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SOBRE ENCONTROS E MOVIMENTOS: UNIFICAÇÃO E PLURALIZAÇÃO
NAS LUTAS SOCIAIS RURAIS
Marcela Rabello de Castro Centelhas1
RESUMO: O objetivo do presente trabalho é analisar os processos de unificação e
pluralização das lutas sociais no mundo rural brasileiro. A principal questão que move a
pesquisa é compreender como a unidade das lutas, elemento presente no discurso de
diversas organizações do campo, é construída e tematizada no contexto dos encontros
de movimentos sociais. Os encontros são eventos com duração pré-estabelecida e que
reúnem um grande número de coletivos, movimentos, sindicatos e associações.
Observamos que eles representam uma modalidade de mobilização e organização
política que se configura a partir de arranjos característicos dos movimentos sociais pós-
década de 1980, conjugando de maneira singular, assim, as dimensões da unidade e da
pluralidade. Nossa proposta é que para compreender como essas dimensões se
apresentam nesses encontros precisamos voltar o olhar etnográfico para as práticas e
para o modo como esses eventos são construídos em seu “cotidiano”. É nesse sentido
que tomamos os encontros enquanto rituais políticos, pois acreditamos que a integração
entre as simbologias e o processo ritual é fundamental para o entendimento de como
unidade e pluralidade são sentidas, produzidas, reproduzidas e transformadas em
situações empíricas de enfrentamento e luta.
Palavras-chave: encontros; unificação; pluralização; movimentos sociais; rituais.
INTRODUÇÃO
Este trabalho procura investigar alguns elementos e nuances dos processos de
unificação e pluralização das lutas sociais no campo brasileiro, principalmente para
compreender de que maneira as dimensões da unidade e pluralidade se apresentaram e
se apresentam para aqueles que se organizam politicamente. Daremos ênfase a como a
unidade das lutas – proposta presente no discurso de diversos coletivos e organizações
– é construída contemporaneamente no contexto dos encontros de movimentos sociais.
Por unificação/unidade, entendemos um conjunto de valores e práticas que buscam
integrar, aproximar, traçar correspondências, traduzir experiências, aglutinar pessoas e
organizações, além de um universo semântico que se associa às ideias de articulação,
integração, semelhança entre outras. Por pluralização/pluralidade, compreendemos
também valores e práticas, mas que se relacionam à dispersão, à fragmentação, ao
1 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ).
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conflito e à divergência e que incluem as noções de diferença, multiplicidade e
diversidade2.
Os encontros se caracterizam por eventos cujas datas e duração são pré-
estabelecidas e que se prolongam por períodos de três a quatro dias. Eles podem ter um
caráter local, estadual, regional ou até nacional, mas geralmente, independente de sua
abrangência, costumam reunir representantes de diversos coletivos, entre eles,
movimentos sociais, ONGs, sindicatos, associações e, algumas vezes, gestores públicos.
O caráter diverso das experiências de encontro faz com que seja difícil definí-las de
forma precisa e, por isso, nos preocupamos mais em trabalhar os encontros enquanto
uma modalidade de organização e mobilização política dos movimentos sociais rurais,
que se destaca das demais por encadear de forma singular as referidas dimensões de
unidade e pluralidade.
Diferenciar os encontros dos demais repertórios de ação das organizações rurais,
tais como reuniões, assembleias, conferências, no entanto, exige que coloquemos
algumas observações relativas às modificações em torno das ideias de unidade e
pluralidade ao longo do tempo. Veremos de forma mais aprofundada na primeira parte
deste artigo como estas se transformaram ao longo de um período que vai da década de
1960 até os anos 1990.
Na segunda parte do trabalho, discutimos que, para entender como unidade e
pluralidade são sentidas, percebidas, produzidas e reproduzidas no contexto atual dos
encontros é preciso vê-los “em ação”. Dialogamos com autores, trabalhos e etnografias
que, apesar de muitos distintos em seus objetos e temporalidades, trazem em comum a
preocupação de analisar a política e os movimentos sociais dando privilégio à
experiência, ao vivido e, com isso, à ação social.
Na terceira e última seção do artigo, trabalharemos alguns dados etnográficos de
dois encontros acompanhados de modo a sinalizar algumas pistas de como os
repertórios de ação desses movimentos sociais se relacionam com os universos
simbólicos em jogo e, principalmente, como as ideias de unidade e pluralidade são
construídas, ao que elas se referem e quais múltiplas significações e valores elas
assumem.
2 É preciso pontuar que ambas as expressões (unidade e pluralidade), quando aparecem grafadas sem
nenhum destaque no texto, não constituem noções “nativas”, mas construções da pesquisadora e se
relacionam com as definições contidas no parágrafo anterior. Todavia, em diversos momentos, não
exatamente esses termos, mas seus cognatos são também utilizados pelos interlocutores desta pesquisa e,
quando isso ocorrer, estas e demais categorias “nativas” aparecerão em itálico.
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CAMPONESES, TRABALHADORES RURAIS E OS NOVOS MOVIMENTOS
SOCIAIS
Para pensar como a unidade e a pluralidade são construídas nesses encontros
será necessário fazer um breve resgate de como elas se deram historicamente na
constituição das organizações políticas e das categorias de mobilização no mundo rural
e de como os significados e as práticas a elas vinculados foram se alterando.
No início das grandes mobilizações camponesas, que datam final da década de
1950 e começo da de 1960, observa-se que unidade era um valor que estava referido,
principalmente, à necessidade de dar direção aos enfrentamentos dispersos, por meio da
tradução dessas situações específicas de luta numa linguagem de classe, sob a
identidade mobilizadora de camponês e a bandeira unificadora da reforma agrária
(MEDEIROS, 1995). A pluralidade, por sua vez, dizia respeito tanto ao reconhecimento
da diversidade de condições de vida e trabalho desses camponeses – principalmente na
diferenciação entre lavradores (pequenos proprietários) e assalariados ou semi-
assalariados –, quanto à multiplicidade de organizações e projetos políticos que
disputavam na época.
O golpe militar de 1964 trouxe muitas dificuldades para as organizações e seus
atores, que sofreram com a dura repressão que se instaurou. Ainda assim, perante esse
cenário de perseguições, prisões e assassinatos, os grupos organizados – principalmente
o Movimento Sindical de Trabalhadores Rurais (MSTR) – conseguiram manter algumas
frentes de atuação em defesa de direitos adquiridos, além de lograr construir uma
unidade em torno da noção de trabalhador rural (PALMEIRA, 1985). Os congressos,
conferências e demais mobilizações coletivas eram espaços de formação de dirigentes e
socialização de bandeiras e práticas, no sentido de efetivar uma resistência cautelosa e
insistente e agir sobre a diversidade sindical existente. Além do movimento sindical,
não há como falar desse período sem fazer referência ao papel que teve a configuração
organizacional e a linguagem político-religiosa das Comunidades Eclesiais de Base e
demais organismos pastorais na construção de elementos comuns nos processos de
enfretamento e luta pela terra. Talvez seja possível colocar que este papel mediador da
Igreja não só unificou, como também gerou novas diferenciações, através da criação de
novos perfis de ação e mobilização marcados pelo igualitarismo comunitário e pelo
protagonismo das “bases” (NOVAES, 1985; POLETTO, 1985).
Argumentamos, com base em Almeida (1993), que a década de 1980 representa
um momento de multiplicação das lutas sociais e, principalmente, de pluralização das
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categorias de mobilização no mundo rural. Grupos sociais antes invisibilizados surgem
na cena pública a partir de denominações de uso local, que se politizam nos embates e
conflitos com o Estado ou com antagonistas específicos. Extrativistas, seringueiros,
castanheiros, quilombolas, quebradeiras de côco babaçu, entre outros são algumas
dessas denominações – que posteriormente se constituem em movimentos sociais – que
aparecem não necessariamente referidas às noções de camponês ou trabalhador rural e
que mais do que novas “identidades”, incorporam novas modalidades de ação e
organização, extrapolando, muitas vezes, a estrutura sindical pré-existente (ALMEIDA,
2006).
Diante desse quadro de pluralização das lutas sociais, apontamos que os
encontros, enquanto “nova”3 modalidade de organização e mobilização, parecem surgir
como uma tentativa de articulação dessas mesmas lutas. Almeida (1989) se remete ao
ano de 1989 como o “tempo dos primeiros encontros”, pois nele ocorreram inúmeros
deles, como por exemplo o I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, I Encontro dos
Povos da Floresta, II Encontro Nacional dos Seringueiros, I Encontro Nacional dos
Trabalhadores Atingidos por Barragens, III Encontro das Comunidades Negras Rurais
do Maranhão, entre outros. O autor também coloca que, baseado nas cartas finais desses
eventos, é possível perceber que eles evidenciam certos acordos e consensos em nível
local ou até nacional, ao apontarem para bandeiras como a reforma agrária ou a
demarcação das terras indígenas. Além disso, ele pontua que esses documentos
apresentam um léxico permeado por noções como aliança, juntar forças, acordo, o que
indicaria para uma perspectiva de construção da unidade ou da articulação.
Se os encontros manifestam claramente a ideia de unidade, é possível indicar
que eles também colocam a dimensão da pluralidade ou da diversidade. Como vimos,
umas das características desses eventos é sua proposta de fazer “encontrar” um espectro
bem amplo de movimentos e organizações e, neste sentido, eles diferem de demais
acontecimentos como os congressos e conferências (como os da Confederação dos
Trabalhadores da Agricultura (CONTAG) ou do Movimentos dos Trabalhadores Rurais
Sem-Terra (MST)) – apesar de nestes também estar presente a perspectiva da
diversidade, mas de modo diferenciado. Contudo, a pluralidade nos encontros não está
3A noção de “nova” está entre aspas para indicar que os encontros, tal como estão colocados neste
trabalho, surgem como algo “novo” na década de 1980. Hoje em dia, eles não são algo propriamente
novo, já que desde então se passaram mais de trinta anos. Além disso, os encontros podem ser algo
“novo” somente em alguns sentidos, pois em outros eles guardam muitas semelhanças com os congressos
e conferências das décadas de 1960 e 1970.
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somente referida à multiplicidade de organizações que eles congregam, mas também ao
caráter de valor que a diversidade assume nestes espaços.
O processo de pluralização dos movimentos sociais que se intensifica na década
de 1980 não só multiplicou movimentos, categorias e formas de ação, como também
incorporou novos elementos às lutas sociais no campo. Os movimentos surgidos nesse
período além de politizarem denominações de uso local, também se caracterizavam pela
defesa de suas formas específicas de apropriação dos recursos naturais e pela tentativa
de manutenção dessas mesmas formas. Sendo assim, eles veiculavam não só a dimensão
de luta pela terra como meio de produção, mas também como forma de reprodução de
um modo específico de vida e ocupação do território, que incorpora um certo discurso
acerca da “natureza” e da “cultura”4. O elemento pluralidade, portanto, no contexto dos
encontros, parece estar associado a uma concepção específica da diversidade enquanto
cultural, étnica, relacionada com o respeito a esses diferentes “modos de viver” e que se
transforma em um valor que esses espaços devem expressar e articular.
RITUAIS E POLÍTICA: ENCONTROS TEÓRICO-METODOLÓGICOS
Os encontros são, com isso, a maneira como buscamos recortar essa realidade
complexa das lutas sociais no campo. A questão que surge, então, é: como analisá-los?
Como compreender as dimensões da unidade e pluralidade no contexto desses eventos?
Trazemos, inicialmente, um debate acerca da relação entre política e rituais, com
o intuito de trabalhar como os símbolos e os processos de simbolização representam um
aspecto fundamental – e muitas vezes negligenciado – do fazer político e como o caráter
muitas vezes não-intencional, não-reflexivo, padronizado e “sagrado” desses símbolos e
processos revela que a política moderna não pode ser pensada unicamente a partir da
racionalidade, da preponderância do indivíduo, da espontaneidade e da secularidade. Os
símbolos não só são fundamentais para a política, como é por meio deles que se
constroem as representações e o imaginário acerca das instituições políticas e também
das disputas em torno dessas instituições (KERTZER, 1988). Os rituais, como meios de
comunicação simbólica, seriam, portanto, essenciais para a vida política, pois
condensariam elementos de uma determinada cosmologia, ensinando-os, reforçando-os
e, também, transformando-os.
4Alguns autores discutem (CARNEIRO DA CUNHA, 2009; CARNEIRO DA CUNHA e ALMEIDA,
2009) como que em determinado momento, as noções de “cultura” e “natureza” passam a ser
incorporadas nos repertórios de ação de determinados movimentos sociais, como dos seringueiros,
quilombolas e indígenas.
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A aproximação entre rituais e política, no entanto, não se daria unicamente pela
importância da perspectiva simbólica. Para compreender como os rituais condensam e
comunicam determinados elementos de dada cosmologia é preciso que se leve em conta
não só o seu conteúdo simbólico, mas também a forma pela qual esse conteúdo é
comunicado. Trazendo para nossa questão de pesquisa, entendemos que unidade e
pluralidade precisam ser analisadas não só em seus significados, mas levando em conta
o modo pelo qual são praticadas. Não separar o conteúdo do processo ritual e, com isso,
verificar como as representações e as ações estão intimamente relacionadas no universo
da prática são, também, nossos objetivos neste trabalho.
Buscando não tomar unidade e pluralidade como elementos dados da ação
política, nem muito menos como frutos de consensos/dissensos em espaços
deliberativos que os movimentos sociais participam, discutimos a relevância de
trabalhá-las a partir de uma abordagem etnográfica que enfatize os aspectos mais
cotidianos do fazer político, privilegiando elementos do “vivido” e da experiência. Para
tanto, mobilizamos uma determinada bibliografia que procura trabalhar as imbricações
entre rituais e política e que resgata a importância do processo de simbolização e das
ações simbólicas na construção das causas, projetos e bandeiras políticas (cf. CHAVES,
2000; PALMEIRA; HEREDIA, 2010; BENITES, 2014 entre outros). As relações
possíveis entre rituais e política, no entanto, não se esgotam no aspecto simbólico, mas
perpassam, também, o modo pelo qual esses símbolos influenciam as pessoas, ou em
termos durkheimianos, como as representações sociais se externalizam.
Vimos, então, que para entendermos o modo pelo qual os rituais reforçam – e
também transformam – o vínculo social e, por isso, são tão essenciais à vida política
moderna, é necessário que não separemos os símbolos do processo ritual, procurando
articular aspectos de sua “forma”, isto é, como são praticados, com seu conteúdo
simbólico ou cosmológico (TAMBIAH, 1996). Essa perspectiva resulta, portanto, em
um olhar privilegiado para a prática, com o intuito de entender como os coletivos,
movimentos, grupos ou agentes “fazem” a política no cotidiano e como esse “fazer” nos
informa questões centrais acerca das disputas, significados e concepções em jogo.
Sendo assim, a abordagem dos rituais nos permite explicitar como as grandes narrativas
acerca da política e dos movimentos sociais – entre elas, a questão da unidade das lutas
– são postas à prova na esfera da ação.
Os encontros, com isso, não seriam apenas um instrumento de organização
política dos movimentos sociais, mas seu “fazer” implicaria na própria realização – e
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transformação – de certos valores e práticas muito caros às cosmologias políticas desses
mesmos movimentos. O resgate da importância dos símbolos e dos ritos para se pensar
a política é, portanto, um esforço no sentido de compreender unidade e pluralidade na
teia de ações e significados que constroem os encontros.
CONSTRUINDO ENCONTROS E SEUS MOVIMENTOS
A terceira parte do artigo busca, deste modo, colocar a discussão feita acima em
termos etnográficos, para apreender como unidade e pluralidade são acionadas em
contextos práticos e como elas se vinculam aos repertórios de ação dos movimentos
sociais. A partir da análise minuciosa de dois encontros acompanhados, procuraremos
compreendê-las em seu caráter polissêmico, processual, dando ênfase ao aspecto do
“fazer-se”, resgatando o que nos diz E.P. Thompson. Neste sentido, torna-se
fundamental voltar a atenção para elementos destes espaços que geralmente são
negligenciados por algumas abordagens da política e naturalizados pelos próprios
agentes.
Ao etnografar os encontros não trataremos apenas daquilo que neles é discutido
ou pautado – normalmente presume-se que esta é a finalidade destes eventos, traçar
alianças, construir bandeiras, discutir pautas –, mas de todo o seu processo de
construção, evidenciado “detalhes” e aspectos mais rotineiros (tais quais, como
acontecem as discussões, quem fala, quem não fala, como fala, de onde fala, como se
faz um ato etc). Além disso, o próprio evento é constituído por uma trama de ações e
atividades – shows, refeições, apresentações culturais, feiras, conversas, atos públicos
entre muitos outros – que revelam que “construir pautas” é apenas um aspecto da rica
vivência que são os encontros. Como será possível perceber, esses espaços apresentam
uma grande complexidade de atores, movimentos, símbolos, bandeiras e práticas, que
de alguma forma espelham a grande diversidade das lutas sociais no campo brasileiro.
Deste modo, trata-se de um grande desafio traçar relações, implicações e
correspondências neste universo complexo e híbrido que são os encontros.
Apesar de muito diferentes em termos de suas propostas, de sua organização e
do número de participantes, tanto o III Encontro Nacional de Agroecologia (ENA)
como o I Congresso Intercultural da Resistência Povos Indígenas e Tradicionais do
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Maraká’nà (COIREM) 5 apresentam algumas semelhanças em termos de seus
“formatos”. Ambos ocorreram em campus universitários e tiveram duração de quatro
dias. Nesses dias, as atividades eram estruturadas em torno de uma programação
entregue aos participantes no momento do credenciamento, que combinava diversas
atividades, como reuniões, plenárias, assembleias, apresentações, shows, seminários,
oficinas, refeições (ou hamé puia), roda de maraká, feira, atos públicos, audiência
pública entre outros.
Em sua abordagem acerca dos rituais, Tambiah (1996) salienta que estes
possuem, entre outras, a característica de se destacar do cotidiano. A marcação dessa
distinção com relação aos encontros aparece nas palavras dos meus interlocutores
principalmente pela separação que participar dele instaura da casa, da família e do
trabalho. O deslocamento até uma outra cidade também é algo salientado, que se para
alguns mais acostumados com esse tipo de evento não se trata de uma novidade, para
outros significa a primeira vez que saem de seus estados ou que viajam de avião. Se
essa distinção com o cotidiano é perceptível, também o é a existência de uma rotina
nesses espaços, que remetem a uma padronização das práticas e procedimentos, própria
do processo ritual. Essa rotina, instituída (mais ou menos rigidamente) pela
programação, apresentava, em linhas gerais, aspectos similares nos dois eventos.
Os dias começavam com o café da manhã e com alguma atividade de mística, no
caso do ENA, e sagração, no COIREM. No período da manhã realizavam-se atividades
de discussão, como plenárias, sessões simultâneas, seminários temáticos, reflexões
temáticas. O tempo do almoço marcava sempre o fim de uma atividade e o início de
outra. Pela tarde, as atividades continuavam até o momento do jantar, que marcava o
término das atividades da tarde e principiava um momento mais festivo, que no ENA
eram shows, teatros ou apresentações de artistas da região e no COIREM era chamado
de noite intercultural. Com relação aos encontros e a totalidade de seus dias, é possível
perceber também alguma aproximação entre o ordenamento das atividades. No primeiro
dia havia o credenciamento, um momento de apresentação ou de plenária inicial e um
outro momento de debate chamado de Reflexões Temáticas ou de Plenária da
Juventude. No segundo e terceiro dias, os debates em torno de temas específicos
continuaram e, em ambos, esses debates ocorreram com a separação dos participantes
em grupos. Essas discussões em grupo eram registradas por meio de uma relatoria e
5 O III ENA ocorreu na cidade de Juazeiro-BA entre os dias 16 a 19 de maio de 2014. O I COIREM
realizou-se na cidade de Seropédica-RJ nos dias 6 a 9 de junho de 2014.
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essa ata foi trazida para o conjunto dos participantes na plenária final. O último dia do
ENA e do COIREM foram marcados pela realização da plenária final e pelos atos
públicos. No COIREM, além do ato público, realizou-se também uma audiência pública
sem a presença de gestores do governo, com objetivo de denunciar o holocausto
histórico dos Povos Tradicionais.
Assim como nos comícios analisados por Palmeira e Heredia (2010) e nas
reuniões descritas por Comerford (1999), nesses eventos parece haver uma preocupação
de combinar momentos mais solenes, com outros de maior descontração ou
sociabilidade. É nesse sentido que podemos identificar três elementos, a “discussão”, a
mística/sagração e a “sociabilidade”, que compõem grande parte das atividades
desenvolvidas ao longo desses encontros e que se relacionam com a forma pela qual os
participantes tematizam sua participação nessas distintas atividades. É importante
destacar que estes não constituem necessariamente etapas de um determinado
acontecimento, mas podem estar presentes numa mesma atividade, inclusive de forma
simultânea.
As reuniões, plenárias, assembleias, apresentações, seminários, e demais
momentos de “discussão”, apesar de distintos entre si, mantinham alguns elementos em
comum, como a existência de uma relatoria (e também de uma facilitação gráfica, no
caso do ENA), que registrava o que era discutido e uma mesa, que coordenava a
atividade. A composição da mesa variava muito de acordo com a atividade, mas contava
sempre com alguém da organização, que a coordenava. Em quase todos os espaços de
“discussão” dos dois encontros, a mesa contava com pessoas de categorias, identidades
e movimentos bem diversificados, que iam relatar, muitas vezes, sua experiência (de
luta ou resistência), o que parece indicar para uma preocupação de tentar fazer
representar a diversidade presente no evento na composição desse espaço.
Essa mesa por vezes se apresentava em destaque, como nas plenárias inicial e
final do ENA, na qual seus integrantes ocupavam um palco a frente dos demais
participantes ou também aparecia mais dissolvida, em especial nas atividades em roda e
com menor número de pessoas. Essa coordenação ou mediação, como era chamado o
trabalho de alguns que ocupavam a mesa, consistia em introduzir a discussão ou fazer a
contextualização, expondo sobre o que se discutiria naquele espaço, bem como explicar
como seria feita a discussão (quanto tempo cada um falaria, o ordenamento das falas e
das ações, entre outros). Esse trabalho era geralmente executado por alguém referido à
organização do evento. A existência dessa mesa era justificada pela necessidade de se
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conduzir o debate, de modo que os objetivos da atividade fossem cumpridos. Era muito
comum que o integrante da mesa pedisse que as pessoas se ativessem ao tempo de fala
ou à temática designada no princípio.
A existência dessa mesa instituía um outro elemento, chamado de público ou de
plenária, que era justamente os demais participantes que não compunham a mediação,
nem a mesa. Dependendo do formato da discussão, esse público falava mais ou menos,
pois em espaços mais solenes como a Plenária Inicial do ENA não se abriu a fala para
os participantes, mas em outros, como as Sessões Simultâneas, quase todos os
integrantes se pronunciaram. As falas da mesa e do público estavam de certa forma
relacionadas, tanto porque havia uma expectativa da coordenação de que a fala da
plenária se referisse à fala da mesa, como porque, quanto mais tempo a mesa usasse – e
como ela quase sempre falava primeiro –, menos tempo restava para as falas do público.
Essa questão do tempo e da quantidade das falas era algo constantemente
exposto ao longo desses momentos de “discussão”. Se por um lado era indesejável que
alguém falasse demais, em alguns momentos, principalmente no COIREM, as pessoas
eram chamadas a se pronunciar mais, ou a inexistência de alguém disposto a falar
gerava constrangimentos. Isso ficou mais evidente no desenrolar das Reflexões
Temáticas (no primeiro dia à tarde desse mesmo Congresso), na qual após a fala da
mesa, quando abriu-se o microfone para a plenária, por alguns minutos ninguém se
prontificou a falar. Esse incidente, aparentemente simplório ou corriqueiro, no entanto,
pode indicar algumas interpretações. Ao longo de todo o evento, foi possível perceber
que nem todos estavam igualmente familiarizados com esse formato de reuniões e
assembleias, que se caracteriza basicamente pelo falar em público e que pode requerer
uma certa habilidade – como desenhou Comerford (1999) ao analisar as reuniões de
trabalhadores rurais – de falar bonito6. Nessa mesma situação, um rapaz comentou que
lhe desagradava esse formato muito pronto da atividade, porque ele não propiciava o
diálogo e a participação de todos. Em um outro momento desse mesmo Congresso, na
Apresentação das delegações do terceiro dia, houve uma total dissolução entre mesa e
público, pois os integrantes da primeira foram chamando pessoas da plenária para
falarem, e então outras pessoas foram se candidatando até o momento em que o
6Em conversa com um dos organizadores do COIREM, foi colocado que muitas das lideranças indígenas
que estavam sob muita pressão, isto é, que estavam vivenciando fortes conflitos e, por isso, tinham uma
maior trajetória de organização e resistência não tinham conseguido chegar ao evento por conta de atrasos
no financiamento. Essa fala se articula com uma percepção de que muitos dos presentes não dominavam
um certo “saber fazer“ ou linguajar destes espaços de reunião ou assembleia, e isso pode ser um
indicativo de porque houve tantos silêncios.
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mediador pediu que a estrutura – de divisão entre mesa e público – fosse seguida, o que
mesmo assim acabou não acontecendo. Esses incidentes nos mostram que, embora haja
todo uma simbologia e um esforço prático para que esses eventos articulem as
diversidades de modo a levar a uma união ou diálogo entre os diferentes movimentos,
seu formato – e o que ele exige em termos de práticas compartilhadas ou de “saber
fazer” – pode gerar novas diferenciações e conflitos entre os participantes.
Se havia nesses momentos de “discussão” uma expectativa em torno do como
falar, havia também acerca do que falar. O próprio processo de contextualização
objetivava criar um ponto de partida comum a que todos se referissem. No entanto, as
falas geralmente diziam respeito à experiência pessoal, do seu território, comunidade ou
luta. Essa dimensão da experiência parecia ser algo valorizado nos princípios
orientadores dos dois encontros. A noção de território, algo que apareceu como central
nos dois eventos, mas especialmente no ENA, e que como vimos está diretamente
relacionado com a ênfase em aspectos indenitários e culturais e com a reprodução de
um determinado modo de vida, coloca uma forma específica de valorização da
diversidade, que remonta à incorporação de elementos étnicos e culturais nos repertórios
das lutais sociais pós década de 1980 (ALMEIDA, 1993, 2006; CARNEIRO DA
CUNHA; ALMEIDA, 2009).
Esses relatos acerca das vivências eram muitas vezes carregados de expressões
como dor, sofrimento ao ser vítima de algo causado por aqueles considerados inimigos
(como o Estado, o agronegócio, o latifúndio, os grandes), mas também de alegrias ou
felicidades ao conquistar algo, sempre por meio de muita luta. Essa gramática
emocional que permeava as falas ao longo de quase todas as atividades, se por um lado
pode contrastar com a interpretação que alguns tem dos espaços de discussão – como
disse Chicão, dirigente nacional do MST, de que não eram espaços de lamentação –,
por outro parece ser a própria substância a partir da qual se traça uma correspondência
entre realidades de luta tão diversas. Em diferentes espaços, a possibilidade de união ou
de articulação entre pessoas vindas de lugares distintos, como também de grupos
diferenciados (camponeses e indígenas, indígenas e populações tradicionais), se
relacionava ao fato de enfrentarem o mesmo inimigo ou, ainda, de terem as mesmas
dificuldades, algo que remete a um sofrimento ou exploração diferentes em suas
expressões, mas mesmo assim entendidos como compartilhados.
A simbologia da união, entretanto, não estava relacionada somente ao
compartilhamento de dificuldades ou dos mesmos inimigos. De modo geral, ela era
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sempre entendida como necessária, mas ao mesmo tempo, concebida como um desafio.
Neste sentido, a noção de diversidade ou diferença era às vezes evocada para
exemplificar um desses desafios. Algumas falas remetiam-se à ideia de que o respeito à
diversidade não poderia ser uma forma de fragmentação das lutas ou que ser diferente
não significava não conversar ou conflitar. Na fala de um militante sindical, colocava-
se que as culturas deveriam ser preservadas, mas que existiriam condições objetivas que
seriam comuns a todos, operários, camponeses e indígenas: nas palavras dele, eram
todos trabalhadores que vendiam sua força de trabalho.
Por outro lado, principalmente em algumas falas do ENA, as ideias de
diversidade ou de culturas e saberes locais 7 eram entendidas elas mesmas como
estratégias de resistência face aos antagonistas e, como pudemos ver, eram princípios
organizadores do próprio formato e das atividades do evento. Em diversos momentos a
noção de união era evocada, também, como sinônimo de força e, paralelamente, a
dispersão era associada ao enfraquecimento. Essa separação entre unidade e dispersão
tem sua razão de ser na força política que ela produz, ao colocar a necessidade de unir
como algo superior às especificidades e idiossincrasias e, também, ao associar a união
com aumento da capacidade de enfretamento. Sendo assim, é importante pontuarmos
que, embora possa haver uma simetria entre os polos da unidade e da diversidade, com
ambas sendo estimadas pelos participantes, essa simetria não é absoluta, pois em uma
outra modalidade de pluralidade, relacionada à dispersão ou às divergências, esta é
entendida como uma ameaça à união e, portanto, é valorizada somente na media em que
possa ser resolvida por consensos e não “atrapalhe” a integração.
De modo geral, o que parece estar presente na polissemia em torno das noções
de união ou articulação é uma preocupação em mostrar qual era o princípio que
possibilitaria essa unidade, terem o mesmo inimigo, as mesmas dificuldades, serem
todos trabalhadores, sofrerem a mesma exploração.
Nesses espaços de “discussão”, ao falar acerca de seus territórios e
comunidades, os participantes também refletiam sobre suas práticas para além dos
encontros e, neste sentido, esses eventos assumiam o caráter que muitas vezes lhes é
imposto a priori, de planejar estratégias, de propor ações coletivas e pautas comuns. O
7Essa noção de diversidade como um repertório de resistência estava estreitamente relacionada com a
ideia mais geral de agroecologia, por esta ser uma bandeira que possui princípios e orientações gerais,
mas que em sua efetivação pressupõe o respeito às realidades locais.
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interessante dessa tentativa de construção de pautas comuns – contidas na Carta Final8,
mesmo que essa não contemple exatamente todas as discussões e temas tratados ao
longo dos encontros – para o tema que estamos abordando nesse trabalho é entender
quais práticas, ações, mobilizações e grupos são passíveis de serem articulados e, mais,
quais são os princípios de legitimidade e validade que os recortam. Certamente, essa é
uma questão muito extensa e que não é possível de ser respondida genericamente, sem
fazermos referência ao contexto e aos atores sociais em questão. O que podemos
entrever, no universo desses dois encontros acompanhados, é que a possibilidade de
articulação ou união é traçada frente a concepções plurais acerca dos caminhos da luta.
Sendo assim, a noção trabalhada de pluralidade não se refere somente à
diversidade de grupos sociais (camponeses, indígenas, quilombolas, quebradeiras de
côco, seringueiros, extrativistas, sem terra) que estes eventos propõe fazer “encontrar”,
mas também às diferentes inserções ideológicas e projetos políticos dos coletivos e
atores em questão. Esse aspecto ficou mais evidente no momento em que se
problematizava a relação com o Estado – algo muito presente em ambos os eventos.
Nesse sentido, percebemos que essa problematização sinalizava para um aspecto mais
amplo, acerca da reflexão nativa em torno de sua prórpia prática política.
Nesses espaços de “discussão”, como as plenárias, oficinas, seminários entre
outros, coloca-se constantemente diversas interpretações acerca de “como se deve
fazer”, pelo que é certo lutar, quais são as formas legítimas e ilegítimas de agir, que nos
mostram que esses eventos são, também, espaços de disputa de poder e de negociação
política, que não só trazem novas questões para os movimentos, como também
reafirmam e alteram as fronteiras dos “aliados”. Se a ideia nativa é que os encontros são
espaços de construção de um comum ou de uma articulação entre diversas organizações
e coletivos, essa união está diretamente relacionada com essas considerações em torno
da prática política, ou seja, é pela reflexão em torno dos limites e possibilidades de agir
e de se constituir enquanto uma organização ou movimento que se coloca com quem é
possível se unir ou se articular.
8 É interessante perceber o modo como essas cartas, presentes em ambos os eventos, são de fato
construídas. No ENA, ela foi lida na Plenária Final e não pude acompanhar a forma como ela foi escrita.
No COIREM ela foi escrita por algumas pessoas ligadas à organização, de acordo com eles mesmos, com
base no conjunto de relatorias das discussões do evento. Nele, houve a preocupação de que ela fosse
aprovada na Plenária Final, mas de fato poucas alterações foram feitas na carta durante a plenária. Esses
dados, longe de deslegitimarem esses documentos, nos fazem atentar para a importância de analisarmos
não só seu conteúdo textual, mas suas próprias condições e contextos de produção.
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Como vimos acima nas diferentes concepções em torno da noção de união,
procura-se nelas traçar ou buscar um elemento comum que a justifique. Nessa busca,
bem como nas reflexões em torno dos limites da ação política, é possível perceber que
efetua-se, também, a delimitação dos grupos e coletivos com os quais é possível se unir.
Sendo assim, a simbologia da união quando acionada nesses encontros está também
conformando grupos, coletividades, que longe de serem fixos, podem ser extendidos
para além daqueles que se fazem presentes, como veremos adiante, quando nos
referirmos ao Ato Público do ENA. No traçar dessa união, um aspecto muito relevante,
também nessa delimitação dos grupos, são as categorias de acusação e as ideias de
cooptação, “peleguismo” e no caso do COIREM, de governismo. Estas não apenas
acusam, mas também balizam com quem é possível se unir e revelam a gramática moral
e emocional relacionada à desunião.
Não só de mesas, plenárias e falas públicas se faziam as atividades e a
participação nos encontros. Momentos de animação, sagração ou mística apareciam
como fundamentais até mesmo para que as discussões acontecessem. Esses momentos
se caracterizavam pela existência de música, com letras que se referiam à luta ou ao
enfrentamento, onde todos são convidados a cantar. Deles também fazem parte alguns
objetos, como comidas, bandeiras, instrumentos musicais ou de trabalho, entendidos
tanto como símbolos da luta, como expressão da diversidade dos territórios,
movimentos e “culturas” presentes. O forró no meio de uma atividade longa era
colocado como uma forma de espantar o sono ou animar, e a mística, presente em
diversas atividades do ENA, se utilizava de outras linguagens, como teatro, dança,
música, para introduzir e facilitar a discussão vindoura ou ainda para quebrar o gelo,
deixando o conjunto de pessoas mais à vontade.
Todavia, se há um momento que pode ser destacado como muito significativo e
que condensa diversos elementos deste “fazer” da mística e da sagração em ambos os
eventos são os Atos Públicos. O ato do COIREM, diferentemente do ENA, não foi
anunciado de início, sendo realizado após a Audiência pública e contando com uns
cento e cinquenta participantes. Saindo da universidade, rumou por volta de um
quilômetro até o prédio do antigo Museu do Índio, local ocupado anteriormente por
alguns dos presentes e, segundo meus interlocutores, onde havia surgido a ideia de
realizar o Congresso. Esse retorno à Aldeia – percurso estratégico levando em conta que
as deliberações do Congresso ainda expressam a esperança de retomada do espaço para
a construção da Universidade Indígena – e os gritos de Aldeia Resiste! revelam a grande
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intensidade que guardam essas manifestações coletivas, no sentido de condensar
bandeiras, demandas e simbologias muito caras aos coletivos e indivíduos em questão.
Esse aspecto fica ainda mais claro quando nos remetemos ao Ato Público do
ENA. Começando com os cantos que remetiam à importância da luta e que valorizavam
o trabalho no campo, os marchantes se dirigiram à ponte que ligava dois municípios –
estratégica no sentido da visibilidade – e quando conseguiram fechá-la, o clima foi de
festa e comemoração. Todos os elementos e ações que essa mobilização conjuga – o uso
do chapéu de palha, o caminhar e cantar junto, a troca de ideias – parecem dramatizar
uma união almejada, colocada em diversos momentos como fundamental para enfrentar
o inimigo. O interessante desse ato, no entanto, talvez devido ao seu caráter
comunicativo, isto é, de levar a agroecologia para fora, é que nele a união é de certa
forma expandida para um público que não necessariamente se refere àqueles que
participaram do Encontro. A disposição que a senhora ao meu lado teve de ir explicar
aos motoqueiros que se tratava de algo bom para eles também, a fala do senhor de que
as gerações futuras ficariam gratas pelo que estavam fazendo, ou ainda um comentário
de acerca do ato, ressaltando que os trabalhadores precisam se unir, revelam que essa
unidade pretendida extrapola o limite dos movimentos e coletivos referidos ao ENA e,
sob a noção de trabalhadores, passa a englobar um espectro muito mais amplo.
As atividades dos dois encontros, além de articularem momentos de “discussão”
ou debates com outros de mística ou sagração, também conjugavam um terceiro, a
“sociabilidade”. As refeições, os shows, as apresentações culturais, a Feira de Troca de
Sementes ou a Feira de Sabores e Saberes eram espaços que, junto com as animações,
davam um tom festivo ao evento e, mais do que isso, possibilitavam conversas
informais, construção de redes de relações, ou aquilo que em termos nativos se colocava
como troca. De fato, essas conversas não se restringiam aos shows, refeições e demais
atividades mais festivas, mas ocorriam também no intervalo das plenárias, seminários
etc. O interessante, contudo, é perceber que esses momentos de sociabilidade não só
eram valorizados, como também eram entendidos como espaços fundamentais no
aprendizado que os encontros propiciavam. Em diversas falas, os atores ressaltavam
que aquele era um lugar de trocar, de dialogar e de encontrar gente diferente, gente de
todo lugar. Em duas entrevistas que realizei no ENA, os entrevistados se referiram à
nossa conversa como uma troca. Essa dimensão da troca aparece intimamente
relacionada com o significado que alguns atribuem à sua participação. Uma senhora
residente no Pará, da região do Tapajós, me disse que o encontro era uma possibilidade
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de se abastecer e, nesses termos, a sua participação se relacionava com o provimento de
um aprendizado e energia necessários à luta.
Essa dimensão do aprendizado não se coloca somente nos momentos de
sociabilidade, mas o interessante é que ao ser colocado como fruto da troca, do diálogo
ou do encontrar gente diferente, esses momentos de maior possibilidade de conversas
informais ganham um peso significativo. Neste sentido, a dimensão da diversidade
aparece como algo não só valorizado, mas gerador de aprendizado.
As plenárias, seminários, oficinas, atos, reflexões, shows, refeições compõem
um leque variado de repertórios de ação que se conjugam nesses encontros e que seus
participantes, menos ou mais familiarizados com os mesmos, compartilham durante
esses quatro dias. Esses repertórios nos permitem entrever que o “formato” dos
encontros colocam para os que dele participam um modo de fazer, que de alguma
forma implica no compartilhamento de certas experiências, práticas e simbologias, a
partir das quais se faz possível o diálogo entre os diferentes indivíduos e coletividades
presentes. Todavia, esse “como fazer” dos encontros, apesar de padronizado e
estipulado pela organização e pela programação, não é de forma alguma consensual.
Como vimos em diversas situações, as distinções propostas entre mesa e plenária
podem ser suprimidas, o silêncio pode se instaurar num momento de fala pública e
podem surgir, como vimos no COIREM, conflitos abertos acerca do “como
encaminhar” a atividade. Se os encontros expressam uma integração não só almejada,
mas realizada por meio do compartilhamento do seu “fazer”, esse mesmo
compartilhamento não se dá de forma igual entre todos os participantes e o não-
compartilhamento revela-se como um elemento interessantíssimo na compreensão
desses espaços.
Nas denominações das atividades e no uso de uma língua indígena para designá-
las, tal como hamé puiá (refeição coletiva) e roda de maraká, bem como na existência
de espaços de “discussão” específicos para a juventude ou para as mulheres, nas
místicas, nas Caravanas Agroecológicas e Culturais, na composição das mesas, na
Feira de Sabores e Saberes e na fala de muitos organizadores e participantes percebe-se
uma preocupação explícita de mostrar e valorizar uma certa diversidade. Como vimos
na primeira seção, essa valorização da diversidade tida como étnica, “cultural” ou
“ecológica” aparece como uma característica marcante desse processo de pluralização
dos movimentos e categorias de mobilização a partir da década de 1980. O interessante,
contudo, e que nos vale muito ressaltar aqui, é que essa valorização da diversidade se
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materializa, por assim dizer, no próprio formato e na própria construção desses eventos,
podendo ser colocada como uma propriedade dessa modalidade de organização que aqui
denominamos encontros.
Do mesmo modo, nas convocatórias, nas cartas políticas, nos momentos de
mística ou sagração, nos atos públicos, nas falas cerca do sofrimento comum e nas
ideias nativas de diálogo, troca e aprendizado revela-se um forte desejo e tentativa de
construção de um comum, de articular ou de unir essa diversidade de movimentos,
organizações, categorias, realidades, territórios, mais uma vez expressos não só na
simbologia da união ou da articulação – presente, inclusive no nome da entidade
promotora do ENA – mas também na própria forma como esses encontros são
construídos.
Todavia, faz sentido colocar, como mencionamos acima, que se esses encontros
expressam uma perspectiva de valorizar a diversidade e ao mesmo tempo articulá-la,
seu próprio “fazer”, isto é, seu “formato”, implica também num processo de geração de
novas diferenciações e conflitos, observáveis nos momentos nos quais quebra-se a
expectativa em relação a determinada mesa, ou quando os próprios participantes
interferem no sentido de expressar seu descontentamento com relação ao desenrolar de
determinada atividade.
Além disso, conflitos decorrentes de concepções diversas de como fazer,
expressam, também, diferentes filiações políticas ou ideológicas, diferentes formas de
pensar ou de encaminhar a luta. Neste sentido, por mais que estes expressem sua
preocupação em unir, articular e dialogar, os encontros são espaços da explicitação e
da produção da divergência, do conflito e da multiplicidade de bandeiras e propostas.
Ainda que a diversidade possa ser valorizada e vista como possibilidade de resistência
nos dias de hoje, as organizações e movimentos sociais ainda se colocam a questão de
como mobilizar, organizar e lidar com pessoas, realidades e vivências tão díspares. A
polissemia em torno das noções de unidade ou união e pluralidade ou diversidade e as
diferentes gramáticas morais e emocionais que elas evocam nos indicam as múltiplas
costuras que são feitas em torno das muitas unidades possíveis – de bandeiras políticas,
de categorias de mobilização, diante de inimigos comuns – e nos mostram que seus
significados não estão dados de antemão, mas se constroem cotidianamente nos
diferentes fazeres da luta.
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CONCLUSÃO
“Como a unidade é construída nos encontros?” Nossa questão inicial parte, de
algum modo, de uma preocupação nativa. O esforço em unir, articular ou “integrar”
parece ser algo presente em quase todos os movimentos sociais do campo, não só no
universo dos congressos, conferências e encontros, mas também nas demais
modalidades de ação coletiva, como marchas, atos, ocupações, acampamentos, entre
outros. Esse esforço, contudo, coloca para aqueles que se organizam politicamente o
problema de como realizar, isto é, de como por em prática esse projeto de unidade das
lutas. Nossa tentativa neste trabalho foi, portanto, compreender as questões que se
delineiam quando este projeto é posto “em ação”.
Se podemos indicar para uma contínua importância da simbologia da união ou
da articulação nas lutas sociais rurais, já que ela se apresenta desde os primeiros
Congressos da década de 1960 até o mais recente “tempo dos primeiros encontros”
(Almeida, 1993), e para uma transformação substantiva nos significados acerca das
noções de pluralidade ou diversidade, isso ainda não nos parece suficiente para
compreender como essas duas dimensões são percebidas, produzidas e reproduzidas em
contextos práticos de organização, enfrentamento e luta.
Partindo de relatos etnográficos acerca de dois encontros recentes, discutimos
suas semelhanças e diferenças, com o intuito de trazer algumas características mais
gerais desses encontros. Apesar de muito distintos, tanto o ENA, com a ideia de
territórios e saberes locais, quanto o COIREM, com a noção de pluralidade, se
organizam a partir de uma valorização explícita da diversidade. Essa valorização, como
discutimos, aparece como uma característica central dessa modalidade de organização
que são os encontros e que parece estar relacionada com o processo “recente” de
pluralização das lutas sociais rurais e com a referida mudança no estatuto da
diversidade.
A valorização da diversidade, tida como cultural, “ecológica”, étnica, geracional
ou de gênero, entretanto, não se coloca somente como um simbologia central nos
discursos dos participantes ou nos documentos produzidos ao longo dos eventos, mas
perpassa toda a construção desses encontros. A materialização dessa diversidade pode
ser percebida na filiação dos participantes, já que nota-se não só uma diversidade de
movimentos (de luta pela terra, atingidos por barragens, sindicatos, associações) e de
grupos sociais (quilombolas, quebradeiras de côco babaçu, extrativistas, indígenas,
camponeses entre outros), como também de ocupações (agricultores, técnicos, gestores,
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professores e estudantes). Ela também está presente nas composição das mesas – que
procura representar essa diversidade dos participantes – ou ainda nos nomes das
atividades (hamé puiá, roda de maraká, mutiró) e na existência de espaços de
“discussão” específicos para jovens e mulheres. As místicas e a Feira de Sabores e
Saberes também são espaços de visibilização da diversidade, pois configuram-se a
partir da ideia de produtos típicos ou de objetos e símbolos que procuram representar a
pluralidade nacional.
Paralelamente, se a valorização da diversidade, tanto no “conteúdo” como na
“forma”, é um aspecto definidor desses encontros e que os diferenciam dos congressos
e conferências de outrora, a necessidade de articulação ou de “integração” se apresenta
como uma continuidade. A simbologia da união é não só central para esses eventos,
como parece justificar sua própria realização e seu caráter de “encontro”. Assim como a
dimensão da pluralidade, a unidade se coloca como importante tanto no nível dos
discursos ou das cartas finais de cada evento, como também na estruturação dos
encontros. A multiplicidade de movimentos e regiões presentes, se representa uma
pluralidade, também indica uma capacidade de integração desses mesmos movimentos,
e em eventos de caráter nacional, expressa uma capacidade de articulação considerável.
Os atos públicos, igualmente, são uma espécie de dramatização dessa união almejada,
realizada não só no cantar e caminhar junto, como também na expansão do sentido das
pautas e bandeiras colocadas, que extrapolam o universo dos encontros e passam a ser
“algo bom para todos”. Além disso, os momentos de “discussão”, mística/sagração,
mas principalmente os de “sociabilidade” propiciam aquilo quem em termos nativos é
chamado de troca, isto é, um aprendizado fruto do diálogo com gente diferente, diálogo
este que se mostra indispensável para unir ou articular.
A diversidade e a unidade como valores compartilhados, entretanto, não
eliminam desses eventos momentos de manifestação do dissenso e do conflito. Se seu
próprio processo de construção indica para o reconhecimento da importância da unidade
– expresso na tentativa de articular a diversidade –, ele também implica em várias
“desunidades” ou conflitos.
Os conflitos, contudo, não se restringem às discordâncias com relação ao
“formato” dos encontros. Assim como os congressos e conferências de antes, esses
eventos são fruto da costura política entre diferentes organizações, que possuem
projetos políticos e inserções ideológicas diferenciadas. Deste modo, como relatamos no
COIREM, a disputa em torno de como encaminhar determinada “discussão”, para além
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de divergências quanto à “forma”, explicitava também diferenças com relação à
orientação política, opondo grupos que se consideram autonomistas, mas que divergem
com relação ao papel da liderança ou da hierarquia dentro da organização política.
Igualmente, quando tratamos do modo como cada evento colocava a relação com o
Estado, percebemos que esse tema era foco de muitas discordâncias e divergências entre
os participantes, que nos mostram como os encontros, apesar de almejarem e praticarem
a “integração”, são espaços da negociação e da disputa política, onde os sentidos e os
caminhos da luta vão sendo traçados e articulados em meio a um emaranhado complexo
de atores, movimentos e bandeiras. Frente a esse emaranhado, a possibilidade de unir os
diferente grupos e atores frequentemente se coloca no reconhecimento de um inimigo
comum ao qual todos se oporiam. Ao mesmo tempo, essa união frente a um antagonista
compartilhado aparece constantemente ameaçada pelo perigo da desunião, gerado por
aqueles que se vendem, os pelegos ou os governistas.
Admitir que os encontros são espaços da disputa de modo algum deslegitima-os
enquanto espaços da união ou da articulação. De fato, percebemos que a união é mais
do que uma meta, ela é parte de uma energia que anima e que mobiliza a agir. Há um
esforço constante, em praticamente todos os espaços e momentos do encontro, de traçar
correspondências, de dialogar e de buscar um princípio que dê substância a essa
unidade. Serem todos trabalhadores, terem os mesmos inimigos e as mesmas
dificuldades são algumas das costuras que as pessoas de carne e osso que participam
desses encontros propõem como sendo o que as unifica. Neste sentido, damos especial
ênfase às gramaticas emocionais tais como dor, sofrimento, exploração, alegria, que
são constantemente acionadas pelos meus interlocutores para dar corpo à ideia de união,
ou também aquelas relacionadas à desunião ou à “traição”, como raiva,
desapontamento, e que indicam para o compartilhamento não só de pautas ou
estratégias, mas de sentimentos. Esses sentimentos, como vimos nos encontros – mas
arrisco dizer que em todas as esferas da política vivida –, parecem ser aquilo que
abastece e que possibilita traçar os horizontes e seguir na luta.
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