ser usada também de maneira prática. Este uso prático da arqueologia histórica, envolvendo a reconstrução material, é o tema do próximo capítulo.

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Arqueologia histórica e reconstrucão . ,

Um aspecto da arqueologia histórica que ainda não discuti refere-se ao seu uso como forne­cedora de informação sobre a aparência física de sítios históricos, a fim de que sejam restaurados e reconstruídos. B. Bruce Powell, familiar com a arqueologia histórica, escrevia em 1967 que " todos os que trabalham com sítios históricos terão de cuidar, cedo ou tarde, da restauração". Na medida em que ele está certo, não poderia ig­norar a ligação entre a arqueologia histórica e a reconstrução física (reconstruindo antigos edifí­cios no local exato, ou perto de onde estavam) e a restauração (fazendo com que edifícios históricos existentes pareçam com o que eram antigamente).

A arqueologia histórica é freqüentemente chamada a levar a cabo pesquisas arqueológicas em sítios a serem restaurados ou reconstruídos. Grande parte desta arqueologia é praticada em sí­tios julgados "de significação nacional". N ume-

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rosos arqueólogos têm escavado fortes, casas e bairros associados com pessoas famosas ou com acontecimentos nacionais significativos. Em mui­tos casos, o motivo da escavação não será, neces­sariamente, a produção de conhecimento cultural ou social, mas apenas o fornecimento de deta­lhes arquitetônicos que possam ser usados por ar­quitetos ou restauradores para que possibilitem uma reconstrução precisa. Portanto, arqueólogos muitas vezes escavarão as fundações de edifícios a fim de saber seu tamanho, forma, direção, e assim por diante. Este tipo de arqueologia foi denomina­do" arqueologia de restauração" pelo pioneiro J. e. Harrington para diferenciá-la da arqueologia vol­tada para o conhecimento histórico.

A arqueologia de restauração muitas vezes é levada a cabo para um cliente, e ela é planejada com um objetivo claro em mente, em geral muito específico. Um órgão federal ou estadual pode querer reconstruir um sítio que foi , outrora, o centro de um acontecimento essencial para a im­plantação do governo, como uma batalha impor­tante, uma primitiva aldeia colonial ou a casa na qual um importante acordo foi assinado. Se os re­latos dos testemunhos históricos eram incompletos ou se eles não descreviam o sítio (estando mais preocupados com o acontecimento em si), os re- · construtores precisarão de informações arqueoló­gicas a fim de reconstruir o sítio com uma preci­são razoável. Apenas arqueólogos profissionais po­dem fornecer tais dados.

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A arqueologia de reconstrução é um tf p('l ''-'·

gítimo de arqueologia, mas ela acarrctu cc1·ttH1 pl'U· blemas que exigem uma explicação. Estc11 problc· mas envolvem a análise de toda informm;i\o nl'· queológica de um sítio, sem considerar l:iUU dutu, o modo como a informação arqueológica é rctru­tada para o público e as questões éticas que envol­vem o patronato.

Os arqueólogos que trabalham na arqueolo­gia de restauração devem se certificar-se que pode­rão analisar toda a seqüência arqueológica que se apresente em qualquer sítio específico. Isto signi­fica que o arqueólogo que trabalha para um gover­no para fornecer informações sobre um sítio colo­nial primitivo, cujo período de interesse data de 1590 a 1630, deve poder estudar também o perío­do posterior, já que ele deve ser escavado antes dos restos mais antigos abaixo. Infelizmente, em mui­tos casos os materiais mais recentes têm sido des­considerados ou ignorados, com o interesse volta­do exclusivamente para os materiais do período a ser reconstruído materialmente. Embora decisões deste tipo sejam freqüentemente de ordem finan­ceira e não possam ser evitadas com facilidade, este interesse seletivo deveria ser desencorajado, já que todo material arqueológico é importante do ponto de vista científico. Seguindo o exemplo dado, a destruição de materiais posteriores n 1630 em favor dos anteriores não deve ser permitidu, pois um dia o período de 1630 a 1700, por cx"m·

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plo, pode ser considerado de igual, ou mesmo maior, significação histórica. Se estes materiais fo­rem ignorados durante a escavação, estarão para sempre perdidos. Em projetos de restauração, os arqueólogos deveriam poder ao menos coletar e estudar todos os materiais encontrados nos sítios a serem reconstruídos . Mesmo catálogos descriti­vos de artefatos e estruturas escavadas salvariam esta informação para as gerações futuras.

Um problema relacionado à arqueologia his­tórica envolve o uso que será dado aos materiais arqueológicos por parte dos reconstrutores. Uns poucos arqueólogos, em geral arqueólogos críticos, têm recentemente começado a analisar as manei­ras pelas quais o passado pode ser usado no pre­sente. Em nenhuma parte esta questão é mais im­portante do que na arqueologia de restauração. A restauração ou a reconstrução de prédios históri­cos podem ser usadas para retratar uma imagem do passado que pode fazer sentido ou ser aceitável hoje, mas que pode não ser historicamente pre­cisa. Por exemplo, os reconstrutores podem ser impelidos a mostrar condições de vida antigas me­lhores do que eram na realidade a fim de não ofen­der os visitantes modernos dos sítios históricos. Além disso, os reconstrutores de uma cidade colo­nial podem preferir não reconstruir a cadeia local e o manicômio. Embora a reconstrução de tais pré­dios fosse uma representação precisa do passado da cidade, os reconstrutores podem não desejar

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apresentar um lado desagradável do passado ou que nos lembre a dureza daqueles tempos. _ Estes dois problemas relacionam-se à ques-

tao do patrocínio na arqueologia. Grande parte da arqueologia histórica do Novo Mundo tem si?o levada a cabo como pesquisa paga por um cliente. Sejam projetos financiados pelo governo federal, em relação a obras públicas, como a cons­trução de represas, sejam projetos cívicos de pa­trocínio local, têm permitido o estudo de sítios que de outra forma nunca teriam merecido aten­ção. Infelizmente, entretanto, o patrocinador às ve­z~s, c?loca a arqueologia histórica em uma situação d1fic11. Isto acontece, em certas ocasiões na ar­queologia das fazendas quando fazendei~os não gostam de reconhecer que já houve escravidão em sua propriedade. Os arqueólogos que escrevem re­latos de escavação devem ser cuidadosos na sua interpretação da fazenda, quando o proprietário atual, possivelmente um descendente do dono ori­ginal, está pagando a pesquisa. Felizmente, a maior parte dos patrocinadores da arqueologia está verdadeiramente interessada no passado e não se preocupa em esconder seus aspectos desa­gradáveis ou em distorcê-lo de acordo com suas próprias opiniões.

De toda maneira, a questão do patrocínio e, na verdade, de toda arqueologia de restauração, mostra que a arqueologia, embora estude o pas­sado, é realmente parte do presente. Os arqueólo-

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gos modernos devem haver-se com o mundo como ele é, e seu trabalho, além da pesquisa, da publica­ção e da docência universitária, inclui também a educação pública. A arqueologia pode ser uma ferramenta extraordinária para ensinar os leigos sobre o passado, as lutas e triunfos de seus ances­trais e a própria construção da nação. Sítios re­construídos ou restaurados ajudam os arqueólogos a demonstrar que a arqueologia é importante, for­necendo, ao mesmo tempo, uma experiência con­creta do passado para a população moderna. A ar­queologia histórica, na medida em que estuda os povos coloniais e seus descendentes após 1500 d.C., pode ter uma significação especial, mas toda arqueologia pode ser usada para a educação pú­blica. Quando reconstruções e restaurações são feitas com precisão histórica, podem ser inestimá­veis para a formação da nossa moderna compreen­são do passado. A arqueologia histórica tem, cer­tamente, um importante papel na difusão desta compreensão para um amplo público.

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Conclusão

Neste pequeno manual, tentei mostrar o que é a arqueologia histórica, ilustrei alguns dos pro­blemas específicos com que se confronta e de­monstrei se'u potencial como meio de conhecimen­to do passado. Mostrei que ela pode ser definida, simplesmente, como um tipo de arqueologia que fornece informação sobre o passado mais recente, um passado que inclui linguagens escritas e que testemunha a grande expansão dos povos euro­peus pelo mundo extra-europeu. Procurei, ainda, deixar claro que ela estuda um tema geral um tan­to mais profundo, um tema que é, em certo sen­tido, central para nos ajudar a entender o mundo materialista moderno, criado como resultado da expansão das nações européias, com o início da era moderna.

Em boa parte da análise, discuti a arqueolo­gia histórica como um tipo de arqueologia di!itln­ta da arqueologia pré-histórica. Agi desta manei-

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ra porque muitas pessoas que não conheciam a arqueologia histórica podiam ter, ao menos al­guma idéia sobre a arqueologia pré-histórica.' To­~ei ~ e~ta posição porque ~reio que a arqueologia h1stonca no Novo Mundo e, realmente, um tipo di­ferente de estudo em relação à arqueologia pré-his­rica. Esta diferença .deriva, do meu ponto de vista, não de diversidades teóricas ou metodológicas, mas da própria natureza dos sítios arqueológicos. Os sítios pré-históricos simplesmente nada têm a ver com os assentamentos capitalistas e transnacio­nais, enquanto os sítios históricos têm tudo a ver. Contudo, uma tem muito a aprender com a outra, e ambas . serão beneficiadas por este diálogo contí­nuo. Na medida erh que a arqueologia histórica amadurecer, sem dúvida atrairá mais a atenção dos pré-historiadores, como vem acontecendo nos Es­tados Unidos.

No decorrer deste livro procurei deixar cla­ras minhas opiniões sobre o vasto potencial da ar­queologia histórica. A arqueologia histórica, tal­vez por sua juventude, é um tipo instigante de ar­queologia. Os sítios estudados, embora possam ser de data recente '(às vezes com menos de um século), são réalmertte sítios habitados por nos­sos antepassados imediatos. Ainda que seja ver­dade que estes an'CeStrais possam ter guardado diá­rios e registros, fotos e màpás de cidades, é igual­mente verdade que não os conhecemos tanto quanto pensamos. Como o importante historiador

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Daniel J. Boorstin escreveu em seu livro A história escondida, "sabemos mais sobre alguns uspcclos du vida quotidiana na Antiga Babilônia cm 3000 u.C. do que sobre o quotidiano em partes da Europu e d.a América, há cem anos". A arqueologia hislú· nca fornece uma .materialidade para o conlwd­mento daqueles que . construíràm os assentamen­tos coloniais, entraram em contato com os indíge­nas e forjaram nações. Permite-nos compreender que algumas ações de nossos ancestrais, no pas· sado, não foram as melhores ou nem mesmo cor­retas. Contudo, apenas analisando o passado de perto, com o detalhamento permitido pela arqueo­logia histórica, conheceremos o bem e o mal o • certo e o errado, o glorioso e o comum.

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Vocabulário crítico

Aculturação: as mudanças que as culturas &ofrcm quando entram em contato e cada uma adquire características da outra.

Arqueologia histórica: o estudo arqueólogico dos aspectos materiais, em termos históricos, cultu­rais e sociais concretos, dos efeitos do mercan­tilismo e do capitalismo originário da Europa do século XV e ainda em ação hoje.

Arqueologia histórico-cultural: um tipo de arqueo­logia interessada principalmente na apresenta­ção de relatos descritivos e detalhados de esca­vações, assim como na localização dos sítios escavados em cronologias locais, regionais e até continentais.

Arqueologia pós-medieval: o estudo arqueológico do mundo capitalista e industrial na Europa, uma disciplina aparentada com a arqueologia histórica.

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Arqueolog'ia pós-processual: um tipo de arqueolo­gia interessada principalmente em contextos simbólicos, históricos, sociais e culturais e no papel dos indivíduos na sociedade; inclui as ar­queologias simbólica, estrutural e crítica.

Arqueologia pré-histórica: no Novo Mundo, o es­tudo arqueológico dos povos nativos antes do contato com exploradores e colonos europeus.

Arqueologia processual: um tipo de arqueologia in­teressada principalmente na compreensão de processos culturais, nas leis gerais do compor­tamento humano e nas reconstruções culturais; também chamada N ew Archaeology.

Arqueologia proto-histórica: o estudo arqueoló­gico do período de contato entre europeus e in­dígenas.

Arqueologia de restauração: arqueologia preocu­pada, quase exclusivamente, com a coleção de detalhes arquitetônicos que possam ajudar na reconstrução ou na restauração de prédios his­tóricos.

Arqueologia social: um tipo de arqueologia inte­ressada principalmente em interações sociais nos contextos históricos e culturais em estudo.

~rquitetura acadêmica: formas puras de desenho arquitetônico ensinado por arquitetos profis­sionais em escolas de arquitetura.

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Arqu~e~ura verna~ulm:_: formas de dc~1.mho urqui­tetomco que nao sao, em geral, cnsinudo11 cm escolas de arquitetura mas que refletem mulH diretamente as visões de uma culturu sobre o que constitui um bom prédio.

Artefato: qualquer objeto feito ou mo<liril:udL) pela ação humana consciente~

Aterr~: solo intencionalmente depositado, <lc areia, cascalho ou outros materiais, destinado a preparar um terreno para nova construção ou para nivelar uma superfície.

Cicatrizes de molde: as linhas deixadas em gar­rafas e outros objetos de vidro produzidos com o uso de moldes.

Cicatrizes de pontil: a marca deixada pelo pontil retirado da garrafa pronta.

Contexto: a localização vertical e horizontal de um artefato em um sítio arqueológico.

Cultura: na arqueologia processual, o meio de adaptação de um povo ao ambiente natural. in­cluindo todos os aspectos da adaptação.

Cultura arqueológica: na perspectiva da integra­ção histórico-cultural, a evidência coletiva de culturas passadas tal como existente nos restos arqueológicos; em geral, refere-se apenas u cul­turas pré-históricas.

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Diâmetro do furo: o tamanho do buraco em um cachimbo de argila; pode ser usado para da­tar cachimbos, se as condições necessárias são cumpridas.

Estratigrafia: os estratos de solo encontrados em um sítio arqueológico.

Estrutura: qualquer evidência de presença huma­na, em um sítio arqueológico, que não pode ser removida.

Etna-arqueologia: o trabalho de campo etnográfi­co com objetivos puramente arqueológicos, não tecnológicos, em mente.

Fontes históricas primárias: registros escritos pro­duzidos por pessoas que vivenciaram direta­mente um acontecimento ou qeu foram con­temporâneas e tinham conhecimentos específi­cos a respeito.

Fontes históricas secundárias: registros escritos produzidos por pessoas que não vivenciaram di­retamente um acontecimento, mas que escre­vem sobre ele usando fontes primárias.

Ideologia: para a arqueologia crítica, a maneira pela qual as desigualdades e contradições so­ciais são escondidas em expressões aceitas cul­turalmente.

Marcas de fabricantes: marcas colocadas em cer­tos tipos de artefatos históricos a fim de identi-

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ficá-los como o produto de um fubricuntc espe­cífico.

Métodos de datação por fórmulas: os mélodrn~ 1!11

tatísticos usados para datar certas coleçõc~ dt' artefatos históricos por referência a dutus l.'.O ·

nhecidas de fabricação; em geral, rcfo1.·c11H.;i: n

uma data média da coleção.

Microestratigrafia: estratos muito finos de solos encontrados em sítios arqueológicos.

Modelo de cultura de bolo em camadas: uma vi­são da cultura que consiste em considerá-la como composta por três camadas, e de cima para baixo, com elementos ideológicos, sociais e tecnológicos acima de uma base do ambiente natural.

Modo de produção: um conjunto relevante de re­lações sociais no interior do qual o trabalho é usado para assegurar a sobrevivência de um povo.

Perspectiva êmica: uma visão direta e desde o in­

terior de alguma coisa.

Perspectiva ética: uma visão exterior de algo.

Pontil: vara de vidro usada no sopro de vidro. para segurar a garrafa enquanto se termina o lábio.

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Proxemística: o estudo antropológico do espaço e seu uso.

Reconstrução: reedificação de antigos edifícios em sua antiga localização ou perto dela.

Reconstrução cultural: na arqueologia processual, a visão do arqueólogo do que era uma cultura antiga.

Relato de escavação: estudo detalhado de um sítio específico.

Restauração: o ato de transformar prédios histó­ricos existentes para que adquiram sua antiga aparência.

Sociedade: um grupo de pessoas que interagem e compartilham uma cultura comum.

Solo de ocupação: o piso sobre o qual se vivia.

Superposição: o princípio segundo o qual os es­tratos de solo mais profundos são mais antigos do que os mais próximos da superfície atual, caso não tenha havido grandes perturbações do solo.

Terminus ante quem: a data antes que; refere-se a um meio em que artefatos podem ser usados para datar sítios arqueológicos por referência a datas conhecidas de fabricação.

Terminus post quem: a data depois da qual; usa­da da mesma forma que o terminus ante quem.

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Valor de estimação, ou estético: a possibilidade que um objeto tem de causar satisfação ou uma emoção específica.

Valor de troca: a quantia que considera quanto um objeto vale em uma troca.

Valor de uso: o potencial que um objeto tem de exercer uma função clara.

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Bibliografia comentada

A bibliografia sobre a arqueologia históricu está aumentando rapidamente. Infelizmente, no presente momento, os melhores livros sobre o as­sunto foram escritos em inglês. Como a arqueolo­gia histórica está sendo praticada em muitos lo­cais, livros em outras línguas deverão logo surgir.

DEETZ, James. ln Small Things Forgotten: The Archaeology of Early American Life. Nova Ior­que: Anchor Press, 1977 .

Um clássico da arqueologia histórica, este li­vro expõe as idéias de Deetz sobre o tema e discute seu trabalho com assentamentos ingle­ses coloniais antigos, na costa Leste dos Esta­dos Unidos. Embora muitos discordem das po­sições teóricas de Deetz, este livro ainda con­tinua a ser um dos mais lidos, sempre ampla­mente utilizado.

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DICKENS JR., Roy S., (ed.) Archaeology of Urban America: The Search for Pattern and Process. Nova Iorque: Academic Press, 1982.

Este volume contém 16 artigos sobre a ar­queologia urbana nos Estados Unidos. Inclui ar­tigos abrangendo estudos de sítios individuais até análises de como artefatos de centros urba­nos podem ser usados em arqueologia histórica. Este livro dá uma excelente idéia de como a arqueologia é levada a cabo nas cidades e que tipos de problemas são enfrentados.

FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Arqueologia. São Paulo: Ática, 1988.

Um excelente pequeno manual sobre a ar­queologia em geral; este livro contém informa­ção concisa sobre a análise e a interpretação ar­queológicas. Usando este manual, os leitores ob­terão uma compreensão ampla sobre o que é a arqueologia moderna e o que os arqueólogos contemporâneos fazem.

LEONE, Mark P. e POTTER JR., Parker B. The Recovery of Meaning: Historical Archaeology in the Eastern United States. Washington: Smith­sonian Jnstitution Press, 1988.

Este livro contém 14 artigos que representam as mais novas idéias em arqueologia histórica. Muitos dos autores podem ser encarados como arqueólogos críticos e muitos rejeitam boa par­te da New Archaeology. Alguns artigos anali-

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sam a arqueologia histórica do mito, do poder, da mudança cultural e da ideologia.

NOEL HUME, Ivor. Historical Archaeology. Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 1969

Escrito pelo arqueólogo aposentado, formado · na Grã-Bretanha, chefe do projeto de Williams­

burg na Virgínia, este livro foi por muitos anos o principal trabalho sobre a arqueologia histó­rica. Continua a ser muito utilizado, embora muitas das idéias de Noel Hume sejam antiqua­das e a maioria dos arqueólogos de formação antropológica não concorde com diversas de de suas idéias.

PAYNTER, Robert. Models of Spatial Inequa­lity: Settlement Patterns in Historical Archaelo­gy. Nova Iorque: Academic Press, 1982.

Baseado na tese de doutorado do autor, este livro é um estudo de natureza antropológica do assentamento e sua análise em arqueologia his­tórica. O autor trata de questões relativas à es­tratificação social e aos padrões de assentamen­to, centrando-se no Vale do Rio Connecticut, em Massachusetts, entre 1800 e 1850.

SCHUYLER, Robert L. (ed.). Historical Archaeo­logy. A Guide to Substantive and Theoretical Contributions. Nova Iorque: Baywood, 1978.

Este livro contém 35 artigos clássicos em ar­queologia\ histórica, datados de 1911a1977.

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Alguns deles eram mi.iitos difíceis de se obter. Explicam as diferentes idéias sobre a natureza da arqueologia histórica, apresentam informa­ções sobre o desenvolvimento da arqueologia pós-medieval e industrial, fornecem dados so­bre técnicas analíticas e oferecem idéias sobre futuras tendências, tal como apareciam em 1977.

SOUTH, Stanley. Method and Theory in Histori­cal Archaeology. Nova Iorque: Academic Press, 1977.

Este livro foi o primeiro trabalho teórico am­plo em arqueologia histórica. Sendo um apelo di­reto para o uso da New Archaeology na arqueo­logia histórica, por muitos anos foi amplamente lido. South explica muitas de suas técnicas ana­líticas que estão ainda em uso e explora suas idéias sobre o papel da arqueologia histórica na formulação de leis gerais de comportamento hu­mano.

SPENCER-WOOD, Suzanne M. (ed.). Consumer Choice in Historical Archaeology. Nova Iorque: Plenum Press, 1987.

O livro contém 17 capítulos sobre a análise de artefatos de período histórico como merca­dorias e como meio de estudo da estratificacão social, posição social e riqueza. Sítios coloni~is, urbanos, industriais e fazendas dos Estados Uni­dos são analisados.

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LEIA TAMB~M

1930: história, sociedade e política

Lucília de Almeida Neves Delgado Carla Maria Junho Anastasia (Organizadoras)

As análises concretizadas nos ensaios aqui co· Ietados visam estabelecer parâmetros para uma me­lhor compreensão do papel jogado por Minas Ge­rais - através da ação de suas elites - nos acontecimentos históricos que eclodiram no episódio da Revolução de 1930 e, conseqüentemente, no de­senrolar do processo pós-1930.

As autoras - professoras do Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Huma­nas da UFMG - buscam desenvolver suas pesqui­sas no sentido de uma apreensão mais ampla e com­plexa dos fatos e eventos que caracterizaram (e caracterizam) a nossa história mais recente, evitando cair nas armadilhas do "oficialismo" com que a nossa historiografia tem, quase sempre, mostrado estes e outros fenômenos históricos de nossa socie­dade.

São textos da mais alta relevância para o enten­dimento deste marco: a Revolução de 1930.

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Charles E. Orser Jr. destacou-se, nos últimos anos, como grande conhecedor das fazendas escravistas ou plan­tations do Sul dos Estados Unidos. Sua experiência nesta área o levou à publicação de sua obra A base material das fazendas posteriores à guerra civil: arqueologia histórica no Piemonte da Carolina do Sul (1988).

A publicação de sua Introdução à arqueologia hj~t~tica, no Brasil - que fez questão de editar ptbneframente $lm português - nesta tradução, ril$ta tlil)li Í'\ÔY#· -li-~â:P-il 'ha busca da compreensão de nosso ~PM$aUC>. b~i ··· .. -cífico de estucjoS. SC>bre a cultura: <lé raiZ: . íif muitos anos QlóYis Mo\ú!l i'es"1lta a. il:n . lombos e, recentemente; Robert' $~lles .tlesf.aéà: · "penetrar no. ~µJido. .(lc;> escravo, :onJtQli: ti:Ptll ;d,~;:, : e m,étodos de lttiális.e :são· necessáiiosi~:. _ ·

"Neste sen!ido~ ;os ~~t~dos , i;;,r,?p.ost.~$· .Pl' cÔ.tsêt Jt;-: ~d~ quaritse a ~t<L ;V,~&, J0 . ~~ül-turas . ~ubalt · • dP"· ·. · ·:.i.\! . <• _::t(eios de intérpte ~~etf ·• . · iêêeií~. ~

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