FACULDADE DE DIREITO MILTON CAMPOS
Curso de Pós-Graduação – Mestrado Stricto Sensu em Direito Empresarial
OS EFEITOS DA EXTINÇÃO E SUSPENSÃO DA
PUNIBILIDADE PENAL NOS CRIMES CONTRA A ORDEM
TRIBUTÁRIA – UMA ABORDAGEM DESCRIMINALIZANTE
EDUARDO TADEU FARAH
Nova Lima
2009
EDUARDO TADEU FARAH
OS EFEITOS DA EXTINÇÃO E SUSPENSÃO DA
PUNIBILIDADE PENAL NOS CRIMES CONTRA A ORDEM
TRIBUTÁRIA – UMA ABORDAGEM DESCRIMINALIZANTE
Dissertação apresentada à Faculdade de Direito Milton Campos, Curso de Pós-Graduação - Mestrado Stricto Sensu em Direito Empresarial, como requisito à obtenção do título de Mestre em Direito Empresarial. Área de concentração: Direito Empresarial Orientador. Prof. Dr. Élcio Reis
Nova Lima
2009
F219e Farah, Eduardo Tadeu 2009
Os efeitos da extinção e suspensão da punibilidade penal nos crimes contra a ordem tributária – Uma abordagem descriminalizante/ Eduardo Tadeu Farah. – 2009.
140f. Orientador: Professor Dr. Élcio Reis Dissertação (Mestrado em Direito empresarial) – Faculdade de Direito
Milton Campos. 1.Direito penal tributário. 2. Direito tributário – Responsabilidade
penal. 3.Condutas delitivas. 4. Parcelamento – Moratória, suspensão e extinção. 5. Punibilidade penal. 6. Descriminalização. I. Reis, Élcio. II. Faculdade de Direito Milton Campos. III. Título.
CDU: 345.0233 CDD: 343.359
Faculdade de Direito Milton Campos – Mestrado em Direito Empresarial
Dissertação intitulada Os efeitos da extinção e suspensão
da punibilidade penal nos crimes contra a ordem
tributária – Uma abordagem descriminalizante, de autoria do Mestrando Eduardo Tadeu Farah, para avaliação da banca constituída pelos seguintes professores:
Prof. Dr. Élcio Reis Orientador
Prof. Dr. Élcio Fonseca Reis
Prof. Dr. Luciano Dias Bicalho Camargos
Prof. Dr. Antônio Carlos Diniz Murta Suplente
Prof. Dr. Carlos Alberto Rohrmann Coordenador Didático do Curso de Pós-Graduação
Nova Lima, 30 de abril de 2009
Alameda da Serra, 61 – Bairro Vila da Serra – Nova Lima – Cep. 34000-000 – Minas Gerais – Brasil. Tel./fax (31) 3289-1900
Dedico este trabalho primeiramente a Deus, que por meio de Sua glória e sabedoria iluminou-
me e não deixou que eu ficasse pelo caminho. Obrigado, Senhor!
À minha mãe, Eny Farah, e, em especial, ao meu pai, José Farah (in memoriam), que está
presente no meu coração compartilhando e dividindo comigo mais esta vitória.
Ao meu filho, fonte de amor, carinho e inspiração.
Ao meu irmão Daniel e demais familiares, pelo apoio e incentivo, que tornaram possível a
elaboração desta produção científica.
AGRADECIMENTOS
Ao meu ilustre e competente orientador, Doutor Élcio Reis, exemplo de luta e fonte de força,
sempre tolerante, paciente e disposto a compartilhar seus vastos conhecimentos. Obrigado
pela atenção, pelo profissionalismo e, principalmente, pela brilhante e admirável capacidade
de ensinar.
Aos professores do Curso de Pós-Graduação – Mestrado da Faculdade Milton Campos, pelo
comprometimento, companheirismo e competência.
A todos os meus amigos, por todos os momentos compartilhados, pela força e por apostarem
em mim.
À Secretaria da Receita Federal, cujo apoio incondicional me possibilitou compatibilizar o
estudo com o trabalho.
Enfim, a todos aqueles que, à sua maneira, contribuíram para que este trabalho pudesse se
realizar.
RESUMO
A delinqüência tributária é um assunto que sempre motivou debates e discussões ao longo do tempo. Neste estudo, procurou-se identificar mediante uma abordagem histórica, o nascimento dos crimes contra a ordem tributária, bem como sua evolução e aspectos ontológicos, especialmente ligados à punibilidade penal. A utilização do Direito Penal como forma de desincentivar a evasão tributária, bem como incrementar o recolhimento tributário, traduz de forma clara o interesse do Estado em privilegiar a arrecadação. Diversos foram os diplomas penais editados com o objetivo de compelir o sujeito passivo da obrigação tributária ao pagamento do tributo, sob pena de, não o fazendo, incorrer em uma sanção penal. O pagamento integral do tributo como forma de extinção o parcelamento como modalidade de suspensão da pretensão punitiva são exemplos importantes de que o Estado não tem interesse de aplicar o Direito Penal aos transgressores tributários. Os planos de financiamento e refinanciamento fiscal demonstram, claramente, a necessidade de recursos do Estado, no momento em que elegeu o pagamento e o parcelamento como condição de extinção e suspensão, respectivamente, do jus puniendi. A Lei n. 8.137/1990 e suas inúmeras condutas criminalizantes evidenciam a complexidade em punir aqueles que cometem crimes contra a ordem tributária. A complexidade de qualificar e tipificar os crimes societários e a impunidade, traduzida muitas vezes pela prescrição dos referidos crimes, são exemplos da falência do atual modelo. Urge, dessa forma, a busca de alternativas para simplificar, agilizar e aumentar a arrecadação tributária. A saída proposta neste trabalho é a transferência do atual eixo apuratório penal para o Direito Administrativo Sancionador, transferindo a culpabilidade e subjetividade da conduta para uma apuração objetiva baseada no princípio da legalidade, tornando mais efetiva a apuração dos ilícitos tributários. Palavras-chave: Crime tributário. História. Sanção. Responsabilidade penal. Crimes societários. Condutas delitivas. Novação. Parcelamento. Moratória. Suspensão. Extinção. Punibilidade penal. Descriminalização. Direito Administrativo Sancionador.
ABSTRACT
Tax delinquency is an issue that has always been the cause of debates and discussions throughout time. This study sought to identify, through a historical approach, the origin of crimes against the tax system, as well as their evolution and ontological aspects, especially those linked to criminal punishability. The use of Criminal Law as a way to discourage tax evasion, as well as to increase tax payments, clearly translates the interest of the Government in favoring revenues. A variety of criminal laws have been enacted in order to compel those who owe taxes to pay them, under penalty of a criminal sanction if they do not do so. Payment of the tax due in full as a way to exclude Governmental punishment, and installment payments as a way to suspend this punishment are important examples that demonstrate that the Government does not really want to apply Criminal Law to tax offenders. Tax financing and refinancing plans clearly demonstrate the Government’s need for resources, when it defined payment in full and establishment of an installment payment program as conditions for extinction and suspension, respectively, of jus puniendi. Act 8.137/1990 and its many criminal descriptions demonstrate the complexity involved in punishing those who commit crimes against the tax structure. The complexity involved in describing and defining corporate crimes and impunity, which often occurs due to the statute of limitations running out on these crimes, are examples of the failure of the current model. Thus, it is essential to seek alternatives to simplify, make agile and increase tax revenues. The solution proposed by this study is to transfer the current criminal investigative axis to the area of repressive Administrative Law, transferring the culpability and subjectivity of the conduct to an objective investigation based on the legality principle, thus making investigation of tax crimes more effective. Key-words: Tax crime. History. Sanction. Criminal liability. Corporate crimes. Criminal conduct. Novation. Installment payments. Moratorium. Suspension. Extinction. Criminal punishability. Decriminalization. Repressive Administrative Law.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 2 HISTORIOGRAFIA E DESENVOLVIMENTO DO CRIME CONTRA A
ORDEM TRIBUTÁRIA NO BRASIL.................................................................... 2.1 Origem e desenvolvimento do Direito Penal Tributário no Brasil..................... 2.2 As Ordenações Filipinas......................................................................................... 2.3 A Derrama............................................................................................................... 2.4 O governo republicano e o crime contra a Fazenda Pública............................... 2.5 A compilação legal do crime da ordem tributária............................................... 3 A LEI N. 8.137/90 E OS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA........... 3.1 Condutas do previstas no art. 1° da Lei n. 8.137/90............................................. 3.1.1 Omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias.....
3.1.2 Fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo
operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei
fiscal......................................................................................................................
3.1.3 Falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer
outro documento relativo à operação tributável.................................................
3.1.4 Elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva
saber falso ou inexato..........................................................................................
3.1.5 Negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento
equivalente, relativa à venda de mercadoria ou prestação de serviço,
efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.............. 3.1.6 Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no
prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da
maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao
atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V.............
3.2 Condutas previstas no art. 2° da Lei n. 8.137/90.................................................. 3.2.1 Fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou
empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento
de tributo...............................................................................................................
3.2.2 Deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social,
descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que
deveria recolher aos cofres públicos....................................................................
3.2.3 Exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário,
qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou
de contribuição como incentivo fiscal.................................................................
3.2.4 Deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal
ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento..
3.2.5 Utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao
sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa
daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública..........................................
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4 CONDIÇÃO OBJETIVA DE PUNIBILIDADE.....................................................
5 RESPONSABILIDADE PELO CRIME DA ORDEM TRIBUTÁRIA................ 6 CONCURSOS............................................................................................................. 6.1 Concurso aparente de normas............................................................................... 6.2 Concurso de crimes................................................................................................. 6.2.1 Concurso material.................................................................................................
6.2.2 Concurso formal....................................................................................................
6.3 Crime continuado.................................................................................................... 6.4 Concurso de pessoas................................................................................................ 6.4.1 Autoria...................................................................................................................
6.4.2 Partícipe.................................................................................................................
6.4.3 Co-autoria..............................................................................................................
6.5 Formação de quadrilha ou bando.......................................................................... 7 O ERRO NOS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA........................... 8 CRIMES SOCIETÁRIOS......................................................................................... 8.1 Omissão nos crimes societários.............................................................................. 9 EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PENAL TRIBUTÁRIA.................................. 9.1 Pelo pagamento........................................................................................................ 9.2 Outras causas extintivas ........................................................................................ 9.3 Morte do agente....................................................................................................... 9.4 Anistia, graça ou indulto......................................................................................... 9.5 Decadência e prescrição.......................................................................................... 9.5.1 A prescrição e a decadência tributária e seus reflexos nos crimes de
supressão ou redução de tributos........................................................................
9.6 Retroatividade da lei penal que exclui o crime em matéria tributária.............. 9.6.1 Programas de Recuperação Fiscal e Parcelamento – Refis I.............................
9.6.2 Retroatividade benigna da Lei n. 10.684/03 – Refis II........................................
9.6.3 A retroação benigna e o Código Tributário Nacional.........................................
10 O PARCELAMENTO E A NOVAÇÃO................................................................ 10.1 Parcelamento......................................................................................................... 10.2 Posicionamento da Secretaria da Receita Federal em relação ao
parcelamento e seu reflexo na punibilidade penal.............................................. 10.3 Moratória............................................................................................................... 10.4 Extinção da punibilidade penal pela novação..................................................... 11 DESCRIMINALIZAÇÃO DA DELINQÜÊNCIA TRIBUTÁRIA..................... 11.1 Direito Administrativo Sancionador...................................................................
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12 CONCLUSÃO.......................................................................................................... REFERÊNCIAS............................................................................................................
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1 INTRODUÇÃO
A ordem tributária desenvolveu-se, ao longo do tempo, em razão da evolução da
própria sociedade e, conseqüentemente, da necessidade de prover recursos ao Estado.
Como forma definidora moral, o tributo constitui o encargo compulsório a que
todo cidadão está sujeito para o custeio e administração do Estado. Filosoficamente, o tributo
equivale à taxa de condomínio de um edifício, recolhido de forma obrigatória, em função da
coletividade. Destarte, a ausência de pagamento de algum condômino pode acarretar aumento
da contribuição dos outros, sem prejuízos às sanções impostas ao inadimplente.
Assim, analogamente entendido, o tributo não é uma sanção, todavia, em caso de
descumprimento do ordenamento jurídico tributário, o sujeito passivo da obrigação pode estar
sujeito a uma medida repressiva. Desse modo, a sanção é a conseqüência natural do ilícito,
razão pela qual deve ser usada para reprimir-lhe a prática.
De acordo com o tipo de lesão ao ordenamento tributário, a sanção pode ser de
natureza administrativa ou penal. Nesse sentido, a sanção penal representa a medida
repressiva aplicada aos ilícitos definidos como crime pelos instrumentos normativos que o
Estado dispõe, atuando estrategicamente no controle de sua ordem social. Com efeito, o
ordenamento penal pune severamente aquele que violar bem jurídico tutelado, pois sua ofensa
causa graves prejuízos à ordem social.
Assim, “para receberem a proteção da lei penal, os bens jurídicos devem ser
cuidadosamente selecionados”.1 Não é por acaso que a sanção penal constitui a extrema ratio,
conforme disserta o professor Julio Fabbrini Mirabete:
Isso significa que a pena deve ser reservada para os casos em que constitua o único meio de proteção suficiente da ordem social frente aos ataques relevantes. Apenas as condutas deletérias da espinha dorsal axiológica do sistema global histórico-cultural da sociedade devem ser tipificadas e reprimidas. [...]2
Nesse diapasão, os estudos, nesta pesquisa, concentraram-se nas sanções penais
aplicadas aos ilícitos contra a ordem tributária.
1 MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária, p. 21. 2 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal, p. 117
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O procedimento administrativo com vista a apurar os crimes contra a ordem
tributária inicia-se quando a Autoridade Fazendária, por exemplo, a federal, depara, em tese,
com um ilícito, definido como crime na forma da lei penal, elabora, além do auto de infração,
a “Representação Fiscal para Fins Penais”, noticiando o possível crime à autoridade
judiciária. Ressalte-se que, de acordo com o art. 127 da Constituição Federal,3 a denúncia
deverá ser oferecida pelo Ministério Público, instituição responsável pela função jurisdicional
do Estado.
Todavia, pelo que se verá na pesquisa, o caráter utilitarista da lei “faculta” ao
agente o recolhimento do valor sonegado como forma de não ser admoestado por qualquer
sanção penal. O pagamento integral do valor suprimido representa a extinção da punibilidade
para esse tipo de crime, logo, o Direito Penal constitui um importante instrumento de pressão
utilizado para incrementar a arrecadação tributária.
A possibilidade de extinção da punibilidade penal mediante o pagamento
comporta inúmeras interpretações, inclusive quando ocorre na forma parcelada. A análise do
parcelamento e de seus reflexos em relação aos crimes contra a ordem tributária constitui um
dos objetivos deste trabalho.
Diante da necessidade de redução da dívida ativa da união e do aumento da
arrecadação tributária, o Governo Federal editou vários programas de recuperação de dívidas
fiscais, como Refis e PAES. Os referidos programas especiais possibilitavam o parcelamento
de dívidas fiscais em condições extremamente vantajosas, permitindo, desta feita, a
regularidade fiscal do sujeito passivo.
O estudo enfocará, especialmente, a possibilidade da suspensão ou extinção da
punibilidade penal em relação aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei n. 8.137, de 27 de
janeiro de 1990, mediante o parcelamento efetuado por meio dos programas especiais e fora
deles. É extremamente desafiador identificar, com precisão, a materialidade e a autoria dos
crimes contra a ordem tributária, em razão da complexidade e da multiplicidade de
organismos empresariais envolvidos. Desta feita, nesta pesquisa aborda-se a imputação dessa
responsabilidade penal, notadamente em relação aos crimes societários, de forma a atribuir a
3 “Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. § 1º São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.”
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ação delitiva ao agente que, “de fato”, contribuiu de forma subjetiva para o deslinde da ação
criminosa.
Pelo que se observará no decorrer do desenvolvimento do estudo, o rigor da
legislação penal tributária não coaduna com a realidade vivida pelos contribuintes brasileiros.
Diversos são os motivos que levam à supressão e à redução do tributo pelo sujeito passivo da
obrigação. Destacam-se, dentre outros, o peso da carga tributária, a complexidade
interpretativa do ordenamento fiscal e o excessivo número de obrigações acessórias impostas
ao contribuinte.
A criminalização do Direito Tributário brasileiro ao longo dos anos não foi
suficiente para a redução da sonegação fiscal. Em verdade, houve um aumento considerável
no volume da dívida ativa da Fazenda Pública, representado pelo elevado número de
autuações, bem como pelo inadimplemento do tributo voluntariamente declarado.
Atualmente, existe uma desenfreada onda criminalizante do Direito Tributário,
donde se acredita que o Direito Penal seja a solução para todos os males da sociedade.
Ademais, existem formas mais eficazes de punir os sonegadores sem utilizar a seara penal.
Neste trabalho busca-se encontrar alternativas para o combate à delinqüência tributária que
não a via criminal. Trata-se do Direito Administrativo Sancionador, que será objeto de um
capítulo especial de fechamento da dissertação.
Dessa forma, a pesquisa lastreou-se em quatro pilares, quais sejam: a) o
nascimento do Direito Penal Tributário no Brasil e sua raiz evolutiva; b) a conceituação,
caracterização, modalidades e aspectos dos crimes contra a ordem tributária; c) a suspensão e
a extinção da punibilidade penal tributária e os recentes entendimentos doutrinários e
jurisprudenciais; d) a descriminalização da delinqüência tributária e o Direito Administrativo
Sancionador.
Destarte, para melhor compreensão da matéria torna-se importante estudar raízes
históricas da criminalidade tributária no Brasil. Com base no estudo da evolução do Direito
Penal Tributário é possível identificar o excesso de normas criminalizantes presentes em
nosso ordenamento, bem como saídas, a fim de tornar mais ágil, viável e menos oneroso o
combate ao ilícito tributário.
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2 HISTORIOGRAFIA E DESENVOLVIMENTO DO CRIME CONTRA A ORDEM
TRIBUTÁRIA NO BRASIL
2.1 Origem e desenvolvimento do Direito Penal Tributário no Brasil
Quando do descobrimento, passou a vigorar no Brasil o “Direito Penal
Português”, que se constituía das Ordenações Afonsinas, conjunto de leis que reunia toda a
legislação em vigor, promulgada em 1446 por Dom Afonso V (décimo segundo Rei de
Portugal, denominado “o Africano”, pelas conquistas que fez no norte de África) com
vigência até 1521.
Nas ordenações Afonsinas estavam presentes diversas disposições extraídas do
Direito Romano e do Direito Canônico, divididas em cinco livros, dispondo o livro V sobre
direito e processo penal, fixando, desta forma, no Poder Público o jus puniendi.
A sociedade brasileira em construção não possuía uma identidade, razão pela qual
não se aplicava na sua integralidade o Direito português. O sistema legal era adaptado,
fazendo surgir legislações locais, esparsas e pontuais, sob a tutela das Cartas de Foral
(documento real de concessão de foro jurídico próprio, isolado aos habitantes medievais,
colocando-se no domínio e jurisdição exclusivas da Coroa).
Caso ocorresse conflito normativo (presente a todo o momento), prevaleceria a
vontade do rei, pela ausência do princípio da reserva legal.
No Brasil não havia um sistema tributário, pela própria ausência de população e
atividade econômica. Foi somente a partir da extração do pau-brasil (árvore dura de cerne
vermelho, coberta de espinhos e utilizada como corante de tecido, em construção de
embarcações, móveis e instrumentos musicais) que surgiu o primeiro ônus fiscal sobre a
indústria extrativista. O valor cobrado era o “quinto”, pago com o próprio produto, uma vez
que, na prática, não havia a circulação de moedas.
A partir de 1521 entrou em vigor no sistema jurídico as Ordenações Manuelinas,
que continham as disposições do Direito medieval, elaborado pelos práticos e confundia
religião, moral e direito. As Ordenações vigoraram até 1603, e na maioria das vezes não era
aplicada, uma vez que a justiça era praticada pelos donatários.
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Os donatários eram nobres com poder discricionário que vieram para o Brasil com
a função de administrar, colonizar, proteger e desenvolver a região doada pelo rei, conforme
constava na Carta de Doação ou de Foral. A respectiva carta continha até mesmo as condições
para o recolhimento de impostos, multas e aplicação de penalidades.
Assim, competia ao donatário a fiscalização e o cumprimento das normas penais e
tributárias determinadas pelo rei. A seguir, transcrição da Carta de Foral, assinada pelo rei D.
João III e datada de 6 de outubro de 1534:
[...] confirma a cessão de uma capitania de 80 léguas na costa do Brasil ao capitão Pero Lopes de Souza e dita as regras a serem seguidas. Uma das regras determina que todo o pau-brasil, especiarias e drogarias dessa capitania pertencem à Coroa e que, caso alguém retirar ou negociar algum desses gêneros, a pena será a perda de toda a fazenda para a Coroa, além
do degredo definitivo para a ilha de São Tomé.4
Alguns desses documentos de concessão determinavam o recolhimento de
imposto sobre pescado, colheita, drogas, direito de alfândega, naufragadas, metais e pedras
preciosas. Esses tributos eram considerados “ordinários”, contudo, existia o “extraordinário”,
instituído em caráter urgente ou transitório – por exemplo, o casamento do príncipe.
Nessa época, para não pagar o “quinto”, contrabandistas franceses e portugueses
agiam na costa brasileira, na região compreendida entre Rio Grande do Norte e o Rio de
Janeiro, fazendo surgir o primeiro ilícito penal tributário no Brasil: o “contrabando”. O ilícito
constituía-se na extração, transporte e comercialização do pau-brasil sem pagamento do
imposto devido.
A repreensão imposta pela Coroa para o delito de contrabando constituía-se em
duas penalidades: uma de cunho administrativo, que consistia na perda da mercadoria; e outra
penal, qual seja, o degredo definitivo para a ilha de São Tomé (arquipélago do Atlântico
situado no Golfo da Guiné Africana). Ademais, o bem jurídico protegido misturava lesão ao
erário público com a segurança nacional e o conceito de pena, à época, estava ligado a uma
punição imputada pelos órgãos competentes, mas de cunho vingativo, com o intuito de expor
4 ARQUIVO NACIONAL. F. 18 a 27v., 6 out. 1534, grifos nossos. Disponível em:
http://www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=838&sid=104&tpl=printerview. Acesso em: 22 fev. 2007.
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e humilhar a figura do condenado. Assim, com objetivo de coibir o contrabando e centralizar
a arrecadação tributária, Portugal criou, em 1534, a Provedoria da Fazenda Real, primeira
repartição fazendária do Brasil, atualmente conhecida como Ministério da Fazenda.
Todavia, o contrabando cresceu de forma assustadora a partir de 1535, quando o
rei Dom João III declarou que as capitanias do Brasil eram território de “couto” e “homizio”,
ou seja, um local onde qualquer crime cometido, até mesmo em Portugal, era
instantaneamente perdoado. Ato contínuo, determinou que os degredados, até então enviados
para as Ilhas de São Tomé e Príncipe, passassem, também, a ser enviados para o Brasil.
Relatos históricos dão conta de que os donatários, quando vieram para o Brasil,
foram obrigados a trazer centenas de degradados, alguns até mesmo marcados com ferro em
brasa ou “desorelhados” por causa de perversões impostas pelas leis penais vigentes. Além
disso, vários apenados quando chegavam ao Brasil, apelavam para o contrabando, tráfico de
escravos indígenas e outros delitos.
A sociedade à época era estamental, ou seja, constituía-se do clero, nobreza e
servos, sem possibilidade de mudança de classe social, a não ser que se comprasse um título.
Os fidalgos, cavaleiros, médicos, juízes, vereadores e doutores em cânones ou leis não
poderiam ser submetidos às penas infamantes, como açoites, enforcamento e degredo, pois
gozavam de privilégios, até mesmo em relação ao pagamento de tributos. Pela própria
precariedade do sistema sociopolítico e econômico da época e como forma de
complementação de renda, várias dessas autoridades também praticavam o contrabando.
Entretanto, quando da aplicação da justiça, o donatário, submetia os infratores apenas à
penalidade administrativa, ou seja, confiscava a mercadoria contrabandeada declarando
extinta a punibilidade.
O modelo implantado pela Metrópole não produziu os efeitos desejados, e em
1548 D. João III retirou o poder concedido aos donatários implantando o sistema de
“governadores-gerais”. Surgiu, assim, uma nova legislação especial para instituir e disciplinar
a relação de poder. Foram criados regimentos parciais para disciplinar os auxiliares diretos do
governador como o ouvidor-mor, o provedor-mor, e a Provedoria-Mor da Fazenda Real,
chefiada por Antônio Cardoso de Barros, encarregado de coordenar e fiscalizar as atividades
das provedorias das capitanias. O primeiro governador-geral foi Thomé de Souza.
16
2.2 As Ordenações Filipinas
A partir de 1603, começou a vigorar as “Ordenações Filipinas”, que aplicava a
legislação penal na forma do Livro V, misturando no mesmo sistema jurídico interesses do
Estado, do déspota e da Igreja. Esse período foi caracterizado pela perseguição, intimidação
feroz e sem qualquer tipo de proporção entre a pena e o delito. A pena capital era aplicada
com freqüência e sua execução realizava-se de forma violenta e cruel, como esquartejamento,
morte pelo fogo até ser reduzido a pó, enforcamento com cadáver exposto, dentre outras.
Como não existia uma legislação penal tributária apropriada, as “Ordenações Filipinas” eram
utilizadas para os crimes tributários, que à época constituía-se, basicamente, do contrabando.
Com a descoberta de ouro e pedras preciosas no Brasil, a mineração tornou-se a
principal atividade econômica da Colônia no século XVIII. A partir daí, houve um controle
direto sobre a produção e a intensificação da fiscalização pelos órgãos de controle,
principalmente pela característica do produto objeto da exploração. Inicialmente, o tributo era
pago à razão de 20% de toda extração, na forma do “quinto” (quinta parte). Porém, com o
objetivo de aumentar ainda mais o controle e a arrecadação do imposto, foi instituída a
cobrança por capitação, ou seja, um tributo fixo pago em ouro e cuja “base de cálculo”
consistia no número de escravos das minas.
Relativamente ao cumprimento da obrigação tributária e seus reflexos penais,
havia muita dúvida, pois a todo o momento o rei emitia um comando normativo (leis,
decretos, cartas e patentes reais). Essa confusão legal favorecia o dirigismo e o decisionismo
na aplicação da justiça, principalmente com relação aos interesses de Portugal. Os de maior
status dificilmente eram processados e, se o fossem, raramente o processo corria até seu final.
A punição, quando aplicada, era sempre alternativa ou convertida em multa, sem prejuízo ao
perdão real, dada a pouca ofensividade atribuída a esse tipo de delito.
O crime de contrabando era exercido por pequenos mercadores que infringiram
apenas algum comando normativo ínfimo e cujos benefícios dessa infringência justificavam-
lhe a aceitação na sociedade colonial brasileira, uma vez que tanto o comprador quanto o
vendedor de produto ilegal não eram totalmente livres.
O descaminho ou contrabando era a saída natural contra a opressão do governo
português. Quanto mais se combatia, mais era alimentado. Dado seu pequeno potencial
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ofensivo, a sanção administrativa (perda da mercadoria) era constantemente aplicada e,
segundo o sentimento da sociedade à época, era a punição adequada. Todavia, quando a
delinqüência era exercida por pessoa sem ligações políticas ou sem condições financeiras, era
aplicada, além da penalidade administrativa (perda da mercadoria), a punibilidade penal, ou
seja, o exílio. É o que se verifica do trabalho Regimentos, Cobranças e Direito Régio nas
Minas do Brasil (1710-1750):
Em certa passagem a cerca do contrabando de fumo o padre jesuíta afirmava que muitas famílias eram arruinadas quando o ‘pater famílias’ era apanhado praticando contrabando, sendo a pena de cinco anos de exílio para Angola alta demais a se pagar para os pequenos lucros conseguidos com o comércio ilegal.5
2.3 A Derrama
O ano de 1750 foi o auge do contrabando, apesar do aperto fiscal exercido pela
Coroa. Nesse período, havia um número elevado de prisões, o que acabou tornando-se rotina
as repressões efetuadas pela Coroa.
Entretanto, a extração de ouro fez surgir uma nova modalidade de ilícito
tributário, ou seja, a sonegação fiscal relativa à circulação de mercadorias. Como forma de
intensificar o combate a essa modalidade de ilícito, Portugal proibiu a circulação de ouro em
pó e pepita, bem como criou as casas de fundição para que todo o ouro extraído fosse fundido
e “quintado”, ou seja, deduzido o tributo relativo ao “quinto”. Expedia-se, também, um
certificado que deveria acompanhá-lo. As medidas tomadas pela Coroa, porém, não foram
suficientes para combater o crime tributário.
Assim, Portugal fixou uma meta de arrecadação de impostos em cem arrobas,
como forma de compensar a extração e a saída clandestina de ouro. A Colônia, porém, não
conseguia arrecadar a quantidade imposta pela Coroa e, conseqüentemente, os impostos
atrasados acumulavam-se demasiadamente. Como forma de cumprir a meta de arrecadação
5 FERREIRA, Paula Botafogo Caricchio; TOLEDO, Julio Ramos de. Regimentos, cobranças e direito régio nas
minas do Brasil (1710/1750). História/USP, 2005. Disponível no http://www.klepsidra.net/klepsidra22/minas-sec18.htm. Acesso em: 14 set. 2007.
18
fixada, combater a sonegação fiscal e o contrabando, Portugal instituiu a “derrama”, ou seja, a
complementação da arrecadação do tributo com o uso da força, da violência e da
arbitrariedade.
Em relação a instituição da derrama, escreveu o historiador Caio Prado Júnior:
[...] cada vez que se decretava uma derrama, a capitania, atingida entrava em polvorosa. A força armada se mobilizava, a população vivia sobre o terror; casas particulares eram violadas a qualquer hora do dia ou da noite, as prisões se multiplicavam. Isto durava, não raro, muitos meses, durante os quais desaparecia toda e qualquer garantia pessoal. Todo mundo estava sujeito a perder de uma hora para outra seus bens, sua liberdade, quando não sua vida. Aliás as derramas tomavam caráter de violência tão grande e subversão tão grave da ordem, que somente nos dias áureos da mineração se lançou mão deles. Quando começa a decadência, eles se tornam cada vez mais espaçados, embora nunca mais depois de 1762 o quinto atingisse as 100 arrobas fixadas. Da última vez que se projetou uma derrama (em 1788), ela teve de ser suspensa à última hora, pois chegaram ao conhecimento das autoridades notícias positivas de um levante geral em Minas Gerais, marcado para o momento em que fosse iniciada a cobrança (conspiração de Tiradentes).6
Pelo que se extrai de toda seqüência histórica, a delinqüência tributária
desencadeou, em 1765, um dos mais tristes e aterrorizantes episódios de cobrança de impostos
extraordinários já conhecidos: a derrama.
A opressão fiscal imposta pela Coroa aliada ao ideal de liberdade fez com que
surgissem vários mártires, entre eles Joaquim José da Silva Xavier, “Tiradentes”, principal
articulador do movimento de libertação conhecido como “Conjuração Mineira”.
Na vigência das Ordenações Filipinas, Tiradentes, como muitos outros, foi vítima
de uma execução cruel e violenta, base do direito no período colonial. A passagem histórica,
objeto das reflexões de Batista Pereira, sintetiza o que representava a aplicação o Livro V das
Ordenações Filipinas:
Espelho onde se refletia, com inteira fidelidade, a dureza das codificações contemporâneas, era misto de despotismo e de beatice, uma legislação híbrida e feroz, inspirada em falsas idéias religiosas e políticas, que, invadindo as fronteiras da jurisdição divina, confundia o crime com o pecado, e absorvia o indivíduo no Estado fazendo dele um instrumento. Na previsão de conter os maus pelo terror, a lei não media a pena pela gravidade da culpa; na graduação do castigo obedecia, só, ao critério da utilidade. Assim, a pena capital era aplicada com mão larga; abundavam as penas
6 PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil, p. 139.
19
infamantes, como o açoite, a marca de fogo, as galés, e com a mesma severidade com que se punia a heresia, a blasfêmia, a apostasia e a feitiçaria, eram castigados os que, sem licença de El-Rei e dos Prelados, benziam cães e bichos, e os que penetravam nos mosteiros para tirar freiras e pernoitar com elas. A pena de morte natural era agravada pelo modo cruel de sua inflição; certos criminosos, como os bígamos, os incestuosos, os adúlteros, os moedeiros falsos eram queimados vivos e feitos em pó, para que nunca de seu corpo e sepultura pudesse haver memória. Com a volúpia pelo sangue, negação completa de senso moral, dessa lei que, na frase de Cícero, é in
omnibus difusa, naturae, congruens, constans, eram supliciados os réus de lesa-majestade, crime tão grave e abominável, e os antigos sabedores tanto o estranharam, que o compararam à lepra, porque, assim como esta enfermidade enche o corpo, sem nunca mais se poder curar, assim o erro de traição condena o que a comete, e impece e infama os que da sua linha descendem, posto que não tenham culpa. A este acervo de monstruosidade outras se cumulavam: a aberrância da pena, o confisco dos bens, a transmissibilidade da infâmia do crime.7
A partir da Independência, em 1822, os textos das Ordenações Filipinas foram
sendo gradativamente revogados. A primeira Constituição outorgada previa normas jurídicas
de cunho centralizador e autoritário ao Império. Entretanto, a primeira alteração considerável
veio com o Código Criminal do Império, em 1830, que substituiu o Livro V das Ordenações.
Esse Código, considerado o primeiro Código Penal da América Latina, tendo sido
influenciado pelo Código Francês de 1810 por meio dos ecos da Revolução Francesa e da
solidificação dos ideais iluministas de liberdade e igualdade, deu “ao Direito Penal um caráter
formal menos cruel” “[...] impondo limites à invenção estatal nas liberdades individuais”.8 Em
seu art. 1º, consagrava o princípio da legalidade em matéria penal e, conseqüentemente, a
perfeita descrição das condutas criminosas. O art. 177 tratava das condutas danosas ao Estado,
refletindo, de certa forma, a preocupação do legislador em tutelar, mais severamente,
infringência aos delitos tributários:
Capítulo III Contrabando (64) Art. 177. Importar ou exportar gêneros ou mercadorias prohibidas; ou não pagar os direitos dos que são permitidos, na sua importação ou exportação.
Perda das mercadorias ou gêneros, e de multa igual a metade do valor d’ellas
7 MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. v. 1, p. 85; PIRAGIBE, Vicente. Legislação penal, v. II,
p. 14-15. 8 BITENCOURT, Cezar Roberto. Licões de direito penal: parte geral, p. 30.
20
O Decreto de 18 de agosto de 1831 regulou o processo nas ações executivas da
Fazenda Pública contra os seus devedores, dada a total falta de controle fiscal exercida pelo
Império. Em seguida, foi promulgado, em 1832, o Código de Processo Criminal, que
reformou o processo e a magistratura.
A característica principal do Código de Processo Criminal foi a criação do juiz de
paz, responsável pela aplicação da justiça. O juiz de paz eleito acumulava amplos poderes até
então distribuídos por diferentes autoridades (juízes ordinários, juízes de vintena, juízes
letrados) – por exemplo, a manutenção da ordem pública, emprego da força pública, vigiar o
cumprimento das posturas municipais, a condução das eleições e demais funções
administrativas, judiciais e policiais. Nesse período, o crime de contrabando era praticado em
larga escala e até mesmo bem tolerado pela autoridade judiciária, sendo considerado “[...]
bagatelas penais e não danoso socialmente, razão pela qual deixava de ser punido, com
freqüência, pelo juiz de paz.”9
Em 1850, surgiu o Código Comercial, instituído pela Lei n. 556, que disciplinava
o exercício da atividade mercantil no Brasil. O referido diploma regulou as relações de Direito
Comercial, fruto de interesses econômicos da burguesia da época, que necessitava de uma
maior agilidade e segurança nas relações mercantis, tendo em vista a grande quantidade de
diplomas legais editados.
2.4 O governo republicano e o crime contra a Fazenda Pública
Com a proclamação da República em 11 de outubro de 1890, o marechal Manoel
Deodoro da Fonseca, chefe do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do
Brasil, decretou o Código Penal Republicano cujo Título VII tratava “Dos crimes contra a
Fazenda Pública” na forma do Capitulo Único:
Art. 265. Importar ou exportar, generos ou mercadorias prohibidas; evitar no todo ou em parte o pagamento dos direitos e impostos estabelecidos sobre a entrada, sahida e consumo de mercadorias e por qualquer modo illudir ou defraudar esse pagamento: Pena – de prisão cellular por um a quatro annos, além das fiscaes.
9 FLORY, Thomas. El juez de paz y el jurado en el Brasil imperial: 1808/1871, p. 189.
21
Assim, o art. 265 foi o único a tratar de crimes tributários, prevendo prisão de um
a quatro anos e multa. Ressalte-se, ainda, que, de acordo com o art. 406 do mesmo Código,
não poderia ser concedida fiança no caso de crimes punidos com prisão até quatro anos:
Art. 406. A fiança não será concedida nos crimes cujo maximo de pena for prisão cellular, ou reclusão, por quatro annos. Paragrapho unico. Para os effeitos da fiança provisoria, a pena de prisão cellular será considerada equivalente á de prisão com trabalho, e a de reclusão á de degredo, sendo alterada a tabella vigente.
No campo tributário, a Constituição Republicana fixou tributos somente para a
União e os Estados, sem fazer qualquer menção aos municípios.
Em 1892 foram criadas em cada capital da República as Delegacias Fiscais do
Tesouro Nacional, para combate ao crime fiscal de contrabando, bem como para desempenhar
as tarefas que, ao tempo do Império, eram das Tesourarias da Fazenda nas províncias.
Em 1922, o imposto de renda foi instituído no Brasil, na forma do art. 31 da Lei n.
4.625 de 31de dezembro de 1922, que orçou a receita geral da República dos Estados Unidos
do Brasil para o exercício de 1923, a saber:
Art. 31. Fica instituído o imposto geral sobre a renda, que será devido, annualmente, por toda a pessoa physica ou juridica, residente no territorio do paiz, e incidirá, em cada caso, sobre o conjunto liquido dos rendimentos de qualquer origem.
A criação do imposto de renda abriu caminho, como se verá adiante, para a
instituição de novos delitos penais tributários que não contrabando e descaminho.
Com o grande número de legislação esparsa tratando sobre o Direito Penal, foi
necessária a consolidação dessas leis, conforme aponta Herman Lott:
A Consolidação das Leis Penais Dec. 22213/32 tratou igualmente dos crimes contra a Fazenda Pública, definindo também o crime de contrabando em seu art. 265, porém agregando outras condutas ao tipo, como importar e fabricar rótulos de bebidas e quaisquer outros produtos nacionais como se fossem estrangeiros, disciplinou a navegação de cabotagem dos navios estrangeiros, etc. A inclusão dessas ‘novas condutas’, no entanto, foi mera incorporação de tipos penais previstos em leis esparsas, como o do art. 4° da Lei 123/1892, do art. 1° do Decreto 1425-B/1905 e do art. 56 da Lei 4.440/1921120.10
10 LOTT, Herman. Crimes contra a ordem tributária. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 58, ago. 2002.
Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3054>. Acesso em: 12 mar. 2004.
22
Relativamente ao crédito tributário, não se pode deixar de mencionar o Decreto n.
5, e o Decreto n. 42, editado em 1937, que tratava de ações em relação aos devedores
remissos. Posteriormente, o Decreto n. 960/38 atribuiu ao crédito fiscal presunção de liquidez
e certeza.
A aplicação da norma penal (inclusive a penal tributária) era confusa, dada a
excessiva quantidade de leis extravagantes transformando-a em um emaranhado de diplomas
legais conflitantes. Em 1937, Alcântara Machado apresentou um Projeto de Código Criminal
brasileiro, tendo como base a conhecida Consolidação das Leis Penais de Vicente Piragibe, o
qual, depois de apreciado por uma Comissão Revisora, acabou sendo sancionado por decreto,
em 1940, como Código Penal, passando a vigorar a partir de 1942.
Em relação ao crime tributário, o art. 334 do Código Penal prescreve:
Art. 334. Importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria: Pena – reclusão, de um a quatro anos.
O referido diploma legal manteve a mesma penalidade para os crimes de
contrabando e descaminho, acrescentando fato assimilado em lei especial e, ainda, a
penalização da navegação de cabotagem fora dos casos permitidos em lei. O Código Penal,
nos §§ 1o 2o e 3o do mesmo art. 334, ampliou e criminalizou condutas que ficavam no
“limbo”, como exportar ou importar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o
pagamento de direito ou imposto devido pela entrada e saída ou pelo consumo de mercadoria.
Ressalte-se, ainda, que o art. 86 da Lei n. 3.807, de 26 de agosto de 1960, versando sobre a
previdência social, considerou como crime de apropriação indébita o não-recolhimento das
contribuições retidas dos empregados pelos empregadores.
Contudo, várias leis esparsas continuaram sendo editadas, principalmente de
forma híbrida, no momento em que eram enxertados nos mais diversos assuntos. A própria
Lei n. 4.357, de 16 de julho de 1964, reflete a situação em que se encontrava a disciplina
penal tributária no momento em que autorizava a emissão de Obrigações do Tesouro Nacional
e alterava o art. 168 do Código Penal, que trata da apropriação indébita, estendendo a figura
ao imposto de renda retido na fonte, ao imposto de consumo e ao imposto do selo, e
declarando extinta a punibilidade penal quando do recolhimento dos débitos antes da decisão
administrativa de primeira instância (art. 11, § 2°, da Lei n. 4.357/64).
23
2.5 A compilação legal do crime da ordem tributária
O desenvolvimento do sistema fiscal brasileiro, aliado ao crescente número de
legislações esparsas sobre o crime de sonegação fiscal, fez surgir, em 14 de julho de 1965, a
Lei n. 4.729, reunindo as condutas criminosas na forma do art. 1o:
Art. 1º Constitui crime de sonegação fiscal: I – prestar declaração falsa ou omitir, total ou parcialmente, informação que deva ser produzida a agentes das pessoas jurídicas de direito público interno, com a intenção de eximir-se, total ou parcialmente, do pagamento de tributos, taxas e quaisquer adicionais devidos por lei; II – inserir elementos inexatos ou omitir, rendimentos ou operações de qualquer natureza em documentos ou livros exigidos pelas leis fiscais, com a intenção de exonerar-se do pagamento de tributos devidos à Fazenda Pública; III – alterar faturas e quaisquer documentos relativos a operações mercantis com o propósito de fraudar a Fazenda Pública; IV – fornecer ou emitir documentos graciosos ou alterar despesas, majorando-as, com o objetivo de obter dedução de tributos devidos à Fazenda Pública, sem prejuízo das sanções administrativas cabíveis. Pena: Detenção, de seis meses a dois anos, e multa de duas a cinco vêzes o valor do tributo. § 1º Quando se tratar de criminoso primário, a pena será reduzida à multa de 10 (dez) vêzes o valor do tributo. § 2º Se o agente cometer o crime prevalecendo-se do cargo público que exerce, a pena será aumentada da sexta parte. § 3º O funcionário público com atribuições de verificação, lançamento ou fiscalização de tributos, que concorrer para a prática do crime de sonegação fiscal, será punido com a pena dêste artigo aumentada da têrça parte, com a abertura obrigatória do competente processo administrativo.
Pelo que se depreende da leitura desse artigo, a Lei n. 4.729/65 representou um
grande marco no combate à delinqüência tributária, no momento em que compilou o confuso
sistema legal relativo ao crime tributário, agrupando condutas delitivas oriundas de outras
ações criminosas que não o contrabando.
Embora o art. 1o da Lei n. 4.729/65 tenha definido e reunido inúmeros
comportamentos considerados crime, exigiu, contudo, dolo específico em todas as condutas,
necessitando a “intenção de fraudar” para a configuração do delito. Conforme disposto no
referido diploma normativo, as condutas descritas representam crimes de natureza formal, ou
24
seja, realizam-se independentemente do resultado, pois a Lei não vincula o efetivo “dano” ao
erário à ação, sendo irrelevante o fato de haver ou não supressão ou redução do tributo.11
Importante destacar a disposição constante no art. 2o da referida Lei, que
determinava a extinção da punibilidade penal quando houvesse o pagamento integral do
tributo antes do início do procedimento fiscal na esfera administrativa. A Lei n. 4.729/65
também disciplinou ao Ministério Público a forma de comunicação dos ilícitos cometidos,
bem como ampliou o conceito do sujeito ativo do crime penal tributário.
Assim, observa o professor Ercias Rodrigues de Sousa sobre a importância da
referida lei para o ordenamento jurídico:
Com o advento daquele diploma repressivo resolveu-se importante dissídio doutrinário e jurisprudencial: a lacuna existente no ordenamento jurídico, tendo em vista princípios como o da estrita tipicidade penal, e da reserva legal, em relação a condutas eventualmente fraudulentas, que tivessem como elemento subjetivo do tipo – dolo específico para os penalistas clássicos – a vontade deliberada de suprimir ou reduzir tributo – mediante condutas tão diversas como a declaração falsa, a omissão de informações, a inserção de elementos inexatos ou a omissão de elementos necessários em documentos ou livros ou, ainda, a adulteração de notas ou faturas, o fornecimento gracioso de documentos ou a alteração de despesas, por exemplo.12
11 FURLAN, Anderson. Sanções penais tributárias, p. 30. 12 Disponível em:
http://www.fiscosoft.com.br/index_frame.php?secao=0&home=/index.php?PID=102729&key=2088836. Acesso em: 8 mar. 2008.
25
3 A LEI N. 8.137/90 E OS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA
A Lei n. 8.137, de 27 de dezembro de 1990, promulgada pelo ex-presidente
Fernando Collor de Mello, durante um período de forte pressão econômica e política, abarcou
grande parte das condutas já apenadas pela Lei n. 4.729/65, no momento em que ampliou sua
abrangência e penalizou, mais severamente, ilícitos previstos na Lei anterior.
O professor Juary Silva, descreve o que representou a edição da Lei n. 8.137/90
naquele momento:
[...]; com a Lei 8137/90, quando, a despeito da aparente vigência do Estado de Direito, o país atravessava séria crise institucional, máxime nos campos econômico e psicossocial, após o desastroso plano econômico editado em março de 1990, que implicou, de fato em estabelecer a lei marcial no domínio econômico, sem abolir a Constituição.13
Assim, a referida lei conferiu, efetivamente, identidade ao Direito Penal tributário,
bem como representou o marco fundamental no combate a delinqüência tributária, regulando
inteiramente a matéria penal tributária. É o que dispõem os arts. 1° e 2° da Lei n. 8.137/90:
Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: (Vide Lei n. 9.964, de 10.4.2000) I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias; II – fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal; III – falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável; IV – elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato; V – negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação. Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V.
13 SILVA, Juary. Elementos de direito penal tributário, p. 8.
26
Art. 2° Constitui crime da mesma natureza: (Vide Lei n. 9.964, de 10/4/2000) I – fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo; II – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos; III – exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal; IV – deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento; V – utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública. Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Pelo que se depreende da leitura do artigo, o núcleo do tipo é suprimir ou reduzir
tributo ou contribuição social e qualquer acessório. Como não existe forma culposa de
cometimento do crime da ordem tributária, para todas as condutas descritas nos incisos I a V,
deve estar presente o aspecto volitivo dirigido ao resultado, ou seja, vontade livre e consciente
do sujeito passivo em fraudar. Assim, pode-se afirmar que os crimes previstos no art. 1o da
Lei n. 8.137/90 são de resultado, pois toda ação perpetrada deverá atingir o fim proposto –
suprimir ou reduzir tributo contribuição e acessório.
Desta feita, quando do cometimento do delito, haverá, necessariamente, efetivo
prejuízo ao erário, conforme ensina o professor Damásio de Jesus:
[...] não se mostra suficiente para fins de consumação, portanto, que o agente realize as condutas descritas nos incisos do art. 1o da Lei 8.137/90. Caso o sujeito tenha se limitado a concretizá-las, sem contudo suprimir ou reduzir tributo, contribuição e acessório, o iter criminis estará incompleto, podendo falar-se, no máximo, em delito tentado [...].14
O bem jurídico protegido nos crimes contra a ordem tributária é a própria “ordem
tributária”, ou seja, um conjunto de regramento jurídico-tributário limitador do poder de
tributar. Embora haja uma pluralidade de condutas, todas estão qualificadas em uma só ordem
jurídica e não em uma ordem federal, estadual e municipal, e todas são elementos do mesmo
tipo penal, não existindo, desta feita, crime de sonegação de ICMS, tampouco sonegação de
14 EVANGELISTA DE JESUS, Damásio. Direito penal, p. 202.
27
IPI, pois o crime é de supressão ou redução de tributo ou contribuição social mediante uma ou
mais das condutas-meio descritas nos vários incisos do art. 1° da Lei n. 8.137/90.15
Para Hugo Brito Machado, a ordem tributária vincula todos os cidadãos, e não
apenas aos sujeitos passivos:
É relevante, todavia, observarmos que a eficácia da ordem jurídica tributária é vinculativa e obrigatória a todos os cidadãos, e não apenas aos que estejam na condição de sujeitos passivos da obrigação tributária. Por isto mesmo, repita-se, é que se justifica a inclusão entre os crimes contra a ordem tributária de tipos como o excesso de exação, no qual o bem jurídico protegido é a ordem tributária, mas o titular imediato de um direito subjetivo atingido pela ação criminosa é o contribuinte [...] Alberga, portanto, direitos e deveres recíprocos que devem ser reciprocamente respeitados.16
Com efeito, ao eleger a ordem tributária, o bem jurídico protegido pelo direito, e
não a arrecadação tributária, o Estado visa proteger seu sistema tributário, composto de um
conjunto de leis, atos e procedimentos tributários. Saliente-se, ainda, que o ingresso de
recursos aos cofres públicos é conseqüência da ordem tributária.
Passa-se, portanto, à análise das condutas previstas nos incisos I a V do art.1° da
Lei n. 8.137/90:
3.1 Condutas do previstas no art. 1° da Lei n. 8.137/90
3.1.1 Omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias
A conduta definida nesse inciso refere-se, basicamente, ao sujeito passivo que
intencionalmente “omite” ou “presta” informação falsa à Fazenda Pública, visando ocultar o
efetivo crédito tributário, ocasionando, conseqüentemente, redução ou supressão de tributo. O
professor Hugo de Brito Machado, com simplicidade, discorre sobre o tema:
15 MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária, p. 330. 16 MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária, p. 323.
28
Toda declaração pode ser verdadeira ou falsa. É verdadeira quando o seu conteúdo corresponde inteiramente ao fato declarado, é falsa quando o seu conteúdo diverge, no todo ou em parte, do fato declarado [...] Assim, não será falsa a declaração que o contribuinte do imposto de renda coloca como não tributável um rendimento que a autoridade entende como tributável, desde que identifique corretamente tal rendimento quanto a seus elementos fáticos. Ser tributável ou não tributável é questão que diz respeito ao significado jurídico tributário do fato rendimento, e a divergência em torno desse significado em nenhuma hipótese configura falsidade.17
Nesse contexto, havendo dúvida em relação à interpretação de norma tributária,
não está caracterizado o delito, todavia haverá crime quando o sujeito passivo utilizar
artifícios simulatórios para ocultar a realidade dos fatos, induzindo em erro a Administração
Fazendária.
Exemplificando, o agente que dolosamente introduz em sua declaração anual
elementos irreais relativos a despesas médicas e educacionais com a finalidade específica de
obter ilicitamente redução nos valores a serem pagos a título de imposto incorre no tipo penal
de supressão ou redução de tributos.
Assim, o dolo do tipo penal é específico e se caracteriza pela vontade livre e
consciente do agente em diminuir ou eliminar a tributação incidente, mediante a utilização de
artifício fraudulento ou omissão de dados relevantes à caracterização do fato gerador do
imposto devido.
3.1.2 Fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos ou omitindo operação
de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal
O art. 1º, II, da Lei n. 8.137/90 faz referência ao verbo “fraudar” (núcleo do tipo),
sendo a supressão ou redução de tributo conseqüência de tal conduta. Nesse caso, a fraude
concretiza-se pela inserção de elementos inexatos ou omissão de qualquer informação.
Em relação ao verbo fraudar, comenta, com propriedade, Nelson Hungria: “O
engano dolosamente provocado, o malicioso induzimento em erro ou aproveitamento de
preexistente erro alheio, para o fim de injusta lucupletação”.18
17 MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária, p. 336. 18 HUNGRIA, Nelson. Comentário ao código penal, v. 7, p. 165.
29
Fraudar a fiscalização tributária com a inserção de elementos inexatos é ação que
objetiva, intencionalmente, esconder a verdade fática do crédito tributário.
Assim, não há como caracterizar a ação do contribuinte como crime pelo simples
fato de ter lançado em sua escrituração receita não tributável, não obstante a Administração
Fazendária tenha entendido como tributável. Deve-se, nesse caso, perquirir sobre o caráter
volitivo de sua ação, ou seja, vontade livre e consciente do sujeito passivo em fraudar a
fiscalização tributária.
Para caracterizar inserção de elementos inexatos, é necessário que os referidos
elementos não sejam reais, objetivando, por meio de procedimentos ardilosos, burlar a
fiscalização tributária. Em relação ao tema, escreveu Antônio Corrêa:
O objetivo jurídico da criminalização é justamente trazer aos livros fiscais a credibilidade necessária quanto aos lançamentos. Os livros contábeis e fiscais devem retratar a veracidade dos fatos administrativos da atividade comercial ou industrial ou de prestação de serviços, sob pena de, em ocorrendo adulteração mediante inserção de elementos inexatos ou omissão de operações, permite a imposição das sanções de natureza administrativa e fiscal, bem como a caracterização do tipo penal.19
A escrituração incorreta não subsume, de pronto, a ocorrência do delito. Como se
exige dolo específico deve a Administração provar a intenção do agente quando de sua
escrituração. Não se pode perder de vista que a omissão efetuada deve ser capaz de suprimir
ou reduzir tributo. Da mesma forma, quem escritura com inexatidão livro não exigido por lei
não se insere na referida conduta.
No caso em que o agente insere ou omite em livro fiscal elementos inexatos
relativo à operação isenta ou não tributada, não ocasionando supressão ou redução de tributo,
não estará configurado delito e atípica será sua conduta.
19 CORRÊA, Antônio. Dos crimes contra a ordem tributária: comentários à lei n. 8.137, de 27 de dezembro de
1990, p. 105.
30
3.1.3 Falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro
documento relativo à operação tributável
Para a perfeita aplicação do tipo penal previsto no art. 1º, III, da Lei n. 8.137/90,
faz-se necessário que o contribuinte, de forma livre e consciente e com o propósito de
suprimir ou reduzir tributo, falsifique ou altere nota fiscal ou documento correspondente.
O núcleo da ação corresponde à falsidade ideológica ou material de documento
fiscal com o objetivo de esconder a verdade fática relativa a uma operação tributável. Desta
feita, caso a operação seja isenta ou não tributável, não restará configurada a conduta.
O núcleo do tipo constitui-se na conduta de deixar de satisfazer a obrigação fiscal.
Assim, para a constituição da materialidade delituosa, deve estar presente o elemento
subjetivo do delito, representado pelo dolo, ou seja, a vontade livre de iludir a Administração
Fazendária não recolhendo os tributos devidos.
De acordo com Andrade Filho, a falsidade aqui poderá ocorrer de duas formas:
A falsificação a que se refere à lei, poderá ser da espécie falsidade ideológica, caso o documento relativo à operação tributável vier a ser concebido, por vontade deliberada do agente, contendo uma declaração não verdadeira. Por outro lado, se houver alteração nas declarações contidas no documento fiscal, sucederá falsidade material, em que a intenção de fraudar ou iludir a legislação se manifesta após a confecção ou preenchimento do documento fiscal.20
A alteração de documento fiscal objetivando falsear a verdade relativa ao crédito
tributário deve conter, a exemplo da falsificação, potencialidade ofensiva capaz de traduzir
supressão ou redução de tributo. Se a alteração do documento não é relevante do ponto de
vista tributário, não há que se falar em crime da ordem tributária.
20 ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Direito penal tributário: crimes contra a ordem tributária, p. 187.
31
3.1.4 Elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber
falso ou inexato
Pelo que se observa das condutas descritas no inciso IV da Lei n. 8.137/90,
verifica-se que o legislador procurou ser o mais abrangente possível em relação às referidas
ações delitivas. Assim, abarcou tanto o sujeito passivo direto da obrigação tributária quanto
terceiros.
Relativamente ao núcleo do tipo, afirmam Costa Jünior e Denari:
Elaborar é preparar, arranjar, dispor, formar, organizar. Distribuir é dar, entregar repartir para diferentes partes. Fornecer equivale a entregar, a suprir, a título oneroso ou gratuito. Utilizar-se do documento importa em apresentá-lo como genuíno, se materialmente falsificado; ou como verídico, se ideologicamente falso.21
Importante ressaltar que o crime é de supressão ou redução de tributo, devendo o
sujeito passivo, para tanto, utilizar documentação falsa. Ademais, ainda que utilize
documentação falsa, mas esta não represente supressão ou redução de tributo, não estará
tipificada a conduta supracitada.
O mesmo não pode ser dito em relação aos comprovantes contrafeitos declarados
ineficazes para efeitos tributários, apresentados à Receita Federal. Nesse caso, incorre na
conduta descrita no inciso IV do art. 1º da Lei n. 8.137/90 o sujeito passivo que entrega a
declaração de ajuste anual e, posteriormente, os recibos contrafeitos com o objetivo de obter
vantagem indevida.
Ressalte-se, ainda, que também deve ser enquadrado na conduta descrita nesse
inciso terceiro quem elaborou, distribuiu, forneceu ou emitiu documento falso ou inexato.
21 COSTA JÚNIOR, Paulo José da; DENARI, Zelmo. Infrações tributárias e delitos fiscais, p. 221.
32
3.1.5 Negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento
equivalente, relativa à venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente
realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação
Para a perfeita aplicação do tipo penal previsto no art. 1º, V, da Lei n. 8.137/90,
faz-se necessário que o contribuinte, de forma livre e consciente, negue, deixe de fornecer ou
forneça, em desacordo com a legislação, o respectivo documento fiscal. Ressalte-se que o
crime previsto no art. 1° da Lei n. 8137/90 é material e, portanto, depende da efetiva
supressão ou redução do tributo para que se concretize.
Portanto, se há omissão de nota fiscal ou emissão em desacordo com a legislação
de matéria não sujeita a tributação, não haverá tipificado a conduta prevista nesse inciso, pois
inexiste possibilidade de supressão ou redução de tributo. Logo, só existirá o crime em tela se
a matéria for tributável.
3.1.6 Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10
(dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor
complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência,
caracteriza a infração prevista no inciso V
A norma contida no parágrafo único do art. 1º da Lei n. 8.1379/90 refere-se a um
tipo penal específico criminalizante, qual seja, o embaraço que o sujeito passivo da obrigação
ou seu representante legal, ofereça à fiscalização. A conduta meio prevista no parágrafo único
do art. 1º só é penalmente relevante se suprimir ou reduzir tributo, conforme leciona Rui
Stoco:
Tenha-se em mente, contudo, que a omissão ou falta de atendimento do contribuinte só configurará crime se essa conduta tiver por objetivo suprimir ou reduzir tributo, ou ocultar uma situação fática existente em uma contabilidade, livros e arquivos confirmatória de sonegação fiscal anterior,
33
sob pena de implantar a famigerada responsabilidade objetiva, desde há muito banida de nosso Direito Penal.22
Ressalte-se, ainda, que apesar da equiparação ao crime de desobediência, o
parágrafo confronta-se, declaradamente, com o art. 5º, LXIII, da Constituição Federal, pois ao
acusado é assegurada a não-produção de provas que possam incriminá-lo.
3.2 Condutas previstas no art. 2° da Lei n. 8.137/90
Os crimes previstos no art. 2° da Lei n. 8.137/90 são ilícitos que se realizam
independentemente do resultado. Assim, embora o tipo descreva um resultado, este,
necessariamente, não precisa ocorrer.
Divergência doutrinaria à parte, algumas condutas descritas no art. 2° da Lei n.
8.137/90 possuem caráter subsidiário em relação ao tipo penal descrito no art. 1°. Assim, para
essas condutas, a ação delituosa será praticada à luz do descumprimento doloso de obrigação
acessória, podendo ocasionar lesão ao erário e, conseqüentemente, supressão ou redução de
tributos.
3.2.1 Fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar
outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo
As condutas descritas no art. 2°, I, correspondem às ações previstas,
anteriormente, no art. 1° da Lei n. 4.729/65, relativas aos crimes de sonegação fiscal,
compreendendo, doutrinariamente, os atos executórios efetuados pelo sujeito passivo visando
atingir seu intento doloso.
Para que se configure o crime, não é necessário o resultado, todavia a ação
praticada deve ser relevante para viabilizá-lo.
22 STOCO, Rui. Crimes contra a ordem tributaria: supressão ou redução de mais de um tributo mediante
conduta única, p. 370.
34
A conduta descrita no referido tipo consiste na elaboração de declaração cujo
conteúdo não reflita a determinação legal. A omissão refere-se à não-inclusão de fatos
imponíveis no conteúdo da declaração prestada ou, ainda, a total falta de declaração devida
dos fatos ocorridos. O emprego da fraude consiste na utilização, pelo sujeito passivo, de
artifício visando simular a ocorrência de um fato inexistente, ou ocultar a existência de fato
ocorrido.
Ressalte-se que a omissão, ainda que fraudulenta, efetuada pelo sujeito passivo em
relação a fato que a Administração Fazendária conhece, não é apta a produzir dano ao erário,
razão pela qual não há como configurar a omissão como crime.
Assim, no caso de o agente confeccionar uma declaração falsa, mas que não
produza resultado (supressão ou redução do tributo), responde o sujeito passivo, tão-somente
pelo delito previsto no art. 2º, I, consumado o crime independentemente de qualquer prejuízo
efetivo para a Fazenda Pública. Pelo que se vê o resultado não constitui elemento do tipo.
Importante trazer à baila a diferenciação que faz o professor Anderson Furlan
quanto a esse caso:
Enquanto o art. 1o, inciso I, constitui delito de resultado, exigindo-se para sua configuração – em razão da omissão ou da falsidade – a efetiva supressão ou redução do tributo devido, o art. 2o, inciso I, traduz um delito de mera conduta, sendo suficiente para sua consumação a omissão ou declaração falsa com o fim de eximir-se total ou parcialmente do pagamento do tributo, não se exigindo qualquer resultado danoso.23
3.2.2 Deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social,
descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria
recolher aos cofres públicos
O crime previsto no inciso II do art. 2º da Lei n. 8.137/90 é uma hipótese legal de
apropriação indébita de tributo voltada para o substituto tributário. Pelo que se observa, a lei
faz alusão expressa ao não-pagamento do tributo “descontado ou cobrado” pelo sujeito
passivo da obrigação.
23 FURLAN, Anderson. Sanções penais tributárias, p. 33.
35
Em relação ao que seria o imposto “descontado ou cobrado”, o professor Hugo
Brito Machado discorre:
A nosso ver, só se pode considerar como tributo descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo da obrigação, aquele cujo desconto ou cobrança decorre de disposição legal expressa. Não aquele que, por circunstâncias meramente econômicas, pode estar embutido no preço de bens e serviços.24
Alguns doutrinadores têm se posicionado no sentido de que a mera ausência de
pagamento dos tributos em que não se poderia exigir outra conduta dada a impossibilidade
financeira do contribuinte, caracterizando estado de necessidade, não pode ser considerada
ilícito penal. A punição dessa conduta por meio de uma aplicação de pena privativa de
liberdade somente poderá ocorrer se o contribuinte obteve o resultado de redução ou
supressão do tributo por meio de condutas ilícitas, previstas expressamente na legislação
pátria, e se houve o dolo de produzir aquele resultado.
Ademais, assevera parte da doutrina que não pode haver, sob qualquer hipótese,
prisão por dívida, logo, a conduta prevista no inciso II do art. 2º da Lei n. 8.137/90 não tem
amparo constitucional, pois a lei não pode definir como crime situação que, a rigor, configura-
se simplesmente como uma dívida. É o que leciona Bertoluci:
Questão central é saber se o legislador pode criminalizar o inadimplemento de uma dívida tributária. De acordo com a construção garantista, a qual dentre vários postulados, sustenta a necessidade de eliminação das antinomias do sistema jurídico, isto seria incompatível. A Constituição Federal, ao estabelecer que ‘não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável da obrigação alimentícia e a do depositário infiel’, estabelece limitações ao legislador ordinário. A norma constitucional que proíbe a prisão por dívida alberga o direito à liberdade, colocando-o em patamar superior ao direito de receber um crédito.25
Em relação à ilegitimidade apontada por alguns doutrinadores relativamente ao
inciso II do art. 2º da Lei n. 8.137/90, o ilustre professor Pedro Decomain contribui,
afirmando:
24 MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária, p. 389. 25 BERTOLUCI, Marcelo Machado. A inconstitucionalidade do art 2º, II, da Lei n. 8.137/90. In: FAYET JR,
Ney (Org.). Ensaios penais em homenagem ao professor Alberto Rufino Rodrigues de Sousa, p 546.
36
O que a regra da Lei Maior proíbe é que se ameace com prisão o devedor civil, com o objetivo puro e simples de compeli-lo a pagar o que deve. Não foi, porém, o que fez o inciso II do art. 2° da Lei 8.137/90. Este em verdade considerou crime não repassar ao fisco aquilo que se cobrou de terceiro exatamente com o objetivo de destinar-se ao pagamento de um tributo. Desta sorte, o inciso em referência não padece de inconstitucionalidade, podendo se aplicado a todo e qualquer tributo cujo ônus haja sido previamente repassado a terceiro, mas que não tenha recolhido aos cofres públicos pelo contribuinte e responsável, que havia recebido ou descontado de terceiro o seu valor.26
Corroborando, o Supremo Tribunal Federal, por meio de uma decisão monocrática,
assegurou que a prisão por dívida tributária é compatível com a Constituição, reafirmando,
desta feita, a constitucionalidade do art. 2°, inciso II, da Lei n. 8.137/90:
Os ilustres impetrantes, sustentando que se reveste de dupla inconstitucionalidade ‘a [...] prisão por mero inadimplemento de obrigação tributária (prisão por dívida), de que trata o art. 2º, II, da Lei 8.137/90’ (fls. 44), argumentam que essa norma penal violaria a Carta da República nos pontos em que esta veda a prisão por dívida (CF, art. 5º, LXVII) e em que assegura a imediata aplicação de direitos e garantias individuais decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil faça parte (CF, art. 5º, §§ 1º e 2º). Postulam a concessão do writ, com a conseqüente declaração de inconstitucionalidade da regra inscrita no art. 2º, II, da Lei n. 8.137/90. Pleiteiam o deferimento de medida cautelar, em ordem a viabilizar – até final julgamento deste habeas corpus – a suspensão da execução provisória da pena imposta aos pacientes pelo Tribunal ora apontado como coator (fls. 45). Passo a apreciar o pedido. É certo que o ordenamento constitucional brasileiro, em preceito destinado especificamente ao legislador comum, proíbe a instituição de prisão civil por dívida, ressalvadas as hipóteses de infidelidade depositária e de inadimplemento de obrigação alimentar (CF, art. 5º, LXVII). Observo, no entanto, que a prisão de que trata o art. 2º, II, da Lei n. 8.137/90, longe de reduzir-se ao perfil jurídico e à noção conceitual de prisão meramente civil, qualifica-se como sanção de caráter penal resultante, quanto à sua imponibilidade, da prática de comportamento juridicamente definido como ato delituoso. [...] A circunstância de o Brasil haver aderido ao Pacto de São José da Costa
Rica – cuja posição, no plano da hierarquia das fontes jurídicas, situa-se no
mesmo nível de eficácia e autoridade das leis ordinárias internas – não
impede que o Congresso Nacional, em tema de prisão civil por dívida,
aprove legislação comum instituidora desse meio excepcional de coerção
processual destinado a compelir o devedor a executar obrigação que lhe foi
imposta pelo ordenamento positivo, nos casos expressamente autorizados
26 DECOMAIN, Pedro Roberto. Crimes contra a ordem tributária, p. 95.
37
pela própria Constituição da República. Os tratados internacionais não podem transgredir a normatividade emergente da Constituição, pois, além de não disporem de autoridade para restringir a eficácia jurídica das cláusulas constitucionais, não possuem força para conter ou para delimitar a esfera de abrangência normativa dos preceitos inscritos no texto da Lei Fundamental. Não me parece que o Estado brasileiro deva ter inibida a prerrogativa institucional de legislar sobre prisão (civil) por dívida, sob o fundamento de que o Pacto de São José da Costa Rica teria pré-excluído, em sede convencional, ao menos no que se refere à hipótese de infidelidade depositária, a possibilidade de disciplinação desse mesmo tema pelo Congresso Nacional. É que não se pode perder de perspectiva a relevantíssima circunstância de que existe expressa autorização inscrita no texto da Constituição brasileira, permitindo ao legislador comum a instituição da prisão civil por dívida, ainda que em hipóteses revestidas de absoluta excepcionalidade. [...] A Lei Fundamental, ao estabelecer as bases do regime que define a liberdade individual, consagra, em tema de prisão civil por dívida, uma tradição republicana, que, iniciada pela Constituição de 1934 (art. 113, n. 30), tem sido observada, com a só exceção da Carta de 1937, pelos sucessivos documentos constitucionais brasileiros (CF/46, art. 141, § 32; CF/67, art. 150, § 17; CF/69, art. 153, § 17). A Constituição de 1988, perfilhando essa mesma orientação, dispõe, em seu art. 5º, LXVII, que ‘Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel’. Vê-se, portanto, que a norma inscrita no art. 5º, LXVII, da Carta Política não impede que delitos contra a ordem tributária sejam punidos com a imposição de pena criminal. [...] (HC n. 77.631-SC, Rel. Min. José Celso de Mello Filho, 3 de agosto de 1998. Diário da Justiça da União: Brasília, DF, 19 ago. 1998, p. 35. grifos nossos)
As premissas esposadas pelo ilustre ministro conduzem, seguramente, à conclusão
de que o art. 2°, inciso II, da Lei n. 8.137/90 é compatível com a Constituição Federal e não se
encontra qualquer laivo de lesividade.
O não-pagamento de tributos após a data de vencimento é um ato de infração de
norma administrativa sem persecução criminal, pois se trata de mera inadimplência,
conduzindo, tão-somente, à aplicação de multa por mora. Todavia, na hipótese de o
contribuinte deixar de repassar à Fazenda Pública valores descontados ou retidos de terceiros,
incorre na prática delituosa de apropriação indébita.
A realização da conduta típica relativa ao crime de apropriação indébita não
demanda o dolo específico, ou seja, a vontade livre e consciente de apropriar-se do bem e de
não o restituí-lo. Desta feita, a simples retenção do tributo e o não-repassasse aos cofres
públicos configuram-se como crime, razão pela qual o dolo é genérico. Ademais, trata-se de
um crime de mera conduta, não prevendo qualquer resultado finalístico, pois para sua
38
constituição não é necessário que ocorra animus rem sibe habendi, elemento volitivo dirigido
ao resultado.
Não se pode perder de vista que para a caracterização da autoria não basta apenas
que o agente seja diretor ou sócio da empresa; é necessário o comando da ação, a ordem ou a
participação dele no fato tido como crime.
Por ser conduta omissiva dolosa, deve estar presente o elemento subjetivo especial
de não recolher aos cofres a quantia que lhe foi confiada pelo contribuinte de fato, com base
em lei. O mero atraso no recolhimento, desacompanhado da intenção de sonegar, não
caracterizará o delito.27
3.2.3 Exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer
percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição
como incentivo fiscal
O inciso III da Lei n. 8.137/90 foi elaborado sem uma boa técnica legislativa,
razão pela qual existe certa dificuldade em interpretá-lo e aplicá-lo. Além disso, o mais
razoável seria que a referida conduta fosse enquadrada no art. 3º da Lei n. 8.1373/90, por
remeter a situação que, na maioria das vezes, poderia ser cometida por servidor público.
O tipo incrimina condutas de desvios relativas a incentivo fiscal deduzido do
imposto de renda ou contribuição em beneficio do operador (intermediário) ou do próprio
contribuinte. Ressalte-se, ainda, que o desvio pode ser total ou parcial.
As condutas do inciso III da Lei n. 8.137/90 possuem vários núcleos, como
“exigir”, “pagar” e “receber”. O núcleo exigir é formal, de consumação antecipada, não
admitindo, portanto, tentativa. Todavia, os núcleos “pagar” e “receber” são materiais e
necessitam do efetivo pagamento ou recebimento para que se consumem.
27 Cf. COSTA JÚNIOR, Paulo José da; DENARI, Zelmo. Infrações tributárias e delitos fiscais. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 1996.
39
3.2.4 Deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou
parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento
A conduta dolosa possui dois núcleos – “deixar de aplicar” e “aplicar em
desacordo” –, traduzindo ações omissivas e comissivas contrárias à norma, razão pela qual a
negligência representa uma situação atípica.
Relativamente ao delito omissivo de “deixar de aplicar”, o tipo penal incrimina a
conduta daquele que não investe o incentivo fiscal determinado pela lei. Em relação ao delito
comissivo “aplicar em desacordo” o tipo penal incrimina conduta relativa à aplicação
contrária ao estatuído pela norma.
Por seu caráter formal, a conduta omissiva “deixar de aplicar” não admite
tentativa, todavia o núcleo “aplicar em desacordo”, por representar delito de natureza
material, admite a forma tentada.
Assim, caso o agente falsifique uma declaração de forma a simular a aplicação do
incentivo, estará incorrendo na conduta prevista no art. 2°, I (dolo específico). Todavia, se
houver emprego de documento falso, age de acordo com art. 1°, IV, da Lei n. 8.137/90. E, por
fim, havendo a efetiva supressão ou redução de tributo, haverá infração ao disposto no art. 1º,
I, da Lei n. 8.137/90.
Segundo Antonio Correa, os incentivos fiscais são destinados ao desenvolvimento
de determinada região, e a inclusão deles no rol dos crimes contra a ordem tributária justifica-
se:
Como o Estado é direcionador das atividades, mas não empregador, foi a maneira encontrada esta de, através da transferência de parcela de impostos – como opção dos devedores, que se agregam aos grupos, e, mais ainda, dos grandes pagadores de tributos que poderiam beneficiar-se criando novas empresas –, permitindo que se atingisse o esperado.28
28 CORREA, Antonio. Dos crimes contra a ordem tributária, p. 78.
40
3.2.5 Utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito
passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é,
por lei, fornecida à Fazenda Pública
A conduta possui dois núcleos: “utilizar” e “divulgar”. Assim, relativamente à
conduta “utilizar”, deve o agente efetivamente fazer uso ou empregar o software. Contudo,
em relação à conduta “divulgar”, deve ser necessário sua disseminação a outras pessoas que,
obviamente, devem fazer o uso. Assim, caso ocorra a supressão ou a redução do tributo, deve
a conduta ser enquadrada no art. 1º da Lei n. 8.137/90, pois se trata de um delito subsidiário.
Por ser um ilícito formal, não é necessário que o resultado efetivamente ocorra, não se
admitindo, desta feita, a forma tentada.
Cumpre ressaltar que a conduta exige dolo específico, assim sendo, a utilização ou
divulgação do software efetuada pelo agente, incapaz de produzir dano ao erário, não constitui
fato típico, passível de ser punido pela norma.
Além dos delitos descritos nos arts. 1º e 2º, também prevê a Lei n. 8.137/90
condutas funcionais contra a ordem tributária, na forma do art. 3º. Os delitos descritos no
referido artigo são de natureza formal, exaurindo-se com a simples conduta,
independentemente do efetivo resultado final. Com efeito, o legislador considerou as condutas
funcionais como moral e não material, não sendo necessário atingir seu intento doloso.
Em relação à propositura da ação penal por crimes contra a ordem tributária, a
ação é pública incondicionada, na forma manifestada por meio da Súmula 609 do Supremo
Tribunal Federal, editada quando da vigência Lei n. 4.729/64.
41
4 CONDIÇÃO OBJETIVA DE PUNIBILIDADE
A Lei n. 8.137/90 definiu os crimes contra a ordem tributária, contudo, para sua
configuração é necessário o prévio exaurimento da via administrativa, ou seja, para a
configuração do tipo penal todos os elementos devem estar comprovados de forma a
confirmar a efetiva ocorrência do delito. Como o bem jurídico protegido é a ordem tributária e
sua violação depende da supressão ou redução de tributo, deve a autoridade administrativa
manifestar, de forma conclusiva e definitiva, sobre a ocorrência ou não desta violação.
Desta feita, enquanto o crédito tributário não se constituir definitivamente em sede
administrativa, não se terá por caracterizado, no plano da tipicidade penal, o crime contra a
ordem tributária, tal como previsto no art. 1º da Lei n. 8.137/90.
Destarte, não havendo sido reconhecida, ainda, a exigibilidade do crédito
tributário, bem como determinado seu valor, a conduta é inteiramente desprovida de
tipicidade penal, logo, o comportamento do agente será penalmente irrelevante e
absolutamente atípico. Vale dizer que a Lei n. 8.137/90 criou tipos penais de resultado
caracterizando como condição objetiva de punibilidade a existência do lançamento tributário
em definitivo (efetiva supressão ou redução do tributo), ou seja, sem real lesão à Fazenda
Pública, o crime não se consuma, configurando, com isso, flagrante falta de justa causa para
perpetrar a ação penal.
O prévio exaurimento da via administrativa como determinante à punibilidade se
encontra pacificado no Supremo Tribunal Federal consoante ao consistente voto proferido
pelo Ministro Sepúlveda Pertence em julgamento de habeas corpus a seguir transcrito:
I. Crime material contra a ordem tributária (L. 8137/90, art. 1º): lançamento do tributo pendente de decisão definitiva do processo administrativo: falta de justa causa para a ação penal, suspenso, porém, o curso da prescrição enquanto obstada a sua propositura pela falta do lançamento definitivo. 1. Embora não condicionada a denúncia à representação da autoridade fiscal (ADInMC 1571), falta justa causa para a ação penal pela prática do crime
tipificado no art. 1º da L. 8137/90 – que é material ou de resultado,
enquanto não haja decisão definitiva do processo administrativo de
lançamento, quer se considere o lançamento definitivo uma condição
objetiva de punibilidade ou um elemento normativo de tipo. 2. Por outro lado, admitida por lei a extinção da punibilidade do crime pela satisfação do tributo devido, antes do recebimento da denúncia (L. 9249/95, art. 34), princípios e garantias constitucionais eminentes não permitem que, pela antecipada propositura da ação penal, se subtraia do cidadão os meios que a
42
lei mesma lhe propicia para questionar, perante o Fisco, a exatidão do lançamento provisório, ao qual se devesse submeter para fugir ao estigma e às agruras de toda sorte do processo criminal. 3. No entanto, enquanto dure,
por iniciativa do contribuinte, o processo administrativo suspende o curso
da prescrição da ação penal por crime contra a ordem tributária que
dependa do lançamento definitivo. (STF, HC n. 81611-DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, j. 10/12/2003 DJ 13/5/2005, grifos nossos)
A condição objetiva de punibilidade decorre, basicamente, do princípio da
legalidade, ou seja, o crédito tributário deve estar previsto em lei para ser exigido. Assim
sendo, o Ministério Público deve aguardar o pronunciamento da Administração Tributária
para propor a ação penal, de forma a preservar a autonomia das instâncias. Caso não seja
observado o referido princípio estar-se-ia atribuindo o nefasto instituto da verdade sabida
dentro de uma estrutura democrática de direito. Inconcebível ante a Constituição de 1988.
Nos crimes tributários o prévio exaurimento da via administrativa é condição
objetiva de punibilidade e não se confunde com a consumação do crime material, haja vista
que, somente após a decisão final do procedimento administrativo fiscal é que será
considerado lançado, definitivamente, o crédito tributário.
O entendimento jurisprudencial é no sentido de que os fatos apurados, enquanto
não definitivamente julgados, encontram-se na fase pré-processual sem, contudo, ser possível
proceder à acusação formal contra o agente; portanto, seria prematura a imputação de crime
contra a ordem tributária. Destarte, é necessário aguardar a liquidação do processo
administrativo, a fim de se ter certeza quanto ao crime de sonegação, pois o procedimento
administrativo está sujeito a toda sorte de contestações.
Ademais, nos termos do art. 142 do Código Tributário Nacional, a obrigação
tributária somente se torna exigível pela constituição definitiva do lançamento. Veja o que
dispõe o artigo referenciado:
Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.
43
Pelo que se depreende da leitura do artigo, o direito à cobrança do crédito
tributário só é possível com a constituição definitiva da exigência, momento em que o
lançamento poderá ser efetivamente cobrado do sujeito passivo.
Não se pode perder de vista que o prévio exaurimento da via administrativa é
condição objetiva de punibilidade em relação aos crimes materiais contra a ordem tributária.
Todavia, relativamente aos crimes formais, de consumação instantânea, como o tipo legal não
exige a concretização do resultado, para que haja consumação a exigência de exaurimento da
via administrativa não se justifica.
Ressalte-se, ainda, que o prévio esgotamento da instância administrativa deve ser
estendido ao crime previdenciário conforme entende o Supremo Tribunal Federal:
APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA – CRIME – ESPÉCIE. A apropriação indébita disciplinada no art. 168-A do Código Penal consubstancia crime omissivo material e não simplesmente formal. INQUÉRITO – SONEGAÇÃO FISCAL – PROCESSO ADMINISTRATIVO. Estando em curso processo administrativo mediante o qual questionada a exigibilidade do tributo, ficam afastadas a persecução criminal e – ante o princípio da não contradição, o princípio da razão suficiente – a manutenção de inquérito, ainda que sobrestado. (STF, Agravo Regimental no Inquérito n. 2.537)
Findo o processo administrativo e havendo a confirmação dos ilícitos tributários, a
representação fiscal para fins penais deverá ser encaminhada ao Ministério Público, que
poderá oferecer a denúncia ao juízo competente, nos termos do art. 83 da Lei n. 9.430/96:
Art. 83. A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária definidos nos arts. 1º e 2º da Lei n. 8.137, de 27 de dezembro de 1990, será encaminhada ao Ministério Público após proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente.
Concluindo, os limites impostos à condição de procedibilidade da ação penal
condicionam a atuação do Ministério Público ao pronunciamento definitivo da Administração
Fazendária, pois entender de modo diverso seria admitir o início da ação penal sem a
constituição definitiva do crédito tributário, ou seja, sem ofender concretamente o bem
jurídico proibido.
44
5 RESPONSABILIDADE PELO CRIME DA ORDEM TRIBUTÁRIA
A responsabilidade refere-se à capacidade de alguém estar sujeito a uma medida
repressiva, ou seja, a uma sanção. Por seu turno a sanção é a conseqüência da transgressão da
norma. Poder-se-ia dividi-la, basicamente, em duas: a responsabilidade civil e a
responsabilidade penal.
Em relação à responsabilidade civil, escreveu o professor Hugo de Brito
Machado:
A responsabilidade civil é bem mais ampla do que a responsabilidade penal. Primeiro porque abrange a responsabilidade objetiva, em certos casos admitida por nosso ordenamento jurídico. Depois, porque, mesmo no que concerne a responsabilidade subjetiva, tem alcance bem mais amplo do que a responsabilidade penal, na medida em que o conceito de culpa, no Direito Civil, é bem mais abrangente do que no Direito Penal.29
A responsabilidade objetiva decorre da simples causalidade material. Assim, as
sanções administrativas tributárias são representadas por decisões constituídas por uma forma
de “ação objetiva” em que seu núcleo central é considerado plenamente justificado pela
finalidade que levou ao cumprimento ou não da obrigação. Contudo, relativamente às sanções
penais, é imperioso identificar o caráter volitivo presente na ação, com vista a imputar-lhe,
subjetivamente, responsabilidade por sua ação ou omissão.
Com efeito, nas sanções administrativas não tem sentido perquirir sobre a
intenção do agente no momento em que contraria norma previamente constituída, pelo
simples fato de que sua ação ocasionou uma violação ao mandamento administrativo. Nas
sanções administrativas tributárias, a responsabilidade pela infração independe da vontade do
agente, conforme disposto no art. 136 do Código Tributário Nacional, in verbis:
Art. 136. Salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato.
Dessa forma, o agente poderá ser responsabilizado objetivamente pela infração
administrativa sem, contudo, dar causa a mesma.
29 MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária, p. 75.
45
Discorrendo sobre os efeitos das sanções administrativas, o professor Fernando
Facury Scaff ensina:
A ‘responsabilidade’ pelo não cumprimento da obrigação tributária é objetiva. Não se perquire o motivo pelo qual a obrigação não foi cumprida. Apenas se constata o vínculo de causa e efeito relativo ao seu descumprimento. E, daí, o Estado se habilita a receber uma indenização face a tal infração. A conseqüência do não-pagamento (obrigação de dar, principal) consiste na cobrança de certo valor a título de penalidade pelo atraso. Daí porque o não pagamento do tributo gera a obrigação de pagá-lo acrescido de multa de mora, com a qual se pretende indenizar o Estado pelo inadimplemento. [...] O mesmo ocorre no descumprimento da obrigação de fazer ou não-fazer, acessória, uma vez que sua função é a de permitir a correta apuração da obrigação principal, gerando nova obrigação de pagar certo valor a título de multa, além do infrator ser obrigado a fazer o descumprido, se factível.30
Assim, não basta simplesmente alegar desconhecimento da norma nem tão-pouco
a intenção lícita do agente como forma de exclusão de sanção. Com propriedade, leciona o
professor Sacha Calmon:
[...] realmente, em matéria de ilícitos administrativos fiscais não tem cabimento se indagar sobre a intenção do agente (responsabilidade subjetiva), sob pena de se admitir o erro de direito como causa excludente da sanção, permitir a ausência de responsabilidade da pessoa jurídica, acarretar a impossibilidade de se transmitir as multas (sub-rogação passiva das penalidades) e embaraçar de sobremaneira a ação fiscal do Estado contra os sonegadores.31
O ilícito penal independe do ilícito fiscal, ao passo que as esferas administrativa e
judiciária são autônomas. Sobre esta questão, assegura Costa Júnior:
O processo criminal não se confunde com o procedimento fiscal administrativo, sendo coisas distintas. Da mesma forma, o ilícito penal independe do ilícito fiscal. Trata-se de duas esferas autônomas: a administrativa e a judiciária. Ao lado do ilícito penal coloca-se o ilícito administrativo, que não dispõe de suficiente gravidade para ser erigido a ilícito penal. A diferença entre ambos é uma diferença tão-somente de grau, e não ontológica como se pode pensar. A falta disciplinar, nesses termos,
30 SCAFF, Fernando Facury. Infrações tributárias e infrações penais. Disponível em:
<www.ufpa.br/posdireito.html>. Acesso em: 2 set. 2007. 31 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário, p. 633-634.
46
representa um minus com respeito ao crime, e a pena criminal um plus com relação à sanção disciplinar.32
Em relação às sanções penais tributárias, deve-se investigar a intenção do agente
em face do resultado, de forma a identificar e individualizar a conduta comissiva ou omissiva
para a imposição de responsabilidade criminal por infringência ao ordenamento penal
tributário. A individualização da pena está inserida no princípio fundamental de que a
responsabilidade é pessoal, na forma do art. 137 do CTN, in verbis:
Art. 137. A responsabilidade é pessoal ao agente: I – quanto às infrações conceituadas por lei como crimes ou contravenções, salvo quando praticadas no exercício regular de administração, mandato, função, cargo ou emprego, ou no cumprimento de ordem expressa emitida por quem de direito; […].33
A responsabilidade pessoal do agente decorre da adoção, pelo Código Penal
Brasileiro, do princípio da “responsabilidade subjetiva”, sendo necessário perquirir sobre a
intenção do agente na prática delituosa configurada como crime. Nesse sentido, para apuração
da sanção penal torna-se necessária a comprovação do elemento subjetivo do tipo, ou seja,
dolo ou culpa, de forma a tornar inquestionável a responsabilidade pela conduta.
Com efeito, a culpabilidade constitui fator determinante da ação no sentido de que
nullum crimen sine culpa e nulla poena sine culpa, ou seja, é nulo crime sem culpa e nula
pena sem culpa. Este postulado decorre das garantias individuais previstas como forma de
controle ao poder punitivo estatal, relativo à tutela da liberdade e da dignidade da pessoa
humana. Essa sabedoria jurídica nasce das garantias constitucionais positivadas referenciando
o justo processo da lei ou due process of law.
Em relação à culpabilidade, esclarece o professor Anderson Furlan:
Culpabilidade significa juízo de censura, de reprovação, que recai sobre a conduta pessoal do agente. Em que pese o Código Penal ter adotado a teoria unitária do crime, pela qual duas pessoas, agindo em concurso, devem responder pelo mesmo tipo penal, pode-se concluir, dependendo da hipótese, ser a conduta de uma delas relativamente mais censurável, motivo pelo qual deverá ser punida mais severamente.34
32 COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Direito penal: curso completo, p. 679. 33 Grifos nossos. 34 FURLAN, Anderson. Sanções penais tributárias, p. 63.
47
A culpabilidade exprime o resultado de uma censura ao agente, porque seu
comportamento externo é a revelação de sua vontade pessoal frente à coletiva, em decorrência
de sua ação humana eivada de dolo ou culpa.
Para Régis Prado,35 “costuma-se incluir no postulado da culpabilidade em sentido
amplo o princípio da responsabilidade penal subjetiva ou da imputação subjetiva como parte
de seu conteúdo material em nível de pressuposto da pena”, o que significa, em outras
palavras, a impossibilidade de responsabilização penal por uma conduta em que esteja ausente
o dolo ou a culpa.
Nesse sentido, o simples ingresso formal de quem não exerça função gerencial em
determinada sociedade não pode ser considerado suficiente para fundamentar qualquer juízo
de culpabilidade penal. Com efeito, a condição de quotista não poderá ser invocada para a
determinação do comportamento típico e muito menos vinculá-lo ao resultado delituoso se
não estiver presente o elemento subjetivo do tipo. O fato de constar no contrato social como
sócio-gerente não constitui elemento suficiente para atribuir-lhe responsabilidade pela
regência da pessoa jurídica.
Em recente decisão, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que a
responsabilização penal deve recair em quem detém o efetivo poder de decisão na sociedade,
conforme ementa reproduzida, in verbis:
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIME
TIPIFICADO NO ART. 95, ALÍNEA ‘D’, DA LEI N. 8.212/91. TRANCAMENTO DA
AÇÃO PENAL. INÉPCIA DA DENÚNCIA. INOCORRÊNCIA. CRIME SOCIETÁRIO. POSSIBILIDADE DE DENÚNCIA GENÉRICA, DESDE QUE ATENDA, COMO NA
HIPÓTESE, OS REQUISITOS DO ART. 41 DO CPP. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA
NÃO EVIDENCIADA DE PLANO. ANÁLISE SOBRE A MATERIALIDADE DOS
DELITOS QUE NÃO PODE SER FEITA NA VIA ELEITA. PRECEDENTES DO STJ. 1. A denúncia descreve, de forma satisfatória e objetiva, os elementos necessários à instauração da ação penal, em atenção ao que dispõe o art. 41 do Código de Processo Penal. 2. Nos crimes societários é dispensável a descrição minuciosa e individualizada da conduta de cada acusado, bastando, para tanto, que ela narre a conduta delituosa de forma a possibilitar o exercício da ampla defesa. 3. Não afasta a justa causa para a ação penal o simples fato de não possuírem os acusados poder de gerência no contrato social da empresa, pois, na hipótese, podem ser responsáveis pela prática do
crime do art. 95, alínea ‘d’, da Lei n.º 8.212/91, todos os que detém efetivo
poder de decisão na sociedade e não, somente, o sócio-gerente determinado
35 LEITE, Nelson Ferreira. O conteúdo jurídico da responsabilidade penal. Revista da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, v. LIX, p. 281-297.
48
no contrato social. 4. Precedentes do STJ. 5. Recurso desprovido. (STJ, Processo RHC n. 16173/SP – Recurso Ordinário em Habeas Corpus n. 2004/0076653-4, Rel. Min. Laurita Vaz, 5ª Turma, j. 2/2/2006, DJ 20/3/2006, p. 304, grifo nosso)
Corroborando, o ministro Celso de Mello, em decisão sobre matéria correlata,
declarou:
[...] a circunstância objetiva de alguém meramente ostentar a condição de sócio de uma empresa não se revela suficiente para autorizar qualquer presunção de culpa e, menos ainda, para justificar, como efeito derivado dessa particular qualificação formal, a decretação de uma condenação penal. (STJ, HC n. 84.436-7-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, STF/DJU, j. 5/9/2006, RTJ 163/268-269)
Assim, caso não haja base empírica referente à conduta, não há viabilidade para
futura persecução criminal. Os elementos de convicção deverão fundamentar-se em juízo
positivo sobre a responsabilidade penal e pessoal do agente, pela ação delituosa cometida, e,
não havendo provas que demonstrem a conduta finalística dirigida à realização do tipo penal,
não há como lhe imputar responsabilidade.
Na mesma linha normativa, a Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, em seu art.
75, dispôs sobre a proteção do consumidor, determinando a responsabilização a quem der
causa ao crime, in verbis:
Art. 75. Quem, de qualquer forma, concorrer para os crimes referidos neste código, incide as penas a esses cominadas na medida de sua culpabilidade, bem como o diretor, administador ou gerente da pessoa jurídica que promover permitir ou por qualquer modo aprovar o fornecimento, oferta, exposição à venda ou manutenção em depósito de produtos ou a oferta e prestação de serviços nas condições por ele proibidas.
A conduta pessoal do agente é punida de acordo com sua culpabilidade, devendo
o elemento subjetivo estar presente para apuração da responsabilidade em relação à
participação no delito.
Com efeito, a responsabilização penal só pode ser imputada ao agente que
participou da ação diante de uma conduta que esteja presente pelo menos um dos elementos
valorativos de dolo ou culpa. De acordo com o Código Penal, na conduta dolosa o agente quer
49
assumir ou assume o risco de produzir o resultado.36 Em relação à ação culposa, o agente
produz o resultado por negligência, imprudência ou imperícia.37
Tratando-se de crimes contra a ordem tributária, revela-se incabível eventual
imputação em sua modalidade culposa, uma vez que imprescinde na análise valorativa exigida
na tipificação do crime culposo a demonstração da desobediência ao dever de negligência,
imprudência ou imperícia relativa a qualquer comportamento do agente, pois nessa
modalidade o autor da infração ou o sujeito passivo quer o resultado ou assume o risco de
produzi-lo.
Corroborando, o art. 11 da Lei n. 8.137, de 27 de dezembro de 1990, declara o
princípio da culpabilidade aplicada às sanções penais:
Art. 11. Quem, de qualquer modo, inclusive por meio de pessoa jurídica, concorre para os crimes definidos nesta lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida de sua culpabilidade.
O Código Penal brasileiro reconhece a teoria finalista da ação traduzindo
postulados do professor Welzel,38 que em 1939 introduziu a idéia da teoria em estudo no
concurso de pessoas, adotando como autor aquele que tem o controle final do fato. A teoria
finalista da ação foi sistematizada e aplicada metodicamente aos problemas criminais por
Welzel. Para o autor, os seres humanos são entes dotados de razão e vontade; tudo o que
fazem é fruto de um livre impulso racional e volitivo. A vontade é a força motriz de toda ação
ou omissão humana.
Discorrendo sobre o conceito de finalidade na ação, Welzel descreve:
A ação humana é o exercício da atividade final. A ação é, portanto, um suceder ‘final’, e não somente causal. A ‘finalidade’ ou o caráter finalista da ação baseia-se em que o homem, graças ao seu saber causal, pode prever, dentro de certos limites, as conseqüências possíveis de sua atividade, propondo, dessa forma, fins diversos no dirigir de sua atividade, conforme seus planos para a consecução de determinados fins. Em virtude de seu saber causal prévio pode dirigir os distintos atos de sua atividade no sentido de produzir determinados efeitos. A atividade final é um executar orientado,
36 “Art. 18. Diz-se o crime: Crime doloso I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de
produzi-lo”. 37 “Art. 18. Diz-se o crime: II – culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência
ou imperícia.” 38 Hans Welzer foi professor titular de filosofia do Direito e de Direito Penal na Universidade de Bonn, na
Alemanha, e criador de um novo sistema jurídico-penal: “A doutrina da ação finalista”, um dos mais influentes dogmáticos do Direito Penal do século XX.
50
consciente de um fim, ao contrário da ação causal que não se encontra orientada dessa maneira, e sim como uma resultante casual de componentes causais existentes em cada caso. Por isso a finalidade é – graficamente – ‘vidente’, e a causalidade ‘cega’.39
Dessa forma, Welzel contribui para a formação do conceito de ação final no qual
o agente poderia prever, em certos limites possíveis e imaginários, a ação tomando decisões
que represente menores conseqüências ante ao ordenamento penal.
Na concepção determinante da vontade, a ação humana é sempre uma
atividade dirigida a um resultado. Essa vontade é determinada por motivos próprios e
conscientes, conforme ensina Tobias Barreto: “A vontade seria uma conquista, um resultado
da evolução humana e social, mas seria livre, pois os motivos não a determinam
mecanicamente. Seria uma vontade sujeita às leis naturais, mas um princípio seletor de
motivos”.40
Dessa forma, o autor é àquele que detém o domínio do fato, circunstâncias e
autonomia para decidir o desenvolvimento da ação. Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique
Pierangeli declaram com propriedade: “Possui o domínio do fato quem detém em suas mãos o
curso, o ‘se’ e o ‘como’ do fato, podendo decidir preponderantemente a seu respeito; dito
mais brevemente, o que tem o poder de decisão sobre a configuração central do fato.”41
Com efeito, para a imputação de responsabilidade nos crimes de supressão ou
redução de tributos, torna-se necessário a identificação de quem dolosamente concorreu para a
prática criminosa possuindo as circunstâncias e o poder de decisão sobre ação, seja ele o
administrador, seja o sócio-gerente, o diretor ou o próprio contador. Em relação à matéria,
escreveu o professor Fernando Capez:
Não importa se o agente pratica ou não o verbo descrito no tipo legal, pois o que a lei exige é o controle sobre todos os atos, desde o início da execução até a produção do resultado. Por esta razão, o mandante, embora não realize o núcleo da ação típica, deve ser considerado autor, uma vez que detém o controle final do fato até a sua consumação.42
Para imputar responsabilidade ao autor do fato típico e antijurídico nos crimes
contra a ordem tributária, não se faz necessária a ação direta do dirigente da sociedade na
39 WELZEL, Hans. Derecho penal alemán: parte general, p. 99. 40 BARRETTO, Tobias. Obras completas: estudos de direito II, p. 272. 41 ZAFFORONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, p. 668. 42 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral, v. 1, 317-318.
51
confecção de documento fiscal fraudulento, mas que ele possua conhecimento e controle do
evento.
Para J. Wessels, “autor é quem, como figura central do acontecimento, possui o
domínio do fato (dirigido planificadamente ou de forma co-configurada) e pode, assim, deter
ou deixar correr, segundo a sua vontade, a realização do tipo”.43
Como contribuição à teoria, o professor Cézar Roberto Bitencourt define assim o
termo:
Autor, segundo a teoria do domínio do fato é quem tem o poder de decisão sobre a realização do fato. Essa teoria tem as seguintes conseqüências: 1ª) a realização pessoal e plenamente responsável de todos os elementos do tipo fundamentam sempre a autoria; 2ª) é autor quem executa o fato utilizando a outrem como instrumento (autoria mediata); 3ª) é autor o co-autor que realiza uma parte necessária do plano global (domínio funcional do fato), embora não seja um ato típico, desde que integre a resolução delitiva comum. Co-autoria é a própria autoria. É desnecessário um acordo prévio, como exigia a antiga doutrina, bastando à consciência de cooperar na ação comum. É a atuação consciente de estar contribuindo na realização comum de uma infração penal.44
Em relação à teoria sobre o domínio do fato, decidiu o Tribunal Regional da 4a
Região Fiscal:
A responsabilidade penal é sempre subjetiva. Os crimes praticados na pessoa jurídica ou por meio dessa somente podem ser punidos através da apuração da responsabilidade individual dos seus mandatários, desde que comprovada a sua participação nos fatos. A responsabilidade penal dos administradores pode resultar tanto de haverem praticado o fato delituoso quanto de haverem permitido que ele ocorresse, se tinham a obrigação e a possibilidade concreta de evitá-lo – é dizer, se tinham domínio do fato, como acontece, de regra, nas empresas familiares em que todos os sócios detêm amplos poderes de administração. (TRF, 4ª Região, ACR 1998.04.01094569-9/RS, 1ª Turma, Rel. Des. Fed. Amir Sarti, DJU de 9/8/2000, p. 241)
Nesse sentido, torna-se imprescindível, para responsabilização penal, verificar se
efetivamente o agente possuía o “domínio do fato” no intento criminoso, de forma a imputar-
lhe a referida responsabilidade.
43 WESSLES, Johannes. Direito penal, p. 119. 44 BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal, p. 382-384.
52
6 CONCURSOS
De acordo com a especificidade das ações infringidas nos crimes contra a ordem
tributária, podem ocorrer dúvidas reais quanto ao enquadramento, classificação e autoria de
certas condutas. Por exemplo, o contribuinte que, por meio de informações ideologicamente
falsas em sua declaração, alcança o crime de supressão ou redução do tributo.
Sua conduta deve ser enquadrada à luz do art. 1° da Lei n. 8.1379/90, supressão
ou redução de tributo, ou estaria ele cometendo o crime previsto no art. 2º, inciso I, da Lei n.
8.137/90, relativo à falsidade?
Para responder a essa questão é imperioso socorrer-se aos ensinamentos
doutrinários relativos ao estudo dos concursos. Desta feita, o concurso de crimes (concursus
delictorum), o concurso de pessoas (concursus delinquentium), o conflito aparente de normas
(concursus normarum) e o crime continuado constituem importante instrumento de estudo
aplicado aos crimes contra a ordem tributária.
6.1 Concurso aparente de normas
Pelo que se extrai do exemplo citado, existem condutas que poderiam facilmente
configurar outros tipos penais, ou um concurso aparente de normas que poderia estar
incidindo sobre o mesmo fato.
No concurso aparente de normas, há uma conduta que se encaixa em mais de um
tipo penal. Em razão disso, em homenagem ao princípio do non bis in idem – impossibilidade
de dupla punição pelo mesmo fato –, só uma norma deverá incidir.
Assim, de acordo com o entendimento doutrinário, deverão ser aplicados os
critérios da especialidade, da subsidiariedade e da absorção para a solução do problema,
arrolados a seguir:
• Especialidade – Por meio desse critério, prevalece a norma especial afastando,
no particular, a norma geral: lex specialis derogat legi generali. A norma especial possui
todos os elementos da norma geral e ainda um plus específico que a diferencia da norma
53
geral. Assim, deve-se efetuar a comparação entre as normas penais, e não entre o fato
propriamente dito, para a perfeita tipificação penal.
• Subsidiariedade – Pelo critério da subsidiariedade a norma principal afasta a
norma subsidiária. A subsidiariedade pode ser expressa, quando enunciada em lei, ou tácita,
quando se faz um comparativo entre as figuras típicas sem que as normas as enunciem. Cita-
se, por exemplo, o crime de estupro e o de constrangimento ilegal. Nesse caso, o tipo
principal prevalece, pois a conduta atinge o bem jurídico de forma mais grave.
• Absorção ou consunção – Lex consumens derogat legi consumptuae. Ocorre
absorção quando, para a realização de um tipo, o agente necessite passar por uma conduta que
também seja típica. Por exemplo, se alguém pretende roubar outrem, terá de empregar ou
violência ou grave ameaça; o crime maior absorve o menor, ou seja, o crime-fim absorve o
crime meio.
Divergências doutrinárias à parte, no exemplo citado, qual seja, o contribuinte
que, por meio de informações ideologicamente falsas em sua declaração, alcança o crime de
supressão ou redução do tributo. A conduta deve ser enquadrada à luz do art. 1° da Lei n.
8.1379/90, supressão ou redução de tributo, ou estaria ele a cometer crime previsto no art. 2º,
inciso I, da Lei n. 8.137/90, relativo à falsidade?
Relativamente ao exemplo citado, correto seria a utilização do critério da absorção
ou consunção, pois a supressão ou a redução do tributo deve absorver o de falsidade.
Em relação ao critério da absorção, leciona Moura Teles:
Se Marcos falsifica a cédula de identidade de Geraldo para, exclusivamente, com ela apresenta-se ao notário público e vender a única propriedade da vítima a terceira pessoa, obtendo, com isso, vantagem ilícita, terá realizado o tipo do art. 297, do Código Penal, ‘falsifica, no todo ou em parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro’, em seguida o do art. 304, do Código Penal, ‘fazer uso de qualquer dos papéis falsificados ou alterados, a que se referem os arts. 297 a 302’, e finalmente o tipo do art. 171, estelionato, Código Penal: ‘Obter para si ou para ou para outrem, vantagem elícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém me erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento. Responderá pelos três crimes? Obvio que não, pois a falsificação e o uso do documento falso foram meios necessários para a realização do tipo-fim, o do estelionato que, por isso, absorve os demais.45
45 TELES, Ney Moura. Direito penal, p. 227-228.
54
O Supremo Tribunal Federal se manifestou no sentido de que o crime contra a
ordem tributária absorve os de falsidade:
Crimes contra a ordem tributária, quadrilha e falsidade ideológica. 1. O aperfeiçoamento do delito de quadrilha ou bando não depende da prática ou da punibilidade dos crimes a cuja comissão se destinava a associação criminosa. 2. Por isso, a suspensão da punibilidade de crimes contra a ordem tributária imputados a membros da associação para delinqüir, por força da adesão ao REFIS II (L. 10684/03), não se estende ao de quadrilha. 3. O
crime contra a ordem tributária absorve os de falsidade ideológica
necessários à tipificação daqueles; não, porém, o falsum cometido na organização da quadrilha.. (STF, HC n. 84453-PB, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, j. 17/8/2004, DJU 4/2/2005, p. 27, grifos nosso)
6.2 Concurso de crimes
Ocorre concurso aparente de norma quando uma conduta se enquadra em mais de
um tipo penal. Entretanto, quando existem várias ações delitivas, há o concurso de crimes.
Enquanto no concurso de pessoas diversos agentes praticam um crime, no concurso de crimes
uma mesma pessoa pratica infrações diversas. O concurso de crime pode ser material ou
formal.
6.2.1 Concurso material
No concurso material, existem várias condutas que geram vários resultados,
devendo-se proceder ao somatório das penas (art. 69 do CP). Por exemplo, em um roubo
contra única vítima, no mesmo momento, o ladrão subtrai diversos bens, como dinheiro,
cordão de ouro, relógio, etc. Nesse caso, conclui-se que há crime único. Apesar de existir
vários atos, é certo que aí houve uma única infração.
Assim, tem-se que a característica do concurso material é a pluralidade de ações
típicas configurando-se um crime único.
55
Segundo classificação doutrinaria, o concurso material pode ser homogêneo,
quando o agente pratica mais de uma vez o mesmo delito, como no exemplo citado, ou
heterogêneo, quando o agente pratica dois crimes diferentes com a mesma vítima, por
exemplo, homicídio e lesão corporal, instantaneamente.
6.2.2 Concurso formal
No concurso formal, tem-se uma conduta que lesiona diferentes bens jurídicos
provocando resultados distintos, derivando ou não do mesmo intento (art. 70 do CP). O que
difere o conflito aparente de normas do concurso formal é o número de resultados, o número
de lesão a bens – por exemplo, um atropelamento com várias vítimas fatais.
O concurso formal pode ser classificado como homogêneo ou heterogêneo. Se
forem os mesmos delitos, há concurso formal homogêneo. Todavia, se os delitos forem
diferentes, haverá um concurso formal heterogêneo.
Sobre a matéria, resumiu Hugo de Brito Machado:
No concurso formal os crimes são autônomos, embora sejam resultantes da mesma conduta. Já no concurso aparente de normas penais os crimes estão intimamente ligados. Um deles é uma forma especial do outro, caso em que o concurso se resolve pelo critério da especialidade. Ou um deles é subsidiário do outro, porque atingem o mesmo bem jurídico, um de forma menos grave e o outro de forma mais grave, e neste caso o concurso se resolve pelo critério da subsidiariedade. Ou, finalmente, um dos crimes subsume no outro, porque um é o meio e o outro é o fim, caso em que o concurso se resolve pelo critério da absorção.46
6.3 Crime continuado
Constitui crime continuado uma pluralidade de ações tomada como crime único
por imposição legal. Assim, quando o agente, mediante mais de uma conduta, comete mais de
46 MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária, p. 100.
56
um crime da mesma espécie, nas mesmas condições de tempo, de lugar, de maneira de
execução e com características semelhantes, ocorre o crime continuado.
Ressalte-se, ainda, que os crimes subseqüentes devem ser seqüência do primeiro,
fazendo presumir uma continuidade delitiva. Assim, deve ser aplicada a pena de um só dos
crimes, se idênticas; ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto
a dois terços (art. 71 do Código Penal).
Em relação ao crime de sonegação fiscal o Superior Tribunal de Justiça entendeu
estar configurada a continuidade delitiva, conforme se extrai do julgado transcrito:
I. Sonegação fiscal (L. 8137/90, art. 1º, I e II; e 11): parcial reconhecimento de continuidade delitiva, de modo a que o paciente passe a responder, não a 5, mas a 3 acusações, tendo em vista critério de espaçamento temporal entre as condutas considerado razoável, à vista de tratar-se de sonegação de tributo de recolhimento mensal. Inexistência de continência ou conexão entre o Proc. 3.468-0 (1ª Vara) com os demais feitos em curso na 2ª Vara Criminal de Paulista/PE. II. Habeas corpus: deferimento, em parte, tão-somente para que as instâncias de mérito, relativamente aos processos em curso na 2ª Vara Criminal de Paulista – PE, não considerem – salvo situação mais favorável ao paciente – a existência de mais de 2 crimes, sendo que: o 1º desses dois crimes, constituído pelos fatos ocorridos nos meses de março, abril (Proc. 3 467-1 – 2ª Vara) e maio (Proc. 3464-7 – 2ª Vara) de 1999; o 2º crime, os praticados nos meses de novembro de 1999, janeiro e fevereiro de 2000 (Proc.3 464-7); março de 2000 a junho de 2001 (Proc.3465-0); e julho a outubro e dezembro de 2001 (Proc. 8702-0). III – Habeas corpus: extensão dos efeitos da concessão da ordem ao co-réu, que, à primeira vista, se encontra em situação de todo assimilável ao paciente. (STF, 1ª Turma, HC n. 89573/PE, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 13/2/2007, DJU 27/4/2007)
6.4 Concurso de pessoas
Divergências doutrinárias à parte, o concurso de pessoas se refere a quem, de
qualquer modo, concorre para o crime, incidindo nas penas a ele cominadas na medida da sua
culpabilidade.
O concurso de pessoas está definido em sentido amplo, no qual se incluem a
autoria, a co-autoria e a participação. Ressalte-se que a caracterização de autor ou partícipe do
intento criminoso é feita pela doutrina, visto que o Código Penal não faz referência a esses
57
conceitos. Assim, por meio da teoria do domínio do fato é necessário identificar quem possuía
o domínio ou comando da ação delitiva.
6.4.1 Autoria
Autor é aquele que tem o domínio da ação típica, da realização do fato, tendo o
poder de controlar, de fazer cessar, de prosseguir, etc. É quem realiza o núcleo verbal do tipo,
possuindo domínio organizacional da ação típica com plenos poderes sobre a vontade alheia.
Assim, “o autor é aquele que possui o controle do transcurso da ação. Domina o
fato e quem pode decidir sobre a consumação do crime, sobre se a ação deve prosseguir ou
deve ser interrompida”.47
Em relação à autoria no concurso de pessoas, esclarece Zaffaroni e Pierangeli:
[...] o concurso de várias pessoas num mesmo evento não é um fenômeno que se dá somente no direito penal, mas que é algo cotidiano. Da mesma maneira dizemos, diariamente, que fulano é autor de tal coisa, que beltrano é autor de tal outra, que sicrano cooperou com fulano em tal coisa e que fulano incentivou beltrano a fazer tal coisa.48
6.4.2 Partícipe
É quem não domina a realização do fato, mas contribui de qualquer modo para
que ele ocorra. Na prática, é o agente que contribui para o delito, porém o comportamento
dele não é imprescindível para a ocorrência do crime, bastando, para tanto, sua participação.
Para o professor Mirabete,
o participe não comete a conduta descrita pelo preceito primário da norm, mas pratica uma atividade que contribui para a realização do delito [...] há na
47 RAMOS, Beatriz Vargas. Do concurso de pessoas, p. 122. 48 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral,
p. 663-664.
58
participação uma contribuição causal, embora não totalmente indispensável, ao delito e tabém a vontade de cooperar nna conduta do auto ou co-autores.49
6.4.3 Co-autoria
A co-autoria é a manifestação da autoria em conjunto, quando mais de um agente
participa da ação delituosa de forma relevante para a obtenção do sucesso na empreitada.
Assim, cada ação do co-autor é a manifestação da vontade dele, uma vez que possui
conhecimento e partilha a concepção do resultado de forma independente.
Para haver co-autoria, deve haver nexo psicológico entre os co-autores, ou seja, o
agente deve agir sabendo um da conduta do outro. Caso não exista esse conluio, estar-se-á
diante de participação. Assim, nesse tipo de delito, o agente é o sujeito ativo de ação própria,
enquanto o partícipe contribui para a ação delituosa de outrem.
De forma esclarecedora, E. Magalhães Noronha disserta:
[...] autor é o agente que [...] executa a ação descrita pelo verbo contido na figura típica delitiva: o que ‘subtrai’, ‘seqüestra’, ‘mata’, ‘induz’ etc. Quando a execução é praticada por duas ou mais pessoas, em cooperação e conscientemente, temos a co-autoria, como, a título de exemplo, ocorre quando dois ou mais agentes agridem simultaneamente a mesma vítima. Note-se que, na co-autoria, não há necessidade do mesmo comportamento
por parte de todos, podendo haver a divisão quanto aos atos executivos. No roubo, um agente vigia, o outro ameaça e o terceiro despoja.50
Para a caracterização da co-autoria, são necessários a pluralidade de conduta, a
relevância causal e jurídica de cada uma e o vínculo subjetivo entre os co-autores. Sobre o
tema, leciona Cezar Roberto Bitencourt:
Co-autoria é a realização conjunta, por mais de uma pessoa, de uma mesma infração penal. Co-autoria é em última análise a própria autoria. É desnecessário um acordo prévio, com exigia a antiga doutrina, bastando a consciência de cooperar na ação comum. É a atuação consciente de estar contribuindo na realização comum de uma infração penal. Essa consciência constitui o liame psicológico que une a ação de todos, dando o caráter de
49 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal, v. 1, p. 232. 50 NORONHA, E. Magalhães. Direito penal: introdução e parte geral, v. 1, p. 205.
59
crime único. A resolução comum de executar o fato é o vínculo que converte as diferentes partes em um todo único. Todos participam da realização do comportamento típico, sendo desnecessário que todos pratiquem o mesmo ato executivo. Basta que cada um contribua efetivamente na realização da figura típica e que essa contribuição possa ser considerada importante no aperfeiçoamento do crime. A co-autoria fundamenta-se no princípio da “divisão de trabalho”, em que todos tomam parte, atuando em conjunto na execução da ação típica, de tal modo que cada um possa ser chamado verdadeiramente autor. – E o que pode ocorrer especialmente naqueles crimes que Beling chamou de crimes de ‘ação dupla’, como, por exemplo, no crime de estupro: enquanto um dos agentes segura a vítima, o outro a possui sexualmente. Na co-autoria não há relação de acessoriedade, mas a imediata imputação recíproca, visto que cada um desempenha uma função fundamental na consecução do objetivo comum. O decisivo na co-autoria, segundo a visão finalista, é que o domínio do fato pertença aos vários intervenientes, que, em razão do princípio da divisão de trabalho, se apresentam como peça essencial na realização do plano global.51
Com efeito, nos crimes contra a ordem tributária, se a ação partiu de decisão
tomada por todos os sócios, responderão todos como co-autores. Nesse contexto, a
responsabilidade deverá ser imputada aos que exerceram ato de gestão contrário ao
ordenamento penal tributário e determinante para a prática delituosa.
Em relação aos crimes contra a ordem tributária, ocorre co-autoria quando, por
exemplo, vários dirigentes, diretores, administradores, gerentes, etc., elaboram, participam, ou
executam ação delituosa, demonstrando que possuem conhecimento e domínio do fato.
6.5 Formação de quadrilha ou bando
O crime de quadrilha ou bando, previsto no art. 288 do Código Penal,52 constitui
um concurso de pessoas, uma vez que o agente se reúne a outros três ou mais sujeitos com o
fim de praticar crimes.
O crime é sempre independente dos demais crimes que pelo bando vierem a ser
praticados. Sua consumação ocorre com a efetiva associação, independentemente da prática
51 BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal, v. 1, p. 387-388. 52 “Art. 288. Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.”
60
de algum crime pela quadrilha. É um crime autônomo, coletivo ou plurissubjetivo, bastando
para sua configuração a finalidade da associação de mais de três pessoas. É elemento
essencial do crime a idéia de continuidade, havendo um liame associativo constante entre os
membros do bando.
Sobre o crime de quadrilha ou bando, Celso Delmanto escreve:
O núcleo indicado é associarem-se, que traz a significação de ajuntarem-se, reunirem-se, aliarem-se, agregarem-se. Exige a lei que sejam mais de três pessoas, daí resultando o número mínimo de quatro pessoas, no qual se contam. Também, os inimputáveis, quando estes tiverem capacidade para entender e integrar a associação. O núcleo associar-se implica a idéia de estabilidade, razão pela qual se exige que a associação seja estável ou permanente.53
Como dito, o crime de quadrilha ou bando é autônomo e seu aperfeiçoamento
independe do cometimento de outros crimes. Assim, a suspensão ou extinção da punibilidade
relativa ao crime contra a ordem tributária não afetará o crime de quadrilha e bando.
O Supremo Tribunal Federal manifestou que a suspensão do processo relativo ao
crime de sonegação fiscal efetuada em razão do parcelamento não se estende ao delito de
formação de quadrilha ou bando:
REFIS. PARCELAMENTO DO DÉBITO. SUSPENSÃO DO PROCESSO. DELITO DE
QUADRILHA OU BANDO. FALTA DE JUSTA CAUSA. AUSÊNCIA. CRIME
FORMAL. 1. A suspensão do processo relativo ao crime de sonegação fiscal, em conseqüência da adesão ao REFIS e do parcelamento do débito, não implica ausência de justa causa para a persecução penal quanto ao delito de formação de quadrilha ou bando, que não está compreendido no rol taxativo do art. 9º da Lei 10.684/03. 2. O delito de formação de quadrilha ou bando é formal e se consuma no momento em que se concretiza a convergência de vontades, independentemente da realização ulterior do fim visado. Ordem denegada. (STF, HC n. 84223-RS, Rel. Min. Eros Grau, 1ª Turma, j. 3/82004, DJU 27/82004, p. 71)
Relativamente ao crime contra a ordem tributária, estará configurada a prática
delitiva de quadrilha ou bando quando os agentes resolvem constituir uma sociedade voltada
apara a prática criminosa – por exemplo, para a venda de nota fiscal fria. Todavia, resta saber
se haveria a configuração do delito quando há constituição de uma associação para fins lícitos
e que venha, posteriormente, cometer crime contra a ordem tributária.
53 DELMANTO, Celso. Código penal comentado, p. 436.
61
O professor Hugo de Brito Machado pondera:
Ocorre que nas sociedades comerciais, como nas empresas em geral, o fim é lícito. É uma atividade econômica. É a produção ou o comércio de bens, ou a prestação de serviços. O tributo é apenas um elemento acessório. A prática de crimes contra a ordem tributária, ainda que prevista e desejada pelo sócios da empresa, não passa de um acontecimento acessório. Não é a finalidade da associação. Não é o seu motivo, ou sua razão de existir.54
A associação de bando ou quadrilha deve visar, exclusivamente, à prática de
crimes, ou seja, a organização deverá ser criada para esse fim. Assim, não há sentido
enquadrar como formação de quadrilha ou bando entidades criadas com a finalidade
empresarial e que, eventualmente, cometeram crimes contra a ordem tributária.
54 MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária, p. 105.
62
7 O ERRO NOS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA
Nos crimes da ordem tributária, nem toda ação do agente contrária à norma penal
resulta em uma imputação criminosa. Como dito, não há crime contra ordem tributária na
forma culposa. Assim, é imprescindível que se investigue e identifique a intenção do agente
quando da transgressão da norma. Vale dizer que o bem jurídico só foi violado por erro na
interpretação da norma penal ou tributária.
A ausência de dolo é um pré-requisito para a isenção da pena. É o que prescreve o
art. 20 do Código Penal:
Art. 20. O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei. § 1o É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo. [...].
Em verdade, o erro incide sobre as circunstâncias e pressupostos da figura típica
do fato e sua ação é levada a efeito pela falsa percepção da realidade, impedindo o agente de
compreender a natureza criminosa do ato.
Nesse sentido, o desconhecimento dos elementos do tipo penal exclui o dolo, pois
o agente age, equivocadamente, acreditando estar cumprindo a lei.
Relativamente à culpabilidade, vale dizer que o agente foi negligente ao
interpretar a lei tributária, ou seja, agiu com culpa. Como não se admite a modalidade culposa
para esse tipo de crime, não se pode imputar qualquer responsabilidade ao agente. A doutrina
classifica o erro como sendo de tipo ou de proibição.
Hugo de Brito Machado define desta forma erro de tipo e erro de proibição:
O erro diz-se de tipo quando reside na incorreta compreensão de elementos utilizados na definição do tipo, seja fatos ou normas não penais. Esse erro que exclui o dolo e consequentemente o crime que o tenha como elemento essencial, reside na compreensão de elementos objetivos do tipo penal. Já o erro de proibição reside na incorreta compreensão da própria lei penal, na ignorância ou incorre interpretação da própria norma incriminadora da conduta.
63
No âmbito dos crimes contra a ordem tributária, podemos dizer que o erro de tipo é o situado nas questões de direito Tributário, como as de saber se determinado tributo deve ser calculado desta ou daquela forma, com esta ou aquela base de calculo, ou alíquota, ou de saber se em uma venda ao consumidor é obrigatória a emissão da nota fiscal, ou se é valida a nota fiscal simplificada, ou mesmo o cupom de máquina registradora, ou outro equipamento. Já o erro de proibição reside apenas nas questões de Direito Penal, como se o crime de falsificação de um documento fiscal é ou não elemento do crime de supressão ou redução do tributo.55
Com efeito, para a caracterização do delito tributário deve estar presente o caráter
subjetivo da ação; todavia, nesse caso, o aspecto subjetivo é substituído pelo erro e, assim,
não estará configurado o crime de supressão ou redução de tributo.
Nesse contexto, não parece razoável punir o agente por erro (de tipo) na
interpretação da lei tributária, provocado muitas vezes pelo seu emaranhado, complexo e
confuso conteúdo.
Partindo da premissa que toda ação humana é imperfeita, conquanto carregada de
erro, não poderia ser diferente quando o contribuinte interpreta mal a norma tributária. Puni-lo
com a privação de liberdade não parece proporcional e razoavelmente justo para o autor do
erro.
A não ser assim, [...] “estaria inteiramente amesquinhando o princípio da
legalidade tributária. O tributo já não seria devido nos termos da lei, mas nos termos da
interpretação atribuída à lei pela autoridade da Administração Tributária”.56
Contudo, a inexatidão da norma ou má formação legal não pode ser alegada pelo
agente para seu não-cumprimento, conforme disposto no art. 18 da Lei Complementar n. 95,
de 26 de fevereiro de 1998: “eventual inexatidão formal de norma elaborada mediante
processo legislativo regular não constitui escusa válida para o seu descumprimento”.
Importante é não perder de vista que o erro é próprio do ser humano e os juízos equivocados
sobre a realidade também. Dessa forma, a exculpação é conseqüência lógica, de conduta não-
dolosa, caracterizada por equívoco eventual em sua interpretação.
Como excludente de culpabilidade em matéria penal tributária, pode-se incluir o
erro sobre a ilicitude do fato, ou erro de proibição, conforme disposto no art. 21 do Código
Penal:
55 MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária, p. 71. 56 MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária, p. 273.
64
Art. 21. O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço. Parágrafo único. Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência.
É certo que ninguém pode alegar desconhecimento da lei. A escusabilidade do
agente não está ligada à ignorância na interpretação da norma. É necessário identificar se o
contribuinte agiu com cuidado necessário, ou seja, com boa-fé. Sobre o tema, escreveu o
professor Élcio Fonseca Reis:
A escusabilidade corresponde a um juízo objetivo em que o sujeito agiria de forma escusável se tivesse respeitado os deveres de cuidado, de análise normal, que se espera para a situação fática envolvida. A concepção ética da boa-fé se sobrepõe ao simples critério da ignorância. É preciso ter a convicção que o sujeito agiu com o cuidado necessário, cuidado este que deve ser analisado e verificado para cada situação concreta em que se objetive o reconhecimento da boa-fé.57
Nesse sentido, é necessário que esteja caracterizada a ausência de intenção do
agente em prejudicar ou fraudar a norma. Com efeito, ressalva deve ser feita em relação à
“cegueira normativa”, que não pode ser considerada causa suficiente de exclusão da
culpabilidade, pois se poderia chegar à situação em que o agente frauda livros fiscais e, por
desconhecimento legal, não poderia ser responsabilizado.
Existem várias ações praticadas pelo agente, consideradas como causas
supralegais de exclusão, que não se encontram amparadas no conceito de excludentes de
culpabilidade. Nesse sentido, é necessária a interpretação extensiva da imputação penal
quanto ao aspecto volitivo da ação.
Para nortear tais parâmetros é importante identificar o conteúdo e as
características do ato, bem como elementos que levaram o agente a decidir de forma diversa a
lei. Assim, se o agente pratica conduta julgando-a lícita do ponto de vista tributário, de forma
que seu comportamento represente uma falsa percepção de que não haveria supressão ou
redução de tributo (erro de tipo), não há como lhe imputar crime, pela ausência de dolo em
seu comportamento.
57 REIS, Elcio Fonseca. O princípio da boa-fé e o planejamento tributário, p. 72.
65
Entretanto, se o agente pratica conscientemente conduta de suprimir ou reduzir
tributo, embora supondo que não esteja cometendo crime, ou seja, um erro na própria relação
do Direito Penal (erro de proibição), o elemento subjetivo, nesse caso, está presente em
relação à conduta, que foi desejada pelo agente, exatamente como descrita na norma penal.
Configura-se, portanto, dolo, que não é excluído pelo fato de haver o agente se equivocado na
questão de saber se tal conduta é ou não penalmente reprovada.58
Assim, o delito se configurou, pois estava presente o elemento subjetivo da ação,
independentemente do erro de interpretação da norma penal. Contudo, se o fato típico foi
motivado por inexata compreensão interpretativa da norma pelo agente, e sua ação decorreu
da falsa percepção da licitude da conduta, não haverá crime, pois o erro de tipo exclui o dolo.
Em relação à questão, decidiu o Supremo Tribunal Federal:
CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA – ICMS – ALIQUOTAS
DIFERENCIADAS – CREDITAMENTO – FRAUDE. A fraude pressupõe vontade
livre e consciente. Longe fica de configurá-la, tal como tipificada no inciso II do art. 1° da Lei n. 8.137, de 27 de dezembro de 1990, o lançamento de crédito, considerada a diferença das alíquotas praticadas no Estado de destino e no de origem. Descabe confundir interpretação errônea de normas
tributárias, passível de ocorrer quer por parte do contribuinte ou da
Fazenda, com o ato penalmente glosado, em que sempre se presume o
consentimento viciado e o objetivo de alcançar proveito sabidamente ilícito. (HC n. 72584/RS, Rel. Min. Maurício Corrêa, 2ª Turma, j. 17/10/1995, DJ
3/5/1999, p. 13.900. Ement., v. 01826-02, p. 00281, grifos nossos)
Assim, tornam-se necessários os elementos de convicção capazes de fundar um
juízo positivo em relação à imputação ou não de responsabilidade penal ao agente. Nesse
sentido, devem existir provas que demonstrem a conduta dirigida à realização do tipo previsto
na lei penal tributária. Ressalte-se, ainda, que para a configuração da autoria dos crimes contra
a ordem tributária deverá ficar provado que o agente tem o domínio da ação, ou seja, da
realização do fato típico.
58 MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária, p. 72.
66
8 CRIMES SOCIETÁRIOS
Nos crimes societários, em que a autoria nem sempre se mostra claramente
comprovada, em razão da complexidade e da multiplicidade de organismos empresariais
envolvidos, torna-se um grande desafio individualizar e identificar com precisão o comando,
execução e extensão da ação volitiva.
Sobre o crime societário, escreveu Renato Martins Prates:
[...] aquele praticado por indivíduo, isolada ou coletivamente agindo em nome da pessoa jurídica, como seu mandatário ou representante [...]. Reforce-se, portanto, que o conceito de crime societário não diz respeito àqueles que se imputam à sociedade, mas aos que atribuem aos indivíduos (gerentes, diretores, administradores) que agem em seu nome.59
Assim, quando se utiliza a pessoa como instrumento para a ação delituosa, a
responsabilidade deverá recair sobre seu mandatário, conforme prescreve Manoel Pedro
Pimentel: “É inegável que a responsabilidade pelos crimes praticados em nome da sociedade
se resolve na responsabilidade dos mandatários, uma vez comprovada sua participação no
fato.”60
Com efeito, nos crimes societários normalmente pressupõe-se a participação de
mais de uma pessoa em concurso de agentes, dada as características negociais das decisões
empresariais. De tal sorte que as deliberações sociais tomadas em conjunto pelos sócios,
controladores, diretores ou administradores da empresa expressam, em verdade, declaração de
vontade colegiada, uma vez que se encontra assentada em decisões que comportam
participação de vários executores.
Alguns tribunais superiores flexibilizaram o entendimento em relação à
individualização da conduta nos crimes societários considerando como válida aquela que
descreve elementos mínimos à persecução penal, identificando apenas o comportamento
básico dos agentes na ação delituosa. Com efeito, não era necessário exame mais aprofundado
da materialidade do fato, transferindo a apuração ao juízo próprio, ou seja, à instrução
criminal.
59 PRATES, Renato Martins. Acusação genérica em crimes societários, p. 14. 60 PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes contra o sistema financeiro: comentários à Lei 7.492, de 16 junho de
1986, p. 172.
67
O Superior Tribunal de Justiça, em suas decisões, admitia a utilização do instituto
da denúncia genérica em relação aos crimes societários, conforme ementa reproduzida abaixo:
Processual penal – Recurso de habeas corpus. Crime societário ou coletivo. Trancamento da ação penal – Impossibilidade. 1. O crime de autoria coletiva não obriga a denúncia a pormenorizar o envolvimento do réu, bastando a narrativa genérica do delito, sem que tolha o exercício de defesa. 2. Precedentes da corte. 3. Recurso improvido. (STJ, RHC n. 3129/SC; Recurso Ordinário em Habeas Corpus n. 1993/0027514-3, Rel. Min. Anselmo Santiago, 6ª Turma, j. 22/2/1994, DJ 20/6/1994, p. 16.125, JC v. 73, p. 679, RSTJ v. 63, p. 103)
Na mesma linha jurisprudencial, o Supremo Tribunal Federal também reconhecia
a desnecessidade de individualização da conduta nos crimes societários, conforme ementa:
HABEAS CORPUS. ESTELIONATO. ART. 171, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL. 1 – O inquérito policial não é procedimento indispensável à propositura da ação penal (RHC n. 58.743/ES, Min. Moreira Alves, DJ 8/05/1981 e RHC n. 62.300/RJ, Min. Aldir Passarinho). 2 – Denúncia que não é inepta, pois descreve de forma clara a conduta atribuída aos pacientes, que, induzindo a vítima em erro, venderam a ela um falso seguro, omitindo a existência de cláusulas que lhe eram prejudiciais visando à obtenção de vantagem ilícita, fato que incide na hipótese do art. 171, caput, do Código Penal. Alegações que dependem de análise fático-probatória que não se coaduna com o rito do habeas corpus. 3 – Esta Corte já firmou o entendimento de que, em se
tratando de crimes societários ou de autoria coletiva, é suficiente, na
denúncia, a descrição genérica dos fatos, reservando-se à instrução
processual a individualização da conduta de cada acusado. (STF, HC n. 82246/RJ, Rel. Min. Ellen Gracie, 1ª Turma, j. 15/10/2002, DJ 14/11/2002, p. 00033. Ement., v. 02091-02, p. 00265, grifo nosso)
Entretanto, decisões nesse sentido, além de dificultar o exercício da ampla defesa
e do contraditório, presumiam certa culpa “objetiva”, o que não se pode conceber em um
Estado Democrático de Direito. Em alguns casos, a simples invocação da condição de sócio,
gerente ou administrador era bastante para a imputação de responsabilidade, transferindo para
o processo criminal sua individualização. É o que observa Hugo de Brito Machado:
O Ministério Público também tem praticado abusos no exercício do poder-dever de denunciar. Tem oferecido denúncia contra diretores de sociedades comerciais sem que disponha de nenhuma indicação de autoria do ilícito penal, apenas pelo fato de serem diretores. É certo que a ação penal não depende da certeza da autoria. É indispensável, todavia, que existam ao menos indícios da autoria, para que possa ter lugar a ação penal. Não basta,
68
evidentemente, a condição de sócio ou mesmo diretor, da sociedade em cujo âmbito ocorreu o fato criminoso.61
As decisões dos Tribunais Superiores não guardavam relação com o Código de
Processo Penal, que descreve, de forma detalhada, os requisitos mínimos para o
encaminhamento da denúncia, na forma do art. 41, abaixo reproduzido:
Art. 41. A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.62
Os requisitos estabelecidos pelo mencionado artigo de lei equivalem aos
enumerados no art. 282 do Código de Processo Civil.63 São requisitos essenciais, portanto:
qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo; exposição do
fato criminoso; classificação do crime; rol de testemunhas, se por esse meio se pretender a
prova do fato ou da autoria.
Assim, à luz do disposto no art. 41 do Código de Processo Penal, a denúncia
deverá conter a descrição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias, e, quando se
tratar de concurso de pessoas, a descrição da conduta de cada autor ou partícipe.
A imputação genérica, de certa forma, pode ser entendida como inversão do ônus
da prova, devendo o denunciado demonstrar que nada teve a ver com o fato descrito na peça
acusatória, prejudicando a ampla defesa. Ademais, deve ser ressalvado que a Constituição
Federal declara a dignidade da pessoa humana no momento em que elege o contraditório e a
ampla defesa como direito e garantia fundamental.
A descrição genérica nos crimes societários representava um grande problema
para a instrução processual. A confusão sobre a efetiva autoria levava à absolvição pela
dificuldade em se estabelecer, ao final da ação, a responsabilidade de cada uma dos agentes
nas fases delitivas, ocorrendo, inexoravelmente, a prescrição criminal por decurso de prazo.
61 MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária, p. 211. 62 Grifos nossos. 63 “Art. 282. A petição inicial indicará: I – o juiz ou tribunal, a que é dirigida; II – os nomes, prenomes, estado
civil, profissão, domicílio e residência do autor e do réu; III – o fato e os fundamentos jurídicos do pedido; IV – o pedido, com as suas especificações; V – o valor da causa; VI – as provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados; VII – o requerimento para a citação do réu.”
69
A jurisprudência, seguindo um conjunto de transformações jurídico-sociais,
notadamente em relação aos direitos e garantias individuais, alterou seu entendimento
relativamente ao crime societário. Os julgados deixaram de reconhecer o instituto da denúncia
genérica como forma de imputação de responsabilidade, exigindo, para tanto, a
individualização da conduta de cada autor.
É o que se extrai do julgado a seguir reproduzido:
CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA – Sonegação fiscal – Imputação dos sócios quotistas da empresa – Inviabilidade da acusação – Réus que não participaram da administração dos negócios societários – Insuficiente a mera suposição do envolvimento – Ausência de provas – Falta de justa causa para a instauração da ação penal – Rejeição da denúncia – Recurso não provido. Não é suficiente, a singela descrição de um crime em tese para ensejar o recebimento da denúncia, sob pena de se conceder ao Ministério Público a faculdade de abusar do poder de denunciar sem possibilidade de controle jurisdicional visando resguardar o direito do prejudicado. Recurso em Sentido Estrito n. 176.872-3/SP, 2ª Câmara Criminal, Rel. Devienne Ferraz, j. 14/8/1995, v.u.)
Com efeito, é imprescindível a descrição da participação do acusado, a fim de lhe
permitir o conhecimento daquilo que de fato lhe está sendo imputado, sem criar dificuldade
ou prejuízo que impeça a compreensão da acusação, podendo, portanto, garantir o pleno
exercício de seu direito de defesa.
A falta dos requisitos mínimos do art. 41 do Código de Processo Penal, ou seja, a
inexistência absoluta de elementos hábeis a descrever a relação entre os fatos delituosos, pode
conduzir à inépcia absoluta da peça acusatória, tornando-a imprestável a denúncia.
Dessa forma, a denúncia, para ser legal e exigível, deve demonstrar a conduta
delitiva empreendida pelo agente e sua relação com o tipo penal, de forma a não dificultar ou
impossibilitar-lhe a defesa.
Sobre o tema, Roberto dos Santos Ferreira, afirma:
Assim, somente será passível de responsabilização penal aquele que, voluntariamente e conscientemente, praticar qualquer das condutas descritas nos tipos penais, não se admitindo presunção de autoria, seja por uma
especial qualidade do agente, seja pela posição por ele ocupada na
administração de uma determinada pessoa jurídica [...].64
64 FERREIRA, Roberto dos santos. Crimes contra a ordem tributária, p. 117, grifo nosso
70
Nos crimes societários, são considerados co-autores todos os que participaram
conscientemente juntamente para a prática delitiva empresarial.
A possibilidade de oferecimento de denúncia pelo simples fato de serem diretores
implica, em última análise, atribuir a alguém responsabilidade penal por fato de outrem, de
acordo com as observações do professor Hugo de Brito Machado:
Conhecemos diversos casos nos quais o oferecimento da denúncia ocorre sem que exista qualquer indício de autoria. Basta a condição de sócio, ou diretor. Isto, porém, constitui um abuso que implica a alguém responsabilidade penal por fato de outrem [...] Mais recentemente, conhecemos caso em que uma viúva, com cerca de oitenta anos, teve seu nome incluído em denúncia genérica contra todos os diretores da empresa, pela prática de crime contra a ordem tributária, consubstanciado em fato pelo qual efetivamente nada sabia [...].65
Segundo esclarece o professor, a ação do Ministério Público poderia causar não
uma responsabilidade objetiva propriamente dita, mas a responsabilidade penal por fato de
outrem, o que, do ponto de vista do Direito Penal, seria intolerável. Por outro lado, há alguns
doutrinadores que defendem que a questão estaria resolvida se fosse atribuída a
responsabilidade penal à pessoa jurídica. Todavia, não parece possível, a primeira vista. A
responsabilização da pessoa jurídica implica atribuir a um ente intangível (incapaz de cometer
delitos) penas próprias das pessoas naturais. A sanção imposta à pessoa jurídica deve passar,
necessariamente, pelo Direito Administrativo e não pelo Direito Penal.
Como se vê, o ordenamento jurídico brasileiro determina a responsabilidade
pessoal afastando a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica, da
responsabilidade penal solidária e da responsabilidade objetiva do agente.
É o que se extrai do julgado do STJ abaixo reproduzido:
HABEAS CORPUS. DIREITO PROCESSUAL PENAL. CRIME CONTRA A ORDEM
ECONÔMICA. DENÚNCIA GENÉRICA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ORDEM CONCEDIDA. 1. A denúncia, à luz do disposto no art. 41 do Código
de Processo Penal, deve conter a descrição do fato criminoso, com todas as
suas circunstâncias e, por conseqüência, no caso de concurso de agentes, a
definição da conduta de cada autor ou partícipe. 2. A imputação genérica, que culmina por inverter o ônus da prova, fazendo incumbência do denunciado demonstrar que nada teve a ver com o fato descrito na acusatória inicial, nega a garantia constitucional à ampla defesa. 3. Ordem concedida. Recurso em Sentido Estrito n. 176.872-3/SP, 2ª Câmara Criminal, Rel. Devienne Ferraz, j. 14/8/1995, v.u., grifo nosso)
65 MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária, p. 211-212.
71
Pelo que se vê da ementa transcrita, a denúncia, para ser válida, deve conter a
descrição do fato criminoso, a circunstância e a definição de cada autor ou partícipe na forma
do art. 41 do Código de Processo Penal.
Acompanhando a evolução jurisprudencial, o STF também alterou entendimento
ao reconhecer a necessidade de individualização da conduta do agente para a imputação de
responsabilidade, conforme ementa, in verbis:
HABEAS CORPUS. CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA (LEI N. 8.137, DE
1990). 1. Crime societário. 2. Alegação de denúncia genérica e que estaria respaldada exclusivamente em processo administrativo. Ausência de justa causa para ação penal. Pedido de trancamento. 3. Dispensabilidade do inquérito policial para instauração de ação penal (art. 46, § 1°, CPP). 4. Mudança de orientação jurisprudencial, que, no caso de crimes societários,
entendia ser apta a denúncia que não individualizasse as condutas de cada
indiciado, bastando a indicação de que os acusados fossem de algum modo
responsáveis pela condução da sociedade comercial sob a qual foram
supostamente praticados os delitos. Precedentes [...]. Necessidade de
individualização das respectivas condutas dos indiciados. 6. Observância
dos princípios do devido processo legal (CF, art. 5°, LIV), da ampla defesa,
contraditório (CF, art. 5°, LV) e da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1°, III). Precedentes [...]. No caso concreto, a denúncia é inepta porque não
pormenorizou, de modo adequado e suficiente, a conduta dos pacientes. 8. Habeas corpus deferido. (HC n. 85327/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, j. 15/8/2006, DJ 20/10/2006, p. 00088. Ement., v. 02252-02, p.00266, grifos nossos)
Dessa forma, para ser válida a denúncia, é necessária a descrição das
circunstâncias, dos fatos motivadores e da autoria, como forma de garantir a aplicação do
princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa.
8.1 Omissão nos crimes societários
O diretor ou sócio-gerente responsável pela administração da sociedade deve
praticar os atos de gestão com zelo e cuidados indispensáveis aos padrões de boas técnicas
gerenciais visando à realização do respectivo objetivo social. Assim, constitui dever do
contribuinte trabalhar para evitar qualquer ação contrária à lei penal tributária.
72
Assim, deve-se punir a omissão previsivelmente consciente que proporcionou que
o delito se consumasse. A responsabilidade deverá ser imputada a quem, por omissão, deu
causa com um propósito.
Em relação à matéria, leciona Francisco de Assis Toledo:
Culpabilidade e responsabilidade são conceitos que não se confundem, conforme vimos. Exprimem, contudo, aspectos distintos da mesma realidade, já que culpabilidade implica (acarreta) responsabilidade. Quem é culpado é responsável e pode ser chamado a prestar contas pelo fato a que deu causa. Como, entretanto, no direito penal a responsabilidade é pessoal e intransferível, ninguém pode ser punido por um comportamento que não seja seu, torna-se, indispensável, antes da aplicação da pena, fixar-se, uma vez por todas, a quem pertence verdadeiramente a ação que se quer punir. E isso precisa ser feito não com um significado puramente processual (que também é importante, na determinação da autoria), mas em sentido penalístico, mais profundo, ou seja: há que se estabelecer se a ação que se quer punir pode
ser atribuída à pessoa do acusado, como algo realmente seu, ou seja,
derivado diretamente de uma ação (ou omissão) que poderia ter sido por ele
de algum modo evitada 66
Entretanto, se o diretor ou sócio-gerente desconhece o cometimento do ilícito, não
há como responsabilizá-los, pois, a contrario sensu, estar-se-ia admitindo responsabilidade
penal objetiva pela simples condição de gestores da empresa.
Para a imputação de responsabilidade em estruturas organizacionais complexas,
deve-se identificar quem possui o domínio da ação típica (quem organiza, quem planeja, etc.),
ou seja, quem possuía domínio do fato no tempo da ação.
Com efeito, o domínio do fato subsume o conhecimento pessoal sobre o ato.
Entretanto, não tem sentido apurar participação individual quando os assuntos são decididos
em reunião colegiada, ou simplesmente por uma única pessoa que detém o controle e a gestão
da sociedade.
Em relação à responsabilidade por omissão, o professor Anderson Furlan disserta:
Diretor e sócio-gerente tem o dever jurídico de agir a fim de evitar que o fato típico se realize, e, assim não procedendo, embora tivessem condições para tanto, assumem o risco para produzir o resultado. Respondem pelo dolo eventual. Na chamada omissão imprópria, a omissão apenas é penalmente
relevante quando o omitente tem o dever especial de agir para evitar o
resultado lesivo e, podendo intervir para salvar o bem jurídico, omite-se. A imputação do resultado lesivo apenas se estabelece na omissão diante da verificação da possibilidade penal do omitente, necessário se faz ter agido no
66 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal, p. 327-328, grifo nosso.
73
mínimo com dolo eventual, haja vista não haver previsão de crime societário punido a título de culpa.67
Contextualizando, a omissão é penalmente relevante quando o omitente deveria e
poderia agir para evitar o resultado, na forma art. 13, § 2º, do Código Penal.68 Assim, nos
crimes omissivos impróprios também conhecidos como comissivo por omissão, há
necessidade da demonstração do elemento subjetivo do tipo representado pela omissão
intencional.
Nesse ponto, devem ser trazidos à baila os ensinamentos do professor Mirabete:
Nos crimes omissivos impróprios (ou comissivo por omissão, ou comissivos-omissivos), a omissão consiste na transgressão do dever de jurídico de impedir o resultado, praticando-se o crime que, abstratamente, é comissivo. A omissão é forma ou meio de se alcançar um resultado (no crime doloso). Nos crimes omissivos impróprios a lei descreve uma conduta de fazer, mas o agente se nega a cumprir o dever de agir. Exemplos são o da mãe que deixa de amamentar ou cuidar do filho causando-lhe a morte; do médico ou da enfermeira que não ministra o medicamento necessário ao paciente, que vem a morrer [...] não havendo obrigação jurídica de agir para evitar o resultado, não se pode falar em crime comissivo pó omissão.69
Com efeito, para que a omissão seja penalmente relevante e permita a imputação
criminal do resultado ofensivo, é necessário que o agente não execute atividade,
predeterminada e juridicamente exigida, omitindo-se dolosamente. Em relação aos crimes
contra a ordem tributária, tem-se como exemplo o sócio-gerente que presencia uma fraude na
escrituração contábil da empresa (supressão ou redução de tributo) e, simplesmente, se omite.
Nos casos em que todos os responsáveis pela sociedade assistem passivamente às
ações praticadas pelos seus subordinados, não agindo com dever de prevenção do risco,
deixando de resguardar bens jurídicos amparados por uma norma proibitiva, cada um
responderá como autor do fato omissivo, pois essa omissão permitiu que o intento delituoso
tivesse êxito.
O real poder de agir limita e fundamenta a antijuridicidade da omissão imprópria.
O agente deve possuir poder de ação para incorrer na prática do delito de omissão. É dizer
67 FURLAN, Anderson. Sanções penais tributárias. São Paulo: Dialética, 2005.p.59 68 “Art. 13. O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa.
Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. § 1º omissis; § 2º A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado”.
69 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal, v. 1, p. 128.
74
“[...] que o sujeito que vê uma pessoa se afogando, e não pula na água porque não sabe nadar,
não incorre em delito omissivo, porque lhe carece o dever de agir”.70
O agente, na condição de administrador, sócio-gerente ou diretor, tem o dever
legal de agir para evitar resultados ofensivos à norma penal tributária. Entretanto, essa ação só
poderia ocorrer no momento em que tiver conhecimento da ocorrência da ação delitiva
praticada (indispensável na caracterização da infração), sem a qual não há como
responsabilizá-lo criminalmente.
70 COELHO, Walter. Teoria geral do crime, p. 86.
75
9 EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PENAL TRIBUTÁRIA
9.1 Pelo pagamento
O Código Tributário Nacional, em seu art. 156,71 descreve as hipóteses de
extinção do crédito tributário. O pagamento constitui extinção primitiva do vínculo
obrigacional com a Fazenda Publica. Com efeito, a quebra de vínculo entre o fisco e o
contribuinte decreta o fim da exigibilidade do crédito tributário efetivamente quitado. Nessa
conformidade, o pagamento é causa ordinária de extinção do crédito tributário. Assim, a
liquidação do principal torna insubsistente o vínculo penal subsidiário, isto é, a representação
penal que, metaforicamente dizendo, não mais existe por seção do cordão que ligava o feto ao
seu alimento.
A extinção da punibilidade penal nos crimes contra a ordem tributária tem como
princípio o da reparação do dano, uma vez que a conduta delitiva representa a supressão ou
redução de tributo. Com efeito, a função intimidatória da lei penal, bem como seu caráter
utilitarista, impõe ao contribuinte o recolhimento “facultativo” do quantum sonegado.
Sobre o tema, escreveu Rodrigo Sánchez Rios:
Denota o ressurgimento deste instituto na prática de uma confusa política criminal enfraquecedora da consolidação dos tipos penais descritos nos arts. 1º e 2º da Lei 8.137/90. A instabilidade demonstrada pelo legislador pátrio reflete a falta de critérios jurídico-penais capazes de outorgar a devida fundamentação a este instituto. Assim, os critérios de natureza fiscal, meramente ‘arrecadatórios’, sobrepõem-se aos enunciados penais da desistência voluntária e da reparação do dano, amplamente reconhecidos.72
71 “Art. 156. Extinguem o crédito tributário: I – o pagamento; II – a compensação; III – a transação; IV –
remissão; V – a prescrição e a decadência; VI – a conversão de depósito em renda; VII – o pagamento antecipado e a homologação do lançamento nos termos do disposto no art. 150 e seus §§ 1º e 4º; VIII – a consignação em pagamento, nos termos do disposto no § 2º do art. 164; IX – a decisão administrativa irreformável, assim entendida a definitiva na órbita administrativa, que não mais possa ser objeto de ação anulatória; X – a decisão judicial passada em julgado; XI – a dação em pagamento em bens imóveis, na forma e condições estabelecidas em lei (Incluído pela LCP n. 104, de 10/1/2001). Parágrafo único. A lei disporá quanto aos efeitos da extinção total ou parcial do crédito sobre a ulterior verificação da irregularidade da sua constituição, observado o disposto nos arts. 144 e 149.”
72 RIOS, Rodrigo Sánchez. Das causas de extinção de punibilidade nos delitos econômicos, 2003, p. 138.
76
Ressalte-se, que princípio semelhante ocorre no delito de peculato culposo,
quando o ressarcimento do dano, antes do trânsito em julgado da sentença, extingue a
punibilidade (art. 312 do CP, § 3°).
Conforme abordado, a Lei n. 4.729/65 codificou, de certa forma, as condutas
delitivas dos crimes fiscais, bem como o reflexo dessas ações. Nesse sentido, o art. 2o
consagrava a extinção da punibilidade quando ocorresse o pagamento antes da ação fiscal
administrativa. Assim, qualquer que fosse a ação perpetrada com vista à evasão tributária,
teria extinta a pretensão punitiva.
Posteriormente, a Lei n. 8.137/90, em seu art. 14, manteve a extinção da
punibilidade quando o agente promovesse o recolhimento do tributo antes do recebimento da
denúncia.
Com o advento da Lei n. 8.383, de 30/12/1991, a possibilidade de extinção
mediante o pagamento foi revogada, na forma do art. 98, não sendo possível utilizar essa
prerrogativa para escapar da sanção penal.
A Lei n. 9.249, de 26 de dezembro de 1995, ressuscitou o art. 14 da Lei n.
8.137/90 no momento em que retornou com a possibilidade de extinção da punibilidade penal,
na forma do art. 34:
Art. 34. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei 8.137, de 27 de Dezembro de 1990, e na Lei 4.729, de 14 de Julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia.
Assim, o pagamento integral da exigência declara de maneira incondicional a
extinção da punibilidade, independentemente da conduta criminosa do agente e de qualquer
conseqüência jurídica do referido delito.
9.2 Outras causas extintivas
Existem outras formas de extinção da punibilidade tributária que não o
pagamento. As causas de extinção estão previstas no art. 107, incisos I a IV, do Código Penal:
77
Art. 107. Extingue-se a punibilidade I – pela morte do agente; II – pela anistia, graça ou indulto; III – pela retroatividade de lei que não mais considera o fato como criminoso; IV – pela prescrição, decadência ou perempção; [...].
Passa-se à análise de cada uma das causas extintivas:
9.3 Morte do agente
A morte do agente extingue a punibilidade penal, pois o sistema penal pátrio
estabeleceu que a imputação de crimes deverá ocorrer em relação à pessoa natural ou física.
Segundo Hugo de Brito Machado, “a pena não se transmite. A morte do agente, portanto, é
por assim dizer uma causa natural de extinção da punibilidade”.73 A morte do réu põe termo à
ação penal, conforme destaca Paulo Jose da Costa Junior:
No direito Moderno, instaurou-se definitivamente o princípio segundo o qual mors omnis solvit. A morte do réu põe termo à ação penal, se iniciada, e impede a propositura de processo que não tiver sido ainda intentado. Comprovada a morte, mediante exibição do atestado de óbito, ouvido o Ministério Público, o juiz decretará extinta a punibilidade.74
Nesse sentido, não é possível que a pena, inclusive a de multa, seja transferida aos
descendentes do agente por força do art. 5°, XLV, 2ª parte, da Constituição Federal.75
Todavia, ressalve-se a exceção ao princípio. Trata-se das decretações de perdimentos de bens,
quando será estendida aos sucessores e contra eles executados até o limite do valor do
patrimônio transferido. A decisão que decreta a extinção da punibilidade pela morte do
agente, como nas demais hipóteses contempladas no art. 107 do Código Penal, transitadas em
julgado.
73 MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária, p. 88. 74 COSTA JUNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal, v. 1, p. 228. 75 “[...]; XLV – nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a
decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido; [...].”
78
Saliente-se que a morte do co-autor não é causa da extinção da punibilidade que
se comunique aos demais.
9.4 Anistia, graça ou indulto
Anistia ocorre quando o Estado abre mão de punir. A ação criminosa encontra-se
juridicamente perfeita, todavia, a partir da concessão da anistia, extinguem-se a punibilidade e
os efeitos penais.
A anistia poderá ocorrer antes ou depois da sentença, extinguindo-se a ação e a
condenação. Ela se destina a fatos, e não a pessoas, embora possa exigir condições subjetivas
para ser aplicada ao réu ou condenado. Historicamente, a anistia é da aplicação mais comum a
crimes políticos.
É a lição de Moura Teles:
Dispõe o art. 48, VIII, da Constituição Federal que a anistia será concedida pelo Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, por meio de uma lei cujo efeito será apagar o crime, extinguindo a punibilidade e os efeitos penais, já que os de natureza civil não são alcançados pela renúncia estatal. A anistia é geralmente concedida para crimes de natureza política, como gestos de pacificação dos espíritos de um país, um povo, como aconteceu recentemente no Brasil após o regime autoritário instaurado com o golpe militar de 1964. Atingiu, é sabido os crimes políticos e os com eles conexos. Nada impede, todavia, que a anistia seja concedida para crimes outros. A anistia é geral, alcançando os fatos por ela referidos e, de conseqüência, as pessoas neles envolvidas. O inciso XLIII do art. 5° da Constituição Federal mandou a lei considerar insuscetíveis de anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os crimes chamados hediondos.76
A anistia é concedida por meio de lei ordinária e depende sempre da sanção
presidencial.
Concedida a anistia, de ofício, por iniciativa do interessado, pelo Ministério
Público, Autoridade Administrativa ou Conselho Penitenciário, o juiz declarará extinta a
punibilidade.
76 TELES, Ney Moura. Direito pena, v. I, p. 520.
79
A graça, também denominada indulto individual, é uma forma de indulgência ou
clemência concedida pelo presidente da República. A graça apenas libera o condenado do
cumprimento da pena, não apagando os demais efeitos penais do crime, tal como ocorre na
anistia.
A graça pode ser total (ou pleno), alcançando todas as sanções impostas ao
condenado, ou parcial, com a redução ou substituição da sanção, caso em que toma o nome de
comutação.
O indulto é também uma forma de indulgência ou clemência, só que concedida
em razão de fato e não na pessoa do condenado, por isso não é pessoal, mas coletiva.
O indulto coletivo abrange, sempre, um grupo de sentenciados e normalmente
inclui os beneficiários tendo em vista a duração das penas que lhe forma aplicadas. Segundo o
professor Mirabete “[...] com o indulto (individual ou coletivo) extinguem-se somente as
sanções mencionadas nos respectivos decretos, permanecendo os demais efeitos da sentença
condenatória, seja penais ou civis”.77
Tanto a graça como indulto, não havendo determinação expressa nesse sentido,
não atingem a pena de multa.
9.5 Decadência e prescrição
A decadência é a perda do direito de ação privada ou representação, em
decorrência de não ter sido exercido no prazo previsto em lei, atingindo o próprio direito de
punir. Nas ações privadas, ocorre decadência de forma direta em relação ao direito de queixa.
Nas ações públicas, ocorre de forma indireta sujeitas a prévia representação do ofendido, pois,
desaparecendo o direito de delatar, não pode agir o promotor de Justiça.
O art. 103 do Código Penal declara:
Decadência do direito de queixa ou de representação Art. 103. Salvo disposição expressa em contrário, o ofendido decai do direito de queixa ou de representação se não o exerce dentro do prazo de 6 (seis)
77 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal, v. 1, p. 387.
80
meses, contado do dia em que veio a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do § 3º do art. 100 deste Código, do dia em que se esgota o prazo para oferecimento da denúncia.
Pelo que se observa, o prazo comum é de seis meses, podendo a lei instituir
exceção à regra geral.
A prescrição é a perda do direito de punir do Estado pelo decurso de tempo.
Ressalte-se que a prescrição tratada refere-se à prescrição do Direito Penal, e não do Direito
Tributário.
Segundo o professor Mirabete,
justifica-se o instituto pelo desaparecimento do interesse estatal na repressão do crime, em razão do tempo decorrido, que leva ao esquecimento do delito e a superação do alarma social causado pela infração penal. [...] Ocorrido o crime, nasce para o estado a pretensão de punir o autor do fato criminoso. Essa pretensão deve, no entanto, se exercida dentro determinado lapso temporal que varia de acordo com a figura criminosa composta pelo legislador e segundo o critério do máximo cominado em abstrato da pena privativa de liberdade. Escoado esse prazo, que é submetido a interrupções ou suspensões, ocorre a prescrição da pretensão punitiva, chamada impropriamente de prescrição da ação penal. Nessa hipótese, que ocorre sempre antes de transitar em julgado a sentença condenatória, são totalmente apagados todos os seus efeitos, tal como se jamais tivesse sido praticado o crime ou tivesse existido sentença condenatória.78
Os prazos de prescrição dependem da pena aplicada e do momento de sua fixação,
qual seja, antes ou depois da sentença penal condenatória, na forma dos arts. 109 e 110 do
Código Penal:
Art. 109. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, salvo o disposto nos §§ 1º e 2º do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se: I – em 20 (vinte) anos, se o máximo da pena é superior a 12 (doze); II – em 16 (dezesseis) anos, se o máximo da pena é superior a 8 (oito) anos e não excede a 12 (doze); III – em 12 (doze) anos, se o máximo da pena é superior a 4 (quatro) anos e não excede a 8 (oito); V – em 8 (oito) anos, se o máximo da pena é superior a 2 (dois) anos e não excede a 4 (quatro); V – em 4 (quatro) anos, se o máximo da pena é igual a 1 (um) ano ou, sendo superior, não excede a 2 (dois);
78 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal, v. 1, p. 402.
81
VI – em 2 (dois) anos, se o máximo da pena é inferior a 1 (um) ano. Prescrição depois de transitar em julgado sentença final condenatória [...] Art. 110. A prescrição depois de transitar em julgado a sentença condenatória regula-se pela pena aplicada e verifica-se nos prazos fixados no artigo anterior, os quais se aumentam de um terço, se o condenado é reincidente.
A título de exemplo, um crime injúria (art.140), punido no máximo com seis
meses de detenção o prazo da prescrição, será de dois anos. No caso de crime de furto simples
que possui pena máxima de quatro anos, a prescrição da pretensão punitiva ocorrerá em oito
anos.
Após o trânsito em julgado da sentença condenatória, os prazos de prescrição
dependem da pena concretizada na sentença condenatória, sem prejuízo ao acréscimo de um
terço se o condenado for reincidente, conforme o art. 110 do Código Penal. A prescrição é
contada em função da pena aplicada na sentença, em caso de não haver recurso da acusação.
9.5.1 A prescrição e a decadência tributária e seus reflexos nos crimes de supressão ou
redução de tributos
A prescrição do Direito Penal, conforme dito, não se confunde com a prescrição
do Direito Tributário. Enquanto aquele está previsto no art. 109 e seguintes do Código Penal,
este se encontra disciplinado na forma do art. 156 do Código Tributário Nacional:
Art. 156. Extinguem o crédito tributário: [...]; V – a prescrição e a decadência; [...].
A prescrição em sentido lato representa a perda de um direito pelo decurso do
tempo. Em verdade, é a inércia representada pela falta de ação do Estado no momento em que
o direito nasce. Assim, a prescrição decreta ao Direito Tributário a extinção do direito
material do Fisco ao crédito tributário.
82
Dessa forma, pode-se concluir que se estaria diante de uma prescrição do Direito
Penal quando houvesse a prescrição no Direito Tributário? Em relação a tal questionamento,
uma resposta negativa se impõe.
O art. 142 do Código Tributário Nacional declara:
Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.
Nos termos do art. 142 do mesmo Código, a obrigação tributária somente se torna
exigível pela constituição definitiva do lançamento do respectivo tributo. Para tanto, a
Fazenda Pública dispõe do prazo de cinco anos, contados da constituição definitiva da
exigência, para exercer seu direito. Assim, confirmado o crédito tributário, surge o prazo
prescricional, podendo, nesse período, ser promovida a cobrança.
Entretanto, no Direito Penal, os prazos prescricionais não acompanham o prazo
qüinqüenal definido pelo Código Tributário Nacional, de tal sorte que, se o agente for
apenado com a pena de três anos, sua prescrição ocorrerá em oito anos, na forma do inciso V
do art. 109 do Código Penal, independentemente da cobrança do crédito tributário pela
Administração.
Diferentemente da prescrição, a decadência tributária não segue o mesmo
entendimento. Assim como a prescrição, a decadência representa causa extintiva do crédito
tributário, na forma do art. 156 do Código Tributário Nacional, todavia, o instituto da
decadência fulmina o direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário.
Didaticamente, o direito extingue-se, sempre, após cinco anos, contados do primeiro dia do
exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado, de acordo com art.
173 do Código Tributário Nacional. Assim, a decadência atingirá diretamente o direito do
Estado na constituição do crédito tributário.
Nesse diapasão, conforme definiu o art. 142 do Código Tributário Nacional, o
lançamento só se torna exigível após sua constituição definitiva. Desta feita, sem que haja o
prévio exaurimento da via administrativa, não há que se falar em exigência tributária.
Esse entendimento encontra amparo em julgado do Superior Tribunal de Justiça,
consoante a ementa a seguir transcrita:
83
RECURSO ESPECIAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. AÇÃO PENAL. CRÉDITO FISCAL. DECADÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE DE LANÇAMENTO. CRIME
MATERIAL. FALTA DE JUSTA CAUSA. TRANCAMENTO. PRECEDENTES. 1. Os crimes definidos no art. 1º da Lei n. 8.137/1990, a teor do entendimento consagrado pelo Supremo Tribunal Federal, são materiais ou de resultado, somente se consumando com o lançamento definitivo do crédito fiscal. 2. Nesse contexto, decaindo a administração fiscal do direito de lançar o crédito tributário, em razão da decadência do direito de exigir o pagamento do tributo, tem-se que, na hipótese, inexiste justa causa para o oferecimento da ação penal, em razão da impossibilidade de se demonstrar a consumação do crime de sonegação tributária. (STJ, REsp. 789506/CE)
No mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal decidiu, reiteradas vezes, que é
imprescindível a constituição do crédito tributário para que se configure o crime tributário:
PROCESSO PENAL. CRIME MATERIAL CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. DENÚNCIA ANTES DO LANÇAMENTO DEFINITIVO DO TRIBUTO. INADMISSIBILIDADE. Enunciado: ‘Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, antes do lançamento definitivo do tributo’. (STF, HC n. 81.611-DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 13/5/2005; HC n. 86.120, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 26/8/2005; HC n. 83.353, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 16/12/2005; HC n. 85.463, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 10/2/2006; HC n. 85.428, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 10/6/2005; HC n. 85.185, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 1º/9/2006)
Nessa ordem de idéias, conclui-se que, ainda que a autoridade fiscal efetue a
representação fiscal para fins penais por ocasião do lançamento e, porventura, a última
instância administrativa reconheça a decadência do crédito tributário sem, contudo, enfrentar
o mérito, não pode prevalecer o jus puniendi, pelo simples fato de não haver qualquer crédito
tributário a ser cobrado.
Portanto, conclui-se que e a constituição definitiva do crédito tributário é condição
objetiva de punibilidade ou, como defende alguns doutrinadores, elemento integrante do tipo
penal tributário, no momento em que não se configurou a exigência tributária e,
consequentemente, ausente estará à efetiva supressão ou redução do tributo.
9.6 Retroatividade da lei penal que exclui o crime em matéria tributária
84
Se um fato deixa de ser considerado crime por lei posterior a sua prática, dá-se a
retroatividade da lei penal benigna. Qualquer que seja a fase processual, a punibilidade estará
extinta, mesmo que exista sentença com transito em julgado. Em relação aos crimes contra a
ordem tributária – Lei n. 8.137/90 (lei especial) também se aplica a determinação expressa no
Código Penal.
A retroatividade da lei como razão de extinção da punibilidade penal tributária
apresentou grande importância após a edição dos programas especiais de refinanciamento e
parcelamento fiscal, promovidos pelo Governo Federal.
9.6.1 Programas de Recuperação Fiscal e Parcelamento – Refis I
O Governo Federal, por intermédio da Lei n. 9.964, de 10 de abril de 2000,
instituiu o Programa de Recuperação Fiscal (Refis), cujo art. 1° destaca que o programa era
destinado a promover a regularização de créditos da União, decorrentes de débitos de pessoas
jurídicas, relativos a tributos e contribuições, administrados pela Secretaria da Receita Federal e pelo
Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), com vencimento até 29 de fevereiro de 2000, constituídos
ou não, inscritos ou não em dívida ativa, ajuizados ou a ajuizar, com exigibilidade suspensa ou não,
inclusive os decorrentes de falta de recolhimento de valores retidos.
O referido programa possibilitava, dentre outros benefícios, o parcelamento da
dívida tributária em longo prazo, bem como permita a regularidade fiscal do contribuinte.
Além do parcelamento tributário vantajoso, a opção pelo Refis possibilitava a
suspensão da punibilidade penal, na forma do art. 15 da Lei n. 9.964, de 10 de abril de 2000:
Art. 15. É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1o e 2o da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e no art. 95 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no Refis, desde que a inclusão no referido Programa tenha ocorrido antes do recebimento da denúncia criminal. § 1o A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva. § 2o […]. § 3o Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios, que
85
tiverem sido objeto de concessão de parcelamento antes do recebimento da denúncia criminal.
Conforme se depreende da leitura do art. 15, o legislador inovou no momento em
que criou a suspensão da punibilidade penal para os delitos tributários. Para fazer jus ao
benefício, deveria o contribuinte aderir ao programa e, conseqüentemente, promover o
parcelamento de suas dívidas tributárias. Todavia, a suspensão da punibilidade penal somente
se aplicava ao crédito tributário incluído no Refis, antes do recebimento da denúncia criminal,
conforme previsto no art.15 dessa lei.
Ressalte-se, ainda, que durante o período em que o parcelamento estivesse ativo
haveria a suspensão da prescrição criminal dos crimes contra a ordem tributária.
Com efeito, a simples adesão ao programa suspende qualquer procedimento
apuratório, enquanto presentes os requisitos e condições previstas na referida lei. Entretanto,
se o contribuinte optasse pelo pagamento integral dos débitos tributários, teria extinguido sua
punibilidade penal na forma do § 3° do art. 15 da lei.
9.6.2 Retroatividade benigna da Lei n. 10.684/03 – Refis II
Com o advento da Lei n. 10.684, de 30 de maio de 2003, que instituiu o
Parcelamento Especial (PAES), o Governo Federal possibilitou o parcelamento de débitos na
Secretaria da Receita Federal, na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e no Instituto
Nacional do Seguro Social. A criação do novo programa de recuperação fiscal, conhecido
como Refis II, possibilitou o parcelamento de débitos tributários vencidos até 28 de fevereiro
de 2003, em até 180 meses.
Semelhantemente ao primeiro programa, a Lei n. 10.684/03 previa a suspensão da
pretensão punitiva, quando da opção ao parcelamento especial, conforme disposto no art. 9o:
Art. 9º É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts 1º e 2º da Lei n. 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento. § 1º A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva.
86
§ 2º Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos créditos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios.
Pelo que se vê, a Lei n. 10.684/03 inovou, ou seja, possibilitou a suspensão da
pretensão punitiva em qualquer fase do processo criminal, ainda que posteriormente ao
recebimento da denúncia, enquanto ativo o parcelamento. Ressalte-se, ainda, que
semelhantemente ao programa anterior, o § 1° previa a suspensão da prescrição criminal
enquanto estivesse ativo o parcelamento.
A razoável novidade trazida pelo art. 9º da Lei n. 10.684/03 merece um especial
destaque. Pelo que se depreende da leitura, a suspensão da pretensão punitiva poderia ocorrer
em qualquer fase processual, bastando, apenas, sua inclusão no programa e,
conseqüentemente, parcelamento da dívida tributária.
Contudo, conforme se verá adiante, a Receita Federal reconhece a suspensão da
pretensão punitiva somente para os contribuintes cujos débitos foram incluídos nos programas
específicos, de sorte que o parcelamento normal, efetuado fora dos referidos planos, não eram
contemplado com a suspensão do jus puniendi.
No momento em que a Lei n. 10.684/03 possibilitou, mediante o parcelamento em
longo prazo, a suspensão da pretensão punitiva em qualquer fase do processo criminal,
consagrou a intenção do legislador no sentido de privilegiar o efetivo recebimento do crédito
tributário em detrimento de incerta sanção penal.
A necessidade de recuperação da dívida tributária tem grande importância para a
Fazenda Pública, visto que, no momento em que estimulou a adesão ao Programa e,
conseqüentemente seu parcelamento, promoveu uma “descriminalização suspensiva” do
Direito Penal Tributário. A Lei n. 10.684/03 consagrou um precedente interpretativo
importante no momento em que permitiu a suspensão criminal via parcelamento em qualquer
fase do processo.
A Constituição Federal, em seu art. 5°, inciso XL, proclama: “A lei penal não
retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Vale dizer, não importa o modo pelo qual a lei nova
favoreça o agente, ela será aplicada a fatos pretéritos a sua entrada em vigor. A lex mitior
deverá ser aplicada tanto ao réu em sentido estrito (aquele que está sendo acusado em
processo penal) quanto ao réu em sentido lato (sujeito passivo na ação penal, aqueles
submetidos à execução de pena e/ou medidas de segurança).
87
O princípio da retroatividade da lei penal mais benigna, lex mitior, prevalece em
qualquer circunstância sobre a mais severa, retroagindo ao tempo em que ainda não tinha
vigência. Assim, a lei, de alguma forma, favorece ao sujeito, seja no tocante ao crime, seja no
tocante à pena. Nesse sentido, caso o agente seja condenado no passado por uma ação
considerada crime e atualmente não mais o é, não seria razoável mantê-lo encarcerado, pois a
descriminalização operada na atualidade reflete o desejo da sociedade em não mais considerar
ofensivo o ato praticado.
A lei nova, mais favorável que a anterior, possui plena aplicação no Direito Penal,
conforme disposto no art. 2º, parágrafo único, do Código Penal:
Art. 2º Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. Parágrafo único. A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente,
aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença
condenatória transitada em julgado.79
Em relação à retroatividade da Lei Penal benéfica, escreveu o professor Francisco
de Assis Toledo:
Denomina-se mais benigna a lei mais favorável ao agente, no tocante ao crime e à pena, sempre que, ocorrendo sucessão de leis penais no tempo, o fato previsto como crime tenha sido praticado na vigência da lei anterior. Será mais benigna a que de qualquer modo favorecer o agente, podendo, portanto, ser a lei anterior ou posterior. Nos termos do art. 5º, XL, da Constituição, a lei mais benigna prevalecerá sempre, em favor do agente, que seja a anterior (ultra-atividade), quer seja a posterior (retroatividade).80
Entendimento semelhante é compartilhado pelo magistério de Mirabete:
Além de não mais considerar fato anteriormente incriminado, a nova lei pode favorecer o agente de forma diversa (novatio legis in mellius). O parágrafo único do art. 2º, em consonância com o art. 5º, XL, da CF, dispõe que deve ser ela aplicada aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado. Refere-se, portanto, aos dispositivos da lei nova que, ainda incriminando o fato, dão a seu autor um tratamento menos rigoroso, não só com relação à natureza ou quantidade da pena, como também a todos os seus efeitos penais. Estão nessa categoria de norma penal mais benéfica as que prevejam novos casos de extinção da
79 Grifo nosso. 80 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal, p. 35.
88
punibilidade ou novos benefícios, as que diminuem os requisitos para sua concessão etc. O princípio da retroatividade da lex mitior, exceção ao princípio da irretroatividade da lei penal, não se detém mesmo havendo coisa julgada. Ainda que se esteja procedendo à execução penal que se refiram à pena e à medida de segurança, a aplicação da lei nova mais benigna ao fato anterior é obrigatória, cabendo esta ao juiz encarregado da execução quando a sentença tiver transitado em julgado (art. 60, I, da Lei de Execução Penal e Súmula 611 do STF).81
Assim, a Lei n. 10.684/03, em seu art.15, possibilitou a suspensão da punibilidade
penal em qualquer fase da ação e, conseqüentemente, a extensão de seus efeitos a exigências
penais tributárias pretéritas.
Nesse sentido, no que tange ao conflito de leis no tempo, a lei nova mais benéfica
deverá ser aplicada retroativamente até mesmo após o trânsito em julgado da sentença
condenatória, devendo ser aplicado o abolitio criminis ou a novatio legis in mellius.82
Havendo conflito de leis penais com o surgimento de novos preceitos jurídicos
após a prática do fato delituoso, será aplicada sempre a lei mais favorável. Em relação ao
conflito de leis, o professor Mirabete arremata:
[...] o artigo 2º, parágrafo único, do CP, é taxativo, assegurando a aplicação da lei posterior mais benigna aos fatos anteriores ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado. Não se infringe a regra constitucional que preserva a coisa julgada no artigo 5°, XXXVI, da CF, porque este dispositivo se refere apenas às garantias individuais e não aos direitos do Estado como titular do jus puniendi.83
A Lei mais benéfica retroage para favorecer ainda que se esteja coberto pela coisa
julgada, prevalecendo, nesse caso, a garantia constitucional da retroação benéfica, conforme
se depreende da decisão do Supremo Tribunal Federal:
COMPETÊNCIA – HABEAS CORPUS – ATO DE TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Na dicção da ilustrada maioria (seis votos a favor e cinco contra), em relação à qual guardo reservas, compete ao Supremo Tribunal Federal julgar todo e qualquer habeas-corpus impetrado contra ato de tribunal, tenha esse, ou não, qualificação de superior. LEI PENAL – RETROATIVIDADE – JUIZADOS
ESPECIAIS CRIMINAIS – LEI N. 9.099, DE 29 DE SETEMBRO DE 1995. A Lei n. 9.099/95 consubstancia, no que versa sobre matéria penal, lei mais favorável
81 CÓDIGO penal interpretado, p. 105. Disponível em:
http://www.escritorioonline.com/webnews/noticia.php?id_noticia=7296&. Acesso em: 10 out. 2007. 82 “Art. 66. Compete ao juiz da execução: I – aplicar aos casos julgados lei posterior que de qualquer modo
favorecer o condenado; e Súmula 611 do STF.” 83 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal, v. 1, p. 63.
89
ao réu. No particular, a aplicação mostrou-se imediata e também retroativa, não cabendo distinguir normas consideradas a dualidade material e instrumental. Ao alcançarem, de forma imediata, ou não, a liberdade do réu, ganham contornos penais suficientes a atrair a observância imperativa do disposto no inciso XL do rol das garantias constitucionais – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu. Precedente: inquérito policial n. 1.055, relatado pelo Ministro Celso de Mello, cuja decisão foi publicada no Diário da Justiça de 15 de fevereiro de 1986. (STF, HC n. 73837/GO, Rel. Min. Marco Aurélio, 2ª Turma, j. 11/6/1996, DJ 6/9/1996, p. 31.854)
Em relação ao princípio da retroatividade, Valdés Costa apresenta um estudo
comparativo entre alguns países da América e Europa:
La Constitución de Bolivia dispone en general la irrretroactividad, excepto
‘en materia social cuando la ley expresamente lo determine y en materia
penal cuando beneficie al delincuente’. Brasil, en su Constitución de 1988,
establece como norma general, que la ley não perjudicará o direito
adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; en materia penal, que
‘não retroagirá, salvo para beneficiar o réu’ (art. 5º, nums. XXXVI y XL); en
materia tributaria, como limitación al poder de tributar, prohíbe establecer
tributos sobre hechos generadores ocurridos con anterioridad a la ley, o en
el mismo ejercicio financiero en que esta haya sido publicada, en este último
caso, con excepciones taxativamente enumeradas relativas a impuestos
indirectos (art. 150). Colombia, en su Constitución de 1991, en materia
penal establece que ‘nadie podrá ser juzgado sino conforme a leyes
preexistentes...’ y que ‘la ley permisiva a favorable, aun cuando fuere
posterior, se aplicará de preferencia a la restrictiva o desfavorable’ (art.
29). En materia tributaria dispone que las leyes ‘no se aplicarán con
retroactividad’ (art. 363) con especificación de la aplicación de este criterio
a las normas ‘que graven hechos generadores periódicos (art. 338). Chile
admite expresamente la retroactividad de la ley que favorezca al afectado’
(Constitución de 1980, art. 19). Ecuador, en su Constitución de 1978,
dispone que ‘no se dictarán leyes tributárias en perjuicio de los
contribuyentes’. La Constitución de España garantiza la irretroactividad de
las disposiciones ‘sancionadoras no favorables o restrictivas de derechos
individuales’, debiendo anotarse la supresión de la referencia que el
proyecto hacía a las disposiciones ‘fiscales’. México, en una disposición
que ha provocado discrepancias sobre su alcance, dispone que ‘a ninguna
ley se dará efecto retroactivo en perjuicio de persona alguna’ (art. 14 de la
Constitución). Paraguay, en su Constitución de 1992, en el capítulo que
regula la liberdad, dispone que ‘ninguna ley tendrá efecto retroactivo, salvo
que sea más favorable al encausado o al condenado’(art. 14), texto que se
diferencia del anterior por suprimir la mención de ‘leyes penales’ en la
segunda parte de la disposición. Perú, como ya se anotó, modificó el
régimen suprimiendo la referencia a la retroactividad de las leyes laborales
y tributárias más favorables a los trabajadores y contribuyentes,
manteniéndola solo para la ‘materia penal cuando favorece al reo’(art.
103). Igual solución rige em Portugal. Venezuela, en una solución similar a
la de México, há establecido en su Constitución, en forma general, que
‘ninguna disposición legislativa tendrá efecto retroactivo’, com la única
excepción de la que ‘imponga menor pena’ (art. 44). Argentina y Uruguay
90
no tienen normas constitucionales expresas sobre retroactividad, pero en
sus códigos civiles se consagra el criterio de la irretroactividad como regla,
que obviamente puede ser alterada por otras leyes, como há sucedido con
los códigos penales y el C.T.U.84
Conforme se extrai da pesquisa, a filosofia jurídica adotada nos países estudados é
semelhante ao Brasil, ou seja, a regra geral é que a lei penal retroage para beneficiar, quando
da edição de norma mais favorável.
Portanto, não parece razoável que contribuintes com situações idênticas possuam
tratamentos diferentes. O parcelamento dentro ou fora de programa deve gerar o mesmo
resultado no mundo jurídico. O parcelamento ordinário semelhante ao especial, representa
uma ação voltada apara a satisfação do pagamento da dívida em parcelas, refletindo, ambos os
casos, a livre vontade do agente em regularizar o crédito tributário.
Relativamente à suspensão da pretensão punitiva, a novatio legis in mellius,
renovação da lei por edição de uma melhor, torna-se definitivamente aplicável a todos os
contribuintes protegidos pelo instituto do parcelamento, ainda, que fora dos programas
especiais. Desta feita, o simples parcelamento, a partir da edição da Lei n. 10.684/03, decretou
a suspensão de todo e qualquer processo criminal relativo aos crimes contra a ordem
tributária, mesmo que a denúncia tenha sido recebida. Ressalte-se, ainda, que pelos mesmos
argumentos relativos ao parcelamento tributário o pagamento, em qualquer fase processual,
inclusive após o trânsito em julgado, decreta, definitivamente, a extinção da punibilidade.
A extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo representa o adimplemento
da exigência tributária, objetivado pelo aspecto finalístico da lei penal, ou seja, o
recolhimento tributário. Destarte, não é razoável exigir o pagamento e o jus puniendi pelo
mesmo fato. Esse também é o entendimento dos Tribunais Superiores consoantes às decisões
transcritas.
Raciocínio lógico encontra-se abrigo à interpretação da Lei n. 10.684/03 que,
embora inserida em um programa específico, não pode tratar iguais de maneira desigual. O
simples elemento constitutivo acessório referente à adesão ao programa não pode prevalecer
sobre o elemento principal de um direito legalmente constituído, ou seja, quitar ou parcelar o
débito. Com efeito, não é possível efetuar qualquer modalidade de parcelamento sem a devida
opção formal pelo contribuinte.
84 COSTA, Valdés. Curso de derecho tributario, p. 244-245.
91
9.6.3 A retroação benigna e o Código Tributário Nacional
Em relação à legislação tributária, o art. 106, inciso II, c, do Código Tributário
Nacional também prevê a aplicação retroativa da lei, conforme reproduzido:
Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito: […]; […]: c) quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo da sua prática.
Conforme se depreende da leitura do art. 106, II, c, do Código Tributário
Nacional, a lei nova deverá ser aplicada retroativamente quando cominar penalidade menos
severa em relação à norma vigente prevista ao tempo da prática do ato. Assim, a inteligência
do art. 106 do Código Tributário Nacional reflete, de maneira similar ao art. 2o do Código
Penal, a intenção do legislador de não prejudicar o direito a uma nova situação social a que o
indivíduo esta sujeita.
Assim, tratando-se de uma análise interpretativa lastreada pelo princípio
constitucional da isonomia, tanto as normas tributárias como as penais, em relação ao não-
cumprimento delas, possuem características similarmente repressivas, razão pela qual a sua
retroatividade deve expressar o fundamento filosófico de sua constituição legislativa. Nesse
sentido, as interpretações teleológicas devem conduzir a aplicação da regra da analogia in
bonam partem no que couber, sem perder de vista o princípio da isonomia como regra geral
da hermenêutica. Repise-se, a Lei n. 10.684/03 possibilitou a extinção da pretensão punitiva
do Estado quando do pagamento integral, bem como sua suspensão pelo parcelamento sem
estabelecer qualquer limitação temporal, proporcionando sua extensão aos demais casos que
se encontram nas mesmas condições.
O Supremo Tribunal Federal manifestou-se conforme a ementa a seguir:
TRIBUTO – REGÊNCIA – ARTIGO 146, INCISO III, DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL – NATUREZA. O princípio revelado no inciso III do art. 146 da Constituição Federal há de ser considerado em face da natureza
92
exemplificativa do texto, na referência a certas matérias. MULTA – TRIBUTO
– DISCIPLINA. Cumpre à legislação complementar dispor sobre os parâmetros da aplicação da multa, tal como ocorre no art. 106 do Código Tributário Nacional. MULTA – CONTRIBUIÇÃO SOCIAL – RESTRIÇÃO
TEMPORAL – ARTIGO 35 DA LEI N. 8.212/91. Conflita com a Carta da República – art. 146, inciso III – a expressão’ para os fatos geradores ocorridos a partir de 1º de abril de 1977’, constante do art. 35 da Lei n. 8.212/91, com a redação decorrente da Lei n. 9.528/97, ante o envolvimento de matéria cuja disciplina é reservada à lei complementar. (STF, RE n. 407.190 – RS, STF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 27/10/04, DJ 13/5/05, p. 296-306)
A decisão da Suprema Corte consagra o princípio fundamental da retroação
benigna em matéria de infrações ressaltando que essa garantia constitucional não poderá
sofrer limitação temporal por lei ordinária. Nesse sentido, o STF declarou de forma taxativa a
inconstitucionalidade da expressão “para os fatos geradores ocorridos a partir de 1º de abril de
1997”, de forma a tornar inequívoca a intenção daquela Corte de não haver qualquer limitação
ao entendimento expresso no art. 106 do Código Tributário Nacional em relação à retroação
benigna.
Assim, em relação à hipótese da alínea c do art. 106 do Código Tributário
Nacional, a lei nova continua prevendo penalidade para o ato levado a efeito pelo
contribuinte, mas comina a este ato uma pena menos severa. Nesse sentido, a inteligência
prevista no art. 112 do Código Tributário Nacional85 estabelece a obrigatoriedade de
interpretação mais favorável ao acusado em caso de dúvida quanto à gradação da penalidade
aplicável.
Merece destaque a decisão do Supremo Tribunal Federal por ocasião do
julgamento de Recurso Extraordinário n. 479.264, conforme reprodução de ementa:
TRIBUTÁRIO. MULTA. LEI MAIS BENÉFICA. POSSIBILIDADE DE RETROAÇÃO. ART. 106, II, ‘C’, DO CTN. VIABILIDADE: 1.Em razão do caráter mais benéfico ao contribuinte, é plenamente cabível que os efeitos de lei superveniente que prevê a redução de multa moratória dos débitos previdenciários retroajam aos atos ou fatos pretéritos não definitivamente julgados. Inteligência do art. 106, II, ‘c’, do CTN. 2.Iterativos precedentes da Primeira Seção do STJ. 2. Recurso especial não provido. (STF, REsp. n. 479.264-RS [2002⁄0134187-1], Rel. Min. João Otávio de Noronha, Brasília, j. 9/5/2006)
85 “Art. 112. A lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais
favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto: I – à capitulação legal do fato; II – à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos; III – à autoria, imputabilidade, ou punibilidade; IV – à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação.”
93
10 O PARCELAMENTO E A NOVAÇÃO
10.1 Parcelamento
O Código Tributário Nacional não previa o parcelamento como hipótese de
suspensão da exigibilidade do crédito tributário. A edição da Lei Complementar n. 104, de 10
de janeiro de 2001, alterou a redação do art. 151 do Código Tributário Nacional, adicionando
os incisos V e VI:
Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário: I – moratória; II – o depósito do seu montante integral; III – as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo; IV – a concessão de medida liminar em mandado de segurança. V – a concessão de medida liminar ou de tutela antecipada, em outras espécies de ação judicial; VI – o parcelamento; Parágrafo único. O disposto neste artigo não dispensa o cumprimento das obrigações assessórios dependentes da obrigação principal cujo crédito seja suspenso, ou dela conseqüentes.
Anteriormente à Lei Complementar n. 104, de 2001 o parcelamento efetuado na
forma do Refis I (Lei n. 9964/2000) não representava hipótese legal de suspensividade do
crédito tributário de lei hierarquicamente superior para tanto, por falta de previsão legal.
Assim, deflui-se que os efeitos relativos ao parcelamento efetuado na forma do Refis I
constituía-se, à época, uma espécie de moratória, mas nunca um parcelamento, pois o Código
Tributário Nacional não previa tal possibilidade.
O parcelamento tributário representa um procedimento específico visando à
satisfação do pagamento do crédito tributário em prestações, suspendendo a exigibilidade
desse crédito, enquanto solvidas as parcelas. A Fazenda Pública tem o poder-dever de apreciar
os pedidos de parcelamento, analisar-lhes a circunstâncias, deferindo-os ou não, conforme as
exigências legais. Assim, o parcelamento reflete a intenção do legislador em oportunizar ao
devedor pagamento diferido, de forma a incentivar o recolhimento voluntário.
94
Nessa conformidade, o parcelamento constitui modalidade de suspensão do
crédito tributário e, conseqüentemente, das obrigações a ele vinculadas, ou seja, a
responsabilidade penal. Esse é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, consoante a
ementa transcrita:
1. Crime contra a ordem tributária (L. 8137/90, art. 1º, inciso I c/c art. 71 C. Penal): nos termos da Lei. 10.684/2003, o parcelamento administrativo do débito fiscal determina a suspensão da pretensão punitiva e do lapso prescricional [...]. (STF, HC n. 90591/SP, Rel. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, j. 27/2/2007)
Portanto, como não existe alteração na relação jurídica, a falta de adimplemento
das parcelas impõe ao devedor o reinício do processo criminal.
Com efeito, o art. 151 do Código Tributário Nacional impede a Fazenda Pública,
enquanto ativo o pagamento do parcelamento, exigir o crédito tributário, estando o instituto,
claramente delimitado pela norma.
Em verdade, o parcelamento consiste em um acordo entre as partes, a fim de
possibilitar o pagamento da exigência fiscal.
Nessa conformidade, assevera Rubin Lemos:
Então pode-se conceituar o parcelamento da dívida tributária como a forma pela qual o Estado-credor concede um beneficio fiscal ao contribuinte inadimplente, para que possa pagar a sua dívida em parcelas mensais certas e determinadas no tempo, impondo, por vezes, cobrança de multa e juros, o que acarreta a suspensão da exigibilidade do crédito tributário até a quitação do mesmo e a interrupção da prescrição (art. 174, parágrafo único, IV, do CTN). Desta forma, estando o contribuinte inadimplente com o pagamento do seu tributo, poderá requerer ao Fisco o pagamento da dívida em parcelas, até sua quitação, de acordo com as exigências legais, mesmo já tendo sido proposta ação de execução, e antes, por obvio, da sentença final.86
O parcelamento tributário não pode ser considerado um direito objetivo do
contribuinte, pois sua concessão depende de verificação, por parte da Administração, se o
contribuinte preenche as condições estabelecidas na lei. Ressalte-se, ainda, que antes da
positivação do instituto do parcelamento ficava a critério da Administração dispor sobre sua
concessão [...] “diferentemente do anterior acordo que se dava entre o Fisco e o Contribuinte,
86 LEMOS, Rubin. Parcelamento de débito tributário, p. 25-26.
95
o qual levava em consideração a política tributária baseada em poucas normas garantidoras do
direito do contribuinte”.87
Saliente-se, ainda, que após a concessão do parcelamento o contribuinte poderá
obter a certidão negativa de débito fiscal na forma do art. 205 do Código Tributário
Nacional.88
A maioria dos parcelamentos concedidos traz em seu bojo uma condição objetiva
de adesão, imposta pela Fazenda Pública, qual seja, cláusula de confissão irrevogável e
irretratável de dívida, bem como renúncia ao direito de ação. As cláusulas ou condições
postas por ocasião do parcelamento relativamente à renúncia do direito de ação não podem ser
consideradas como definitivas do ponto de vista jurídico. O acordo formulado é entre as
partes e não possui anuência do Poder Judiciário, razão pela qual não há como afastar sua
apreciação. Ademais, a simples desistência da ação sem renúncias às alegações de direito
equivale à extinção do processo sem o julgamento de mérito e, por conseqüência, não impede
que o contribuinte volte a discutir o mérito da ação na hipótese de ser excluído do programa
que concedeu o beneficio fiscal.89 É o que decidiu o Supremo Tribunal Federal, em relação à
inafastabilidade do controle judicial:
Lei estadual que atribui ao pedido de parcelamento de crédito fiscal o efeito de confissão irretratável e de renúncia a qualquer defesa ou recurso administrativo ou judicial, bem como desistência dos já interpostos. Inconstitucionalidade desse dispositivo relativamente à expressão ‘ou judicial’, por ofensiva ao art. 153, § 4°, da CF. Recurso extraordinário conhecido e provido. (STF, RE 94.141/SP, Rel. Min. Soares Muñoz)
Destarte, não pode prevalecer, unicamente, a condição imposta pela Fazenda
Pública quando da concessão do parcelamento de renúncia ao direito de ação, pois esta
somente ocorrerá no Judiciário, quando este (autor) expressamente declarar. Em outra
passagem, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a invalidade da confissão irrevogável e
irretratável de dívida quando se tratar de tributo indevido:
87 LEMOS, Rubin. Parcelamento de débito tributário, p. 27. 88 “Art. 205. A lei poderá exigir que a prova da quitação de determinado tributo, quando exigível, seja feita por
certidão negativa, expedida à vista de requerimento do interessado, que contenha todas as informações necessárias à identificação de sua pessoa, domicílio fiscal e ramo de negócio ou atividade e indique o período a que se refere o pedido. Parágrafo único. A certidão negativa será sempre expedida nos termos em que tenha sido requerida e será fornecida dentro de 10 (dez) dias da data da entrada do requerimento na repartição.”
89 JUNQUEIRA, Fábio. Parcelamento tributário & moratória, p. 85.
96
IMUNIDADE TRIBUTÁRIA. INSTITUIÇÃO E EDUCAÇÃO. RECONHECENDO O
JULGADO O IMPLEMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS PARA SEU
RECONHECIMENTO. ESCAPA AO CRIVO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO O
REEXAME PRETENDIDO PARA DEMONSTRAR A INOCORRÊNCIA DOS
PRESSUPOSTOS DA IMUNIDADE. RECONHECIDA A IMUNIDADE TRIBUTÁRIA, NÃO PREVALECE O PRINCÍPIO DA CONFISSÃO IRRETRATÁVEL DA DÍVIDA, ART. 63, § 2°, DO DECRETO-LEI N. 147/67. RECURSO ESTRAORDINÁRIO NÃO
CONHECIDO. (RE 92983/SP, Rel. Min. Cordeiro Guerra, DJ 14/11/1980)
Assim, não há como reconhecer como válidas as condições de renúncia ao direito
de ação impostas pela Fazenda Pública no momento da concessão do parcelamento.
10.2 Posicionamento da Secretaria da Receita Federal em relação ao parcelamento e seu
reflexo na punibilidade penal
A Secretaria da Receita Federal, por meio da Portaria SRF n. 326, de 15 de março
de 2005, estabeleceu procedimentos que devem ser observados na comunicação de fatos que
configurem ilícitos penais contra a ordem tributária ao Ministério Público Federal. A referida
norma não reconhece o efeito suspensivo por ocasião da concessão do parcelamento
ordinário, conforme disposto no art. 3º:
Art. 3º A representação de que tratam os §§ 1º e 2º do art. 1º e o art. 2º será apensada ao processo administrativo-fiscal, devendo: I – permanecer os respectivos autos na unidade de controle até o transcurso do prazo para pagamento, parcelamento ou impugnação, na hipótese de lavratura de auto de infração para exigência de tributos ou contribuições; II – se aplicada à pena de perdimento de bens, ser encaminhada pela autoridade julgadora de instância única ao órgão do Ministério Público Federal que for competente para promover a ação penal, no prazo máximo de dez dias, anexando-se-lhe cópia da decisão; III – ser arquivada, se a ação fiscal para apuração de dano ao Erário for julgada improcedente. § 1º Extinto o crédito pelo pagamento dos tributos e contribuições, inclusive seus acessórios, os autos dos processos de exigência de crédito tributário e de representação devem ser arquivados, tendo em vista o disposto no art. 34 da Lei n. 9.249, de 26 de dezembro de 1995. § 2º Parcelado o crédito tributário, serão anexadas à representação, por cópia, as peças relativas ao parcelamento, devendo a representação ser remetida pelo Delegado ou Inspetor da Receita Federal, responsável pelo controle do processo administrativo-fiscal, ao órgão do Ministério Público
97
Federal que for competente para promover a ação penal, no prazo máximo de dez dias, contado da data em que: I – se considerar concedido o parcelamento normal; II – produzir efeitos à exclusão de pessoa jurídica do Programa de Recuperação Fiscal (Refis) ou do parcelamento a ele alternativo (arts. 1º, 5º, 12 e 15, caput e § 2º, II, da Lei n. 9.964, de 10 de abril de 2000); III – produzir efeitos à exclusão de pessoa jurídica do Parcelamento Especial (Paes) de que trata a Lei n. 10.684, de 30 de maio de 2003.
Pela leitura do § 2º do art. 3º da Portaria SRF n. 326/05, a Fazenda Nacional
considera como causa extintiva do crédito tributário apenas o pagamento integral. Nesse
sentido, o § 2º determina que, em caso de parcelamento normal, a representação penal deverá
ser remetida ao Ministério Público Federal para promover o libelo acusatório, no prazo
máximo de dez dias. Sendo assim, a Receita Federal não reconhece o parcelamento ordinário
como causa suspensiva da punibilidade penal.
Prosseguindo, o § 4º do art. 3o da Portaria SRF n. 326/05, declara:
§ 4º Se o crédito tributário não for extinto pelo pagamento, nem impugnada a exigência, os autos da representação serão remetidos, no prazo máximo de dez dias, pelo Delegado ou Inspetor da Receita Federal, responsável pelo controle do processo administrativo-fiscal, ao órgão do Ministério Público Federal que for competente para promover a ação penal, exceto se, em relação ao crédito, incidir: I – o disposto no art. 15, caput e § 2º, II, da Lei n. 9.964, de 2000, que produz o efeito de suspender a pretensão punitiva do Estado durante o período em que a pessoa jurídica estiver incluída no Refis ou no parcelamento a ele alternativo, caso em que deverá ser observado o disposto no § 2º, II, deste artigo, na remessa da representação; ou. II – o disposto no art. 9º da Lei n. 10.684, de 2003, que produz o efeito de suspender a pretensão punitiva do Estado durante o período em que a pessoa jurídica estiver incluída no Paes, caso em que deverá ser observado o disposto no § 2º, IV, deste artigo, na remessa da representação.
O § 4o do art. 3o reafirma a possibilidade de suspender a pretensão punitiva apenas
para os valores parcelados sob o manto do Refis, excetuando da suspensão, o parcelamento
normal concedido pela administração fazendária. Ademais, a Receita Federal demonstra total
incoerência no momento em que concede a certidão positiva com efeito negativo aos
contribuintes que optaram voluntariamente pelo parcelamento normal.
Com efeito, conforme sobejamente demonstrado, não se justifica o tratamento
desigual dispensado pela Receita Federal. A regra disposta na Portaria SRF n. 326/05 mostra-
se inversamente proporcional à satisfação do crédito tributário parcelado. O parcelamento
98
especial é concedido por prazos extremamente dilatados, chegando, algumas vezes, a milhares
de anos,90 ao passo que o parcelamento ordinário vigente é concedido em, no máximo, 60
prestações.
A interpretação do mandamento constitucional converge para uma poderosa e
cristalina isonomia no sentido de extirpar a figura do privilégio. Assim, a Constituição Federal
consagra, no caput no seu art. 5o, a igualdade de todos perante a lei.91
O Supremo Tribunal Federal, comentando a Constituição, consagra a auto-
aplicabilidade e utilização do princípio da isonomia, condenando expressamente qualquer
tratamento seletivo ou discriminatório:
O princípio da isonomia, que se reveste de auto-aplicabilidade, não é – enquanto postulado fundamental de nossa ordem político-jurídica — suscetível de regulamentação ou de complementação normativa. Esse princípio — cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do Poder Público — deve ser considerado, em sua precípua função de obstar discriminações e de extinguir privilégios (RDA 55/114), sob duplo aspecto: (a) o da igualdade na lei e (b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei — que opera numa fase de generalidade puramente abstrata — constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório. A eventual inobservância desse postulado pelo legislador imporá ao ato estatal por ele elaborado e produzido a eiva de inconstitucionalidade.92
Nesse sentido, conclui Fernando Silva:
[...] Assim, podemos concluir que a caracterização da violação ao princípio da igualdade deve de ser criteriosamente analisado à luz do caso concreto apresentado. Sendo que os critérios apriorísticos listados apenas limitam-se a tracejar os indícios de uma potencial agressão, a qual se evidenciará ou não após uma efetiva avaliação do trato legal escolhidos e suas conseqüências perante o ordenamento constitucional, sendo portanto de relevante
90 De acordo com a norma estatuída pela Lei n. 9.964/2000 (Refis) em seu art. 9°, determinando que as parcelas
seriam devidas sobre um percentual do faturamento, pouco importando o montante do crédito tributário parcelado.
91 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.”
92 Disponível em: http://www.stf.gov.br/legislacao/constituicao/pesquisa/default.asp. Acesso em: 2 mar. 2008.
99
importância a atividade a ser desempenhada pelo intérprete e aplicador da lei questionada.93
Pelo que se extrai da lição de Fernando Silva, o princípio da igualdade vincula,
necessariamente, toda a Administração Pública, razão pela qual deve ser incondicionalmente
aplicado.
Ademais, a eqüidade compreende uma apreciação subjetiva com a utilização do
senso de justiça, em que o aplicador, de acordo com a sua consciência normativa, formula a
norma ao caso concreto. Nesse sentido, a aplicação rigorosa da lei pode levar à injustiça, ou
seja, o legalmente certo não é necessariamente o justo. Assim, a eqüidade corrige as injustiças
a que a aplicação austera e inflexível da lei escrita poderia levar. Dessa forma, merece
tratamento penal mais justo, aquilo que considera o eterno Rui Barbosa:
A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar a cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem.94
Com efeito, a eqüidade possui perfeita correspondência jurídica e ética das
normas às circunstâncias ao caso concreto, refletindo a priori o princípio da igualdade. A lei
nova, mais benigna, exterioriza a consciência jurídica geral sobre aquele fato, entendendo que
sua punição deve ser mais branda. Assim, o próprio Estado reconhece que a pena antiga era
muito severa, havendo necessidade de atenuá-la, demonstrando uma renúncia relativa ao
direito de aplicá-la.
Em verdade, o objetivo do legislador, ao permitir a suspensão ou extinção da
punibilidade em determinadas circunstâncias referentes a crimes fiscais, é coagir o
contribuinte ao recolhimento de débitos tributários, garantindo ingresso de receitas para fazer
93 Apud SILVA, Fernanda Duarte Lopes Lucas da. Princípio constitucional da igualdade, p. 95 apud SILVA,
Marcelo Amaral da. Digressões acerca do princípio constitucional da igualdade. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 66, jun. 2003. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4143>. Acesso em: 3 jan. 2009.
94 BARBOSA, Ruy. Oração aos moços. Disponível em: http://www.culturabrasil.pro.br/aosmocos. Acesso em: 20 nov. 2008.
100
frente ao constante aumento de despesas. Com efeito, a falta de recolhimento das parcelas
implicaria o reinício do processo criminal.
Assim, repise-se, a Lei n. 10.684/03 possibilitou, mediante o parcelamento, a
suspensão da punibilidade penal, em qualquer tempo, ampliando seus efeitos a qualquer fase
da denúncia.
Nesse sentido, ensina Fernando da Costa Tourinho Filho:
[...] se a pessoa jurídica requerer o parcelamento do débito tributário ou de contribuições sociais, fica suspenso o prazo prescricional e, uma vez liquidado integralmente o débito, extinta ficará a punibilidade, pouco importando tenha sido, ou não, recebida a denúncia.95
O julgado do Tribunal Regional Federal da 4º Região decidiu pela extinção da
punibilidade mediante o pagamento integral, independentemente da espécie de tributo ou
contribuição, conforme reprodução da ementa, in verbis:
PENAL. NÃO-RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. PAGAMENTO INTEGRAL DO DÉBITO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. APLICAÇÃO DO ART. 9º, § 2º, DA LEI N. 10.684/03. Na esteira dos precedentes desta Corte e do Supremo Tribunal Federal, com o pagamento integral da dívida extingue-se a punibilidade do agente, independentemente da espécie de tributo ou contribuição sonegado, do momento ocorrido [...]. (TRF, RSE 2004.71.02.000806-3, Rel. Néfi Cordeiro, 7ª Turma/TRF4, j. 21/3/2006, DJU 5/3/2006, p. 830)
Em relação à opção ao parcelamento administrativo normal, ou seja, em 60
parcelas, a decisão do TRF da 4ª Região elege a aplicação analógica em homenagem ao
princípio da isonomia, por força do art. 9º da Lei n. 10.684/03, preconizando a suspensão do
jus puniendi, conforme ementa:
IMPOSTO DE RENDA PESSOA FÍSICA. PARCELAMENTO ADMINISTRATIVO DO
DÉBITO. SUSPENSÃO DO JUS PUNIENDI E DO CURSO DO PRAZO
PRESCRICIONAL. LEI N. 10.684/03, ART. 9º. APLICAÇÃO ANALÓGICA. O
contribuinte que, em situação irregular com o Fisco, opta pelo
parcelamento administrativo de seu débito em 60 prestações, e não por
aquele previsto na Lei n. 10.684/03 (PAES) – que admite o adimplemento da
dívida em até 180 meses –, faz jus, por aplicação analógica, e, sobretudo em
homenagem ao princípio da isonomia, à suspensão da pretensão punitiva
prevista no art. 9º do referido diploma legal. (TRF, HC n.
95 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal, v. 1, p. 634.
101
2006.04.00.006018-7, Rel. Paulo Afonso Brum Vaz, 8ª Turma/TRF4, j. 22/3/2006, DJU 5/3/2006, p. 832, grifo nosso)
A análise que se faz é de que o instituto aplicado é o do parcelamento,
independentemente de estar ou não inserido em qualquer terminologia própria como Refis,
Paes, etc. O princípio que rege esse e qualquer instituto é o da igualdade, estabelecido no
caput do art. 5° da Constituição Federal, “Todos são iguais perante a lei [...]”, e o não menos
importante princípio da retroatividade benéfica, estabelecido no mesmo art. 5o, inciso XL: “a
lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.
Com efeito, não se pode dar tratamento diferenciado àquele que se encontra em
situações idênticas, ou seja, pagou ou parcelou o débito tributário a qualquer tempo. Mesmo
após o oferecimento da denúncia, deverá ter seus efeitos reconhecidos, operando, desta forma,
a suspensão ou exclusão da punibilidade penal, respectivamente.
A posição do Pretório Excelso se consolidou no momento em que reafirma a
indiferença em relação ao momento da opção determinando sua aplicação, conforme
reprodução da ementa:
HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. APROPRIAÇÃO
INDÉBITA DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS DESCONTADAS DOS
EMPREGADOS. PARCELAMENTO E QUITAÇÃO APÓS O RECEBIMENTO DA
DENÚNCIA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE, POR FORÇA DA RETROAÇÃO DE LEI
BENÉFICA. As regras referentes ao parcelamento são dirigidas à autoridade tributária. Se esta defere a faculdade de parcelar e quitar as contribuições descontadas dos empregados, e não repassadas ao INSS, e o paciente cumpre a respectiva obrigação, deve ser beneficiado pelo que dispõe o art. 9º, § 2º, da citada Lei n. 10.684/03. Este preceito, que não faz distinção entre as contribuições previdenciárias descontadas dos empregados e as patronais, limita-se a autorizar a extinção da punibilidade referente aos crimes ali relacionados. Nada importa se o parcelamento foi deferido antes ou depois
da vigência das leis que o proíbe: se de qualquer forma ocorreu, deve
incidir o mencionado art. 9º. O paciente obteve o parcelamento e cumpriu a obrigação. Podia fazê-lo, à época, antes do recebimento da denúncia, mas assim não procedeu. A lei nova permite que o faça depois, sendo, portanto, lex mitior, cuja retroação deve operar-se por força do art. 5º, XL da Constituição do Brasil. Ordem deferida. Extensão a paciente que se encontra em situação idêntica. (HC n. 85452/SP, Rel. Min. Eros Grau, j. 17/5/2005, DJ 3/6/2005, p. 00045, grifo nosso)
Em recente decisão, o Supremo Tribunal Federal confirmou definitivamente o
entendimento sobre a possibilidade de o parcelamento após o recebimento da denúncia
funcionar como causa suspensiva da punibilidade:
102
AÇÃO PENAL. Crime tributário. Não recolhimento de contribuições previdenciárias descontadas aos empregados. Condenação por infração ao art. 168-A, c/c. art. 71, do CP. Débito incluído no Programa de Recuperação Fiscal – REFIS. Parcelamento deferido, na esfera administrativa pela autoridade competente. Fato incontrastável no juízo criminal. Adesão ao Programa após o recebimento da denúncia. Trânsito em julgado ulterior da sentença condenatória. Irrelevância. Aplicação retroativa do art. 9º da lei n.
10.684/03. Norma geral e mais benéfica ao réu. Aplicação do art. 2º, §
único, do CP, e art. 5º, XL, da CF. Suspensão da pretensão punitiva e da
prescrição. HC deferido para esse fim. Precedentes. No caso de crime
tributário, basta, para suspensão da pretensão punitiva e da prescrição,
tenha o réu obtido, da autoridade competente, parcelamento administrativo
do débito fiscal, ainda que após o recebimento da denúncia, mas antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. (STF, HC n. 85643/RS, Rel. Min. Cezar Peluso, 1ª Turma, j. 30/5/2006, grifos nossos)
Pelo que se depreende do entendimento majoritário da doutrina e da
jurisprudência, o benefício introduzido na legislação tributária por meio da Lei n. 10.684/03
deve-se estender a qualquer contribuinte sujeito às mesmas condições que os demais, ou seja,
aquele que optar pelo pagamento parcelado regular. A Administração Fazendária deve
reconhecer a suspensão da punibilidade no momento da formalização do parcelamento na
unidade fazendária, por força da retroação benigna.
10.3 Moratória
A moratória é o benefício fiscal representado por uma dilatação no prazo de
pagamento das dívidas, concedido em caráter geral ou individual através de lei ordinária
específica, constando os prazos concedidos e as datas de vencimento das prestações e demais
condições para sua concessão.
A moratória suspende a exigência do crédito tributário, na forma do art. 151, I, do
Código Tributário Nacional:
Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário: I – moratória; II – o depósito do seu montante integral; III – as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo; IV – a concessão de medida liminar em mandado de segurança.
103
V – a concessão de medida liminar ou de tutela antecipada, em outras espécies de ação judicial; (Incluído pela Lcp n. 104, de 10/1/2001) VI – o parcelamento. (Incluído pela Lcp n. 104, de 10/1/2001) Parágrafo único. O disposto neste artigo não dispensa o cumprimento das obrigações assessórios dependentes da obrigação principal cujo crédito seja suspenso, ou dela conseqüentes.96
Para Aliomar Baleeiro, a moratória “consiste na concessão legal de um período de
tolerância na exigência de dívidas não a determinado contribuinte, mas a toda uma categoria
deles, conforme atividade profissional, a região ou outro critério.”97 Para Bernardo Ribeiro de
Moraes,98 “moratória, idiomaticamente, equivale a dilação, adiamento, prorrogação ou espera
que se concede para o pagamento de uma dívida vencida”.
A moratória não se confunde com o perdão de dívida, pois existe a obrigação de
adimplemento do débito tributário. Sacha Calmon99 esclarece que não se confunde com a
transação, pois esta última é “no fundo modus operandi de encerramento de discussão
judicial, bem como não é novação da obrigação, pois a “obrigação não é afetada [...], é apenas
acordo entre credor e devedor sobre as datas de pagar [...]” Pelo que se observa, o
parcelamento se assemelha à moratória, pois o que se vê é a mera liberalidade do credor, que
concede ao devedor prorrogação do prazo para pagamento, admitindo receber seu crédito em
forma de prestações.
O art. 152 do Código Tributário Nacional discorre sobre os tipos de moratória e
suas características:
Art. 152. A moratória somente pode ser concedida: I – em caráter geral: a) pela pessoa jurídica de direito público competente para instituir o tributo a que se refira; b) pela União, quanto a tributos de competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, quando simultaneamente concedida quanto aos tributos de competência federal e às obrigações de direito privado; II – em caráter individual, por despacho da autoridade administrativa, desde que autorizada por lei as condições do inciso anterior. Parágrafo único. A lei concessiva de moratória pode circunscrever expressamente a sua aplicabilidade à determinada região do território da pessoa jurídica de direito público que a expedir, ou a determinada classe ou categoria de sujeitos passivos.
96 Grifo nosso. 97 BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro, p. 844. 98 MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de direito tributário, p. 212. 99 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Manual de direito tributário, p. 445.
104
A União pode conceder moratória em relação a seus próprios tributos ou mesmo
em relação a tributos do Estado, do Distrito Federal e dos Municípios, desde que o faça
simultaneamente com seus próprios tributos e as obrigações de direito privado. De acordo
com a Súmula n. 248 do extinto Tribunal Federal de Recursos, o prazo da prescrição
interrompido pela confissão e parcelamento da dívida fiscal recomeça a fluir no dia em que o
devedor deixa de cumprir o acordo celebrado. Cumpre ressaltar que o referido entendimento
encontra-se em consonância com o inciso IV do art. 174 do Código Tributário Nacional.100
Aliomar Baleeiro, analisando a moratória, escreve:
[...] é mediada de ordem pública em caso de calamidade física, como seca, enchente, terremoto, etc., numa cidade ou região, ou de comoção política, que perturba violentamente a economia, causando pânico financeiro, ou impossibilidade material de satisfação das dívidas. A moratória representa mal menor, evitando que se alastre catastroficamente a crise ainda limitada a certas categorias profissionais ou a certas regiões.101
A moratória deve ser direcionada a fim de atingir o objetivo previamente
estabelecido na lei instituidora. A Administração Fazendária não tem poder discricionário
para decidir sobre esse instituto, haja vista o princípio da reserva legal.
Os requisitos para sua concessão são tratados no art. 153 do Código Tributário
Nacional:
Art. 153. A lei que conceda moratória em caráter geral ou autorize sua concessão em caráter individual especificará, sem prejuízo de outros requisitos: I – o prazo de duração do favor; II – as condições da concessão do favor em caráter individual; III – sendo caso: a) os tributos a que se aplica; b) o número de prestações e seus vencimentos, dentro do prazo a que se refere o inciso I, podendo atribuir a fixação de uns e de outros à autoridade administrativa, para cada caso de concessão em caráter individual; c) as garantias que devem ser fornecidas pelo beneficiado no caso de concessão em caráter individual.
100 “Art. 174. A ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em cinco anos, contados da data da sua
constituição definitiva. Parágrafo único. A prescrição se interrompe: [...] IV – por qualquer ato inequívoco ainda que extrajudicial, que importe em reconhecimento do débito pelo devedor.”
101 BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro, p. 844.
105
Pelo que se observa do artigo, as leis instituidoras de uma moratória devem
determinar um prazo de duração, até mesmo com número de prestações; os tributos a que se
aplicam a regra do benefício; e, no caso de moratória individual, as condições para poder
usufruir o beneficio, em especial as garantias que o sujeito passivo pode oferecer.
Ressalte-se, ainda, que o art. 153 do Código Tributário Nacional possibilitou a
inclusão de outros requisitos de acordo com a especificidade do caso. Não se pode perder de
vista que, de acordo com o art. 154 do mesmo Código,102 ressalvada disposição em contrário,
a moratória somente poderá beneficiar os créditos já definitivamente constituídos ou aqueles
cujo lançamento já tenha sido iniciado por ato preparatório notificado ao sujeito passivo.
Sobre o instituto da moratória, contribui Hugo de Brito Machado:
Se a lei não dispuser expressamente de outro modo, a moratória somente abrange os créditos definitivamente constituídos à data da lei ou do despacho que a conceder, ou cujo lançamento já tenha sido iniciado àquela data por ato regularmente notificado ao sujeito passivo (CTN, art. 154). São excluídos do benefício da moratória os que agirem com dolo, fraude ou simulação para obtê-lo. Provado o vício, é como se não houvesse sido concedido o favor.103
O art. 154 não traz, em seu conteúdo, o termo “condições”, enquanto o art. 155 o
utiliza quando determina que a moratória em caráter individual não gera direito adquirido e
deverá ser revista de oficio, sempre que for verificado que o contribuinte havia deixado de
cumprir requisitos para a concessão do favor, devendo, então, ser aplicadas as sanções,
conforme o caso. Verifica-se que o legislador lança mão de verbos diferentes para
acompanhar cada um desses termos, quais sejam, “satisfazer” para “condições” e “cumprir”
para “requisitos”.104
Relativamente à incidência de juros, pelo que se depreende da leitura do caput do
art. 155 do Código Tributário Nacional,105 este será aplicado somente na hipótese de
102 “Art. 154. Salvo disposição de lei em contrário, a moratória somente abrange os créditos definitivamente
constituídos à data da lei ou do despacho que a conceder, ou cujo lançamento já tenha sido iniciado àquela data por ato regularmente notificado ao sujeito passivo. Parágrafo único. A moratória não aproveita aos casos de dolo, fraude ou simulação do sujeito passivo ou do terceiro em benefício daquele.”
103 MACHADO, Hugo de Brito. Confissão de dívida tributária. Revista de Direito Tributário, p. 134-138. 104 JUNQUEIRA, Fábio. Parcelamento tributário & moratória, p. 85. 105 “Art. 155. A concessão da moratória em caráter individual não gera direito adquirido e será revogado de
ofício, sempre que se apure que o beneficiado não satisfazia ou deixou de satisfazer as condições ou não cumprira ou deixou de cumprir os requisitos para a concessão do favor, cobrando-se o crédito acrescido de juros de mora.”
106
revogação ou anulação, assim sendo, não há que se falar na incidência de juros de mora sobre
a moratória. Ademais, o parcelamento, como hipótese de suspensão da exigibilidade do
crédito tributário, constitui uma “espécie” de moratória, contudo, diferentemente desta, há a
incidência de juros de mora prevista em lei. Corroborando, como a moratória representa uma
dilação do pagamento da dívida, não seria razoável a incidência de juros sobre um crédito não
vencido.
10.4 Extinção da punibilidade penal pela novação
O instituto da novação previsto no direito civil tem sido freqüentemente utilizado
em matérias tributárias. Embora não exista previsão expressa de utilização no Código
Tributário Nacional, parte da doutrina vem utilizando a “novação” como causa de extinção de
obrigação tributária e, conseqüentemente, da punibilidade penal tributária.
O entendimento esposado por parte da doutrina é de que, no momento em que se
institui o parcelamento, passa a se constituir, para o Poder Público e o sujeito passivo, crédito
tributário diverso do anterior, mediante do nascimento de uma nova obrigação, extinguindo,
portanto, a obrigação anterior e, consequentemente, a representação penal dela recorrente.
Analisando o parcelamento e a novação, assevera Antônio Bianchini Neto:
Se é certo que logo que pensamos em dilação do prazo se nos afigura à mente o instituto da moratória, não deixa também de ser certo que somos levados a pensar numa verdadeira novação no campo do direito público, ao falarmos de parcelamento.106
O art. 360 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), dispõe:
Art. 360. Dá-se a novação: I – quando o devedor contrai com o credor nova dívida para extinguir e substituir a anterior; II – quando novo devedor sucede ao antigo, ficando este quite com o credor; III – quando, em virtude de obrigação nova, outro credor é substituído ao antigo, ficando o devedor quite com este.
106 BIANCHINI NETO, Antônio. Direito tributário comparado. In: BÍCERO, Vaner (Org.). Comentários ao
CTN, v. 5, p. 63.
107
Pelo que se depreende da leitura do art. 360 do Código Civil, a novação ocorre
quando o devedor contrai com o credor nova obrigação para extinguir e substituir dívida
anterior. O professor Clóvis Beviláqua aduz que “novação é a conversão de uma obrigação
em outra. Novatio est prioris debiti in aliam obligationem transfusio atque translatio”, ou
seja, “é um modelo de extinção do vínculo obrigatório, pela criação de outro, que absorve o
primeiro.”107
A novação representa a constituição de uma nova obrigação, diferente da
primeira, que se opera entre o credor e devedor, visando substituir e extinguir dívida anterior.
Dessa forma, faz-se necessário haver na relação animus novandi, ou seja, vontade de extinguir
dívida anterior com a efetivação de uma outra pelas partes envolvidas na composição.
Existem três espécies de novação: a objetiva ou real, a subjetiva ou pessoal e a
mista.
A novação objetiva ou real (art. 360, I, Código Civil) ocorre quando o devedor,
não estando em condições de saldar obrigação original, propõe ao credor, que aceita a
substituição por outra. Ocorre novação objetiva, mesmo que a segunda obrigação consista em
obrigação semelhante à primeira, desde que haja alguma alteração em relação à primeira. Por
exemplo, o devedor solicita novação da dívida contraída junto ao banco, mediante pagamento
de parte da dívida e parcelamento do restante, indicando nova garantia, bem como novas
condições relativas aos juros e amortizações.
Ocorre a novação subjetiva ou pessoal quando os sujeitos da relação jurídica são
substituídos. Pode ocorrer por substituição do devedor (art. 360, II, do Código Civil), ou por
substituição do credor (art. 360, III, do Código Civil). A novação subjetiva por substituição do
devedor pode ser efetuada independentemente do consentimento deste. Nesse caso,
denomina-se expromissão. A novação passiva pode, ainda, ser efetuada por ordem ou com o
consentimento do devedor, havendo nesse caso um novo contrato de que todos os interessados
participam, dando o consentimento deles.
Existe, ainda, uma modalidade conceituada pela doutrina como “novação mista”,
que por definição lógica ocorre quando, ao mesmo tempo, são substituídos os credores ou
devedores e o objeto.108
107 BEVILÁQUA, Clovis. Direito das obrigações, p. 130. 108 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, v. II, p. 322.
108
O instituto da novação não se presume, deve estar inequivocamente presente,
conforme consagra o art. 361 do Código Civil:
Art. 361. Não havendo ânimo de novar, expresso ou tácito, mas inequívoco, a segunda obrigação confirma simplesmente a primeira.
Com efeito, tem-se que o ânimo de “novar” é o critério que possibilita verificar se
efetivamente ocorreu a novação, caracterizada pela intenção das partes e demonstrada pela
manifestação dessa vontade, de forma expressa ou tácita. Não ocorre novação, por exemplo,
quando o credor simplesmente concede facilidades ao devedor, como a dilatação do prazo, o
parcelamento, ou, ainda, alteração na taxa de juros, pois a dívida continua a mesma, apenas
houve modificação em aspectos secundários.
Entretanto, os defensores da aplicação da novação no Direito Tributário,
argumentam que o art. 109 do Código Tributário Nacional prevê a utilização dos princípios do
Direito Civil em matéria tributária:
Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários.
A leitura do art. 109 do Código Tributário Nacional conduz ao entendimento de
que a utilização dos princípios gerais de direito privado, em matéria tributária, limita-se à
pesquisa do conteúdo, definição e alcance da norma, porém veda, expressamente, quanto à
definição dos efeitos tributários. Com efeito, a novação defendida via parcelamento tributário
não gera alteração na obrigação de tal forma a extingui-la. Dessa forma, estaria atuando nos
efeitos da legislação tributária no momento em que desonera o contribuinte da dívida.
Em verdade, ocorre de fato e de direito a suspensão do crédito tributário, enquanto
vigir o parcelamento, aplicando-se, subsidiariamente, as disposições relativas à moratória, e
não às modalidades de extinção do crédito tributário previstas no art. 156 do Código
Tributário Nacional,109 apontadas objetivamente pelo legislador.
109 “Art. 156. Extinguem o crédito tributário: I – o pagamento; II – a compensação; III – a transação; IV –
remissão; V – a prescrição e a decadência; VI – a conversão de depósito em renda; VII – o pagamento antecipado e a homologação do lançamento nos termos do disposto no art. 150 e seus §§ 1º e 4º; VIII – a consignação em pagamento, nos termos do disposto no § 2º do art. 164; IX – a decisão administrativa irreformável, assim entendida a definitiva na órbita administrativa, que não mais possa ser objeto de ação anulatória; X – a decisão judicial passada em julgado; XI – a dação em pagamento em bens imóveis, na
109
Com efeito, somente a lei poderá desonerar o contribuinte do pagamento do
crédito tributário, conforme art. 97 do Código Tributário Nacional:
Art. 97. Somente a lei pode estabelecer: [...]; VI – as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção de créditos tributários, ou de dispensa ou redução de penalidades. [...].
De acordo com o inciso VI do art. 97 do Código Tributário Nacional, a extinção
do crédito tributário somente ocorrerá de acordo com o princípio da reserva legal, uma vez
que somente a lei discorrerá sobre a extinção tributária. Em decorrência da expressão da lei,
limita-se, por esse ângulo, a interpretação relativista do instituto da novação, tendo em vista
que o alcance do instituto do parcelamento está previamente definido no inciso VI do art. 151
do Código Tributário Nacional.
O objetivo da Lei Complementar n. 104/2001, quando da inclusão do
parcelamento no Código Tributário Nacional, foi de pacificar o entendimento jurídico de que
a natureza dele é de suspensão do crédito tributário e não de extinção.
No momento em que se utiliza a novação como causa extintiva de obrigação
tributária, ocorre, nesse instante, a extinção de fato conexo a essa dívida, ou seja, a ação penal
pela prática de crime tributário, por infringência do disposto na Lei n. 8.137/90.
Assim, convém trazer à baila as disposições contidas no art. 34 da Lei n. 9.249/95,
que prevê como forma de extinção da punibilidade penal tributária, apenas, o pagamento
integral, conforme descrito:
Art. 34. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei 8.137 de 27 de dezembro de 1990, e na Lei 4.729/65, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia.
Como se vê, o art. 34 da Lei n. 9.249/95 elegeu apenas o pagamento, assim
entendido a “quitação integral”, como causa extintiva da punibilidade penal. Entretanto, a 5ª
forma e condições estabelecidas em lei. (Incluído pela LCP n. 104, de 10/1/2001); Parágrafo único. A lei disporá quanto aos efeitos da extinção total ou parcial do crédito sobre a ulterior verificação da irregularidade da sua constituição, observado o disposto nos arts. 144 e 149.”
110
Turma do Superior Tribunal de Justiça, em diversos julgados, decidiu que o parcelamento é
causa de extinção da punibilidade, conforme se observa:
Habeas corpus. Omissão de recolhimento de contribuições previdenciárias. Parcelamento anterior à denúncia. Extinção da punibilidade. Desnecessidade do pagamento integral. Novação da dívida. Natureza da relação jurídica alterada. Ilícito civil lato sensu. Mecanismos estatais para a satisfação dos seus créditos. Solução no juízo apropriado. Recurso provido. Uma vez deferido o parcelamento, em momento anterior ao recebimento da
denúncia, verifica-se a extinção da punibilidade prevista no art. 34 da Lei
n.º 9.249/95, sendo desnecessário o pagamento integral do débito para
tanto. O parcelamento cria uma nova obrigação, extinguindo a anterior,
pois se verifica uma novação da dívida. O instituto envolve transação entre as partes credora e devedora, alterando a natureza da obrigação. (Ação de HC n. 2002/0050643-0, Rel. Gilson Dipp, 5a Turma, j. 17/12/2002, grifos nossos)
Esse também é o entendimento da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça,
consoante a ementa transcrita:
Recurso Ordinário em habeas corpus. Omissão de recolhimento de icms. Parcelamento anterior à denúncia. Novação extinção da punibilidade desnecessidade do pagamento integral. 1. Pacificado o entendimento, no Superior Tribunal de Justiça, de que se a
Fazenda Pública deferir o parcelamento do débito tributário, em momento
anterior ao recebimento da denúncia, verificar-se-á a extinção da
punibilidade, prevista no art. 34 da Lei n. 9.249/95, sendo desnecessário o
pagamento integral do débito.
2. Recurso provido. Acórdão: Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, dar provimento ao recurso, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Vicente Leal, Fernando Gonçalves e Hamilton Carvalhido votaram com o Senhor Ministro Relator. Ausente, ocasionalmente, o Senhor Ministro Fontes de Alencar. (Ação de HC n. 2002/0001079-0, Rel. Paulo Gallotti, 6a Turma, j. 18/2/2003, grifo nosso)
Como se observa, o Superior Tribunal de Justiça invoca em sua decisão o instituto
da novação para justificar a extinção da punibilidade penal tributária, declarando que houve
uma transação entre a parte credora e devedora e, conseqüentemente, alteração na natureza da
relação jurídica.
Todavia, a relação jurídica referenciada pelo órgão superior é representada por
uma inter-relação entre dois sujeitos, com um objeto predeterminado ligado por um vínculo
motivacional. O credor, sujeito ativo, representado pelo Estado, é a entidade que detém a
111
titularidade do direito que se relaciona juridicamente com o devedor, sujeito passivo,
representado pelo contribuinte, pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade
pecuniária. Com efeito, o simples ato de parcelar não incorre em qualquer alteração na relação
jurídica, defendida pela ilibada Corte.
A relação jurídica entre a Fazenda Pública e o contribuinte é regida integralmente
pelo direito público e administrada pelos institutos tributários, não se confundindo com as
outras hipóteses de extinção das obrigações previstas no Código Civil. Ademais, a
característica principal da figura jurídica própria do direito privado é a livre disponibilidade
do direito, o que não pode ser concebido pelo ente público.
O professor Aurélio Pitanga Seixas Filho disserta sobre o tema:
[…] pode ser afirmado que o Fisco, como sujeito ativo da relação tributária, não é um mero credor titular de um direito subjetivo — frente ao contribuinte, sujeito passivo, porém, como um órgão do Poder Executivo, exerce a sua função pública de exigir o correto pagamento do tributo, não aplicando as regras de direito privado, mas sim num regime de direito público, que informa integralmente a relação jurídica entre ambos.110
Com a devida vênia, pelo que se extrai das decisões proferidas pela Corte
Superior, não houve o animus novandi, ou seja, vontade de novar. Em momento algum
ocorreu qualquer intenção de realizar a novação, pois o parcelamento apenas confirmou a
obrigação assumida originalmente, representando, quando muito, mero reforço da primeira
obrigação pela segunda.
A novação não se presume, mas requer assentimento total e incontestável, uma
vez que estará se extinguindo uma obrigação para a criação de outra que, obviamente,
implicará as partes que a compactuaram. A nova obrigação firmada há de ser incompatível
com a primeira, donde se evidencia o propósito de extingui-la. Ademais, o crédito tributário
parcelado resiste intacto até o pagamento total.
O professor Washington de Barros Monteiro resume a questão de forma
inquestionável: “Copiosa a jurisprudência a respeito, tornando-se dignos de menção os
julgados seguinte [...]; c) – não ocorre novação quando o credor tolera que o devedor lhe
pague parceladamente [...]”.111
110 SEIXAS FILHO, Aurélio Pitanga. Natureza jurídica da relação tributária, jun. 2005. Disponível em:
http://www.fdc.br/revista_6/docente/02.pdf. Acesso em: 12 nov. 2007. 111 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito das obrigações – 1ª parte, v. 4.
112
Nesse sentido, o simples fato de parcelar a dívida não constitui requisito à
novação, pois não ocorreu, efetivamente, a transformação em nova obrigação, muito menos
qualquer alteração em seu objeto, tampouco na natureza da relação jurídica.
Com efeito, Sílvio Rodrigues conceitua a novação nos seguintes termos:
[...] há novação quando as partes criam obrigação nova, para extinguir uma antiga. Assim, a novação é um modo de extinção de obrigações. Todavia, ao mesmo tempo em que através dela a primitiva obrigação perece, uma outra surge, tomando seu lugar. Aliás, é o surgimento desta última que produz a extinção da anterior. Dessa maneira, a novação é uma operação que de um mesmo alento, extingue uma obrigação e a substitui por outra, que nasce naquele instante. Portanto, ela representa, e como apontam os Mazeaud, um processo de simplificação, pois por seu intermédio dispensa-se o recurso a duas operações distintas – extinção da antiga e criação da nova obrigação –, obtendo as partes igual resultado através de um único ato. Com efeito, por meio da novação a primeira obrigação se extingue, sendo substituída por nova relação jurídica.112
Conforme se extrai da lição de Sílvio Rodrigues,113 o ânimo de novar precisa ser
expresso ou, ao menos, deduzido claramente nos termos da nova obrigação, porque, na falta
dessa intenção, devem subsistir ambas as obrigações, vindo a segunda a roborar a primeira.
Dessa forma, “a redução do montante da dívida ou a modificação na taxa de juros
não configuram novação, mas tão-só o empenho do credor em receber o seu crédito”, ressalva
Washington de Barros Monteiro.114
Ademais, conforme remansosa jurisprudência, a intenção de novar não deve
resultar de conjecturas, mas de declaração expressa das partes, a fim de possibilitar a aferição
do impostergável animus novandi.
Nesse sentido, o desembargador Pinheiro Lago, da Segunda Câmara Cível do
Tribunal de Justiça de Minas Gerais, discorreu:
[...] ultrapassada a questão do valor do título, cumpre verificar a alegação da existência de novação, o que imporia a extinção do contrato originário e desoneração dos fiadores. Todavia, observa-se que também com relação à
novação, razão não assiste aos Apelantes, eis que não há comprovação do
animus novandi, tendo havido, simplesmente, anuência, por parte do
Apelado, quanto ao parcelamento da dívida originária [...]. (TJMG, 2ª Câmara Cível, Apelação Cível n. 158.865-6.00, Rel. Pinheiro Lago, j. 19/9/2000, grifo nosso).
112 RODRIGUES, Silvio. Direito civil, v. 2, p. 214. 113 Cf. RODRIGUES, Silvio. Direito civil. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1976, v. 2. 114 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil, v. 4, p. 297.
113
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais pacificou, em seus julgados, entendimento
de que a utilização do instituto da novação é causa suspensiva de obrigação, a saber:
Execução fiscal. Acordo sobre o parcelamento de dívida. Novação da obrigação. Inexistência. Extinção do processo. Inocorrência. Suspensão da
execução durante o prazo concedido pelo credor, para que o devedor
cumpra voluntariamente a obrigação. Término do prazo sem o cumprimento da obrigação. Retomada do curso do processo. O acordo sobre o parcelamento da dívida suspende a execução fiscal durante o prazo concedido pelo credor para que o devedor cumpra voluntariamente a obrigação, não importando em novação da obrigação e nem na extinção do processo. Findo o prazo avençado sem cumprimento da obrigação, o processo retomará o seu curso; Súmula: DERAM PROVIMENTO AO RECURSO. (STJMG, Processo n. 1.0000.00.312359-3/000 [1], Rel. Fernando Bráulio. Data do acórdão: 25/9/2003. Data da publicação: 4/2/2004, grifo nosso) NOVAÇÃO – ANIMUS NOVANDI – NECESSIDADE – PARCELAMENTO DA DÍVIDA
– NÃO CARACTERIZA A NOVAÇÃO. Um dos principais requisitos da novação é o ‘animus novandi’, quer dizer, a intenção de renovar. A simples quitação
da dívida pelos avalistas, mesmo que feita de forma parcelada, não constitui
novação. (grifo nosso) Súmula: REJEITARAM PRELIMINAR E NEGARAM PROVIMENTO. (STJMG, Processo n. 1.0183.02.038527-8/001[1], Rel. Vanessa Verdolim Hudson Andrade. Data do acórdão: 5/10/2004. Data da publicação: 15/10/2004, grifo nosso)
Pelo que se observa, as decisões do Tribunal de Justiça de Minas Gerais refletem
entendimento diverso das decisões do Superior Tribunal de Justiça em relação à utilização do
instituto da novação.
Entretanto, merece destaque especial um julgado do Superior Tribunal de Justiça,
do brilhante ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, que sintetizou de forma clara a relação entre
a novação e o parcelamento da dívida, sob a ótica da relação jurídica pelas partes:
RHC – Processual penal – Sonegação fiscal – Parcelamento da dívida – Extinção da punibilidade – Lei n. 8.137, de 27/1290. Lei n. 8.383, de 30/12/91 – extinção do crédito tributário (CTN, art. 156) – a infração penal, como causa, gera relação jurídica entre o estado (sujeito ativo) e o agente (sujeito passivo). No crime tributário a sonegação fiscal atua como causa. O parcelamento do débito, quando permitido repercute na relação jurídica, especificamente, no conteúdo, dado modificar o direito de recebimento do credor. Em havendo parcelamento (acordo de vontades), enquanto não vencido o prazo das prestações, o crédito não é exigível. O débito, pelo menos em parte, torna-se vincendo. O parcelamento não se confunde com a
novação (esta implica substituição da relação jurídica, com mudança do
devedor, do credor, ou do objeto da prestação). Parcelamento, ao contrário,
114
mantém a relação jurídica e repercute apenas nas condições do pagamento.
O parcelamento não está arrolado entre as causas de extinção do crédito
tributário (CTN, art. 156). Impõe-se, também aqui, interpretação lógico-sistemática; invoquem-se, ademais, os princípios gerais das obrigações. O
parcelamento não é causa extintiva da obrigação tributária. Todavia, em
sendo honrado, implica pagamento. Assim, obtido o parcelamento, na
vigência e condições da lei n. 8.137/90, mantém-se a relação jurídica
constituída [...]. (STJ, Ação de habeas corpus – RHC n. 3.973-6/RS, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, 6a Turma, j. 12/12/2004, grifos nossos)
Com efeito, assevera o ministro em seu voto que “a relação jurídica continuada
vincula o mesmo sujeito pretensor e o mesmo sujeito devedor, inalterado também o conteúdo
(complexo de direitos e obrigações), com ressalva: o preço, ao invés de pagamento em um só
ato, será efetuado mediante parcelas”.
Depreende-se da decisão do ilustre magistrado que a novação exige a constituição
de uma nova obrigação, o que efetivamente não ocorreu, pois o parcelamento não representa
causa extintiva da obrigação tributária, uma vez que fica mantida a relação jurídica
originalmente constituída.
Contudo, a auspiciosa decisão do douto ministro não se filia, no próprio Superior
Tribunal de Justiça, à corrente que sustenta que o parcelamento da dívida representa
“novação” e, conseqüentemente, extinção do crédito tributário.
Nesse mesmo diapasão, Maria Leite Vieira assevera:
Ora, se estas são as maneiras de se extinguir a relação obrigacional a que adstritos os sujeitos ativos e passivos, fácil é concluir, também por este caminho que os princípios que norteiam o Direito Tributário não deixam espaço para a figura da novação. Aqui, na trilha do Direito Tributário, não há que se falar em crédito e obrigação, senão naquelas nascidas com a ocorrência do fato imponível (fato jurídico tributário), suspensos nas condições elencadas e extintos por uma das modalidades estipuladas na lei de regência. Em qualquer uma das hipóteses arroladas no art. 151, o crédito permanece pendente de solução, subsiste incólume e esse obstáculo rompido dará, de imediato, ensejo a exigibilidade por parte do sujeito pretensor, o sujeito ativo.115
Ressalte-se, ainda, o entendimento do Pretório Excelso relativamente ao instituto
da novação, conforme se extrai do despacho do ministro relator Nelson Jobim, reproduzido
em parte:
115 VIEIRA, Maria Leonor Leite. A suspensão da exigibilidade do crédito tributário, p. 103.
115
Apelação cível – Ação de revisão de cláusulas contratual cumulada com repetição de indébito – Possibilidade de revisão dos contratos anteriores – Inexistência de novação – Incidência do Código de Defesa do Consumidor nos contratos bancários juros constitucionais – Auto-aplicabilidade – Art. 192, § 3º, da lei maior – Atualização do débito pelo INPC – Capitalização de juros – Vedação – Súmula n. 121, do STF – Comissão de permanência fixada ao alvedrio exclusivo da instituição financeira cláusula potestativa – Multa contratual limitação em 2% do saldo devedor – Recurso desprovido Novação é forma de extinção da dívida contraída, gerando-se uma nova
obrigação, que substitui a anterior. Em se tratando de renegociação de
débitos passados, apenas servindo para confirmar obrigação anterior e
estipular novos prazos para pagamento e outros encargos, não ocorre o
aludido instituto [...]. (STJ, RE n. 388.878-1, Rel. Min. Nelson Jobim, j. 25/6/2003, grifo nosso)
O que se observa é um entendimento jurisprudencial de que o instituto da novação
deve ocorrer de forma inquestionável, sob pena de confirmar a obrigação anterior.
Em relação aos crimes contra a ordem tributária, a questão foi enfrentada pelo
STF, que se posicionou no sentido de que o simples parcelamento do débito não significava o
pagamento do tributo, para efeito de extinção da punibilidade penal, consoante a ementa
transcrita:
Habeas corpus. Crime contra a ordem tributária. Leis ns. 8.137/1990 e 9.249/1995. 2. Alegação de constrangimento ilegal, por não ter a sentença condenatória nem o acórdão que a confirmou reconhecido a extinção da punibilidade, na forma do art. 34, da Lei n. 9.249/1995. 3. O Plenário do STF, a 4.10.1995, ao julgar a Questão de Ordem no Inquérito n. 1028-6/RS, assentou que o simples parcelamento do débito não significava o pagamento do tributo, para efeito de extinção da punibilidade. 4. Hipótese em que a primeira parcela do débito parcelado venceu em 24.4.1995, quando a denúncia já fora recebida a 21.3.1995, estando a ação penal em curso a mais de 30 dias. 5. Habeas corpus indeferido. (STF, Processo RHC n. 89152-SC, Rel. Ricardo Lewandowski, DJ 22/9/2006)
Em outro julgado, o STF se manifestou:
HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. PARCELAMENTO DO
DÉBITO. SUSPENSÃO DA AÇÃO PENAL. ORDEM CONCEDIDA. 1. Nos termos do art. 9º da Lei n. 10.684/2003, o parcelamento do crédito
tributário implica, automaticamente, a suspensão da sua inexigibilidade. Assim, se o crédito não é exigível, não há de se falar em sonegação ou redução de tributo, o que impede, por via de consequência, a persecução penal. Precedentes. 2. Existência, nos autos, de cópia de ofício da Receita Federal que informa estarem os débitos do paciente incluídos no Programa de Parcelamento
116
Especial (PAES), bem como de documentos que comprovam estar o paciente em dia com suas obrigações. 3. Embora tramite, na Corte, ação direta de inconstitucionalidade contra o art. 9º da Lei n. 10.684/03, pesa a favor deste dispositivo presunção de constitucionalidade, razão pela qual ele deve ser aplicado até que sobrevenha a eventual declaração de inconstitucionalidade. 4. Ordem concedida para que a ação penal de origem seja suspensa, até que
ocorra a quitação integral do débito, quando, então, deverá ser declarada
extinta punibilidade do paciente. STF, HC, Processo n. 86465/ES, Rel. Joaquim Barbosa, 2ª Turma, j. 6/2/2007, grifo nosso)
Assim, a decisão do Pretório Excelso é no sentido de que a simples obtenção do
parcelamento administrativo não constitui causa de extinção da punibilidade, pois, a exemplo
do entendimento que se firmou em relação ao art. 14 da Lei n. 8.137/90, o art. 34 da Lei n.
9.249/95 só assegura a decretação da extinção se a dívida for integralmente satisfeita antes do
recebimento da denúncia, o que não ocorre antes de solvida a última parcela do pagamento
fracionado.
Portanto, a análise da novação civil aplicada ao Direito Tributário encontra
diversas interpretações e parece estar longe o consenso em relação à utilização do referido
instituto. Contudo, as fundamentações das decisões do Superior Tribunal de Justiça,
apresentam julgados que conflitam com o ordenamento jurídico nacional, refletido pelas
normas, doutrinas e julgados de outras cortes superiores.
117
11 DESCRIMINALIZAÇÃO DA DELINQUÊNCIA TRIBUTÁRIA
Pelo que se viu nos últimos anos, o Direito Penal mostrou-se ineficaz no combate
à delinqüência tributária. Historicamente, o desenvolvimento do sistema penal tributário
nacional teve como objetivo principal a arrecadação de impostos para fazer frente ao
constante aumento dos gastos públicos. Ao longo do tempo, o Direito Penal tornou-se
importante instrumento estatal de desincentivo à sonegação fiscal.
A visão rasa de que o Direito Penal impositivo pudesse funcionar como freio à
sonegação não se concretizou. A constante criminalização do direito não pôs fim à crescente
sonegação. Apesar de todos os diplomas penais tributários editados, a delinqüência tributária
persistiu de forma mais recrudescida, e a principal conseqüência foi um inchaço legislativo de
onde se conclui que “criminalizar não é a solução”.
Ademais, o complexo e inoperante sistema penal tributário brasileiro, refletido por
legislações impróprias, confusas e casuísticas, a maioria sem qualquer laivo de lesividade
penal, criadas exclusivamente para compelir o indivíduo ao pagamento do tributo, contribui,
ainda mais, para o descrédito do atual modelo.
A criminalização e, conseqüentemente, a aplicação da sanção penal
correspondente não se legitima quando não afrontar bens jurídicos de forma acentuada e com
repercussão social. Em verdade, esse tipo de crime geralmente atinge quem tem maior poder
econômico e, aos olhos da sociedade, não representa, necessariamente, uma ameaça à ordem
social.
Abarrotam-se por todo Brasil representações penais oriundas do cometimento de
crime contra a ordem tributária. Delegacias de polícia e varas especializadas da justiça são
criadas todos os anos para fazer frente ao imenso volume de trabalho. A apuração penal
pressupõe a movimentação de toda máquina judiciária.
Pelo que se verifica atualmente, em razão do rígido formalismo processual, os
honorários são pagos aos advogados não para pôr termo ao processo, mas para protelar ao
máximo a sentença na expectativa da consumação da prescrição, o que, na maioria das vezes,
acontece.
118
É nesse cenário de incerteza que se propõe uma alternativa para se tratar a
delinqüência tributária no Brasil, ou seja, a retirada do ilícito tributário do rol das condutas
tuteladas pelo Direito Penal e sua transferência para o Direito Administrativo Sancionador.
119
11.1 Direito Administrativo Sancionador
O Direito Administrativo Sancionador como sub-ramo do Direito Administrativo,
refere-se, basicamente, à capacidade do Estado de impor sanções aos seus administrados.
A potestade sancionatória administrativa visa coibir comportamentos socialmente
danosos, por meio de juízos técnico-legais, buscando a liberdade de valoração do fato, da
norma, sob uma perspectiva preventiva.
A diferença entre o Direito Administrativo Sancionador e o Direito Penal é
extremamente tênue, distinguindo-se, basicamente, pelo fato de que quem exerce a potestade
sancionatória é o Estado-Juiz.
Em relação à similaridade dos dois ramos do direito, escreveu Guilherme
Feliciano:
A par disso, aduza-se ainda que os tipos administrativos são, de regra, mais abertos que os tipos penais estritos, que vazam normas penais incriminadoras (e, no entanto, ainda assim são ― ou devem ser ― tipos). Quanto ao mais, porém, o Direito Administrativo sancionador segue as linhas gerais do Direito Penal, mesmo porque, a rigor, a polícia administrativa tanto pode agir preventivamente (como, por exemplo, proibindo o porte de arma ou a direção de veículos automotores), como pode agir repressivamente (a exemplo do que ocorre quando apreende a arma usada indevidamente ou a licença do motorista infrator). No entanto, pode-se dizer que, nas duas hipóteses, ela está tentando impedir que o comportamento individual cause prejuízos maiores à coletividade; nesse sentido, é certo dizer que a polícia administrativa é preventiva.116
Para Glênio Guedes, o Direito Administrativo Sancionador distingue-se do Direito
Penal por três aspectos: a) a culpa é de rigor, e não o dolo (a culpa não necessita integrar o
tipo como ocorre no Direito Penal); b) o Direito Administrativo Sancionador é um Direito
sumamente preventivo e não preventivo-repressivo, como é o Direito Penal; e c) prevalece, no
campo de ação do Direito Administrativo Sancionador, os ilícitos de perigo abstrato.117
116 FELICIANO, Guilherme Guimarães. Sobre a competência da justiça do trabalho para causas de direito
administrativo sancionador. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 688, 24 maio 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6755>. Acesso em: 8 abr. 2009.
117 GUEDES, Glênio Sabbad. O direito administrativo sancionador e as infrações de perigo abstrato: breves considerações, p. 1. Disponível em: http://www.bcb.gov.br/crsfn/doutrina/Artigo%20-%20Infra%C3%A7%C3%B5es%20 de%20perigo%20abstrato.pdf. Acesso em: 24 abr. 2005.
120
Entretanto, o autor propõe que o Direito Administrativo Sancionador seja
empregado aos ilícitos que lesam ou põem em perigo bens jurídicos fundamentais,
resguardando, quando de sua aplicação, o conjunto de regras e princípios que reflitam o
Estado Democrático de Direito e a segurança jurídica.
Não se pode perder de perspectiva que o Sistema legal brasileiro prevê aplicação
de medidas administrativas repressivas, de maneira análoga aos ilícitos penais. A legislação
trabalhista,118 bem como a fiscal,119 prevê multas agravadas nos casos de simulação, ardil,
desacato e embaraço de forma semelhante às ações previstas no Direito Penal. Da mesma
forma, existem também, administrativamente, circunstâncias atenuantes ou agravantes, além
do alcance e valoração da situação econômico-financeira do infrator e dobra da multa em caso
de reincidência.
No Direito Administrativo Sancionador, a subjetividade da conduta não é
mensurada, logo, não importa se o agente agiu com culpa ou dolo, ocorrendo a
responsabilidade objetiva. Todavia, a aplicação da sanção obedece ao princípio da legalidade,
nula poena sine lege, princípio básico do Estado Democrático de Direito.
Em relação à culpabilidade à luz do Direito Administrativo Sancionador, dissertou
Guilherme Feliciano:
Quanto à culpabilidade, ela se dirige, no ilícito penal, ao íntimo de cada agente, para ali encontrar a consciência da ilicitude (atual ou potencial), assumindo foros estigmatizantes; já no ilícito administrativo, há tão-só um juízo de mera censura social, presumindo-se consabida a ilicitude da conduta. Enfim, quanto à sanção, entre os ilícitos penais trata-se de uma pena, que tem sentido expiatório e ressocializador; no ilícito administrativo, não há pena stricto sensu, mas ato de coerção administrativa sem função ressocializadora.120
Em verdade, deve o administrado observar as normas impostas pelo
administrador, aplicando, em caso de sua violação, sanções extrapenais. Assim, não seria mais
possível a imposição da pena de dez cestas básicas como forma de reprovação à sonegação de
centenas de milhões de reais.
118 Os arts. 3° e 5º da Lei n. 7.855/1989 e os arts. 75 e 351 da CLT, art. 2º da Portaria n. 290, de 11/4/1997. 119 Decreto n. 4543/2002 e Lei n. 9.430/1996 120 FELICIANO, Guilherme Guimarães. Sobre a competência da justiça do trabalho para causas de direito
administrativo sancionador. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 688, 24 maio 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6755>. Acesso em: 8 abr. 2009.
121
Condutas como descaminho e contrabando poderiam ser tratadas por meio de
ações administrativas preventivas, como controle maior das fronteiras, intensificação de
fiscalização em zonas primárias e secundárias e orientações gerais. Depreende-se que tais
ações possuem, em sua essência, características administrativas, em razão de sua função
regulatória.
A natureza essencialmente preventiva do Direito Administrativo Sancionador só
vem confirmar a aplicação de sanções com caráter recompositivo mais adequado que as
impostas pelo Direito Penal. O Direito Administrativo Sancionador protege a ordem jurídica
cominando sanções e penas. É certo que não cria bens jurídicos, mas acrescenta a tutela aos já
existentes. A sanção na esfera administrativa é a mais adequada para punir a delinqüência
tributária, em razão de serem ultrapassados facilmente os óbices verificados na esfera penal.
Ademais, inúmeras condutas previstas na Lei n. 8.137/90 não passam de mero
ilícito civil, conquanto em caso de violação deverá ser aplicada a ação administrativa,
guardando o Direito Penal como último estágio sancionatório.
A crescente criminalização do Direito Penal nacional revela-se na contramão de
outros países. Cita-se, a título de exemplo, o Direito Administrativo Sancionador francês com
total independência do Direito Penal, lidando exclusivamente com sanções aos administrados
e, ao contrário do Brasil, versando sobre toda a sorte de relação e atos da Administração
Pública.
Em verdade, em caso de conflito tanto o administrador quanto o administrado
poderão se socorrer ao Poder Judiciário que pela natureza e função poderá ser chamado a
resolver as situações contenciosas.121
Atualmente, existem inúmeras ações contrárias ao direito que são erigidas pelo
Direito Administrativo. Trata-se das multas moratórias de natureza tributária, infrações de
trânsitos, autuações dos órgãos de defesa do consumidor, dentre outras.
Em alguns casos, o Direito Administrativo Sancionador revela-se extremamente
repressor muitas das vezes mais que o próprio Direito Penal, pois, diferentemente deste, que
possui penas alternativas, na sanção administrativa não há, e na maioria das vezes incide
diretamente sobre a renda e o patrimônio do agente. É o caso da pena de perdimento em
veículos, mercadorias ou moedas transportadas ou utilizadas em desacordo com a lei (Decreto
n. 4.543, de 26 de dezembro de 2002).
121 SEABRA FAGUNDES, M. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, p. 125.
122
Exemplificando, a declaração inidônea informada para a Administração Pública,
visando à redução ou suspensão do pagamento do tributo, poderia ser punida, objetivamente,
por meio de ações administrativo-repressivas, obviamente, proporcionais ao ilícito cometido.
A suspensão do alvará de funcionamento, a não-certificação de regularidade
fiscal, a declaração de inidoneidade, dentre outras, são exemplos de sanções administrativas:
A jurisdição tutelatória dos ilícitos tributários está relacionada diretamente ao
binômio, Fisco-contribuinte (administrador-administrado), razão pela qual se identifica mais
adequadamente com o Direito Administrativo. Por outro lado, como a delinqüência tributária
causa graves prejuízos à Administração Pública, a responsabilidade deveria, por certo, ser
transferida ao Estado como Administrador, em razão de seu poder regulamentatório.
Segundo o professor Cezar Roberto Bitencourt, as autoridades governamentais
adotam políticas de exacerbação e ampliação dos meios de combate à criminalidade como
solução para problemas sociais, políticos e econômicos que afligem a sociedade. “Utilizam o
Direito Penal como panacéia de todos os males”.122 É a utilização do Direito Penal máximo
ou, conforme assevera Cezar Bitencourt, o “Direito Penal do Terror”.
Nessa linha de pensamento, leciona Hugo de Brito Machado:
O melhor instrumento para o combate ao crime, no que concerne especificamente aos crimes contra a ordem tributária, é o respeito ao contribuinte. Respeito que começa com a redução da enorme carga tributária a ele imposta. [...]. Vai até mesmo às interpretações inteiramente inadmissíveis, visivelmente distorcidas, das normas da legislação tributária, tendentes a lhe negar os direitos mais elementares. [...]. E não obstante seja o direito penal de grande importância como elemento de controle social, realmente a sua utilização não pode ser banalizada. Na medida em que ilícitos de menor importância social e, sobretudo aqueles que menos afetam o sentimento ético das pessoas, e por isto mesmo despertam menor censura da opinião pública são definidos como crime, o Direito Penal se banaliza e perde eficácia. Assim, para receberem a proteção da lei penal, os bens jurídicos devem ser cuidadosamente selecionados. Só aqueles mais importantes para o convício social, cuja proteção não se condiga eficaz por outros meios, para cuja
122 BITENCOURT, Cezar Roberto. Princípios garantistas e a delinqüência do colarinho branco. Revista
Brasileira de Ciências Criminais, p. 118.
123
proteção se revelem inadequadas as sanções de outra ordem, devem ser definidos como crime.123
O próprio desenvolvimento das atividades empresariais, em decorrência do
dinamismo e da globalização do comércio, impõe mecanismos mais eficazes de controle
social. Para dar ao sistema penal a eficiência desejada, deve-se reduzir a sua área de
incidência mediante um amplo processo de descriminalização, reservando ao Direito Penal a
ultima ratio.
O professor René Ariel Dotti conceitua a ultima ratio ou princípio da intervenção
mínima:
Visa restringir a incidência das normas incriminadoras aos casos de ofensas aos bens jurídicos fundamentais, reservando-se para os demais ramos do
ordenamento jurídico a vasta gama de ilicitudes de menor expressão, em termos de dano ou perigo de dano. A aplicação do princípio, resguarda o prestígio da ciência penal e do magistério punitivo contra os males da exaustão e da insegurança que a conduz a chamada inflação legislativa.124
Nesse sentido também é a lição de Ney Moura:
Conformado a sua missão jurídica, o Direito Penal tem muito a oferecer a sociedade que o constrói. Desde que, evidentemente, sejam respeitados os seus princípios fundamentais, especialmente os que informam como de intervenção mínima, democracia e, essencialmente, tutelar. Não pode intervir a todo momento, nem onde não seja indispensável e só pode atuar para proteger o bem jurídico.125
Os bens jurídicos, para serem tutelados pelo Estado, devem possuir relevância
social. Eleger o erário como sujeito passivo do ato criminoso, por si só, não justifica seu
caráter ofensivo.
Segundo o professor Cezar Roberto Bitencourt, não é qualquer fato jurídico que
possui relevância social para a proteção do Direito Penal, razão pela qual o Estado deveria
observar o “princípio da intervenção mínima”. Da lição, extrai-se:
[...] ‘o princípio da intervenção mínima’ orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para proteção de determinado
123 MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária, p. 21. 124 DOTTI, René Ariel. Bases e alternativas para o sistema de penas, p. 110, grifo nosso. 125 TELES, Ney Moura. Direito penal: parte geral, v. I, p. 46-47.
124
bem jurídico. Se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável. Se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas e não as penais.126
Assim, deve-se perquirir a natureza ontológica de um ilícito para tipificá-lo como
crime. Todavia, o que se verifica é um número excessivo de legislações extravagantes que
provocam um verdadeiro inchaço penal. Na prática, observa-se a utilização, pelo legislador,
do Direito Penal para a cobrança de impostos.
Nesse sentido, a reprovabilidade do comportamento possui pouca importância, em
relação às graves ofensas a outros objetos jurídicos, razão pela qual esse tipo de
periculosidade social não deveria ser tutelado penalmente pelo Estado, ou seja, pago o tributo,
satisfeitas todas as exigências da Fazenda Pública, não há por que falar em reeducação do
criminoso, pois o que interessa ao Estado, como afirmamos, é exatamente ressarcir-se de
todos os danos sofridos.127
A forma como foi concebido o atual modelo penal tributário, no qual se decreta a
extinção da punibilidade de todos os crimes praticados caso haja o pagamento, reflete,
claramente, a função arrecadatória da norma penal. Segundo Nabarrete Neto, “a sistemática
adotada pelo legislador privilegia puramente o pagamento da exação sonegada. Com isso,
utiliza-se a ameaça do processo e da pena, como expedientes a fim de compelir o agente ao
pagamento da dívida”.128
Assim, no momento em que privilegia o pagamento como fator de extinção penal,
declara a disponibilidade jurídica do bem protegido. Com efeito, repise-se, a criminalização
da sonegação reflete claramente na utilização do Direito Penal como instrumento de cobrança
de impostos.
Em relação à matéria, escreveu o Hugo de Brito Machado:
Não devemos confundir a ordem tributária com o interesse imediato da Fazenda Pública, especialmente quanto a comodidade na arrecadação dos tributos. Essa comodidade pode ser eventualmente afetada sem que, todavia, ocorra lesão ou perigo de lesão à ordem tributária [...].129
126 BITENCOURT. Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral, v. 1, p. 232. 127 NUNES, Vidal Serrano. A extinção da punibilidade nos crimes contra a organização tributária. Cadernos de
Direito Tributário e Finanças Públicas, p. 117-119. 128 NABARRETE NETO, André. Extinção da punibilidade nos crimes contra a ordem tributária. Revista
Brasileira de Ciências Criminais, p. 172. 129 MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária, p. 20.
125
Existe conduta humana que se amolda à definição dada de um crime, contudo não
preenche suas características antijurídicas para ser erigida pelo Direito Penal. Ações
meramente imorais, anti-sociais, reprováveis, escandalosas ou indesejáveis, ainda que graves,
não deverão ser protegidas pela tutela penal. O Direito Penal deve exercer seu caráter
intimidador, contudo, tratando-se de matéria tributária, existem meios extrapenais eficazes
para o controle da delinqüência tributária. Nesse sentido, a criminalização não pode ser
banalizada, tampouco utilizada como instrumento da vontade do legislador tributário.
Esse também é o pensamento de Cezar Roberto Bitencourt:
Atualmente se vivencia uma sede de punir, constatando-se uma febril criminalização: novos tipos penais e exasperação das sanções criminais completam este panorama tétrico. As políticas de descriminalização, despenalização e desjurisdicionalização não fazem mais parte da ordem do dia. Orquestra-se uma política de reforma legislativa nas áreas de direito material que apontam no rumo da criminalização maciça, no agravamento das sanções penais, no endurecimento dos regimes penais, e na área processual na ‘abreviação’, redução, simplificação e remição de obstáculos formais a uma imediata e funcional resposta penal.130
A tendência do Estado moderno é de desregulamentação e descriminalização de
condutas, tornando-o mais ágil e concentrando toda rigidez do Direito Penal às circunstâncias
nas quais se verifiquem prejuízos imprescindíveis às condições sociais essenciais. Assim,
deve-se deixar para as regras sociais de conduta a incumbência de comandarem a
reprovabilidade. A transferência para o Direito Administrativo representa um alívio imediato
ao sistema judiciário.
Hoje, existe um ambiente totalmente diferenciado quando das edições das normas
incriminadoras. O desenvolvimento tecnológico, o cruzamento de dados de informações, o
aperfeiçoamento da fiscalização e a própria educação fiscal representam instrumentos
administrativos vigorosos no combate a delinqüência tributária. Nesse sentido, razoável seria
que todas estas questões fossem tratadas à margem do Direito Penal, de forma célere e eficaz,
reservando para a tutela penal ações efetivamente consideradas antijurídicas aos olhos da
sociedade.
A retirada de determinada conduta do rol dos delitos, visa restringir a tutela a bens
sociais valiosos para a sociedade. Agindo dessa forma, estar-se-á atualizando a função
130 BITENCOURT, Cezar Roberto. Princípios garantistas e a delinqüência do colarinho branco. Revista
brasileira de Ciências Criminais, p. 127.
126
sociológica delitiva, valorizando adequadamente a natureza fragmentária desse ramo do
direito e, conseqüentemente, protegendo os bens jurídicos indispensáveis e relevantes para a
proteção penal. Segundo o professor Cezar Roberto Bitencourt,
os legisladores contemporâneos – tanto de primeiro como de terceiro mundo – tem abusado da criminalização e da penalização, em franca contradição com o princípio em exame, levando ao descrédito não apenas o Direito Penal, mas sanção criminal que acaba perdendo sua força intimidativa diante da ‘inflação legislativa’ reinante nos ordenamentos positivos.131
Com efeito, a intervenção do Direito Penal é requisitada por uma necessidade
mais elevada de proteção a coletividade. É nesse sentido que leciona o professor Mirabete:
O ordenamento positivo, pois, deve ter como excepcional a previsão de sanções penais e não se apresentar como um instrumento de satisfação de situações contingentes e particulares, muitas vezes servindo apenas de interesses políticos [...] a sanção penal estabelecida para cada delito deve ser aquela “necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do crime (na expressão acolhida pelo art. 59 do CP), evitando-se o excesso punitivo sobretudo com a utilização da pena privativa de liberdade [...] deve buscar na realidade fátiva o substancial para tonar efetiva a tutela dos bens e interesses considerados relevantes quando dos movimentos de criminalizaççaio, neocriminalização, descriminalização e despenalização’.132
A descriminalização de conduta, corolário ao princípio de intervenção mínima, e a
busca de sanções administrativas como alternativa, reservando a prisão como último recurso,
tornarão a estrutura estatal menos pesada.
Diariamente, são encaminhadas ao Ministério Público, em todo o País, inúmeras
representações penais por ilícitos tributários que permanecem suspensas, em razão de uma
série de eventos futuros, tais como instrução inadequada, parcelamentos suspensivos,
prescrições e falta de capacidade operacional, contribuindo, cada vez mais, para a impunidade
desse tipo de delinqüência.
Na prática, são raríssimos os casos de condenação em que houve recolhimento
efetivo ao cárcere. A morosidade da apuração judicial e o diminuto número de ações
definitivamente julgadas refletem a situação atual dos envolvidos nesse tipo de delito, ou seja,
a impunidade é a regra e a justiça exceção. A sensação de impunidade retroalimenta o
131 BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal, p. 315. 132 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal, v. 1, p. 117.
127
sistema, por meio de novas fraudes e novas impunidades. Pelo que se observa do conjunto da
obra, não tardará a falência do atual modelo. A criminalização é uma ilusão.
Assim, urge rever o atual modelo para que haja mais eficácia, eficiência e
efetividade na apuração da delinqüência tributária.
Administrações tributárias modernas elegeram o foro administrativo para tratar
ilícitos fiscais. O Direito Penal moderno reserva-se a tutelar questões importantes para a
sociedade, de sorte que o crime tributário certamente não está entre elas. Assim, destaca César
Faria Júnior:
[...] história recente do Brasil revela uma utilização abusiva do Direito Penal. Vivemos uma inflação legislativa ao lado de uma inflação econômica [...] Contrariando os princípios básicos do Direito Penal Moderno o Direito Penal vem sendo usado como instrumento geral de controle, esquecendo-se seu caráter subsidiário, como último recurso que se deve valer o Estado depois de ter lançado mão de todos os demais instrumentos de política econômica ou de controle que se dispõe.133
Dessa forma, persistindo a crescente criminalização indiscriminada do Direito
Tributário, poderá ocorrer sua banalização, no momento em que simples infrações
administrativas serão, certamente, tuteladas pelo Direito Penal. Destarte, o Direito Penal não
pode ser usado para arrecadar tributo.
133 FARIA JUNIOR, César de. Crimes contra a ordem tributária. Cadernos de Direito Tributário e Finanças
Públicas, p. 114-115.
128
12 CONCLUSÃO
O processo histórico-legislativo criminalizador do Direito Tributário representou,
basicamente, o interesse arrecadatório do Estado. As Cartas de Foral, as Ordenações, o
Código Penal do Império, o Código Penal Republicano, o atual Código Penal, a Lei n.
4.729/65, a Lei n. 8.137/90, dentre outros, refletem o grande número de diplomas legais que
regularam a matéria.
De acordo com uma visão histórica, o caráter repressor do Direito Penal
Tributário influenciou, em especial, a deflagração de um importante movimento de libertação
brasileira, conhecido como a “Conjuração Mineira”. Mais adiante, também sob influência
desta ocorreria a independência do Brasil.
É certo que o Direito Penal Tributário não acompanhou o desenvolvimento das
relações comerciais, tampouco a evolução dos aspectos sociológicos que cercam a
delinqüência tributária. De fato, não há como equilibrar o interesse da Fazenda Pública com o
interesse do sujeito passivo da obrigação. Essa relação é sempre desigual, pois o mesmo
agente que arrecada propõe as condições e efeitos dessa arrecadação.
O sistema legal tributário brasileiro foi instituído de forma casuística, razão pela
qual conflita, a todo o momento, com outras normas positivas. Para roborar, cita-se a edição
dos programas especiais de financiamento e parcelamento fiscal da dívida tributária, como o
Refis, instituído pela Lei n. 9.964, de 10 de abril de 2000, que possibilitou, além do
parcelamento tributário vantajoso, a suspensão da punibilidade penal dos crimes tributários,
desde que a opção fosse efetuada antes do recebimento da denúncia.
Entretanto, o Código Tributário Nacional não contemplava o parcelamento nas
hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, o que só veio a ocorrer a partir
da edição da Lei Complementar n. 104, em 10 de janeiro de 2001.
Assim, deflui-se que os efeitos relativos ao parcelamento efetuado na forma do
Refis constituíam-se à época, uma espécie de moratória, mas nunca um parcelamento, pois
esse instituto não se encontrava no rol das hipóteses de suspensão do crédito tributário
previstas no art. 151 do Código Tributário Nacional.
Outro exemplo de inconsistência legal é a edição da Lei n. 10.684/03, conhecida
como Refis II, que possibilitou a suspensão da pretensão punitiva, dos créditos tributários
129
parcelados na forma do referido programa. Ressalte-se que o art. 9o não fazia qualquer
limitação temporal, declarando a suspensão da punibilidade penal em qualquer fase em que se
encontrava o processo, mesmo após o recebimento da denúncia.
Por outro lado, a Receita Federal editou a Portaria SRF n. 326/2005,
determinando a remessa da representação penal ao Ministério Público, para prosseguimento
da ação criminal, para todos os parcelamentos concedidos fora dos programas especiais.
Novamente, verifica-se que a norma editada encontra dissociada do conjunto
normativo pátrio. A regra contida no art. 9o da Lei n. 10.684/03, por força da aplicação do
princípio da retroação benigna, novatio legis in mellius, expresso no art. 5º, inciso XL, da
Constituição Federal, decreta a suspensão do crédito tributário e, conseqüentemente, da
punibilidade penal no momento em que o sujeito passivo parcela seu crédito tributário, ainda
que fora dos programas especiais. Destarte, qualquer forma de parcelamento decreta a
suspensão da exigibilidade do crédito tributário.
A confusão legal presente no direito Penal Tributário faz surgir interpretações
com abuso de formas, ocasionando, na maioria das vezes, posicionamentos doutrinários e
jurisprudenciais totalmente dissociados da realidade normativa originalmente concebida. Por
vezes, o próprio ente arrecadador é vítima dessa desarmonia legal. Redações enigmáticas e
falta de boa técnica legislativa, dentre outros meios, levam inúmeros sujeitos passivos a se
aproveitarem das brechas nas leis.
A Lei n. 8.137/90, possui grande imprecisão técnica, por esse motivo existe muita
dificuldade do operador do direito em conceituá-la, tipificá-la e aplicá-la. A ambigüidade da
lei e normas esparsas casuisticamente editadas completam o ordenamento vigente, fazendo
surgir toda sorte de interpretações extensivas objetivando a desoneração tributária e penal.
Destarte, a utilização do instituto da novação como hipótese extintiva da obrigação tributária e
penal é exemplo latente do exagero interpretativo.
O caráter repressor do Direito Penal como subsídio à arrecadação tributária,
compelindo os infratores ao efetivo recolhimento tributário se cristaliza no momento em que
diversos diplomas legais editados, bem como as ações históricas mais remotas de exoneração,
elegeram o pagamento do tributo como forma de extinção da punibilidade penal.
O temor do encarceramento impõe ao sujeito passivo toda sorte de medidas
procrastinatórias visando estender ao máximo o processo judicial a fim de obter a prescrição
criminal por decurso de prazo. Em razão do formalismo processual, os honorários são pagos
130
aos advogados não para pôr termo ao processo, mas para protelar ao máximo a sentença na
expectativa da consumação da prescrição, o que acontece na maioria das vezes.
Ademais, dificilmente o processo relativo ao crime contra a ordem tributária
completa seu calvário. Em verdade, quase não se tem notícia de condenados a prisão por
crime de supressão ou redução de tributos. Por vezes a pena imposta é convertida em cestas
básicas o que, efetivamente, não cumpre sua função reparadora.
A evolução das técnicas elisivas e evasivas, acompanhadas por mecanismos
criativos visando à desoneração tributária, contrasta com a atual legislação penal tributária
que está perto de completar 20 anos de existência.
Com efeito, a necessidade de enquadrar práticas delitivas sofisticadas em
diplomas legais estáticos evidenciam a dificuldade da Polícia, do Fisco e do Ministério
Público na constituição do libelo acusatório. A confusão legal instalada na definição dos
crimes contra a ordem tributária completa o quadro de desintegração da norma penal
tributária. A crescente e desenfreada onda criminalizante do direito, somado aos defensores da
responsabilização penal da pessoa jurídica vão de encontro às políticas penais modernas.
Ressalte-se que a responsabilização penal da pessoa jurídica representa uma
ilusão, pois certamente seria inviabilizada pelos obstáculos criados pelo formalismo
processual presente no direito brasileiro. Importante ressaltar que quem comete crime são as
pessoas, e não as organizações às quais elas pertencem.
Apesar de todos os avanços trazidos pela doutrina, notadamente sobre a teoria
sobre o domínio do fato, nos crimes cometidos por sócios-gerentes, diretores e
administradores de empresas em sociedades complexas, a confusão sobre a efetiva autoria
leva à absolvição pela dificuldade em estabelecer, ao final da ação, a responsabilidade de cada
uma dos agentes nas fases delitivas. Verifica-se, pois, o esgotamento do atual modelo.
Por todo o exposto, torna-se viável a alternativa da descriminalização com a
conseqüente transferência do eixo apuratório para o Direito Administrativo.
A descriminalização do Direito Tributário não significa dizer que não haverá a
aplicação da sanção. Em verdade, ocorre uma mudança na natureza da sanção. A proposta
consiste na transferência das inúmeras condutas tuteladas pelo Direito Penal para uma
apuração, igualmente repressora, efetuada por meio do Direito Administrativo Sancionador. O
fato formalmente perde a característica de “crime”, sendo retirado do Direito Penal e
transferido para o Direito Administrativo.
131
O Direito Administrativo Sancionador abandona eventuais obstáculos formais
presentes no Direito Penal, ao mesmo tempo em que rompe com a responsabilidade subjetiva
e individual, convergindo para uma sanção imediata, eficaz e simplificada, ao abrigo do
princípio da legalidade.
Algumas sanções previstas no Direito Administrativo demonstram potencial
repressivo proporcionalmente maior que as sanções previstas no Direito Penal, pois,
diferentemente deste, que possui penas alternativas, a sanção administrativa, em regra, incide
diretamente sobre a renda ou patrimônio do agente. Por exemplo, o perdimento de veículos,
mercadorias ou moedas transportadas ou utilizadas em desacordo com a lei (Decreto n. 4.543,
de 26 de dezembro de 2002).
Pelo que se observa, existe uma tendência mundial de desregulamentação e
desburocratização do direito e da justiça, e a utilização do Direito Administrativo representa
um importante passo nessa direção. O avanço de sinal de trânsito e o valimento de cargo
público constituem infrações de natureza grave, contudo sua apuração e, conseqüentemente,
sua sanção estão previstas em leis administrativas. Nos últimos anos, houve uma completa
banalização do Direito Penal, e sua utilização como forma de coação, ao recolhimento
tributário, é prova desse descaso. Estruturalmente, o combalido sistema prisional brasileiro
encontra-se na bancarrota, apresentando inúmeros problemas estruturais, além de um custo
financeiro e social extremamente elevado.
Nesse contexto, a utilização do Direito Administrativo Sancionador representa, a
razoabilidade no tratamento dos ilícitos tributários e as medidas repressivas dele decorrentes,
a proporcionalidade em relação ao injusto praticado.
Os ilícitos tributários não fariam mais parte do tipo, da ilicitude ou da culpa, isto
é, não integrariam o Direito Penal, portanto não seria mais preciso perquirir o comportamento
do agente, ou seja, o aspecto subjetivo de sua ação, pois a apuração do ilícito ocorreria de
forma objetiva (assegurando sempre o contraditório e a ampla defesa).
Com efeito, as condições objetivas de punibilidade são estabelecidas fora da
definição do crime, tornando o direito mais dinâmico, célere e eficaz, atingindo com mais
eficiência a função arrecadatória tão almejada pelo Estado.
O desenvolvimento tecnológico, o cruzamento de dados e informações, o
aperfeiçoamento da fiscalização e a própria educação fiscal são instrumentos administrativos
vigorosos no combate à delinqüência tributária. Condutas como descaminho ou contrabando
132
poderiam ser resolvidas por meio de um controle maior das fronteiras e intensificação de
fiscalização em zonas primárias e secundárias, agindo de forma administrativo-preventiva e
não apenas na repressão. Da mesma forma, a declaração inidônea apresentada à
Administração Pública, visando à supressão ou à redução do tributo, poderia ser punida,
objetivamente, com multas e ações administrativo-repressivas proporcionais, como a
suspensão do alvará de funcionamento, a não-certificação de regularidade fiscal, a declaração
de inidoneidade, dentre outras.
Não se pode perder de vista que as transformações sociais vivenciadas nos últimos
tempos exigem novos métodos e ações para o combate à delinqüência tributária moderna.
Assim, diante desse desafio, o Direito Administrativo Sancionador apresenta-se como um
importante instrumento no combate aos delitos tributários, sobretudo na extirpação da nefasta
impunidade.
133
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