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SEMINÁRIO ARQUIDIOCESANO DE SÃO JOSÉ

INSTITUTO SUPERIOR DE CIÊNCIAS RELIGIOSAS

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO DA SILVA

RIO DE JANEIRO

JUNHO - 2015

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO AO PERÍODO PATRÍSTICO ......................................................... 3

1.1. O que é Patrística? .................................................................................................. 3

1.2. O diálogo entre a filosofia grega e o cristianismo .................................................. 5

1.3. A falsa e a verdadeira gnose ................................................................................... 6

1.4. Apresentação dos períodos da patrística ................................................................. 8

2. PADRES APOSTÓLICOS ............................................................................................ 9

3. PADRES APOLOGETAS ............................................................................................. 9

3.1. Apologetas gregos e latinos .................................................................................. 10

3.2. Santo Irineu de Lyon ............................................................................................. 11

3.3. A Escola de Alexandria ........................................................................................ 12

4. PERÍODO ÁUREO ...................................................................................................... 14

4.1. Gregório de Nissa (333 - 395) .............................................................................. 14

4.2. Agostinho de Hipona (354 – 430) ......................................................................... 16

4.3. Dionísio pseudo-areopagita (? Séc. VI) ................................................................ 17

4.4. Jerônimo (~340 - ~410) ........................................................................................ 18

4.5. Máximo o confessor (580 – 662) .......................................................................... 19

5. “DECADÊNCIA” E TRANSIÇÃO PARA O PERÍODO ESCOLÁSTICO ............... 20

5.1. Severino Boécio (475 – 525) ................................................................................ 20

5.2. Gregório Magno (~540 – 604) .............................................................................. 22

5.3. João Damasceno (~650 – 749) .............................................................................. 23

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................. 23

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1. INTRODUÇÃO AO PERÍODO PATRÍSTICO

1.1. O que é Patrística?

Podemos definir como Patrística o período existente entre a morte dos últimos dos

Apóstolos de Jesus Cristo (o Apóstolo João Evangelista, que faleceu cerca do ano 100 d.c.,

ou seja, em torno do século II) e o começo da Idade Média (aproximadamente a partir do

ano 750 d.c.). Neste período, percebemos a ocorrência das últimas manifestações da

filosofia antiga convivendo com as primeiras iniciativas filosóficas praticadas por

pensadores cristãos.

Embora vivendo durante certo tempo com os pensadores cristãos nascentes, a

filosofia pagã, todavia, teve data de fim: o ano de 529 d.c., ano em que o Imperador

Romano Justiniano proibiu aos pagãos qualquer ofício público e, portanto, também a

possibilidade de manter escolas e lecionar1.

Assim, a patrística compreende um período rico, no qual a novidade cristã soube

trazer grandes contribuições à filosofia, sendo considerada como o embrião da filosofia

cristã.

Já que abordamos o tema, vale a pena esclarecer a dois questionamentos

fundamentais:

a. O que é filosofia cristã?

b. O que os Padres da Igreja fizeram e pensaram pode ser considerado “filosofia”?

A busca por respostas a este questionamento fez surgir importantes debates entre

intelectuais, como o famoso ocorrido em 1927 na “Societé Francaise de Philosophie” entre

Bréhier e Gilson. Bréhier, imbuído do pensamento característico da modernidade e

contemporaneidade que chega até nós nos dias atuais, defendia a tese de que não existia

um filosofia tipicamente cristã, restringindo o labor teórico dos Padres e dos medievais ao

nível somente teológico, enquanto que Gilson defendia sim a existência de uma filosofia

cristã.

Assim, qual foi a saída de Gilson para esta problemática? Ele considerou que a

missão de um historiador não é julgar, mas sim buscar entender e respeitar o que os

filósofos anteriores pensavam sobre determinado conceito, pois, como vemos ocorrer em

diversos casos, as palavras podem adquirir sentidos diferentes com o passar dos séculos.

1 REALE, Giovanni, Antiseri, Dario. História da filosofia: filosofia pagã antiga. 5ª ed. São Paulo: Paulus,

2011, v. 1, p. 367.

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Com isso, Gilson busca justificar o porquê dos autores clássicos cristãos afirmarem que o

que eles faziam era sim filosofia. Quando, por exemplo, Agostinho usa o conceito de

“filosofia cristã”, ele se refere à “sabedoria cristã”, ou seja, a sabedoria dada por Deus pela

via da iluminação.

Assim, podemos dizer que a filosofia cristã é formalmente filosofia na medida em

que suas conclusões partem de premissas que são intrinsecamente racionais. E, ao mesmo

tempo, assumindo a revelação cristã como critério último das verdades filosóficas, pois, a

razão não deve contradizer a fé.

Deste modo, afirmar como Bréhier que todo o pensamento clássico só é teologia

seria “empobrecer” toda a riqueza presenciada pelos fatos históricos, tendo em vista que,

se a filosofia patrística e medieval não fosse nada mais do que teologia, deveríamos esperar

que os pensadores que aceitassem a mesma fé aceitassem automaticamente a mesma

filosofia, o que não e verdade, pois, ao observarmos homens como Duns Scotus, Santo

Tomás de Aquino, Guilherme de Ockham, São Boaventura, Santo Agostinho e muitos

outros que, embora fossem igualmente católicos, ou seja, tinham exatamente a mesma fé,

adotaram posturas filosóficas claramente distintas umas das outras, o que comprova a

presença do conhecimento filosófico no labor destes pensadores.

É importante, também, ressaltar que nem todo filósofo que professa a fé cristã faz

necessariamente uma filosofia cristã, como vemos, por exemplo, no caso de notórios

filósofos como Descartes, que, era católico praticante, contudo, seu pensamento não

coadunava com a filosofia cristã.

Assim, para responder mais objetivamente aos questionamentos levantados acima,

podemos definir a filosofia cristã como a busca em se chegar à verdade em si através de

premissas racionais, assumindo a Revelação bíblica como critério último para estas

mesmas verdades. É possível, também, vermos nos Padres da Igreja a presença sim de uma

filosofia, pois, buscavam sempre mais as argumentações racionais a fim de resolverem

problemas com a doutrina cristã e como suporte para a apologética.

Ao discursarmos acerca do período patrístico, nos colocamos em outra questão: qual

é a diferença entre patrística e patrologia? Por patrística, podemos definir como a filosofia

cristã dos primeiros séculos da era pós-cristã, que compreende o período histórico que vai

do século II ao século VII aproximadamente. Já por Patrologia, consiste no estudo dos

Padres da Igreja, grandes responsáveis por fundamentar a doutrina cristã.

Afinal, embora tenhamos falado tanto deles, mas, quem são os Padres da Igreja e por

que recebem este título?

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Padres da Igreja são os intelectuais cristãos dos primeiros séculos responsáveis por

estabelecer os fundamentos da fé cristã recebida através dos Apóstolos e do Evangelho de

Cristo. Sua importância na história do cristianismo e da filosofia cristã não deve ser

desconsiderada. Os Padres, embora tenham origens e pensamentos das mais diversas

ordens, devem possuir atributos em comum para obterem este “status”. Tais características

(ou exigências) são:

- Antiguidade (devem ter vivido no máximo até o século VIII d.c.)

- Santidade de vida

- Aprovação da Igreja

- Ortodoxia doutrinária

Atualmente não há uma lista uniforme contendo o nome de todos os Padres, contudo,

podemos notar a presença de figuras notórias como Irineu de Lião, Clemente de

Alexandria, Orígenes, Agostinho de Hipona, Gregório Magno, dentre outros.

Para a grande maioria dos Padres, o conhecimento da filosofia e da cultura grega

foram fundamentais para a elaboração do arcabouço teológico do cristianismo, pois, como

havíamos dito acima, a filosofia grega e a patrística conviveram juntas durante séculos,

sendo frequente o encontro e o diálogo entre elas, tema do próximo tópico.

1.2.O diálogo entre a filosofia grega e o cristianismo

Considerar o período que estudamos como Filosofia cristã já é, por si só, um convite

para percebermos o quão necessário é realizar pontes entre estas duas áreas, pois, como

sabemos, o contexto do cristianismo nascente já era o de uma sociedade helênica, onde a

presença da filosofia e da literatura grega era imprescindível.

A filosofia pagã passava, neste período, por uma etapa conhecida por sua

“decadência”, que foi o período helênico, onde, após o apogeu dos grandes filósofos como

Sócrates, Platão e Aristóteles parece não ter sido suficiente para a construção de uma

humanidade perfeita, começa a reinar um clima de insegurança nos grandes sistemas que

visavam uma “política” perfeita (tal clima era propiciado, sobretudo, com a tomada da

Grécia pelo Império Macedônio). Deste modo, no helenismo o foco do saber estava

centrado no indivíduo e não mais na pólis, como era em Atenas. Assim, a ética passa a

exercer um papel mais preponderante do que a política.

Movidos então pelos ideais de autarquia (autonomia, independência) e ataraxia

(ausência de perturbações na alma), surgiram uma série de escolas filosóficas que

buscavam a solução para a “crise” da realidade humana, como os cínicos, os epicuristas, os

estoicos, os céticos, e os neo-platônicos.

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No meio destas correntes filosóficas que efervesciam a civilização ocidental, surge

algo que revolucionaria os rumos da humanidade, pois tratava a respeito exatamente da

busca de um sentido para a vida humana: o cristianismo. A mensagem de Jesus Cristo foi

responsável por uma verdadeira revolução nos valores morais e religiosos, pois a relação

com o transcendente, com o divino, tomara proporções singulares, tendo em vista que o

próprio Deus tornou-se homem por amor aos mesmos homens. Assim, com o testemunho

cada vez mais incisivo dos apóstolos e dos demais cristãos, que eram capazes até mesmo

de sacrificar suas vidas pelo evangelho, as escolas pagãs passaram a perder espaço para o

crescimento cada vez maior das comunidades cristãs. Assim, inúmeros foram aqueles que

outrora buscavam a resposta de seus questionamentos na filosofia e que, após entrarem em

contato com o cristianismo, converteram-se e viveram intensamente pelo evangelho.

Muitos Padres podem ser tido como exemplo, como é o caso de Justino, Panteno

(considerado por muitos o fundador da Escola Catequética de Alexandria), Pseudo-

Dionísio Areopagita, dentre outros.

Por serem então realidades tão influentes, helenismo e cristianismo eram realidades,

por vezes, indissociáveis. Podemos até mesmo afirmar que o cristianismo nascente só foi

tão amplamente divulgado graças ao contexto helênico que foi desenvolvido, tendo em

vista que muitos de seus elementos de evangelização e de apologética são recursos

tipicamente gregos. Tais sinais são claros: o fato de todo o novo testamento ter sido escrito

em grego e os escritos em forma de epístolas, que eram tipicamente gregos, são exemplos

de um claro diálogo existente entre o helenismo e o cristianismo.

1.3. A falsa e a verdadeira gnose

Um termo frequentemente usado no período patrístico é a “gnose”, que foi, ao longo

dos séculos, interpretado das mais diversas formas, abrangendo diversas correntes de

pensamentos de ordem filosófico-religiosas.

O referido termo significa literalmente “conhecimento”, “sabedoria”. Sua aplicação

foi utilizada com mais frequência para se referir a uma corrente de pensadores que

buscavam explicações filosóficas para a fé cristã nascente. A estes pensadores foram dados

o nome de “gnósticos”. Seus ensinamentos, todavia, foi considerada heterodoxa à tradição

da Igreja, não podendo ser admitidas na doutrina cristã.

No entanto, alguns estudiosos mais contemporâneos defendem que deve ser feita

uma distinção entre “gnose” e “gnosticismo”, ressaltando que o primeiro pode ser utilizado

para referir ao esforço louvável e correto dos Padres da Igreja em buscarem o suporte

racional da fé revelada, enquanto que o segundo designa propriamente as seitas gnósticas

consideradas hereges.

A respeito do movimento gnóstico, tal movimento propõe uma sabedoria humana

sobre Deus que independe da mediação eclesiástica e da graça. Assim, estes acreditam que

o homem pode ser salvo graças ao elemento divino que há nele, ou seja, a centelha divina

identificada ora com o espírito, ora com a razão.

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É interessante notar que o gnosticismo não foi um movimento popular, mas

aristocrático, cultivado por pessoas refinadas e pertencentes a seletas camadas da

sociedade. Seus líderes, no entanto, buscaram, antes de qualquer coisa, uma apropriação do

cristianismo para proveito próprio. Era a pretensão de um grupo seleto em dar ao

cristianismo uma forma filosófica, utilizando de termos que não eram comuns nas

pregações dos primeiros tempos. Todavia, seu teor de “mistério” e de seletivismo

aproximava-o mais do paganismo do que do cristianismo.

Dentre as mais diversas seitas gnósticas, podemos identificar as seguintes como

principais:

a. A gnose samaritana de Simão o mago

Gnose já presente nas Escrituras, como podemos conferir em At 8, 9-24, e de onde

podemos compreender a origem da palavra “simonia”, que significa a venda de

coisas sagradas. Simão o Mago, encantado com a capacidade que os Apóstolos

possuíam em transmitir o Espírito Santo pela imposição das mãos, ofereceu

dinheiro a Pedro para possuir este poder, atitude esta severamente reprovada pelo

Príncipe dos Apóstolos.

b. A gnose siríaca de Cerdão e Marcião

Existe na história da salvação um antagonismo entre o Deus do AT (caracterizado

pela ira, pela cólera, e pela imposição das leis) e o Deus no NT (caracterizado pelo

amor, pela misericórdia, e pela liberdade).

c. A gnose de Alexandria de Basílides

Basílides foi professor em alexandria; ensinava que, embora todas as coisas

procedessem de Deus, assim como a semente procede da árvore, ele serviu-se de

seres intermediários na obra da criação. Assim, Deus não é o criador imediato de

todas as coisas, tendo em vista que há o Pai (contém todas as "sementes"); o Filho

(primeira semente gerada) e o Espírito (semente presente em todas as coisas). Sua

doutrina foi severamente combatida por Clemente de Alexandria e por Orígenes.

d. A gnose itálica de Valentim

Para Valentim, no princípio de tudo, havia um só Deus, chamado "abismo", que,

por amor, uniu-se ao "silêncio". Desta união, nasceu o "intelecto" e a "verdade".

desta "tétrade" (abismo, silêncio, intelecto e verdade), nasceu o logos e a psiqué,

que geraram o homem e a Igreja, respectivamente. Nessa sua “teologia”, a Igreja

serve para que adoremos todas estas “divindades”, ou seja, uma concepção

completamente politeísta. Aqui, Cristo é visto como o único logos encarnado que

toma consciência disso. Os outros homens, a princípio, não possuem esta

consciência, todavia, é através da gnose que se chega a este conhecimento.

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e. A gnose persa de Manes

É a heresia mais sutil de todas, tendo em vista que professa a criação pelo Deus onipotente,

bem como vê o bem como obedecer a Deus e o mal como seguir a satanás. Todavia, a

heresia está contida no fato deles serem dualistas, ou seja, de acreditarem que o mal, ou o

demônio pode ter tanta força quanto Deus, tendo em vista que nem o sacrifício de Cristo

foi capaz de aniquilar o mal do mundo. Todavia, tal pensamento é um erro, visto que

Cristo venceu por completo o pecado e a morte, sendo a escolha do mal uma opção do

livre-arbítrio do homem. Tal heresia foi desmascarada e severamente combatida por

Agostinho de Hipona.

Embora, como vimos, cada movimento gnóstico apresente sua característica de

própria, podemos ressaltar pontos em comum a todas as correntes gnósticas:

I. Há um único Deus sumamente bom e transcendente a todo o universo

II. Há uma série de seres intermediários entre Deus e o universo criado

III. O mal no mundo é identificado ora com a matéria ora com a liberdade

IV. O homem é composto pelo menos de 2 elementos ou princípios: o corpo e o

espírito

V. Do ponto de vista moral o homem gnóstico é sempre virtuoso graças à sua

ascese

VI. Jesus, o Cristo, foi gnóstico e pela sua gnose nos mostrou o caminho de

salvação.

Não obstante presenciemos a existência destas seitas gnósticas cujos pensamentos

eram desvios à sã doutrina cristã, podemos observar também a existência de uma gnose

verdadeira, capaz de discernir autenticamente como a filosofia e a cultura pagã poderiam

servir de instrumental para a fé revelada, formando assim veículos para um importante

diálogo entre fé e razão. Clemente de Alexandria foi um dos Padres que mais buscou

ressaltar a importância do cristão gnóstico, ou seja, aquele capaz de unir o conhecimento

especulativo e racional com sua vivência de fé.

1.4. Apresentação dos períodos da patrística

É importante considerar que os períodos da patrísticas não podem ser separados de

maneira absolutamente sistemática, de forma que as separações fiquem absolutamente

definidas. Todavia, a título pedagógico, é possível nos referirmos ao período patrístico

através de quatro momentos: Padres apostólicos; Padres apologetas; Período áureo; e

“Decadência”.

Além da referida divisão, temos de levar em consideração que o saber teológico

deste período foi amplamente desenvolvido tanto no ocidente quanto no oriente, também

entre os denominados Padres gregos e Padres latinos.

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Portanto, é a referida divisão que será a adotada neste curso. Ao acompanharmos

tais fases, perceberemos o quão maduro ira se tornar progressivamente o labor realizado

pelos Padres em elaborar uma verdadeira doutrina capaz de sintetizar a sabedoria grega

com a novidade da mensagem evangélica, que é, em última análise, o grande motor destes

autores, que buscavam sempre a compreensão mais madura da Revelação divina.

2. PADRES APOSTÓLICOS

Logo no início do cristianismo, a mensagem de Cristo fora transmitida em larga

escala sob o patrocínio dos apóstolos, que arduamente dedicaram-se ao serviço da

evangelização. Neste contexto, podemos dizer que muito se converteram através do

contato direto com estes apóstolos e pessoas das mais diversas culturas e classes sociais.

Àqueles cristãos de maior cultura e que obtiveram o contato direto com os discípulos de

Cristo foram denominados Padres apostólicos.

Seus escritos são revestidos de alto teor exortativo e moral, pois buscavam a

manutenção da ortodoxia cristã nas comunidades primitivas, sendo assim, seus escritos

classificados como uma espécie de literatura pastoral. Aderiram a esta metodologia porque,

mesmo no cristianismo nascente, em torno dos séculos I e II d.c. já é possível ver também

o surgimento das primeiras heresias (como o ebionismo, o marcionismo e o gnosticismo),

onde o reconhecimento da humanidade e da divindade de Cristo parece ser o grande

divisor de águas neste período.

Dentre estes padres, podemos destacar figuras como Clemente Romano (que foi o

terceiro papa), Santo Inácio de Antioquia (que ao que nos conta foi discípulo de São João

evangelista, Policarpo de Esmirna, Pseudo-Barnabé, Hermas (autor do Pastor de Hermas) e

Papias de Hierápolis. Algumas obras notórias deste período, mas de autoria desconhecida,

como a Didaké (conhecida como o primeiro Catecismo da Igreja), o já mencionado Pastor

de Hermas (que é um fabuloso tesouro da literatura cristã primitiva que visa exortar aos

cristãos à importância do arrependimento e da reconciliação para com Deus, que acolhe a

seus filhos com misericórdia e paciência) e a Epístola de Barnabé são de um valor

extraordinário para os cristãos, sobretudo em seu valor catequético, embora sejam pouco

desprovidos de recursos filosóficos e teológicos especulativos.

3. PADRES APOLOGETAS

No decorrer dos séculos o embate entre cristãos ortodoxos e hereges intensificava-

se cada vez mais, bem como as perseguições realizadas pelos imperadores romanos,

resultando, assim, em um maior número de escrito por parte dos Padres com o objetivo de

refutar de forma mais veemente as heresias, com argumentos que, posteriormente, serão o

alicerce da Teologia cristã. Neste contexto, que se inicia no século II d.c. surgem os

denominados Padres apologetas, caracterizados por serem homens de elevada cultura que,

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admirados pelo evangelho e pelo testemunho da vida cristã, se converteram do paganismo

para o cristianismo. Desta forma, seus escritos também não tinham como público apenas os

cristãos das comunidades primitivas, mas também se destinava ao mundo exterior, à corte

imperial, buscando, assim, um diálogo com a cultura e a filosofia da época.

A literatura empregada pelos Padres deste período é em tom eminentemente

pedagógico e refutativo, com o intuito de mostrar claramente o pensamento herege com

seus respectivos erros para, posteriormente, mostrar a doutrina da Igreja. Outro intuito dos

Padres apologistas é buscar recursos para defender a fé cristã através de argumentos

racionais contra a perseguição do Império Romano, que perseguiam os cristãos com o

pretexto de propagarem o ateísmo, a impiedade e a violência pública. Neste sentido, muitos

foram os esforços para se “obter dos imperadores romanos o reconhecimento do direito

legal dos cristãos à existência num império oficialmente pagão”2, ainda que muitos destes

Padres tenham sofrido diretamente com o martírio e outras formas de repreensão por parte

do Império. Apenas no ano de 313 com o Edito de Milão os cristãos obtiveram, enfim, a

liberdade de culto, propiciando, deste modo, maior desenvolvimento do pensamento

teológico. Todavia, tal liberdade só foi alcançada graças aos incessantes esforços dos

Padres dos primeiros séculos que, ainda sob a severa perseguição, zelaram por defenderem

arduamente a fé cristã.

3.1. Apologetas gregos e latinos

Neste contexto, podemos observar uma divisão dos Padres em dois principais

grupos: os Padres gregos e os Padres latinos. Dentre os gregos, temos figuras importantes

como São Justino, Taciano e Atenágoras e dentre os latinos podemos identificar Minúcio

Félix e Tertuliano. Um importante distinção entre estes Padres surgiu acerca da posição

destes diante da sabedoria mundana ( como a filosofia grega). Para os gregos, sobretudo

para Justino, a filosofia contém verdades que são consideradas como que “sementes” de

Cristo, portanto, ainda que incompleta e imperfeita, contém traços que podem ser

identificados com a doutrina cristã. Não obstante, para os Padres latinos, sobretudo para

Tertuliano, toda a sabedoria mundana é obra do pecado, é essencialmente má e deve ser

rejeitada por aquele que se converteu ao cristianismo. A relação entre fé e filosofia foi,

deste modo, uma das questões mais importantes surgidas neste período.

Dentre os gregos, São Justino foi, sem dúvida, o mais notório. Nascido em Flávia

Neápolis, na Palestina e de pais pagãos, Justino converteu-se ao cristianismo antes do ano

132 e foi martirizado em Roma, em torno de 165, sob o prefeito Junius Rusticus. Entre

seus escritos que chegaram até nós, destacam-se a Primeira Apologia, endereçada ao

imperador Adriano, e também uma Segunda Apologia, endereçada, desta vez, ao

imperador Marco Aurélio, além de seu Diálogo com Trífon.

A vida de Justino foi uma constante busca pela verdade, na qual ele

incessantemente buscou. Conforme relata nas primeiras páginas de seu Diálogo com

Trífon, por primeiro, recorreu à filosofia, tendo contato com o estoicismo, o aristotelismo e

2GILSON, Étienne. A filosofia na idade média. Trad. E. Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 2.

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o pitagorismo. Todavia, nenhuma destas escolas lhe deu as respostas que tanto pesquisava.

Recorreu, por último, ao platonismo, onde, por um instante, pensou ter encontrando a

grande verdade, através da contemplação das ideias, contudo, aos poucos começou a

perceber que estava sendo insensato ao tentar ver Deus através da filosofia platônica, pois

esta carecia da verdade.

Apenas ao entrar em contato com o Evangelho Justino encontrou a fonte que

saciara sua sede pelo verdadeiro saber, pois percebeu que é apenas em Cristo que a verdade

faz-se plena, tendo em vista que Ele é o Logos, ou seja, a “sabedoria” de Deus.

No que tange respeito aos padres latinos, existe uma característica em comum entre

boa parte deles: o pouco crédito e, por vezes, a hostilidade, para com a filosofia grega.

Minúcio Félix, advogado romano convertido ao cristianismo, era categoricamente opositor

dos filósofos gregos, a tal ponto que, sobre eles escreve:

“Nós não sabemos o que fazer coma teoria dos filósofos; sabemos muito bem que são

mestres de corrupção, corruptos eles próprios, prepotentes e, além do mais, tão descarados

que estão sempre a clamar contra aqueles vícios nos quais eles próprios se afundaram3”.

Outro Padre latino, Tertuliano, também teve atitude negativa ante a filosofia grega.

Afirmou que “Atenas e Jerusalém nada têm em comum, como também a Academia e a

Igreja”. Deste modo, fé e razão jamais poderiam caminhar juntas.

Contudo, ainda que dentre os Padres latinos haja este repúdio à filosofia, é dentre

eles que sairá o maior dentre todos os filósofos cristãos do período patrístico: Agostinho de

Hipona, figura ápice do pensamento filosófico-cristão dos primeiros séculos e um dos

Padres mais influentes de sua posteridade.

3.2. Santo Irineu de Lyon

Irineu de Lyon, nascido na Ásia Menor por volta do ano de 140 e foi uma das

figuras mais influente dos apologistas dos primeiros séculos. Sua obra principal é o Contra

Heresias (Adversus haereses), que visava responder a todos os erros gnósticos, sobretudo

aos de Marcião e Valentim, e visava também expor positivamente a doutrina cristã,

realizando importantes apontamentos a respeito da relação entre fé e razão, como vemos

neste trecho de sua obra:

“O fato de que alguns, de acordo com a sua inteligência, possam saber mais ou menos, não

justifica que possam mudar o objeto da fé, inventando outro Deus diferente do artífice e

criador e mantenedor do Universo, como se Ele não bastasse; ou até mesmo inventando

outro Cristo ou outro Unigênito. A diferença (entre os que sabem mais e os que sabem

menos) é que (os primeiros) conseguem penetrar no que foi dito em parábolas, e relacioná-

las com o conteúdo da fé; mostrar, através das suas etapas, a ação e a economia de Deus

para com a humanidade; declarar como e por que esse Deus magnânimo (...) fez muitos

3REALE, Giovanni, Antiseri, Dario. História da filosofia: patrística e escolástica. 5ª ed. São

Paulo: Paulus, 2011, v. 1, p. 72.

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pactos com a humanidade; e ensinar qual é o caráter de cada um desses pactos.” (Contra

Heresias I, 10, 3)

Aqui, o que Irineu pretende defender é uma razão aliada e fundamentada na fé, que

vai contra aqueles que buscavam bases racionais autônomas e, por vezes, contradizem a

revelação. Assim, Irineu, decidindo guiar-se em direção oposta ao dos movimentos

gnósticos, que colocava a razão sobreposta a fé, defendeu que o uso da razão e louvável e

válido, contudo, deve ser limitado fundamentalmente a investigar os mistérios revelados

por Deus, sendo, deste modo, subserviente à fé.

3.3. A Escola de Alexandria

A cidade de Alexandria era conhecida nos primeiros séculos do cristianismo como

um importante ponto de encontro das mais diversas culturas, crenças e filosofias dos países

do Mediterrâneo, ou seja, egípcias, gregas e hebraicas. Lá, nasceu um primeiro filósofo

judeu, denominado Filon de Alexandria, o primeiro a aproximar o Timeu de Platão do

Gênesis. Seus escritos, redigidos em gregos, eram destinados não aos pagãos a fim de

convertê-lo, mas sim, aos seus compatriotas judeus de grande cultura.

Neste mesmo cenário, surgira também uma comunidade cristã, cuja origem nos é

desconhecida, mas, que parece ter sido fundada por um estoico siciliano convertido ao

cristianismo já em idade madura, denominado Panteno, que, contudo, nada nos deixou por

escrito. Seus ensinamentos, todavia, foram recolhidos e preservados por um jovem

discípulo que fora convertido graças a seu testemunho. Tal jovem era Clemente de

Alexandria que, após a morte de Panteno, sucedeu-lhe na direção da Escola Catequética de

Alexandria e traçou nela importantes elementos para propiciar o mais enriquecimento

intelectual e espiritual para os membros da referida comunidade. Seu sucessor e discípulo,

Orígenes, levou a Escola Catequética a seu máximo esplendor, investindo prodigamente no

ensino da exegese alegórica das Escrituras. Assim, dentre as figuras pertencentes ao

cristianismo em Alexandria, vale a pena determos em Clemente e Orígenes.

CLEMENTE DE ALEXANDRIA (150 – 215)

Tito Flávio Clemente, ou Clemente de Alexandria, nascido no ano de 150 d.c. em

Atenas, buscou incessantemente na filosofia o caminho para a verdade, que encontrou

apenas no cristianismo que lhe foi anunciado por meio de Panteno, tornando-se, então, seu

seguidor e sucessor. Todavia, viu-se obrigado a abandonar a Escola devido às perseguições

do Imperador Séptimo Severo, que o fez fugir para a Capadócia e por lá falecer em torno

do ano 215..

Deixou-nos alguns escritos, dentre os quais três são os principais: Ptrotrépico ou

Exortação aos gregos, O pedagogo e Strômatas. Nesta trilogia, Clemente pretende mostrar

que Deus, através de seu divino Logos (que é Cristo) educa os homens pedagogicamente

desde seu estado de ignorância até à maturidade na fé, através de um processo que perpassa

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a exortação, a educação e o ensino, cujo maior objetivo é fazer com que o cristão atinja um

grau superior de conhecimento intelectual e espiritual que lhe é denominado cristão gnose.

Seus escritos, assim, são basilares para a formação de uma filosofia e uma

pedagogia cristã, visto que observa de forma positiva o uso da filosofia como propedêutica

a fé, pois os filósofos perceberam, ainda que em feixes, sementes da verdade, que é

unicamente provinda do Logos. Deste modo, fé e filosofia não se opõem, mas

complementam-se mutuamente. Segundo Saranyana, Clemente avançou mais do que

Justino, na medida em que propôs que a filosofia era para o gregos o que o Antigo

Testamento foi para os judeus: propedêuticas para a recepção da plena verdade a vir com

Cristo, Logos encarnado.

ORÍGENES (185-253)

Orígenes, sem dúvida, é a figura mais conhecida da Escola Alexandrina, tendo em

vista que dedicou inúmeros escritos ao estudo das Escrituras. Ao contrário de Clemente e

Panteno, não foi um convertido do paganismo, tendo em vista que provinha de família

cristã, sendo seu pai, inclusive, morto como mártir. Neste sentido, a filosofia ocupou dentre

seus escritos um local secundário, contudo, não insignificante, tendo em vista que muito

usou de conhecimentos filosóficos para a apologética, além de ter assistido as aulas de

Amônio Sacas, criador do neoplatonismo e mestre de Plotino.

Sua obra denominada Contra Celso é, sem dúvida, uma das maiores de apologética

cristã. Seu objetivo era refutar o Discurso verídico, do filósofo pagão Celso, dirigido

contra os cristãos.

No entanto, destacam-se outras obras de grande importância como as Exaplas (obra

que procura estabelecer os textos do AT em várias línguas, todavia, encontra-se

incompleta) e o Tratado sobre os princípios (coletânea acerca dos mais diversos assuntos

sobre a dogmática cristã, como a Trindade, a bondade e a justiça divina, o fim dos tempos,

a relação corpo e alma, dentre outros).

Orígenes não fizera questão de ser filósofo, ainda que soubesse usar com maestria

os mais diversos recursos provenientes da filosofia helênica. Não obstante, sua prioridade

foi a exegese bíblica, teme este no qual se debruçou profundamente, resultando em

preciosos escritos, derivados de uma hermenêutica de caráter atropológico e eclesiológico.

Queremos dizer, assim, que Orígenes realiza uma exegese bíblica baseada em três

momentos:

a. Leitura literal: limitada à letra, pertencente ao simples cristão, que aceita o relato

das Escrituras tendo por base as testemunhas.

b. Leitura Alegórico-psíquica: Mais voltada à alma, é pertencente ao cristão gnóstico,

que, das Escrituras, busca retirar ensinamentos para sua conduta de vida, ou seja, lhe

atribui valor moral

c. Leitura Alegórico-pneumática: pertencente à dimensão do espírito, é destinado ao

cristão perfeito, que consegue observar as Escrituras de maneira mais plena, captando dela

a verdade espiritual, ou seja, as verdades acerca da salvação humana.

14

Um exemplo clássico de aplicação da leitura pneumática é a realizada por

Agostinho acerca da parábola do bom samaritano, na qual entendemos o homem

maltrapilho como sendo a figura do pecador, Cristo como sendo o samaritano que quer ser

próximo, a hospedaria é a Igreja, o atendente da hospedaria é a figura do apóstolo e os dois

denários são o duplo mandamento.

No que diz respeito à sua teologia, Orígenes nos deixa igualmente um material

vastíssimo, mas damos destaque à sua teoria do “Apocatástase”, na qual ele defendia a

salvação universal no fim dos tempos, inclusive a salvação do demônio, tendo como

premissa básica a infinita misericórdia divina. Todavia, é uma teoria que incorre em erros,

tendo em vista que a salvação só é possível tendo em vista a liberdade por parte da pessoa,

o que não ocorre com o demônio, cujas suas decisões impossibilitam a abertura à

misericórdia divina. Tal seria possível apenas se forçada, o que contradiz o livre-arbítrio,

bem como a justiça divina.

Todavia, ainda que esteja sujeito a interpretações duvidosas, o pensamento de

Orígenes muito influenciou e influencia a doutrina cristã, sendo importante todo seu

esforço filosófico e teológico como um precioso legado para a apologética cristã.

4. PERÍODO ÁUREO

Ao denominar este período de “Período áureo”, não estamos por desconsiderar

todos avanços e conquistas realizados pelos Padres predecessores, mas sim, porque é

marcada por uma época de grande labor filosófico-teológico. Neste sentido, nos

propusemos a destacar alguns pensadores que se tornaram notórios neste período, a saber:

Gregório de Nissa, Agostinho de Hipona, Dionísio pseudo-areopagita, Jerônimo e Máximo

o confessor.

4.1. Gregório de Nissa (333 - 395)

A Gregório de Nissa pode ser atribuída a importância de realizar uma verdadeira

recuperação da herança grega com expressiva consistência e consciência. Sendo parte dos

Padres da Capadócia4, soube estabelecer, assim como fizeram Clemente e Orígenes, uma

feliz união entre helenismo e cristianismo, tendo sempre, como se estabelece nos princípios

da filosofia cristã, a Revelação como critério último de verdade, como ele mesmo expõe

neste trecho:

4 São Padres da Igreja que viveram em trono do século IV, marcados pelo estilo de vida monástico. Tais

Padres foram: Basílio de Cesareia, Gregório de Nissa e Pedro de Sebaste. Tais pensadores foram notórios

para a definição de dogmas trinitários finalizados no Primeiro Concílio de Constantinopla em 381.

15

“Há algo na filosofia pagã que não deve ser descartado, e que merece que se lhe

apropriemos, com o propósito de gerar virtude. Com efeito, a filosofia ética e

natural pode converter-se em esposa, amiga e companheira da vida superior,

contanto que seus partos não tragam uma mancha estranha” (Sobre a vida de

Moisés, 2)

Sua grande obra teológica foi o Grande discurso catequético pois representa a

primeira síntese orgânica dos dogmas cristãos, amplamente fundamentada e muito bem

construída. Dentre os temas abordados por nosso autor, é importante ressaltar três: sobre a

realidade inteligível e o mundo sensível; sobre a doutrina do homem e sobre a ascensão a

Deus.

Sob inspiração platônica, Gregório distingue a realidade em mundo inteligível e mundo

sensível. Contudo, sob a ótica neoplatônica, o mundo sensível é quase esvaziado de sua

materialidade, sendo concebido como produto de qualidades e forças incorpóreas, ou seja,

a natureza corporal só é, pois procede da natureza inteligível.

A respeito da natureza humana, Gregório faz uma observação interessante. Critica a visão

dos gregos de que o homem seria um “microcosmo”, pois, para ele, esta é uma expressão

insuficiente para expressar o que seria o homem. Para Gregório o homem é muito mais do

que isso, tendo em vista que, enquanto microcosmo, ele ainda poderia se identificar com

outros seres, tais como os animais irracionais. Para nosso autor, a grandeza do homem

consiste no fato de ser à imagem e semelhança do Criador:

“Voltemos às palavras divinas: ‘façamos o homem à nossa imagem e semelhança’.

(Filósofos) pagãos imaginaram coisas mesquinhas e indignas da magnificência do

homem, na tentativa de elevar a condição humana; com efeito, disseram que o

homem é um microcosmo composto dos mesmos elementos do todo e com este

esplendor do nome quiseram fazer o elogio da natureza, esquecendo que desse

modo tornavam o homem semelhante às características próprias da mosca e do rato,

pois também neles existe a mistura dos quatro elementos (...). Que grandeza tem,

portanto, o homem se o consideramos figura e semelhança do cosmo? Deste céu

que circunda, da terra que muda, de todas as coisas neles compreendidas e que

possam com aquilo que as circunda? Em que consiste, conforme a Igreja, a

grandeza do homem? Não na semelhança com o cosmo, mas em ser à imagem do

Criador de nossa natureza.” ( O Homem)5

Também sob inspiração neoplatônica, Gregório vê na ascensão a Deus a remoção

de tudo aquilo que nos afasta do divino. Assim, a alma mais se aproxima de Deus na

medida em que se liberta da escravidão do pecado e se torna imune de toda impureza.

Deste modo, para o homem ascender à contemplação divina, faz-se necessário a

purificação da alma.

5 REALE, Giovanni, Antiseri, Dario. História da filosofia: patrística e escolástica. 5ª ed. São Paulo: Paulus,

2011, v. 1, p. 62-63.

16

4.2. Agostinho de Hipona (354 – 430)

Como vemos anteriormente, se Justino e Clemente de Alexandria deram os

primeiros passos para o diálogo para com a filosofia, Santo Agostinho, por fim,

estabeleceu o primeiro grande sistema de filosofia cristã. Tal esforço, no entanto, é fruto

direto de sua própria vida, que foi uma intensa busca pela verdade.

Nascido em Tagaste, no norte da África, no ano de 354, de pai pagão e mãe

cristã, além de possuidor de uma singular inteligência, iniciou seus estudos em retórica

deixou-se influenciar em um primeiro momento por Cícero e interpretava as Escrituras sob

a influência do dualismo maniqueísta, ou seja, da existência de dois princípios supremos:

Deus e o mal, que travam tenazmente uma luta pelo domínio do universo. Tal explicação

era sua justificativa para a existência do mal no mundo.

Com o passar dos tempos, procurou adquirir melhor formação cultural e

filosófica, debruçando-se, assim, nos estudos de autores clássicos latinos e gregos, o que

levou-o a, gradativamente, afastar-se do maniqueísmo e da hostilidade ao cristianismo,

embora, acabou por cair em um ceticismo.

Todavia, tal ceticismo foi superado graças ao seu contato com as obras de

Plotino, o que o fez encaminhar-se para a linha neoplatônica e, providencialmente, nesta

mesma fase de sua vida conheceu o notório bispo Ambrósio de Milão, conhecido pela

fama de seus sermões e, deixando-se envolver pelo seu discurso, começou a compreender

corretamente aquilo que ele entendera erroneamente pelos maniqueus, percebendo, por

exemplo, que a causa do mal não se dá no mundo por um princípio dualista, mas sim, pelo

mau uso da liberdade.

Desta forma, através das catequeses de Santo Ambrósio, Agostinho

finalmente se convertera à fé cristã, sobretudo devido a um acontecimento místico narrado

por ele próprio nas suas Confissões, denominado de Tole lege (Toma e lê). Assim, aceitou

receber o batismo aos 33 anos de idade.

Boa parte de suas obras de maior teor filosófico são de seu período inicial

de sua conversão, ou seja, de seu período de catecumenato até sua ordenação sacerdotal.

Dentre suas obras deste período, destacam-se: Contra os acadêmicos (refutação ao

ceticismo); Vida Feliz (abordagem cristã do tema platônico da felicidade); Livre-arbítrio

(sobre a liberdade e a origem do mal), dentre outras. Quatro anos após sua ordenação

sacerdotal, foi sagrado bispo de Hipona e, a partir de então, suas obras passaram a conter

um teor mais teológico, e, neste período, surgem obras de suma importância para o estudo

de nosso autor, como: Confissões, Sobre a Santíssima Trindade, A cidade de Deus.

Agostinho veio a falecer em Hipona, no ano de 430.

Sem dúvida alguma, muito tem de se falar acerca do pensamento filosófico

e teológico de Santo Agostinho, todavia, o que desejamos ressaltar é o lugar central que

ocupa não apenas no período patrístico como também em toda a história da filosofia cristã.

Sua influência foi tão grande que dele derivou toda uma corrente de pensamento,

denominada agostinismo, que engloba os mais diversos movimentos doutrinais, tanto de

17

inspiração cristã, como de caráter imanentista. Algumas ideias comuns dentre os

agostinistas são: o voluntarismo, a teoria da iluminação, o hilemorfismo universal, a união

da filosofia e da teologia em uma única sabedoria, dentre outras. Todavia, é de grande

importância ressaltar que nem todas as teorias ditas “agostinistas” procedem diretamente

do pensamento de Agostinho, mas sim, de uma nova forma de olhar de pensadores leitores

do Doutor da Graça. Alguns pensadores importantes de corrente agostinista foram: São

Boaventura, Duns Scotus, Guilherme de Ockham, Jansênio, Antônio Rosmini, dentre

outros, uns mais fiéis, outros menos fiéis a autêntica doutrina cristã.

4.3. Dionísio pseudo-areopagita (? Séc. VI)

Entre os séculos V e VI viveu um autor que se denominava Pseudo-Dionísio

Areopagita, que muitos acreditavam ser o mesmo Dionísio que São Paulo converteu com

seu discurso no Areópago. Sob seu nome, chegou-nos uma variedade de escritos (como a

Hierarquia celeste, Hierarqia eclesiástica, Nomes divinos, Teologia mística e cartas) que

teve grande repercussão na Idade Média, influenciando o pensamento e o imaginário de

grandes autores como Dante Alighieri, sobretudo em sua estrutura hierárquica do Paraíso

em sua Divina Comédia.

O que Dionísio propunha era a releitura do neoplatonismo em termos

cristãos, sobretudo o platonismo tal como se configurara na formulação de Proclo6,

contudo, um ponto-chave de seu pensamento é a formulação da denominada “teologia

apofática” ou “teologia negativa”, que afirma que Deus, Princípio primeiro e supremo do

Uno, está acima de tudo, absolutamente transcendente e separado de todas as outras

realidades que dele derivam. Isso implica que qualquer nome que se possa atribuir a Deus é

fortemente inadequado: é muito melhor dizer aquilo que Deus não é do que aquilo que Ele

é. Assim, é mais correto dar a Deus atributos negativos (não-gerado, incorruptível, imóvel,

não-causado) do que atributos positivos (bom, santo, justo).

Desta maneira, a teoria de Dionísio torna-se radical ao não admitir nenhum

nome que tente classificar a Deus, ou dizer aquilo que ele é, pois, tais tentativas serão

6 Proclo Lício de Constantinopla (412-485) foi filósofo e matemático nascido em Constantinopla,

considerado a última voz original da antigüidade pagã, ou seja, o último grande representante do platonismo

e neoplatonismo pagão. Estudou em Alexandria com o peripatético Olimpiodoro, emigrou para Atenas, onde

foi discípulo de Siriano de Alexandria e onde se tornou chefe da escola neoplatônica e finalmente escolarca

da Academia passando a ser conhecido como Diadocos, que significa sucessor, no caso, de Platão na

liderança da Academia. Foi posterior a Agostinho e contemporâneo mais velho de Boécio, ambos estes

cristãos neoplatônicos. Embora mais filósofo que matemático seus escritos são de importância fundamental

para o conhecimento histórico da geometria grega. Sua mais notável criação foi Comentário sobre o Livro I

de Os elementos de Euclides, que se tornou a principal fonte escrita da afirmação de Pitágoras de Samos

(580-497 a. C.) e de Tales de Mileto (624-548 a. C.) como matemáticos. Publicou também um grande

numero de pequenos tratados e comentários, estes sobre os mais diversos temos, inclusive contra os cristãos,

os quais reunidos importaram em um grosso volume. Por ser notoriamente sistemático, foi cognominado o

escolástico do helenismo, prenunciando mesmo a escolástica medieval. Entre esses vários outros escritos:

Teologia Platônica e Elementos da teologia. A sua filosofia teosófica foi a principal fonte de inspiração para

Dionísio, o Areopagita (480-540), ao qual freqüentemente se refere como Pseudo-Dionísio, um neoplatônico

cristão cujos escritos tornaram-se a decisiva importância para a teologia, bem como para o pensamento e

cultura européia posterior. (Cf. <http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/ProclusD.html >)

18

sempre insuficientes ao referir-se a Deus, tendo em vista que as palavras estão apenas na

dimensão do que é sensível, mas as faculdades divinas serão sempre transcendentes, como

podemos ver num trecho de sua obra Teologia Mística:

“A causa boa de todas as coisas pode ser expressa com muitas e com poucas

palavras, mas também com a ausência absoluta de palavras. Com efeito, não há

palavra nem inteligência para expressá-la, porque está colocada supra-

substancialmente além de todas as coisas e só se revela verdadeiramente e sem

nenhum véu para aqueles que transcendem todas as coisas impuras e puras,

superam toda a subida de todos os cumes sagrados, abandonam todas as luzes

divinas e os sons e discursos celestes e penetram na escuridão onde

verdadeiramente reside, como diz a Escritura, aquele que está além de tudo”

(Teologia mística)7.

4.4. Jerônimo (~340 - ~410)

Foi, sem dúvida, o mais douto dos Padres da Igreja latina, tendo em vista

que conhecia fluentemente o latim, o grego e o hebraico. Seu saber era tão reconhecido que

o Papa Dâmaso lhe confiou a missão de rever as mais diversas traduções latinas da Bíblia

que circulavam até então, tendo em vista que elas apresentavam certas discordâncias entre

si. Todavia, ao iniciar seus trabalhos, Jerônimo percebeu que uma revisão não bastava, mas

sim, retornar de forma sistemática às fontes gregas e hebraicas. Assim, Jerônimo

empreendeu, no período de 391 a 406, toda a tradução das Escrituras, que recebeu o nome

de Vulgata e passou a ser a tradução latina oficial da Igreja.

Além deste notório feito, Jerônimo foi o autor de grandes obras exegéticas

do Antigo e do Novo Testamento, de escritos de caráter dogmático e polêmico, de homilias

e de rico epistolário muito apreciado por toda a Idade Média.

De temperamento forte, Jerônimo teve desentendimentos doutrinários para

com outros teólogos de sua época, como o monge Rufino (340 – 410). Outrora amigos,

eles tiveram certos desenvolvimentos com relação a postura deles para com o pensamento

de Orígenes. A Rufino deve-se a importância de ter chegado até nós o Tratado sobre os

princípios de Orígenes, além do fato de Rufino ter mencionado no prefácio de sua tradução

que Jerônimo fora um grande admirador da doutrina origenista, além de o ter acusado de

traduzir as obras de Orígenes com modificações nas expressões doutrinárias ambíguas. Tal

declaração irritou Jerônimo, extremamente zeloso para com a ortodoxia doutrinária, o que

o fez cortar de vez relações com Rufino.

7 REALE, Giovanni, Antiseri, Dario. História da filosofia: patrística e escolástica. 5ª ed. São Paulo: Paulus,

2011, v. 1, p. 59-60.

19

4.5. Máximo o confessor (580 – 662)

Máximo viveu entre 579 e 662 e pode ser considerado como o último

grande representante da Patrística grega. Sua importância se dá tanto pelo aspecto

filosófico, tendo em vista que ele segue uma tendência neoplatonista repensada em função

da teologia cristã, quanto pelo aspecto místico-ascético, sobretudo no que diz respeito à sua

cristologia, pois foi um ardoroso defensor do dogma cristológico sancionado pelo Concílio

de Calcedônia (a presença da natureza humana e divina em Cristo). Combateu, assim, uma

heresia surgida em sua época denominada de monotelismo, que defendia que, em Cristo,

há de ter apenas uma vontade, sendo que é a vontade divina que absorve e anula sua

vontade humana. Máximo, ao contrário, afirmou que em Cristo há duas atividades e duas

vontades: a divina e a humana. Assim, conseguiu sair vitorioso na tese de Cristo como

“verdadeiro Deus e verdadeiro homem”, conforme inscrito no credo niceno-

constantinopolitano.

Todavia, ainda que tenha saído vitorioso desta disputa dogmática, padeceu

severas consequências e perseguições e, por esse motivo, é chamado de o “confessor”, ou

seja, por ter sido testemunha da verdadeira fé em Cristo.

Em uma de suas obras, denominada Ambigua, Máximo apresentou cinco

distinções fundamentais da realidade: Deus-criatura; mundo inteligível-mundo sensível;

céu-terra; paraíso-mundo habitado; homem-mulher. A partir da posição central do homem,

que é imagem de Deus e, ao mesmo tempo, é um microcosmo (um privilegiado anel de

conjunção de todos os seres), Máximo concluiu que a tarefa de unificação universal

(reminiscência do “uno” neoplatônico), confiada por Deus ao homem e que foi prejudicada

devido a queda deste no pecado original, foi plenamente realizada no Verbo, em que a

natureza divina e humana se uniram, sem mistura:

“Uma vez que, portanto, o homem, depois que foi criado, não se moveu

naturalmente para o imóvel, como seu Princípio (quero dizer, Deus), mas se dirigiu,

contra a natureza, voluntariamente, de modo irracional, para aquilo que está abaixo

dele, sobre o qual ele próprio, por ordem divina, teria devido comandar (...), e

assim pouco faltou para que de novo miseravelmente corresse o perigo de afundar

no não-ser, por isso são transformadas as naturezas (...). E Deus se torna homem a

fim de salvar o homem perdido, tendo unificado em si as partes dispersas da

natureza na sua totalidade e as formas universais dos particulares, de que devia

surgir por natureza a união daquilo que estava dividido (...). E assim realizou o

grande Desígnio do Pai, recapitulando tudo aquilo que está no céu e sobre a terra

em Si, em que tudo foi criado” (Ambigua)8.

8 REALE, Giovanni, Antiseri, Dario. História da filosofia: patrística e escolástica. 5ª ed. São Paulo: Paulus,

2011, v. 1, p. 61-62.

20

Desta sua original formulação filosófica e teológica, eminentemente

cristocêntrica, surgiram grandes estudiosos modernos de seu pensamento, como Hans Urs

von Balthasar, que associou a existência humana ao ato litúrgico. Ainda sobre Máximo,

dentre suas obras principais, podemos destacar o já mencionado Ambigua, como também

Pensamentos sobre o amor, pensamentos sobre o conhecimento de Deus e sobre Cristo,

Livro ascético, Interpretação do pai-nosso, Discussão com Pirro, dentre outras.

5. “DECADÊNCIA” E TRANSIÇÃO PARA O PERÍODO ESCOLÁSTICO

Quando nos referimos a este último período do período patrístico como

“decadência” não estamos dizendo que representa um período de enfraquecimento

intelectual, mas sim, numa mudança de cenário da cristandade. Uma das características

marcantes deste período foi o fim das Escolas catequéticas e o preparar de um novo tipo de

estrutura, que séculos posteriores dariam lugar às escolas urbanas.

Um outro fator importante deste período é a Queda do Império Romano do

Ocidente em 476, com a tomada do Império pelos bárbaros. Neste cenário de crise, a

Igreja atuou expressivamente no processo de educação destes bárbaros e desta nova

civilização, cuja atuação dos monges foi imprescindível. Neste sentido, os teólogos desta

época priorizavam assuntos de ordem mais “prática” ou “pastoral” ao invés das defesas

acerca da dogmática católica, que prevaleceram durante o apogeu da patrística.

Neste momento, veremos autores que representam a transição entre o período

patrístico e o medieval, onde o método escolástico tem seus primeiros passos e começa a

ser, ainda que em germe, elaborado. Tais autores foram responsáveis por conservar o

legado heleno-romano para a posteridade medieval. Deste modo, estudaremos três

principais autores que poderíamos dizer que representa o fim do período patrístico: Boécio,

Gregório Magno e João Damasceno.

5.1. Severino Boécio (475 – 525)

Nascido em Roma por volta do ano de 475, Boécio exerceu importantes

ofícios de ordem política, chegando a ser Senador romano, todavia, por investida de seus

inimigos, fora acusado de corrupção e ficara preso durante um tempo, mas, ainda que

sofrendo tais perseguições políticas, dedicou-se intensamente aos estudos filosóficos e

teológicos.

Foi o tradutor de importantes autores, tendo sito o primeiro a traduzir a

Lógica de Aristóteles do grego para o latim e também traduziu o Isagoge de Porfírio (é

uma espécie de introdução às Categorias de Aristóteles). Assim como estas, buscou

traduzir outras várias obras de lógica, moral e física de Aristóteles, bem como traduziu

também várias obras de Platão, para depois elaborar uma concordância substancial entre os

dois filósofos. Suas traduções e comentários aos autores clássicos influenciaram, assim, a

21

vários autores posteriores. Sua influência também se estende pelo seu método de trabalho

intelectual (denominado lectio); pelo modo de condensar em fórmulas precisas o

pensamento (sententiae); e especialmente por sua hierarquização das ciências, que é,

eminentemente, a distinção entre filosofia prática (que engloba a moral e a política) e

filosofia teórica (que engloba metafísica, psicologia e física).

Uma importante questão levantada por Boécio, a partir da leitura de

Porfírio, e que perpassou por toda a escolástica, foi a questão dos universais. Boécio

encontrou, nesta temática, três questões fundamentais:

1. Existem ou nãos os universais?

2. Os universais são ou não são corpóreos?

3. Caso sejam incorpóreos, estão unidas ou não às coisas sensíveis?

Porfírio levantou tais questões, contudo, não estabeleceu soluções. Já Boécio,

concebeu respostas que podem ser consideradas de vertente realista-moderada. O universal

só existe enquanto universal no intelecto e, por isso, são incorpóreos. É através da

abstração que se obtêm os universais.

Sua obra mais famosa foi A consolação da filosofia, obra de expressiva

influência filosófica e espiritual. Foi escrita por Boécio enquanto estava na prisão. Um dos

temas abordados em seu livro é a natureza do bem, que não se encontra nas riquezas ou nos

prazeres, que são vis e ilusórias, mas sim e tão somente em Deus, pois, nos dizeres de

nosso autor, “tanto a felicidade como Deus são o sumo bem”, assim, sob uma inspiração de

caráter neoplatônico, Boécio afirma que Uno, Bem e Deus são a mesma coisa.

Outro problema enfrentado por Boécio é acerca da existência do mal, tendo em

vista que a filosofia nos diz que os maus se tornam desonestos, embrutecidos e infelizes,

no entanto, Boécio observa que existem pessoas boas são, por vezes injustiçados e os maus

não são devidamente condenados. Todavia, Boécio encontra a resposta na Providência, que

é a ordem expressa pelo Criador e que dispõe estavelmente todas as coisas, ainda que cause

a incompreensão por parte dos homens. Deste modo, até mesmo os atos maus, aos serem

praticados, visam o bem, mas, dele são desviados por um despercebido erro de avaliação.

Não obstante, a Providência também não fere a liberdade do homem, na

medida em que, embora este tenha o livre-arbítrio para a escolha de seus atos, em Deus

estão presentes todos os acontecimentos futuros em todas as suas possibilidades. Assim,

Deus conhece todos os nossos atos no contexto da eternidade.

Em temas relacionados à metafísica e à antropologia, Boécio também possui

posturas originais. Algo interessante proveniente de sua antropologia é sua definição de

pessoa: “Pessoa é substância individual de natureza racional”. Tal definição tornou-se

clássica para a antropologia, sendo utilizada pelos mais diversos autores que o sucederam,

como Tomás de Aquino.

22

5.2. Gregório Magno (~540 – 604)9

Neste período final da patrística, Gregório Magno ocupa um papel

importante, visto que pode ser considerado como o último Padre latino, marcando, assim, o

final do período patrístico no Ocidente. Seu legado não foi o de ter trazido algum

pensamento filosófico original, mas sim, pelo seu empreendimento pastoral e teológico,

obteve relevante notoriedade dentre os teólogos cristãos.

Nascido em Roma e de família senatorial e cristã, destacou-se desde sua

jovem pela sua capacidade intelectual e provavelmente estudara Direito, tornando-se,

posteriormente prefeito da cidade. Todavia, exercera tal cargo por aproximadamente dois

anos, pois decidiu abandoná-lo para seguir uma vida monástica. Neste período, escreveu

obras de notório valor, como o Comentário ao livro de Jó. Em 590, Gregório fora

aclamado Papa e, mesmo resistindo, foi sagrado bispo de Roma em 3 de setembro de 590.

Enquanto pontífice empenhou-se na reestruturação das instituições

religiosas, que ressentiam da dilaceração e da decadência, e estendeu essa reestruturação ao

sócio-político. Na liturgia, incrementou o canto, reorganizou o Sacramentário, ampliou o

Antifonário, formentou as celebrações dos mártires e as ocorrências importantes do ano

litúrgico e, por este motivo, até mesmo certos estilos musicais aplicados na liturgia

levaram seu nome, sendo conhecidos como cantos gregorianos, graças às reformas

implementadas por Gregório.

Conhecedor das necessidades materiais e espirituais de seu rebanho,

Gregório mostrou-se como um verdadeiro pastor e, por esta sua virtude, lhe foi

acrescentado o título de “magno”. Suas homilias e cartas apontam quão atento era a seus

interlocutores, a seus fiéis, com os quais mantinha contato direto. Por este motivo,

Gregório cunhou a Regra Pastoral, obra transbordante de acurado e perspicaz zelo para

com a cura das almas. Dividida em 4 partes, onde a primeira, a segunda e a quarta partes

tratam do pastor em si, e a terceira, não desconexa das anteriores, de suas atividades. Não

se trata, assim, de um livro que seja apenas expressão de um conjunto de normas ou

preceitos que devem ser seguidos pelos pastores, mas sim ordem (tendo em vista que o

termo “Regula” tem o significado de “ordem” para os medievais), ou seja, tem como

objetivo a descrição do dinamismo entre o ser e o agir do pastor, a quem foi destinada.

Sua obra adquiriu grandes proporções durante toda a Idade Média e até hoje

é uma leitura recomendada não apenas para os ministros ordenados, mas para todos os

envolvidos em atividades pastorais, a fim de mostrar como o cristão deve assemelhar-se a

Cristo Bom Pastor.

9 Cf. GREGÓRIO, Santo. Regra Pastoral. Trad. Sandra Pascoalato. São Paulo: Paulus, 2010.

23

5.3. João Damasceno (~650 – 749)

João Damasceno pode ser considerado como a última expressão da patrística

grega (ou oriental). Deve-se lhe dar o mérito de ter sido um grande sistematizador. Sua

obra chamada Fonte do conhecimento, dividida em três partes: filosófica; história das

heresias; teológico-doutrinária. Foi, por muito tempo, um referencial de estudo. A terceira

parte, sobretudo, tornou-se modelo para as sistematizações escolásticas. Ao contrário de

boa parte dos Padres gregos, que tinham predileção pelo platonismo, João Damasceno

apoiou-se na filosofia aristotélica. Desta forma, adquiriu no oriente tamanho prestígio e

autoridade similar ao concedido a Tomás de Aquino no Ocidente.

BIBLIOGRAFIA

GILSON, Étienne. A filosofia na idade média. Trad. E. Brandão. São Paulo: Martins

Fontes, 1998.

REALE, Giovanni, Antiseri, Dario. História da filosofia: patrística e escolástica. 5ª ed. São

Paulo: Paulus, 2011, v. 1.

SARANYANA, Josep-Ignasi. A Filosofia Medieval: Das origens patrísticas à escolástica

barroca. Trad. Fernando Salles. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência

“Raimundo Lúlio”, 2006.


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