PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Maria Tereza Cattacini Blois
Referenciação e humor em charges políticas
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
SÃO PAULO
2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Maria Tereza Cattacini Blois
Referenciação e humor em charges políticas
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
como exigência parcial para obtenção do título de
MESTRE em Língua Portuguesa pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, sob a
orientação da Profª. Dra. Ana Rosa Ferreira Dias.
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
SÃO PAULO
2013
Banca Examinadora
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___________________________________
___________________________________
A Deus,
A meu marido, Luiz Alberto.
A minhas filhas, Carolina e Lígia.
AGRADECIMENTOS
À querida orientadora, Profª Drª Ana Rosa Ferreira Dias, meu
profundo agradecimento, não só pela indispensável leitura e comentários
construtivos com os quais fui contemplada, mas também pelo reconfortante
apoio a mim despendido.
Meus agradecimentos também às Profª Drª Maria Lúcia da
Cunha Victório de Oliveira Andrade e Profª Drª Vanda Maria da Silva
Elias pela minuciosa leitura e observações que auxiliaram na melhoria
deste trabalho.
RESUMO
Objetivamos, neste trabalho, identificar e analisar a referenciação como
estratégia na construção do humor em charges jornalísticas. Tais objetivos foram
motivados pela observação de charges políticas referentes ao mensalão, nas quais
encontramos a recorrência da referenciação na produção da charge, revelando assim, o
propósito comunicativo do escritor e orientando o leitor na construção de sentido.
Para atingir nosso propósito, constituímos o corpus do trabalho com onze
charges do jornal Folha de S. Paulo, selecionadas de agosto a outubro de 2012, acerca
do julgamento que foi tratado pela mídia como o maior caso de corrupção da história
política brasileira, e procedemos com a análise baseando-nos nos estudos de
referenciação tal como realizados, hoje, no campo dos estudos do texto, em uma
perspectiva sócio-cognitiva interacional bem como nos estudos do humor.
Nesta investigação, verificamos que a referenciação constitui o discurso
humorístico por meio de diferentes modalidades da linguagem possibilitando a
construção do referente na crítica da charge, e influenciando os efeitos de sentidos
promovidos pela mídia escrita.
Além disso, observamos o mensalão - que é tema das charges – e constatamos
que, na análise realizada, o referente é categorizado e recategorizado na atividade
discursiva, no qual é projetada a imagem do político, influenciando, assim, a opinião
dos leitores do jornal.
PALAVRAS-CHAVE: REFERENCIAÇÃO; HUMOR; MENSALÃO.
ABSTRACT
This study aims to identify and analyze referencing as a strategy in building
humor in editorial cartoons. The above mentioned objectives were motivated by the
observation of political cartoons regarding the mensalão scandal, in which we found the
recurrence of referencing in cartoons creation process, thus revealing the writer’s
communicative purpose and guiding the reader in the construction of meaning.
To achieve our purpose, we built up the corpus of this study with eleven
cartoons from the newspaper Folha de S. Paulo, selected between August and October
2012, about the judgment treated by the media as the biggest corruption case in the
Brazilian political history, and we proceeded the analysis based on the referencing
studies as those performed, today, in the field of texts studies in an interactional socio-
cognitive perspective as well as on humor studies.
In this investigation, we found out that referencing builds the humorous speech
through different modalities of language, allowing the construction of the subject in the
cartoon review also influencing the meaning effects promoted by the written media.
Moreover, we have observed the mensalão - which is the main topic of the
cartoons - and we have found out through the present analysis that the subject is
classified and reclassified in the discursive activity, in which the politician image is
projected, thereby influencing the opinion of newspaper readers.
KEYWORDS: REFERENCING; HUMOR; MENSALÃO.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 1
1. APRESENTAÇÃO DO CORPUS .......................................................................... 3
1.1. Angeli ................................................................................................................... 5
1.2. Contexto histórico-político: mensalão.................................................................... 6
1.3. Charge: os escândalos como critério político ....................................................... 11
2. HUMOR: UM ESTUDO INTERDISCIPLINAR ................................................ 14
2.1. Abordagem histórica: humor e seus registros históricos ....................................... 15
2.1.1. O riso grego: Aristóteles a Quintiliano .............................................................. 15
2.1.2. O riso da Idade Média à Idade Moderna ............................................................ 20
2.1.3. A Belle Époque: sua influência urbanística e humorística no Brasil ................... 24
2.1.3.1. A Belle Époque .............................................................................................. 24
2.1.3.2. O humor na Belle Époque .............................................................................. 26
2.1.3.3. O humor no Estado do Rio de Janeiro ............................................................ 27
2.1.3.4. O humor no Estado de São Paulo ................................................................... 30
2.2. O humor na Sociologia e na Política .................................................................... 31
2.3. O humor na Psicanálise ....................................................................................... 34
2.4. O humor na Linguística e no discurso .................................................................. 38
3. REFERENCIAÇÃO E INTENCIONALIDADE: PRÁTICAS
DISCURSIVAS......................................................................................................... 43
3.1. A referenciação e a intencionalidade: atividade discursiva
na construção de sentido ............................................................................................. 43
3.2. A anáfora indireta: um mecanismo referencial ..................................................... 47
3.3. Intertextualidade e interdiscursividade ................................................................. 49
3.4. Recategorização: estratégia de humor .................................................................. 52
4. GÊNERO TEXTUAL: CHARGE ....................................................................... 56
4.1. Gênero textual: processo sociocomunicativo ........................................................ 56
4.1.1. Concepções teóricas de gênero textual .............................................................. 57
4.1.2. O conceito de gênero textual na perspectiva sócio-discursiva ............................ 58
4.1.3. O conceito de gênero como ação social em Miller, Bazerman e Marcuschi ....... 59
4.2. Gênero charge: definição e característica ............................................................. 61
4.3. A charge como crítica jornalística ........................................................................ 65
4.4. Charge: humor e crítica ....................................................................................... 67
5. ANÁLISE DO CORPUS ....................................................................................... 73
5.1. Algumas conclusões ............................................................................................ 88
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 88
FONTES ................................................................................................................... 90
DICIONÁRIOS ........................................................................................................ 90
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 91
1
INTRODUÇÃO
Neste trabalho, objetivamos investigar o processo de referenciação em charges
políticas, por meio de elementos linguístico-cognitivos, para a construção dos efeitos de
humor. As bases são as concepções humorísticas e as abordagens sociocognitivas. Além
disso, mostraremos as contribuições desses elementos para a compreensão das charges
como gênero de ação social.
Os estudos sobre a referenciação, tema relevante dentro da Linguística Textual
(doravante LT), abrem muitas perspectivas para o tratamento do texto humorístico, uma
vez que, por meio dela, de um lado, o escritor concebe seu objeto de discurso, e de outro, o
leitor compreende o texto mediante a construção de sentido feita pelo escritor.
A abordagem de tal conceito se fará numa perspectiva teórica sobre a referenciação,
tratados por estudiosos europeus como Mondada & Dubois (2003 [1995]) e brasileiros
como Koch (2009[2004], 2010[2005], 2011); Marcuschi (2007,2010[2005]); Cavalcante
(2010[2005], 2010, 2012); Marquesi (2007), e analisará a questão em charges políticas,
pondo em foco a referenciação como um processo ativo de construção de referentes ou
objetos de discurso. Os autores adotam, para isso, formas linguísticas referenciais, que
promovem a introdução, a retomada e a transformação do objeto do discurso.
Diante dos desafios encontrados pela maioria dos autores ao longo dos tempos, o de
maior destaque foi estar atento às mudanças sociais e políticas que interferem na relação
entre as produções textuais e os seus prováveis leitores. Todavia, muito além do que
escrever, torna-se relevante para esses autores, saber exatamente para quem escrever, a fim
de que suas criações estimulem e compartilhem com seu público leitor. Para isso, os
autores viam no humor uma maneira de agradar aos mais variados leitores recorrendo à
sátira, à zombaria, aos chistes, às paródias, aos apontamentos falhos, aos costumes, entre
outros.
Nesse cenário, estudiosos como Bergson (2001[1900]); Travaglia (1990, 1992,
2005); Possenti (2010) entendem o humor como uma manifestação própria do ser humano;
um desvio negativo que estabelece a ordem da vida e da sociedade. O humor passa a
exercer uma função social de denuncia e crítica aos costumes e comportamentos
impróprios aos padrões morais e éticos de uma sociedade. Além desses pesquisadores,
Minois (2003), historiador francês, aborda o humor dentro de um contexto histórico e
mostra como este se transformou no decorrer dos tempos. De um riso puro e alegre para
2
um riso maldoso, crítico e zombeteiro, pois estamos imersos em uma “sociedade
humorística”, na qual os meios de comunicação difundem modelos descontraídos,
personagens cheios de humor e, em que se levar a sério é falta de correção.
A fim de contribuir para essa discussão, propomos, nesta tese, analisar a
referenciação em charges políticas, corpus deste trabalho, no período do maior e mais
importante julgamento da história do Supremo Tribunal Federal (STF): o mensalão, um
esquema ilegal de financiamento organizado pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Esta
negociata tinha como objetivo a compra de apoio político para o governo no Congresso e
ocorreu logo após a chegada do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao poder em 2003. O
mensalão foi denunciado pelo ex-deputado Roberto Jefferson numa entrevista à Folha de
S.Paulo, em 2005.
Para a análise, partimos do pressuposto de que os referentes, entendidos como
construções sociocognitivo-interacionais, podem ser introduzidos, categorizados e
recategorizados por meio dos componentes verbais e visuais. As questões que orientam
essa pesquisa são as seguintes: i) Como o processo de referenciação contribui para
construção dos referentes em charges políticas, em se tratando de um gênero textual
constituído de elementos verbais e não verbais? ii) De que forma processos referenciais
contribuem para a construção de efeitos de humor?
Nossa inferência é a de que, no gênero textual charge, a constituição de referentes
se dá sociocognitivamente na inter-relação palavra-imagem. Dessa forma, as interações
sociais não se efetivam apenas pelo verbal, mas agregam diversas modalidades de
linguagem. Além disso, ao serem recategorizados ao longo do texto, os referentes
contribuem para uma quebra de expectativa do leitor, produzindo o humor.
Para procedermos às análises dos processos referenciais em charges políticas,
recorremos aos estudos sobre gêneros textuais tratados por Bazerman (2004); Miller
(2009); Marcuschi (2011), nos quais afirmam que os gêneros textuais representam nossas
ações sociais, nossos propósitos comunicativos e nossas intenções num determinado meio
social.
Para o desenvolvimento do trabalho, propomos sua apresentação em cinco
capítulos: No capítulo 1¸ apresentamos o corpus e descrevemos os fatos sobre o mensalão.
No capítulo 2, abordamos as concepções humorísticas numa perspectiva interdisciplinar
para fundamentar a análise sobre a relação entre o processo de referenciação e produção do
humor em charges políticas. No capítulo 3, discutimos teoricamente a referenciação,
ressaltando como o verbal e o não verbal atuam na introdução, na categorização e na
3
recategorização dos referentes em charges políticas. No capítulo 4, tratamos da concepção
de gênero textual como ação social. No capítulo 5, com base nos estudos realizados nos
capítulos anteriores, analisamos o processo de referenciação e produção do humor em
charges políticas.
1. APRESENTAÇÃO DO CORPUS
O corpus de análise deste trabalho é a charge jornalística cujo tema é a crise do
mensalão: esquema de propinas pagas regularmente a congressistas, com dinheiro público
desviado, para que votassem a favor do governo. Foi, provavelmente, o fato mais
investigado na história política da República Brasileira, por isso ganhou visibilidade na
sociedade.
Os escândalos políticos e denúncias de corrupção de pessoas públicas são muito
frequentes no Brasil e a ação dos meios de comunicação de massa dão aos fatos mais
popularidade e ênfase, ganhando força na opinião pública. Exemplo disso está na denúncia
de um esquema de corrupção divulgado pela revista Veja, que ganhou nova dimensão após
a entrevista do então deputado Roberto Jefferson ao jornal Folha de S. Paulo, em 6 de
junho de 2005. Daí em diante, os principais jornais diários e as revistas semanais de
informação passaram a competir por novas denúncias e evidências contra autoridades da
República, repetindo a parceria mídia/CPI que, em 1992, levou ao impeachment do
presidente Fernando Collor de Mello.
Para a seleção do corpus, acompanhamos as charges das edições da Folha de S.
Paulo no período de 02 de agosto a 29 de novembro de 2012. Após o término do
julgamento com a condenação dos vinte cinco réus do mensalão, iniciou-se, no segundo
semestre de 2013, uma nova fase. O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu reexaminar
as acusações e condenações contra doze pessoas, denominados embargos infringentes,
recurso previsto para os réus que tiveram quatro votos pela absolvição. José Dirceu,
Delúbio Soares, João Paulo Cunha, José Genoino, Marcos Valério e outros sete réus terão
direito a novo julgamento, o que pode reduzir suas penas, mas não inocentá-los.
Assim, durante o período do julgamento, recortamos os textos que tratavam da
temática sob a visão de Angeli, chargista que publica suas produções no jornal desde 1973
e, tem sido, em suas palavras, “contra o humor a favor” (Revista Veja, 2006). Dessa forma,
nesse mesmo recorte, trazemos elementos linguísticos que caracterizam os conceitos do
4
humor político na imprensa ligado com as notícias de destaque durante o julgamento do
mensalão.
Na Folha de S. Paulo, no período sob análise, há espaço não só para charges sobre
o tema, mas estas são parte do caderno de Opinião. A charge ocupa o centro da parte
superior da página A-2, ao lado e/ou acima de editoriais e comentários. Ela é considerada
pelo veículo midiático a única expressão opinativa em que predomina o código visual, com
cores e humor como recursos importantes, pois cumpre o papel de chamar a atenção do
leitor.
A Folha de S. Paulo mantém dois chargistas em seus quadros profissionais, desde
1989 até os dias de hoje, dois chargistas que se revezam na criação das charges diárias. No
mesmo ano, o cartunista Glauco (1989-2010) dividiu o espaço da página com Spacca e, em
1994, com Angeli.
O jornal Folha de S. Paulo, que pertence ao Grupo Folha, foi fundado¹ em 1960,
resultado da fusão entre os periódicos Folha da Noite, Folha da Manhã e Folha da Tarde.
Nessa época, ele era o segundo maior jornal de circulação do Brasil, segundo dados do
Instituto Verificador de Circulação (IVC). A circulação média diária em 2010 foi de
294.498 exemplares. Ao lado de O Globo, Correio Brasiliense e O Estado de S. Paulo, a
Folha de S. Paulo é um dos jornais mais influentes do país.
Desde meados do período do regime militar, a Folha de S. Paulo manteve posição
crítica diante dos fatos políticos, sociais e econômicos. Foi a primeira a recomendar a
publicação do impeachment do chefe do governo, Fernando Collor de Mello, consumado
em 1992. Da revelação da fraude na concorrência para a Ferrovia Norte-Sul (1985) até a
revelação de Roberto Jefferson do escândalo do mensalão (2005), ela tem estado na
vanguarda da fiscalização das autoridades e da revelação de desmandos e abusos.
Em 1986, a Folha de S. Paulo tornou-se o jornal de maior circulação em todo o
país, liderança que mantém desde então. Segundo o Datafolha², o perfil do público leitor da
Folha impressa tem como produto um relacionamento duradouro e satisfatório. A maioria
dos brasileiros avalia que o veículo traz prestígio e é essencial para entrar no mercado. O
leitor da Folha nas versões papel e digital está no topo da pirâmide social.
_____________________________________________________________________________
¹ As informações acerca das características e história do jornal foram retirados do site
http://www.wikipedia.org/wik./Folha_de_S_Paulo - acesso em 05/07/2013;
http://www.folha.uol.com.br/folha/conheça - acesso 05/07/2013.
² http://www.folha.uol.com .br /painel do leitor/leitor - acesso em 05/07/2013.
5
1.1. ANGELI
Para o desenvolvimento das análises selecionamos charges políticas do cartunista
Angeli, para quem o “humor a favor” não agrada, ou seja, para ele a função do chargista e
do cartunista é “criticar, satirizar e levantar discussões, caso contrário, deixe isto para os
publicitários”.
As charges de cunho político do cartunista paulistano retrataram os presidentes da
República Federativa do Brasil e “estilo de governo”, portanto, parlamentares, juízes e
empresários foram personagens importantes de uma coletânea de charges durante o
período do maior julgamento da história republicana.
Contrário à opinião de muitos cartunistas, Angeli apresentou uma percepção crítica
acerca do governo do Presidente Lula . Fatos evidenciados na galeria de charges veiculadas
no jornal Folha de S. Paulo, em que o autor descortina episódios que permeiam o contexto
político e econômico do governo. Seu olhar crítico advém de seu posicionamento social, já
que foi ex-militante do Partido Comunista e explicitou ter encarado com desconfiança a
chegada dos petistas ao poder. Evidencia-se isso na afirmação “sempre me incomodou
aquele nariz empinado deles e aquela postura de detentores da honestidade”³.
Arnaldo Angeli Filho, conhecido como Angeli, nasceu em 31 de agosto de 1956.
Começou a desenhar aos catorze anos na revista Senhor e em 1973 foi contratado pelo
jornal Folha de S. Paulo, no qual continua até hoje. Inspirou-se no cartunista norte-
americano Robert Crumb, do qual faz a seguinte afirmação: “eu aprendi lendo Crumb”
(Revista Língua Portuguesa, ano 7, nº 83 – setembro de 2012, p.15).
________________________________
³Repotagem de Renata Peña. Contra o humor a favor. Veja on-line, São Paulo, jul.2006. Seção Perfil.
Disponível em: http://veja.abril.com.br/260706/p_100.html - Acesso em jul.2013.
6
Apesar de não ser um bom aluno de Português, preocupava-se com a fala de suas
personagens e, principalmente, com a relação texto-imagem.
Antes de tudo, eu fui um péssimo aluno de Português. Na
verdade, não concluí nem o antigo primário e o ginásio. Foi
tudo muito caótico. Então, sempre tive atenção ao Português
na hora de trabalhar algum personagem, até por insegurança.
[...]. Não sei como são os outros cartunistas, mas penso tudo
junto – o texto e a imagem (grifo nosso). (Revista Língua
Portuguesa, set. 2012, p.13)
Assim, referente ao seu estilo, revela um humor agudo, crítico e engajado
socialmente como veremos na análise. Angeli, munido de pincéis e senso crítico, traça
personagens essenciais ao contexto histórico da política brasileira e seu talento é
reconhecido no que diz respeito à faceta literária e ao amadurecimento de sua obra, visto
que as personagens do autor apresentam densidade e transitam na literatura. O autor afirma
que, mesmo não tendo muita habilidade em escrever, aborda seus pensamentos sob a forma
de palavra e desenho, sendo assim sua verdadeira linguagem. (Revista Língua Portuguesa,
2012).
A seguir, apresentamos informações sobre o mensalão, para posteriormente,
procedermos à análise das charges produzidas por Angeli.
1.2. CONTEXTO HISTÓRICO – POLÍTICO: MENSALÃO
Segundo Leite (2013), mensalão foi o nome dado pela mídia a um caso de denúncia
de corrupção política mediante compra de votos de parlamentares no Congresso Nacional
do Brasil entre 2005 e 2006. O caso teve como protagonistas alguns integrantes do governo
Lula, membros do PT, de outros partidos e, em especial, empresários das áreas financeira e
publicitária. A Ação Penal de número 470, movida pelo Ministério Público no STF,
resultou no julgamento mais midiático da história brasileira e, possivelmente, do mundo. A
sociedade vigiou todos os atos dos juízes, acompanhando-os diariamente. O escândalo do
mensalão chamou a atenção tanto pela quantidade de empresas brasileiras públicas e
privadas envolvidas no esquema, quanto pelo número de pessoas públicas envolvidas.
7
Em maio de 2005, a mídia apresentou o retrato acabado de como a corrupção estava
arraigada até mesmo nos cantos mais obscuros da máquina pública brasileira. Na época, o
Presidente Lula, negou conhecer qualquer prática de mensalão. Os envolvidos receberam
acusações de crimes como corrupção ativa, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro,
gestão fraudulenta, evasão de divisas e peculato. Entre os 38 réus acusados destacam-se:
José Dirceu (ex-ministro da Casa Civil), Delúbio Soares (ex-tesoureiro do PT), José
Genoíno (ex-presidente do PT).
O neologismo mensalão é variante da palavra mensalidade, criada como referência
à mesada paga a deputados para votarem a favor de projetos de interesse do Poder
Executivo. Embora o termo já fosse conhecido nos bastidores da política para designar
prática ilegal, chegou à imprensa em 6 de junho de 2005 e ganhou reputação nacional após
entrevista com o deputado Roberto Jefferson, presidente do Partido Trabalhista Brasileiro
(PTB) concedida ao jornal Folha de S. Paulo. Este denunciou pagamentos mensais de 30
mil reais realizados pelo tesoureiro do PT, Delúbio Soares, a alguns deputados da base
aliada, com o objetivo de aprovar emendas favoráveis ao governo.
A situação agravou-se quando Jefferson afirmou existir ligação de empresas estatais
e privadas no financiamento da compra de votos. Em seguida, os partidos de oposição –
Partido de Frente Liberal (PFL) e Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) –
convocaram uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para investigar os
Correios e em seguida outra Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para verificar as
denúncias de Jefferson sobre a compra de votos entre os parlamentares. Ele confessou
movimentação de recursos financeiros não declarados à Justiça Eleitoral (conhecido no
Brasil como “caixa dois”), utilizados para cobrir dívidas de campanhas do PT e dos
partidos aliados. Com isso, o deputado do PTB foi expulso do partido.
Além disso, o escândalo tornou-se mais abrangente quando se descobriram as
ligações do empresário Marcos Valério com o “caixa dois” da campanha petista. Em
entrevista ao Jornal Nacional da Rede Globo, Marcos Valério admitiu ter emprestado
dinheiro para as campanhas eleitorais do PT. Delúbio Soares confirmou a versão e, em 20
de julho de 2005, admitiu que fazia “caixa dois”. A imprensa classificou essas ligações de
“Valerioduto”4
__________________________________________________ 4 Significado do neologismo “Valerioduto”¸ palavra criada para identificar a rede de corrupção comandada
pelo publicitário Marcos Valério.
http://pt.wikipedia.org/wiki/ escandalo_do_mensalão - acesso em 16 de julho de 2013.
8
Na revista Veja, matéria da capa “O vídeo da corrupção em Brasília”, edição de 18
de abril de 2005, divulgou-se uma fita de vídeo em que Maurício Marinho, ex-diretor do
Departamento de Contratação e Administração do Material dos Correios, negociava o
pagamento de propina com empresários interessados em participar de uma licitação.
A partir daí, sucederam-se revelações de um grande esquema que envolveria o
financiamento ilegal de campanhas eleitorais como: o chamado “caixa dois”, o repasse de
dinheiro a partidos em troca de apoio a candidatos, o desvio de verbas de empresas
públicas e a compra do voto de parlamentares em troca de um pagamento mensal, o
mensalão propriamente dito.
Segundo o Procurador-Geral da República, Antonio Fernando Barros e Silva de
Souza, na denúncia oficial apresentada e acolhida pelo Supremo Tribunal Federal na
época, o ex-deputado federal Roberto Jefferson estava acuado e abandonado pelos seus ex-
aliados, pois o esquema de corrupção e desvio de dinheiro público estava com enfoque em
dirigentes dos Correios. Após a denúncia oficial, o Procurador-Geral da República
encaminhou o processo.
Para Ferreira & Marques (Revista Veja, 18 de abril, 2012), todas as denúncias feitas
por Jefferson, aprofundam a crise no governo brasileiro e derrubam o então ministro da
Casa Civil, José Dirceu, que depois foi eleito deputado. Com isso, instalou-se uma CPI a
fim de apurar as denúncias, cujo relatório final pediu o indiciamento de mais de 100
pessoas e a cassação de dezoito parlamentares. Entre os principais, José Dirceu (PT-SP),
Roberto Jefferson (PTB-RJ) e Pedro Corrêa (PP-PE) perderam seus mandados e também
seus direitos políticos por oito anos. Outros quatro parlamentares renunciaram para escapar
da cassação e os onze restantes foram absolvidos pelos colegas na Câmara de Deputados.
Assim, o então Procurador-Geral da República, Antonio Fernando Barros e Silva de
Souza, apresentou denúncia ao STF contra trinta e oito pessoas que, segundo ele,
participaram da “organização criminosa” do inquérito 470. As práticas incluíam lavagem
de dinheiro, formação de quadrilha, evasão de divisas e corrupção. Na denúncia, o
procurador qualificou José Dirceu como o “chefe da quadrilha”. A partir disso, em agosto
de 2007, o ministro Joaquim Barbosa, relator do julgamento¸ aceitou a denúncia contra os
trinta e oito mensaleiros, que se tornaram réus no STF. O processo passou pela análise do
ministro revisor, Ricardo Lewandowski, depois de quase cinco anos.
Na edição da Revista Veja de 19 de setembro de 2012, que teve como capa “Os
segredos de Valério”, divulgou-se que o empresário mineiro Marcos Valério não tinha
nenhum cargo político, mas foi o pivô financeiro do mensalão. Ele foi condenado por
9
lavagem de dinheiro e apontado como responsável pela engenharia financeira que
possibilitou ao PT montar o esquema de corrupção.
Além disso, a acusação do Ministério Público Federal sustentou que o mensalão foi
abastecido com 55 milhões de reais tomados por empréstimo por Marcos Valério, injetados
nas contas da DNA Propaganda, administrada por ele, junto ao Banco Rural e ao BMG,
que se somaram a R$ 74 milhões de reais desviados da Visanet, fundo abastecido com
dinheiro público e controlado pelo Banco do Brasil. Segundo Marcos Valério, esse valor é
subestimado, pois conta que o caixa real do mensalão era o triplo do descoberto pela
polícia e denunciado pelo Ministério Público.
Mais ainda, todo o controle da contabilidade cabia ao tesoureiro do partido, Delúbio
Soares, réu no processo, condenado a 8 anos e 11 meses de prisão pelos crimes de
formação de quadrilha e corrupção ativa. O papel de Delúbio era, além de ajudar na
administração da captação, definir o nome dos políticos que deveriam receber os
pagamentos determinados pela cúpula do PT, com o aval do ex-ministro da Casa Civil,
José Dirceu.
Em dois de agosto de 2012¸ o STF, Supremo Tribunal Federal, iniciou o
julgamento dos trinta e oito nomes denunciados em 2006 pelo Procurador-Geral da
República, em crimes como formação de quadrilha, peculato, lavagem de dinheiro,
corrupção ativa e passiva, gestão fraudulenta e evasão de divisas.
Os onze ministros do STF, que compunham a corte, receberam todas as denúncias
feitas contra cada um dos acusados, o que os fez passar da condição de denunciados a réus
no processo criminal, devendo defender-se das acusações que lhes foram amputadas
perante a Justiça e, posteriormente, devendo ser julgados pelo Supremo Tribunal Federal.
O processo acumulou cerca de 50 mil páginas desde que a denúncia foi apresentada
e mais de 600 testemunhas foram ouvidas. Conforme Ferreira, Folha de S. Paulo, edição
de 29 de julho de 2012, os advogados dos réus do mensalão montaram uma estratégia de
defesa em que atacariam as denúncias apresentadas contra eles pela Procuradoria-Geral da
República, como se elas fossem um “castelo de cartas”, procurando desqualificar peças-
chave do processo para fazer ruir a narrativa da acusação.
Com 53 sessões e quatro meses de duração, a Ação Penal 470 levou a um dos
julgamentos mais longos da história do Supremo Tribunal Federal. Rapidamente, o assunto
invadiu os telejornais, as primeiras páginas dos jornais e as capas das revistas. O Ministro
Joaquim Barbosa, relator do caso, tornou-se personagem conhecido nas ruas.
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O julgamento encerrou-se com 25 condenações e 13 absolvições. Um dos réus,
Luiz Gushiken, teve a sua absolvição pedida pelo próprio Procurador-Geral da República,
Roberto Gurgel, quando do início do referido julgamento. O empresário Marcos Valério
foi condenado a 40 anos e quatro meses de prisão; seu sócio, Ramon Hollerbach, a 29 anos
e sete meses; o publicitário Cristiano Paz a 25 anos e onze meses; Roberto Jefferson a 7
anos e 14 dias; João Paulo Cunha a 9 anos e 4 meses e José Dirceu foi condenado a 10
anos e 10 meses de prisão, sem que sua participação em episódios criminosos tivesse sido
demonstrada com fatos (LEITE, 2013).
Ainda, segundo esse autor, José Dirceu foi considerado pelo Procurador-Geral, o
“chefe da quadrilha”, mas não surgiram fatos objetivos para sustentar essa visão. Além
disso, o principal indício contra José Genoíno, condenado a seis anos e onze meses de
prisão, era ter assinado pedidos de falsos empréstimos em nome do partido que presidia.
Para o autor, antes do início do julgamento, os advogados de defesa estavam mais
otimistas, pois julgavam ser possível contar com uma bancada de ministros convencidos de
que a denúncia não possuía provas consistentes para condenar réus de maior importância
política, mas essa visão foi mal calculada, pois contavam com votos que não vieram a seu
favor. Um deles era Luiz Fux, o primeiro ministro indicado por Dilma Rousseff para
integrar o STF.
Por envolver sócios de bancos, ministros e políticos, o julgamento permitiu que a
condenação de personalidades públicas fosse associada a uma vitória inédita sobre a
corrupção e, mais importante, a um esforço para mostrar que os ricos e poderosos agora
não estão a salvo da justiça.
O julgamento da Ação Penal 470 condenou sócios e executivos do Banco Rural e
das agências de publicidade ligados de forma permanente ao esquema financeiro do PT.
Leite (2013) aponta que o ministro José Dirceu foi condenado há 10 anos e 10 meses,
enquanto que outro, Luiz Gushiken (ex-ministro da Secretaria de Comunicação da
Presidência da República), sentou-se no banco dos réus antes de ser absolvido Isso nunca
havia acontecido (sic).
A CPI apontou empresas privadas que contribuíram com R$ 200 milhões para as
empresas de Marcos Valério e nenhum desses executivos foi indiciado na Ação Penal 470.
O autor ressalta, sem desmerecer o caso, que esse tratamento mostra a manutenção de um
comportamento convencional, ou seja, as autoridades acusadas como corruptas foram
julgadas e condenadas, mas se manteve uma postura de tolerância em relação a possíveis
corruptores, que têm poder para tentar enganar o Estado a seus interesses.
11
Ainda segundo Leite (2013, p. 147), se houvesse responsabilidade política para
corrigir as imensas imperfeições e desvios, isso já teria sido feito, “mas sempre que surge
essa oportunidade, ela é barrada por falta de interesse político, pois é mais interessante tirar
proveito de uma denúncia do que procurar a origem dos erros”, afirma. A partir disso, o
autor afirma que o mais recente projeto eleitoral, elaborado pelo deputado Henrique
Fontana, do PT gaúcho, foi sabotado pela oposição no ano passado e previa o
financiamento público exclusivo de campanha que proíbe a ação dos corruptos na
distribuição de verbas para os partidos. Não há lei capaz de impedir a prática de crimes,
mas uma boa legislação pode desestimular as más práticas.
1.3. CHARGE: OS ESCÂNDALOS COMO CRITÉRIO POLÍTICO
Os escândalos políticos midiáticos são eventos que implicam a revelação, por meio
de gêneros textuais e da mídia, de atividades previamente ocultadas e moralmente
desonrosas, desencadeando uma sequência de ocorrências. Segundo Thompson (2002,
p.23), em nossa sociedade midiática, “o escândalo é um evento central, já que afeta as
fontes concretas do poder”, pois o poder, nos regimes democráticos eleitorais, submetidos
à pressão da opinião pública, está ligado à reputação moral. Além disso, hoje, o escândalo
torna-se quase onipresente, não por conta de uma pretensa redução da qualidade dos líderes
políticos, mas por causa das transformações de sua visibilidade pública (cf.THOMPSON,
2002).
O autor afirma que houve uma expansão da mídia e uma mudança na cultura
jornalística nas décadas de 1960 e 1970, quando uma “renovada ênfase na reportagem
investigativa” rompeu as barreiras que impediam a divulgação de determinados segredos
de poder. Consequentemente, os delitos financeiros (corrupção e desvio de verbas) e os
escândalos de poder envolvendo o abuso de autoridade por parte de funcionários públicos,
começaram a ganhar destaque na mídia em geral.
Desse modo, podemos observar que não bastava à denúncia pertencer a um quadro
de noticiabilidade (assunto possível de ser transformado em notícia), precisava ainda que
outros veículos considerassem aquele episódio um evento com alto valor de notícia, ou
seja, sustentasse a importância daquele acontecimento diante dos outros temas possíveis de
se tornarem públicos. Nesse caso, é preciso considerar o aspecto moral, que envolve os
episódios de transgressão política como um importante fator de valorização desses
12
acontecimentos em notícia. A crise de 2005, primeiramente tratava da corrupção no
governo Lula (Correios). A atitude imoral de um funcionário recebendo propina de
empresários, logo se transformou num escândalo de maior proporção, ao trazer à tona a
denúncia de compra de votos supostamente praticada pelo partido do governo e por figuras
importantes ligadas ao presidente Lula. Estava em jogo, portanto, um importante fator de
apelo noticioso, a quebra de expectativa ética e moral em relação ao PT e a Lula, e mais
ainda, a questão imoral relacionada ao comportamento inadequado de atores políticos, que
historicamente tinham sua imagem associada à defesa da ética na política. Com base nas
concepções de Thompson (2002), a imprensa recorre, mais do que nunca, à característica
moral do evento como um forte critério de noticiabilidade que os atores políticos, por sua
vez, souberam vocalizar.
Os escândalos políticos, entre os quais se incluem a corrupção individual e
sistemática, constituem uma das principais matérias-primas do jornalismo político
moderno, pois são explorados pela mídia por conta do valor da notícia, ou seja, porque
simplesmente dá mais audiência e vende mais jornal. Além disso, um dos principais papéis
do jornalismo é fiscalizar o sistema político, o governo, partidos e políticos. Assim, por
meio de gêneros textuais como a charge, a mídia impressa assume a função de vigiar e
denunciar atos e comportamentos abusivos aos interesses dos cidadãos e da sociedade. Os
escândalos ganham uma proporção muito grande, conforme a gravidade das acusações que
se referem às ações ou aos acontecimentos que implicam transgressões de valores, normas
ou códigos morais que, revelados, motivam reações e respostas públicas. Tais
transgressões tornam-se matéria prima para os chargistas cujo compromisso é desmascarar
por meio de suas produções humorísticas. Na esfera política, em geral, os escândalos estão
associados à corrupção e ao suborno político. Além do mensalão que atingiu seriamente o
PT e o governo Lula, os casos “Collorgate”, que teve a renúncia do então presidente
Fernando Collor, e o suposto “mar de lama” do segundo governo Vargas, cujo final trágico
foi seu suicídio, foram os três maiores escândalos políticos da nossa história republicana5
__________________________________
5 http://www.muco.com.br/index.php?option=com_wrapper&view – acesso em 16 de julho 2013.
13
Segundo Thompson (2002), o escândalo é sempre um caso público, pois implica
uma transgressão de valores morais, tornando-o um importante objeto de estudo por
diversos motivos, como a quantidade de parlamentares envolvidos, bem como o tempo e o
espaço dados pelos veículos de comunicação ao assunto. Nesse espaço, declarações e
depoimentos têm um peso equivalente àqueles dos inquéritos policiais, porque se trabalha
com a noção de verdade, capaz de construir ou arruinar reputações e imagens. Como leva
um tempo considerável para se desenvolver, o escândalo exige um local cuja regularidade
garanta não só sua permanência na esfera de visibilidade pública, mas represente
durabilidade. Assim, é preciso que o escândalo esteja em destaque pelo maior período
possível sem, contudo, que a periodicidade diária canse o leitor. Para isso o gênero charge,
com todo o seu aspecto visual e verbal e sua localização estratégica no jornal, busca
contribuir, por meio do humor, na permanência do assunto sem causar desinteresse no
leitor. Ao traçar uma teoria do escândalo político midiático, Thompson destaca como o uso
contemporâneo da mídia transformou a conduta dos líderes políticos e a vida política em
geral. Os escândalos políticos são ruins para aqueles homens que almejam o poder, pois
perdem a cota de confiabilidade depositada nele e a sua reputação e confiança estão sempre
em jogo.
Dessa forma, torna-se importante entender a atribuição de significados aos
acontecimentos por meio dos recursos linguísticos e o papel da mídia impressa na
construção das representações públicas sobre eventos. No nosso caso, é crucial perceber
quais foram os enquadramentos feitos pelo jornal Folha de S. Paulo durante o período do
julgamento do mensalão, por meio das charges, para assim correlacionar as características
desses enquadramentos com a recepção das notícias pelo grande público. Pretendemos
então, analisar características que sejam capazes de direcionar uma construção de
significados por meio da construção e reconstrução do referente e levar à compreensão da
leitura e dos efeitos de humor no gênero charge.
14
2. HUMOR: UM ESTUDO INTERDISCIPLINAR
Por que rimos? Há muitas respostas, dependendo da área de conhecimento que o
toma por objeto de estudo. O riso tem uma qualidade universal, pois independentemente da
cultura todos reagem a ele da mesma forma. Não importa se a língua é completamente
diferente, se a pessoa é da Mongólia, se é um aborígine australiano ou se é um índio tupi, o
que importa é que o riso é sempre muito parecido, uma reação física a um estímulo mental.
Mas que estímulo mental é esse que nos faz reagir fisicamente de uma forma tão
característica?
Apesar do humor ser largamente estudado, teorizado e discutido por filósofos e
outros, permanece extraordinariamente impossível formular uma definição única, pois, é
uma das chaves para a compreensão de culturas, religiões e costumes da sociedade num
sentido mais amplo, sendo um elemento vital da condição humana. O homem é o único
animal que ri, e através dos tempos a maneira humana de sorrir modifica-se acompanhando
os costumes e correntes de pensamento.
O riso pode ter um conceito filosófico, histórico, sociológico e psicológico ao
mesmo tempo. Do ponto de vista filosófico, o riso é algo que não se vê facilmente, por ser
uma propriedade natural do homem; do histórico, o riso percorre no tempo, desencadeando
denominações e evoluindo, desde que o animal risível tem memória; do sociológico, o riso
exerce uma função social, revelando que em cada sociedade haveria um espaço para sua
expressão e as relações jocosas exprimem uma necessidade de relaxar ante as restrições da
vida cotidiana; e por fim, do psicológico, o riso nos causa prazer decorrente da
possibilidade de pensar sem as obrigações da educação intelectual.
Dessa forma, observamos que o riso oferece um valor de liberdade, de correção em
relação às pressões sociais, ou seja, o humor nos permite romper com o automatismo que a
vida em sociedade cristaliza em nós. Portanto, pretendemos abordar neste capítulo os
aspectos mencionados a fim de que possamos compreender o universo do riso e do cômico.
15
2.1. ABORDAGEM HISTÓRICA: HUMOR E SEUS REGISTROS HISTÓRICOS
2.1.1 O RISO GREGO: DE ARISTÓTELES A QUINTILIANO
O riso na Antiguidade manifesta a alegria de viver, a confiança no futuro e o
combate contra os poderes da morte. Segundo Minois (2003, p.23), “os mitos gregos dizem
que os deuses riem, e em pouco tempo ri-se com os deuses”, ou seja, não há desvios da
moralidade e da dignidade humana, o riso é a marca da vida divina. Ele é nos mitos gregos,
verdadeiramente, alegre e positivo para os deuses, mas nos homens, nunca é alegria pura; a
morte sempre está por perto, e essa intuição do nada desencadeia o riso.
Desse modo, consideramos que o riso na civilização grega é sem obstáculos: a
violência, a deformidade e a sexualidade desencadeiam crises que não têm nenhuma
afeição moral. É o caso desta estranha história de Deméter e de Baudo, um episódio
excluído dos estudos clássicos pela preocupação em preservar a dignidade da humanidade.
Segundo esse mito, a deusa Deméter, tendo perdido o riso, chega a Elêusis, na casa de
Baubo, que lhe oferece o kykeon, mistura de água, farinha e menta. Mas Deméter recusa, e
Baubo, para fazê-la rir, emprega outros meios: “Falando assim, ela levantou sua roupa e
mostrou todo o corpo, de forma indecente. Havia a criança, Iaco, que ria sob as saias de
Baubo. Ele agitava a mão. Então, a deusa sorriu de coração, e aceitou a taça brilhante de
kykeon” (MINOIS, 2003, p.23).
Outro tipo de riso surge nessa época, o riso “sardônico”, ou seja, um riso sarcástico
ou forçado. Isso aparece na Odisséia, de Homero: Ulisses, afastando-se de um projétil
lançado por Ctésipo, “sorri, mas com aquele riso sardônico do homem ferido”6. Esse riso
não exprime alegria, mas expressa a ideia de sofrimento pessoal, de ameaça contra o outro,
de frieza da maldade e da morte. Segundo Minois, “mitos e lendas da Grécia fazem do riso
sardônico uma força que ultrapassa o ser humano” (p.29).
____________________
6- Odisséia, XX, p.301.
16
Assim, percebemos que o riso e a alegria são totalmente alheios um ao outro; mas,
o riso e a morte fazem uma boa parceria. Essa parceria leva os gregos a confirmar, com
outros exemplos históricos, que, mesmo para os mais sérios, a vida é apenas um caso de
zombaria.
Outra manifestação do riso mitológico é o riso da festa, que são situações de riso
coletivo e organizado. A sociedade tinha necessidade de organizar essas comemorações
festivas para que pudessem estar em contato com o mundo divino por meio do riso. E ele
serve para manter a proteção e o critério dos deuses, simulando o retorno à ordem da
criação do mundo. O deboche, a agitação, os gritos, as zombarias, o vaivém de
brincadeiras grosseiras e as danças constituem os primeiros desmandos de palavra. Além
disso, as inversões de papéis sociais eram muito comuns nessas festas: escravos
desfrutavam grande liberdade, podiam até fazer-se servir pelos senhores, que eles
repreendiam; escravos tornavam-se reis cômicos etc. A desordem é geral, ocasionando os
excessos do cotidiano e a ruptura com as atividades sociais. A partir disso, nasce a inversão
como uma das características do riso presente nas teorias modernas.
Consequentemente, notamos que a desordem nos papéis da sociedade surge sob a
forma do riso. E, o riso e a zombaria aparecem como necessários à manutenção da ordem
social. Essas inversões de papéis na sociedade mostram como o homem tem necessidade
de despojar-se de sua combatividade natural. Todo esse jogo de ilusões faz surgir a
comédia e a tragédia no teatro grego arcaico. Personagens irreais, companheiros de
Dionísio7, seres devassos, exibem sua animalidade que se traduz pelo riso e que vem
quebrar a solenidade trágica e abalar o sério (MINOIS, 2003).
_____________________________________
7 Dionísio era o deus grego equivalente ao deus Romano Baco, dos ciclos vitais, das festas, do vinho, da
insânia, mas, sobretudo, da intoxicação que funde o bebedor com a deidade. (PT.wikipedia.org/wiki/Dionísio)
acessado em 10/10/2012.
17
Desse modo, riso para Aristófanes (Baudin, 1994, apud Minois, 2003), dramaturgo
grego, que viveu em Atenas entre 448 e 380 a C., manteve-se fiel ao vínculo com o instinto
de agressão. Ou seja, sua comédia é uma forma de insulto contra os homens políticos,
como se fosse um ritual de inversão, de vida política às avessas.
Dentro de uma atmosfera política, religiosa e cultural tensa, no fim do século V
a.C., Aristófanes é pressionado para que moderasse seu riso, pois gera um certo
desconforto e desrespeito às autoridades que representam o povo. Os políticos atenienses
não admitiam ser expostos ao ridículo. A democracia não tolera a zombaria, porque não se
deve rir do representante do povo. A partir disso, o uso do riso na vida pública passou a ser
submetido às regras respeitáveis. Mas, essas regras não eram aceitas pelos filósofos que
abordavam o assunto, de forma apaixonada, tomando partido a favor do riso, posto que o
mesmo era considerado um método e um estilo de vida. Os filósofos tinham duas
concepções fundamentais do ser humano: o cômico e o sério.
Segundo Minois (2003, p.61), “o cômico aplica-se às vaidades e às inquietações do
homem”. O homem se expõe, inutilmente, aos seus vícios e defeitos e tenta, sem cessar,
possuir bens materiais cada vez mais, visando a ter por ter. Isso o leva ao ridículo,
tornando-se alvo fácil do riso.
Dentro dessas concepções fundamentais do humano, Sócrates assevera que o objeto
do riso é definido como um vício que se opõe diretamente à recomendação do oráculo de
Delfos: “conhece-te a ti mesmo”, ou seja, aqueles que se desconhecem são vítimas de
ilusão em relação a si mesmo. É cômico, portanto, os fracos que se imaginam fortes, sábios
e ricos, enquanto os fortes e os poderosos que se acham mais sábios, mais ricos do que na
verdade são, não se tornam objetos do riso. Assim, segundo Minois (2003, p.62), “o riso é
a sabedoria, e filosofar é aprender a rir”. A peripécia humana é ridícula, e só se pode rir
dela. O cômico é o resultado da incompetência do homem de se conhecer e conhecer o
mundo. Nada merece ser levado a sério, já que é ilusão e aparência. Portanto, o riso torna-
se um instrumento de correção das fraquezas do homem e o leva a reencontrar os valores
autênticos e reais.
Para Aristóteles, segundo Minois, o riso faz parte da natureza humana, ou seja, “o
homem é o único animal que ri”, conceito que atravessa os séculos seguintes com
autoridade. Na Poética ressalta que o cômico degrada o homem, enquanto a tragédia o
engrandece, ou seja, o cômico é negativo, porque revela os defeitos e vícios do homem
sem piedade, enquanto a tragédia exalta o homem nobre e forte, por meio da epopeia, da
arte, da música. Essa exclusividade aparece no capítulo cinco da Poética. A comédia é
18
representação ou imitação de “pessoas inferiores”; contudo, ela não cobre todo o tipo de
defeito: o cômico é uma forma do vergonhoso, pois ele é um certo erro ou sinal de
vergonha que não envolve dor ou morte, como é evidente no caso da máscara da comédia:
ela é feia e distorcida, mas não envolve dor.
Em suma, o riso aristotélico é um instrumento moral (zombando dos vícios) que
desorienta os erros pela ironia e é um atrativo para a vida social pela jocosidade. Na
Retórica de Aristóteles, a troca de letras em uma palavra e a troca de palavras em um verso
são recursos cômicos do discurso. Esse jogo de palavras perde o efeito do riso quando não
são interpretados os seus dois sentidos no mesmo momento em que é dita. Ainda, segundo
Aristóteles, outro recurso para o riso é o fator surpresa, ou seja, a palavra modificada pela
troca de letra produz um efeito diferente do esperado, gerando, assim, uma surpresa no
leitor.
Platão segue as mesmas concepções de Aristóteles quando afirma que o riso não
pertence ao mundo divino, mas pertence ao domínio desprezível da espécie humana. É
justo zombar dos vícios e defeitos morais, sem piedade, e utilizar da ironia sutil para
desvendar as falsas verdades. O riso para Platão advém da dualidade de sentimentos, isto é,
é um riso malévolo que combina bem e mal; prazer e inveja. Rimos do ridículo de nossos
semelhantes causados pela inveja e o riso é o resultado prazeroso desse sentimento próprio
do ser humano. Na política, o riso para Platão é absolutamente proibido, pois os homens
sérios e dignos estão isentos de zombarias.
Outro filósofo que se aproxima das concepções de Aristóteles em sua oratória é
Cícero que afirma existir dois gêneros do risível. O primeiro consiste no risível sustentado
na alegria e no tom de jovialidade ao longo de todo o discurso; e, o segundo, no risível que
escapa em rápidas piadas no dito malicioso ou sarcástico. Portanto, novamente, o cômico é
alguma imoralidade, alguma deformidade física, e o meio mais poderoso de desencadear o
riso.
Desse modo, Cícero se torna favorável ao riso na oratória, pois o enunciador, cujo
objetivo é fazer rir, torna-se cativante ao auditório, desperta sua atenção, desvia-a,
confunde o adversário, enfraquece-o e intimida-o. Ou seja, atrai sua atenção para o ridículo
e para a deformidade moral, provocando o riso por meio do rebaixamento.
Ainda dentro das concepções teóricas de Cícero (1966 apud ALBERTI, 2002.), há
duas espécies cômicas: uma consiste nas “coisas” e a outra nas “palavras”. A primeira
sobressai à ideia promovida pelo caráter, pelo gesto, pela voz a qual se sustenta na
caricatura, nos traços irônicos presentes nas anedotas e nos contos engraçados inventados;
19
e o segundo, o cômico das palavras, registra as figuras de estilo, como a metáfora e a
antítese, a ambiguidade ou trocadilho, a palavra inesperada que surpreende o interlocutor, a
aproximação fonética das palavras com sentido diferentes, o jogo das palavras e as
paródias. Portanto, compreendemos que o riso é um meio, um instrumento que serve para
persuadir, para atacar, para denunciar, isto é, tudo aquilo que se quer dizer e não se pode
dizer é permitido por entre o riso.
Dentro do contexto da retórica, das teorias de Cícero e de Aristóteles, surge
Quintiliano, que com eles, interage ao definir sua teoria do riso. Segundo Alberti, o riso de
Quintiliano é extraído do homem, de seu próximo ou dos fatos neutros do dia a dia, o qual
é revelado ora por meio das ações que provocamos, ora pelas palavras que dizemos. No
entanto, aborda a importância das paixões estarem presentes no discurso, a fim de seduzir o
interlocutor por meio da comicidade.
Quintiliano (1977 apud ALBERTI, 2002) afirma que o homem é o objeto do riso e
estabelece a divisão entre nós mesmos e os outros, ou seja, o riso é extraído do homem por
meio de uma distração, de um fingimento, comparado ao predomínio do riso do outro, seja
o riso dos amigos que se desconhecem, seja o riso da personagem inferior das comédias,
seja ainda o riso do adversário. Portanto, o que nos faz rir é aquilo que foge do discurso
sério, das coisas honestas, das qualidades sérias. Isso se torna verossímil quando Cícero
afirma que o riso é aquilo que é baixo e torpe, e, para Aristóteles, o que nos faz rir é aquilo
que não nos leva ao choro nem ao arrepio e nem à piedade.
Em suma, as concepções do riso grego nos trazem um itinerário quase completo, do
qual as épocas seguintes só farão ilustrar uma ou outra etapa. Os mitos gregos contam
como o riso vindo dos Deuses apareceu como meio de controlar os instintos animais, tais
como o medo e a agressividade; e como uma reação de proteção diante da nossa
consciência moral. Esses mitos ritualizados nas festas aparecem, posteriormente, no teatro
cômico, que faz transição com o cotidiano vivido que reina até os primórdios do próximo
século.
20
2.1.2. O RISO DA IDADE MÉDIA À IDADE MODERNA
Se, como vimos, para os filósofos e estudiosos da Antiguidade o riso é um traço
que distinguia o homem de outros animais (o homem é o único animal que ri), para a
teologia medieval o riso é o que distingue o homem de Deus. O fato de que nenhuma
passagem bíblica atesta o riso de Cristo reforça a aproximação do riso ao pecado. Assim
sendo, sob a ótica medieval, o riso é, portanto, condenável (ALBERTI, 2002).
Minois (2003, p.112) afirma que “o riso aparece na história cristã quando o pecado
original é cometido e, consequentemente, tudo se desequilibra, e o riso aparece”. Portanto,
o riso está ligado às imperfeições humanas e, ao mesmo tempo, é um consolo para escapar
das angústias e das frustrações impostas pela nossa própria essência. É essa falha entre a
existência e a essência que provoca o riso, essa defasagem permanente entre o que somos e
o que deveríamos ser.
Assim, diante de uma sociedade estática com pouca mobilidade social e cultural,
caracterizada por uma economia ruralizada e enfraquecida e por uma supremacia da Igreja
Católica, o riso se infiltra por todas as imperfeições humanas. É uma constatação de
consolo, de uma conduta de compensação, para escapar ao desespero e à angústia. Dessa
forma, por meio da comédia, que foi excluída dos domínios da igreja, o riso torna-se a
principal cultura popular da época. A visão cômica, fora dos domínios das autoridades,
ganha liderança e liberdade extraordinária, ou seja, é uma vitória sobre o medo. Ela se
manifesta em forma de ritos e espetáculos, tais como Carnaval e peças cômicas
desenvolvendo um vocabulário familiar e grosseiro.
Embora as pressões sociais e religiosas fossem constantes na época, o riso não
perdeu sua essência. Por meio das festas carnavalescas, o povo representa a própria vida,
parodiando-a e invertendo-a. Essa vida representada por intermédio do riso corresponde à
libertação definitiva em relação às normas, aos valores e às hierarquias. E, por fim, esse
riso é ambivalente, ou seja, é alegre, transborda de alegria, mas também é zombeteiro,
sarcástico; ele nega e afirma ao mesmo tempo. Tais gêneros visam a denunciar a
exploração da simplicidade e da ingenuidade popular. O rei e os grandes são
ridicularizados.
Dessa forma, a essência cômica na vida popular medieval é o grotesco ou o
rebaixamento. O que se percebe, tanto no indivíduo como no mundo e na sociedade é a
constante permanência do instinto da satisfação, do prazer pela grosseria, pelo insulto, e
pela vontade subversiva de baixeza. Essa visão cômica está ligada à libertação, às
21
restrições impostas pela sociedade. Na festa carnavalesca, inverte-se, zomba-se de tudo
aquilo que é proibido, tornando o riso não individual, mas também coletivo, social e
universal.
No século XVI, o riso surge para censurar os vícios e os pecados, pois se acreditava
que ridicularizar alguém seria uma forma de corrigi-lo. Nesse sentido todos os
comportamentos extravagantes, que feriam os padrões morais, eram vícios potencialmente
cômicos. Na verdade tais atitudes refletem a concepção aristotélica segundo a qual
qualquer marca constrangedora, desde que não envolva dor, torna as pessoas ridículas.
É, pois, apenas em 1579, com a publicação do Tratado do riso, contendo sua
essência, suas causas e seus maravilhosos efeitos, curiosamente pesquisados, refletidos e
observados, que Laurent Joubert, médico e conselheiro do rei, analisa cientificamente a
filosofia do riso, que ele considera uma paixão, e a avalia como sendo a causa intrínseca do
riso. Os comentários de Alberti (2002, p.81) sobre tal obra revelam como o autor buscou
aliar uma concepção clássica do riso, o riso como paixão, ao espírito cientificista, típico da
Renascença:
Apesar de outros textos da Renascença se ocuparem do assunto, o livro é sem dúvida um dos mais significativos, além de
provavelmente o único em francês (e não em latim) no período. O
riso interessa a Joubert, e a outros autores da época, do ponto de vista da medicina, o que pressupunha, naquele universo, o
conhecimento não só dos órgãos do corpo, mas também das
faculdades da alma (ALBERTI, 2002, p.81).
Na realidade, segundo indicação de Alberti (op.cit., p.86), Joubert buscou explicar
o “circuito do riso” como “a matéria risível penetra na alma através dos sentidos da
audição e da visão e é prontamente transportado para o coração, sede das paixões, onde
desencadeia um movimento próprio à paixão do riso, que se estende para todo o diafragma,
o peito, a voz, a face, os membros, enfim, para todo o corpo”.
A partir disso, é nessa época que surge a caricatura, advinda das paixões como
forma de satirizar o indivíduo, seja político, seja religioso, etc. Uma das paixões
predominante da época era a vaidade, pois os cidadãos preocupavam-se muito com a
aparência, tornando o rosto um revelador de seu caráter e de sua personalidade. Só no fim
do século, a caricatura educa-se e se domestica na Itália pelo verdadeiro fundador: Annibal
22
Carrache (1560-1609), criador de uma escola de arte em Bolonha. Suas obras eram
confeccionadas por puro prazer e lazer, transformando-se em verdadeiras obras de arte que
provocavam o riso.
Assim, no fim do século XVI e início do século XVII, técnicas humorísticas
surgem, além da caricatura, cujos objetivos eram ridicularizar e denegrir as coisas
diabólicas e as superstições da igreja. Tais técnicas fazem ressoar o riso de todas as formas:
sarcástico, caricatural, irônico, grotesco, de rebaixamento, etc.
O século XVIII, por sua vez, foi o século em que o riso era menos compreendido
devido ao grande racionalismo, portanto a presença do riso de zombaria, de escárnio se
intensifica tanto no povo como nas elites - o que revela a ascensão de valores sociais e
políticos. A partir disso, o riso de zombaria torna-se alvo privilegiado na organização
social da época. Os cômicos da geração incidem sobre vícios e defeitos individuais para
preservar o corpo social e político. Desse modo, o riso vem trazer a segurança em relação
ao medo do outro ou ao medo dos outros por meio da ironia que denuncia as falsas
verdades.
No século XIX, a sátira e a caricatura aumentaram as brechas dos governos
monárquicos autoritários e participaram nas lutas sociais, políticas e econômicas. A vida
política se expande de forma caótica em direção à democracia, fazendo com que o riso
ganhe terreno por meio da sátira política. As discussões parlamentares, o início da
democracia, a liberdade de expressão criam condições ideias para um debate de opiniões
em que a ironia é chamada a desempenhar um papel essencial.
A caricatura atribui de maneira concreta, pelo desenho, um valor degenerado à
personagem do adversário. Constrói imagens negativas de uma sociedade sonhada,
rebaixando valores desajustados na política, na nobreza e no clero. Nessa época eram
comuns as humilhações ao clero, mostrando monges e bispos em posturas obscenas. Já na
política, grandes caricaturistas ingleses e franceses despertavam o espírito público contra
aqueles que eram inimigos da liberdade e da República.
Segundo Minois (2003, p.471), “a caricatura se expande por toda a Europa,
aprimorando-se nos procedimentos litográficos e revelando uma deformação grotesca da
visão do mundo”. Ela põe em evidência aqueles que se desviam das normas, provocando a
queda dos que estão em situações privilegiadas. Além disso, a sátira política assume um
caráter de desafio e pode, assim, contribuir para a tolerância dos abusos. No fim do século
XIX, a sátira política aprofunda-se com a liberdade de imprensa, levando a caricatura
também a ampliar seus alvos para expressar certa visão de mundo.
23
Esses pressupostos teóricos dos séculos XVIII e XIX têm bastante proximidade
com algumas formas de pensar o riso recorrente em textos do século XX, seja porque a
incongruência cômica pode ter um olhar mais próximo do real que a da congruência séria,
seja porque durante a história, o homem ri, sobretudo, do contraste da deformidade quando
esse riso é necessário para corrigir os vícios e os defeitos e reajustar o mundo à ordem
natural e verdadeira (ALBERTI, 2002).
Segundo a teoria do riso de Schopenhauer (1988 apud ALBERT, 2002), o riso está
na incongruência das formas de representação pelas quais o homem apreende o mundo.
Todas as manifestações do mundo são da ordem da representação, e não há objeto sem
sujeito. Assim, algo só é cômico na medida em que o observador ri dele; não havendo o
sujeito não há o cômico. O riso está naquele que ri e não no objeto do riso.
Desse modo, observamos que a passagem do sério para o riso ocorre do
aparecimento de uma incongruência inesperada que revela o fracasso da razão em
apreender a realidade. A causa desencadeadora desse processo seria uma perda de controle
e, consequentemente, a quebra de uma expectativa. Isso acontece, por exemplo, quando
somos surpreendidos com alguma impossibilidade lógica que tomamos como natural, ou
quando somos tentados por ideias irrelevantes, ou quando são geradas expectativas que
conduzem a um impasse, ou quando somos persuadidos a aceitar o que aparentemente é
inaceitável.
Assim sendo, no domínio da charge política que é o foco do trabalho, o riso
zombeteiro exerce uma atividade social de denúncia, porque os dirigentes políticos
impõem-se de importantes, mentem, enganam, traficam, roubam, desviam, brutalizam os
mais fracos, a pretexto de darem lições de moral. Esse riso nomeia todos esses políticos
que, sob a fachada da democracia, só pensam na própria carreira, conforme veremos
adiante. Assim, a função do riso é de denúncia, visando ao confronto com a norma, a
excluir os desviantes e os inovadores para manter a ordem social.
24
2.1.3. A BELLE ÉPOQUE: SUA INFLUÊNCIA URBANÍSTICA E HUMORÍSTICA
NO BRASIL
2.1.3.1. A Belle Époque
Vista mais como um estado espiritual do que algo mais preciso e concreto, a Belle
Époque é compreendida como um momento de trajetória francesa com início no fim do
século XIX, estendendo-se até a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914. Observada
como uma época de transformações, avanços e paz presentes no território francês, o
cenário cultural e artístico nesse país floresce, e o belo se destaca nos mais amplos
estabelecimentos e requintes estruturais e filosóficos da época. Esse período também é
marcado por novas descobertas e tecnologias submetidas ao nascimento do
Impressionismo e da Art Nouveau. (NEEDELL, 1993)
Com os avanços tecnológicos, vivia-se um tempo de prosperidade, que mudou os
hábitos e os modos de viver no mundo ocidental. A imprensa consolidava-se como uma
das instituições essenciais da esfera pública e as revistas ilustradas passaram a integrar um
conjunto de formas expressivas típicas do mundo burguês, ampliando o circuito da
comunicação artística e intelectual para além dos espaços tradicionais, como as academias
e os salões.
A partir disso, no início de 1860, o aprimoramento das técnicas de impressão e a
crescente aceitação dessas publicações na sociedade, revelaram-se um importante
instrumento de propaganda política, especialmente quando os movimentos de contestação
à tradição imperial exigiram alternativas externas dos espaços formais da política,
ocupadas hegemonicamente pelos conservadores.
No Brasil, a Belle Époque tem início em 1889, com a Proclamação da República, e
vai até 1922, quando explode o Movimento Modernista, com a realização da Semana da
Arte Moderna. Tal época foi marcada por profundas transformações culturais e sociais
decorrentes das mudanças políticas e econômicas que se traduziram em novos modos de
pensar e viver o cotidiano.
A Belle Époque carioca inicia-se com a subida de Campos Sales, segundo
presidente paulista, ao poder em 1898 e a recuperação da tranquilidade sob a proteção das
elites regionais. Aspectos característicos da Belle Époque carioca se manifestaram a partir
da base política criada por Campos Sales em quatro anos e legada ao seu sucessor,
25
Rodrigues Alves (1848-1919), que propõe a reforma do porto que era fundamental para
atrair a imigração, o capital estrangeiro e o comércio europeu. O embelezamento e o
saneamento da cidade do Rio de Janeiro foram prioridades durante seu mandato.
Assim, Rodrigues Alves nomeia Pereira Passos, engenheiro do Ministério do
Império, para a prefeitura, encarregando-o de implementar reformas urbanísticas. Houve
enorme influência das grandes obras de Paris nas reformas do Rio. Documentos do
engenheiro e publicações da época ressaltam a importância de Georges Eugène
Haussmann, conhecido por Barão Haussmann, “o artista demolidor”, que foi prefeito e
responsável pela reforma de Paris.
Dessa forma, estabelece-se como sinônimo da Belle Époque o afrancesamento do
Rio de Janeiro. Além disso, nada melhor para expressar a Belle Époque carioca do que a
nova Avenida Central, composta de edifícios públicos, prédios como o do Jornal do
Commércio, Teatro Municipal (1909 - Imagem 01 e 02), o Palácio Monroe (1906), a
Biblioteca Nacional (1910) e a Escola Nacional de Belas Artes (1908). Atraíam a atenção
do público com suas construções de caráter eclético da arquitetura da École des Beaux-
Arts. Abaixo, uma foto estampada na primeira página do Jornal do Brasil, de 18 de Julho
de 1909, sobre a noite da inauguração do Teatro Municipal e na página seguinte, a imagem
do teatro após a inauguração:
Imagem 01
Fonte: Imagem01 - http://www.jblog.com.br/hojenahistoria.php?blogid=57&archive=2008-
07&catid=146(acesso em 10/10/2012)
26
Imagem 02
Fonte:
Imagem 02 - http://rio-curioso.blogspot.com.br/2009/10/theatro-municipal-inauguracao.html
(acesso em 10/10/2012)
2.1.3.2 O Humor na Belle Époque
À luz das transformações culturais tão enfatizadas principalmente na Região
Sudeste, precisamente no Estado do Rio de Janeiro, inspirações humorísticas brotavam aos
olhos dos escritores nesse momento tão crucial da história brasileira. Podemos supor, dessa
forma, que é por meio do humor que a Belle Époque poderia mirar-se aos olhos do público
da época para compensar um momento de desvario e de loucura, introduzidos na vida
cotidiana nesse período. As pessoas, incertas pela perspectiva do futuro e com a imprecisão
quanto à administração política, apesar de haver algumas delas ainda iludidas com a ideia
do novo, amparavam-se no humor a fim de que, mesmo temporariamente, tivessem
motivos para esquecer os problemas do cotidiano.
Entretanto, mais do que um mero manifesto artístico, alguns autores visavam às
criações de representações humorísticas que tinham por objetivo desmascarar o real, pois,
como dito, ainda era claro o impacto dos conflitos políticos. Essa época incentivou uma
grande produção cômica, toda ela voltada para as rixas e para os rancores pessoais das
mais diversas representações políticas-sociais.
27
2.1.3.3 O Humor no Estado do Rio de Janeiro
Tentar demarcar no tempo o período exato em que há o surgimento dos primeiros
manifestos humorísticos seria um trabalho impreciso baseado em meros levantamentos e
questionamentos vagos. Entretanto, ao delimitarmos os Estados que mais foram
influenciados pela Belle Époque, teríamos então de explicar como o humor era tratado em
São Paulo e no Rio de Janeiro.
No Estado carioca, nomes como Pardal Mallet, Lúcio de Mendonça, Paula Nei,
Artur Azevedo e José do Patrocínio, utilizavam-se da “desilusão republicana” para
produzir textos satíricos sob a forma de crônicas, romances e contos publicados
primeiramente em rodapés de jornais ou pequenos pasquins semanais, folhetos cômicos do
período regencial até o surgimento das primeiras revistas ilustradas, que começaram a
proliferar graças ao desenvolvimento da impressão e reprodução (SALIBA, 2002)
Assim, influenciados pelos impasses políticos e sob influência das mudanças
trazidas pelo afrancesamento da Belle Époque, a geração dos primeiros humoristas no
início do século XX preocupava-se em descobrir qual seria a figura que representaria a real
identidade brasileira nesse período histórico (ver imagem 03). O escritor Monteiro Lobato,
em 1924, lança Jéca Tatuzinho, inicialmente com o intuito de promover os produtos do
laboratório do amigo Cândido Fontoura (Laboratório Fontoura Serpe & Cia), cuja imagem
representa o protótipo do homem paulista tendo perdurado tal título pelos anos
subsequentes.
28
Imagem 03
Fonte: http://www.brasilcultura.com.br/literatura/monteiro-lobato-jeca-tatuzinho - acesso
em 27/04/2009.
Nessa mesma época, as primeiras revistas ganham o gosto do povo, pois suas
edições se preocupavam em veicular aquilo que atendia aos interesses do público leitor.
Esse contato mais direto com os leitores possibilitou, aos poucos, a novos escritores, uma
relação mais próxima com o leitor do que aquela ligada ao consumo do livro. As seções
humorísticas ganham espaços também nos jornais, acompanhando a propagação da
caricatura em busca dos estereótipos sociais. A seguir, seguem-se algumas imagens
(imagem 04 e 05) presentes na revista Fon-Fon, uma das primeiras revistas em circulação,
cujo nome nada mais era do que uma onomatopeia da buzina de um carro, já representando
as mudanças tecnológicas:
29
Imagem 04
Fonte: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/fonfon/fonfon_anos.htm Gravura: K.Lixto, 13 de abril de 1907. Acesso em 10/10/2012.
Imagem 05
“ Monarquia – Não é por falar mal mas, com franqueza, eu esperava outra coisa.
República - Eu também.”
Fonte: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/fonfon/fonfon_anos.htm
Gravura: K. Lixto, 13 de Novembro de 1913. Acesso em 10/10/2012.
30
A imagem 04 retrata a vida social da elite burguesa no contexto da Belle Époque, e
a representação das mudanças tecnológicas, como os automóveis, a moda nos bailes, a
aviação, etc., que eram materiais para essas revistas. Enquanto, na imagem 05, observamos
um contraste entre a República dos sonhos e a real; com isso a imagem cívica da mulher
perdeu sua importância e passou a ser debochada junto com a República, por meio dos
caricaturistas em seus periódicos.
2.1.3.4 O humor no Estado de São Paulo
De maneira mais ambígua, São Paulo também vivenciou a tensão expressa pela
Belle Époque e toda a sua influência urbanística e cultural; entretanto, os traços da
inovação europeia foram mais marcantes no Rio de Janeiro. Na construção do humor, não
havia necessariamente as preocupações da procura incansável do modelo estereotipado ou
da representação brasileira tal como visto pelos escritores cariocas. Ao contrário desses
escritores, os paulistas estavam bem mais distantes das instituições de legitimação literária.
Foram raros os autores que se utilizaram dos sonetos como forma de expressão humorística
e, quando o fizeram, foi para mostrar, por meio da paródia, o inconformismo e o
distanciamento em relação às escolas literárias.
Os registros mais significativos em São Paulo no início do século XX foram as
crônicas, os poemas, os romances, os jornais e, em maior escala e proliferação, as revistas
semanais. As revistas tiveram maior circulação em São Paulo, pois acompanhavam o
crescimento urbano da cidade e as rápidas transformações sociais. Nesse contexto, a
representação irônica era observável pela coletividade e não na característica
individualizada, tal como no Rio de Janeiro. Os alvos e os focos de sarcasmo e ironia eram
órgãos públicos, a expansão do comércio ou certos costumes vigentes nessa época.
31
Imagem 06
O tônico do pobre
Emoção do chicote. (A cigarra – 1916)
Fonte: http://www.dominiopublico.gov.br/(acesso em 10/10/2012)
A charge presente na figura 06 (Revista “A Cigarra”, de 1916) é um trocadilho
perspicaz com o famoso tônico “Emulsão de Scott”, com o intuito de criticar o elevado
preço dos remédios, utilizando-se ironicamente da figura da “melhoria do corpo”, também
tão focado pelo famoso Biotônico Fontoura.
2.2– O HUMOR NA SOCIOLOGIA E NA POLÍTICA
Como uma das atividades da faculdade humana, o humor surge da interação social
em que a sua propagação depende do diálogo entre os interlocutores. Mais do que o
simples fazer rir, como observado em Travaglia (1990, p.72), o humor “é uma espécie de
arma de denúncia” em cuja intencionalidade discursiva utiliza-se da comicidade para
apontar e satirizar os vícios e os desvios das realidades naturais, flagrando os inúmeros
acontecimentos aparentemente estranhos aos costumes de um dado período histórico. O
32
riso surge da difamação de algo em que alguém ou uma dada situação é alvo de
perseguição sarcástica aparentemente inocente. Só é possível utilizar-se do efeito do
engraçado como uma espécie de estratégia de rebaixamento se a causa provém da ruptura
da realidade da época em que se vive.
Para Bergson (2001), a comicidade está ligada ao homem, ou seja, ao estudarmos o
riso, enfocamos uma manifestação própria do ser humano. Desse modo, por ser acoplado
ao homem e ao sabermos que ele é um ser social, reconhecemos que o humor está
relacionado à sociedade e à cultura de certo grupo. Além de tudo, o riso e o cômico são
para Bergson, respectivamente, um desvio negativo que restabelece a ordem da vida e da
sociedade.
Ainda de acordo com os fundamentos de Bergson, podemos afirmar que a
comicidade não pode ser percebida isoladamente, ela necessita do outro para perceber seu
efeito. Assim, afirma, que o riso é sempre o riso de um grupo.
Segundo Pirandello (1908 apud SALIBA, 2002), o cômico nasce de uma percepção
do contrário visto como um recurso desfamiliar, em que um dado assunto é passível, sim,
de controvérsias e diferentes pontos de vista manifestados num determinado grupo social.
Trata-se, pois, da oposição, segundo Possenti (2010) entre o discurso politicamente
“correto” e o “incorreto” em que o primeiro é visto como permitido e, o segundo, como o
que deve ser reprimido ou proibido. Dessa forma, constatamos que o efeito de humor
advém da criticidade como traço constante, onde o riso seria a correção.
À vista disso, o riso ganha uma função social, pois rimos para restabelecer os
elementos vivos que compõem a própria sociedade. Não se trata mais, como nas teorias
clássicas, de descobrir a “essência” do risível, pois, afinal, é na sociedade que se acha a
resposta, e não na natureza humana (SALIBA, 2002).
Para Bergson, a vida e a sociedade exigem de nós uma vigilância constante de
nossas ações para que estejamos em incessante adaptação, submetidos a forças
complementares de tensão e elasticidade que a vida nos mobiliza.
Portanto, Bergson (2001, p.15) afirma:
A comicidade nasce no momento preciso em que a sociedade e a pessoa, libertas dessa pressão social de conservação, por meio da
rigidez do corpo, do espírito e do caráter, caem numa zona neutra
em que o homem serve simplesmente de espetáculo ao homem.
Consequentemente, o riso é uma ação social que vem confirmar um comportamento
ameaçado pela ligação do grupo. Esse comportamento é a “rigidez das ações”, que traduz
33
uma mecanização da atitude. Tal rigidez, seja de caráter, de espírito ou de corpo é suspeita
para a sociedade, porque é sinal de uma conduta que se separa do centro comum em torno
do qual a sociedade compartilha do sério.
A partir disso, lembremos-nos da teoria de Bergson: o cômico é “o mecânico
aplicado sobre o vivo”. Ela se aplica tanto ao comportamento humano quanto aos
fenômenos naturais que poderiam ser reduzidos ao mecânico. Bergson ilustra isso com a
história de uma senhora a quem Cassini convida para observar um eclipse. Como chega
atrasada, ela declara abertamente: “Senhor Cassini, poderia recomeçá-lo para mim”? O
automatismo do comportamento é fonte do cômico (abid.,p.33).
O vivo tem valor de fundamento em relação ao mundo, à sociedade e à conduta
humana. E como já foi dito, a sociedade e a vida exigem do homem uma constante
adaptação, submetido às forças de tensão e elasticidade que a vida coloca em jogo.
Assim, segundo o mesmo autor, quando essas forças faltam ao corpo, surgem as
moléstias físicas; quando faltam ao espírito, surgem problemas psíquicos; e, quando elas
faltam ao caráter, surge a inadaptação à vida social. A ausência de adaptação e de mudança
constitui o mecânico, ou seja, uma espécie de desvio em relação ao que é visto como
natural. Essa teoria só ganha sentido na medida em que o riso adquire uma função social.
Gostaríamos ainda de acrescentar que as representações humorísticas provêm de
um esforço admirável em desmascarar o real, de captar o “não dito”, de surpreender o
engano ilusório dos gestos estáveis e de recolher, enfim, as sobras das temporalidades que
a história, no seu constructo racional¸ foi deixando para trás. Isso nos leva a crer que o
humor político é altamente dependente do contexto, tornando, assim, o riso uma espécie de
zombaria social cuja intenção é humilhar e, ao mesmo tempo, corrigir, sem que haja
quaisquer vestígios de pena e piedade.
Como nos recorda Bergson (2001, p.4), “o humor não se manifesta por si só”. O
humor é compartilhado por um determinado grupo de pessoas em que um assunto é
difamado ou rebaixado mediante algum apontamento falho que justifique a ocorrência de
um acontecimento ou de uma pessoa alvo desse apontamento.
Dos fatores destacáveis mais comuns em um dado contexto social, enfocamos os
tipos estereotipados historicamente e socialmente. Obviamente, o tema que mais sofre
recorrência estereotipada, já há tempos, é a do político corrupto, falso e manipulador.
Em vista do exposto, podemos indagar como as representações humorísticas
buscavam resolver impasses característicos à sociedade, que voltavam à tona num
momento crítico de reajustamento social e político. Foi por meio dos registros cômicos que
34
foi possível, de forma privilegiada, representar as condições, as possibilidades e as
vivências de um período histórico.
A visão do que é adequado ou não, observável nas contribuições teóricas aqui
citadas, já ocorria no início do século passado, principalmente quando a divulgação
humorística se dava por meio de alguns impressos. Todavia, o maldizer estereotipado teria
o devido amparo por meio das charges e caricaturas, desde que inserido na ideia da
“brincadeira” partilhada.
2.3 O HUMOR NA PSICANÁLISE
Freud (1905, p.141) afirma que a produção de prazer promovida pelo chiste
“corresponde à despesa psíquica que é economizada”. Essa economia na despesa psíquica
é relativa à inibição, ou à supressão, o que parece ser o segredo para a obtenção do prazer.
Portanto, observamos que o humor é um processo de defesa contra qualquer dor ou mal,
psíquico ou moral e nos permite liberar um desgaste emocional, e é isso que estabelece o
prazer que ele propicia. Esse prazer é decorrente da possibilidade de pensar sem as
obrigações impostas pela educação intelectual, propiciando àquele que ri manter a sua
saúde física e mental, enquanto aquele que não ri se enfraquece.
Para Freud, há duas fontes do prazer nos chistes. Primeiramente, o jogo de palavras,
que corresponde aos chistes verbais, provoca-nos prazer porque nos libera do esforço
necessário à utilização de seu significado literal. Ele suscita a ligação rápida de dois
campos semânticos separados, cuja apreensão usual exigiria muito esforço. O prazer que
resulta disso é a economia de energia que fazemos no curso do pensamento. Segundo, o
jogo de pensamento, que corresponde aos chistes conceptuais, surge duma supressão muito
enérgica e o prazer que se pode produzir decorre apenas da suspensão de uma inibição.
Além disso, Freud defende que o humor é um escape libertador de tensão, muito
semelhante aos sonhos: liberta instintos e desejos sexuais e agressivos, socialmente
reprovados e reprimidos. Assim, a tensão gerada pela repressão social desses instintos é
simbolicamente liberada por meio das piadas e anedotas. É como se ríssemos para
descarregar um excesso de energia causada pela inibição, proporcionando prazer e alívio.
Portanto, mediante acontecimentos e transformações históricas, políticas e sociais,
compreendemos que o riso é um riso de alívio, porque concebe uma sensação de superação
e dominação recorrentes dessas transformações. Por isso, o riso exerce uma função
35
importante de excluir pela zombaria aqueles que são diferentes diante das perdas
acumuladas pela humanidade ao longo do século.
Dessa forma, o riso no domínio da psicanálise é sempre visto como uma economia
de energia e descarga de tensão, liberando o estresse e exercendo sobre o comportamento
social do homem uma influência análoga a da responsabilidade moral. No entanto, o riso e
a zombaria constituem instrumentos de sobrevivência psíquica, pois atuam contra a
angústia e contra os vícios da sociedade.
Segundo Minois (2003, p.526), “o humor impede o desencadeamento do afeto
penoso, permite-nos economizar em desgaste afetivo, e é nisso que reside o prazer que ele
proporciona”, isto é, o humor não procura diminuir da consciência o ato penoso, mas
transforma em prazer a energia já acumulada de um desgaste afetivo. Portanto, percebemos
como o humor tem algo de sublime e de elevado que se prende, evidentemente, ao eu que
se recusa a admitir que os traumas do mundo exterior consigam tocá-lo, mas também ele
faz perceber que eles até podem causar-lhe prazer.
Dentro dessa concepção de defesa psíquica contra a dor, Freud afirma que o humor
é a arma mais sublime que permite controlar o eu, mantendo a saúde psíquica e o
equilíbrio, e, além disso, é fonte de prazer que se afirma apesar de realidades exteriores
desfavoráveis.
Diremos, então, que o prazer e o relaxamento são efeitos do riso cuja finalidade é a
correção dos falsos entusiasmos ou das falsas grandezas; é a correção de pequenos vícios e
defeitos que são próprios da espécie humana.
Freud (1905, p.163) afirma que “o objetivo de conseguir prazer deve ser
reconhecido como motivo suficiente da elaboração do chiste”, ou seja, a elaboração do
chiste não está à disposição de todos, mas apenas daqueles que dispõem de uma
capacidade especial e que esteja desvinculada do interesse intelectual consciente que
impossibilita o efeito do chiste. Portanto, Freud concorda com Schopenhauer quando
define chiste como “algo cômico de um ponto de vista inteiramente subjetivo”, isto é, algo
de nossa autoria e que se liga a nossa atitude como tal, mantendo sempre uma relação com
o sujeito e não com o objeto.
Além disso, Freud (1905, p.169) considera que “o prazer que o chiste produz é mais
evidente na terceira pessoa que no criador do chiste”, isto é, o ouvinte evidencia seu prazer
com uma explosão do riso, desencadeando uma descarga de energia psíquica. Entretanto,
outra condição que leva ao mesmo resultado, pode ser percebida na primeira pessoa de um
chiste, quando se executa a elaboração do chiste com certa força que interrompe a inibição.
36
Isso, sem dúvida, resulta em prazer para si mesmo. Assim, observamos que essa relação do
sujeito e do objeto do riso é indispensável a fim de que possa alcançar os propósitos de
desnudamento e de relaxamento das tensões impostas pela sociedade. Portanto, a
elaboração do chiste é deduzida da produção do prazer, resultante da paralisação da
inibição.
Em relação à definição de Bergson (2001) de que o riso provém do mecânico
aplicado sobre o vivo, Freud (1905, p.178) também destaca que o riso é, de fato, “o
produto de um processo automático tornado possível apenas pelo descarte de nossa atenção
consciente”, ou seja, isso se relaciona com o comportamento humano que por meio de uma
simples distração descarta a rigidez provocada pela constante adaptação que o homem é
submetido pela sociedade e pela vida.
A fim de esclarecer exatamente como funciona, em termos técnicos o chiste, Freud
(1905, p.141) se debruça sobre aquilo que chama de “técnica do chiste” que constitui
fontes de prazer. De início, Freud usa como exemplo o trocadilho “familionarmente”,
referente à união das palavras “familiar” e “milionário”, retirado de um texto de Heine. No
texto, um dos personagens faz uso desse trocadilho sagazmente ao referir-se ao tipo de
relação que mantinha com um conhecido barão. Para descobrir o efeito de humor no chiste
é só “desmontar” o objeto chistoso e observar se mesmo desconstruído ele continua dotado
das características que o fazem risível.
O exemplo que Freud utiliza trata de uma condensação de palavras, de forma que
quando as duas palavras em questão são separadas uma da outra, o sentido mantém-se, mas
o caráter espirituoso da frase se reduz a nada, sendo assim, tratava-se de um chiste
expresso através da forma. Desse modo, originam-se duas classes distintas, mas
complementares, de chiste: o chiste verbal e o chiste conceptual, ou seja, ou o chiste se dá
na forma do objeto que lhe é portador, ou o chiste se dá na ideia expressa na frase.
(FREUD, 1905, p.31).
Voltando ao exemplo citado, Freud afirma que, nesse caso, a técnica usada para se
obter o chiste é a de condensação com substituição. O resultado, portanto, é a união de dois
elementos em um só novo elemento, aquela resultando compreensão em seu contexto e
reconhecida como plena de sentido, é o veículo do efeito do riso no chiste.
Observemos ainda que essa técnica de condensação não necessariamente se dá
exclusivamente por meio de uma estrutura composta de palavras, mas pode ocorrer uma
ligeira modificação na palavra que origina o chiste. Para isso, Freud cita o exemplo na
37
frase “Viajei com ele tête-à-bête”. Nada mais fácil que a redução desse chiste que,
claramente, significa: “Viajei com X tête-à-tête, e X é uma besta” (Freud, 1905, p.39).
Disso, Freud (1905, p.42) esclarece que “a brevidade dos chistes é frequentemente
o resultado de um processo particular que deixa um segundo vestígio na verbalização do
chiste – a formação de um substituto”. Essa brevidade, ou ligeireza, mesmo nos trabalhos
que precederam Freud, sempre foi considerada uma das características fundamentais do
chiste.
Outra maneira de se obter um chiste verbal é por meio do trocadilho, uma das
técnicas mais conhecidas e banalizadas. Para Freud (1905, p.61), “os trocadilhos
pertencem à forma mais baixa de chiste verbal”, isto é, elaborado com menor dificuldade.
Para um trocadilho basta que dois significados se lembrem de um ao outro por meio de
alguma vaga semelhança.
Além disso, Freud analisa também a categoria que ele denomina de chiste
conceptual. Trata-se de um tipo – ao contrário do chiste verbal – que se dá menos no jogo
de palavras, no trocadilho, na modificação de palavras, e mais no domínio das ideias e do
processo mental que constitui o chiste. Diversas são as técnicas desse chiste conceptual,
mas aquela que nos interessa para futura análise deste trabalho é a técnica por
representação indireta chamada alusão. O chiste conceptual por alusão se dá por meio de
uma exteriorização de algo que não pode ser expresso diretamente, ou seja, alguma coisa é
sugerida, mas não dita diretamente. Ou, em outras palavras, essa técnica funciona a partir
de uma inferência que é rejeitada pela lógica e, finalmente, o sujeito liberto do pensamento
racional pode rir do que lhe causava tensão.
Além dessas duas grandes classes de chistes – chiste verbal e chiste conceptual –
há outras duas categorias trazidas à luz por Freud: aquilo que chama de chistes inocentes,
ou abstratos, e chistes tendenciosos. Para Freud (1905, p.109), o chiste inocente é aquele
que “contém o fim em si mesmo, não servindo a um objetivo particular”, ou seja, no chiste
inocente a explosão do riso se dá basicamente por meio das técnicas nele empregadas, por
isso ele é mais facilmente identificável. Já, os chistes tendenciosos servem para um fim,
sendo portadores de um conteúdo comprometido, constituídos de uma agressão que se
conquista por gargalhadas e são empregados para propósitos definidos.
Freud (1905, p.123) afirma que os chistes nos permitem explorar no adversário algo
de ridículo que não poderíamos tratar abertamente, devido a obstáculos no percurso. Para
ele, “o chiste evitará as restrições e abrirá fontes de prazer que se tinham tornado
inacessíveis”. Assim sendo, os chistes tendenciosos, contrários dos inocentes, são usados,
38
preferencialmente, para tornar viável a agressão ou a crítica contra superiores. O chiste
tendencioso funciona como uma máscara, como um artifício que concede a permissão para
que certos posicionamentos ou atitudes agressivas se certifiquem, resultando no efeito do
riso.
Desse modo, a elaboração do chiste revela-se na escolha do material verbal e das
situações conceptuais que permitirão com o jogo de palavra e ideias resistir à critica, por
isso toda especialidade de vocabulário e toda combinação de sequência de ideias deve ser
explorada da maneira mais engenhosa possível. Assim, a função do chiste consiste em
suspender as inibições internas e proporcionar as fontes de prazer tornadas inacessíveis por
tais inibições.
2.4. HUMOR NA LINGUÍSTICA E NO DISCURSO
Segundo Koch (2009), a Linguística Textual constitui um novo ramo da Linguística
que começou a desenvolver-se na década de 60, na Europa, e de modo especial, na
Alemanha. Sua proposta de estudo consiste em tomar como unidade básica, ou seja, como
objeto de investigação, não apenas a palavra ou a frase, mas sim o texto, por serem os
textos a forma específica de manifestação da linguagem. Nessa perspectiva, a Linguística
Textual ultrapassa os limites da frase e entende a linguagem como interação. Assim,
justifica-se a necessidade de descrever e explicar a língua dentro de um contexto,
considerando suas condições de uso.
Desde seu aparecimento até hoje, a Linguística Textual percorreu um longo
caminho. De um simples estudo da frase, passando posteriormente por um estudo da
gramática de texto, na tentativa de suprir algumas lacunas não preenchidas pela corrente
estruturalista e gerativista; e logo em seguida, chega-se aos conceitos de texto, que passa a
ser definido não mais como algo pronto e acabado, mas como um processo em construção,
levando-se em consideração o contexto sócio-cognitivo e cultural.
Assim sendo, a Linguística contribui para o estudo do humor e busca descobrir um
conjunto de propriedades linguísticas necessárias para explicar o efeito de humor.
Os estudos de novas interdisciplinas como a Pragmática, a Psicolinguística, a
Sociolinguística e a Etnografia da Fala começaram a realçar a importância do uso da língua
e dos eventos comunicativos voltados para o contexto e para o discurso. A partir disso o
texto passa a ser visto como um fenômeno que se constrói em determinada situação de
39
interação, envolvendo seus usuários e seus objetivos da interação. Nessa perspectiva, a
relação entre contexto e discurso permitem a produção e compreensão dos textos.
Segundo Van Dijk (2012, p.34), os contextos são construídos pelos constituintes
numa situação sócio-interacional ou comunicativa. O autor realça que essas “situações
sociais só conseguem influenciar o discurso por meio das interpretações (inter) subjetivas
dos participantes” que são explicadas em termos de modelos mentais, os quais representam
experiências pessoais na memória episódica (autobiográfica) e vão controlando passo a
passo os processos da produção e compreensão do discurso.
Desse modo, essas concepções contribuem para Possenti (1998, p.26) identificar
mecanismos linguísticos em textos humorísticos. São nesses textos que reconhecemos
manifestações culturais e ideológicas, estereótipos e um “discurso proibido”.
Já Travaglia (1995, p.42) descreve duas possibilidades na relação da Linguística
com o humor. A primeira diz respeito ao uso de textos humorísticos para evidenciar
mecanismos de funcionamento da língua e o segundo diz respeito aos mecanismos
linguísticos que são usados para a produção do humor. Todavia, esse autor expõe que essas
possibilidades não se excluem, sendo a sua principal preocupação a segunda.
Tendo esses autores como fundamento, constatamos que é possível o humor
acontecer por meio desses recursos num determinado contexto sócio-cognitivo
interacional. Travaglia (1995), por exemplo, trata especificamente das homonímias como
mecanismo linguístico que funcionam nos textos humorísticos como gatilho que permite a
mudança de um mundo textual para o outro por meio da ativação de conhecimentos de
mundo diferentes que resultarão em mundos textuais distintos e opostos.
Em, Travaglia (1990), outro mecanismo básico do texto humorístico é a bissociação
que consiste em ativar dois campos textuais divergentes de significado, ou seja, o texto
humorístico será compatível com dois scripts ou frames, com sentidos opostos entre si.
Portanto, observamos que os textos humorísticos apresentam mais de uma possibilidade de
leitura que surpreende o interlocutor.
Dentro do conceito de bissociação se encaixa a teoria semântica do humor de
Raskin baseada em scripts. Segundo Raskin (1985, apud RAMOS, 2011), o texto é
humorístico porque passa pelas seguintes etapas: troca do modo de comunicação bona-fide
para non-bona-fide; o texto precisa ser compatível, no todo, ou em parte, com dois scripts
diferentes; os dois scripts com os quais o texto é compatível precisam ser opostos; a
mudança de scripts é feita por meio de um gatilho óbvio ou implícito que evidencia a
40
oposição de scripts. O autor ilustra sua teoria com o exemplo da piada da esposa do
médico:
- O doutor está em casa? O paciente perguntou num sussurro rouco.
- Não – sussurrou em resposta a jovem e bela esposa do doutor – Pode entrar.
Segundo o modelo do autor, há na piada dois scripts: o das percepções de um
doutor e o de adultério. O primeiro corresponde ao bona-fide de comunicação, enquanto o
segundo ao não-bona-fide de comunicação que é acionado pelo gatilho “pode entrar”,
revelando o comportamento de um amante.
Da mesma forma, os frames também são compatíveis com as concepções da
bissociação. Para isso, Travaglia (2005) afirma que numa situação discursiva humorística
os interlocutores compartilham conhecimentos em comum, ativando o que podemos
chamar de frames que podem ser entendidos como modelos mentais estereotipados,
acionados durante o processo de interação.
Koch & Travaglia (2012, p.72) atestam que o conhecimento de mundo se
estabelece e se armazena na memória não isoladamente, mas se organiza em blocos,
denominados frames, ou seja, esse conhecimento é armazenado na memória sob um
“rótulo”, sem que haja qualquer ordenação entre eles.
Os autores também defendem a tese de que armazenamos os conhecimentos na
memória e quanto maior for essa parcela, menor será a necessidade de explicitude do texto,
pois o interlocutor será capaz de suprir as lacunas, por meio de inferências, a fim de
compreender e, posteriormente, interpretar o texto (KOCH & TRAVAGLIA, 2012).
Além disso, outra manifestação humorística muito usada para fazer humor é o
estereótipo. Lippmann (2010, p.86) afirma que “as formas estereotipadas emprestadas ao
mundo vêm de nossos códigos morais e filosofias sociais, assim como de nossas agitações
políticas”, ou seja, somos estranhamente afetados por padrões sociais e culturais que criam
uma atmosfera mental e social.
Ainda segundo o autor, a vida moderna é apressada e se manifesta de muitas
formas, portanto ela faz com que os homens se distanciem fisicamente uns dos outros,
mesmo estabelecendo uma relação vital entre eles, como o empregador e o empregado; o
funcionário público e o eleitor, etc. Não há nem tempo, nem oportunidade para
conhecimento íntimo, por isso estabelecemos um traço que marca um tipo muito
conhecido, e o resto da imagem preenchemos com os estereótipos que carregamos em
nossas mentes.
41
Nessa perspectiva, as mais delicadas e difundidas de todas as influências são
aquelas que criam e mantêm o conjunto de estereótipos, isto é, criamos expectativas e
imaginamos a maior parte das coisas, pela ação da mídia, antes de as vivenciarmos. E essas
formulações de crenças preconcebidas governam profundamente todo o processo de
percepção.
A partir disso, Lippmann (2010) defende que o único sentimento que alguém pode
ter acerca de um evento que não vivenciou é o sentimento provocado por tais imagens
mentais, tais estereótipos. Segundo o autor, são essas imagens estereotipadas da realidade
que determinam o sentimento do público e elas resultam menos da capacidade cognitiva do
indivíduo e mais da manipulação e administração do consenso social pelas partes
interessadas.
Portanto, os estereótipos estão carregados com os sentimentos que se fixam a eles.
Desse modo, quando dizemos que os políticos são corruptos, subentendemos que eles
foram destinados a serem corruptos, uma vez que fomos treinados a vê-los dessa forma, ou
seja, um indivíduo fraco que perdeu as qualidades do homem equilibrado e justo.
Assim, quando um sistema de estereótipos é bem fixado, nossa atenção é chamada
para aqueles fatos que o apoiam, afastando-nos daqueles que os contradizem. Não vemos o
que nossos olhos não estão acostumados a levar em conta, impressionamo-nos por aqueles
fatos que se encaixam em nossa filosofia de vida. Por isso, os estereótipos estão carregados
de preferências e cobertos de afeto e aversão.
Na visão de Possenti (2010, p.40), “o estereótipo é concebido como social,
imaginário e construído, e se caracteriza por ser uma redução (com frequência negativa),
eventualmente um simulacro”, ou seja, o estereótipo é uma espécie de identidade pelo
avesso, não aceita pelo grupo, mas que lhe é atribuída pelo seu Outro.
Como já foi mencionado anteriormente, o riso, o sarcasmo e a zombaria são formas
de manutenção de ordem social e política, já que descrevem defeitos das pessoas e das
sociedades, aumentando seus traços, deformando a ponto de chegar ao grotesco. Portanto,
essa deformação ou exagero tornam-se cômicos quando há um desnudamento de um
defeito e propõe uma denúncia da falsa aparência de virtude que esconde valores
negativos.
Segundo Propp (1992, p. 89), a caricatura é uma forma de exagero e a comicidade
encontra-se na correlação entre natureza física e espiritual, sendo que a primeira põe à
mostra os defeitos do segundo; logo o corpo humano pode se tornar ridículo, constituindo
o objeto risível. Bergson (2001, p.17), por sua vez, afirma que “pode tornar-se cômico toda
42
deformidade que uma pessoa benfeita consiga imitar”. A ideia que perpassa aqui é a de
focalizar um determinado aspecto do corpo humano e, ao exagerá-lo, destacá-lo, provocar
o riso.
Nessa direção, ao tratar da comicidade das diferenças, Propp (1992, p.65) ressalta
que a deformidade e a desproporção, que contrariam as noções de harmonia da natureza,
provocam o riso. Além disso, a animalização/coisificação do humano, segundo o autor, são
outras formas de constituição da comicidade. Do mesmo modo, a humanização do animal,
também gera o riso.
Ainda, sobre a caricatura, ao analisar programas de humor da televisão brasileira,
Travaglia (1992) aborda a paródia caricatural, a qual se constituiria pelas imitações de
figuras da sociedade, visando a ridicularizá-las. Desse modo, na imitação de
personalidades do mundo político, elas são descontextualizadas e recontextualizadas em
seguida, fazendo com que o efeito humorístico advenha da coexistência de um original
com sua imitação reconstruída.
Assim, podemos observar que todo fato humorístico é um ato de discurso que se
inscreve numa situação de comunicação. Para isso, é necessário descrever a situação de
enunciação na qual esse fato aparece; a temática sobre a qual ele incide; os procedimentos
linguísticos que o geram. O ato humorístico apresenta três protagonistas: o enunciador, o
destinatário e o alvo. O enunciador é o que produz o ato humorístico, numa determinada
situação de interação comunicativa, enquanto o destinatário torna-se cúmplice, ou seja,
entra em conivência com o enunciador do ato humorístico, com seu julgamento sobre o
alvo. Em relação ao alvo ou objeto do riso, é aquilo pelo qual o ato humorístico se
manifesta, por meio de um indivíduo ou grupo, destacando-se os defeitos ou incoerências
no modo de agir (CHARAUDEAU, 2010).
De qualquer forma, o que queremos ressaltar é que o humor veste o “sério” do “não
sério”, ele satiriza as imperfeições humanas e denuncia os desvios duma sociedade que
foge aos padrões morais e éticos. Daí a sua linguagem altamente alusiva, repleta de
subentendido, baseado em inferências, em mecanismos da linguagem que desvelam
aspectos lúdicos. Além disso, o humor é libertador, uma vez que, por meio dele,
descarregamos as tensões e a energia psíquica. Tal liberalização ocorre, inclusive, em
termos de comportamentos linguísticos.
43
3. REFERENCIAÇÃO E INTENCIONALIDADE: PRÁTICAS DISCURSIVAS
3.1. A REFERENCIAÇÃO E A INTENCIONALIDADE: ATIVIDADE
DISCURSIVA NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDO
Neste capítulo, abordaremos a referenciação, uma atividade textual-discursiva das
mais relevantes para a produção e compreensão de sentidos. Para isso, primeiramente,
daremos atenção à concepção de que o texto, como observado em KOCH (2009), é um
evento discursivamente comunicativo em que estão presentes sistemas de conhecimentos
como: o linguístico¸ o enciclopédico e o interacional. Tais conhecimentos contribuem para
o processamento textual. O linguístico compreende o conhecimento gramatical e lexical
que são responsáveis pela organização do material linguístico na superfície do texto; por
outro lado, o enciclopédico é aquele que se encontra armazenado na memória de cada
indivíduo, quer sejam adquiridos por meio de experiências, quer por meio de proposições a
respeito dos fatos do mundo. No aspecto sóciointeracional, o conhecimento, decorrente das
ações, costuma ser verbalizado mediante enunciações características que exigem dos
interlocutores reconhecer os propósitos comunicativos numa determinada situação de
interação.
Segundo Koch (2009, p.13), os estudos em Pragmática promoveram o surgimento
de teorias do texto para além do enfoque sintático-semântico. Em outras palavras, o
processamento do texto não depende apenas do cotexto, como se o(s) sentido(s)
estivesse(m) preso(s) à materialização textual, mas de um contexto comunicativo
situacional, entendido como tudo aquilo que circunda os interlocutores, envolvendo ações
ligadas, coordenadas e orientadas para um determinado fim, ou seja, o contexto é
construído, em grande parte, pela própria interação.
Portanto, quando lemos ou produzimos algum texto, sempre recorremos a
estratégias sociocognitivas e interacionais para nos auxiliar na compreensão e produção de
sentido. Assim, no decorrer do processamento textual, ativamos nossos conhecimentos,
sabendo da importância dos elementos linguísticos presentes na superfície do texto, mas
também sabendo que os sentidos não existem apenas na superfície textual, pois são
construídos na interação locutor-texto-interlocutor.
Além disso, o leitor necessita também apreender sentidos implícitos, por meio das
inferências feitas para que os sentidos sejam construídos. As inferências envolvem
44
processos cognitivos que permitem facilitar o processamento textual, quer em termos de
produção, quer em termos de compreensão.
Portanto, segundo Cavalcante (2012), observamos que a coerência textual não está
apenas no texto, mas ela se constrói a partir da incessante interação entre locutor-
co(n)texto-interlocutor, numa dada situação comunicativa, na qual o leitor, com base em
seus conhecimentos linguísticos, enciclopédicos e interacionais, compreende a construção
de sentido do texto.
Nessa perspectiva, a interpretação do que lemos e produzimos é resultado de uma
ação discursiva, ou seja, a realidade não é objetiva nem estática, mas se transforma em
referentes os quais se constroem e reconstroem à medida que o discurso progride, levando
em conta os sujeitos, seus conhecimentos, suas visões de mundo, suas experiências em
sociedade; afinal, conforme Marcuschi (2007), a maneira como dizemos aos outros as
coisas é decorrente de nossa atuação discursiva sobre o mundo e de nossa inserção
sociocognitiva nele.
Desse modo, Koch (2009, p.61) afirma que “os processos de referenciação são
escolhas do sujeito em função de um querer-dizer”. Os referentes (objetos de discurso) são
construídos e reconstruídos pela forma como sociocognitivamente interagimos em
situações comunicativas, criando por meio de gêneros textuais específicos, efeitos
decorrentes das práticas sociais.
Assim sendo, a referenciação constitui uma atividade discursiva em que o sujeito
por ocasião de interação verbal, opera sobre os materiais linguísticos que têm à sua
disposição e procede a escolhas significativas para representar o estado das coisas, de
acordo com a sua intenção comunicativa. (cf. KOCH, 2009, p.61).
Em vista disso, reafirmamos que o contexto deixa de ser uma realidade estática e
passa a ser representado pelo espaço comum em que os sujeitos, em função da interação,
mobilizam diferentes tipos de saberes, tendo em vista aquilo que para eles parece ser
relevante em uma determinada situação comunicativa.
Para Marquesi (2007, p.217), “a referenciação exige que se pense não apenas na
abordagem linguística, mas também na cognitiva, já que são concernentes às práticas e aos
discursos”. Assim, observamos que a referenciação está vinculada à interpretação e à (re)
construção de mundos por meio da interação com o entorno físico, social e cultural.
Então, a mera decodificação dos sinais emitidos pelo produtor não é de modo
algum suficiente: cabe ao leitor estabelecer, entre os elementos do texto e todo o contexto,
45
relações dos mais diversos tipos, para ser capaz de compreendê-los em seu conjunto e
interpretá-los de forma adequada à situação.
Para tanto, o leitor infere os elementos que o texto contém e relaciona com aquilo
que o texto deixa implícito, preenchendo as lacunas que ele apresenta, recorrendo para
tanto: a) ao seu conhecimento de mundo ou enciclopédico; b) aos conhecimentos
partilhados entre ele e seu interlocutor (quanto maior o conhecimento partilhado, menor a
necessidade de verbalização).
Acerca disso, para estabelecer as atividades ou os processos que permitem toda a
reflexão humana, Marcuschi (2007, p.88) afirma:
A referenciação, assim como a inferenciação e a categorização, é
processo básico, construído em atividades discursivas que permitem toda a reflexão humana e a análise do próprio
pensamento no âmago da linguagem.
O autor também defende a tese de que a realidade não está segmentada da forma
como é concebida, e as coisas não estão no mundo da maneira como são ditas, mas as
coisas ditas são coisas discursivamente construídas, e os referentes são na maioria objeto
de discurso. Afirma também que não existem categorias naturais, uma vez que não existe
um mundo naturalmente categorizado, mas, sim, um mundo construído discursivamente,
por meio dos referentes que são produtos de interações sociocognitivas.
Ao estudar a referenciação, KOCH (2009) enfatiza que a categorização é um
problema de decisão dos atores sociais envolvidos na construção dos referentes. As
variações no discurso dependem mais da pragmática do que da semântica dos objetos.
Trata-se, em geral¸ da ativação dos conhecimentos pressupostos e compartilhados entre os
interlocutores.
Portanto, a categorização é vista como um poder de decisão do sujeito no sentido de
(re) construir o referente, por meio do processo interativo. À medida que essas categorias
evoluem sob o efeito de uma mudança de contexto ou de ponto de vista, o objeto de
discurso torna-se dinâmico na esfera de um grupo social.
Desse modo, observamos que, quando precisamos nos comunicar, estamos
frequentemente adaptando, elaborando, modulando o nosso dizer para atender as
necessidades surgidas na interação. Em outras palavras, estamos categorizando e
recategorizando constantemente o objeto do discurso.
46
Assim sendo, a recategorização é um fenômeno muito estudado em referenciação
no que diz respeito à possibilidade de um referente passar por mudanças ao longo do texto,
ou seja, o sentido de uma palavra, expressão ou até mesmo uma imagem é renegociada,
mudando de significado de acordo com o contexto e da intencionalidade do autor, cabendo
ao leitor saber interpretá-lo por meio de seu conhecimento prévio. Dessa forma, a
recategorização passa a ser uma estratégia importante na construção do humor em charges
políticas, que serão abordadas em seções posteriores.
Considerando, ainda, que o processamento e a configuração textual envolvem
estratégia de ações e sua realização em elementos linguísticos (verbal e não verbal),
podemos afirmar que processos interpretativos são administrados não só por uma
percepção multimodal que geralmente envolve combinações de fala, gestos, texto,
processamento de imagem, etc, construídos pelos sujeitos, mas também por diferentes
métodos de conhecimento, que são sócio-históricos e discursivamente constituídos.
Segundo Dionisio (2011, p.140), a multimodalidade pode ser considerada como
uma diversidade de modos de comunicação presentes nos gêneros orais e escritos. Além
disso, a autora afirma que “as ações sociais são fenômenos multimodais,
consequentemente, os gêneros textuais falados e escritos são também multimodais”, ou
seja, quando produzimos e organizamos um texto, estamos constantemente categorizando e
recategorizando o referente, seja por meio de palavras, imagens, gestos, entonações, etc.
Portanto, o enunciador pode inferir uma variedade de formas em diferentes situações
sociais e com diferentes propósitos. Os aspectos visuais dessas ações sociais, resultantes da
infinidade de possibilidades de combinação entre a imagem e a palavra, surpreendem o
leitor, criando expectativas ou não.
Portanto, as ações de linguagem ultrapassam o linguístico, visto serem os textos de
natureza multimodal. Obtém-se, então, a construção de objetos de discurso não só por meio
da linguagem verbal, mas também por meio de outros aspectos simbólicos, conforme
afirmam Mondada e Dubois (2003, p.17):
As categorias e objetos de discurso pelos quais os sujeitos
compreendem o mundo [...] se elaboram no curso de suas
atividades, transformando-se a partir dos contextos. [...] são marcados por uma instabilidade constitutiva, observável através de
operações cognitivas ancoradas nas práticas, nas atividades verbais
e não verbais, nas negociações dentro da interação (grifos nossos).
47
A partir disso, podemos afirmar que os referentes podem ser entendidos como o
conjunto de operações dinâmicas e como entidades cognitivas e discursivas construídas à
medida que o discurso se desenvolve, com a finalidade de elaborar as experiências vividas
e percebidas numa situação comunicativa.
3.2. A ANÁFORA INDIRETA: UM MECANISMO REFERENCIAL
Segundo Cavalcante (2012), os referentes são introduzidos e mantidos no padrão
textual tendo-se como base alguma relação com elementos presentes no cotexto ou no
contexto sociocognitivo. Assim, no que diz respeito à continuidade referencial no texto, as
anáforas cumprem papel importante. As anáforas dividem-se em dois grupos: as diretas e
as indiretas. A anáfora direta pressupõe a retomada de referentes já apresentados no texto
por outras expressões. Já, para tratarmos da concepção de anáfora indireta é necessário
considerar que os processos cognitivos e as estratégias inferenciais são decisivos para sua
compreensão, pois é vista como estratégia referencial de associações, sem referente
explícito. Ela introduz um novo referente no discurso, ancorado em alguma expressão no
texto ou no contexto e é ativado na memória do interlocutor. Assim sendo, a anáfora
indireta estabelece uma relação com algum tipo de informação presente na memória
discursiva.
Como já foi mencionado anteriormente, nenhum texto apresenta de forma explícita
todas as informações necessárias à compreensão. Há sempre elementos implícitos que
devem ser retomados pelo interlocutor por meio de inferências, ou seja, a partir dos
elementos que o texto contém, são estabelecidas relações com aquilo que o texto não
contém, recorrendo-se ao conhecimento de mundo armazenado na memória e ao
conhecimento partilhado entre os coenunciadores na construção de sentido.
Com base nisso¸ as anáforas indiretas são vistas como uma estratégia referencial as
quais ancoram representações conceituais ou relações cognitivas incluídas em modelos
mentais comumente chamados de frames, cenários, esquemas, scripts, etc., que
representam focos implícitos armazenados em nossa memória de longo prazo como
conhecimento de mundo organizado. Kock & Travaglia (2012), conceituam esses modelos
mentais como modelos estereotipados, acionados durante o processo de interação.
Ademais, a anáfora indireta ativa um novo objeto de discurso que se torna
altamente previsível dentro do contexto discursivo, ou seja, “um novo referente é
48
apresentado como já conhecido, em razão de um ser inferível por meio do processamento
sociocognitivo do texto” ( cf. CAVALCANTE, 2012, p.125).
Segundo Marcuschi (2010), as anáforas indiretas caracterizam-se por não
possuírem uma expressão antecedente explícita no cotexto, mas existe um elemento no
cotexto ou no contexto sociocognitivo ou semântico chamado âncora com o qual fazem
relação. Âncora é uma expressão ou contexto semântico que se torna base decisiva para a
interpretação da anáfora indireta, mas também ativa a memória discursiva do interlocutor.
O autor (ibid., p.53) cita o seguinte exemplo de anáfora indireta:
Essa história começa com uma família que vai a uma ilha passar suas férias [...].
Quando amanhece eles foram ver como estava o barco, para ir embora e perceberam que
o barco não estava lá.
É fácil perceber que [O BARCO] é uma expressão referencial nova nesse texto,
mas surge como se fosse conhecida. Ela está ancorada (cognitivamente) na expressão
nominal antecedente [UMA ILHA] que lhe dá lastro.
Assim, ressaltamos, novamente, que as âncoras são decisivas para a interpretação
dessas anáforas, porque estabelecem uma relação de sentido entre o referente não explícito
no texto e a expressão que lhe serve de âncora, o que permite aos referentes serem ativados
pelos processos cognitivos inferenciais, movimentando, assim, os conhecimentos
armazenados na memória dos indivíduos. Ou seja, a compreensão ocorre referencialmente,
mesmo não havendo um antecedente explícito no texto.
A maioria das anáforas indiretas funda-se em associações de algum tipo que exigem
conhecimentos conceituais armazenados em nossa memória ou conhecimentos semânticos-
lexicais. As anáforas indiretas operam ancoradas em domínios cognitivos. Assim sendo,
elas implicam continuidade referencial, um dos fatores essenciais para a manutenção da
coerência textual.
Como se vê, a ativação de objetos ocorridos por meio de anáfora indireta estabelece
uma relação indireta, construída inferencialmente, ou seja, a interpretação não é imediata;
portanto, para que haja compreensão é preciso que o sujeito estabeleça relações entre os
objetos de discurso com base em conhecimento semântico, ancorado no léxico; um
conhecimento conceitual, ancorado no modelo mental, e no conhecimento de mundo ou
enciclopédico.
49
Marcushi (2010, p.54) afirma:
A anáfora indireta é um caso de referência textual, isto é, de
construção, indução, ou ativação de referentes no processo textual-
discursivo que envolve atenção cognitiva conjunta dos interlocutores e processamento local.
Diante disso, podemos observar que a anáfora indireta constitui um processo de
referenciação implícita, ou seja, os referentes são construídos no processo discursivo pelos
interlocutores no contexto em que estão inseridos, bem como a intenção pretendida pelos
usuários da língua em dada situação de interação.
Para que possamos compreender as anáforas indiretas, necessitamos mobilizar
conhecimentos adequados e descobrir, no co (n) texto, as âncoras oferecidas. Isso significa
que as anáforas operam no plano da organização da memória e servem para ativar ou
reativar aspectos que residem nos conhecimentos dos interlocutores, sejam estes
conhecimentos situados no texto ou em pontos do universo cognitivo (MARCUSCHI,
2010).
3.3. INTERTEXTUALIDADE E INTERDISCURSIVIDADE
A intertextualidade é um dos grandes temas a que se tem dedicado a Linguística
Textual. E ocorre quando, em um texto, está inserido outro texto anteriormente produzido,
que faz parte da memória social. KOCH (2011, p.59) afirma que “todo texto é um
intertexto”, isto é, a produção de um texto requer a ativação de conhecimentos adquiridos
por meio de outros textos. Assim sendo, nenhum texto pode estar desvinculado de qualquer
outro, mas, sim, em sua íntima relação com outros exemplares textuais.
Para a autora (ibid.,p.60), “a intertextualidade num sentido mais amplo, condição de
existência do próprio discurso, pode ser aproximada do que, sob a perspectiva da Análise
do Discurso, se denomina interdiscursividade”. É nesse sentido que Maingueneau (1976,
apud KOCH, 2011, p.60) afirma ser o intertexto um componente decisivo das condições de
produção: “um discurso não vem ao mundo numa inocente solitude, mas se constrói
através de um já-dito em relação ao qual toma posição”.
50
Além disso, Maingueneau (2011, p.55) atesta que “o discurso adquire sentido no
interior de um universo de outros discursos, lugar no qual ele deve traçar seu caminho”.
Portanto, para interpretar qualquer enunciado é necessário relacioná-lo a muitos outros.
Cada gênero de discurso tem sua maneira de tratar a diversidade das relações
interdiscursivas, para que possamos ampliar o campo do conhecimento e fazer com que
estejamos sempre sintonizados com o mundo. Dessa forma, notamos que o intertexto como
o interdiscurso mobilizam relações de sentido num processo de produção.
Isso posto, cumpre-nos ainda registrar que os textos configuram-se de maneira ativa
e novos textos surgem como desmembramento de outros, de acordo com as atividades que
vão surgindo. O que leva Koch (2011, p.59) a afirmar:
Todo texto é um objeto heterogêneo, que revela uma relação radical de seu interior com seu exterior; e, desse exterior,
evidentemente, fazem parte outros textos que lhe dão origem, que o
predeterminam, com os quais dialoga, que retoma, a que alude, ou
a que se opõe.
A autora nos recorda, ainda, que o fato de a produção e a recepção de um texto
dependerem do conhecimento que se tenha dos outros textos com os quais ele, de alguma
forma, relaciona-se, fez com que Robert-Alain Beaugrand e Wolfang Ulrich Dressler
(1981, apud KOCH, 2011, p.59) apontassem a intertextualidade, a coesão, a coerência, a
intencionalidade, a aceitabilidade, a informatividade e a situacionalidade como critérios
relevantes para a compreensão de um texto.
Para Koch (ibid., p.63), a intertextualidade num sentido restrito, ou seja, um texto
relaciona-se com outros textos, pode ser explícita ou implícita. A primeira refere-se a um
enunciado com explicitação da fonte com o objetivo de levar o interlocutor a ativar o texto
original, como acontece nas citações, referências, menções, resumos, resenhas, nas
retomadas de textos de parceiros para encadear sobre ele ou persuadi-lo na conversação.
No segundo caso, a intertextualidade implícita ocorre sem citação expressa da
fonte, cabendo ao interlocutor reconhecer a presença do intertexto pela ativação do texto-
fonte em sua memória discursiva; e, caso isso não ocorra, a referência não poderá ser
construída.
Constatamos que a intertextualidade implícita exige do interlocutor um esforço pela
identificação do intertexto por meio de seu conhecimento prévio, percebendo, assim, a
intencionalidade do produtor em inseri-lo no discurso. Daí, a importância em salientar a
51
necessidade duma relação compartilhada entre autor/leitor para que haja captação do
intertexto, tornando-a crucial para a construção de sentido.
Sob este aspecto, observamos ainda na concepção de intertextualidade implícita, o
controle que o produtor do texto opera em relação a outros textos, para produzir
determinados efeitos de sentido (Koch & Elias, 2007). Esse recurso pode-se apresentar em
qualquer gênero textual, dentro de qualquer domínio discursivo, principalmente em
charges que serão abordados neste trabalho.
Aliás, Bakhtin (2011[1992], p.289) afirma que “todo enunciado é um elo na cadeia
da comunicação discursiva”. Para ele a relação entre textos constitui uma relação entre
discursos, isto é, o autor constrói o campo do objeto e do sentido, levando o leitor a
reconhecer esse campo numa atividade discursiva.
Assim sendo, observamos que o interdiscurso pode estar relacionado com
marcadores intertextuais, isto é, por meio da relação entre textos e entre discursos para a
construção de sentido, os interlocutores interagem num contexto sociocognitivo em um
determinado momento e situação comunicativa, compartilhando conhecimentos reais e de
mundo.
Ainda, segundo o autor, os estudos sobre a linguagem são baseados na interação
verbal de natureza dialógica, ou seja, toda enunciação é interativa, há uma troca, explícita
ou implícita, entre os interlocutores e supõe sempre a presença de outra enunciação à qual
se dirige o produtor, construindo seu próprio discurso.
Mediante as concepções apresentadas, constatamos que a intertextualidade e a
interdiscursividade estão relacionadas, pois, ao se referir a um texto, o enunciador se
refere, também, ao discurso que ele manifesta, ou seja, quando um discurso cita o outro,
não há apenas uma referência do texto ou partes do texto, mas também à situação de
produção dele (quem faz, para que, em que momento histórico, com qual finalidade, etc.).
52
3.4. RECATEGORIZAÇÃO: ESTRATÉGIA DE HUMOR
Lima (2007, p.74) afirma que “o fenômeno do humor pode ser provocado pela
ocorrência de recategorizações a partir da hipótese de que esse tipo de ocorrência pode
servir como gatilho para o humor”. Portanto, somos cientes de que a construção de sentido
do humor, com base em recategorização, demanda uma abordagem tanto dos aspectos
linguísticos quanto dos cognitivos.
Aliás, como vimos anteriormente, “as ações sociais são fenômenos multimodais”,
consequentemente as charges são consideradas gêneros multimodais, ou seja, quando
processamos um texto estamos constantemente categorizando e recategorizando o objeto
do discurso, por meio da interação sócio-cognitiva (DIONÍSIO, 2011, p.139). Desse modo,
o referente se cria a partir dessas ações, do modo pela qual os interlocutores as ajustam e
da maneira pela qual constroem os sentidos em cada evento comunicativo.
Por conta disso, a charge, como gênero de caráter multimodal que abrange aspectos
verbais e visuais, expõe que o processo de recategorização acontece também por meio da
imagem e não apenas por meio do léxico. Na charge, entendemos que o processo acontece
numa mescla de elementos verbais e visuais que conjugados modificam e dão sentido de
humor ao texto. O princípio da charge é o humor, e é construído pela crítica que o
chargista faz por meio dos fatos a que se reporta para construir seu texto. Aliás, é comum o
chargista não revelar explicitamente em qual fato se inspirou, por isso é necessário que o
leitor conheça o texto fonte para compreendê-lo. Caso contrário¸ o leitor teria dificuldades
de depreender o sentido do humor.
Mondada e Dubois (2003, p.17) afirmam que há uma instabilidade das
configurações semânticas, ou seja, as categorias utilizadas para descrever e compreender o
mundo, “são geralmente instáveis, variáveis e flexíveis”, passíveis de mudanças
sincrônicas e diacrônicas.
Desse modo, segundo as autoras, as categorias e os objetos de discurso são
construídos no curso de suas atividades, transformando-se a partir do contexto a que estão
inseridos. Assim, nessa perspectiva, a atividade de categorização e recategorização diz
respeito, sobretudo, aos métodos utilizados pelos autores para caracterizar, descrever,
compreender e justificar os fenômenos da vida cotidiana.
Assim, no processo de referenciação prevalece o sujeito e o contexto relevantes
numa situação discursiva, pois abrange uma variedade de meios na construção do objeto do
53
discurso ou do referente no discurso. À vista disso, no processo de referenciação, de
categorização, de recategorização o sujeito arquiteta o mundo no cumprimento de suas
atividades sociais e o torna estável graças às categorias manifestadas no discurso
(MONDADA E DUBOIS, 2003).
Em suma, o sujeito tem o direito de escolher aquilo que acha mais adequado à
identificação do referente, mas também pode por recategorização modular o referente em
função de sua intencionalidade comunicativa no momento. Portanto, os referentes evoluem
à medida que são compartilhados pelos interlocutores numa situação social dependendo de
um contexto onde haja propósitos correspondentes. É que a categorização e a
recategorização dos objetos do mundo são feitas em função dos interesses do interlocutor,
recebendo a influência do contexto.
Koch (2009) também define a recategorização, mencionado anteriormente nesta
seção, e acrescenta a seu conceito que não necessariamente um elemento lexical serve de
âncora, mas também um fato ou o contexto funcionam como aspecto fundamental à
construção da inferência. É o caso das charges políticas que serão analisadas, ou seja, o
chargista constrói e reconstrói seu referente ancorando-se num contexto vinculado às
notícias do dia-a-dia. Por isso, o referente pode ser recategorizado de diversas maneiras por
meio de propriedades diferentes que lhe vão sendo atribuídas. Por essa razão, as
recategorizações de um mesmo referente, que retomam informações dadas e trazem
informações novas, servem como gatilho para estabelecer o efeito de humor.
Portanto, conforme expusemos anteriormente, cumpre-nos ainda registrar que as
expressões anafóricas não são usadas apenas para apontar o referente, mas podem ser
utilizadas, também, para modificá-lo. Em outros termos, o produtor, ao selecionar aquilo
que julga mais adequado na configuração do referente, pode, por recategorização,
acrescentar, omitir, ou modular a expressão referencial em função das intenções do
momento, que no caso das charges políticas, são de natureza crítica e satírica.
Assim, podemos afirmar que por meio da recategorização retomamos os referentes
que operam como desencadeadores da comicidade do gênero em análise deste trabalho. Ou
seja, a incongruência criada por essas recategorizações é que, de fato, quebra a expectativa
do leitor, provocando o riso: estratégia a ser observada na análise.
Segundo Cavalcante (2010), para que um referente se recategorize, seria necessário
que ele já estivesse sido introduzido no discurso e, nesse caso, só as anáforas seriam
passíveis dessas modificações.
54
Afinal, como poderíamos falar em recategorização se não tivesse ocorrido à
categorização de uma entidade antes. Além disso, afirma:
A recategorização é, por definição, uma alteração nas associações entre representações categoriais parcialmente previsíveis, portanto,
em nossa vida pública do mundo. A menor ou maior
desestabilização da categoria em mudança é o próprio traço, explícito ou implícito, que define a recategorização de um
referente, quer tenha ele sido já introduzido no discurso para ser
transformado, quer não tenha sido e se recategorize apenas
mentalmente, no próprio momento em que o anafórico remete
indiretamente à sua âncora. (CAVALCANTE, 2010, p.132)
Isso posto, a autora (ibid., p.128) ilustra com o seguinte poema “A rosa de
Hiroxima”, de Vinícius de Moraes:
A rosa de Hiroxima
Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroxima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa sem cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada.
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Assim, no exemplo, que alude à bomba atômica que dizimou muitas vidas em
Hiroxima, é este referente transformado, ou seja, recategorizado no título do poema, que
aciona o enquadre mental da tragédia, sempre dolorosamente lembrada, e permite que se
empreguem as expressões nominais definidas como ativando ou reativando referentes
dados, facilmente identificáveis nas anáforas indiretas “crianças mudas”, “meninas cegas”,
“mulheres alteradas” que se enquadrariam perfeitamente no cenário de destruição causado
pela bomba e cumpririam “a condição contextual e inferencial da anaforicidade indireta”
(CAVALCANTE, 2010, p.130).
Ainda em relação ao exemplo acima, observamos que o referente que se
recategoriza não se acha explícito no cotexto e, no entanto¸ nosso conhecimento de mundo
nos permite recuperá-lo e compreender a transformação que se processa no próprio instante
em que o objeto de discurso é introduzido no poema.
Portanto, observamos que os referentes, as expressões anafóricas e a
recategorização não são noções incompatíveis, mas mantêm uma relação mútua, levando-
se em consideração a forma como são integradas nas atividades do cotidiano.
Assim, a recategorização na charge pode acontecer por meio da imagem e ou do
texto verbal e nem sempre é necessário que no texto haja uma “pista” explícita.
Consequentemente, o referente recategorizado, que tange à construção humorística, está
geralmente no texto-fonte ou na memória discursiva.
Desse modo, visamos a apresentar, na análise deste trabalho, as noções de
recategorização, de intertexto e por meio das expressões anafóricas os efeitos de humor
que se manifestam nas charges políticas cuja intencionalidade do enunciador é criticar,
satirizar e zombar de um sistema de corrupção massificado na história jurídica do país.
56
4. GÊNERO TEXTUAL: CHARGE
4.1- GÊNERO TEXTUAL: PROCESSO SOCIOCOMUNICATIVO
Partindo do ponto segundo o qual todos os usuários da língua articulam sua fala ou
escrita com as formas dos gêneros e os reconhecem nos exercícios sociais, podemos
observar que o uso dos gêneros textuais nos oferece maior viabilidade para lidar com o
desempenho real da língua. Esse conhecimento e domínio que temos dos gêneros
possibilita a comunicação verbal e não verbal, já que todo texto pode ser considerado como
pertencente a determinado gênero.
E, à medida que a textualidade deixa de ser privilégio de entendimento e os estudos
passam a valorizar o conhecimento funcional que todos os usuários de uma língua
compartilham, os objetos de estudos multiplicam-se, tornam-se cativantes e valorizam
ações sociais, nas quais os aspectos linguísticos estão inseridos.
Desse modo, o estudo dos gêneros textuais é uma produtiva área interdisciplinar,
com atenção voltada para o funcionamento da língua e para as atividades culturais e
sociais. Portanto, segundo Marcuschi (2011, p.19) “o gênero é essencialmente flexível e
variável, tal como seu componente crucial, a linguagem”. Ou seja, assim como a língua
sofre mudanças, também os gêneros sofrem, adaptam-se, renovam-se e se multiplicam.
Ainda, segundo o autor, a tendência é observar “os gêneros pelo seu lado dinâmico,
processual, social, interativo, cognitivo, evitando aspectos formais e estruturais”. Isso
posto, os gêneros textuais devem se relacionar com as práticas sociais (contexto), os
aspectos cognitivos, as intenções, as atividades discursivas e culturais.
Assim, neste capítulo, abordaremos alguns conceitos de gênero textual na
perspectiva sociorretórica do estudo de gênero em Bazermam (2004), Miller (2009) e
sócio-discursiva em Marcuschi (2011), inserindo uma breve abordagem histórica.
57
4.1.1. CONCEPÇÕES TEÓRICAS DE GÊNERO TEXTUAL
A noção de gênero vem sendo, desde Platão e Aristóteles, uma preocupação
insistente, haja vista as várias classificações que têm aparecido ao longo dos tempos, entre
elas, a clássica distinção entre poesia e prosa; a distinção entre lírico, épico e dramático; a
oposição entre tragédia e comédia; a distinção da Retórica Antiga entre discursos
deliberativos, judiciário e epidítico. O estudo dos gêneros foi, dessa forma, uma constante
temática que interessou estudiosos de áreas diversas. Assim, os gêneros textuais se
multiplicam principalmente após a invenção da escrita alfabética por volta do século VII
a.C; a partir do século XV, expandem-se com o florescimento da cultura impressa e na fase
intermediária da industrialização, iniciada no século XVIII, dá início a uma grande
ampliação.
Entretanto, foi com Aristóteles que surgiu uma teoria mais sistemática sobre os
gêneros e sobre a natureza do discurso. No cap. 3 da Retórica [1358a], Aristóteles diz que
há três elementos compondo o discurso: aquele que fala, aquilo sobre o que se fala e aquele
a quem se fala.
Charaudeau (2010, p.40) afirma:
O discurso resulta da combinação das circunstâncias em que
se fala ou escreve (a identidade daquele que fala e daquele a
quem este se dirige, a relação de intencionalidade que os liga
e as condições físicas da troca) com a maneira pela qual se
fala.
Isso posto, podemos observar que o discurso é tudo o que o homem fala ou escreve,
isto é, produz em termos de linguagem. Consequentemente, há um número enorme e
bastante variável de discursos produzidos ou que estão sendo produzidos na sociedade. É
dessa maneira que falamos em discurso científico, religioso, político, jornalístico, do
cotidiano, etc.
O discurso, quando produzido¸ manifesta-se linguisticamente por meio de textos.
Todo texto se organiza dentro de um determinado gênero. Os vários gêneros existentes, por
sua vez, constituem formas “relativamente estáveis de enunciados”, afirma Bakhtin
(2011[1992], p.262). Pode-se ainda assegurar que a noção de gêneros refere-se a “famílias”
58
de textos que compartilham algumas características comuns, embora heterogêneas, como
visão geral da ação à qual o texto se articula em diversas atividades comunicativas.
Assim sendo, o estudo dos gêneros textuais se torna cada vez mais vasto e flexível,
com atenção especial para a linguagem em funcionamento e para as atividades culturais e
sociais. Desde que não entendamos os gêneros como estruturas rígidas, mas como formas
culturais e cognitivas de ação social (Miller, 2009), atribuídas na linguagem, somos
levados a ver os gêneros como entidades empreendedoras que sofrem variações na sua
constituição que, em muitas ocasiões, resultam em outros gêneros, novos gêneros.
4.1.2. O CONCEITO DE GÊNERO TEXTUAL NA PERSPECTIVA SÓCIO –
DISCURSIVA
É por meio dos gêneros textuais que realizamos linguisticamente nossas atividades
socioculturais e nossos propósitos comunicativos em situações sociais particulares. Eles
facilitam nossas práticas num contexto situacional. As práticas sociais são as atividades do
dia-a-dia que as pessoas realizam ao conduzir a vida social nos mais variados contextos.
Portanto, uma das maneiras de agir no mundo é por meio dos gêneros textuais. Assim, é
essencial focalizar as práticas no estudo dos gêneros textuais, porque é nelas que se torna
viva a relação entre indivíduo e sociedade.
Por conseguinte, Marcuschi (2011, p.23) afirma que “os gêneros textuais devem ser
considerados como parte constitutiva da sociedade em seus habitats típicos”, ou seja, os
gêneros textuais representam nossas ações sociais, nossos propósitos comunicativos e
nossas intenções num determinado meio social.
Do ponto de vista sociocognitivo, uma das características mais marcantes do gênero
textual é o reconhecimento pelas pessoas que o identificam por seu uso corrente em sua
sociedade. A identificação de determinado gênero implica uma demonstração de
competência comunicativa do indivíduo que o reconheceu e que, em princípio, é capaz de
compreender e produzir esse gênero textual. Assim sendo, os gêneros são modelos
correspondentes a formas sociais reconhecíveis nas situações de comunicação em que
ocorrem e sua estabilidade é relativa ao momento histórico-social em que cada um surge e
circula.
59
Segundo Marcuschi (2011, p.19), “os gêneros textuais caracterizam-se como
eventos textuais altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos”, pois surgem conforme nossas
necessidades e atividades sociais, culturais, cognitivas e institucionais.
Isso posto, os gêneros textuais tornam-se difíceis de serem caracterizados e
definidos por aspectos formais e estruturais, mas isso não significa eliminar totalmente a
organização das formas composicionais dos gêneros. O próprio Bakhtin (2011[1992])
indicava a “construção composicional”, junto ao “conteúdo temático” e o “estilo” como as
três características do gênero.
Além disso, Marcuschi (2011, p.22) afirma que a “comunicação verbal só é
possível por algum gênero textual”, ou seja, os gêneros textuais se constituem num
contexto sócio-discursivo para agir sobre a realidade e interpretá-la. Portanto, essa
flexibilidade e variedades de operação dão aos gêneros capacidade de adaptação e ausência
de rigidez e se acham perfeitamente de acordo com Bazerman (2004) e Miller (2009) que
consideram o gênero como “ação social”.
4.1.3. O CONCEITO DE GÊNERO COMO AÇÃO SOCIAL EM BAZERMAN,
MILLER E MARCUSCHI
Bazerman (2004) define gênero como ação social, observando as regularidades nas
propriedades das situações recorrentes (dá atenção particular às intenções sociais nelas
reconhecidas), que dão origem a recorrências na forma e no conteúdo do ato de
comunicação. Ou seja, para o autor, a noção de recorrência está vinculada aos usuários do
gênero, que agem colaborativamente para interpretar certas situações comunicativas e
extrair semelhanças significativas e distintivas para constituir um tipo.
Os gêneros, ainda segundo o autor, estão ligados a outros gêneros, usados por
determinada pessoa em dada situação. Num escritório, por exemplo, o funcionário tem de
escrever cartas, correios eletrônicos, memorandos, relatórios. São os gêneros próprios
àquele papel profissional exercido por ele, que Bazerman (2004, p.33) chama de “conjunto
de gêneros”.
O chefe do mesmo escritório também teria sua própria rede de gêneros, como a
escrita de circulares internas, cartas admissionais e demissionais, outras formas de
relatórios. Forma-se outro conjunto de gêneros. Os dois conjuntos estariam ligados a uma
rede maior de relações, compartilhada por ambos e pelos demais empregados do escritório.
60
Seria o “sistema de gêneros” que compõe aquela situação comunicativa, articulada por
aquele grupo de pessoas. Assim, segundo o autor (ibid., p.22), “os vários tipos de textos se
acomodam em conjuntos de gêneros dentro de sistemas de gêneros, os quais fazem parte
dos sistemas de atividades humanas”.
Nessas eventualidades, muitos textos são produzidos, criando realidades ou fatos
sociais. Esses fatos não poderiam existir se as pessoas não os realizassem por meio da
criação de textos: cartas, e-mails, relatórios, circulares, etc. Nessa sequência de textos e
atividades, vemos sistemas organizacionais bem articulados que circulam por caminhos
previsíveis e de fácil compreensão.
Segundo Bazerman, examinar o conjunto de gêneros permite ver a extensão e
variedade do trabalho escrito e requerido por um determinado papel social e identificar
conhecimentos de gêneros e habilidades de escrita necessárias para alguém realizar esse
trabalho. Observar o sistema de gêneros permite compreender as interações práticas,
funcionais e sequenciais de documentos e ver como os indivíduos, ao escrever qualquer
novo texto, estão intertextualmente situados dentro de um sistema, e como sua escrita é
direcionada pelas probabilidades de gêneros.
Interessante é que, ao definir o sistema de gêneros em que as pessoas estão
envolvidas, o autor aponta também um frame que organiza o trabalho, a atenção e as
realizações num sistema de atividades. Em algumas situações comunicativas e de
interação, fazemos a identificação de tal situação, acionando da memória nossos esquemas
de conhecimento, para, a partir disso, usar adequadamente os gêneros orais ou escritos.
Tais gêneros possuem características distintas, devido às suas especificidades. Além disso,
tornam-se suportes de atividades cujos aspectos físicos assumem um papel altamente
visível. Jogar basquete, por exemplo, pode se tratar basicamente de movimentos e
manuseio da bola, mas existem regras, estratégias, gritos de torcida, organização de ligas e
reportagens de jornal que envolvem gêneros orais e escritos (BAZERMAN, 2004, p.35).
Por último, levar em consideração o sistema de atividades junto com o sistema de
gêneros é destacar o que as pessoas fazem e como os textos as ajudam a fazê-lo.
Miller (2009, p.22), nos passos de Bazerman, afirma que a definição de gênero
precisa ser centrada não na substância ou na forma do discurso, mas na ação em que ele é
usado para realizar. Ela se baseia nas ligações entre gênero e atos praticados
recorrentemente, pois percebe que os propósitos dos usuários são componentes essenciais
da situação. Seu interesse não é tanto fornecer um sistema classificatório na compreensão
de gênero, e sim uma explicação de certos aspectos de como a realidade social evolui. Um
61
princípio útil de classificação para o discurso, então, deve ter alguma base nos acordos da
prática retórica, incluindo as maneiras como retores e audiências reais têm de compreender
o discurso que usam.
A autora propõe que o termo “gênero” seja limitado a um tipo particular de
classificação de discurso, uma classificação baseada na prática retórica, aberta e
organizada em torno de ações situadas, isto é, pragmáticas. Ela defende a classificação
etnometodológica que procura explicar o conhecimento que a prática cria, ou seja, a
realidade sociocultural é construída por meio da vivência de cada um no dia a dia e que,
em todos os momentos, podemos compreender as construções sociais que permeiam nossa
conversa, nossos gestos, nossa comunicação etc. Portanto, para uma teoria de gênero
retórico, a noção de “tipo” tem a importância de ordenar as práticas sociais. Quando
interpretamos situações novas como sendo similares ou análogas a outras, criamos um
“tipo” que se torna parte de nosso conhecimento.
Esse processo de “tipificação” baseado em recorrências explica a natureza
convencional do discurso, assim como as regularidades encontradas tanto em sua forma
quanto em sua substância.
Ainda, segundo Miller (ibid., p.44), gênero é um “artefato cultural” passível de ser
interpretado como uma ação recorrente e significativa. Salienta que uma noção retórica de
gênero está baseada nas convenções de discurso que uma sociedade estabelece como
formas de agir em conjunto. Portanto, é pela ação em conjunto que produzimos e
reproduzimos os sentidos sociais e criamos estruturas específicas para cada gênero.
Tal como se nota, Bazerman e Miller oferecem fundamentos para Marcuschi (2011)
quando esse afirma que os gêneros são dinâmicos, derivando um do outro e se realizando
de maneira multimodal; circulam na sociedade das mais variadas maneiras e nos mais
variados suportes tecnológicos da comunicação, exercem funções sociocognitivas e
facilitam trabalhar de maneira mais constante com as atividades desenvolvidas pela
linguagem.
Além do mais, hoje se reconhece que não é apenas a estrutura rígida que resolve a
questão do gênero e sim sua funcionalidade e organicidade.
4.2. GÊNERO CHARGE: DEFINIÇÃO E CARACTERÍSTICA
Segundo o dicionário Houaiss, a charge é definida como desenho humorístico, com
ou sem legenda ou balão, geralmente veiculado pela imprensa e tendo por tema algum
62
acontecimento atual, que comporta crítica, humor e focaliza, por meio da caricatura, uma
ou mais personagens envolvidas. No dicionário Aurélio, a definição se completa ao dizer
que o acontecimento é em geral, de caráter político. Desse modo, para compreender uma
charge, o leitor deve conhecer o texto fundador, isto é, o fato que tornou a charge possível
e/ou os textos que constituem o contexto. Seu caráter é temporal, pois trata do fato do dia.
Historicamente, a charge tem sido definida como uma ação social cujo propósito é
reivindicar os direitos das minorias, dos excluídos, ridicularizando políticos, celebridades e
outros poderosos, bem como eventos sociais e políticos em que estes estão envolvidos;
aqueles têm sido alvos, direta ou indiretamente, do comentário gráfico na forma de
desenhos com que os chargistas os expõem à opinião pública.
Além disso, apresenta traços e características do enunciador que constitui seu estilo.
O desenho não é, pois, uma cópia fiel da realidade, porém veicula uma mensagem que se
constitui a partir dos valores da cultura em que está inserida. O efeito da realidade, ou seja,
o que torna a charge possível de ser aceita como parte de nosso arcabouço sociocultural,
está ancorado nessa mensagem.
Desse modo, o enunciador pressupõe que o enunciatário da charge conheça o
contexto social, cultural e político ao qual o enunciador se refere. Cabe ao leitor realizar a
interpretação. Para isso, a compreensão depende da percepção dos recursos visuais
(desenho, cor, traços exagerados, constituindo uma caricatura), verbais e pragmáticos,
utilizados pelo enunciador da charge. Outro aspecto relevante está relacionado com o
conhecimento prévio e enciclopédico que o leitor traz para que possa apreender sentido e
desencadear o riso.
Para Melo (1994), a charge registra fatos políticos e trabalha com figuras públicas
conhecidas e tende a atribuir a elas valores e a criticar suas ações. Ela possui a capacidade
de abordar a realidade com traços críticos e lúdicos, utilizando imagens que fazem parte do
imaginário popular, criando códigos de cumplicidade.
Para uma boa leitura é fundamental levar sempre em conta o contexto em que a
passagem a ser lida está inserida, lembrando que esse contexto pode vir manifestado
explicita ou implicitamente por palavras ou imagens, considerando-se que um mesma frase
pode, portanto, assumir sentidos distintos, a depender, é claro, do contexto no qual ela se
insere. Assim, há de se examinar, com base em Beaugrande (1997), a conceituação de
contexto como uma unidade maior em que uma unidade menor está inserida, ou seja, o
contexto é, portanto, um conjunto de pressuposições, baseados nos saberes dos
interlocutores, motivados para a interpretação de um texto.
63
Além disso, destaca-se a importância de outros fatores como: a intencionalidade,
que se refere aos diversos modos como os sujeitos usam textos para realizar suas intenções
comunicativas, mobilizando, para tanto, os recursos adequados à concretização dos
propósitos visados; a situacionalidade, que se refere ao conjunto de fatores que tornam um
texto relevante para uma situação comunicativa em curso ou passível de ser reconstruída; a
intertextualidade, já mencionada anteriormente (capítulo III) e a inferência, elementos
consideráveis para a produção de sentido no processo de interpretação. Eles vão auxiliar
não apenas a comunicação entre os interlocutores, mas também a elaboração do cômico.
Portanto, as relações de um texto a outro, de uma imagem a outra, dependem do repertório
do leitor, do seu conhecimento prévio e de mundo. No caso da charge, isto é igualmente
válido, no que se refere à linguagem visual.
Conforme exposto, todos esses elementos são importantes para que o artista ao
produzir seus desenhos tenha a capacidade de passar para o leitor sua ideologia¹, seus
valores. Assim destaca-se o papel didático da imagem, o papel de formar uma consciência
crítica no leitor, que é incentivado a interpretar a ideia proposta, a pensar sobre o assunto e
a concordar com aquela ideologia ou não.
¹ Ideologia, entendido segundo ALTHUSSER deriva dos conceitos do inconsciente e da fase do espelho (de
Freud e Lacan, respectivamente), e descreve as estruturas e sistemas que permitem um conceito significativo
do eu. Ela representa a relação imaginária dos sujeitos a partir das condições reais da existência, está
interessado em problematizar o caráter equivocado de alguns estudos marxistas que concebiam a ideologia como uma distinção da realidade. São condições concretas de existência que estão em jogo e elas circulam
sobre as práticas sociais e o papel de assujeitamento do indivíduo perante as ideologias. Portanto, segundo
Melo (1994, p.67) os meios de comunicação coletiva, através dos quais as mensagens jornalísticas penetram
na sociedade, bem como os demais meios de reprodução simbólica, são “aparatos ideológicos”, funcionando,
se não monoliticamente atrelados ao Estado, como dá a entender Althusser, pelo menos atuando como uma
“indústria da consciência”, influenciando pessoas, comovendo grupos, mobilizando comunidades, dentro das
contradições que marcam as sociedades.
64
Portanto, a leitura de uma charge requer todas essas considerações, e, além disso,
uma relação forte entre imagem e texto. Para isso, segundo Dionísio (2011, p.138), “o
letramento visual está diretamente relacionado com a organização dos gêneros textuais”.
Isso posto, a charge carrega texto e imagem para marcar a posição do chargista mediante
questionamentos críticos de uma sociedade num determinado período da história.
Ainda segundo a autora, imagem e palavra mantêm uma relação cada vez mais
próxima, cada vez mais integrada e cada vez mais vivemos numa sociedade em que o
visual ganha um espaço importante na construção dos gêneros textuais. Por isso, as charges
ocupam um espaço especial nos jornais, muitas vezes na primeira página dos diários,
porque se tornam verdadeiros editoriais, comentários sociais que, velados pelo humor,
mostram com figuras caricatas o que não poderia ser dito com palavras.
A charge é considerada ainda um discurso humorístico que valoriza a ilustração,
destacando na caricatura as questões ideológicas, as de poder, as de sentimentos e as de
personalidade. Esse recurso gráfico é a representação pictórica de caráter burlesco e
caricatural em que se satiriza ou critica um fato específico, geralmente de caráter político-
social.
A caricatura, segundo Fonseca (1999), deriva do verbo italiano caricare que
significa carregar, sobrecarregar com exagero, ou seja, a caricatura reproduz a imagem
isolada dos personagens vivos, acentuando detalhes ou ressaltando defeitos cuja finalidade
é suscitar o riso e a ironia.
Por ser um discurso lúdico e crítico, a charge tem a liberdade de mostrar a
interpretação dos fatos, utilizando recursos verbais e visuais, de tal modo a vermos as
situações de maneira descontraída, sem o pudor da moral ou conceitos éticos; sem, no
entanto, precisar recorrer à linguagem vulgar ou sensacionalista.
A partir disso, Dionísio (2011, p.139) reitera a importância dos gêneros textuais
serem multimodais, ou seja, quando organizamos um texto escrito ou falado, estamos
constantemente articulando combinações entre palavra e imagem (gestos, sorriso,
animação, etc.). Esses contratos geram significações relevantes na produção e construção
de sentido que estão associados a um tipo de situação retórica e atividade socialmente
organizada.
Nesse caso, a charge, como gênero textual, que compartilha a linguagem verbal e
visual em seu modo constitutivo, é um exemplo que muito perfeitamente se encaixa nesse
conceito de multimodalidade, uma vez que a significação só se estabelece por meio da
associação, ou melhor, da inter-relação entre essas duas linguagens.
65
Para compreender uma charge é preciso prever a habilidade do destinatário para
distinguir o que é subentendido do que é pressuposto. Ducrot (1987, p.32) define “o
subentendido como sendo a resposta a uma pergunta sobre as condições de possibilidades
da enunciação”, ou seja, o subentendido se caracteriza por um processo interpretativo a
partir dos dados explícitos no enunciado, possibilitando o leitor apreender significados
ativando seu conhecimento de mundo.
Ducrot ressalta, ainda, que o subentendido aparece como uma explicação de sua
enunciação. Para ele, subentende-se que as respostas derivam das seguintes perguntas:
“Por que o locutor disse o que disse?”, “O que tornou possível sua fala?”. Para isso, ele
ilustra essas definições com o seguinte enunciado: “Pedro parou de fumar”, pressupõe que
Pedro fumava anteriormente e não fuma mais. Por outro lado, se esse enunciado é
destinado a relembrar a um fumante crônico a possibilidade de parar de fumar, pode ser
que ele veicule subentendido como “Com um pouco de coragem, pode-se chegar lá”,
“Pedro tem mais força de vontade que você”. Além disso, Ducrot (ibid., p.41) afirma que a
“pressuposição é parte integrante do sentido dos enunciados”. O subentendido, por sua vez,
diz respeito à maneira pela qual esse sentido deve ser decifrado pelo destinatário.
Desse modo, na charge, essa inter-relação entre imagem e palavra pressupõe a parte
integrante do que se pretende dizer ao destinatário que busca decifrar e interpretar esses
códigos construindo sentido dentro do contexto proposto pelo enunciador.
4.3. A CHARGE COMO CRÍTICA JORNALÍSTICA
Conforme o que foi exposto anteriormente, a charge exerce uma função social,
importante no meio jornalístico, pois transmite fatos e informações do dia-a-dia, de forma
rápida, sucinta, com criatividade e com dose de humor, revelando uma leitura crítica do
mundo atual.
Neste tópico, faremos uma reflexão a respeito da atual tendência em associar as
imagens, com um toque de humor, às informações escritas na mídia impressa, e como esse
recurso gráfico emite valores, informa e critica os acontecimentos relevantes noticiados
pela mídia.
Para Melo (1994, p.168), “toda imagem inserida na imprensa tem função
opinativa”, ou seja, os fatos sociais e políticos não se limitam aos editoriais, crônicas,
comentários etc., mas também estão incorporados às imagem. O uso da imagem produz um
66
impacto imediato, seja pela evidência, seja pelo eventual humorismo. Para o autor, a
intenção das charges é representar o real, criticando-o e, até mesmo denunciando-o. Além
disso, os chargistas atuam como se fossem a “consciência crítica da sociedade”. As
imagens desenham, resgatam o cotidiano contraditório inerente às sociedades
contemporâneas, cujas instituições políticas sufocam os cidadãos. Assim, as charges são
uma proposta de reflexão sobre os fatos e acontecimentos do momento presente visando à
critica, à sátira, à ironia ou à emissão de juízo de valor por meio da imagem e da palavra.
Interessante é que a presença do humor permite à charge, mesmo sendo
excessivamente crítica, afastar-se da leitura formal dos fatos, desmascarando-os de maneira
a não causar reações de contrariedade. Sua mensagem é recebida com maior tolerância e
complacência, uma vez que as relações de poder que permeiam a política e os demais
campos sociais não aparecem explicitamente na crítica do chargista.
As charges contêm a expressão de uma opinião sobre determinado acontecimento e
só constroem sentido no campo jornalístico, porque se alimentam dos símbolos e valores
que fluem permanentemente e estão sintonizadas com o comportamento coletivo. Elas
denunciam por meio da ironia, da sátira, da zombaria, etc., construindo uma visão
particular da realidade.
Essa concepção da importância da imagem no meio comunicativo vem de longa
data. Desde os tempos mais remotos do Paleolítico até os dias de hoje, o homem deixou
vestígios de suas faculdades imaginativas sob a forma de desenhos nas pedras e nas
cavernas. Essas figuras, desenhadas ou pintadas, gravadas ou talhadas, são consideradas
imagens, porque imitam e esquematizam visualmente as pessoas e os objetos do mundo
real.
A charge vai além de um desenho sem nexo e sem identidade. Mas, para esse
recurso gráfico ser compreendido, é necessário que o leitor tenha conhecimento dos fatos
abordados, do contexto e das personagens nelas representadas; o fato deve ser tratado
como atual, pois, do contrário, o leitor pode ter dificuldade no seu entendimento, o que
justifica a opção por temas da atualidade. Assim, é imprescindível que a imagem tenha
dados suficientes, fornecidos pelos detalhes. A caracterização e as marcas representando o
tema proposto são suportes necessários à interpretação das charges.
No geral, as charges jornalísticas são consideradas prevalentemente de cunho
político e social e ocupam um espaço privilegiado na imprensa, que introduzem
importantes modificações no sentido de consolidar sua inserção e facilitar o acesso ao
leitor.
67
4.4. CHARGE: HUMOR E CRÍTICA
Minois (2003[1946], p.553) classifica o século XX e XXI como a era da “derrisão8
universal”, ou seja, o riso zombeteiro tomou conta do mundo nos últimos tempos, apesar
das catástrofes. O povo encontrou no riso a força para zombar de seus males seja espiritual
ou físico como: guerras mundiais, crises econômicas, fome, pobreza, desemprego,
terrorismo, corrupção, degradações do meio ambiente etc. O humor tornou-se uma arma
para questionar, para contrariar, para escapar às decepções de uma sociedade cheia de
imperfeições.
Segundo o autor, o riso moderno, diferentemente da Idade Média, passou a ser um
instrumento de resistência, que demonstra a luta contra o poder, um protesto, uma atitude
de não conformação e não mais a sublimação da rotina, criando, assim, uma “sociedade
humorística” que trouxe um novo estilo de sociedade onde o humor prevalece e domina, e,
ao mesmo tempo, um humor descontraído e descompromissado. Minois (ibid. p.620)
afirma que o cômico, longe de ser uma festa do povo ou do espírito, tornou-se um
“imperativo social generalizado, uma atmosfera cool, um meio ambiente permanente que o
indivíduo suporte até em sua vida cotidiana”.
Schopenhauer, filósofo que mais se aprofundou nos estudos sobre o riso por ser o
mais ridente, afirma que quanto mais o mundo parece uma realidade absurda e descolada,
mais se deve rir dele.
______________________________________________
8Derrisão: palavra de origem latina “derision” que significa zombaria.
http://dictionary.reference.com./browse/derision. Acesso em 04.11.2013.
68
Atualmente, o humor do mundo político nos meios de comunicação mantém o
cômico como inevitável. O humor universal, padronizado, midiatizado, comercializado,
globalizado, conduz o planeta. Ele foi sempre uma fonte de consolo e uma defesa contra a
imoralidade, o desconhecido e o inexplicável. Para Minois (2003 [1946]) o humor
moderno é menos descontraído que o de séculos passados, porque incide não mais sobre
este ou aquele aspecto da vida, mas sobre a própria vida e seu sentido, ou sua ausência de
sentido. Ainda, segundo o autor, o humor e a ironia generalizam-se no século XX e XXI,
revelando condutas que permitem ultrapassar o absurdo do mundo, do homem e da
sociedade. Nesse sentido, vivemos um século que ri de tudo.
Segundo Charles Lemert (1992, apud MINOIS 2003[1946]), a ironia é hoje uma
atitude necessária para uma teoria social, pois permite usar de artimanhas com a vida. O
riso irônico é sempre calculado, intelectualizado e refletido. Portanto, o autor ressalta que o
humor torna-se um instrumento de luta contra o poder, ou seja, o humor incorporou-se à
cultura popular, provocando uma sensação agradável e uma percepção de liberdade,
trazendo um riso zombeteiro, irônico, sarcástico, um riso de protesto, de contestação do
poder, dominando espaços públicos e se fazendo presente na imprensa, sobretudo nas
charges.
Um outro aspecto a ser comentado refere-se às charges atuarem como agentes
políticos e são usadas para expressar uma insatisfação dos fatos veiculados na mídia
impressa. Para Minois (2003 [1946]), nas democracias ocidentais o uso do riso zombeteiro
em política, beneficiando-se de grande tolerância, não cessa de progredir. É por meio das
charges e das caricaturas que a derrisão se situa. Estas só podem agir, indiretamente, com a
intervenção da opinião pública, por isso, diante de um fato ou acontecimento político e
social, que estejam sendo veiculados na mídia impressa, o humor satírico tem condições de
exprimir-se por completo, explorando os desvios cometidos pelos políticos.
Em cada época o riso foi uma reação de autodefesa da sociedade, diante das
ameaças potenciais da cultura, mas, em parte, o riso tem por objetivo aliviar essas ameaças
e as tensões como uma espécie de psicanálise social, expondo cinicamente todas essas
proibições que preocupam a civilização. Dessa forma, o riso existe para desmascarar as
insuficiências e os defeitos da humanidade; ele permite suportar o insuportável,
disfarçando, zombando e brincando.
A partir disso, podemos afirmar que o humor é indispensável para a sociedade; sem
ele a humanidade não suportaria as grandes transformações sociais, políticas, econômicas
etc., que ocorrem num mundo que cresce de forma tão rápida.
69
Assim, pensar em charge é percorrer os acontecimentos e retratar uma realidade
factual e verossímil, por meio de caracteres históricos e culturais de uma sociedade. A
charge assume um papel importante na vida social e política de uma sociedade no âmago
de suas imperfeições. Ela traz o registro do flagrado, com o intuito de veiculação de
informações por meio de um olhar fincado nos interesses de quem as produz. Pesquisá-las,
portanto, tem por objetivo identificar os jogos de interesses que entrecruzam a esfera
política, indicando perspectivas, possibilidades e intenções de se lidar com a memória e a
história, como mostra a imagem 07, abaixo, relativo à charge do rei da França,
caracterizado como Gargantua. Esta charge fez com que Honoré Daumier ficasse preso por
seis meses no Sainte Pelagie em 1832.
Imagem 07
“Gargantua” (http://pt.wikipedia.org/wiki/honor%C3%A9_Daumier-acesso em
02.07.2013)
Assim, a charge serve como uma espécie de âncora, isto é, uma alavanca que extrai
os conceitos de um povo enquanto sociedade, para aguçar a comicidade crítica e a
investigação do comportamento humano.
No decorrer da história a partir do século XIX, dentro das calamidades sociais, a
charge rompe e contesta desvios sociais e políticos com suas caricaturas burlescas.
Segundo Lauerte (2008, apud MINOIS, 2003), “o poder da charge cria e destrói
ícones com seu simbolismo exacerbado”. Os Impérios, o Estado, a Igreja sempre se
utilizaram da força para evitar opiniões contrárias, o que não extraiu do seio social o anseio
de manifestar e tornar real as conclamações de protesto. Assim, a charge se transforma
70
num poder fiscalizador e opinativo perante as injustiças sociais, políticas e históricas
vigentes no país.
A função do humor na charge é questionar o poder a todo o momento, por isso, ela
é altamente renovadora. Quando Chaplin fazia de bobo um guarda de rua, em seus filmes,
sabia que ridicularizar o poder descontrai o ser humano e o fazia rir. Desse modo, o humor
veio para contrapor regras sociais, questioná-las e descontrair o ambiente social e político.
O chargista é uma espécie de termômetro do que a população pensa e reclama. Ao mesmo
tempo, com sua competência e com sua habilidade em utilizar os recursos verbais e não
verbais, influencia um povo a olhar o mundo de forma crítica.
Segundo Bakhtin (1987), numa sociedade estratificada, as formas cômicas
adquirem um caráter não oficial, seu sentido modifica-se, aprofunda-se, para transformar
finalmente nas formas fundamentais de expressão da cultura de um povo.
Além do mais, numa organização social, os recursos humorísticos, em caráter não
oficial, são apropriados para suprir as dificuldades do povo, estabelecendo uma relação
pertinente entre o homem, a sociedade e o mundo. Um gênero textual o qual nos permite
essa sensação é o gênero charge, que com seus recursos expressivos vê o mundo sob a
ótica de um narrador personagem, identificando o fato social ou político que a cerca, e
ainda permite em sua composição, com a intenção de fazer crítica, produzir humor e
denunciar atuações e comportamentos de elementos da sociedade.
A partir disso, podemos observar a publicação da primeira “Revista Illustrada”, em
1876, por Angelo Agostini, artista italiano, imigrante, caricaturista, ilustrador, desenhista,
crítico de arte e pintor, que exerceu forte influência na opinião pública da época por meio
das charges. Essa revista fora um marco na imprensa brasileira por seu engajamento
político e a conclamação da arte por meio da charge (SALIBA, 2002).
Imagem 08
Charge de Agostini (1882), em que D.Pedro
II é “derrubado do trono”- RevistaIlustrada
http://almadanoach.blogs
pot.com.br/2008/11/monarquia-e-republica-
nas-caricaturas-de.html-acesso em
02.07.2013).
71
Na figura 8, charge em que D. Pedro II, o imperador, é “derrubado do trono”,
enuncia a queda não só do imperador, mas a queda de um sistema organizacional de poder,
a ser consumado tempos depois, especificamente em 1889, com a Proclamação da
República. Sendo assim, a charge traz teores satíricos e provocativos, os quais antecipam
os interesses da editoria da “Revista Illustrada”, que ganha apelo público por seu caráter
crítico, contudo humorístico.
Segundo Possenti (1998, p.109), “o discurso humorístico é sempre crítico e os
chistes são formas de veicular discursos conservadores ou mesmo reacionários”, ou seja,
além do campo da sexualidade e do racismo, o humor político é sem dúvida, na maior parte
de suas manifestações, o mais crítico.
Além disso, o autor afirma que o humor político explora determinadas
características do político ou das etapas da história pelas quais o país ou governo passa, e
quanto a sua compreensão, depende de fatores pragmáticos e discursivos. O autor ilustra,
preferencialmente, exemplos cuja compreensão depende de fatores mais pragmáticos do
que discursivos. Há piadas que criticam a própria política, ou, melhor dizendo, a classe dos
políticos como um todo.
FHC vai consultar uma vidente. A bruxa lhe diz:
- Aqui vejo muito claro. Tu vais morrer num dia de festa
Pátria.
- Bom, mas que dia?
- Não sei, mas qualquer que seja o dia em que morras vai ser
Uma verdadeira festa.
Há aquelas que criticam determinada concepção de política, talvez atribuída a um
povo. A piada revela um conceito segundo o qual o político é o responsável pela solução
dos nossos problemas.
O candidato está fazendo um discurso e, lá pelas tantas diz:
- Se eu for eleito, prometo que haverá trabalho para todo mundo
O bêbado comenta:
- Já começou a perseguição.
72
Há aquelas mais comuns no mundo político que é a do político corrupto:
Dois turistas encontram um cemitério brasileiro (argentino etc.). Veem uma lápide
na qual se lê: “Aqui jaz um político e um homem honesto”. E um dos turistas comenta:
- Que estranho. Os brasileiros (argentinos etc.) enterram duas pessoas no mesmo
túmulo.
Nessa piada, os elementos linguísticos explorados deixam subentendido que há um
morto que foi político e honesto, mas também pode se tratar de um político e de um
homem honesto.
A partir desses exemplos podemos observar que a compreensão dos chistes
depende de fatores pragmáticos e cujo tema possibilita uma variedade de construção
textual. Além disso, o autor afirma que a maior parte das charges veiculadas nas segundas
páginas dos jornais são políticas, porque são, em geral, produzidas em função da notícia.
Possenti (1998, p.117) divide o humor na imprensa em dois critérios que medem
sua ligação maior ou menor com as notícias em destaque. O primeiro tipo está relacionado
com o humor dos chargistas de plantão que têm o compromisso de retomar a matéria de
capa ou de primeira página; o segundo tipo, denomina “humor de autor”, tem autonomia
maior e publica, de certa forma, o que querem, como, por exemplo, Millôr Fernandes, Jô
Soares e Luís Fernando Veríssimo que atuam em diversos veículos de comunicação,
diários ou semanais. Esses autores, consagrados, produzem material que não estão
necessariamente relacionados com a primeira página ou com a matéria da capa, mas,
eventualmente, guardam relação com os fatos mais destacados na imprensa. Tudo indica
que os autores não têm a obrigação de utilizar esta temática como sua matéria.
As charges relativas às matérias de primeira página parecem ser, muitas vezes,
exatamente a mesma voz do editor do jornal, apenas em outro registro. Por isso, afirmamos
que esses tipos de charges despertam um interesse maior na análise do corpus deste
trabalho, pois trazem a opinião pública a respeito de fatos e acontecimentos veiculados no
dia a dia.
Em suma, um dos objetivos básicos do humor é a crítica social, desejando a
modificação da sociedade e quase sempre mostra o absurdo e o ridículo de
comportamentos do homem, para que este veja a necessidade de contestar e romper com a
estrutura social vigente.
73
5. ANÁLISE DO CORPUS
Neste capítulo, faremos as análises de onze charges do chargista Angeli sobre o
mensalão, no período de agosto a outubro de 2012, publicadas na Folha de S. Paulo.
Baseamo-nos, para as análises, nas concepções aqui estudadas no capítulo III sobre a
referenciação, a inferenciação, a recategorização associadas às expressões anafóricas.
Devemos considerar que o critério sócio-cognitivo interacional, por nós adotado, permite a
inclusão das recategorizações, das anáforas diretas e indiretas e dos intertextos para a
compreensão do efeito de humor estudado no capítulo II. Isso posto, para Cavalcante
(2005, p.129), o objeto do discurso se recategoriza por meio de pistas as quais direcionam
o leitor a apreender o sentido a partir de “modelos mentais minimamente organizados em
nossos conhecimentos culturalmente partilhados”.
Em outras palavras, para que o leitor tenha a capacidade de compreender o discurso
presente, na figura da charge, faz-se necessário que ele tenha o conhecimento
culturalmente partilhado para que haja compreensão na leitura do texto. Tais
conhecimentos, como citado anteriormente, correspondem às experiências vivenciadas e
compartilhadas por uma dada comunidade e armazenada mentalmente em modelos
cognitivos. Além disso, para que o humor seja percebido pelo interlocutor, faz-se
necessário que o leitor compartilhe dos conhecimentos exigidos pela autoria textual, para
compreensão da intencionalidade discursiva presente na charge.
Tal como apresentado por Travaglia (2005) e por Possenti (2010) em seus ensaios
teóricos, sabemos que o discurso humorístico não se manifesta por si só. Não há o
engraçado vagamente apresentado sem que algo inserido à situação de produção textual
não provoque o riso em quem presencia o fato humorístico. O humor é compartilhado por
um determinado grupo de pessoas em que um assunto é difamado ou “rebaixado” mediante
algum apontamento falho que justifique a ocorrência de um acontecimento ou de uma
pessoa alvo desse apontamento. Dos fatores destacáveis mais comuns em um dado
contexto social enfocamos os tipos estereotipados historicamente e socialmente.
Obviamente, o tema que mais sofre recorrência estereotipada é o do político corrupto, falso
e manipulador.
74
Charge 1
Fonte: Opinião – Folha de São Paulo, 2 de agosto de 2012
Na charge 1, publicada no início do julgamento do mensalão pelo STF, observamos
a introdução do referente explícito “mar de lama”, termo utilizado pela política brasileira
para categorizar a existência de enormes redes de corrupção em um governo. Esse
referente é recategorizado pela imagem por ser o caso de corrupção mais “sujo” e
“vergonhoso” na história política do Brasil. Um dia antes do julgamento, a Receita Federal
confirmou punições contra réus e empresas ligadas ao processo do mensalão que somaram
pelo menos R$ 64,4 milhões. As penalidades foram mantidas pelo Conselho
Administrativo de Recursos Fiscais, orgão do Ministério da Fazenda, que concordou com
as acusações feitas criminalmente pela Procuradoria Geral da República na ação no STF.
As decisões do Conselho apontaram que o empresário Marcos Valério de Souza e
outros réus do grupo citados como “núcleo operacional” do esquema cometeram diversas
infrações como evasão de divisas, movimentação de dinheiro de origem não declarada e
fraudes contábeis para justificar entradas e saídas de recursos. Segundo documentação da
Receita Federal, o grupo mandava desde 2002 dinheiro ilegal ao exterior, sem passar pelo
sistema financeiro nacional.
Assim, ancorado nesse contexto e ativado pela anáfora indireta “mensalão”,
introduzida pela fala da personagem, o referente é recategorizado como o maior esquema
de corrupção envolvendo arrecadação ilegal de recursos para campanha e compra de votos
de parlamentares em troca de apoio do governo Lula.
75
A partir disso, observamos que o processo da recategorização do referente demanda
uma abordagem tanto dos aspectos linguísticos quanto dos sociocognitivos para que o
leitor possa compreender e construir sentido. Ele modula o referente em função da
intencionalidade comunicativa do momento, que é criticar as ocorrências absurdas do
mensalão.
Desse modo, o riso surge da difamação, do rebaixamento cuja intenção é
ridicularizar, humilhar os políticos envolvidos no esquema e, ao mesmo tempo, corrigir e
denunciar para que se possa manter a ordem social.
76
Charge 2
Fonte: Opinião – Folha de S. Paulo, 5 de agosto de 2012.
Nessa charge 2 temos um cenário em que Roberto Gurgel, Procurador-Geral da
República, diante do ex-ministro da Casa Civil, José Dirceu, declara-o ser o “mentor” e o
principal responsável pela organização do mensalão. Gurgel descreveu um esquema de
corrupção criado para assegurar apoio ao Governo no Congresso após a chegada do PT
(Partido dos Trabalhadores) ao poder. Ele afirma que o esquema funcionava dentro do
palácio da Presidência da República, por isso considerou o mensalão o mais “atrevido” e
“escandaloso” sistema de corrupção do Brasil. Mesmo sem provas concretas, Gurgel
invoca a teoria do “domínio do fato”, ou seja, por meio de depoimentos de testemunhas e
outras evidências, ele o acusa nos casos que abrange crime organizado.
Na Folha de S. Paulo (2012), esse tipo de crime envolve o esquema mais
sofisticado que arregimenta “laranjas”¹, intermediários, assessores, e o chefe não se
envolve diretamente, ou seja, o autor do crime é quem decide e planeja a atividade dos
demais.
________________________________________________
¹ o termo “laranja” e “testa de ferro” designam, na linguagem popular,
a pessoa que intermedeia transações financeiras fraudulentas, emprestando
seu nome, documentos ou conta bancária para ocultar a identidade de quem
a controla. Acesso em 12/08/2013 – http://pt.wikipedia.org/wiki/laranja
77
A partir disso, ancorados nesse contexto e amparados pela anáfora indireta do
referente explícito “Jesus”, observamos que a imagem de José Dirceu, ex-ministro da Casa
Civil e figura política importante na sociedade, é recategorizada como “arrependido”
diante das acusações feitas pelo Procurador-Geral da República e por desconhecer o
mensalão e as pessoas envolvidas no esquema. Diante disso, Gurgel, espantado com o
discurso de Dirceu, disse que nada disso importa, porque, de acordo com a teoria do
domínio do fato, o que interessa é que ele idealizou o esquema e tinha domínio sobre o que
a quadrilha fazia, mesmo sem se envolver com a execução dos seus crimes.
Assim, por meio dessas estratégias e amparado na anáfora indireta, o riso ocorre do
aparecimento de uma incongruência inesperada entre o discurso de um político petista para
um discurso religioso “Encontrei Jesus” que nos mostra o arrependimento dos seus erros,
provocando, assim, o humor. A causa desencadeadora desse processo seria a quebra de
uma expectativa, ou seja, a perda de controle em relação à postura indiferente e falsa de
José Dirceu diante de uma autoridade pública e num espaço jurídico de respeito perante a
sociedade.
Charge 3
Fonte: Opinião – Folha de S. Paulo, 6 de agosto de 2012
Nesse caso, a charge 3 é construída por meio do intertexto, sendo que o texto-base
foi publicado pela Folha de S. Paulo, em 5 de agosto de 2013 e cujos fatos envolvem a
contratação dos melhores advogados de São Paulo para que façam a defesa dos principais
réus do mensalão.
78
Os advogados mobilizam equipes inteiras para acompanhar, em Brasília, o
julgamento do processo, alegando poder dar conta das acusações que constam no mesmo.
Para isso, cobram altíssimos honorários não divulgados pela mídia. Isso posto, ancorado no
contexto, observamos a introdução do referente “festival de advogados de Brasília”
recategorizado como “corruptos”. Pois, a partir do conhecimento de mundo que temos do
referente “advogados”, profissionais liberais “sérios”, bacharéis em Direito e autorizados
pelas instituições competentes de cada país a representar os interesses das pessoas físicas
ou jurídicas em juízo ou fora dele, quer entre si, quer ante o Estado, passam a defender
apenas seus interesses. Essa compreensão é possível pela associação da anáfora indireta
“festival” com a imagem representada, ironicamente, pela equipe de advogados que
aparece de feição alegre e mostra uma ação comum em situações de comemoração, festas e
celebrações, querendo apenas levar vantagem do caso que envolve muito dinheiro,
desencadeando, assim, o riso.
Além do mais, também constatamos o riso aristotélico baseado no aspecto moral,
zombando dos vícios a que o homem se expõe, tentando, sem cessar, possuir cada vez
mais, visando o ter por ter. Assim sendo, isso o leva ao ridículo, tornando-se alvo fácil do
riso. Consequentemente, o texto só será cômico mediante a admissão da ocorrência da
recategorização por meio da anáfora indireta e do intertexto.
79
Charge 4
Fonte: Opinão – Folha de S. Paulo, 14 de agosto de 2012
O cenário da charge 4 está associada ao texto-base publicado na Folha de S. Paulo de 13 de
agosto de 2012, onde Luis Flávio Zampronha, delegado da Polícia Federal que investigou o
caso de 2005 a 2011, afirma que o esquema era mais amplo nas suas duas mediações:
arrecadação e distribuição. Deveria ser encarado como um grande sistema de lavagem de
dinheiro e não só como canal para a compra de apoio político no Congresso. O delegado
abasteceu de provas o Ministério Público Federal, que, em 2006, ofereceu a denúncia ao
STF. Para ele, José Dirceu e Delúbio Soares poderiam ter sido denunciados também por
lavagem de dinheiro, o que não foi feito pelo Ministério Público Federal.
Em relação à origem do dinheiro, Zampronha atesta que o mensalão “seria
empregado ao longo dos anos não só para transferências a parlamentares, mas para custeio
da máquina partidária e de campanhas eleitorais e para benefício pessoal dos integrantes”.
O dinheiro não viria apenas de empréstimos ou desvios de recursos públicos, mas também
poderia vir da venda de informações, extorsões, superfaturamento em contratos de
publicidade, da intermediação de interesses privados e doações ilegais. Para ele, os
empréstimos obtidos pelo Banco Rural e BMG eram verdadeiros e seriam quitados com o
dinheiro a ser arrecadado pelo esquema.
Ancorada nesse contexto, na fala da personagem “se o caule é assim, imagine o
tamanho da raiz” e na imagem deformada do caule, a anáfora indireta “mensalão” introduz
um novo referente “a sombra do mensalão” que é recategorizado como um esquema de
80
corrupção mais abrangente do que se imaginava inicialmente, englobando outras atividades
ilegais.
A partir disso, o riso é desencadeado pela alusão que fazemos sobre a corrupção ser
muito maior do que aparenta ser e que abalou toda a estrutura política do governo Lula.
Charge 5
Fonte: Opinião – Folha de S. Paulo, 20 de agosto de 2012.
Na charge 5 verificamos a introdução do referente explícito “Oscar” categorizado
como uma cerimônia formal na qual os prêmios são entregues anualmente pela Academia
de Cinema Americana, em reconhecimento à excelência de profissionais da indústria
cinematográfica, como diretores, atores e roteiristas. Assim, a partir disso, verificamos que
o riso é desencadeado pela percepção contrária que estabelece a real finalidade do referente
“Oscar”. Esse novo objeto de discurso no qual se ancora a anáfora indireta “mensalão” é
reconstruído de forma irônica por meio da fala da personagem representada por Gurgel
“...e o Oscar vai para...” recategorizado implicitamente como “...e o Oscar vai para os
‘figurões’ do mensalão para serem julgados”, referindo-se a José Dirceu, a José Genoino e
a João Paulo Cunha, considerados figuras políticas importantes do Governo Lula. Além
disso, percebemos que o referente implícito “premiação”, ancorado no referente explícito
“Oscar”, é recategorizado como “punição” ou “castigo”, que associados à imagem de
Gurgel segurando o resultado e o malhete relaciona-se ao contexto da notícia no caderno
“Poder”, na Folha de S. Paulo, em 19/08/2012, que retrata logo no início do julgamento do
81
mensalão a decisão de serem julgados os principais réus do mensalão, principalmente, José
Dirceu, considerado o mentor.
Charge 6
Fonte: Opinião – Folha de S. Paulo, 22 de agosto de 2012.
No caso da charge 6, a comicidade é desencadeada pelo intertexto estabelecido com
o título “Inferno de Dante”²; relaciona-se com a primeira parte da “Divina Comédia” de
Dante Alighieri. No poema, o referente “inferno” é descrito com nove círculos de
sofrimento localizados dentro da Terra. Os pecados menos graves estão logo no início e os
mais graves no final. Portanto, os maiores pecados são aqueles cometidos de forma
premeditada usando a inteligência do ser humano para o mal e a traição, onde ambos
recebem a punição máxima no local mais profundo do inferno que é representado pelo
cenário da charge.
O referente “inferno” associado à anáfora direta representada pela imagem; à
anáfora indireta, “partidos”, ancorada no discurso das personagens “Estão agrupados por
partidos?”, e “No princípio era assim, mas, com o tempo foi virando uma coisa só” é
recategorizado por “corrupção”, pois atribui a punição a todos os políticos
independentemente do partido a que pertencem. A “corrupção” contaminou todos os
lideres de partidos como PP, PL, PTB, etc., no caso mensalão, como se a partir disso não
houvesse mais nenhum político honesto nos partidos políticos.
___________________________
² http://pt.wikipedia.org/wiki/inferno_divina. Acesso em 12 de setembro de 2013.
82
Essa compreensão é possível por meio das expressões anafóricas que orientam a
configuração do intertexto, fazendo com que o leitor seja capaz de relacionar e reconhecer
a sua presença pela ativação do texto-origem em sua memória discursiva, associando-o às
âncoras lexicais e imagéticas expressas no cotexto e no contexto. Portanto, amparados por
esse processo, o riso surge da difamação e do rebaixamento dos políticos, tornando-os alvo
sarcástico após o super-escândalo de corrupção na esfera política.
Charge 7
Fonte: Opinião – Folha de S. Paulo, 3 de setembro de 2012
Sequencialmente ao contexto da charge 2, observamos, na charge 7, o mesmo
cenário, onde o Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel, diante do ex-ministro da
Casa Civil, José Dirceu, confirma possuir provas mais contundentes para sua condenação,
sendo apontado como o “chefe da quadrilha”3. A partir disso, a comicidade é desencadeada
pela introdução do referente “perdeu, playboy” à anáfora direta representada pela imagem
de Dirceu, que é recategorizada como “espanto” e “vergonha”.
____________________
3 http://acervo.folha.com.br/fsp/2012/09/01. Acesso em 13.11.2013.
83
Além do mais, temos o referente “Data Venia” categorizada por uma expressão
latina que significa “dada a licença” ou “com o devido respeito”, que ancorado na fala do
procurador desencadeia o riso pela incongruência entre o discurso formal e o discurso
informal. Observamos, também, que o referente imagético Dirceu, figura política
importante durante o governo Lula, é recategorizado como “playboy”, desencadeando o
riso que advém do estereótipo criado no início da década de 50, quando os Estados Unidos
passavam por grande onda de prosperidade. Homens, filhos de famílias que haviam
enriquecido, começaram a dedicar seu tempo integral às festas, a relacionamentos e a
esbanjar dinheiro.
Assim sendo, o leitor apreende que finalmente a justiça falou mais alto e que pela
primeira vez um político cujo cargo era de grande importância à sociedade vai a
julgamento como qualquer cidadão que desrespeita as leis morais e civis. Percebemos que
as expressões anafóricas atuam como estratégias referenciais, que ancoradas aos referentes
lexicais e imagéticos, ativam a memória discursiva e recategorizam o objeto do discurso
deflagrando o humor.
Charge 8
Fonte: Opinião – Folha de S. Paulo, 25 de setembro de 2012.
Nessa charge 8, a comicidade é desencadeada por meio da anáfora indireta “o
mentor”, que ancorada ao referente explícito “mensalão”, inferimos a José Dirceu,
considerado o principal responsável por viabilizar o esquema do mensalão tendo um papel
84
proeminente que permanecia “à sombra” dos acontecimentos. Esse referente é
recategorizado como “alienígena”, ser estranho, desconhecido e forasteiro proveniente de
outro planeta que age com astúcia e inteligência. Além do mais, esse referente imagético é
ancorado no texto-base do filme MIB – Homens de Preto III, lançado em 2012, que trata de
uma organização criada pelo governo para investigar as atividades alienígenas na Terra.
Agentes e ex-policiais se unem para desvendar os mistérios de um possível ataque
extraterrestre. Assim, observamos que a reconstrução desse referente se baseia na anáfora
indireta, que ancorada nas expressões lexicais e imagéticas, constitui o cômico e gera o
riso.
Em seguida, outro gerador do riso, presente na charge, é a coisificação do humano,
como forma de constituição da comicidade, ou seja, a desumanização do homem para coisa
estranha e desconhecida provoca o riso.
Charge 9
Fonte: Opinião – Folha de S. Paulo, 1º de outubro de 2012.
Na revista Veja (2012), o ministro Joaquim Barbosa, relator do mensalão,
condenou os petistas José Dirceu, José Genoino e Delúbio Soares, que formavam a cúpula
do PT, por crime de corrupção ativa e formação de quadrilha, mostrando como eles
usavam dinheiro desviado dos cofres públicos para subornar parlamentares e comprar o
apoio de partidos políticos do governo Lula. Joaquim Barbosa coordenou toda a fase de
85
instrução do processo, e em tese é quem conhece os mínimos detalhes das mais de 50.000
páginas de depoimentos, laudos, memoriais e perícias; por isso é a personagem mais
visível desse embate que impôs à corrupção uma derrota. É um ministro diferenciado e
respeitado diante dos demais ministros. Sua postura muitas vezes polêmica ajudou a fixar a
imagem do cavaleiro disposto a enfrentar as resistências em busca da justiça, um ato de
bravura.
Roberto Da Matta, antropólogo, afirma que “O Ministro incorpora uma espécie de
herói do século XXI. Precisávamos de uma pessoa com o perfil dele para romper com os
rapapés aristocráticos, pois chegamos ao limite da tolerância com a calhordice no poder”
(Veja, 2012).
A partir desse contexto, observamos, nessa charge, a introdução do referente
implícito “relator”, que ancorado na imagem, é recategorizado como “Justiceiro”, um dos
mais famosos anti-heróis das histórias em quadrinhos, criado por Gerry Conway, Ross
Andru e John Romita. Além disso, é considerado um homem-guerra entre todos os
criminosos em geral, conhecendo quase todo o tipo de armamento e sua função é vigiar e
destruir inimigos, criminosos, mercenários, etc.
Assim, podemos observar nesse caso que o humor é desencadeado por meio da
recategorização que funciona como gatilho e através da homonímia representada pelo
cenário que permite apreender a mudança de um mundo textual para o outro, por meio da
ativação de conhecimentos de mundos diferentes que resultarão em mundos textuais
distintos e opostos. Primeiramente, ativamos o mundo da política e da justiça e, em
segundo lugar, ativamos o mundo da ficção, das histórias em quadrinhos, provocando o
riso.
86
Charge 10
Fonte: Opinião – Folha de S. Paulo, 3 de outubro de 2012.
Nessa charge 10, a anáfora indireta “mensalão” introduzida na fala da personagem,
“Sabe o pior? Esse mensalão vai levar cem anos para se decompor” ancora-se na imagem
das cabeças de políticos representando lixo em decomposição. Esse referente é
recategorizado como “política sustentável”. Na Folha de S. Paulo, de 02 de outubro de
2012, o STF confirma o principal ponto da acusação no processo do mensalão, de que o
sistema financeiro clandestino montado pelo PT com o empresário Marcos Valério
Fernandes de Souza cooptou deputados e líderes partidários para que aprovassem projetos
de interesse do Executivo4; assim sendo, apreendemos que a quantidade de políticos
envolvidos no esquema de corrupção divulgado pela mídia é absurda, por isso vai levar
muito tempo para desintegrar ou dissolver.
Em vista disso, observamos que o humor é desencadeado pela sátira política, pois a
vida política desenvolve-se de maneira caótica em direção à democracia, fazendo com que
o riso ganhe terreno e exerça uma atividade social de denúncia para que se possa manter a
ordem social.
_______________________
4 http://acervo.folha.com.br/fsp/2012/10/01. Acesso em 15 de novembro de 2013.
87
Charge 11
Fonte: Opinião – Folha de S. Paulo, 25 de outubro de 2012.
Dos vinte e cinco condenados por participação do mensalão, Marcos Valério teve a
pena mais alta, que ultrapassa 40 anos de prisão por formação de quadrilha, corrupção
ativa, peculato, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Marcos Valério foi considerado o
operador do esquema e o abastecia com empréstimos junto aos bancos Rural e BMG. A
partir disso, na charge 11, a anáfora indireta “o contador” ancorada na imagem do
“quadro” no interior de uma cela representada pelo cenário da charge, introduz o referente
“Valério” que é recategorizado como contador de dias na prisão, desencadeando o riso.
Dessa forma, o humor é provocado pela ocorrência da recategorização que serve como
gatilho para o efeito do riso, sendo que isso é possível pelas pistas visuais e pela anáfora
indireta que permitem ativar a memória discursiva do interlocutor. Além do mais,
observamos o episódio do riso zombeteiro como forma de ridicularizar o comportamento
do homem referente a seus vícios e o tornando alvo fácil desse riso.
88
5.1. ALGUMAS CONCLUSÕES
Nesse final de capítulo torna-se relevante que alguns pontos sejam destacados.
Primeiramente, observamos que as charges exercem uma função social importante no meio
jornalístico, pois revelam uma leitura crítica dos fatos sobre o mensalão com certa dose de
humor. Em segundo, percebemos na maioria das charges aqui analisadas, que a ocorrência
da recategorização serve como gatilho para a construção do humor e busca uma abordagem
tanto dos aspectos linguísticos quanto dos cognitivos. Além do mais, as anáforas diretas
retomam os referentes já apresentados no texto por expressões verbais ou visuais, enquanto
que as anáforas indiretas introduzem um novo referente no discurso, ancorado nas
expressões no texto ou no contexto e ativados na memória discursiva do interlocutor. Por
último, outra estratégia na construção do objeto de discurso é a relação entre textos, ou
seja, por meio do intertexto o leitor ativa sua memória discursiva mediante pistas
apresentadas no cotexto e no contexto, principalmente aquelas divulgadas durante o
julgamento do mensalão na mídia impressa para a construção de sentido.
Importante foi também constatar que o humor praticado por Angeli, embora
apresente, como vimos, os tipos propostos por Travaglia e Possenti, privilegia, pela própria
natureza do corpus – charges de um jornal de alta circulação – o humor político. Melhor
dizendo, o humor como uma espécie de arma de denúncia cuja proposta é utilizar da
comicidade para apontar e satirizar os vícios e os desvios das realidades naturais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, analisamos como se constituem os referentes (objeto de discurso)
em charges políticas e como esse processo contribui para a produção do humor. Para a
realização do estudo, partimos da hipótese de que, na análise da referenciação o objeto de
discurso é construído e reconstruído nas charges pela ocorrência da recategorização, do
intertexto, que são amparados pelas expressões anafóricas. Além disso, devemos
considerar a inter-relação entre as diferentes modalidades de linguagem e a função dos
referentes acionados nesse processo para a constituição do humor. Assim, considerando a
natureza sociocognitiva interacional dos referentes e a dimensão constitutiva das charges
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que compõem o nosso corpus, observamos que a construção de sentido é desencadeada na
inter-relação palavra-imagem e que os referentes são introduzidos, retomados e
reconstruídos por meio de âncoras linguísticas e não linguísticas expressas no cotexto e no
contexto sociocognitivo, exigindo participação constante e ativa do leitor na construção
dos sentidos e de novas referências.
Dessa forma, os referentes, objetos cognitivo-discursivos categorizados e
recategorizados, que interagem com as diferentes modalidades de linguagem, constituem-
se e se reconstituem, de modo a trazer à tona o inesperado, quebrando expectativas e,
assim, deflagrando o humor. Para isso, na interpretação, esses referentes ativam modelos
mentais, vistos neste trabalho, como enquadres associativos apoiados nas expressões
anafóricas.
Em suma, merece destaque, nos textos apresentados, o fato de que a ocorrência da
recategorização colabora para uma apreensão imediata da comicidade, poupando o leitor
de um esforço maior ao processar as informações que trazem consigo o propósito
humorístico para que haja a compreensão do efeito de humor.
Além disso, observamos que a produção textual não se limita apenas à
materialidade linguística, mas deve ser vista como objeto de interpretação do mundo.
Portanto, o humor acarreta em si a essência vital da representação dos acontecimentos do
cotidiano e o transformam em apontamentos observáveis por um determinado público e faz
com que as diferentes vozes, tanto dos enunciadores quanto dos receptores, ecoem e se
expandam de geração a geração. Para isso, como divulgadores das desavenças
administrativas e como representantes do anseio populacional, os humoristas utilizam do
humor, para trazer, mesmo que momentaneamente, a satisfação mascarada do riso, numa
busca de apaziguamento dos problemas e das perseguições que tanto assolaram a nossa
sociedade.
Portanto, a execução deste trabalho teve por maior interesse proporcionar alguns
direcionamentos de futuras leituras com novos olhares questionadores, mais aprofundados,
longe do que é aparente e substancial.
Por fim, gostaríamos de ressaltar o papel do jornal Folha de S. Paulo na cobertura
do processo do mensalão que desnudou o Partido dos Trabalhadores (PT). A Folha
dedicou boa parte de suas notícias para esse evento, apresentando, em sua maioria, textos
críticos para avaliá-lo. Por esse motivo, pôde influenciar a construção da opinião sobre os
fatos políticos, demonstrando a pertinência da mídia impressa.
90
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