Download - Tese Silvio Luiz de Almeida Integral
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Universidade de So Paulo
Faculdade de Direito
SILVIO LUIZ DE ALMEIDA
SARTRE: DIREITO E POLTICA
Ontologia, Liberdade e Revoluo
Tese de Doutorado
So Paulo
2011
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SILVIO LUIZ DE ALMEIDA
SARTRE: DIREITO E POLTICA
Ontologia, Liberdade e Revoluo
Tese de Doutorado apresentada Universidade
de So Paulo, como requisito parcial para a
obteno do ttulo de Doutor em Direito.
Orientadora: Profa. Dra. Jeannette Antonios
Maman
So Paulo
2011
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SILVIO LUIZ DE ALMEIDA
SARTRE: DIREITO E POLTICA
Ontologia, Liberdade e Revoluo
Tese de Doutorado apresentada Universidade de
So Paulo, como requisito parcial para a obteno
do ttulo de Doutor em Direito.
Banca Examinadora
______________________________________________________
PROFa. DRa. JEANNETTE ANTONIOS MAMAN
Universidade de So Paulo
_____________________________________________________
PROF. DR. ALYSSON LEANDRO BARBATE MASCARO
Universidade de So Paulo
______________________________________________________
PROF. DR. ALESSANDRO SERAFIM OCTAVIANI LUIS
Universidade de So Paulo
_____________________________________________________
PROF. DR. FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA
Universidade de So Paulo
____________________________________________________
PROFa. DRa. THANA MARA DE SOUZA
Universidade Federal do Esprito Santo
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minha esposa e companheira Ednia
A meus pais, Lourival e Vernica e minha irm Quelli
s minhas tias Eunice (in memorian) e Cleonice
A todos os que tombaram lutando pela liberdade.
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AGRADECIMENTOS
Foram muitas as pessoas que contriburam para que este caminho fosse percorrido.
No entanto, h pessoas a quem preciso especialmente agradecer, pois sem elas eu
dificilmente teria concludo essa tese.
Profa. Dra. Jeannette Antonios Maman, minha orientadora. Exemplo raro de jurista que
verdadeiramente assumiu um compromisso com a justia. Professora, para mim um
imenso orgulho ser seu orientando. Muito obrigado pela confiana.
Ao Prof. Dr. Alysson Leandro Mascaro, meu orientador de mestrado e querido amigo, a
quem devo o despertar para o pensamento crtico.
Ao Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva, pelas valiosssimas observaes na banca de
qualificao e pelas sempre maravilhosas lies.
Profa. Dra. Thana Mara de Souza, pela ateno que sempre dispensou a mim e pelas
indicaes de leitura que se mostraram essenciais.
Aos professores Dr. Mrcio Bilharinho Naves e Dr. Alessandro Serafim Octaviani Luis,
por me fazerem acreditar que chegar aqui era possvel.
Aos professores Camilo Onoda Caldas e Renato Aparecido Gomes, que mais do que
amigos, so meus irmos.
Fernanda Gabriela Carvalho, Priscila Sissi Lima, Thays Sissy Lima e Aline de Melo
Martins, queridas amigas e colegas de escritrio.
Ao meu amigo e ex-aluno Luiz Antnio Caetano Jr, pela grande ajuda com os textos da
tese.
Ao mestre Joo Bosco Coelho.
s professoras Paula Loureiro da Cruz e Alessandra Devulsky da Silva Tizescu, pelas
grandes demonstraes de carinho e amizade.
Cristiana Hoffman Pavan, querida amiga, que muito me ajudou na reviso dos textos.
Aos meus amigos Lucyla Tellez Merino, Sofia Manzano e Silvio Moreira Barbosa Jr. pelo
apoio nas horas certas.
Ao professor Dr. Fernando Herren Aguillar, pelo estmulo e pela confiana.
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RESUMO
O presente trabalho tem como proposta discutir as repercusses da filosofia de Jean-Paul
Sartre (1905-1980) nos campos do direito e da poltica. A busca de Sartre por uma
concepo concreta da liberdade o fio condutor de sua trajetria filosfica. Ao constituir
as bases de seu pensamento sobre o tema da liberdade, Sartre evidencia a vocao poltica
de sua filosofa. Com isso, procuramos demonstrar que o desenvolvimento filosfico de
Sartre marcado pelo aprofundamento das noes de liberdade e projeto, no havendo,
portanto, ruptura, mas continuidade entre as obras de Sartre. Sendo assim, desde suas
primeiras obras (em especial em O Ser e o Nada), Sartre aponta para a construo de uma
tica. medida que o tema das possibilidades concretas da realizao da liberdade se
desenvolve, as reflexes de Sartre voltam-se mais e mais para o direito e a poltica. Assim,
a tese foi estruturada em trs unidades. A primeira prope-se a estabelecer as bases do
existencialismo e de as primeiras reflexes sobre a tica e o direito presentes em O Ser e o
Nada e os Cadernos para uma moral; a segunda dedicada ao estudo do pensamento de
Sartre acerca da constituio das estruturas scio-polticas. Neste ponto, em que a nfase
na Histria e o dilogo com o marxismo so cruciais, procuramos demonstrar como Crtica
da razo dialtica inicia amplas discusses sobre o problema da forma jurdica e de sua
especificidade histrica. A terceira ltima unidade voltada discusso da poltica em
Sartre, com destaque para as relaes entre legalidade e violncia e a questo da
democracia.
Palavras-chave: Filosofia do Direito; Sartre; Existencialismo; Marxismo; Poltica.
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ABSTRACT
The present work has the purpose to discuss the repercussions of the philosophy of Jean-
Paul Sartre (1905-1980) in the Law and politic areas. The search of Sartre for a concrete
conception of liberty is the conducting line of its philosophical trajectory. By constituting
the basis of its thought on the subject of liberty, Sartre evidences the politic vocation of its
philosophy. In this sense, we seek to demonstrate that the philosophical development of
Sartre is marked by deepening the notions of liberty and project, thus, not having rupture,
but continuity between the work of Sartre. Therefore, since its first work (in special in
Being and Nothingness), Sartre aims the construction of an ethic. To the extent that the
theme of the concrete possibilities of achievement of liberty develops itself, the thoughts of
Sartre become more and more directed to the Law and politics. Thus, the thesis was
structured in three unities. The first intends to establish the basis of the existentialism and
the prime reflections on ethic and Law provided in Being and Nothingness and Notebooks
for an Ethics; the second is dedicated to the study of Sartres though regarding the
constitution of social-political structures. On this point, in which the emphasis in the
History and the dialogue with the Marxism is crucial, we seek to demonstrate how Critique
of Dialectical Reason begins wide discussions on the problem of the legal form and its
historical specificity. The third and last unity is oriented to the discussion of politics in
Sartre, with notability on the relations between legality and violence and the matter of the
democracy.
Keywords: Philosophy of Law; Sartre; Existentialism; Marxism; Politics.
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RESUM
Le prsent travail a comme proposition de dbattre les rpercussions de la philosophie de
Jean-Paul Sartre (1905-1980) aux champs du droit et de la politique. La recherche de
Sartre pour une concption concrte de la libert cest le fil conducteur de sa trajectoir
philosophique. Pendant la constituition des bases de sa pense a propos du thme de la
libert, Sartre demontre la vocation politique de sa philosophie. Le but cetait de demontrer
que le dveloppement philosophique de Sartre est marqu par lapprofondissement des
notions de la libert et projet, o il ny a pas une rupture, au contraire, une continuite se fait
prsent entre les ouvres de Sartre. Donc, ds les premires oeuvres (en spcial dans le
Ltre et le Nant), Sartre pointe la construction d une thique. Autant que le thme des
possibilits concrte de la realisation de la libert se developpe, plus les reflxions de
Sartre ont tournes au droit et la politique. De cette manire, la thse a et structur en
trois units. La premire propose a tablir les bases du existentialisme et des premires
reflxions sur lthique et le droit au Ltre et le Nant et les Cahiers pour une morale ; la
deuxime est ddie ltude de la pense de Sartre autour de la constituition des
structures sociopolitiques. ce point, o lemphase dans lhistoire et le dialogue avec le
marxisme sont cruciaux, le but cetait de demontrer comment la critique de la raison
dialectique commnce des larges discussions sur le problme de la forme juridique et de sa
spcificit historique. La troisime et dernire unite rentre dans la discussion de la
politique dans Sartre, avec une emphase des relations entre la legalit et la violnce, bien
comme la question de la democratie.
Mots-cle : Philosophie du Droit ; Sartre ; Existentialisme ; Marxisme ; Politique.
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RIASSUNTO
Questo lavoro si propone di discutere le implicazioni della filosofia di Jean-Paul Sartre
(1905-1980) nei settori del diritto e della politica. La ricerca di Sartre per una specifica
concezione della libert lo punto de partezza della sua traiettoria. Per formare la base del
suo pensiero sul tema della libert, Sartre sottolinea lo scopo politico della sua
filosofia. Con questo, si dimostra che lo sviluppo filosofico di Sartre segnata da un
approfondimento delle nozioni di libert e di progetto, quindi non c' nessuna rottura, ma
la continuit tra le opere di Sartre. Pertanto, dalle sue prime opere (soprattutto in Essere e il
Nulla), i punti Sartre alla costruzione di un'etica. Come il tema delle concrete possibilit di
realizzazione della libert cresce, le riflessioni di Sartre si sta trasformando sempre di pi
alla legge e della politica. L'argomento stato strutturato in tre unit. Il primo propone di
istituire le basi dell'esistenzialismo e prime riflessioni su etica e presente legge in essere e
il nulla e il Quaderni per una morale, la seconda dedicata allo studio del pensiero di
Sartre riguardo la costituzione del socio -politiche. A questo punto, dove l'enfasi nella
storia e il dialogo con il marxismo sono cruciali per dimostrare come la Critica della
ragione dialettica comincia ampie discussioni sulla questione della forma giuridica e la sua
specificit storica. Il terzo l'ultima unit dedicata alla discussione della politica in
Sartre, sottolineando il rapporto tra legge e la violenza e la questione della democrazia.
Parole chiave: Filosofia del Diritto, Sartre-L'esistenzialismo, Marxismo, Politica.
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SUMRIO
INTRODUO ........................................................................................................... 1
Unidade I: LIBERDADE, DIREITO E JUSTIA ..................................................... 6
Captulo 1. Sartre e a Ontologia Fenomenolgica da Liberdade .................................. 6
A construo do mtodo ......................................................................................... 8
Os motivos centrais da filosofia de Sartre ............................................................. 10
A conscincia ....................................................................................................... 11
O Ser-Em-si ......................................................................................................... 13
O Ser-Para-si ........................................................................................................ 15
A dialtica do Em-si e do Para-si .......................................................................... 16
Captulo 2. A liberdade ............................................................................................ 18
Liberdade e situao ............................................................................................. 18
Liberdade e temporalidade ................................................................................... 21
Liberdade e projeto .............................................................................................. 25
Liberdade e valor ................................................................................................. 27
Liberdade e responsabilidade ............................................................................... 29
Captulo 3. A dimenso tica ................................................................................... 34
Por uma tica existencialista ................................................................................. 34
A tica em O existencialismo um humanismo e nos Cadernos para uma moral .. 36
A tica em Determinao e liberdade e em Moral e Histria .............................. 41
Captulo 4. Direito e Justia nas obras iniciais de Sartre ........................................... 49
O direito nos Cadernos para uma moral ................................................................ 49
Justia e engajamento ........................................................................................... 54
Unidade II: SARTRE E O MARXISMO ................................................................. 60
Captulo 1. Sartre e a tradio da filosofia do direito ................................................ 60
Desvendar a Histria, realizar a liberdade ............................................................. 60
Razo dialtica e razo jurdica ............................................................................ 60
Descartes e Locke ................................................................................................ 62
Kant e Hegel ........................................................................................................ 65
Direito e Liberdade em Kant ................................................................................ 65
Hegel: a liberdade do esprito, o direito e o Estado ............................................... 68
Captulo 2. Sartre e o marxismo ............................................................................... 72
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Marxismo e existencialismo ................................................................................. 72
Entre o indivduo e a Histria ............................................................................... 80
Conhecimento e prxis ......................................................................................... 82
As mediaes ....................................................................................................... 89
A unidade pluridimensional do ato ....................................................................... 91
Captulo 3. A descrio formal dos modos de sociabilidade ..................................... 95
O prtico-inerte .................................................................................................... 96
Serialidade e regulao ......................................................................................... 98
Os grupos ........................................................................................................... 101
O juramento ....................................................................................................... 103
O grupo organizado ............................................................................................ 109
O grupo institucionalizado: o Estado .................................................................. 111
Captulo 4. Direito e razo dialtica ....................................................................... 118
Em busca da especificidade histrica do direito .................................................. 118
Forma jurdica e liberdade .................................................................................. 122
Unidade III: DIREITO E POLTICA .................................................................... 130
Captulo 1. Legalidade e violncia ......................................................................... 130
Legalidade e violncia nos Cadernos para uma moral ........................................ 131
Violncia e tolerncia ......................................................................................... 138
Violncia e direito na Crtica da Razo Dialtica ............................................... 147
Captulo 2. Poltica e Legalidade ............................................................................ 164
Relao de fora, relao jurdica ....................................................................... 164
Justia e Estado .................................................................................................. 171
Justia e cultura burguesa ................................................................................... 174
Captulo 3. Os horizontes da filosofia e os limites da poltica ................................. 180
Sartre, Merleau-Ponty e a teoria da revoluo ..................................................... 180
Sartre e a crtica da democracia burguesa ........................................................... 189
Sartre: sobre o direito e a democracia no Brasil .................................................. 197
CONCLUSO ......................................................................................................... 201
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................... 204
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Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual ser suprimida dos dicionrios
e do pntano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade ser algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada ser sempre
o corao do homem.
Thiago de Melo, Os Estatutos do homem
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INTRODUO
Durante muito tempo tomei minha pena por uma espada: agora, conheo nossa impotncia. No importa: fao e farei livros; so necessrios; sempre
servem, apesar de tudo. A cultura no salva nada nem ningum, ela no justifica. Mas um produto do homem: ele se projeta, se reconhece nela; s
este espelho crtico lhe oferece a prpria imagem. (Jean-Paul Sartre, As palavras)
Estudar um tema como o direito, tomando como ponto de partida uma obra
to vasta, to difusa e vazada por complexas tramas conceituais como a de Jean-Paul Sartre
(1905-1980) nos traz, logo de incio, dois problemas. O primeiro o fato de Sartre no ser
jurista1. Suas preocupaes sempre estiveram muito alm do direito. As menes sobre o
direito so breves e, em geral, inseridas no contexto de assuntos bem mais amplos, como a
tica, a poltica ou mesmo a arte. Mas esse um problema solucionvel: se h menes,
ainda que breves, ao direito, basta que se as recolha e que se verifique em que
circunstncia, no interior da unidade temtica da obra do autor, cada uma delas aparece.
Assim, encontrar uma concepo jurdica do autor, com toda sua fora ou insuficincia,
tornar-se-ia possvel.
No limiar da primeira soluo encontramos o segundo problema que, ao que
parece, de resoluo bem mais difcil: o que poderia permanecer em uma obra que,
alm de volumosa, tomou diversas formas, desde o que se pode chamar de teoria
filosfica, at a literatura, passando pelo texto jornalstico e pelo roteiro cinematogrfico?
Haveria algo capaz de expressar uma unidade entre o Jean-Paul Sartre filsofo,
romancista, teatrlogo e ativista poltico que pudesse servir de base para se compreender a
especificidade do direito?
Uma resposta a essa difcil indagao requer que a obra de Sartre seja
entendida como um prolongamento da vida do indivduo Jean-Paul Sartre. O homem Sartre
tambm o literato, o filsofo, o dramaturgo e o ativista poltico, algo que por si j revela
1 Apesar de no ser um jurista de formao, desde jovem Sartre demonstrava grande inclinao para a
poltica. Em 1926, aos 21 anos de idade, Sartre publicou seu primeiro artigo sobre poltica intitulado LEtat dans le pense franais daujourdhui. Neste artigo Sartre fazia apresenta o debate sobre os conceitos de soberania e direito natural do indivduo travado entre os juristas franceses no ps-guerra. O citado artigo teve
pouca divulgao, e sua publicao mais recente foi feita por Jeniffer Mergy, em 1997 na Revista Francesa
de Cincia Poltica. CF. MERGY, Jennifer ; SARTRE, Jean-Paul. Quand le jeune Sartre rflchissait la
thorie de l'tat dans la pense franaise : Prsentation du texte de Sartre : La thorie de l'tat dans la pense franaise d'aujourd'hui . In: Revue franaise de science politique, 47e anne, n1, 1997. pp. 89-106.
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muito de seu projeto filosfico que consiste em captar a existncia em sua multiplicidade
de modos. Assim, com Sartre a literatura no mais poderia separar-se da filosofia, tal como
a poltica revelar-se-ia com toda sua fora na dramaturgia.
Mas o que Sartre teria a nos dizer sobre o direito? O que este homem, morto
h trinta anos, pode nos ensinar? Sua ideias radicais - como vociferam seus detratores -
no estariam superadas pela nova conjuntura mundial? No seria mais relevante render-se
a to falada "realidade dos fatos" e voltar energias para a compreenso de mecanismos
jurdicos de aperfeioamento da democracia ou da promoo dos direitos humanos? Afinal,
porque dirigir-se Sartre neste momento?
Com o liberalismo surgiu a ideia de que o direito seria a garantia da
liberdade, e que o respeito s leis e s instituies democrticas daria a medida do respeito
dignidade humana. Mas no isso que a experincia histrica nos mostra. O direito a
garantia de uma liberdade abstrata. Em defesa dessa liberdade-fetiche o direito legitima a
opresso que se abate sobre grande parte dos homens e das mulheres.
Vamos Sartre porque sua filosofia da liberdade nos convida a pensar um
mundo alm do conformismo das normas jurdicas. Desde o incio de sua trajetria
intelectual, Sartre props que a liberdade seja concebida em sua dimenso concreta, como
ato de libertao, ou seja, como ao poltica. Diante da indeterminao da liberdade,
agindo a partir de seu projeto que o homem dar sentido ao mundo. No h, portanto,
normas ou instituies acima dos homens e de sua possibilidade de projetar-se no futuro. A
retomada dessa lio fundamental num mundo em que os juristas substituram a busca
pela justia pela manuteno da legalidade opressora.
Assim sendo, voltar Sartre no pensar o presente com os olhos do passado,
mas pensar o futuro como obra aberta. desse modo que a leitura jurdica de Sartre
imprescindvel, pois sua filosofia abre uma senda importantssima que nos permite pensar a
liberdade e o justia como modos de superao da forma jurdica e dos demais mecanismos de
opresso.
Em As palavras, Sartre diz:
[...] que meus congneres me esqueam no dia seguinte ao meu enterro pouco me importa; enquanto viverem hei de persegui-los; inapreensvel,
inominado, presente em cada um, como em mim esto milhares de
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falecidos que ignoro e que preservo do aniquilamento; mas se a
humanidade vier a desaparecer, ela matar seus mortos de verdade.2
Portanto, aqueles que declaram Sartre morto, na verdade no se referem ao
homem Jean-Paul Sartre, pois um homem no morre duas vezes. O que os conservadores e
reacionrios querem matar o que Sartre representa em termos de contestao, de
inconformismo e de luta contra a opresso.
Enquanto houver opresso haver quem lute contra ela, pois sem o projeto
de um mundo justo, a opresso no poderia ser reconhecida. Enquanto existir quem clame
por justia, homens como Sartre e todos os que anonimamente morreram na luta por um
mundo justo continuaro vivos e encarnados em cada ato de libertao.
Que venham as leis, pois a verdade est com os homens.
Sobre o trabalho
Antes de apresentarmos a estrutura deste trabalho, alguns esclarecimentos
so fundamentais.
Nossas anlises sobre o direito e a poltica em Sartre partem da premissa de
que h uma continuidade entre suas obras. Certamente, possvel encontrar distines
entre O Ser e o Nada (1943) e Crtica da Razo Dialtica (1960). Entendemos, no entanto,
que tais distines no sinalizam uma ruptura, e sim um movimento em que Sartre vai de
um acento predominantemente ontolgico-existencial para a um acento histrico. Apesar
disso, percebe-se que a questo fundamental da filosofia sartreana permanece l, com toda
sua fora: a liberdade.
medida que Sartre avana, o desenvolvimento do tema da liberdade o
impulsiona a um questionamento mais profundo sobre as possibilidades de realizao do
projeto de libertao no seio das estruturas scio-politicas. nesse contexto que se opera a
sntese sartreana entre o marxismo e o existencialismo.
2 SARTRE, Jean-Paul. As palavras. So Paulo: Nova Fronteira, 2005.
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Sartre jamais abandonou o existencialismo em prol do marxismo, assim
como nunca deixou de considerar o problema da Histria.3 Se houvesse, portanto, uma
ruptura entre as obras de Sartre, seria possvel ler Questo de mtodo ou a Crtica da
Razo Dialtica sem a apreenso dos conceitos de O Ser e o Nada, algo que,
absolutamente, no verdade. Liberdade, projeto, situao, alteridade so exemplos de
conceitos presentes em O Ser e o Nada e que so levados para o interior do dilogo com o
marxismo e poltica.
No caso do direito, esta continuidade tambm deve ser considerada. Desde
os Cadernos para uma moral, obra em que a nfase na existncia mais forte, Sartre
demonstra-se um crtico feroz do direito e das instituies em geral, que acusa de
promoverem uma liberdade abstrata que se realiza contra o homem concreto. As relaes
entre o direito e a violncia apresentados ali pela primeira vez, sero retomados na Crtica
da Razo Dialtica e em outros textos. Porm, as anlises jurdicas de Sartre so
predominantemente sobre o problema da ideologia jurdica. Apenas com o marxismo e a
nfase na Histria que Sartre passa a expor com profundidade os laos concretos que
ligam o direito s estruturas sociais.
Por isso, o presente trabalho apresenta o direito em Sartre sob duas
perspectivas ou fases (denominao que utilizamos apenas para fins didticos): 1) a
primeira, marcada pela nfase existencial-ontolgica e scio-psicolgica, em que a
filosofia do direito se apresenta enquanto crtica da ideologia jurdica; 2) a segunda,
caracterizada pela nfase na Histria em que, sob a influncia de Marx, a crtica do direito
ir alm do vis ideolgico e levar em conta o problema da legalidade ou, em outros
termos, da forma jurdica.
Assim sendo, optamos por dividir o trabalho em trs unidades.
Na unidade I, em rpidas pinceladas, iremos reconstituir os passos
fundamentais da ontologia de Sartre. Nos captulos 01 e 02, o esforo ser no sentido de
demonstrar como Sartre constri seu mtodo fenomenolgico e como o tema da liberdade
3 SILVA, Franklin Leopoldo e. Para a compreenso da Histria em Sartre. Revista Tempo da Cincia, vol.
22, p. 34-35, 2 sem, 2004.
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aparece como ponto fulcral de sua filosofia. No captulo 03, veremos como o
existencialismo sartreano desemboca no problema tico. No captulo 04, as primeiras
reflexes de Sartre sobre o direito e a justia (em especial nos Cadernos para uma moral)
sero apresentadas.
Na unidade II, a ateno ser voltada para as relaes estabelecidas por
Sartre entre o existencialismo e o marxismo. Aqui a questo fundamental compreender
como Sartre entende o direito relacionado s estruturas sociais, econmicas e polticas.
Nos dois primeiros captulos apresentaremos uma leitura do marxismo de Sartre. Como
o foco principal deste trabalho o direito, resolvemos posicionar o pensamento de Sartre
em relao filosofia do direito moderna e contempornea. Este posicionamento tem por
base a afirmao sartreana de que desde o sculo XVII a filosofia teve trs momentos de
totalizao histrica: o de Descartes e Locke; o de Kant e Hegel; o de Marx.4 No por
acaso estes filsofos so os mais influentes no pensamento jurdico. Consideramos esta
empreitada importante para que a leitura de Sartre sobre o direito a partir do marxismo
possa ser corretamente entendida.
Ainda na unidade II, o captulo 03 apresentar a descrio dos modos de
sociabilidade (grupos e sries) contida na Crtica da Razo Dialtica, circunstncia em que
as reflexes sartreanas sobre o direito e o Estado ganham uma feio mais ntida. No
captulo 04, analisaremos o problema da forma jurdica e da liberdade no interior da
Histria.
Na unidade III, o tema ser a ao poltica. Assim, captulo 01 dedicar-se-
ao tratamento dado por Sartre ambgua relao entre o direito e a violncia. J o captulo
02 trar um estudo sobre os textos Justia e Estado e os Maostas em Frana, em que
Sartre coloca seus pontos de vista sobre a relao entre legalidade, justia e Estado. Por
fim, no captulo 03 discutiremos o teor das crticas de Sartre democracia representativa,
bem como revisitaremos a polmica com Merleau-Ponty em torno da teoria marxista da
revoluo, que muito tem a nos dizer sobre a poltica e o direito em Sartre. O trabalho se
encerra com uma anlise sobre a democracia no Brasil luz do pensamento de Sartre.
4 SARTRE, Jean-Paul. Questo de Mtodo. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 19
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UNIDADE I
LIBERDADE, DIREITO E JUSTIA
CAPTULO 1.
SARTRE E ONTOLOGIA FENOMENOLGICA DA LIBERDADE
A adoo do tema da liberdade como pedra angular de seu sistema
filosfico no deixa dvidas acerca da vocao tico-poltica da filosofia de Sartre. A
busca por uma compreenso das condutas humanas em seu nvel mais concreto conduzir
Sartre por um percurso marcado por tenso dilogo com a fenomenologia de Husserl5, com
a analtica existencial de Heidegger e com as dialticas de Hegel e Marx. 6
Assim como Heidegger7, Sartre volta-se ao problema ontolgico,
compreenso do Ser. A filosofia de Heidegger prope a retomada do sentido do Ser, o que
de acordo com o filsofo, foi abandonado pela filosofia quando esta se rendeu
metafsica.8 O lema de Husserl que prega a volta s coisas mesmas ser retomado por
5 [...] A fenomenologia o estudo das essncias e todos os problemas, segundo ela, resumem-se em definir essncias: a essncia da percepo, a essncia da conscincia, por exemplo. Mas a fenomenologia tambm
uma filosofia que repe as essncias na existncia, e no pensa que se possa compreender o homem e o
mundo de outra maneira seno a partir de sua facticidade. uma filosofia transcendental que coloca em suspenso, para compreend-las, as afirmaes da atitude natural, mas tambm uma filosofia para a qual o
mundo j est sempre ali, antes da reflexo, como uma presena inalienvel, e cujo esforo todo consiste em reencontrar este contato ingnuo com o mundo, para dar-lhe enfim um estatuto filosfico. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepo. So Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 01. 6 Gerhard Seel adotando o ponto de vista que privilegia a anlise da lgica interna que conduz o pensamento de Sartre do cogito husserliano ao marxismo, assim se manifesta sobre a evoluo filosfica do
pensador francs: A la fin de notre examen, nous pouvons constater que lhypothse dont nous tions partis sest trouve confirme. Il sest avr que la philosophie de Sartre vise la solution dum problme central, celui dune thorie du sujet concret dans son rapport au monde concret. Levolution de cette pense reflte leffort de Sartre pour raliser cette ide en des formes systmatiquement toujours plus mries et plus diffrencies dans leur contenu. Ce faisant, Sartre prend chaque fois comme repres de orientations
philosophiques dtermines, comme la phnomnologie de Husserl, lanalyse existentielle de Heidegger, la dialectique hgelienne ou le marxisme. SEEL, Gerhard. La dialectique de Sartre. Lausanne, Suia: Lage dhomme, 1995, p. 61. 7 Lanalyse existentielle de Heidegger (cf. LEtre et le Temps) donne une premire rponse la question que Sartre a pose la suite de sa critique de Husserl (celle de savoir comment il faut dterminer le sujet concret sil doit, en tant que fini et condition, possder nemoins la libert et labsoluit). Les categories (les existentiaux), en termes desquelles Heidegger pense le sujet concret, se caractrisent toutes par une double
dtermination la Janus qui est cense exprimer limplication rciproque de deux moments fondamentaux de la realit humaine, la libert et la finitude, labsoluit et le fait dtre conditione. Id., Ibid., p. 44 8 Embora nosso tempo se arrogue o progresso de afirmar novamente a metafisica, a questo aqui evocada caiu no esquecimento [...] A questo referida [a questo do ser] no na verdade, uma questo qualquer. Foi
ela que deu flego s pesquisas de Plato e Aristteles para depois emudecer como questo temtica de uma
real investigao. O que ambos conquistaram manteve-se, em muitas distores e recauchutagens, at Lgica de Hegel. E o que outrora, num supremo esforo de pensamento, se arrancou aos fenmenos,
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Heidegger na medida em que a via de acesso ao Ser no ser a representao conceitual,
mas sim o que o filsofo denomina de analtica do Dasein9, ou seja, a anlise das estruturas
existenciais pelas quais o Ser se manifesta.
Sartre concorda com Heidegger no tocante necessidade da retomada do
problema ontolgico fora dos padres da tradio filosfica, o que implicaria o
rompimento de dualismos como sensvel-inteligvel, ato-potncia, sujeito-objeto e essncia
e aparncia. Para ambos os filsofos, vale o princpio de Husserl segundo o qual os
fenmenos - que devem ser entendidos em sentido amplo como coisas, sentimentos e atos -
so manifestaes do Ser e no carregam uma natureza oculta. Mas isso no significa
dizer que o Ser se reduza sua apario ou a uma srie de aparies: a apario to-
somente revela o Ser. O Ser no produto do conhecimento ou das ideias, ele .
Entretanto, ao Dasein, nico ente capaz de perguntar sobre o sentido do Ser, que ele se
revela.
Mas no irrelevante a distncia que separa os dois filsofos. A mais
marcante distino que a filosofia da existncia de Heidegger se forma em oposio
radical tradio metafsica; sua ontologia constitui-se como proposta de superao da
dicotomia sujeito-objeto. Sartre, em oposio, considera o cogito como o incontornvel
ponto de partida da filosofia, em bases que veremos mais adiante. Ademais, diferentemente
de Heidegger, em Sartre a analtica existencial no se d apenas como abertura para o
mistrio do Ser. Heidegger, inclusive, negou ser existencialista, pois seu pensamento
visava passagem do existente ao Ser, e no mera descrio do existente10
. J Sartre, que
encontra-se, de h muito, trivializado. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrpolis, RJ: Vozes, Universidade So Francisco, 2005, p. 27. 9 Chamamos existncia ao prprio ser com o qual a pre-sena [Dasein] pode ser comportar pode se comportar dessa ou daquela maneira e com o qual ela sempre se comporta de alguma maneira. Como a
determinao essencial desse ente no pode ser efetuada mediante a indicao de um contedo quididativo, j
que sua essncia reside, ao contrrio, no fato de dever sempre assumir o prprio ser como seu, escolheu-se o
termo pre-sena [Dasein] para design-lo enquanto pura expresso de ser. Id., Ibid., p. 38 10 A frase principal de Sartre sobre a procedncia da existentia sobre a essentia justifica, entretanto, o nome Existencialismo como um ttulo adequado para esta filosofia. Mas a frase capital do Existencialismo no tem o mnimo em comum com aquela frase em Ser e Tempo; isto, no tomando em considerao que em Ser
e Tempo nem se podia ainda pronunciar uma frase sobre a relao de essentia e existentia; pois, trata-se, ali,
de preparar algo pr-cursor. Pelo que dissemos, isto ainda se faz de um modo bastante desajeitado. Talvez o
que ainda fica para dizer poderia eventualmente transformar-se num estmulo para levar a essncia do
homem a atentar, com seu pensar, para a dimenso da verdade do ser que o perpassa com seu domnio.
Todavia, tambm isto s poderia acontecer em favor da dignidade do ser e em benefcio do ser-a, que o
homem, ec-sistindo, sustenta, e no por causa do homem, para que atravs de sua obra se afirmem a
civilizao e a cultura. Id. Sobre o humanismo. So Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 355 (col. Os Pensadores)
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19
acusaria Heidegger de certo misticismo por trabalhar com uma noo transcendental de
Ser, entende que o processo de descrio dos existentes a grande tarefa de uma ontologia.
A descrio dos existentes no apenas um caminho rumo ao Ser, mas sim o que uma
filosofia que se pretende concreta deve fazer.
A Construo do Mtodo
A filosofia de Sartre mostra-se como um movimento em que cada etapa
uma tentativa de superar as contradies da etapa anterior e integr-las em uma posio
mais complexa, a fim de manter e consolidar a validade das convices fundamentais
inicialmente assumidas11
. Cria-se uma trama filosfica complexa em que a superao de
contradies feita mediante a insero de novos conceitos e da manuteno de conceitos
fundamentais. Com isso, possvel afirmar que entre os dois principais textos filosficos
de Sartre - O Ser e o Nada e a Crtica da Razo Dialtica - h uma continuidade, no
sentido de que noes fundamentais, como as de liberdade e projeto permanecem e
aprofundam-se medida que o autor desenvolve seu trajeto intelectual. o que pensa
Franois Noudelmann, para quem a passagem de uma filosofia do sujeito individual -
contida em O Ser e o Nada -, a uma crtica do sujeito coletivo - vista na Crtica da Razo
Dialtica -, se opera a partir de esquemas comuns:
Cepedant, malgr cette rupture dclre le passage dune philosophie du sujet individuel une critique du sujet collectif sopre partir de schmes communs. La problmatique de lindividu inser dans lhistoire sappuie sur un ensemble dimages dont il convient danalyser le fonctionnement. Dix-sept ans aprs L Etre et le Nant, Sartre reprend une trame figurative qui informe les concepts, au prix dadapatations et dajustaments aux nouvelles donns thoriques. La dfinition dune intelligibilit de LHistoire passe par la cration dun dispositif qui dplace les anciens concepts. Comprendre la situation de lhomme dans la realit collective et ses perspectives daction, cest aussi mettre en place les cadres thoriques de son activit. Il semble que, loin dillutrer la raison dialectique, la reprise de certaines images contienne dj, en
quelles assurent leur mise en relation. La prise en compte des collectifs, de lois de levolution historique sadapte au tissu imaginaire qui faonne
la rflexion sartrienne et lui confre une extesion. [...].12
Na mesma direo, Franklin Leopoldo e Silva destaca que uma leitura de O
Ser e o Nada e de Crtica da razo dialtica demonstraria haver continuidade entre as duas
11 SEEL, Gehard. La dialectique de Sartre. Lausanne, Suia: LAge dHomme, 1995, p. 21 12 NOUDELMANN, Franois. Sartre: Lincarnation imaginaire. Paris: LHarmattan,1996, p. 83.
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obras, "com uma diferena de nfase em certos aspectos". Esta diferena de nfase, ainda
que significativa, no autoriza a identificao de um segundo Sartre, como se houvesse o
abandono de teses fundamentais entre uma obra e outra. Para Franklin Leopoldo e Silva, as
noes de liberdade em situao, "pea-chave da ontologia da subjetividade", e de
facticidade, j trazem, desde seu surgimento, perspectivas histricas que posteriormente,
em Crtica da razo dialtica, s viriam a ser desenvolvidas e aprofundadas. Alm disso, o
conflito de liberdades que caracteriza o tema da intersubjetividade concebido "num
cenrio concreto e definido, ainda que esta determinao histrica e poltica no seja
explicitamente focalizada em O Ser e o Nada.
Adotando a perspectiva da continuidade e da unidade do legado de Sartre,
podemos identificar a evoluo histrica da filosofia de Sartre em trs estgios, que
representam a tentativa de superao de impasses tericos que ameaam a consistncia do
tratamento dado s convices fundamentais que penetram o conjunto da obra. Cada
estgio desta evoluo pode ser identificado pelas obras mais significativas da produo
filosfica de Sartre13
.
A primeira a fase de A transcendncia do ego, em que despontam a
recepo crtica da filosofia de Husserl e o primeiro encontro com o problema fundamental
da filosofia sartreana: a liberdade.
A segunda a fase de O Ser e o Nada, em que o esforo de superao das
contradies da fase anterior introduz a antinomia ontolgica fundamental do Em-si e do
Para-si, o que feito mediante uma releitura da dialtica hegeliana e da ontologia de
Heidegger.
A terceira fase a da Crtica da Razo Dialtica em que Sartre empreender
a mediao entre marxismo e existencialismo e de uma deduo dialtica das categorias
histricas sociais a partir das estruturas antropolgicas fundamentais j elaboradas em O
Ser e o Nada.
Estas fases da filosofia de Sartre so perpassadas por preocupaes
anteriores formulao de seu sistema terico. A exposio destas preocupaes fundantes
ou motivos centrais possibilitar a compreenso dos caminhos percorridos por Sartre rumo
construo do tema da liberdade.
13 SEEL, Gehard. La dialectique de Sartre. Lausanne, Suia: LAge dHomme, 1995, p. 21
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Os motivos centrais da filosofia de Sartre
No livro La dialectique de Sartre14
, Gerhard Seel menciona o que considera
como os trs motivos centrais em torno dos quais Sartre construiu os fundamentos de sua
filosofia.
O primeiro motivo central que anima a filosofia de Sartre a busca pelo
concreto, o que levar suas teorias a uma rejeio do idealismo e de todo pensamento
abstrato decorrente de leis ou conceitos universais. Por isso, tem-se a recorrente descrio
da existncia como totalidade concreta criada, recriada e captada pela conduta subjetiva.
Esta aspirao ao concreto, presente em vrias tendncias intelectuais surgidas aps a
primeira guerra mundial, levaria a filosofia de Sartre a adotar a fenomenologia, postular a
criao de tica materialista15
e, posteriormente, a incorporar o marxismo.
Ao amor do concreto e o anti-idealismo junta-se a convico do carter
ontologicamente indeterminado da liberdade humana. Esta convico que acompanhar
Sartre durante toda a sua trajetria no puramente terica, mas fruto de uma experincia
vital e original 16. A convico ontolgica da liberdade d sentido para a compreenso das
opes tericas de Sartre, em especial no que tange reconstruo filosfica da ideia da
conscincia como entidade primordial e independente17
.
O terceiro motivo evoca a absurdidade, o acaso da existncia. O romance A
Nusea tem como tema principal exatamente esta impossibilidade de deduzir ou justificar a
existncia, algo que j nos alerta acerca das posies que Sartre manifestaria sobre a
transcendncia dos valores, como veremos posteriormente. Do ponto de vista terico, este
motivo resultar nas temticas da contingncia e da facticidade.
Na viso de Gehard Seel18
, a ligao terica entre os trs motivos
fundamentais conduziram Sartre a uma srie de contradies, mas que ao mesmo tempo
14 Gehard. La dialectique de Sartre. Lausanne, Suia: LAge dHomme, 1995 15 Ce motif fondamental pourrait aisment tre mis en relation avec tendances intellectuelles du temps aprs
la premire guerre mondiale, marqu, selon le mot de Landgrebe, par une faim de ralit. La philosophie du temps de Sartre prouve de son cot, comme une mode, cette aspiration au concret quon constate par exemple dans lethique matriale des valeurs, dans la psychologie de Gestalt et dans la phnomnologie. Id., Ibid., 1995, p. 25-26. 16
Id., Ibid., p. 26 17 Id., Ibid. 18 Id., Ibid., p. 27
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22
forneceram a originalidade de sua obra. Para Seel, em concordncia com Simone de
Beauvoir, a obra filosfica de Sartre pode ser lida como uma tentativa de apreender e
ultrapassar por meios tericos as contradies inerentes s suas convices pr-tericas 19.
A Conscincia
A filosofia de Sartre tem com ponto de partida a subjetividade, a
conscincia, o que segundo o prprio autor atende a razes estritamente filosficas 20.
Sartre considera que a formao do cogito est historicamente ligada ao processo de
constituio ideolgica da burguesia, por isso trata de afirmar que sua opo pelo cogito
no se deve ao fato de ser burgus, mas ao fato de querer uma doutrina baseada na
verdade e, para ele, no pode haver outra verdade, no ponto de partida, seno esta:
penso, logo existo; a que se atinge a si prpria a verdade absoluta da conscincia. 21 A
adoo de outro fundamento que no o cogito seria admitir a supresso da verdade, haja
vista que, sem o homem, todos os objetos so apenas provveis. 22
A escolha da conscincia como ponto de partida tem como objetivo a
construo de uma ideia de liberdade vinculada a um processo existencial de constituio
da subjetividade humana. Deste modo, a realidade ganha um carter de indeterminao,
uma vez que a liberdade, mais que mera faculdade ou predicado, o modo de ser do
homem que se realiza como processo existencial23
. Com Sartre, no possvel afirmar a
realidade humana e tudo o que dela deriva a partir de uma essncia ou de outras formas de
determinao, a exemplo do que se retira das tradies filosficas idealistas e do
materialismo vulgar que reduz a realidade humana a um conjunto de fatos; a realidade
humana existncia que se constitui no exerccio da liberdade. Neste sentido, a
19Gehard. La dialectique de Sartre. Lausanne, Suia: LAge dHomme, 1995Id., Ibid. 20 SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo um humanismo. So Paulo: Abril, 1975, p. 20. 21Id., Ibid. 22 Id., Ibid. E ainda: Essa captao do ser por si mesmo como no sendo seu prprio fundamento acha-se no fundo de todo cogito. SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007, p. 128. 23 O homem liberdade em seu prprio ser. Por isso, o estudo da liberdade resume e conclui todas as anlises anteriores; quando Sartre define a realidade humana o para-si dever o que ele , ele o que no e no o que , a existncia precede a essncia -, com essas frmulas define a prpria liberdade. BORNHEIN, Gerd. Sartre: metafsica e existencialismo. So Paulo: Perspectiva, 2007, p. 110.
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23
constituio da subjetividade deve ser entendida processualmente, vale dizer, a conscincia
no produto da intuio pura, mas do devir existencial.
A realidade humana movimento de existir que se revela como processo
indeterminado de busca do ser. Se a apreenso da realidade humana tem incio na
subjetividade, a conscincia tambm movimento e indeterminao. Ora, caso as
concepes anteriores de conscincia fossem absolutamente preservadas, a filosofia
sartreana cairia em contradies insuperveis, haja vista que o substancialismo ou o
formalismo das noes sobre a conscincia se chocaria com seu propsito de descrever a
existncia concreta pelas condutas subjetivas. Neste sentido, o aporte metodolgico da
fenomenologia de Husserl fundamental. Com Husserl, Sartre ganha novos horizontes
conceituais para a compreenso da subjetividade, que agora se afasta do naturalismo
psicolgico e da metafsica do sujeito de Descartes e Kant. A fenomenologia permitir uma
descrio das condutas subjetivas que no entenda a conscincia to-somente como coisa
pensante ou apercepo sinttica do objeto em geral,24 mas como movimento
intencional para alm de si.
A conscincia sempre conscincia de alguma coisa. Desse modo, a
transcendncia estrutura constitutiva da conscincia, vale dizer, a conscincia nasce
tendo por objeto aquilo que ela no 25. A conscincia intencional e se lana sempre em
direo ao mundo que est fora dela. Essa intencionalidade, nas palavras de Gerd
Bornhein26, apresenta em sua essncia, a tessitura ontolgica da conscincia. Toda
conscincia posicional, na medida em que se transcende para alcanar um objeto, e ela
esgota-se nesta posio mesma: tudo quando h de inteno na minha conscincia atual
est dirigido para o exterior 27. Da dizer que a conscincia, mais do que um exemplar
24 SILVA, Franklin Leopoldo. Sartre. In PECORARO, Rossano. Os filsofos: clssicos da filosofia. Petrpolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2009, Vozes, p. 107 25 SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007,
p. 34 26 BORNHEIN, Gerd. Sartre: metafsica e existencialismo. So Paulo: Perspectiva, 2007, p. 110. 27 SARTRE, Jean-Paul. Loc. cit., p. 22
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24
singular de uma possibilidade abstrata, surge do bojo do ser, ordenando sinteticamente
suas possibilidades ou ainda, criando e sustentado sua essncia 28.
A conscincia puro movimento intencional para fora de si. Se a
conscincia persegue o ser, significa dizer que a conscincia anterior ao nada e se
extrai do ser. 29, ou seja, que absolutamente indeterminada e sem substancialidade.
Isso torna a conscincia pura ao, puro lanar-se em direo aos objetos que esto fora
dela, no podendo ser depositria de ideias inatas ou estruturas pr-concebidas. A
conscincia uma descompresso30 de ser, sendo impossvel defini-la como
coincidncia consigo mesma.31
Toda conscincia conscincia de alguma coisa. [...] ser conscincia de
alguma coisa estar diante de uma presena concreta e plena que no a
conscincia. Sem dvida, pode-se ter conscincia de uma ausncia. Mas esta ausncia aparece necessariamente sobre um fundo de presena. Pois
bem: como vimos a conscincia uma subjetividade real, e a impresso
uma plenitude subjetiva. Mas esta subjetividade no pode sair de si para
colocar um objeto transcendente conferindo-lhe a plenitude impressionvel. Assim, se quisermos, a qualquer preo, que o ser do
fenmeno dependa da conscincia, ser preciso que o objeto se distinga
da conscincia, no pela presena, mas pelo seu nada. Se o ser pertence conscincia, o objeto no a conscincia, no na medida em que outro
ser, mas enquanto um no ser.
O Ser-Em-si
A exposio feita at este momento sobre a ontologia sartreana demonstra
que a assuno do ponto de partida da conscincia no significa que a existncia seja uma
espcie de impresso cravada na subjetividade, e muito menos de que seja algo oculto por
detrs dos fenmenos. claro que o Ser se manifesta como fenmeno, uma vez que o ser
um fundamento sempre presente do existente. o fenmeno de ser que, como todo
28 SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007, ,
p. 22 29 SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007, p.
27. 30 O Para-si corresponde, portanto, a uma destruio descompressora do Em-si, e o Em-si se nadifica e se
absorve em sua tentativa de se fundamentar. No , pois, uma substncia que tivesse por atributo o Para-si e
produzisse o pensamento sem esgotar-se nessa produo. Permanece simplesmente no Para-si como uma
lembrana do ser, como sua injustificvel presena ao mundo. O Ser-Em-si pode fundamentar seu nada, mas
no o seu ser; em sua descompreenso, nadifica-se em um Para-si que se torna, enquanto Para-si, seu prprio
fundamento; mas sua contingncia de Em-si permanece inalcanvel. Id., Ibid., p. 134 31 Id., Ibid., p. 122.
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25
fenmeno, revela-se imediatamente conscincia, sem as determinaes conceituais da
filosofia tradicional.
Mas dizer isso no o mesmo que dizer que o Ser se reduz ao fenmeno.
Para Sartre32, a conscincia exige apenas que o ser do que aparece no exista somente
enquanto aparece. conscincia sempre ser possvel ultrapassar o existente no em
direo ao ser, mas ao sentido do ser. Assim, a conscincia revelao-revelada de um
ser que ela no e que se d como j existente quando ela o revela.
O que Sartre nos explica que h um ser transfenomenal, ou seja, alm do
fenmeno cujo sentido pode ser captado pela conscincia. Este ser em-si, pois no existe
apenas quando se d conscincia, mas que pode ser apreendido em seu sentido, no bojo
do fenmeno que o manifesta.
O Ser-Em-si ou Em-si simplesmente . No ativo nem passivo, no possui
um dentro nem fora, um antes ou depois e nem conhece a alteridade, pois no se
coloca jamais com outro a no ser a si mesmo. , nas palavras de Sartre, a mais
indissolvel de todas as snteses, pois a sntese de si consigo mesmo.
Colocado nesses termos, podemos concluir que o Ser regido pelo
princpio de identidade: ele somente aquilo que . Como se existisse em
repouso, indolentemente, em uma espcie de frouxido, o Ser nos surge
tal qual uma matria opaca e plena de si mesma, densa e macia, algo plenamente constitudo e sem rachaduras, esgotando-se nesse no-ser-outra coisa-seno-si-mesmo. Uno e macio, o Ser est fechado em si, sendo incapaz de estabelecer qualquer relao consigo mesmo. Devemos compreende-lo como pura positividade: o Ser o que , nada alm disso.
O Ser aparece como algo que est a, sem que saibamos por que, algo
cujo existir s podemos entender como absoluta contingncia. Contingente no sentido de no necessrio: nada parece impor ou justificar
o aparecimento do Ser, nenhum sinal nos indica qualquer razo para que
o Ser exista e seja o que , e no de outra maneira. Contingncia no sentido de que este Ser o mundo que existe, e no outro poderia ser diferente. A existncia das coisas acontece desse modo, como poderia
acontecer de outro, ou mesmo no acontecer.33
32 SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007,
p. 35 33 PERDIGO, Paulo. Existncia e Liberdade: uma introduo filosofia de Sartre. Porto Alegre: LP&M,
1995, p. 37
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Tais palavras poderiam soar como um mistrio do ser, mas Sartre quer
justamente o contrrio: demonstrar que o Ser-Em-si nada tem de misterioso, pois opaco e
macio. O mistrio poderia levar a uma reflexo sobre uma razo de ser. Mas o Em-si
no tem razo de ser. Ele suprfluo, gratuito, e no se pode afirmar sua origem. Deste
modo, as trs caractersticas do Ser-Em-si seriam: 1) o ser ; 2) o ser em si; 3) o ser o
que .
Com esta exposio to crua do que denomina Ser-Em-si, Sartre aponta
para a questo crucial de sua filosofia: o que chamamos de realidade resultado das
significaes, ou do sentido que a conscincia atribui ao ser. Ativo e passivo, certo e
errado, justo e injusto, possvel e impossvel so qualidades que implicam a negao da
facticidade do Em-si. Ao dizer que algo injusto, estou ao mesmo tempo dizendo que algo
no justo. Por conseguinte, para atribuir uma qualidade ao ser tive que neg-lo, tive que
me referir ao no-ser, outra possibilidade negada. Desta forma, todas as qualidades
atribuveis ao ser aparecem como uma fissura na opacidade prpria do ser, que nega este
ser e se coloca como no ser. Se o Ser-Em-si pura positividade, s um ser que no tem
ser pode efetuar a negao34
.
Este ser o Para-si.
O Ser-Para-si
Este processo de constituio da realidade humana, que a existncia,
reflete-se na conscincia. A constituio da subjetividade um caminhar na direo de si, e
o si aquilo que est fora da subjetividade, haja vista que a conscincia s quando
34 [...] o ser que possui em si a ideia de perfeio no pode ser seu prprio fundamento, pois, se o fosse, teria
se produzido em conformidade com essa ideia. Em outras palavras: um ser que fosse seu prprio fundamento
no poderia sofrer o menor desnvel entre o que ele e o que ele concebe, pois se produziria a si conforme
sua compreenso do ser e s poderia conceber-se como ele . Mas esta apreenso do ser como falta de ser
frente ao ser , antes de tudo, uma captao pelo cogito de sua prpria contingncia. SARTRE, Jean Paul. O
Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007, p. 129
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lanada ao mundo35
. Assim, Sartre denomina Para-si a constituio da subjetividade como
movimento intencional da conscincia.
O Para-si no tem ser, porque o seu ser est sempre distncia: est l longe, no refletidor, o qual s em si pura funo de refletir esse reflexo.
Mas alm disso, em si mesmo, o Para-si no o ser, porque faz-se ser
explicitamente para si, como no sendo o ser. O Para-si conscincia de ...como negao ntima de ...A estrutura de base da intencionalidade e da
ipseidade a negao, como relao interna entre o Para-si e a coisa; o
Para-si constitui-se fora, a partir da coisa, como negao desta coisa;
assim, sua primeira relao com o Ser-Em-si a negao; ele maneira do Para-si, ou seja, como existente disperso, na medida em que
se revela a si mesmo como no sendo o ser.36
Como nos ensina Franklin Leopoldo e Silva37
, o termo Para-si possui em
Sartre dois significados convergentes: 1) Reflexividade, em que o sujeito, voltado para si,
toma-se como a primeira verdade, como a primeira instancia da realidade que lhe
dada; 2) Processo, o que tem o sentido de ir em direo a si mesmo. O sujeito se
constitui medida que se lana em direo ao que est fora de si, ao que est alm de si, o
que faz com que a existncia seja o prprio processo de existir.38
A dialtica do Em-si e do Para-si
A realidade humana constituda na relao que integra dialeticamente a
negatividade do Para-si e a pura positividade do Em-si, forjando essa dade indissolvel
entre o Ser e o Nada. Neste sentido, a ontologia de Sartre afirma a impossibilidade de que
a realidade possa ser concebida como a descrio de um conjunto de fatos objetivos, tal
como pensam, grosso modo, os positivistas, ou como pura projeo da conscincia
subjetiva, como querem os idealistas. Porm, tambm h na ontologia sartreana a
afirmao da realidade como construo, medida que o Para-si, em sua indeterminao,
35 [...] logo, o ser da conscincia, na medida em que este ser para se nadificar em Para-si, permanece contingente; ou seja, no pertence conscincia o direito de conferir o ser a si mesma, nem o de receb-lo de
outros. SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes,
2007Id., Ibid., p. 130 36SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007,
p. 177 37SILVA, Franklin Leopoldo. Sartre. In PECORARO, Rossano. Os filsofos: clssicos da filosofia. Petrpolis, RJ: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2009, Vozes, p. 109 38De fato, sou o sujeito na medida em que vivo o contnuo processo de me constituir como tal. Assim se deve entender a definio de realidade humana: aquela em que o ser consiste em existir. Id., Ibid., p. 109
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28
que atribui sentido ao ser objetivo. Os fatos so significaes que surgem da negao do
Em-si pelo Para-si.
[...] o Para-si o Em-si que se perde como Em-si para fundamentar-se como conscincia. Assim, a conscincia obtm de si prpria seu ser
consciente e s pode remeter a si mesma, na medida em que sua prpria
nadificaao: mas o que se nadifica em conscincia, sem que possamos consider-lo fundamento da conscincia, o Em-si contingente. O Emsi no pode fundamentar nada; ele se fundamenta a si conferindo a si a
modificao do Para-si. fundamento de si na medida que j no Em-
si; e deparamos aqui com a origem de todo fundamento. Se o Ser-Em-si no pode ser seu prprio fundamento nem o dos outros seres, o
fundamento em geral vem ao mundo pelo Para-si. No apenas o Para-si,
como Em-si nadificado, fundamenta a si mesmo, como tambm surge dele, pela primeira vez, o fundamento.
39
Ora, se no tem fundamento prvio, se determinao originria, se nada,
o Para-si livre para atribuir sentido situao em que se encontra. A conscincia
concreta surge em situao, e conscincia singular e individualizada desta situao e (de)
si mesmo em situao, diz Sartre40.
39
SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007,
p.141 40 Id., Ibid., p. 142
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29
CAPTULO 2.
A LIBERDADE
Liberdade e Situao
A liberdade o modo de constituio da conscincia, textura do meu
ser, nos termos empregados por Sartre41. Sendo a conscincia pura intencionalidade,
pode-se concluir que a ao humana tambm intencional e determinada pelo nada 42. A
liberdade ato, e o ato no possui outro fundamento seno a prpria liberdade43
, que, como
j se viu, no tem fundamentos ou essncias. importante que se diga que Sartre no
pretende apresentar o Para-si como fundamento de si mesmo, como liberdade. Para ele, o
Para-si livre em situao, ou seja, a liberdade se revela diante das possibilidades
surgidas quando o Para-si nega a pura positividade do Em-si quando do ato de significao
do mundo.
Assim, comeamos a entrever o paradoxo da liberdade: no h liberdade
a no ser em situao, e no h situao a no ser pela liberdade. A
realidade humana encontra por toda parte resistncia e obstculos que ela no criou; mas essas resistncias e obstculos s tem sentido na e pela
41 Assim, minha liberdade est perpetuamente em questo em meu ser; no se trata de uma qualidade
sobreposta ou uma propriedade de minha natureza; bem precisamente a textura de meu ser; e, como meu
ser est em questo em meu ser, devo necessariamente possuir certa compreenso de liberdade. esta
compreenso que tentaremos explicitar agora. SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e
fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007, p. 543 42 A liberdade e a conscincia se circunscrevem reciprocamente. E a conscincia sendo um poder nadificador, repele toda e qualquer modalidade de determinismo. Nenhum estado de fato suscetvel de motivar por si mesmo qualquer ato, nenhum pode levar a conscincia a se definir e a se determinar. E isso porque todo estado de fato s , s vem a ser, atravs do poder nadificador do para-si. Posta a conscincia,
abandona-se o ser para invadir o terreno do no-ser. [...] Sem dvida, todo ato supe motivos e mveis. Mas
disso no se deve inferir que eles seja a causa do ato, porquanto, muito pelo contrrio, o ato que decide de seus fins e de seus mveis, e o ato expresso de liberdade SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007, p. 26. Gerd Bornhein acrescenta: Em outras palavras, a liberdade no tem essncia, instaura-se desprovida de qualquer necessidade lgica. J nesse
sentido, a existncia precede e comanda a essncia, e todo empenho em demarcar a liberdade torna-se
fundamentalmente contraditrio, pois a liberdade se explica como fundamento de todas as essncias. No se
trata, portanto, de uma propriedade ou de uma tendncia acrescida minha natureza; trata-se do estofo
mesmo do meu ser, e analogamente conscincia, deve ver nela uma simples necessidade de fato, uma
contingncia radical. [...] Por ser o homem livre, escapa ao seu prprio ser, faz-se sempre outra coisa do que aquilo que se pode dele dizer. BORNHEIN, Gerd. Sartre: metafsica e existencialismo. So Paulo: Perspectiva, 2007, p.111. 43 1) Nenhum estado de fato, qualquer que seja (estrutura poltica ou econmica da sociedade, estado psicolgico, etc.) capaz de motivar por si mesmo qualquer ato. Pois um ato uma projeo do Para-si rumo
a algo que no , e aquilo que no pode absolutamente, por si mesmo, determinar o que no . 2) Nenhum
estado de fato pode determinar a conscincia a capt-lo como negatividade ou como falta. Melhor ainda:
nenhum estado de fato pode determinar a conscincia a defini-lo e circunscrev-lo, pois, como vimos,
continua sendo profundamente verdadeira a frmula de Spinoza: Omnis determinatio est negatio. Loc. cit., p. 539
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livre escolha que a realidade humana . Mas, de modo a captar melhor o
sentido dessas observaes e dela extrair o proveito que oferecem,
convm agora analisar sua luz alguns exemplos precisos. O que temos denominado facticidade da liberdade o dado que ela tem-de-ser e
ilumina pelo seu projeto. Esse dado se manifesta de diversas maneiras,
ainda que na unidade absoluta de uma s iluminao. meu lugar, meu
corpo, meu passado, meus arredores, na medida em que j determinados pelas indicaes dos Outros, e, por fim, minha relao fundamental com
o Outro.44
Neste sentido, a liberdade liberdade situada, ou seja, que se revela diante
de circunstncias concretas da vivncia humana. Sartre pretende romper com as
concepes abstratas da liberdade - inclusive jurdicas que colocam a liberdade como
uma propriedade metafsica do homem.45
A liberdade realiza-se no interior de um mundo
em que os fatos e os Outros se colocam como condicionantes das escolhas do sujeito. A
situao possui dois aspectos relevantes compreenso da liberdade: a facticidade46
e a
alteridade.
A facticidade o conjunto de fatos, naturais ou sociais, que constituem o
cenrio em que a liberdade ser exercida pelo sujeito. A facticidade impe ao sujeito
contextos como caractersticas fsicas, a famlia, a classe social, sobre os quais no houve
deliberao. O que se coloca que a facticidade Em-si, ou seja, no tem uma
significao prpria. E justamente a liberdade que atribuir significao aos fatos que
compem a situao. Neste sentido, a negao da facticidade abertura de possibilidades
constitudas pelo projetar do Para-si para alm de si. Como ensina Franklin Leopoldo e
Silva47, a construo da existncia feita atravs da liberdade, da qual dispomos mesmo
44 SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007,
p. 602 45 O que Sartre deseja no nem apenas a garantia ontolgica e abstrata da liberdade e nem somente a prtica dela. preciso que ambas se interpenetrem: Sartre pretende estabelecer um vnculo estreito e
intrnseco entre a liberdade absoluta e a liberdade de fato; entre o universal abstrato e o particular concreto;
entre a metafsica e a histria; Se compararmos com as concepes clssicas, podemos dizer que no h
propriamente uma metafsica e uma histria, separadas e independentes: assim como no h um geral
abstrato totalmente distinto de um individual particular, a metafsica no se d sem histria. Para Sartre h
um universal concreto e uma metafsica que mergulha profundamente na existncia humana, e portanto, uma
metafsica que se d e se encontra na histria. SOUZA, Thana Mara de. A literatura em Sartre: a compreenso da realidade humana. In: ALVES, Igor et alii. (Org.). O drama da existncia: estudos sobre o pensamento de Sartre. So Paulo: Humanistas, 2003, p. 159. 46 [...] o Para-si acha-se sustentado por uma perptua contingncia, que ele retoma por sua conta e assimila
sem poder suprimi-la jamais. Esta contingncia perpetuamente evanescente do Em-si que infesta o Para-si e o
une ao Ser-Em-si, sem se deixar captar jamais, o que chamaremos de facticidade do Para-si. esta
facticidade que nos permite dizer que ele , que ele existe, embora no possamos jamais alcan-la e a
captemos sempre atravs do Para-si. Id, Ibid., p. 132 47 SILVA, Franklin Leopoldo. Sartre. In PECORARO, Rossano. Os filsofos: clssicos da filosofia. Petrpolis, RJ: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2009, Vozes, p. 111
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em relao ao que no podemos mudar. Isso torna o ser humano portador de uma
condio, mas no de uma natureza, medida que a condio o que construmos no
processo de existir como conscincia de ns mesmos e do mundo em que vivemos. No
h, portanto, uma essncia definidora do ser humano, mas um modo de ser singular forjado
no processo existencial.
[...] o Para-si, ao mesmo tempo que escolhe o sentido de sua significao
e se constitui como fundamento de si em situao, no escolha sua posio. o que faz com que eu me apreenda ao mesmo tempo como
totalmente responsvel por meu ser, na medida que sou seu fundamento,
e, ao mesmo tempo, como totalmente injustificvel. Sem a factidade, a conscincia poderia escolher suas vinculaes com o mundo, da mesma
forma como, na Repblica de Plato, as almas escolhem sua condio: eu
poderia me determinar a nascer operrio ou nascer burgus. Mas, por outro lado, a facticidade no poderia me constituir como sendo burgus
ou sendo operrio. Ela sequer , propriamente falando, uma resistncia
do fato, porque eu lhe conferiria seu sentido e sua resistncia ao retom-la
na infra-estrutura do cogito pr-reflexivo. A facticidade apenas uma indicao que dou a mim mesmo do ser que devo alcanar para ser o que
sou. Impossvel capt-la em sua bruta nudez, pois tudo que acharemos
dela j se acha resumido e livremente construdo.48
Junto facticidade, compe a situao existencial a alteridade. Trata-se do
problema da intersubjetividade, da relao com o Outro. Em Sartre, ao contrrio do
tratamento tradicionalmente dado ao problema da intersubjetividade, em que se tem
primeiramente uma intuio de si e depois a representao do outro, o Para-si e o chamado
Para-outro so parte da mesma estrutura existencial. O olhar do Outro fornece a
objetividade da minha existncia.49
Na impossibilidade de captar o Outro em sua singularidade subjetiva, torno-
o objeto da minha conscincia, constituindo-o como uma essncia que ele no . Minha
ao no mundo feita mediante a atribuio de uma identidade ao Outro, o que na verdade
refere-se apenas a um momento do processo existencial, j que a realidade humana jamais
ser uma totalidade idntica a si, mas sempre um processo de totalizao em curso. O
olhar do Outro me ameaa, me faz sentir vergonha, raiva, medo, faz-me exigncias. Por
isso a to famosa afirmao contida em Huis Clos de que o inferno so os outros. Ao
48 SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007,
p. 132 49 Tout dabord, le regard dautrui, comme condition ncessaire de mon objectivit, est destruction de toute objectivit pour moi. Le regard dautrui matteint travers le monde et nest pas seulement transformation de moi mme, mais mtamorphose totale du monde. Je suis regard dans un monde regard. SARTRE, Jean Paul. LEtre et le Nant: Essai dontologie phnomnologique. Paris: Gallimard, 1943, p. 308
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congelar minhas possibilidades, o Outro tambm me revela a impossibilidade do homem
tornar-se um objeto, a no ser pela ao de outra liberdade.50
Sobre este aspecto da
liberdade em Sartre, ensina Thana Mara de Souza:
Mas o homem precisa nascer livre para saber o que a liberdade: ela
inerente sua conscincia, mas o homem no conhece a liberdade do
outro, tenta oprimi-lo e transform-lo em objeto. E justamente o paradoxo entre a garantia ontolgica da liberdade e sua no realizao
efetiva que leva esse homem oprimido a se voltar contra os outros, a
buscar a revoluo.51
Por esta descrio do carter conflituoso das relaes intersubjetivas,
podemos antever que a tica de Sartre se afastar sensivelmente das ticas tradicionais
pensadas a partir do consenso.
Liberdade e Temporalidade
Uma descrio fenomenolgica da realidade humana implica a descrio da
temporalidade. Tanto para Heidegger como para Sartre, o tempo pertence realidade
humana, e no pode ser considerado como uma realidade objetiva, cuja existncia dar-se-ia
ao conhecimento.
O Em-si, em sua positividade e opacidade, no poderia albergar a noo de
tempo, pois ao tempo pertencem as caractersticas de dialticas da permanncia dos
instantes e da mudana de um fluir continuado. O tempo concomitantemente
permanncia e mudana, uma contradio que a pura facticidade do Em-si no pode
suportar. O Em-si no dispe de temporalidade precisamente porque Em-si, e a
temporalidade o modo de ser unitrio de um ser que est perpetuamente distncia de si
para si, diz Sartre52. Se a dinmica temporal se desvela em presente, passado e futuro, o
tempo deve ser estudado como uma totalidade, que domina suas estruturas secundrias e
lhes confere significao, caso contrrio deparar-se-ia com o paradoxo de um passado,
que no mais, de um presente, que no existe: o limite de uma diviso infinita, como 50 SARTRE, Jean Paul. LEtre et le Nant: Essai dontologie phnomnologique. Paris: Gallimard, 1943, p. 308, p. 309 51 SOUZA, Thana Mara de. A literatura em Sartre: a compreenso da realidade humana. In: ALVES, Igor et alii. (Org.). O drama da existncia: estudos sobre o pensamento de Sartre. So Paulo: Humanistas, 2003,
p. 159. 52 SARTRE, Jean-Paul. SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica.
Petrpolis, RJ: Vozes, 2007, p. 269
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o ponto sem dimenso, e de um futuro, que ainda no . Deste modo, a temporalidade
uma intra-estrutura prpria do Para-si.
A temporalidade no . S um ser com certa estrutura de ser pode ser
temporal na unidade de seu ser. [...] a temporalidade s pode designar o
modo de ser de um ser que si-mesmo fora de si. [...] Com efeito somente porque o si si l adiante, fora de si, em seu ser, pode ser antes
ou depois de si, pode ter em geral, um antes e um depois. No h
temporalidade salvo como intra-estrutura de um ser que tem-de-ser o seu ser, ou seja, como intra-estrutura do Para-si. No que o Para-si tenha
prioridade ontolgica sobre a Temporalidade. Mas a Temporalidade o
ser do Para-si na medida em que este tem-de-s-lo ek-staticamente. A temporalidade no , mas o Para-si se temporaliza existindo.
A Temporalidade aparece sobre o fundamento de uma negao originria,
negao que s possvel pelo Para-si. Falar da Temporalidade no falar de um tempo
universal que contenha todas as realidades, de uma lei de desenvolvimento imposta de fora
do ser ou do ser em si; a temporalidade constitui-se como negatividade, como o modo de
ser do Para-si, este ser que tem-de-ser seu ser na forma diasprica da Temporalidade.
Mas o presente no somente no-ser presente do Para-si. Enquanto
Para-si, este tem seu ser fora de si, adiante e atrs. Atrs, era seu passado;
adiante, ser seu futuro. fuga fora do ser co-presente e do ser que era, rumo ao ser que ser. Enquanto presente, no o que (passado) e o
que no (futuro).53
O Para-si s pode ser sob a forma temporal, diz Sartre. Isso porque a
nadificao54
do Em-si promovida pelo Para-si coloca a multiplicidade no interior na
unidimensionalidade do Ser. o efeito diasprico, termo que Sartre utiliza para designar
o modo de ser do Para-si caracterizado pela coeso e disperso que instaura uma quase-
multiplicidade no interior do Em-si55. A realidade humana faz com que a multiplicidade
se instaure no mundo, fazendo surgir diferentes maneiras de ser que nunca coincidem com
o Ser-Em-si assim, portanto, que o Para-si se temporaliza existindo, projetando-se em
53 SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007,
p. 177 54 O Para-si no pode manter a nadificao sem se determinar como falta de ser. Significa que a nadificao
no coincide com uma simples introduo do vazio na conscincia. No foi um ser exterior que expulsou o
Em-si da conscincia, mas o prprio Para-si que se determina perpetuamente a no ser Em-si. Significa que
s pode fundamentar-se a partir do Em-si e contra o Em-si. Deste modo, a nadificao, sendo nadificao do
ser, representa a vinculao original entre o ser do Para-si e o ser do Em-si. Id., Ibid., p. 135 55 No mundo antigo, a profunda coeso e disperso do povo judeu era designada como dispora. a palavra que nos servir para designar o modo de ser do Para-si: diasprico (diasporique). O Em-si s tem
uma dimenso de ser; mas a apario do nada com aquilo que tendo sido no corao do ser complica a
estrutura existencial, fazendo surgir a miragem ontolgica do Si. Id., Ibid., p. 192
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vo para o si, no af de ser o que se para-alm de nada.56 da nadificao realizada
pelo Para-si que surge a distncia que caracteriza as dimenses da temporalidade ou ek-
stases temporais: passado, presente e futuro.
Com efeito, o passado o no mais. Sou o meu passado, pois somente no
passado sou o que sou.57 E justamente por ser o meu passado que tenho a possibilidade
de no s-lo. Explica-nos Sartre que o passado uma estrutura ontolgica que obriga o
Para-si a assumir o seu ser, e o ser do Para-si sempre para alm daquilo que pelo fato
de ser Para-si e ter-de-s-lo58. Ora, a marca do Para-si a transcendncia. Portanto, o
Para-si a negao constante daquilo que , mas sem poder deixar de s-lo, o que permite
dizer que o passado o Em-si que sou ultrapassado.59
O que Sartre pretende explicar em relao ao passado sua ligao com a
facticidade. O Em-si, mesmo ultrapassado, Em-si e permanece impregnando o Para-si
com sua contingncia original. um peso distncia que o Para-si, embora no o
sendo, tem de s-lo, conservando-o na prpria ultrapassagem. Assim, como a facticidade,
esta contingncia invulnervel do passado o inevitvel, mas um inevitvel que se
carrega para evitar; aquilo que se conserva para ultrapassar, e o que para no mais ser60
.
O passado, esse Para-si convertido em Em-si, assemelha-se ao valor, pois
este representa uma sntese entre o ser que o que no e no o que e o se que o
que . A diferena entre o passado e o valor que no valor o Para-si realiza a retomada do
Em-si para fundamentar o seu ser, transformando a contingncia em necessidade. J o
passado desde o incio Em-si, aparece-nos como contingncia. Para Sartre, no h
qualquer razo para que nosso passado seja esse ou aquele: aparece na totalidade de sua
srie, como fato puro que preciso levar em conta enquanto fato, como gratuito.
Entretanto, o passado pode ser utilizado pelo Para-si como objeto para a realizao do
valor, o que na verdade corresponde a uma tentativa de escapar angstia que decorre da
56 SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007,
p. 192 57 Id., Ibid., p.171 58 Id., Ibid., p.171 59
Id., Ibid., p.171 60 O passado o que sou sem poder viv-lo. O passado a substancia, Nesse sentido o cogito cartesiano deveria ser formulado assim: Penso, logo era. Id., Ibid., p. 172
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ausncia de ser. isso o que fazem aqueles que, por exemplo, vinculam a realizao da
justia ou da moral a uma volta ao passado.
O estudo da dimenso do presente, por sua vez, indica como ocorre o
trnsito ao passado. Nos termos de Sartre, como um Para-si que era seu passado se
converte no passado que um novo Para-si tem-de-ser. O Para-si presena para o Em-si,
o ser pelo qual o presente entra no mundo, revelando os seres como co-presentes. O
presente que falsamente denomina-se presente, para Sartre no , vez que o presente
faz-se presente em forma de fuga; o presente uma fuga perptua frente ao ser 61. Sobre
o presente, Sartre afirma:
Sendo o Presente, Passado e Futuro ao mesmo tempo, dispersando seu ser
em trs dimenses, o Para-si, apenas pelo fato de se nadificar , temporal. Nenhuma dessa dimenses tm prioridade ontolgica sobre as
demais, nenhuma pode existir sem as outras duas. Contudo, apesar de
tudo, convm colocar acento no ek-stase presente e no como Heidegger, no eks-tase futuro porque o Para-si, enquanto revelao a si mesmo, seu futuro como aquilo que tem-de-ser-para-si em um
transcender nadificador, e, como revelao a si, falta e est impregnado
por seu futuro, sou seja, aquilo que Para-si l adiante, distncia. O Presente no ontologicamente anterior ao Passado e ao Futuro: condicionado por eles na mesma medida que os condiciona, mas o vo
de no-ser indispensvel forma sinttica da Temporalidade.
J o futuro revela-se ao Para-si como aquilo que o Para-si ainda no , e
faz-se ser como um projeto de si mesmo fora do Presente rumo ao que no ainda. 62 O
Para-si, como vimos, o ser que busca seu complemento de ser para alm de si. Somente
um ser que para alm de si , que pode ter um futuro.
a dimenso do futuro que revela ao Para-si o seu Ser faltante, que s pode
estar alm de si. na direo do futuro que o Para-si perseguir inutilmente uma sntese
com o Em-si. A totalidade nunca ser alcanada, e o Para-si ser relanado a um novo
futuro, uma nova distncia do Ser em si (da Sartre referir-se a uma decepo ontolgica
que aguarda o Para-si toda vez que desemboca no futuro). A realidade humana, portanto,
constitui-se como projeto, na medida em que o Para-si projeta-se rumo ao futuro, negando
o que em direo ao que ainda no . Para Sartre o futuro constitui o sentido de meu
61
SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007,
p. 177 62 Id., Ibid., p. 180.
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Para-si, como projeto de sua possibilidade, mas no determina de modo algum meu Para-si
por-vir, j que o Para-si est sempre abandonado nesta obrigao nadificadora de ser o
fundamento de seu nada63. Assim sendo, projeto o futuro, mas no sou por ele
determinado; sou livre exatamente porque posso no ser esse futuro projetado64
. Ainda que
se possa afirma que o Para-si o seu futuro, ele problematicamente seu futuro, pois dele
se acha separado por um Nada que ele . O futuro o sentido do Para-si, constituindo-se,
portanto, na contnua possibilizao dos possveis como sentido do Para-si presente, na
medida em que esse sentido problemtico e escapa radicalmente, como tal, ao Para-si
presente.65
Liberdade e Projeto
Ao eleger um determinado projeto, decido sobre o modo e o sentido de
minha prpria existncia.
O Para-si no o primeiro homem para ser si mesmo depois, e no se
constitui como si mesmo a partir de uma essncia humana dada a
priori; mas, muito pelo contrrio, em seu esforo para escolher-se
como si mesmo pessoal que o Para-si mantm em existncia certas caractersticas sociais e abstratas que fazem dele um homem; as
conexes necessrias que acompanham os elementos da essncia
humana s aparecem sobre o fundamento de uma livre escolha: nesse sentido, cada Para-si responsvel em seu ser pela existncia da
espcie humana. Mas precisamos esclarecer ainda o fato inegvel de
que o Para-si s pode escolher-se para-alm de certas significaes
das quais ele no a origem.66
Ora, ento o obstculo s me aparece como tal, porque no uso de minha
liberdade projetei ultrapass-lo. Minha liberdade projeta-se como negao da facticidade67
,
vai em direo ao que ainda no . Se meu projeto participar da luta poltica clamando
por uma sociedade justa, exatamente porque minha conscincia nega a sociedade tal
como ela . As injustias do mundo s se apresentaro a mim porque elegi como projeto
63 SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007,
183 64 Em suma, sou meu futuro na perspectiva constante da possibilidade de no s-lo. Id., Ibid., p. 183 65 Id., Ibid., p. 183 66 Id., Ibid., p. 638 67 Heidegger chama por facticidade o carter fatual do fato da pre-sena [Dasein] em que, como tal, cada presena sempre . luz da elaborao das constituies existenciais bsicas da pr-sena, a estrutura
complexa desta determinao ontolgica s poder ser apreendida em si mesma como problema. O conceito
de facticidade abriga em si o ser-no-mundo de um ente intramundano, de maneira que este possa ser compreendido como algo que, em seu destino, est ligado ao se daquele entre que lhe vem ao encontro dentro de seu prprio mundo. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrpolis, RJ: Vozes, 2005, p. 94.
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inicial a negao da facticidade do mundo68. No h, portanto, que se falar de um justo
natural, seja racional, divino ou provindo da natureza das coisas e que condicione
minha ao. Nas palavras de Sartre, impossvel decretar a priori o que procede do
existente em bruto ou da liberdade no carter de obstculo deste ou daquele existente em
particular 69. o mundo que me faz livre, e o mundo s faz sentido diante da minha
liberdade; como j se viu, s se livre em situao, o que em Sartre remete relao entre
a condio e a liberdade70. Assim, o homem s encontra obstculo no campo de sua
liberdade. 71
A liberdade manifesta-se em condies existenciais determinadas. Deste
modo, para ser realmente livre, o homem deve reconhecer sua situao. com relao a
ela que ele ter liberdade de transformar a realidade ou no, de aceit-la ou no. Assim,
chega-se ao aparente paradoxo de afirmar que o homem liv