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Sumário
Apresentação 9
1. Direito Penal
o conceito de culpa e a estrutura bipartida dos tipos penaisculposos 11
Israel Domingos Jorio
Direito penal máximo ou intervenção mínima do direito penal?Breves lineamentos sobre a função do direito penal 46
Luciana de Medeiros Fernandes
Direito Penal e Direitos Humanos: uma história de para-
digmas e paradoxos 95
Marcelo Semer
Consideraciones sobre Ia prueba del dolo 129
Ramon Ragués i Viallês
Direito penal do inimigo 156
Ulfrid Neumann
2. Processo Penal
As condições da ação penal 179
Ada Pellegrini Grinover
A incorporação de Tratados de Direitos Humanos em face
da EC 4512004: o caso da prisão de depositário infiel 200
Eric Alexandre Lavoura Lima
3. Crime e Sociedade
Ensino e aprendizado das ciências criminais no século XXI 237
Salo de Carvalho
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Sumário
3.1 Sistema Prisional
Penas alternativas X prisão: a construção de um outro para-digma? 279
Alessandra Teixeira e Fernanda Emy Matsuda
4. O Direito em Ação
4.1 Decisões paradigma
Processo penal. Câmara formada majoritariamente por juízesde primeiro grau convocados. Violação ao princípio do juiznatural. Nulidade 329
4.2 Ementário de Jurisprudência 348
André Adriano do Nascimento da Silva e Lucas ClementeGuimarães Diaz
4.3 Jurisprudência ComentadaJulgamento eclipsado: quando a celeridade tolda o brilho dohabeascorpus 374
Daniel Guimarães Zveibil
5. Índice Alfabético Remissivo 391
Normas de publicação 397
ata: Por problemas técnicos o artigo O equilíbrio entre a eficiência e o
garantismo e o crime organizado, de autoria de Antonio Scarance Fernan-
des, anunciado na Revista Brasileira de Ciências Criminais 68, não será
publicado.
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3. C rim e e Sociedade
Ensino e aprendizado das ciênciascriminais no século XXI
Salo de CarvalhoProfessor titular de Direito Penal (graduação)
e Criminologia (Mestrado em Ciências Criminais) da PUC- RS.Mestre (UFSC) e Doutor (UFPR) em Direito. Advogado.
Sumário: 1.As expectativas eos ruídos no ensino das ciências criminais - 2.A fragmentação do ensino das ciências criminais: direito penal e crimino-logia - 3. O local do saber criminológico oficial- 4.A "outra" criminologia- 5.A fragmentação da criminologia e o ensino formal- 6. Os domíniose as fronteiras dos saberes penal e criminológico - 7. A fragmentação doensino das ciências criminais - 8. As possibilidades de reconstrução dasciências criminais - 9. O equívoco entre interdisciplinaridade eauxiliaridadenas ciências criminais -10. O obsoleto ensino do Direito Penal-lI. Oobsoleto ensino do direito processual penal: a captura pelo direito penal ea persistência da teoria geral do processo - 12. A construção artificial docaso penal- 13. O fetiche pela jurisprudência -14. A vocação das ciênciase das políticas criminais -15. Teoria criminológica problematizadora: osrumos da criminologia pós-crítica -16. Bibliografia.
Resumo: O artigo analisa as expectativas, os ruídos e a fragmentação do
ensino e do aprendizado das Ciências Criminais, destacando as relações entre
Criminologia, Política Criminal, Direito Penal eDireito Processual Penal. Aponta
problemas prático-teóricos dos modelos dogmático epositivista na construção dos
saberes criminais e propõe sua reconstrução a partir de teoria problematizadora.
Palavras-chave: Ciências criminais - Modelo integrado - Criminologia
Contemporânea - Ensino jurídico - Interdisciplinaridade.
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Salo de Carvalho
Abstract: The article analyses expectations, rumors and fragments of teaching
and learning in the field of Criminal Sciences, highlighting the relation among
Criminology, Criminal Politics, Criminal Law and Criminal Process Law. Itpoints out practical and theoretical problems of dogmatic and positivist models
in Criminal Education and presents proposals for a reconstruction based on
problem-posing theory.
Keywords: Criminal science - Integrated model - Problem-posing
criminology - Education - Inter-discipline.Área do direito: Penal
"O Direito Penal é oprimeiro amor dos grandes estudantes,
fascinados pelo conte údo humano, pela palpitação social,
pela in te nsid ade dos dramas, pela glória das lege1}das.
O Direito Pen al fo rnece a emulsão vivijicante
a o b erçário das vocaçõesjurídic as". (Roberto Lyra)
1. As expectativas e os ruídos no ensinodas ciências criminais'
A paixão pelas ciências criminais, que pode ser identificada nos olhos
dos alunos nos primeiros dias de aula na Faculdade de Direito, invariavelmenteé explicada, na esteira da epígrafe de Roberto Lyra, pelo pulsante conteúdo das
investigações, pelo envolvimento da matéria com o trágico do humano.
Durante o longo período do aluno na graduação, além do direito penal,
talvez apenas o direito de família apresente problemas tão fortes desde o ponto de
vista dos afetos, problemas que envolvem enormes cargas de emotividade e que
ultrapassam adiscussão entre aspartes em conflito, transferindo-se aos operadores
do direito. Rompidos estes limites, o profissional submerge no caldo cultural que o
1. As conclusões expressas no artigo são frutos da pesquisa intituladaMal-estarna cultura
punitiva, realizada junto ao Mestrado em Ciências Criminais da PUC- RS (instituiçãofinanciadora).
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Ensino e aprendizado das ciências criminais no século XXI
constitui e nota que a pureza do direito é limitada apenas aos que renegam avida
e a condição humana do humano.
O interesse pelas ciências criminais surge na maioria das vezes em decor-rência destas situações-limite trazidas à discussão no palco processual e acadêmico.
Não invariavelmente oscasos penais dão visibilidade àsviolências que negam aidéia
Moderna de civilização, defrontando o homem com o bárbaro que nele habita em
silêncio, pronto para, a qualquer momento,irromper. São situações caracterizadas
pela violência, pelo abuso da força e pelos excessos de poder que geram fascínionos jovens estudantes de Direito.
No entanto a experiência docente tem demonstrado que no decorrer da
Faculdade os alunos vão abandonando o entusiasmo pelas ciências criminais
- quando não abandonam o próprio curso de Direito - e, em casos específicos e
traumáticos, nada de paixão resta, apenas mágoa e decepção.
Muitos autores referiram, e atualmente é consenso no meio acadêmico, a
necessidade de o ensino e apesquisa jurídica adequarem-se ao novo milênio. Novas
pedagogias e novas metodologias de ensino surgem a todo o momento, no ritmo
acelerado característico da era da informática e da comunicação em tempo real.
No entanto, para além do debate sobre as técnicas pedagógicas e disciplinares,
entende-se fundamental investigar o ruído existente na comunicação entre os corpos
docente e discente, ou seja,tentar compreender qual a dificuldade (ou inabilidade) do
professor contemporâneo em fazer-se entender, em demonstrar interesse, em entu-
siasmar seu aluno. A questão torna-se importante no campo das ciências criminais
em face de a matéria ser,por si só, apaixonante. Assim, a interrogação que persiste é
sobre o motivo pelo qual a estrutura de ensino, ao invés de acolher, repele o aluno.
Inúmeros pontos de reflexão podem ser apontados, desde a questão epis-
temológica ao conteúdo programático das matérias. Alguns serão debatidos com
objetivo de apontar saídas ou caminhos alternativos à crise do ensino das ciências
criminais, pensando, acima de tudo, em facilitar a comunicação entre professor e
aluno no alvorecer do século XXI.
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Sala de Carvalho
2. A fragmentação do ensino das ciências criminais:direito penal e criminologia
o marco referencial das ciências criminais da Modernidade é, inega-
velmente, a obra Dos delitos e das penas, de Beccaria, que não apenas delineia a
principiologia humanista do direito penal e processual penal, mas realiza sua
adequação com a filosofia política do contratualismo. Legalidade dos delitos,
proporcionalidade das penas,jurisdicionalização dos conflitos a partir do devido
processo legal e da presunção de inocência são temas reiterados na tentativa de
aniquilar a base inquisitória do direito penal e processual penal pouco harmônica
com os ideais das luzes.
Após o desenvolvimento das disciplinas penal e processual no século
XVIII, com o fomento da técnica realizado pela Escola da Exegese francesa à
formulação de lhering no Espírito do direito romano, nasce, no plano geral do
direito, a Ciência Dogmática identificada como modelo cognitivo cuja tarefa
seria sistematizar conceitualmente a interpretação das normas estatais (objeto de
pesquisa e trabalho). Todavia, diferentemente dos demais ramos do direito que
se desenvolveram sob a perspectiva dogmática, as ciências criminais, no final do
século XIX, foram colonizadas pela nascente criminologia, a qual, desde o marcodo positivismo etiológico, reivindicou para si o estatuto científico do estudo do
crime e da criminalidade.
Na disputa pelo estatuto teórico das ciências criminais, direito penal e
criminologia provocaram a primeira ruptura do projeto integrado proposto pelos
penalistas do Iluminismo. Com a entrada em cena do homo criminalis e o decor-rente deslocamento do estudo abstrato das leis penais para os processos causais
que determinaram o delito, a criminologia é autonomizada. Assim como odireito,
no âmbito das humanidades, a partir da construção dogmática, a criminologia,
com a proposição lombrosiana adequada ao empirismo das ciências naturais,
reivindicavam o status de ciência.
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Ensino e aprendizado das ciências criminais no século XXI
o confronto no âmbito das epistemologias induziu a readequação do
quadro geral das ciências criminais. Todavia a euforia dos resultados e a expectativa
decorrente da criação da ciência criminológica não foram compatíveis com o localque lhe foi reservado no rol das enciclopédias penais.
A (re)organização disciplinar das ciências criminais encontrou em dois
modelos estrutura adequada que permitiu ao direito penal atingir o grau de
cientificidade alcançado pelos demais ramos do direito, notadamente o direito
civil. Franz Von Liszt eArturo Rocco serão os responsáveis pela sistematização eintegração das matérias penal, criminológica e político-criminal. A prolusão de
Sássari (Rocco) e a proposição da ciência penal conjunta (Liszt) apontam para
sistematização eminentemente jurídica das matérias através do pensamento de
lhering, com algumas concessões ao pensamento criminológico.
Com o objetivo explícito de estabelecer as condições de aplicabilidade
judicial do direito, a dogmática penal- organizada a partir da tripartição teoria
da lei, teoria do delito e teoria da pena -, elaborada e conduzida por intérpretes
privilegiados (dogmática superior), harmonizaria o materiallegislativo de forma
a propiciar ao operador do direito (dogmática inferior)? critérios seguros de
aplicabilidade. Desta forma, caberia à doutrina penal, através dos instrumentos
interpretativos fornecidos pelas teorias das fontes, (a) diagnosticar lacunas e
antinomias e (b) proporcionar critérios de integração e colmatação, assegurando
estabilidade ao cotidiano forense (segurança jurídica). Apontadas as falhas do
sistema jurídico penal pela dogmática (crítica de lege lata), a política criminal
estaria responsável pelo aprimoramento do materiallegislativo, projetando o novo
direito penal (crítica de legeferenda).
A investigação criminológica neste modelo foireduzida à intervenção punitiva.
Localizado nos cárceres,o laboratório criminológico sustentado pelamatriz determi-
2. Os termos "dogmática superior" e "dogmáticainferior" são apropriações livres dos conceitos
de Ihering e correspondem, na tradição européia, à idéia de "jurisprudência maior" e "jurispru-
dência menor".
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Saio de Carvalho
nista forneceria elementos acercadograu depericulosidade dos réus edos condenados,
elaborando a pedagogia de reforma e adaptação do homo criminalis à sociedade.
A ciência penal integrada, portanto, na versão de Liszt ou de Rocco, privi-legiou o saber dogmático e formal, relegando ao posto de ciência auxiliar qualquer
saber diverso que ousasse investigar o fenômeno crime.
3. O local do sabercriminológico oficial
o saber criminológico.derivado do positivismo naturalista e etiológico da
escola italiana de Lombroso, Ferri e Garófalo, será recepcionado pelos modelos
integrais na qualidade de ciência coadjuvante. Assim, o local de fala da crimino-
logia é o de auxiliar a ciência principal (direito penal), fornecendo elementos de
sustentação e legitimação.
Não por outro motivo esta criminologia oficial será fixada no âmbito da
atuação dos órgãos de administração do sistema punitivo, ganhando, neste espaço,
alta funcionalidade e redimensionando seu poder. Neste aspecto, a tese de Foucault,
no sentido de que o perito criminólogo substitui a atuação do magistrado, con-
dicionando a decisão judicial aos seus postulados, é absolutamente pertinente.'
As premissas da criminologia etiológica atuarão, nos sistemas de interpretaçãoe valoração das provas nos processos de execução - e em determinados casos nos
processos de cognição (v.g. exames de periculosidade nos incidentes de insanidade
mental) -, como valorações hierarquicamente superiores, vivificando os sistemas
inquisitórios das provas legais tarifadas.
O laboratório criminológico, portanto, definirá as regras e os critérios queconduzirão o processo pedagógico de regeneração do criminoso submetido às
penas prisionais (imputável), às medidas de segurança (inimputável psíquico) ou
às medidas educativas (inimputável erário).
3. Neste sentido, conferir FOUCAULT, Vigiar epunir, pp. 164-172; e FOUCAULT,
Os anormais, pp. 03-68; 137-210.
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Ensino e aprendizado das ciências criminais no século XXI
Em termos teóricos, estacriminologia administrativa altamente impregnada e
comprometida com osfinsestabelecidos pelas agências depunitividade (instrumenta-
lidadeinstitucional), seráfortalecida pelas teorias deDefesa Social(Filippo Gramatica)edeNovaDefesa Social (MarcAncel). Paradoxalmente, apesar de sustentarem oposi-
tivismocriminológico, asteorias defensivistas sãoapresentadas aopúblico consumidor
do sistema penal como teorias humânizadoras, de oposição aos modelos ilustrados
retributivistas. Nesta condição, configurarão asreformas dos principais ordenamentos
jurídico-penais e das agências punitivas ocidentais do pós-Guerra.
4. A "outra"criminologia
Paralelo ao desenvolvimento da criminologia institucional fortemente mar-
cada pelo processo de colonização das ciências criminais pelos saberes psiquiátrico
e psicológico comportamental, o discurso sobre o crime e a criminalidade realiza
percursos alternativos. Nota-se, assim, que aunidade do pensamento criminológico
nunca existiu, pois logo após seu surgimento inúmeras e diferenciadas correntes
foram desenvolvidas.
Desta forma, importante pontuar que, diferentemente das disciplinas
dogmáticas atreladas ao formalismo (dogmatismo), não houve (sequer há) pa-dronização, ou seja, inexiste 'a' criminologia. Há criminologias, entendidas como
pluralidade de discursos sobre o crime, o criminoso, a vítima, a criminalidade, os
processos de criminalização e asviolências institucionais produzidas pelo sistema
penal. A premissa permite, inclusive, sustentar a fragilidade epistemológica de
qualquer discurso criminológico que se pretenda científico, visto não ser factível avisualização dos pressupostos mínimos que possam auferir esta qualificação - v.g.
unidade e coerência metodológica, definição de objeto, delimitação de horizontes
de pesquisa, direcionamento teleológico das investigações.
A conclusão é possível pois se as primeiras décadas do século XX assistem
à redefinição do determinismo etiológico e a (relcolocação da criminologia no
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Saio de Carvalho
patamar da auxiliaridade, fenômeno eminentemente europeu, ao mesmo tempo,
nos Estados Unidos, este período é surpreendido pelo que se convencionou deno-
minar r up tu ra c rim ino lógica (Rosa del Olmo), fenômeno que evidencia asferidas
narcísic as d o d ire ito p enal.
A partir da enunciação de Durkheim em 1895 (As regras do m étod o so cioló-
gico) de ser o crime experiência normal no convívio social- "el crimen es normal
porque una sociedad sin elescompletamente imposible'" -, são criadas condições
de possibilidade ao giro criminológico (crim in olo gic al tu rn ).Baratta sustenta com precisão que, com a teoria estrutural-funcionalista
de Durkheim, e a partir dele Merton, ocorre a virada sociológica da criminologia
contemporânea, constituindo "(... ) a p rimeira alternativa clássica à concepção
dos caracteres diferenciais biopsicológicos do delinqüente e, por conseqüência, à
variante positivista do bem e do mal."5
Associado à idéia de serem o crime e o desvio condutas normais em
qualquer estrutura social, inexistindo organização isenta de tais fenômenos ("o
delito faz parte, enquanto elemento funcional, da fisiologia e não da patologia
da vida social", sendo negativo apenas quando ultrapassados determinados li-
mires)," Durkheim e Merton possibilitam radical crítica ao modelo etiológico.
A negação da pesquisa das causas do desvio nos fatores bioantropológicos enaturais (clima, raça), ou em determinadas situações patológicas da estrutura
social, abre espaço para o nascimento de novos discursos, desvinculados das
concepções causal-deterministas e, conseqüentemente, dos seus efeitos deletérios
aos sujeitos criminalizados.
Ocorre que se é possível criticar a criminologia positivista-etiológica por
(a) estar demarcada pelos saberes sanitaristas psiquiátricos e psicológicos, (b) ter
adquirido feição essencialmente institucional; (c) reproduzir concepção patológica
4. DURKHEIM , Las regIas de! método sociológico , P:86.
5. BARATTA , Crim in o logia crít ica e c ríti ca do dir eito penal, P:59.
6. BARATTA, Criminologia .. . , p. 60.
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Ensino e aprendizado das ciênciascriminais no século XXI
do crime e do criminoso e, em decorrência, (d) operar sua dernonização; parte do
discurso crítico derivado do giro criminológico padecerá por (a) estar colonizado
pela sociologia, (b) não ter rompido com a institucionalização do saber, vistoque seu local acadêmico é igualmente institucional, (c) reproduzir igualmente
perspectivas causal-deterministas - não individuais como o modelo etiológico
(microcriminologia) mas estruturais como os econômicos - e, em conseqüência,
(d) realizar a romantização do criminoso."
Ademais, importante perceber que a ruptura criminológica propor-cionada pela teoria do etiquetamento não produziu, como desejado, a supe-
ração do positivismo etiológico. Possível sustentar, inclusive, como ingênua
a crença de serem irreversíveis e indiscutíveis as conclusões advindas do novo
paradigma. Tais assertivas são funcionais apenas para a legitimação do saber-
fazer da criminologia crítica. Contudo não possibilitam verificar que o espaçocriminológico crítico restou limitado à academia, e a criminologia tradicional,
ao ser relocada ao interior das instituições operacionais do sistema punitivo
(instituições policiais, prisionais e manicorniais), apesar de implicar perda de
status, conquistou privilegiados espaços de poder. Poder que produz e reproduz
efeitos na vida forense.
5. A fragmentação da criminologia e o ensino formal
A inexistência de um único saber criminológico, desde sua origem desenvol-
vido, estabilizado, criticado, superado e novamente compartilhado pelos membros
da comunidade científica (de criminólogos) - hipótese das revoluções científicasmodernas trabalhada porThomas Khun" - gerou, no ensino acadêmico (formal)
da criminologia, problemas de difícil superação.
7. Sobre o tema do idealismo e do romantismo, bem como em relação à crítica à inversão dos
postulados positivistas, conferir LARRAURI, La h erenc ia d e Ia c rim in olo gia c rític a, pp. 156-191.
8. KHUN ,A es tru tu ra d as r eu olu ções aentificas, pp. 219- 224.
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SaIo de Carvalho
Os primeiros problemas derivam do percurso apresentado como história
oficial da criminologia. Ao pressupor o avanço linear da técnica criminológica,
concebido a partir da idéia de que novas teorias sucedem padrões de investigação
defasados e que os novos modelos são necessariamente mais avançados em termos
científicos, restou esquecido o fato de que as teorias e os inúmeros processos de
conhecimento (inclusive não científicos) acerca de determinados temas coabitam,
coexistem simultaneamente e são compartilhados no fluxo histórico. Ademais,
mesmo quando há efetivamente superação de sistemas e de estruturas de pensa-
mento, as novas "estruturas emergem lentamente", para utilizar a terminologia
de Cordero, ao referir o processo de edificação do sistema inquisitório medieval
a partir do Concílio de Verona, em 1184.9
Nítido, pois, que não é possível sustentar, visto não ser factível, a superação
e a substituição dos modelos deterministas de análise do indivíduo que cometeuo delito (paradigma etiológico) pelas concepções críticas de avaliação dos pro-
cessos de criminalização (paradigma da reação social) . E isto inclusive no âmbito
acadêmico.
Na atualidade seconstata a coexistência de inúmeras tendências derivadas
do pensamento crítico, que intentam superar a crise deflagrada na década de 90, com
oque sepoderia denominar neurocriminologias, concepções etiológicas derivadas
das neurociências que adquirem cada vez mais espaço e força nas instituições.
Contudo a história oficial do pensamento criminológico reproduzida nos
manuais e nos programas de ensino acaba por limitar o avanço das investigações
à superação da etiologia.
O segundo problema é relativo à limitação do ensino da criminologia a este
percurso, ou seja,invariavelmente o conteúdo transmitido é o da gradual superação
de modelos por escolas e teorias criminológicas. Em outros termos, o ensino da
criminologia érestringido à cansativa descrição da história da criminologia ou das
9. Cordero, Cuida alia procedura pena/e, p. 46.
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Ensino e aprendizado das ciências criminais no século XXI
teorias criminológicas, não conquistando espaço como recurso interpretativo dos
sintomas (individuais, sociais, institucionais) contemporâneos.
A conseqüência, para além da manutenção das idéias deterministas, é
a debilidade das instituições de ensino em formar e desenvolver pensamento
criminológico com capacidade de crítica nos seguintes planos: (a) crítica
interna ao modelo integrado, voltada aos saberes dogmáticos que sustentam o
direito penal e o direito processual penal; (b) crítica externa do modelo integrado,
direcionada à atuação das instituições punitivas (agências policiais, judiciais
e carcerárias) e à política criminal que legitima este agir; (c) crítica externa ao
modelo integrado, apontada ao saberes não criminais que legitimam os saberes
criminais (discursos político-econômicos, agenda dos meios de comunicação,
manifestações literárias e expressões artísticas em geral, eruditas e populares);
(d) autocrítica, dirigi da aos próprios saberes que se desenvolvem no âmbito
das inúmeras criminologias.
Não obstante qualquer pretensão cartesiana de propor métodos de ensino
das ciências criminais, importante assinalar a necessidade de suscitar opensamento
criminológico na condição de ferramenta de leitura da realidade. A criminologia,
portanto, enunciada como recurso interpretativo dos sintomas contemporâneos
e não como método ou técnica para estudo dos seus objetos referenciais (crime,criminoso, vítima, sistema criminalizador) ou como objeto mesmo de estudo,
confundindo-se ahistória da criminologia com a criminologia mesma. Necessário,
pois, avançar no sentido de pensar com a criminologia e não restar limitado à sua
descrição histórica e/ou ao desenvolvimento de suas principais teorias.
6. Os domínios e as fronteiras dos saberes penale criminológico
o estudo do delito como ente jurídico e a limitação das hipóteses cri-
minalizadoras exclusivamente à lei penal (nullum crimen, nulla poena sine lege
praevia, scripta, stricta) - a maior conquista do direito penal da Modernidade em
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Sala de Carvalho
termos de garantias individuais, apesar do caráter meramente retórica assegurado
pelo princípio da legalidade'? -, consolidaram-se, após o ataque do positivismo
criminológico, como epicentro dos estudos e das investigações da dogmática
penal. A partir da legalidade foram estabelecidos os critérios e os requisitos que
justificariam apontar a responsabilidade criminal e, em conseqüência, sancionar
o autor do fato criminoso.
Desta forma, por mais sofisticada que seja a dogmática do direito penal
contemporânea, as fronteiras do seu saber são rígidas e limitadas à estrutura dateoria da lei penal (precondição da existência do crime), da teoria do delito (de-
limitação dos requisitos de atribuição de responsabilidade penal) e da teoria da
pena (aplicação e execução da conseqüência jurídica do delito). E no universo da
estrutura tripartida da dogmática penal, as principais investigações do século:XX
ocorreram na teoria do delito, acontecimento natural em facede a teoria da tipicidade
englobar o estudo da legalidade e de a teoria da pena estar vinculada ao juízo de
culpabilidade.
Assim, o horizonte de análise do direito penal não transpassa o estudo do
crime entendido como conduta (comissiva ou ornissiva) típica, ilícita e culpável,
cuja conseqüência é a imposição da sanção. E por mais díspares que sejam as
perspectivas dos teóricos do direito penal ao estabelecer distintos critérios de inter-
pretação, bem como por mais diferenciados que sejam os efeitos político-criminais
destas interpretações em matéria de aumento ou diminuição da criminalização e
da punibilidade, em sua integralidade operam na estrutura rígida das teorias do
delito e da pena. A evolução da teoria da conduta com superação do causalismo
pelo finalismo de Welzel e as projeções realizadas atualmente pelos distintos mo-delos funcionalistas, p. ex., por mais que alterem a forma de conceber os requisitos
de auferição da responsabilidade penal, não ultrapassam os rígidos limites das
categorias conduta, tipicidade, ilicitude e culpabilidade.
10. Neste sentido, conferir as importantes lições de CUNHA, O caráterretó rico do prinCípio da
legalidade, pp. 59-132; WARAT, In tro dução geral ao direito I, pp. 169-230.
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Ensino e aprendizado das ciênciascriminais no séculoXXI
É possível afirmar, portanto, que a dogmática penal adestrou seu objeto
deestudo,adquirindo ao longo do século XX pleno domínio sobre a sua estrutura
eoseuconteúdo.A criminologia, porém, em decorrência da fragmentação interna e do
desenvolvimento de inúmeros discursos com matrizes epistemológicas distintas
( v . g . antropologia, sociologia, psicologia, psiquiatria, psicanálise), diferentemente
dodireitopenal, não logrou delimitar unidade de investigação. A pluralidade de
discursoscriminológicos, com a conseqüente diversidade de objetos e de técnicas
depesquisa,tornou ilimitadas aspossibilidades de exploração, podendo voltar sua
atençãoao criminoso, à vítima, à criminalidade, à criminalização, à atuação das
agênciasde punitividade, aos desvios não criminalizados e, inclusive, ao delito e
aopróprio discurso dogmático.
Singela experiência de laboratório pode auxiliar a anamnese.
Freud, em dois momentos esplêndidos de sua obra, desenvolve a teoria do
criminosopor sentimento de culpa, exposta nos textos Vário s tipos de caráter descobertos
naprá tica ana lítica (1916) e Dostoyevski e oparr icídio (1927). Centra sua análise
napossibilidade de o autor do crime buscar, com a prática do ilícito, sanção penal
redentora, alívio psíquico. A hipótese freudiana é a de que o sujeito sofre pesaro-
sosentimento de culpa, de origem desconhecida (inconsciente), precedente ao
crime,e que "( ... ) una vez cometida una falta concreta sentia mitigada Ia presión
deimismo. El sentimiento de culpabilidad quedaba así, por 1 0 menos, adherido
aalgotangible."l1
A criação freudiana possibilitou a interdisciplinaridade nos estudos sobre o
crimeefomentou produção teórica de importantes autores das ciências criminais.Veja-se,por exemplo, a título de importante registro histórico, as pesquisas no
Brasilde Porto-Carrero - Crim inologia e Psychanalyse, 1932 - e, na Espanha, de
JiménezdeAsúa - Valor de Iapsico log ía pro funda (psicoaná lis is y psicología individual)
11. FREUD, Varias tipos de caracter descubiertos en Ia labor analitica, p. 2.227.
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en Cienc ia s Penale s, 1935. Ademais, abriu espaço para explorações posteriores nas
diferentes áreas da psicanálise - v.g., pela importância na história da psicanálise,
Lacan, In tro du çã o te óric a à sfu nçõ es d a p sic an álise em crim in olo gia eprem issas a todo
desenvo lvim e nto p ossível d a crim in olo gia , ambos de 1950.
A pluralidade de discursos e a ausência de fronteiras do saber criminológico
permitem perfeitamente o diálogo com a psicanálise e a incorporação de suas crí-
ticas na análise dos fenômenos criminais. No âmbito da criminologia a interface é
perfeitamente lícita e os resultados obtidos permitem o desenvolvimento comumde ambos os saberes. Contudo a inserção da categoria psicanalítica inconsciente no
direito penal, sobretudo na teoria do delito, desencadearia processo que poderia
levar a dogmática penal ao esfacelamento.
Em decorrência de ateoria do delito, independentemente do modelo teórico
de eleição, trabalhar como pressuposto da responsabilidade penal a conduta hu-
mana consciente'? - mesmo no crime culposo (culpa consciente ou inconsciente)
ou nas hipóteses de erro há pelo sujeito definição finalística, embora não neces-
sariamsnte delitiva, do seu agir -, a inserção da possibilidade de o autor do crime
agir sob influência, impulso ou causa inconsciente geraria a inadmissível hipótese,
desde o domínio da teoria penal, da ilegitimidade da intervenção penal punitiva.
Ao ser inadmissível a atribuição da sanção desprovida do qualificativo consciência
-escolha livre e consciente da ação e,por conseqüência, adesão ao resultado jurídico
da conduta -, o diálogo com a psicanálise resta obstaculizado. À dogmática penal,
12. Cirino dos Santos, ao expor as hipóteses de ampliação da responsabilidade penal para
pessoas jurídicas, permite verificar que em todos os modelos teóricos o comportamento hu-mano é qualificado pela consciência e pela vontade: "o conceito de ação, como fundamentopsicossomático do crime, ou substantivo qualificado pelos adjetivos da tipicidade, da antiju-ridicidade e da culpabilidade, representa fenômeno exclusivamente humano (...), segundoqualquer teoria: a) para o modelo causal, a ação seria comportamento humano voluntário(Mezger); b) para o modelo final, a ação é acontecimento dirigido pela vontade conscientedo fim (Maurach/Zipf eWelzel); c) para o modelo social, a ação representa comportamentohumano de relevância social dominado ou dominável pela vontade (JeschecklWeigend);d) para o modelo pessoal, a ação constitui manifestação da personalidade (Roxin) etc."
(SANTOS, Direito penal, p. 433-434).
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presa aos domínios da razão e da consciência, é inacessível o saber psicanalítico.
A abertura interdisciplinar neste nível colocaria o saber penal na crítica situação
de confissão da inconsistência dos seus pressupostos.Não se quer afirmar, porém, com a experiência de laboratório realizada,
a absoluta inviabilidade do diálogo entre direito penal e psicanálise, ou ainda a
maior ou menor qualidade científica do saber penal ou criminológico. O objetivo
é apenas apontar as diferenças do proceder exploratório criminológico e penal e
as.possibilidades e os níveis de abertura interdisciplinar.
7. A fragmentação do ensino das ciências criminais
Se for possível direcionar a lente investigativa à invenção do discurso cri-
minal da Modernidade, procurando não incorrer no tradicional apego romântico
ao projeto liberal, constata-se que mesmo projetos com distintas bases políticas efilosóficas de sustentação apresentam, em suas propostas originárias, concepção
conjugada de ciências criminais. Direito penal e direito processual penal, em
aperfeiçoamento, e criminologia e política criminal, de forma prototípica, en-
contraram-se no mesmo espaço de saber, possibilitando sofisticada interlocução
e crítica recíproca.Note-se, de forma exemplificativa, que osdiversosprojetos político-criminais
expostos na Ilustração - Beccaria (Dos delito s e daspenas, Itália, 1765) ,Marat (P la no de
legislação Criminal, França, 1780) eFeuerbach (T ra ta do de d ireito penal comum vig en te
naAlemanha,Alemanha, 1801) -,integravam àdeterminada concepção sobre o agir
delitivo respectivo modelo de resposta penal e de instrumentalização processual.
Assim, antes de Liszt ou de Rocco, privilegiando as disciplinas dogmáticas, ou de
Gramatica e de Ancel, privilegiando a criminologia, a integração harmônica dos
saberes está proposta na constituição da Modernidade penal.
A (rejconstrução da criminologia a partir do método causal-explicativo
com a transposição das premissas das ciências naturais para o estudo atomizado
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do homo criminalis (objeto), aliada à pretensão científica do direito e do processo
penal com os avanços da dogmática desde lhering, produziu, no final do oitocentos,
fissura no projeto Ilustrado. Criminologia e dogmática penal são autonomizadase os caminhos das disciplinas seguem trajetos distintos.
Contudo o discurso dogmático-penal, desde o local privilegiado de fala
sobre o fenômeno crime entendido como ente jurídico, captura a matriz crimino-
lógica de orientação etiológica e, na composição dos novos modelos integrados,
impõem-lhes o signo da auxiliaridade. Não por outro motivo Liszt e Rocco pro-põem prontamente plano reativo - v.g . que em Rocco o projeto é denominado
reação tecnicista - para a (relunificação das matérias. Cabe, portanto, a este saber
criminológico a atuação institucional no âmbito dos cárceres e manicômios para
o estabelecimento de diagnósticos e prognósticos sobre a delinqüência individual.
Na condição de ciência menor (auxiliar), é definida a meta de, ao individualizar
penas e medidas de segurança,justificar a estrutura do direito penal, sobretudo dos
fins estabelecidos às penas. No caso,fornecer elementos concretos para aprofilaxia
criminal proposta pelas teorias de prevenção geral positiva.
Por outro lado, distante da lógica psiquiatrizante da criminologia institu-
cional e da descaracterizadora subordinação ao direito penal, os demais discursos
criminológicos encontrarão nas ciências sociais importantes instrumentos de
análise do fenômeno crime. Alheio aos limites impostos pela dogmática penal,
o próprio objeto de investigação será ampliado, englobando não apenas o delito
enquanto ente jurídico subordinado à legalidade (nullum crimen, nulla poena sim
legem), mas as condutas desviantes em geral e, posteriormente, com a consolida-
ção do saber criminológico crítico, os processos de criminalização e a atuação das
agências de punitividade.
O cenário das disciplinas criminais a partir das primeiras décadas do
século XX apresenta, portanto, distinta configuração daquela originalmente
elaborada pelos pensadores da Ilustração penal. Não por outro motivo lembra
Munõz Conde que "desde que, hace casí un siglo, Franz Von Liszt propugnara
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1 0 que élllamó gesamte Strafrechtswissenschaft que abarcara todos los aspectos
científicos relativos al delito y sus consecuencias, poco se ha avanzado realmente
en Iaconstrucción de este modelo concebido más como aspiración ideal que comoalgorealizable en la práxis."13
Perceptível, portanto, que o direito penal, fortalecido pela matrizepistemoló-
gicadogmática das ciênciasjurídicas em geral, desenvolve saber autônomo epróprio,
altamente sofisticado, sobretudo na teoria do delito. Desde a teoria do crime serão
estabelecidos os critérios e os pressupostos da responsabilidade penal, a partir datipicidade, categoria predeterminada pela legalidade. As teorias da pena, por suavez,
fornecem legitimidade aojustificar a intervenção penal, sendo a execução oponto de
convergência e abertura à auxiliaridade criminológica. Nota-se, pois, o isolamento
dadogmática das demais ciências, gerando saber auto-referencial, circunscrito a si
mesmo - "todo 1 0 que está más allá de Iasprevisiones jurídicas, es soslayado,cuandono olímpicamente despreciado, como irrelevante o carente de interés."!'
A criminologia , fragmentada em criminologia institucional e criminologia
dareação social (/abell ing theory), desenvolve duas linguagens distintas, adequadas
aoestudo de fenômenos diferenciados. A crim ino log ia positivista , vinculada ao direi-
topenal dogmático, estabelecerá critérios de classificação tipológica ede definiçãodos meios adequados para correção do criminoso; a crim in ologia da r ea çã o so cia l
(anticorrecionalista), em harmonia com as teorias sociológicas - fundamental-
mente apartir das teorias sociológicas do desvio norte-americanas -, desenvolverá
investigações que fornecerão condições de possibilidade à criminologia crítica,
entendida como discurso macro-criminológico de análise do funcionamento(seletivo e estigmatizante) das agências de punibilidade.
O desenvolvimento de distintos discursos criminológicos, com diversa
adequação disciplinar e diferentes finalidades, gerou perspectivas díspares na
13. MuNOZ CONDE, Prólogo, p . XVI.
14.MuNOZ CONDE, Prólogo, p . XVI.
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área política criminal. A dependência da política criminal à instrumentalidade
criminológica e/ou jurídico-penal produziu movimentos conflitantes que são
refletidos nos discursos cotidianos relativos à aderência ou ao desprendimento
dos processos de criminalização. Logicamente esta dependência acaba sendo
reivindicada pelos discursos criminológicos e penais, visto que na realidade
concreta das tendências (des)criminalizadoras contemporâneas, sobretudo em
países periféricos como o Brasil, a política criminal, face ao filtro realizado pelo
processo político, é autônoma eguarda pouca coerência com as pautas elaboradas
pelas disciplinas científicas.
Outrossim, oprocesso penal, em decorrência do desenvolvimento da teoria
geral do processo, foi integrado e remetido a outra esfera de saber, alheia à dis-
cussão penal, criminológica ou político-criminal. Desgarrado do seu campo de
• origem, foi reformatado no que tange aos seus fins e aos seus limites, perdendo a
dimensão epistemológica das ciências criminais. Não por outro motivo o discursototalizante da teoria geral do processo, assim como procedeu a dogmática penal
em relação à criminologia institucional, reduziu o processo penal a um saber
menor, desqualificado, dependente da matriz e das bases fornecidas pelo direito
processual civil.
8. As possibilidades de reconstruçãodas ciências criminais
A desagregação das disciplinas que compõem as ciências criminais gerou
incapacidade de diálogo e de desenvolvimento simétrico de institutos. Ademais,
inviabilizou a diluição da crítica criminológica no interior das disciplinasdogmáticas, reforçando na criminologia institucional e no direito penal a pers-
pectiva correcionalista.
Portanto, para além das disciplinas dogmáticas (direito penal e direito
processual penal), o processo de fragmentação impossibilitou a consolidação da
criminologia enquanto ciência face à pluralidade de discursos que sustenta (dos
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discursos criminológicos de ruptura aos discursos de legitimação do sistema penal).
Motivo pelo qual, na atualidade, constitui campo de pesquisa interdisciplinar no
qual deságuam os mais diversos saberes, científicos ou não.Natural, neste quadro, os efeitos deletérios produzidos no ensino e no
aprendizado das ciências criminais. A fragmentação das disciplinas obstaculizou
a compreensão global dos saberes criminais, fato que gera, no atuar cotidiano dos
operadores do direito - e dos demais atores que participam da investigação do
fenômeno criminal-, incapacidade de compreensão das violências inerentes ao
sistema penal e de criação de instrumentos para minirnizá-las.
Contudo na atualidade é possível perceber, de forma embrionária, pro-
jetos que procuram reconstruir as ciências criminais, auferindo-lhes mínimo de
unidade e de coerência capaz de harmonizar, desde concepções criminológicas e
político-criminais problematizadoras, o direito e o processo penal. Três obras, apartir
deperspectivas críticasdistintas, são exemplares nesta (relconstrução: Fundamentos
do direito penal (Hassemer), Direito e razão (Ferrajoli) e Direito penal brasileiro
(Zaffaroni, Batista, Alagia e Slokar),
Hassemer, em Fundamentos do direito penal, inicia a investigação a partir
de exposição de caso concreto e sua conexão com a lei penal, produzindo inter-
pretações criminológicas dos protagonistas da cena criminal (autor do delito e
vítima), com o objetivo de situar os sujeitos implicados no conflito. Somente depois
desta análise passa à produção do caso desde os elementos fornecidos pela teoria
do direito penal e processual, de forma a criar condições sustentáveis à decisão
judicial condenatória (sentença criminal), cuja conclusão subsiste pelo gradual
cumprimento dos requisitos impostos pela teoria do delito. Por fim, apresenta as
hipóteses de solução do caso fornecidas pelo direito penal, avaliando os efeitos
das teorias da pena na estrutura da execução penitenciária."
15. Conforme verifica Muííoz Conde, na obra Hassemer "expone los fundamentos no solode IaDogmática juridicopenal, sino también de Ia Criminología, de Ia Política Criminal, del
Derecho Procesal penal y del Derecho penitenciario, en ~na feliz síntesis premonitória de
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Direi to e razão , de Luigi Ferrajoli, ancorado na tradição filosófica Iluminista,
estabelece como fio condutor da análise criminológica e político-criminal, penal
e processual penal o princípio da secularização. Assim, a radical separação entredireito e moral estabeleceria limites à criminalização das condutas, à valoração
judicial do réu e às formas de execução penal delineadas pelas teorias da pena. O
ponto de partida que dá sustentação às teorias da lei penal, do delito e da pena,
no âmbito da dogmática penal, e às teorias da ação, da jurisdição e do processo,
no campo processual penal, é o utilitarismo reformado, teoria da pena que agrega
à máxima utilitarista clássica ("maior felicidade") elemento de constrição da pu-
nibilidade ("mínimo sofrimento"), conformando o aforisma "máxima felicidade
possível para a maioria não desviante e mínimo sofrimento necessário para a
minoria desviante". Este pressuposto político-criminal minimalista de redução
do ~ofrimento imposto pelos castigos, fornece a resposta à questão ''po r quepun ir?"
é a chave de interpretação que delineia a elaboração prático-teórica do "quando?"
e "como?" proibir, j ulgar e punir.
Em D ireito penal brasil eiro , ilo Batista traduze introduz na problemática
nacional a obra portefía de Zaffaroni, Alagia e Slokar. A densa avaliação do siste-
ma punitivo e das agências de punitividade é realizada desde o local específico: a
circunscrição latino americana. E, desta forma, permite compreender as distintas
formas de manifestações dopotes ta spunie ndi, sobretudo nos eixos centro-periferia
ou norte-sul, e o equívoco das ciências criminais da América Latina em consumir e
validar modelos repressivos alienígenas. No texto, os autores analisam aincidência
e a projeção do direito penal, descrevendo de forma crítica os métodos, as caracte-
rísticas, as fontes e os limites impostos pela política criminal, sem olvidaras relações
interdisciplinares do direito penal com as disciplinas criminais que conformam os
modelos integrados de atuação (saberes secantes) e destas com os demais saberes
1 0 que puede ser en el futuro un modelo de Ciencia integral del derecho penal" (MuNOZCONDE, Prólogo, p.XIX).
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jurídicos (tangentes). Contudo, apesar de em primeira análise a obra abordar de
forma sutil a questão processual penal, na elaboração da dinâmica histórica da
legislação e na genealogia do pensamento penal, os autores recuperam aanálise dos
instrumentos de persecução que movimentam o direito penal e apontam a inquisitio
como tipo ideal de repressão pela coação direta. Não por outro motivo nominam
oMalleus Maleficarum como obra teórica fundacional do discurso legitimador do
poder punitivo, consolidando, de forma inédita, o primeiro sistema integrado de
criminologia e criminalística com direito penal e processual penal.
As três obras permitem pensar a (rejconstrução, desde perspectiva proble-
matizadora, do modelo integrado de ciências criminais. Suas estruturas trazem,
inclusive, elementos que podem servir de base e de inspiração para as necessárias
alterações curriculares dos programas de criminologia, direito penal e direito
processual penal, os quais ainda sofrem os efeitos da desagregação que dominou
o século XX.
9. O equívoco entre interdisciplinaridadee auxiliaridade nas ciências criminais
A condição mínima para que se possam realizar investigações interdisci-
plinares é dotar os sujeitos interlocutores de condições similares de fala, ou seja,
abdicar da idéia de estar um saber a serviço de outro. Significa, sobretudo, respeito
às diferenças inerentes aos saberes.
A especialização do conhecimento, projeto da ciência Moderna instigado
pelo cartesianismo, pressupõe que o estudo infinitesimal dos objetos de pesquisa
possibilitaria, na sua recomposição, a captura da sua totalidade, o atingimento
pleno da sua verdade. Não por outro motivo a busca cartesiana do verdadeiro
método para a conquista do conhecimento sobre todas as coisas é fundado em
quatro preceitos: (1.o) nunca aceitar algo como verdadeiro se o conhecimento não
for claro; (2.°) repartir cada uma das dificuldades em tantas parcelas possíveis e
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necessárias a fim de melhor solucioná-Ias; (3.°) iniciar a análise dos objetos pelos
mais simples e mais fáceis para, galgando degraus, alcançar o conhecimento pleno
(verdadeiro); e (4.°) realizar enumerações e revisões dos procedimentos para ter
certeza de nada omitir. 16
Ocorre que a necessidade de especialização infinitesimaldo conhecimento
fomentou ahierarquização entre os saberes e, em conseqüência, apressuposição de
que determinadas áreas são ferramentas de auxílio aos saberes mais sofisticados,
supenores.Nas ciências criminais, torna-se evidente a sujeição ao direito penal de
todas as disciplinas alienígenas que investigam o crime, a vítima, o criminoso,
a criminalidade, os processos de criminalização e a atuação das agências de
controle social formal. Todavia este modelo arquitetônico de saber, no qual
o di:-eito penal encontra-se em posição privilegiada, impossibilita a interdis-
ciplinaridade, pois para que esta possa ser atingida prescinde que todas as
disciplinas estejam abertas para críticas advindas do exterior. A incorporação
das críticas exógenas oxigena a área de conhecimento, permite autocrítica e
fomenta seu desenvolvimento.
No entanto o modelo oficial das ciências criminais vislumbra os demais
saberes como servis, permitindo apenas que forneçam subsídios para a disciplina
mestra do direito penal. A arrogância do direito penal, aliada à subserviência das
áreas de conhecimento que são submetidas e se submetem a este modelo, obtém
como resultados o reforço do dogmatismo, o isolamento científico e o natural
distanciamento dos reais problemas da vida.
É interessante perceber, ainda, no caso brasileiro contemporâneo, que a
demanda/imposição de interdisciplinaridade pelos órgãos oficiais de fomento
produziu, em inúmeros casos, a disciplinarização da interdisciplinaridade. Para
além da tensão entre direito penal e criminologia exposta ao longo do texto, alguns
16. DESCARTES, O discurso do método, pp. 49-50.
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exemplos da área do direito podem elucidar a confusão entre interdisciplinaridade
e auxiliaridade nas ciências.
As disciplinas propedêuticas de economia, sociologia, filosofia e, maisrecentemente, psicologia, tornadas obrigatórias por força de lei, inegavelmente
em muito podem contribuir ao estudo do direito. A questão é que estas matérias
constituem campos científicos que não podem ser apreendidos na qualidade de
disciplinas unitárias,isto é, na pretensão de realizar interdisciplinaridade forja-se
estrutura curricular na qual são reduzidas, quando não anuladas, as possibilidades
de interdisciplinaridade. Lédio Andrade, analisando as condições de possibili-
dade do estudo da psicologia no direito brasileiro, lembra que o enfoque restrito
aos laudos periciais que se incluiu quando da alteração das estruturas curricu-
lares, "tolhe o alcance da interdisciplinaridade". Sustenta, em sentido similar
ao proposto, que "o potencial de análise psicológica jurídica [deve ocorrer] não
só nas perícias (quando a autonomia do Direito se mantém e o conhecimento
psicológico é apenas auxiliar), mas, acima de tudo, na compreensão do próprio
fenômeno jurídico."?
O problema é idêntico quando, em cursos não-jurídicos, se pretende
realizar diálogo com o direito criando a matéria de institu ições de dir eito p úblico e
priv ado . Se na atualidade sequer na área específica das ciências criminais épossível
encontrar unidade mínima para elaboração de modelo integrado, menor ainda as
possibilidades de reduzir à unidade as especificidades do universo jurídico, visto
impossível, p.ex., comparar as estruturas do direito civil,do direito penal, do direito
do trabalho ou do direito tributário.
A dogmatização disciplinar da interdisciplinaridade acaba por anular o
diálogo entre as ciências e fomentar, nos casulos autônomos dos saberes burocrá-
ticos, a hierarquização do conhecimento com o desenvolvimento da auxiliaridade
das matérias científicas.
17. ANDRADE, Aproximando a psicologia do direito, p. 173.
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Se é necessário que a formação discente seja interdisciplinar - e na atuali-
dade esta premissa parece ser evidente -, é fundamental se pensar na abertura da
Universidade, com o fomento da livre circulação dos saberes. A estrutura (mínima)curricular dos cursos seria integrada pela possibilidade da livre escolha das áreas de
interesse para formação pessoal. Do contrário, a riqueza da interdisciplinaridade
redunda na pobreza e na mediocrização do conhecimento através da auxiliari-
dade, produzindo-se as patologias que atualmente são verificadas nos cursos de
graduação e o gradual desestímulo dos corpos docentes e discentes para proceder
investigações inovadoras.
10. O obsoleto ensino do Direito Penal
Os estudos realizados sobre o ensino do direito têm demonstrado, à exaus-
tão,ainominável defasagem em termos pedagógicos e a profunda distância entre osaber jurídico e a realidade social. No en tan to, se édado irrefu tável que a formação
do jurista está dissociada das demandas sociais contemporâneas, é fundamental
dizer que este mesmo modelo está desconectado da própria realidade legislativa
que lhe é referente e lhe dá sustentação.
O direito em geral, e o direito penal em particular, padecem do que Ferrajolidenominou como paleopositivismo (positivismo dogmático), orientação teórica
que ignora o conceito de validade constitucional das leis, atribuindo legitimidade
ao ordenamento jurídico pelo simples preenchimento dos requisitos formais de
elaboração legislativa. Ao contrário, a perspectiva crítica refletiria sobre o modo
de conceber o trabalho do jurista, colocando em questionamento dois dogmaspositivistas: a fidelidade do juiz à lei e a função meramente descritiva e não-va-
lorativa do jurista na tutela do direito positivo vigente. Caberia ao jurista crítico,
portanto, desde o loeus constitucional, não apenas sistematizar e reelaborar as
normas do ordenamento vigente, auferindo-Ihes a completude e a coerência que
efetivamente não possuem, mas "(...) esplicarne l'incoerenza e l'incompletezza
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mediante giudizi d'invalidità su quelle inferiori e correlativamente d'ineffettività
su quelle superiori."18
Assumir postura semelhante implicaria profunda revisão da programaçãodo ensino do direito, exposta nos currículos acadêmicos e praticamente na tota-
lidade dos compêndios doutrinários.
Análise superficial de quase atotalidade dos currículos e dos livros didáticos
de direito penal utilizados no Brasil revela situação absolutamente preocupante. Os
programas de ensino, e em decorrência a doutrina que lhes dá sustentação, estão
pensados e estruturados a partir da disposição dos temas e dos institutos apre-
sentados pelo Código Penal. A codificação penal, portanto, determina, inclusive
de forma seqüencial e estabelecendo pré-requisitos, o conteúdo programático do
direito penal. No ensino do direito penal, portanto, o Código Penal atua como
programa didático.
A primeira questão a ser colocada é a da ausência de elaboração do pen-
samento jurídico-penal a partir da Constituição. Diferentemente da seqüência
dada pelo Código, a exploração do direito penal inegavelmente deveria ocorrer
através da garimpagem dos dispositivos constitucionais diretamente implicados
na matéria penal, e daqueles que, de alguma forma, lhe são influentes.
Àguisa de exernplificação, impossível não se iniciar o estudo dogmático do
direito penal pela radical alteração que a Constituição produziu na classificação
das condutas ilícitas. Se antes da Constituição de 1988 era possível trabalhar com
duas classes de condutas penalmente relevantes (crime e contravenção), atual-
mente a matéria foi complexificada, não apenas pela criação de novas categorias,
como a de infrações de menor potencial ofensivo, mas também pela adjetivaçãode determinados delitos (v.g. crimes hediondos). E para cada novo qualificativo
foram determinados efeitos penais, processuais penais e executórios distintos.
Ademais, com acriação das infrações de menor potencial ofensivo caberia inclusive
18. FERRAJOLl,Dirittoeragione,p.921.
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o questionamento da recepção da Lei de Contravenções Penais pela Constituição.
Perceba-se que os efeitos de discussão aparentemente simples são desencadeados
para toda a estrutura do direito penal e do direito processual penal.
O segundo problema que o modelo em vigência apresenta é o de não dis-
tinguir o papel do legislador e o do professor de direito penal, pressupondo que o
produto do trabalho daquele é pensado para a atuação deste. Não há, nem poderia
haver, exigência ao legislador no sentido de que as leis apresentassem coerente
orientação pedagógica, harmonia didática e lógica expositiva. Aos doutrinadores
e aos professores é que cabe a tarefa de sistematizar o materiallegislativo de forma
a apresentar aos acadêmicos a relação e o desenvolvimento dos institutos penais.
Todavia o modelo exegético de interpretação das leis, em grande parte das
academias de direito de tradição romano-germãnica, é apegado ao fetichismo
legalista que pressupõe ser o Código estrutura curricular. Os problemas derivados
deste vício dogmático são indescritíveis, não apenas no que tange ao encobrimento
do texto Constitucional (problema principal), mas no aprendizado da mecânica
do próprio Código Penal.
Para problematização elege-se o estudo da teoria da pena.
Os dispositivos do Código Penal relativos às conseqüências jurídicas do
crime, reproduzidos nos currículos das Faculdades de Direito e nos livros didá-
ticos, são estruturados a partir da enunciação dos fundamentos do iuspuniendi,
procurando estabelecer a opção normativa estatal ao interrogante por quepunir?
No entanto, diferentemente da eleição legislativa da Reforma Penal de 1984,
com a elaboração do Código Penal e da Lei de Execução Penal, a Constituição
não projeta nenhuma finalidade à pena, somente enuncia sanções em espécie,
vedando expressamente qualquer tipo de penas desumanas ou cruéis. Em termos
de teoria da pena, portanto, nota-se o não-reconhecimento constitucional das
tradicionais respostas ao iuspuniendi (teorias retributivas e preventivas, em es-
pecial o modelo ideal da prevenção especial positiva assumido por grande parte
das legislações penais e penitenciárias do século XX). Épossível dizer, inclusive,
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Ensino e aprendizado das ciências criminais no séculoXXI
que a Constituição de 1988 assumiu teoria agnóstica da pena, direcionada à
redução dos danos produzidos pelo potestas puniendi. Perceptível, assim, nas
fundações da penalogia contemporânea, a dissociação do modelo oficial com aformatação constitucional.
Outrossim, se for verificada a estrutura das penas no Código Penal, indis-
cutível haver descompasso com o que se poderia esperar de programas didático-
pedagógicos dotados de lógica mínima. Após o Código Penal enunciar, nos incÍsos
do art. 32, as espécies de pena cabíveis, passa a regrar as formas de execução das
penas privativas de liberdade - reclusão e detenção, regimes prisionais e suas re-
gras, progressão deregime, regime especial para mulheres, direitos do preso, trabalho
prisional, superveniência de doença mental e detração (art, 33 ao art. 42) -, das penas
restritivas de direito - espécies de restrição, requisitos e cabimento, regras da presta-
ção de serviços à comunidade, interdição temporária de direitos e limitação de
final de semana (art. 43 ao art. 48) - e da pena de multa - pagamento, suspensão,
conversão e revogação (art. 49 ao art. 52). Somente a partir do art. 53 define os
critérios de cominação e de aplicação quantitativa das penas - critérios judiciais de
quantificação, atenuantes e agravantes, causas especiais de aumento e diminuição
de penas, concurso de crimes e limite das penas -, definição de regime inicial e
substituição da privação de liberdade (art. 53 ao art. 76).
A ordem exposta, por si só, demonstra a inadequação de utilizar o Código
Penal como fonte inspiradora dos programas das disciplinas. Torna-se evidente
que o ensino da aplicação da pena deve preceder o da sua execução. No entanto o
fetichismo legalista atingiu níveis patológicos nos quais questões simples como
estas não são percebidas.O apego irrestrito à codificação penal gera, ainda, terceiro problema. Desde
a década de 70 do século passado percebe-se a gradual descodificação do Direito
Penal brasileiro. O marco neste processo foi a Lei 6.368/76, revogada pela Lei
11.343/2006, que definiu os crimes de tráfico e porte de entorpecentes para con-
sumo. Todavia, a partir de 1988, quantidade inominável de leis foi criada, fruto do
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Sala de Carvalho
dirigismo constitucional, notadamente em matéria penal. Assim, na atualidade, o
cotidiano forense em matéria penal é em grande parte regrado por leis especiais e
extraordinárias, especialmente no que tange às hipóteses criminalizadoras de bens
jurídicos coletivos e transindividuais. De forma exemplificativa, apenas durante a
década de 90, com conteúdo total ou parcialmente penal, destacam-se: Lei 8.069/90
(Estatuto da Criança e do Adolescente), Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hedion-
dos), Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), Lei 8.137/90 (Crimes
contra a Ordem Tributária), Lei 8.176/91 (Crimes contra a Ordem Econômica),
Lei 8.666/93 (Lei de Licitações), Lei 9.034/95 (Lei do Crime Organizado),
Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais), Lei 9.279/96 (Lei de Propriedade
Industrial), Lei 9.296/96 (Lei de Interceptações Telefônicas), Lei 9.455/97 (Lei
de Tortura), Lei 9.503/97 (Código Brasileiro de Trânsito), Lei 9.605/98 (Lei dos
Crimes Ambientais) ,Lei 9.609/98 (Lei de Propriedade Intelectual de Programas
de Computador), Lei 9.613/98 (Lei da Lavagem de Capitais).Todavia os currículos ainda prevêem disciplinas semestrais ou anuais
exclusivas sobre a parte especial do Código Penal, ignorando totalmente a nova
realidade jurídica. Em determinados casos, a parte especial redigida na década
de 40 tornou-se absolutamente obsoleta face ao processo de descriminalização
judicial e/ou de fato. A questão, porém, parece desconhecida, e o direito penal éministrado como se inexistisse descodificação, fenômeno que vem modificando
o perfil do direito penal no século XXI.
11. O obsoleto ensino do direito processual penal:a captura pelo direito penal e a persistência
da teoria geral do processo
A primeira grande batalha enfrentada pelo direito processual penal foi ade
desvincular-se do direito penal. A própria idéia de direito penal subjetivo (penal)
e adjetivo (processual penal), presente no pensamento penal do início do século
passado, revelava a dependência deste em relação àquele.
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Ensino e aprendizado das ciências criminais no século XXI
Carnelutti, em 1946, apontava com satisfação a separação de ambas asdisci-
plinas no ensino acadêmico. Contudo chamava atenção para o fato de que, em relação
ao direito penal, "(...) ciertamiente hay una inferioridad cuyos signos o símbolos,podríamos decir, son variados y manifiestos.?'? A inferioridade era diagnosticada
desde a quantidade de tempo de ensino universitário dedicado às disciplinas (carga
horária) ao esquecimento da estrutura processual na execução da pena.
Acontece que, seo processo penal logrou conquistar sua independência jun-
to ao direito penal, constituindo-se como ciência autônoma, por força do ingressoe da universalização do discurso da teoria geral do processo nas ciências jurídicas
retomou aposição de inferioridade ede dependência. Carnelutti advoga que "contra
esta situación infeliz llegará, antes o después, el momento de reaccionar'V"
A pretensão científica totalizadora da teoria geral do processo capacita
seu conteúdo desde o processo civil, inferiorizando as diversidades das esferas
processuais. O direito processual penal, portanto, passa a ser interpretado a partir
das categorias do processo civil. Assim, conforme leciona Jacinto Coutinho, a
teoria geral do processo civil, encoberta pela nominada teoria geral do processo,
"penetra no nosso processo penal e, ao invés de dar-lhe uma teoria geral, o reduz
aum primo pobre, uma parcela, uma fatia da teoria geral."21
As conseqüências do processo científico totalizador são perceptíveis no
irrepreensível alerta de Adauto Suannes: "a unificação do processo, defendida
por tantos autores, pode levar, porém, a um tipo de raciocínio equivocado, de
conseqüências desastrosas."22-23
19. CARNELUTTI, La cenicienta, p. 16.20. CARNELUTTI, La cenicienta, p. 18.
21. COUTINHO,A lide e o conteúdo do processo penal, p. 118-119.
22. SUANNES, Osfundamentos éticos do devid o pro cesso penal, p. 136. Sobre o tema, conferir
BAETHGEN, Contra a idéia de uma teoria geral do processo, pp. 35-70 e TUCCI, Conside-
rações acerca da inadmissibilidade de uma teoria geral do processo, p. 85-127.
23. Ao partilhar da crítica, Aury Lopes Jr. enumera inúmeras circunstâncias que, dado ao apri-
sionamento do processo penal pelo processo civil, os direitos e garantias individuais são lesados: "o
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Salo de Carvalho
Éque apesar de a natureza pública ser comum às distintas áreas processuais
- notadamente pela disciplina constitucional da garantia do juiz natural (art. 5.°,
LIII), do devido processo (art. 5.°, LIV), do contraditório, da ampla defesa e doduplo grau dejurisdição (art. 5.°, LV), da inadmissibilidade da provailicita (art. 5.°,
LVI), da publicidade dos atos processuais (art, 5.°, LX) e da fundamentação das
decisões (art, 93, IX) -, a instrumentalidade é definida pela estrutura do direito
material que lhe dá subsistência. O processo civil instrumentaliza, fundamental-
mente, interesses privados (patrimoniais), das partes envolvidas no conflito. Difere,portanto, substancialmente do processo penal cujo objeto é limitar opoderpunitivo
do Estado e garantir os direitos do pólo débil da situação processual penal que é o
réu (processo de cognição) e o condenado (processo de execução).
Em decorrência da diferença dos interesses em jogo, Bettiol demonstra
que "el conflicto entre el ius puniendi y el ius liberta tis no puede ser concebido dei
mismo modo que un litigio privado donde se discute sobre un bien econômico."24
Em síntese, conforme Jacinto Coutinho, "(...) teoria geral do processo é engodo;
teoria geral é a do processo civil e, a partir dela, as demais (...). Inadmissível, isso
sim, é usar no processo penal o mesmo discurso, como se o referencial semântico
fosse igual (e,portanto, desprezando-o), tudo em nome de uma pseudo-coerência
sistêmica que, no final das contas, é sintática e acaba legitimando o status quo, nem
que seja fruto da mais terrível das ditaduras"."
problema égrave, mais grave ainda quando assistimos a imensa parte da doutrina (e,por conseqüênciado ciclo vicioso (senão incestuoso), também da jurisprudência) falando em fumus boni iurise periculum
in mora para as prisões cautelares; defendendo que o objeto do processo penal é a pretensão punitiva
(erro histórico de Binding); invocando o pomposo (mas absolutamente inadequado para o processopenal) pás nulittê sans grief para tratar das nulidades, bem como fazer inadequadas relativizações;
negando 'efeito suspensivo' ao Recurso Especial e Extraordinário (por culpa de uma famigerada
Lei 8.038 pensada para o processo civil); relativizando a competência (esquecendo que no processo
penal o juiz natural é garantia fundante); atribuindo poderes instrutórios ao juiz (ativismo judicial);
lecionando que as condições da ação processual penal são as mesmas do processo civil (...)" (LOPES
J r . , Direito processualpenal e sua conformação constitucional, p . 34).
24. BETTIOL, In stituiciones de derecho penal y procesal, p. 207.
25. COUTINHO,Alid e ... ,p.119.
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Ensino e aprendizado das ciências criminais no século XXI
12. A construção artificial do caso penal
Os estudos advindos da sociologia jurídica e da área sociológica da crimi-nologia apontam que a dogmática jurídica, particularmente a penal e aprocessual
penal, não fornece instrumentos suficientes para minimizar a lacuna existente
entre normatividade e realidade social.
O hiato existente entre o universo jurídico e as expectativas da sociedade,
sobretudo das pessoas envolvidas nos conflitos judicializados, é potencializado pela
construção despótica, fragmentária e fictícia do processo. O caso em julgamento,
portanto, muitas vezes é totalmente outro daquele que foi experimentado/viven-
ciado pelos sujeitos concretos - "o Direito trata não com o fato acontecido, mas
com uma hipótese de como ele aconteceu. Esta hipótese é repleta de subjetividade,
de valores, todos construídos a partir dos envolvidos no processo judicial (...)",
portanto "seu início sempre é uma hipótese já construída a partir da interferência
(objetiva ou subjetiva) de pessoas não envolvidas no fato em si."26Assim, éperceptível
que "(...) Ia distancia entre conflicto real y conflicto procesal, es notoriamente
aumentada en el procedimiento penal (...)" .27
Lembra Baratta" que no laboratório do direito o comportamento indi-
vidual se apresenta como variável independente, limitando-se o processo penal à
construção abstrata que separa o conflito do contexto, empobrecendo-o, pois sua
fragmentação ocorre pelo recorte arbitrário da realidade.
No entanto este efeito perverso da dogmática, revelado r de parte de sua
extensa crise, não pode legitimar atitude cética que levaria inexoravelmente
a abdicar do direito. Neste sentido, o estudo do direito penal, do processo
penal e da criminologia, a partir de casos específicos, com possibilidade de
experimentação - por mais infiel que possa ser o relato -, permitiria a aproxi-
26. ANDRADE,Aproximando ...,p.173.
27. BARATTA, La vida y ellaboratório del derecho, p. 278.
28. BARATTA, La vida..., p. 279.
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Saio de Carvalho
mação dos operadores com a vida concreta e a compreensão dos ricos e plurais
elementos de sua cultura.
13. O fetiche pelajurisprudência
Se desde o ponto de vista externo (social epolítico) a descontextualização do
direito com a realidade social é diagnóstico consensual, do ponto de vista interno à
dogmática jurídica adesconsti tucionalização das normas penais eprocessuais penais
e ajurisprudencialização da Constituição potencializam sobremaneira a crise.
A estrutura do saber jurídico-penal, segundo Luís Roberto Barroso,
padece de patologia denominada interpretação retrospectiva. Segundo o autor,
"(...) as normas legais têm de ser reinterpretadas em face da nova Constituição,
não se lhes aplicando automática e acriticamente, a jurisprudência forjada no
regime anterior. Deve-se rejeitar uma das patologias crônicas da hermenêutica
constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura
interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique
tão parecido quanto possível com o antigo". 29 Neste sentido, lembra Lenio Streck
que "há certo fascínio pelo Direito infraconstitucional, a ponto de se 'adaptar' a
Constituição às leis ordinárias't."
O trabalho da crítica jurídica, portanto, será o de desconstruir este modelo
de interpretação que a doutrina e a jurisprudência têm cotidianamente aplicado,
negando, por conseqüência, a efetividade da Constituição. Assim, o direito (penal e
processual penal), capacitado desde o locus constitucional, otimizaria mecanismos de
frenagem ao excesso punitivo do Estado, à coação direta própria da gestão dos apa-ratos penais reduzindo os danos produzidos aos direitos e garantias fundamentais.
A postura comprometida com os direitos e as garantias das pessoas pres-
supõe, inexoravelmente, a desconfiança do agir dos aparatos punitivos, visto a
29. BARROSO, Interpretação e aplicação da Constituição, P:70-71.
30. STRECK,jurisdição constitucional e hermenêutica, p . 30-31.
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Ensino eaprendizado das ciênciascriminais no século XX I
tendência, sempre presente e real, do abuso do poder pelo atores que o detêm.
Significa ter presente que a constituição do poder repressivo penal é fundada no
inquisitorialismo, de maior ou menor intensidade conforme a maior ou menoradequação constitucional da estrutura do processo penal, e que "inquisição é a
conversão de todo o poder punitivo em coerção direta.'?'
A ruptura com o fetichismo aos julgados e a crítica à sua retroalimenta-
ção pela doutrina parecem ser importantes fatores para que se possam projetar
mudanças na forma de ensino/aprendizado das ciências criminais e de atuaçãotransformadora dos operadores do direito, reduzindo os níveis de inquisitoria-
lidade sempre presentes.
14. A vocação das ciências e das políticas criminais
Em Ciência epolítica: duas vocações, Max Weber converge sua teoria das
ciências às doutrinas positivistas ao adotar o postulado da neutralidade axiológica
das ciências sociais.
Ao indagar sobre a contribuição positiva da ciência para a vida prática, sus-
tenta que os métodos de pensamento fornecidos colocariam "(...) à disposição certo
número de conhecimentos que nos permitem dominar tecnicamente avida por meioda previsão, tanto no que se refere à esfera das coisas exteriores como ao campo da
atividade dos homens."32Neste sentido, os cientistas deveriam, apartir da especiali-
zação disciplinar, expor objetivamente o conhecimento alcançado sobre ascoisas.A
decorrência da concepção científica axiologicamente neutra, ou seja, livre dejuízos
de valor,é a de que o investigador deve estar orientado pela ética de responsabilidade,diferentemente do político que operaria desde a ética da convicção.P
31. ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA, SLOKAR, Dir eito penal brasileir o I, p. 105.
32. WEBER, Ciência epolítica, p. 45.
33. Sobre as distintas conseqüências do agir sob as éticas da convicção e da responsabilidade,conferir WEBER, Ciência ... , p. 113-120.
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Sala de Carvalho
As tentativas epistemológicas de purificar o pensamento científico
dos juízos de valor - e não por outro motivo a base do pensamento jurídico
do século XX é construída por Hans Kelsen em Teoria pura do direito - foramfortemente atacadas, sobretudo a partir da década de sessenta, constituindo-
se, na contemporaneidade, axioma insustentável. A metáfora utilizada por
Michel Lõwy é reveladora: "liberar-se por um 'esforço de objetividade' das
pressuposições éticas, sociais ou políticas fundamentais de seu próprio pen-
samento é uma façanha que faz pensar irresistivelmente na célebre história
do Barão de Münchhausen, este herói picaresco que consegue, através de um
golpe genial, escapar do pântano onde ele e seu cavalo estavam sendo tragados,
ao puxar a si próprio pelos cabelos ... Os que pretendem ser sinceramente seres
objetivos são simplesmente aqueles nos quais as pressuposições estão mais
profundamente enraizadas."34
As ciências criminais, contudo, seguindo a lógica epistemológica do positi-
vismo, seguem cedendo à tentação da neutralidade e à idéia de ser possível produzir
conhecimentos distintos a partir de duas éticas contrapostas (de responsabilidade
e de convicção). Perceptível que a questão no campo criminal fica agudizada em
face de fazer parte do modelo integrado de ciências a política criminal, cuja função
seria a de, a partir dos diagnósticos realizados pela dogmática penal e pela crimi-
nologia, produzir discurso de inserção no âmbito da política. A política criminal,
portanto, seria a produção de convicção a partir dos julgamentos objetivos (ética
da responsabilidade) das ciências criminais.
No entanto, conforme ensina Lõwy, para que o investigador fique livre
dos preconceitos seria necessário, antes de tudo, reconhecê-los como tais. Eesta postura é adversa ao positivismo, pois os pressupostos axiológicos do pes-
quisador " C . . ) não são considerados como tais, mas como verdades evidentes,
incontestáveis, indiscutíveis. Ou melhor, em geral eles não são sequer formulados,
34. LOWY,As aventuras de Karl Marx contra oBarão de Müncbbausen, p . 32.
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Ensino e aprendizado das ciências criminais no século XXI
e permanecem implícitos, subjacentes à investigação científica, às vezes ocultos
ao próprio pesquisador."35
Na teoria penal latino-americana contemporânea exemplo parece eluci-dativo: o fácil consumo da doutrina (científica) de Jak.ob s e a negativa, ao menos
explícita, de sua proposição político-criminal (direito penal do inimigo). Embora
alguns autores realizem aproximações entre a base humanitária do direito e do
processo penal com avertente dogmática do pensamento deJak.obs- notadamente
suas proposições no campo da teoria do delito, visualizando pontos de contato
entre a perspectiva garantista e esta vertente do funcionalismo penal-, visíveis
as incompatibilidades (que refutam tais possibilidades). Acontece que s e efetiva-
mente inconciliáveis as projeções de criminalização no âmbito político-criminal
entre minimalismo (teoria garantista) e maximalismo (direito penal do inimigo),
inexoravelmente os antagonismos serão projetados na esfera científica, isto é, na
estrutura da teoria geral de interpretação da lei penal, do delito eda pena, por mais
que possam estar ocultados por discurso suavizador.
Seaperspectiva do direito penal do inimigo, na esferada política criminal.forja
a reconstrução teórica do discurso do direito penal doautor,demasiado ingênuo pensar
que omesmo não ocorra no nívelcientífico (dogmática penal). Qualquer aproximação,
portanto, será contaminada, visto serem os horizontes políticos de (não)intervençãoabsolutamente incompatíveis e influenciadores do plano teórico-dogmático. Neste
aspecto Alejandro Aponte lembra importante detalhe na apresentação da primeira
versão do direito penal do inimigo, apresentada por Jak.obsem 1985, no Congresso de
Direito Penal de Frankfurt: a construção do modelo político-criminal acontece "(...)
en el contexto de una reflexión sobre Ia tendencia en Alemania hacia Ia 'criminaliza-
ción en el estadio previo a una lesión' del bien jurídico" ,36ou seja, a projeção política
ocorre no âmbito da discussão aparentemente neutra da dogmática do delito relativa
àreformulação da doutrina da tentativa e consumação.
35. LOWY,As aventuras...,P: 32.
36. APONTE, Derecho penal del enemigo us. derecho penal deI ciudadano, p. 12-13.
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SaIode Carvalho
15. Teoria criminológica problematizadora:os rumos da criminologia pós-crítica
Os movimentos e as escolas criminológica, desde a constituição das
ciências penais na Modernidade, estiveram centradas no binômio crimina-
lidade e criminalização. A primeira perspectiva, de tradição determinista,
conglobou distintas teorias explicativas da criminalidade, modelos micro
ou macrocriminológicos - centrados no homo criminalis ou na estrutura
socioeconômica, respectivamente -, os quais, por mais dicotômicos desde a
orientação ideológica, mantiveram a mesma metodologia e a mesma finali-
dade: realizar o diagnóstico da causa da delinqüência e sugerir o prognóstico
para sua contenção.
Interessante notar que este modelo de conceber a técnica criminológica
abrange desde as tendências etiológicas da criminologia positivista, centradas
na patologia do indivíduo delinqüente, às correntes críticas, cuja explicação da
criminalidade é reduzida à questão econômica. Épossível afirmar, portanto, que
a tendência causal, independente do motivo da justificação do crime, segue de-
terminado padrão de proceder ciência.
Neste quadro, é possível sustentar com Elena Larrauri que até a décadade 60 a integralidade das teorias exploratórias eram causais, pois "si analizamos Ia
evolución teórica del concepto de causa, veremos que en un inicio todas Ias teorías
criminológicas podían ser acusadas de deterministas. En efecto, todo análisis
causal que resalta un factor puede ser acusado de 'determinista', y en este sentido
también Ia criminología crítica.":"O câmbio paradigmático é realizado com a teoria do etiquetamento ila-
bellingtheory),no deslocamento da indagação causal para a avaliação dos processos
de criminalização e do funcionamento das agências de punitividade.
37. LARRAURI, Una defensa de Ia herencia de Ia criminología crítica, p. 264.
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Ensino e aprendizado das ciências criminais no século XXI
A ruptura criminológica proporcionada pela teoria do etiquetamento
possibilitou inclusive a qualificação de inúmeras tendências da criminologia
crítica que, ao incorporarem as ferramentas de análise dos mecanismos decriminalização primária (seletividade) e de criminalização secundária (eti-
quetamento/estigmatização), redirecionaram suas investigações. Atualmente,
porém, é possível sustentar que "( ... ) el vocabulo 'causa' es excesivamente
exigente, fuerte o rígido para entender los complejos factores que influyen en
el comportamiento delictivo."38A análise dos fatores de risco e da vulnerabilidade ao delito, no que
tange aos autores do crime e às vítimas, redefine as pesquisas criminológicas
empíricas, de forma a verificar a simplificação dos modelos etiológicos. Ou-
trossim, problematiza de forma qualificada o estudo das distintas formas de
manifestação do crime nas sociedades complexas, indicando a impossibilidade
de modelo teórico universal que forneça respostas adequadas. Se a teoria do
etiquetamento demonstrou inexistir 'o' crime como realidade natural, impos-
sível conceber instrumento de análise empírico ou teórico totalizador. Assim,
questionável a defesa de fórmulas unitárias para diagnóstico ou prognóstico
frente à pluralidade dos eventos ilícitos.
Importante verificar, igualmente, como estas conclusões atingem não
apenas a criminologia, mas o direito penal e processual penal. Se inexiste 'o'
delito, inviável pensar dogmática una, alheia aos problemas concretos e aos
fatores de risco que caracterizam situações distintas. Neste sentido, imprescin-
dível a abertura da dogmática, iniciando-se pela aproximação com a realidade
da vida, pois as peculiaridades das circunstâncias em casos envolvendo drogas,violência de gênero, meio ambiente, sistema financeiro, crimes patrimoniais, p.
ex., exigem sofisticação das estruturas do direito e do processo penal, sem que
isto represente ruptura com o sistema de garantias. Problemas de fundo como
38. LARRAURl, Una defensa ..., P:264.
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Sala de Carvalho
a medicalização do direito penal das drogas, o sexismo na abordagem das ques-
tões de gênero, o impacto socioeconômico nos crimes patrimoniais, a escassa
vulnerabilidade nos crimes societários, a ausência de consciência ambiental
nos ilícitos contra a natureza, não podem restar alheios de especificações nas
teorias penais e processuais penais. Inconcebível, portanto, na complexidade
da vida contemporânea, ensinar e aprender direito e processo penal sem análise
dos problemas específicos que envolvem as distintas condutas que conformam
o universo de ilicitude.
E se as conclusões advindas da teoria do etiquetamento produziram radical
viragem no foco da criminologia, inclusive da criminologia crítica, o direito e o
processo penal não podem ficar isentos desta contaminação, sob pena de a lacuna
entre normatividade e realidade social atingir nível patológico.
Portanto possibilidade de minimizar a crise das ciências criminais no
século XXI, iniciando pela sua propedêutica, é o desenvolvimento do pen-
samento criminológico problematizador, no qual a criminologia atuaria no
campo das investigações empíricas dos fatores de risco, da vulnerabilidade
individual e social ao delito, e dos danos produzidos pela atuação das agências
de punitividade, propiciando, por outro lado, mecanismos sofisticados, pois
ancorados na realidade, de interpretação dogmática. O campo de investigação
da criminologia pós-crítica estaria voltado ao estudo do crime e do funcio-
namento do sistema de justiça penal, conectando-se à dogmática penal com
a finalidade de possibilitar chaves de interpretação das variáveis inerentes a
cada espécie de conflito.
A criminologia pós-crítica, na configuração do novo modelo integrado de
ciências criminais, atuaria como problematizadora da dogmática e facilitadora
da política criminal, apontando alternativas à redução dos danos causados pelas
violências privadas (delito) e públicas (abuso dos poderes penais). Alternativas
que logicamente devem extrapolar o universo da exclusividade da resposta
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Ensino e aprendizado das ciências criminais no século XXI
penal, visto necessário afirmar como meta a ruptura com o narcisismo penal,
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