Theotonio Dos Santos, Homenaje a Furtado - [PDF Document]
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Theotonio Dos Santos, Homenaje a Furtado
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1 THEOTONIO DOS SANTOS DESENVOLVIMENTO E CIVILIZAO HOMENAGEM A CELSO FURTADO 2 DESENVOLVIMENTO E CIVILIZAO NDICE PRLOGO INTRODUO 1. Uma homenagem a Celso
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1
THEOTONIO DOS SANTOS
DESENVOLVIMENTO E
CIVILIZAO
HOMENAGEM A CELSO FURTADO
2
DESENVOLVIMENTO E CIVILIZAO
NDICE
PRLOGO
INTRODUO
1. Uma homenagem a Celso Furtado.
2. Civilizao e Desenvolvimento.
3. Desenvolvimento e Civilizao.
PRIMEIRA PARTE: A RECONSTRUO DA TEORIA DO
DESENVOLVIMENTO
I. TESES SOBRE A HERANA NEOLIBERAL
1. Introduo;
2. Primeira tese;
3. Segunda tese;
4. Terceira tese;
5. Quarta tese;
6. Quinta tese;
7. Sexta tese;
8. Stima tese;
9. Oitava tese;
10. Nona tese;
11. Dcima tese;
12. Dcima primeira tese.
II. A TEORIA DA DEPENDNCIA E A DESCOBERTA DO SISTEMA MUNDO
1. Introduo: as origens;
2. A teoria da dependncia e a descoberta do sistema mundo;
3. As estruturas internas e a dependncia;
4. As corporaes multinacionais;
5. A ampliao do enfoque;
6. Elementos do sistema econmico mundial;
7. Sistema mundial e o processo civilizatrio.
III. A RECONSTRUO DA TEORIA DO DESENVOLVIMENTO
3
1. Introduo;
2. Uma breve digresso comprobatria da fora do modelo que empregamos;
3. Retornando da digresso;
4. Desenvolvimento e economia mundial;
5. Neodesenvolvimentismo;
6. Por que no crescemos?
7. Desenvolvimento e abertura econmica;
8. O consenso de Washington em debate;
9. A nova etapa do capitalismo de Estado;
10. O que fazer com tanto dinheiro?
11. O avano do capitalismo de Estado.
IV. GLOBALIZAO, INOVAO E CRESCIMENTO: GEOPOLTICA E
INTEGRAO
1. Introduo;
2. O perodo da Revoluo Cientfico-Tcnica;
3. Tecnologia, concentrao econmica e capitalismo de Estado;
4. A destruio criadora: inovao e ciclos econmicos;
5. Inovao, transformaes tecnolgicas e a fora de trabalho: viso econmica;
6. Inovao, transformaes tecnolgicas e desemprego;
7. Viso poltica;
8. Integrao e geopoltica;
9. O exemplo do Mercosul;
10. Concluses.
SEGUNDA PARTE: DESENVOLVIMENTO E GEOPOLTICA
V. UNIPOLARIDADE OU HEGEMONIA COMPARTILHADA
1. Em busca de um esquema interpretativo;
2. Os casos brasileiro e francs de luta pela reduo da jornada de trabalho;
3. A procura de um novo centro hegemnico e de uma Nova Ordem Mundial;
4. A hegemonia compartilhada dos Estados Unidos;
5. Japo: do poder exclusivo no Pacfico expanso no continente asitico;
6. A integrao europeia, o Leste Europeu e o papel da Alemanha unificada;
7. A Unio Sovitica: um cachorro morto?
8. O Terceiro Mundo ainda existe?
9. necessrio e possvel governar um mundo to complexo e contraditrio?
VI. A GLOBALIZAO, O FUTURO DO CAPITALISMO E DAS POTNCIAS
EMERGENTES
1. As potncias emergentes e o futuro do capitalismo;
4
2. Crise ideolgica e a opinio pblica mundial;
3. A questo da hegemonia;
4. Desenvolvimento e economia mundial;
5. As novas relaes Sul-Sul;
6. O renascer do Terceiro Mundo;
7. Os BRICAS;
8. Ainda sobre os BRICAS.
9. Grupo dos 7, dos 8, dos 13 ou dos 20+?
VII. A EMERGNCIA DA CHINA NA ECONOMIA MUNDIAL
1. Introduo: questes tericas;
2. Reflexes sobre a China;
3. A crise asitica e a economia mundial;
4. Perspectivas da economia asitica depois da crise;
5. A crise asitica e a consolidao das exportaes chinesas;
6. O consenso de Pequim.
VIII. A AMRICA LATINA NA ENCRUZILHADA
1. Desenvolvimento e integrao;
2. Bolvar ou Monroe uma vez mais?
3. Efeitos diplomticos mais gerais;
4. A crise Argentina e o esgotamento das polticas neoliberais;
5. As encruzilhadas diante das crises do neoliberalismo;
6. A crise chega Amrica Latina;
7. Estudo de caso: a contabilidade da dvida brasileira;
8. Graves decises;
9. Mercosul: um projeto histrico;
10. Ainda existe Amrica Latina?
11. Mudanas vista.
TERCEIRA PARTE: DIREITOS HUMANOS, DIREITO DOS POVOS E
A PAZ MUNDIAL
IX. DIREITOS HUMANOS, DIREITOS DOS POVOS E A PAZ MUNDIAL
1. O combate pacfico pela sobrevivncia;
2. Os direitos humanos e o direito dos povos na busca pela paz mundial;
3. O direito dos povos e sua repercusso;
4. O ps-guerra e os desafios do amanh.
5
X. HIPTESES SOBRE A ECONOMIA MUNDIAL, A GUERRA E A PAZ
1. Introduo: natureza e poltica;
2. Iniciando o novo milnio;
3. O plano militar;
4. O crepsculo do neoliberalismo;
5. Tragdia e razo;
6. Guerra e informao.
QUARTA PARTE: CRISE, DESENVOLVIMENTO, NOVOS SUJEITOS
SOCIAIS E CIVILIZAO PLANETRIA
XI. CRISE ESTRUTURAL E CRISE CONJUNTURAL NO CAPITALISMO
CONTEMPORNEO
1. Crise estrutural e longa durao;
2. Os mecanismos de adaptao gerados pelas contradies internas do sistema so
sempre precrios;
3. A trilogia sobre o capitalismo contemporneo, a crise e a teoria social;
4. Da crise estrutural crise da conjuntura 2008-2012.
XII. A EMERGNCIA DE UM PROGRAMA ALTERNATIVO DOS MOVIMENTOS
SOCIAIS
1. As origens: da influncia anarquista Terceira Internacional;
2. O populismo e as lutas nacional-democrticas;
3. A autonomia dos movimentos sociais e as novas formas de resistncia;
4. A globalizao das lutas sociais.
CONCLUSES
BIBLIOGAFIA
6
Prlogo
Em 1988, por ocasio do Congresso da Associao Internacional de Estudos sobre a Paz (IPRA,
sigla em ingls), realizado no Brasil, Cristvo Buarque, ento reitor da Universidade de
Braslia, dedicou um nmero da revista Humanidades1 ao tema da Paz. Neste nmero especial
eu publiquei um artigo sobre o combate pacfico pela sobrevivncia no qual situava a questo
da paz no contexto da luta por uma civilizao planetria. Nele, eu afirmava:
A questo da paz passa a ser, em conseqncia, a primeira e mxima questo do
nosso tempo, a que determina todas as demais. Com ela, elaboram-se um conjunto
de temas que comea pelas possibilidades e necessidades de criao de uma
civilizao planetria, como marco comum dessa nova era de convivncia mundial
inevitvel. Que caractersticas ter esta civilizao? Ela no pode ser concebida
maneira da Ilustrao: como uma supresso das civilizaes anteriores. Esta
vontade imperialista, que se refletia na concepo de razo da Ilustrao, teve que
ceder lugar nos nossos dias a uma concepo mais dialtica do Universo imposta
pela emergncia do Terceiro Mundo, suas culturas e tradies milenrias, suas
matrizes civilizacionais alternativas.
A civilizao planetria ser pluralista, tolerante e mltipla ou no ser! (p. 57).
Eu no era o nico a me sensibilizar por estas tendncias objetivas e subjetivas do processo
histrico que levariam a choques e incompreenses que transformaram os ltimos vinte anos do
sculo XX num caldeiro de confuses ideolgicas sob o domnio de um pensamento
reacionrio que tentava fazer regressar a humanidade ao sculo XVIII. Fomos muitos os que
resistimos, mas no conseguimos espao nos meios de comunicao que refletissem esse
esforo crtico e analtico.
O livro que ora apresento aos leitores reflete muito dessa firmeza crtica que finalmente pode ser
compreendida no momento atual, quando o pensamento humano comea a romper esta casca de
1 Theotonio dos Santos, O combate pacfico pela sobrevivncia, Humanidades 18, ano V, 1988.
Brasilia, pp. 54-62.
7
falsidades e de posturas confusas e pragmticas. Por essa razo quis dedicar este livro a um
pensador do Brasil, da Europa, dos Estados Unidos e da Frana e do chamado Terceiro Mundo
que soube manter este esprito crtico e produzir novos conhecimentos que nos permitissem
avanar apesar das condies to desfavorveis. Celso Furtado foi seguramente um dos mais
eminentes defensores dos princpios ticos que tanto faltaram queles que terminaram
capitulando diante da ofensiva reacionria. Manter uma postura cientfica sem concesses
nestes anos era sem dvida uma qualidade fundamental. Salve Celso Furtado!
Neste prlogo quero assinalar que os intelectuais comprometidos com o rigor terico e a
profundidade analtica no foram tanto uma minoria nfima. Seu desaparecimento dos meios
de comunicao simplesmente revela que fomos sim objeto de uma excluso contra a qual se
lutou bravamente, utilizando todos os meios de comunicao, em particular os novos
instrumentos virtuais que se encontravam ainda abertos.
Alm de Celso Furtado, quero registrar entre estes lutadores j desaparecidos a figura de meu
querido amigo Darcy Ribeiro que conseguiu romper em parte este ostracismo. Mas, me sinto na
necessidade de nomear tantos outros amigos e companheiros desaparecidos em pleno processo
produtivo, como Ruy Mauro Marini (vtima de um boicote sistemtico no Brasil), Milton
Santos, Herbert de Souza (Betinho), Octavio Ianni, Florestan Fernandes, Andre Gunder Frank,
Giovanni Arrighi, Eric Hobsbawn, Guerreiro Ramos, Paulo Freire, Anouar Abdel-Malek,
Miroslav Pekujlic, lvaro Vieira Pinto, Pedro Paz, Agustn Cueva, Ernest Mandel, Kiva
Maidanik, Paul Sweezy, Harry Magdoff, Lelio Basso, Adolfo Snchez Vasquez, Jos Albertino
Rodrigues, Perseu Abramo, Armando Crdova, Jos Luis Cecea, Pedro Vuscovic, Ren
Zavaleta Mercado, Antnio Garcia, Enzo Faletto, Ren Dreyfuss, Maza Zavala, Gerard de
Bernis, Jos Agustn Silva Michelena, Gregorio Selser, Clodomiro Almeida, Fernando
Carmona, Francisco Mieres, Toms Vasconi, scar Pino-Santos, Gonzalo Arroyo, Manuel
Maldonado-Denis, Leopoldo Zea, Otto Kreye, Jos Nilo Tavares, Fernando Fajnzylber, e tantos
outros que me falha a memria.
No devemos deixar de assinalar que grande parte do grupo de intelectuais que sustentou este
esforo terico e analtico est ainda viva e em pleno processo de produo enquanto os
processos polticos apontam para um encontro cada vez mais frtil entre a teoria e a prtica.
Ambos passam por renovaes extremamente significativas que nos induziram preparao
deste livro. Ao chegar ao final deste esforo sinto ainda um vazio profundo. Faltam muitos
aspectos a serem estudados e cobertos que tenho que deixar para trabalhos posteriores. Espero,
contudo, que os avanos que logrei registrar at agora possam ajudar a realizar novos passos
tericos e analticos, alm de novas prticas sociopolticas. A tendncia de que o ponto de vista
solidrio, emancipatrio e socialista esteja ganhando mais apoio a cada dia que passa, enquanto
8
as fantasias consumistas e hedonistas que a ideologia burguesa semeou provocam decepes
cada vez mais frustrantes, nos ajuda a manter as linhas bsicas de nossos esforos tericos e
prticos.
No decorrer da leitura deste livro os leitores que resistam a este esforo talvez se sintam
recompensados, mas seguramente sentiro tambm o quanto falta para que nos sintamos
satisfeitos. Mas talvez esta seja a atitude correta. A postura dialtica que nos inspira sugere que
sempre ser assim...
Devo agradecer muito particularmente a Carlos Alberto Serrano Ferreira por sua assessoria
editorial que, em alguns momentos, chegou a constituir uma contribuio substancial para o
livro. Agradeo tambm com muito carinho o apoio institucional do Centro Internacional Celso
Furtado atravs de Rosa Furtado dAguiar e de Pedro de Souza que se esforaram em viabilizar
a finalizao deste trabalho. Como vimos, a elaborao do mesmo faz parte de um esforo
coletivo de mais de uma gerao de cientistas sociais que entregaram suas vidas a esta tarefa to
vital, mas to complexa e esgotadora.
Os cursos, os seminrios, os congressos, os grupos de leitura, os trabalhos de pesquisa,
individuais ou coletivos, as assembleias, os debates polticos, os enfrentamentos abertos ou
clandestinos, as confrontaes com as foras da represso, as aproximaes com as
possibilidades de polticas concretas de transformao social so todas formas mltiplas que
assume o processo de conhecimento, esta acumulao de saberes que ajuda a humanidade a
distinguir-se das outras espcies animais e colocar-se esta tarefa colossal de ser a construtora
racional de seu prprio destino.
Rio de Janeiro, 23 de Novembro de 2012.
9
Introduo
1 UMA HOMENAGEM A CELSO FURTADO
A maior parte dos estudos sobre desenvolvimento se concentrou nos aspectos econmicos, isto
, no aumento da produtividade, da renda, particularmente da renda per capita, do emprego,
etc.. Claro que esta aparente excluso da problemtica cultural no deixava de supor, contudo,
uma ideia central: a emergncia econmica da Europa, continuada pelos EUA, se explicava em
grande parte por caractersticas prprias do que se chamava Civilizao Crist Ocidental. Por
mais volta que se d neste assunto persiste esta pretenso de apresentar a experincia histrica
destes pases como um modelo abstrato na direo do qual evolui a humanidade.
Muitas foram as modalidades de questionamento desta postura ideolgica apresentada como um
modelo de cientificidade. Contudo, depois da Segunda Guerra Mundial ficou cada vez mais
difcil ignorar a existncia de um sistema mundial desigual e combinado, tendo por centro,
desde o final desta guerra, a potncia dos EUA, que pretendia dar continuidade a estas
conquistas alcanadas pela modernidade, consideradas insuperveis.
As revolues coloniais que se afirmaram no ps II Guerra Mundial como fruto do
debilitamento da Europa, destruda em grande parte pela guerra, foram minando esta
interpretao da histria: a libertao da ndia em 1947; a vitria do Exrcito Vermelho na
China, em 1949; o fracasso da guerra contra a Coreia, reconhecido em 1953; a independncia
da Indonsia (declarada em 1945 e reconhecida em 1949); o fracasso em 1954 da tentativa
ocidental francesa de destruir o governo vietcongue eleito de Ho Chi Mihn (1945), seguido pela
derrota da invaso norte-americana para manter o Vietn do Sul (1973), apesar da enorme
mobilizao militar realizada por esse pas; o surgimento das foras armadas nacionalistas e do
pan-arabismo socialista Baath. Tudo isto representava a emergncia da vida econmica,
poltica, social e cultural de poderosos Estados nacionais herdeiros de fortes tradies culturais
e civilizatrias.
assim que, em 1955, a Conferncia de Bandung consagra a reivindicao afro-asitica de um
no-alinhamento destas novas potncias com a diviso do mundo imposta pelos EUA e
Inglaterra entre a Civilizao Crist Ocidental e o Totalitarismo Ateu-sovitico. Apesar de
10
algumas vacilaes de certas tendncias do pensamento socialista marxista em reconhecer a
importncia histrica, econmica, poltica, social, civilizacional e at mesmo epistemolgica,
desta tomada de posio, a fora dos acontecimentos histricos obrigou a um aprofundamento
da crtica marxista e socialista da modernidade.
A revoluo histrica conduzida pela burguesia europeia contra as estruturas feudais no podia
ser identificada necessariamente como um modelo a ser seguido pelo resto da humanidade. As
incurses de Marx e Engels na questo colonial j indicavam que a no se reproduzia o
processo europeu, mas, pelo contrrio, a situao colonial era j um produto do processo de
expanso capitalista mundial e no podia ser apresentada como uma realidade pr-capitalista. A
teoria do imperialismo de Lnin, Bukhrin e outras contribuies importantes para um enfoque
integral da expanso do capitalismo como economia e poltica mundial, j indicavam que este
modo de produo se expandia sob formas diferenciadas em todo o planeta. A rebeldia desses
povos conquistados pela fora no poderia ser, portanto, um fenmeno secundrio. Ela obrigava
a repensar o processo de modernizao como um fenmeno diversificado, que dependia da
posio das vrias unidades nacionais, regionais ou mesmo locais dentro da economia e poltica
mundiais.
assim que, a partir do chamamento de Bandung, inicia-se uma crtica cada vez mais radical
pretenso de organizar o mundo imagem e semelhana das formaes sociais imperialistas.
Durante os anos cinquenta e sessenta vai se configurando um embate econmico, social, poltico
e cultural planetrio. Na dcada de 70, emerge com toda a fora a luta contra os resultados da
explorao do mundo segundo os princpios capitalistas da plena realizao da acumulao
indefinida do capital.
As organizaes internacionais criadas para gerir o complexo processo que se apresentava ao
final da Segunda Guerra Mundial, sob a hegemonia norte-americana, imposta inclusive a uma
Europa profundamente debilitada, se veem na necessidade de refletir de alguma forma a
existncia deste vasto mundo ignorado pela ordem econmica e poltica do ps-guerra. A
apario de um novo sujeito histrico que representava a maior parte da populao do mundo e
as civilizaes mais antigas que acumularam conhecimentos de grande valor civilizatrio era
um fenmeno novo de impacto colossal.
Os defensores da superioridade radical da civilizao ocidental, de maneira prepotente,
consideravam estes conhecimentos totalmente ultrapassados e subestimavam a possibilidade e a
probabilidade de que estes novos sujeitos da economia, da poltica e da cultura mundial
pudessem organizar estruturas estatais relativamente independentes capazes de alcanar
resultados fundamentais. Eles ignoravam tambm o quanto estes novos poderes poderiam
11
questionar os projetos do centro do sistema mundial, e at que ponto eles colocavam
definitivamente em xeque a ordem mundial existente. assim que o debate sobre o
desenvolvimento e o estudo da problemtica do desenvolvimento comea a ser questionado na
sua formulao original tal como foi realizada desde o centro do sistema.
So muitas as manifestaes de crtica a esta sobrevalorizao e at divinizao, se podemos
diz-lo assim, do mundo euro-americano. Abre-se ento uma crescente discusso sobre as
construes ideolgicas e culturais que sustentavam esta realidade em deteriorao. O
pensamento social brasileiro demonstrou uma capacidade crescente de criticar a submisso
ideolgica da nossa classe dominante condio de produtora de matrias-primas e produtos
agrcolas para uma economia mundial em processos revolucionrios de expanso e
transformao.
No aqui o lugar para fazer um histrico detalhado deste processo crtico, que tem dimenses
complexas e diversificadas. Porm, nos cabe chamar a ateno para a existncia do Instituto
Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) em 1955 no mesmo momento da afirmao afro-asitica
expressada na Conferncia de Bandung. O ISEB traduzia para a situao brasileira avanos
tericos e conceituais que ocorriam no plano internacional. Entre eles estava a atividade da
Comisso Econmica para a Amrica Latina (CEPAL) que, desde 1949, depois de contrariar a
pretenso norte-americana de que uma comisso regional das Naes Unidas teria que ser pan-
americana e no latino-americana, tambm vai aprofundar o reconhecimento da especificidade
da experincia econmica desta regio diante de uma ordem econmica mundial consagrada
reproduo de um sistema onde claramente se definia um centro e uma periferia. Seu diretor,
Ral Prebish, j apontava para a necessidade de uma crtica a alguns teoremas centrais do
pensamento econmico, organizado em torno da ortodoxia neoclssica.
Celso Furtado participou intensamente desse debate, alm de haver integrado em seu universo
terico trs heranas que tendiam a ser convergentes neste processo crtico: os estudos
histricos da escola dos Annales foram conhecidos amplamente por ele durante seu perodo de
estudos doutorais na Frana; segundo, o marxismo que no ps-guerra inundava os campos mais
crticos das Cincias Sociais; e, em terceiro, o keynesianismo que consagrava as polticas
liberais do New Deal como as bases de uma proposta de economia de Bem-Estar na Europa e
outras partes do mundo.
A recuperao econmica do ps-guerra criava a iluso de uma incorporao das classes
subordinadas e dos povos colonizados num processo geral de democracia, reformas sociais e
crescimento econmico. O alerta da CEPAL, os estudos do prprio Celso sobre a maldio do
petrleo na Venezuela e vrios esforos tericos e empricos que foram realizados ou
12
incorporados pela CEPAL indicavam a existncia de problemas mais complexos para a
realizao desta promessa idealizada sobre os benefcios decorrentes necessariamente da
expanso mundial da civilizao industrial.
A dificuldade de sustentar as mudanas desenhadas pelas propostas fantasiosas das cincias
sociais ocidentais e seus seguidores, dentro das sociedades caracterizadas pela dependncia,
deram origem a uma interveno crescente do centro do sistema nas zonas perifricas. A
percepo militar do confronto mundial entre civilizaes e sistemas sociais e polticos
distintos levou aos processos poltico-militares guiados pela doutrina da contra-insurreio.
Estes se transformaram numa sucesso de golpes de Estado a partir da dcada de 60 que
demonstravam e faziam compreender os limites do consenso surgido depois da Segunda Guerra
Mundial.
O golpe de Estado de 1964 lanou uma gerao de pensadores brasileiros e latino-americanos
na busca de explicao das dinmicas socioeconmicas, polticas e culturais que conduziam a
estas frmulas de autoritarismo que se expandiam para vrias regies do mundo, mas em
particular para a Amrica Latina. No deixa de ser positivo ver o desabrochar de uma
conscincia crtica cada vez mais ampla, cada vez mais complexa, a partir dessa experincia
dramtica, porm, enriquecedora.
Por sua formao, Celso Furtado foi um dos que mais se sensibilizaram por essa problemtica e
aproveitou sua experincia nos EUA, na Universidade de Princeton, que o permitiu penetrar
mais profundamente na complexidade do processo de diferenciao entre a experincia histrica
norte-americana e latino-americana, do sculo XIX para c. Ao mesmo tempo, o conhecimento
mais direto do funcionamento e da expanso das corporaes multinacionais o conduziu a uma
perspectiva nova que conduzia a um enfoque baseado no papel central da economia mundial,
vista j como referncia fundamental para as polticas econmicas das naes a elas
subordinadas. Ele incorporou mesmo o conceito de capitalismo dependente enquanto uma
formao social especfica.
A presena de Celso no Chile da Democracia Crist, no Instituto de Estudos Internacionais,
recm-criado pela Universidade do Chile, lhe permitiu analisar aquela que representava a
proposta mais avanada e exemplar da USAID (United States Agency for International
Development) e do projeto de Aliana para o Progresso. Esta anlise permitiu-lhe compreender
na prtica os limites desta proposta. Foi exatamente a compreenso pelo povo chileno destes
limites que conduziu formao da Unidade Popular. O Chile havia se convertido num
caldeiro de experincias frustradas de toda a Amrica Latina e na ponta de lana do
desenvolvimento de um pensamento crtico que colocava em xeque a potncia ideolgica
13
colossal articulada pelos EUA o qual buscava herdar a vitria contra o nazismo (ocultando o
papel fundamental da URSS, transformada em inimiga principal). Nesses anos, foram muitos os
trabalhos produzidos, os quais busco resumir no captulo segundo deste livro. Estes continuam
exercendo uma grande atrao, sobretudo com o fracasso da proposta do pensamento nico
neoliberal que eu analiso no primeiro captulo.
Cabe aqui destacar as vrias iniciativas que vo se desenvolvendo internacionalmente para
canalizar este processo intelectual, poltico e cultural que vai se desdobrando durante as dcadas
de 70 e 80. O meu encontro com Celso no Chile, quando ele era pesquisador do Instituto de
Relaes Internacionais da Universidade do Chile e eu dirigia as pesquisas no Centro de
Estudos Socioeconmicos desta mesma universidade, permitiu j que muitos pontos de vista
comuns fossem se afinando. Na dcada de 70 estivemos tambm juntos na criao da
Associao Internacional de Economistas do Terceiro Mundo, cujo primeiro congresso realizou-
se na Arglia em fevereiro de 1976. Neste momento Celso buscava analisar criticamente as
reunies Norte-Sul e a tentativa de criar a Nova Ordem Econmica Internacional sem levar at o
fim a necessidade de reformas estruturais2. Esta Associao reconhecia a especificidade do
fenmeno da dependncia e buscava desenvolver um pensamento econmico capaz de articular
o ponto de vista e os interesses do chamado Terceiro Mundo.
Ral Prebish j reconhecia essa problemtica quando propunha a criao da UNCTAD no
comeo da dcada de 603. E, depois, ao mesmo tempo, se desenvolve a aliana dos Estados ps-
coloniais com os Estados mais progressistas da Amrica Latina, que vai dar origem
organizao formal do Movimento dos No-Alinhados, sendo a Associao de Economistas do
Terceiro Mundo um think tank para este novo movimento.
A Universidade das Naes Unidas (UNU) foi criada em dezembro de 19734 e sob a inspirao
de seu vice-reitor Kinhide Mushakoji iniciou um conjunto de estudos sobre a economia mundial
e a poltica mundial e o processo de transformao global. Coube a Anouar Abdel-Malek dirigir
o projeto da UNU sobre Alternativas para o Desenvolvimento Sociocultural num Mundo em
2 Ver Celso Furtado, El nuevo orden econmico mundial e Alvaro Briones e Theotonio dos Santos, La
coyuntura internacional y sus efectos en Amrica Latina, ambos em Investigacin econmica, n1, nova poca, Revista da Faculdade de Economia da Universidade Nacional Autnoma do Mxico (UNAM),
Mxico, D.F., janeiro-maro de 1977. Nesta mesma revista h uma srie de documentos sobre o Primeiro
Congresso de Economistas do Terceiro Mundo. Lembre-se que nessa poca Celso Furtado publica sua
crtica teoria do desenvolvimento: O mito do desenvolvimento econmico, Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1974. 3 A Conferncia das Naes Unidas sobre o Comrcio e Desenvolvimento (UNCTAD) foi fundada em
1964 com o objetivo de colaborar na promoo do desenvolvimento e da integrao econmica dos pases
em desenvolvimento. A criao do Sistema Econmico Latino-americano (SELA) por iniciativa do
governo mexicano foi outro passo importante nesta direo. 4 O incio das discusses em torno sua constituio comeou j em 1969.
14
Transio. A reconstruo da teoria do desenvolvimento estava em marcha e as experincias
polticas mais progressistas comeavam a apresentar como vivel essa reconstruo em novas
bases, como vemos no captulo 3. Ao mesmo tempo, a problemtica da globalizao, do papel
da inovao e da possvel retomada do crescimento em novas bases impulsionou um avano
mais profundo na crtica aos limites da cincia econmica, temas que tratamos em parte no
captulo 4 deste livro.
Celso Furtado foi chamado a participar desse programa, no qual tambm tive o prazer de
colaborar. Em 1984, o grande socilogo mexicano, Pablo Gonzlez Casanova, foi encarregado
de coordenar a segunda reunio do projeto sobre criatividade cultural endgena que se realizou
no Instituto de Investigaciones Sociales da UNAM. Segundo Abdel-Malek,
A filosofia de nosso projeto, j amplamente exposta em documentos, mostra que
seu impulso bsico ajudar a recolocar a problemtica do desenvolvimento
humano e social, e suas vises e posies, diferentes e convergentes, de grande
importncia na civilizao e na cultura. Estas vises e posies se obtm em nosso
mundo no momento de sua transformao global, da emergncia de uma nova
ordem internacional 5.
A contribuio de Celso Furtado para o volume Cultura y Creacin Cultural en Amrica
Latina o ponto de partida para a total incorporao de suas reflexes no campo do grande
processo crtico contra o eurocentrismo e contra o economicismo que prevaleceu nas Cincias
Sociais at muito recentemente6. Esta problemtica recolhida em grande parte no captulo
oitavo deste livro, o qual trata sobre a Amrica Latina na encruzilhada. Os captulos sexto e
stimo aprofundam a crtica ao eurocentrismo atravs da anlise das situaes concretas por que
passa a globalizao, a qual comea a reelaborar-se mais radicalmente em funo da emergncia
da China e da sia na economia mundial.
Celso se colocava assim numa posio de vanguarda na nova fase do pensamento latino-
americano iniciada com a Teoria da Dependncia e articulada posteriormente no grande
movimento de ideais sobre o Sistema Mundial. Ao apresentar este debate, o vice-reitor da UNU,
5 Extrado de Anouar Abdel-Malek. Cultura y creacin intelectual. Cultura y creacin intelectual en
Amrica Latina, coord. Pablo Gonzlez Casanova. Mxico, D.F.; Madrid; Buenos Aires e Bogot: Siglo
XXI / Instituto de Investigaciones Sociales de la UNAM / UNU, 1984. pp. XIV-XVII. Citao da pgina
XIV. 6 Ver Celso Furtado, Creatividad cultural y desarrollo dependiente, no livro citado na nota anterior, pp.
122-129. Uma verso posterior foi incorporada no artigo Quem somos? no livro de Rosa Freire dAguiar Furtado (org.), Ensaios sobre cultura e o Ministrio da Cultura, Rio de Janeiro: Contraponto;
Centro Internacional Celso Furtado, 2012, pp. 29-41, como as primeiras reflexes de Celso Furtado sobre
a relao cultura e desenvolvimento. Na mesma ocasio, eu publicava no mesmo livro organizado por
Pablo Gonzlez Casanova o artigo Cultura y Dependencia en Amrica Latina: algunos apuntes metodolgicos e histricos, pp. 159-168.
15
Kinhide Mushakoji, reconhecia esta posio de vanguarda latino-americana ao justificar a
realizao do Encontro sobre a Cultura e a Criao Intelectual na Amrica Latina:
A contribuio dos intelectuais latino-americanos de especial importncia
devido a sua condio de vanguarda dos intelectuais do Terceiro Mundo. Eles
atuam num lugar histrico-geogrfico prximo ao Ocidente e ao mundo
noratlntico, e os afeta diretamente a estrutura centro-periferia e a necessidade de
superar e transcender o modelo noratlntico.
No foi sem razo, portanto, que Celso Furtado foi apontado por duas vezes para reitor da
Universidade das Naes Unidas. Indicao que, infelizmente, no pde se realizar durante a
ditadura militar. O contedo internacional das reflexes de Celso foi recolhido pela UNESCO
quando o convidou para participar como membro da Comisso Mundial sobre Cultura e
Desenvolvimento.
Em novembro de 1991, a Conferncia Geral da UNESCO aprovou uma resoluo que requeria
ao seu Diretor-Geral, em cooperao com o Secretrio-Geral da ONU, estabelecer uma
Comisso Mundial sobre Cultura e Desenvolvimento, que foi constituda em dezembro de 1992.
Ela foi criada nos marcos de uma mudana de concepo sobre o desenvolvimento, que j vinha
se processando no Sistema das Naes Unidas, com particular referncia no PNUD (mas no
s) e que pensava numa concepo mais ampla e menos economicista, centrada nos aspectos
humanos, nos direitos e na qualidade de vida das populaes. Tratamos mais amplamente desta
temtica nos captulo nove e dez deste livro. o estabelecimento do conceito de
desenvolvimento humano onde, segundo Federico Mayor,
A Cultura estava implicada nesta noo, mas no estava explicitamente. Foi, no
entanto, cada vez mais evocada por vrios grupos distintos: a Comisso Brandt, a
Comisso Sul, a Comisso Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e a
Comisso sobre Governana Global.
A criao da comisso objetivava exatamente o estabelecimento efetivo da relao entre cultura
e desenvolvimento:
Construir perspectivas culturais em estratgias mais amplas de desenvolvimento,
bem como uma agenda prtica mais efetiva, tinham que ser os prximos passos no
16
repensar do desenvolvimento. Este o desafio formidvel que a nossa Comisso
teve de enfrentar. 7.
Este carter da Comisso como um momento de um processo maior de transformao reflexiva
fica ainda mais demonstrado por ela ser parte de uma iniciativa mais ampla da UNESCO, a
Dcada Mundial para o Desenvolvimento Cultural (1988-1997), onde os seus pases-membros
eram instados a refletir, adotar polticas e empreender atividades para assegurar o
desenvolvimento integrado de suas sociedades 8.
Para a presidncia da Comisso foi apontado Javier Prez de Cullar, ex-Secretrio-Geral das
Naes Unidas, diplomata peruano, ex-embaixador na Sua, URSS e Venezuela, e membro do
Institut de France (Academia de Moral e Cincia Poltica). Compuseram a comisso,
intelectuais de diversas reas, como economistas, antroplogos, cientistas polticos, romancistas
e poetas, bem como prmios Nobel, como da Paz e de Qumica. Foi uma comisso de alto nvel
e de grande representatividade, tanto intelectual e cultural, como geogrfica.
Como resultado de vrias reunies e de um dilogo intelectual mundial foi publicado em 1995,
como produto de seu trabalho, o informe Our Creative Diversity9, do qual participou muito
intensamente Celso Furtado, incorporando alm de suas reflexes tericas e histricas a sua
experincia como Ministro da Cultura no Brasil.
Esse informe produziu efeitos no debate internacional, tais como, dez anos depois, a
solidificao dessa concepo da importncia da cultura para o desenvolvimento e da inter-
relao profunda dessas duas dimenses na Conveno da UNESCO sobre a Proteo e
Promoo da Diversidade das Expresses Culturais, que na letra (f) de seu primeiro artigo
coloca como um dos objetivos da mesma reafirmar a importncia do vnculo entre cultura e
desenvolvimento para todos os pases, especialmente para pases em desenvolvimento, e
encorajar as aes empreendidas no plano nacional e internacional para que se reconhea o
autntico valor desse vnculo. Uma das consequncias diretas dessa Comisso foi tambm a
publicao dos World Culture Reports10
.
7 Estas citaes de Federico Mayor foram extradas do Presidents Foreward, do relatrio da World
Commission on Culture and Development, Our Creative Diversity: Report of the World Commission on
Culture and Development, Paris: UNESCO, 1995. 8 Informao extrada do portal da UNESCO (www.unesco.org).
9 Citado na nota 7.
10 Saram edies em castelhano dos mesmos. Ver UNESCO, Informe Mundial sobre la Cultura: cultura,
creatividad y mercados, Madrid: UNESCO / Acento / Fundacin Santa Mara, 1999 e Informe Mundial
sobre la Cultura: diversidad cultural, conflicto y pluralismo, Madrid: UNESCO / Mundi-Prensa, 2001.
Os relatrios foram disponibilizados quase em sua integralidade em verso on-line pelo Centro Regional
de Investigaciones Multidisciplinarias (CRIM) da UNAM, estando o de 1999 disponvel em
17
Apesar de que a contribuio de Celso no foi individualizada no texto, por sua condio de
membro do Conselho da pesquisa, seu artigo publicado na Folha de So Paulo, em 3 de
novembro de 1995, sobre Cultura e Desenvolvimento, se refere ao papel dessa Comisso, no
qual ele conclui ressaltando a importncia da mesma:
Em sntese a nossa Civilizao somente sobreviver se lograr aprofundar os
vnculos de solidariedade entre povos e culturas, num sistema de convivncia
internacional cada vez menos tutelado e mais participativo11.
Neste momento Celso Furtado j tinha passado pelo cargo de Ministro da Cultura entre 1986-
1988, o que lhe permitiu colocar essa problemtica terica no campo das polticas pblicas.
Nesta homenagem, gostaria de assinalar a interao entre esta experincia poltica de Celso e a
figura de Darcy Ribeiro como secretrio de cultura do Estado do Rio de Janeiro. Ambos
destacaram os limites impostos ao desenvolvimento cultural pela oligarquia dominante dos
pases capitalistas dependentes, particularmente no Brasil, diante da impressionante criatividade
popular.
Ento, a colaborao nossa com Celso Furtado se aproximou cada vez mais e ele teve um papel
muito importante na consolidao da Ctedra e Rede em Economia Global e Desenvolvimento
Sustentvel (REGGEN) sob a minha direo, que foi criada em 1997 pela UNESCO e pela
UNU a partir de um encontro realizado em Helsinki, Finlndia, em 1996. Em 2000, a REGGEN
colaborou muito diretamente com a organizao do encontro internacional coordenado por
Francisco Lpez Segrera e Daniel Filmus sobre Amrica Latina 2020 cenrios, alternativas e
estratgias, ocorrido no Rio de Janeiro. Nesta oportunidade ele pronunciou umas palavras de
abertura que alm de chamar retomada do crescimento econmico, terminava com o seguinte
pargrafo:
O processo de globalizao interrompeu esse avano na conquista da autonomia
na tomada de decises estratgicas. Se submergirmos na dolarizao, estaremos
regredindo ao estatuto semicolonial. Com efeito, se prosseguirmos no caminho que
estamos trilhando desde 1994, buscando a sada fcil do crescente endividamento
externo e o do setor pblico interno, o Passivo Brasil a que fizemos referncia ter
crescido ao final do prximo decnio absorvendo a totalidade da riqueza nacional.
http://132.248.35.1/cultura/informe/ e o de 2001 disponvel em
http://132.248.35.1/cultura/informe/informe%20mund2/INDICEinforme2.html. 11
Extrado de Celso Furtado, Cultura e Desenvolvimento, do livro de Rosa Freire dAguiar Furtado (org.), Ensaios sobre cultura e o Ministrio da Cultura, citado na nota 5, pp. 113-116. Citao da pgina
116.
18
O sonho de construir um pas tropical capaz de influir no destino da humanidade
ter-se- desvanecido. 12
Esta temtica est tratada neste livro, em grande parte, nos captulo onze e doze.
Em 2003, realizamos talvez o mais importante encontro organizado pela REGGEN. Celso
Furtado outra vez abriu nosso encontro, quando suas advertncias expressas na sua interveno
anteriormente citada j estavam em plena concretizao. Suas advertncias continuavam
fundamentais, claras e decisivas. Assim termina ele sua saudao:
Agora que fazer? As portas para as sadas falsas esto fechadas. Liquidar o pouco
que resta do patrimnio nacional? Apelar novamente para a inflao, forma
insidiosa de punir a populao pobre? J no resta dvida de que, para sair do
impasse atual que o obriga a concentrar a renda a fim de satisfazer a sempre
crescente propenso ao consumo do segmento de privilegiados, o Brasil ter de se
submeter a importantes reformas estruturais que exigiro persistncia de propsitos
e apoio de amplo movimento de opinio pblica. A reconstruo estrutural
requerida obra que exige esforo persistente de mais de uma gerao. So
problemas que se acumulam desde a poca colonial e em parte resultam da
dimenso continental do pas. Todos esto conscientes de que as relaes
internacionais tendem a sofrer modificaes de grande monta, e o Brasil ter de
enfrent-las antes que o quadro internacional restrinja ainda mais nossa capacidade
de exercer a soberania. Os debates que tero lugar neste seminrio certamente nos
ajudaro a encontrar o caminho de sada nessa difcil conjuntura. Aos
organizadores deste seminrio, iniciativa do meu velho companheiro de lutas,
Theotonio dos Santos, meus calorosos agradecimentos. 13
Neste encontro, que contou com uma centena de importantes pensadores de todo o mundo e
uma assistncia de cerca de seiscentos ouvintes, lanamos a candidatura de Celso Furtado para
Prmio Nobel de Economia, com uma enorme repercusso. Em seguida, apresentei esta
candidatura para o Encontro Internacional sobre Globalizao e Desenvolvimento organizado
pela Associao de Economistas da Amrica Latina (AEAL) e realizado em Cuba nesse mesmo
ano, com a aprovao unnime de um Auditrio de 500 economistas de todo o mundo. Por mais
12 Extrado de Celso Furtado, Brasil: para retomar o crescimento, do livro de Francisco Lpez Segrera e
Daniel Filmus (coord.), Amrica Latina 2020: cenrios, alternativas e estratgias, So Paulo:
Viramundo, 2000, pp. 21-23. Citao da pgina 23. 13
Extrado de Celso Furtado, Prefcio O desafio brasileiro, do livro de Theotonio dos Santos (coord.), Carlos Eduardo Martins, Fernando S e Mnica Bruckmann (orgs.), Globalizao e Integrao das
Amricas, volume 4 da coleo Hegemonia e Contra-hegemonia, Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; So
Paulo: Loyola, 2005, pp. 23-25. Citao da pgina 25.
19
que seu nome fosse aceito e recomendado por grandes figuras do pensamento econmico
contemporneo, os jurados do prmio Nobel de economia no atenderam este clamor. Eles
continuam premiando o economicismo conservador e uma cincia econmica totalmente
separada das Cincias Sociais.
Vemos assim que o presente livro deve muito a esta colaborao com este grande economista
brasileiro de expresso universal. Estou seguro que Celso Furtado se vivo ainda estaria de
acordo com grande parte das teses defendidas neste livro. necessrio preitear sua enorme
contribuio para o mesmo.
2 CIVILIZAO E DESENVOLVIMENTO
O conceito de civilizao surge como tal no sculo XVIII. inclusive um verbete da
Enciclopdia dos Iluministas. A ideia de civilizao se associava ento constituio de uma
sociedade civil dos cidados, que se diferenciava das formas polticas anteriores e que gerava
uma organizao social especfica que pretendia corresponder a uma moral mais adequada
natureza humana. Nesse momento, se consagra a ideia do indivduo como fundador da
sociedade e como criador de produtos que eram fruto de seu trabalho. Pode-se compreender,
portanto, como a economia poltica clssica chegou noo de valor. Apesar do grande passo
que isso significava para a busca de compreenso dos avanos sociais trazidos pelo aumento
colossal de produtividade, que foi possvel alcanar como consequncia basicamente do
desenvolvimento das manufaturas e posteriormente da Revoluo Industrial. Logo, era natural
que no norte da Europa, particularmente na Inglaterra, onde se concentrava esta revoluo, se
gerasse uma premonio de que o grande desenvolvimento das foras produtivas que se
consolidava nestas regies e das formas sociais que se associavam a este processo produzisse a
ideia de um estgio superior da sociedade humana que se caracterizaria por gerar uma forma
social que foi se associando cada vez mais ao conceito de civilizao.
Durante o sculo XIX foi-se depurando esta ideia. Saint Simon nos fala de uma sociedade
industrial que corresponderia ao futuro da humanidade. Comte, seu discpulo, vai sistematizar
esta noo de uma nova sociedade com a ideia de progresso. Associava-se assim certa
concepo de sociedade ao processo evolutivo apoiado no conhecimento cientfico e nas formas
de produo modernas, que se manifestavam na Revoluo Industrial. Hegel inclusive tinha na
Fenomenologia do Esprito14
mostrado o carter necessrio desta evoluo da humanidade na
direo de uma sociedade livre apoiada na introduo e generalizao da industrializao, do
14 Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Fenomenologia do Esprito, Petrpolis: Vozes, 2007. 4 edio.
20
uso da razo e da ao econmica organizada e sistematizada. No final do sculo XIX, a viso
neopositivista de inspirao kantiana vai resgatar essa nova noo de progresso como um roteiro
necessrio e como um produto do desenvolvimento da capacidade cultural humana. A estrutura
de percepo assegurava ao Homem um pleno desenvolvimento da sua diferenciao do reino
animal. Era lgico, portanto que aquelas sociedades que desenvolveram essa especificidade do
humano se transformassem numa espcie de modelo para todas as outras. Tudo indicava
poranto que a humanidade chegava, como o havia concebido Hegel, ao fim da histria.
Marx e Engels buscaram compeender esta especificidade do humano, no como um dado da
natureza humana mas sim como resultado da acumulao e evoluo da conscincia humana,
embutida nas sucessivas formas de relaes sociais que pomove historicamente este pleno
desenvolvimento da humanidade. Em consequncia, Marx e Engels desenvolvem um mtodo
dialtico que lhes permite encontrar a universalidade do concreto, isto , o elemento mais
abstrato de formaes sociais historicamente dadas. assim que ele se prope a realizar a crtica
da economia poltica ao identificar na proposta terica do liberalismo e da economia poltica
clssica uma tentativa de transformar as leis de funcionamento de um concreto histrico em leis
gerais da sociedade humana em abstrato.
A crtica da economia poltica era assim a crtica da tentativa da ideologia burguesa de
transformar a sociedade e as relaes econmicas capitalistas numa forma ideal da sociedade
humana. Este esforo terico de Marx permitia encontrar novas formas de organizao social
que emergiam da prpria evoluo da sociedade capitalista e que serviam de fundamento para a
ao poltica das classes sociais geradas pelas relaes capitalistas de produo. Surgiam assim,
dentro do avano da revoluo industrial, as novas relaes sociais, particularmente as classes
sociais que se identificavam com o avano destas novas bases materiais. A conjuno destas
classes sociais se realizava num processo de luta que, de um lado, alterava o modo de
funcionamento da prpria economia e sociedade capitalista e, de outro lado, colocava as
condies e possibilidades de uma sociedade superior.
O fenmeno da evoluo no terminava com a sociedade capitalista existente, mas pelo
contrrio, apontava para uma transformao histrica permanente da humanidade e do ser
humano como indivduo. O marxismo se convertia num movimento social que articulava uma
viso do mundo, um mtodo de anlise e sntese e uma estrutura de organizao poltica que
pareciam se materializar atravs do fenmeno impressionante da emergncia do movimento
socialista internacional, na Comuna de Paris, na Primeira e na Segunda Internacionais.
O pensamento comprometido com a ordem social, poltica e moral que brotava e se ampliava
com a expanso material da sociedade burguesa exigia uma resposta terica, conceitual, mais
21
sofisticada. Os tericos burgueses de ponta, de vanguarda, no tinham mais por tarefa criticar as
sociedades pr-capitalistas e sim defender o carter eterno e absoluto da sociedade existente.
No deixa de ser impressionante ver o esforo terico de um Max Weber, de um Durkheim, de
uma economia poltica austraca, para transformar em conhecimento cientfico a abstrao das
relaes capitalistas de produo e do liberalismo, no como um fenmeno histrico concreto e
particular e sim como a formao social e poltica em si. Tratava-se de transformar a sociedade
existente na expresso mais avanada da economia e da poltica em geral. A materializao
destas formas sociais abstratas seriam a forma final de organizao da sociedade humana. Eis a
a origem da relao aparentemente harmoniosa entre o surgimento e a sistematizao das
cincias sociais e a afirmao histrica do modo de produo capitalista.
Se tomarmos em considerao que a formao do modo de produo capitalista historicamente
se faz atravs de um sistema de relaes econmicas, sociais e polticas em escala mundial
uma hiptese bastante arbitrria pretender que os processos que se deram nas regies que
ocuparam um papel central na criao do sistema econmico mundial moderno correspondam a
uma forma final e superior da histria humana. A partir disto que vamos fazer uma sntese das
principais tentativas de apresentar a histria humana neste contexto terico conceitual, pois no
comeo do sculo XX o sistema mundial capitalista apresenta o fenmeno da Primeira Guerra
Mundial. Como explicar que a sociedade perfeita tenha levado a humanidade destruio
mutua? Era necessrio encontrar as razes da guerra no competio inter-capitaista mas ao
nacionalismo, por exemplo ou a elementos intrnsicos a toda sociedade.
Vemos assim as vrias contribuies tericas como tentativas importantes de buscar estas
causas independentemente das relaes de produo prprias deste modo de produo. Tratava-
se de buscar os mecanismos pelos quais se alguns povos se liberaram das limiaes impostas ao
pleno funcionamento da natureza humana prmitindo que se impusesse historicamente as
relaes econmicas naturais que cabia cincia econmica descobrir. Tratou-se de afirmar,
de um lado, com Oswald Spengler que a decadncia era uma parte necessria do prprio
processo civilizatrio. Ela no se explicava por razes econmicas mas sim por limites
culturais. Tese que ele defende no seu livro A decadncia do Ocidente15
. Por outro lado,
Pitirim A. Sorokin16
, diante da ameaa que representa a Revoluo Russa para essa ordem social
perfeita vai nos conduzir a uma tentativa de transformar num fenmeno biolgico o
surgimento, o crescimento, a afirmao, o auge e a decadncia das civilizaes.
15 Em portugus h Oswald Spengler, A decadncia do Ocidente: esboo de uma morfologia da histria
universal, Braslia: Editora da Universidade de Braslia, 1982. 16
Ver Piritim A. Sorokin, Social and Cultural Dynamics, Nova York; Cincinnati; Chicago; Boston;
Atlanta; Dallas; So Francisco: American Book Company, 1937. 4 vols. O ltimo volume de 1941.
22
Estamos assim diante de uma crtica ao otimismo histrico do liberalismo, que entrava em
eroso diante das evidncias histricas que vivia a sociedade burguesa. J no final da Primeira
Guerra vamos assistir um dos esforos mais importantes para tentar reconstruir o quadro e o
tecido da viso liberal.
Desde uma postura que poderamos chamar de esquerda, nos deparamos com o gigantesco
esforo de H.G. Wells para encontrar uma razo positiva orientando a evoluo da humanidade.
Seu livro The Outline of History Being a plain history of life and mankind17, publicado
originalmente em 1920 e revisado em 1932, lhe impe consideraes metodolgicas e
ideolgicas. Diante da evidncia da parcialidade do seu prprio enfoque H.G. Wells tenta
corrigi-lo em parte. Segundo ele:
De incio o autor pretendeu apenas uma reviso geral da unidade europeia, uma
espcie de sumrio da ascenso e queda do sistema romano, da obstinada
sobrevivncia da ideia de Imprio na Europa e dos vrios projetos para a unificao
da Cristandade que haviam sido propostos em diferentes ocasies (p. 4).
Contudo, a evidncia dos fatos histricos o obriga a dar um passo adiante:
Mas depressa (o autor) verificou no haver nenhum real comeo em Roma, ou na
Judia, e ser impossvel confinar a histria ao mundo ocidental. Este no era seno
o ltimo ato de muito maior drama. Os seus estudos o levaram, por um lado, at os
primrdios arianos nas florestas e plancies da Europa e da sia ocidental, e, por
outro lado, at os primeiros passos da civilizao no Egito, na Mesopotmia e nas
terras agora submersas da bacia do Mediterrneo onde, parece, viveu e prosperou
outrora uma populao humana primordial (p. 4).
O autor busca suprir a falta de informao e conhecimento histrico da sua poca, mas
compreende claramente as intervenes arbitrrias realizadas pelo pensamento pretensamente
universal e cientfico a favor do reconhecimento do papel histrico excepcional e definitivo que
a Europa apresentava:
Comeou a compreender quanto os historiadores europeus haviam, drasticamente,
diminudo a participao das culturas dos planaltos centrais da sia, da Prsia, da
ndia e da China no drama da humanidade (p. 4).
17 H uma edio em portugus H. G. Wells, Historia Universal, So Paulo; Rio de Janeiro; Recife e
Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1942. 3 vols. As citaes se referiro esta edio.
23
Ele reconhecia ento, nesta operao de ocultao histrica, um contedo de interveno na
problemtica do seu prprio tempo. Compreendendo o fenmeno que mais tarde Fernand
Braudel chamaria de longa durao, ele afirmava:
Comeou a ver, mais e mais claramente, como ainda se achava vivo, em nossas
vidas e instituies, esse remoto passado, e como pouco o que podemos
compreender dos problemas polticos, religiosos ou sociais de hoje, se no
compreendermos os primeiros estgios da associao humana. E como
compreender esses primeiros estgios, sem algum conhecimento das origens
humanas? (p. 4).
significativo ver como seu livro que teve uma divulgao excepcional no conseguiu tambm
superar estes limites. Ele centra sua anlise histrica no mundo antigo na Europa, no
mediterrneo e seu vale, e analisa as primeiras civilizaes como experincias separadas,
envolvendo os cultivadores nmades primitivos transformados em camponeses, artesos,
religiosos e militares a partir da revoluo agrcola que Gordon Childe18
tomou como elemento
central da transformao das foras produtivas e dos regimes sociais que se tornaram possveis e
complexos a partir dela.
Eles nos chama ao estudo dos sumerianos, do imprio de Sargo I, Hamurabi, os Assrios, os
Caldeus, o Egito, a ndia e a China. Vemos como elementos comuns destas primeiras
civilizaes no somente o domnio da natureza com a produo agrcola como o
desenvolvimento de um pensamento primitivo, de uma diferenciao racial e lingustica, os
povos martimos e os povos comerciantes, a escrita, a astrologia. Assistimos a emergncia da
gesta de Alexandre, o Grande, que ele no pode deixar de considerar como o augrio do imprio
mundial. O esforo de H.G.Wells, por mais que aspirasse a um enfoque universal, manteve no
fundo a ideia de predestinao da Europa em converter-se em lder do processo civilizatrio
mundial.
Arnold Toynbee nos oferece um esforo colossal no seu Um estudo da histria19
, publicado
originalmente em 1972 como uma sntese atualizada dos doze volumes que publicara de 1927 a
1939, s vsperas, portanto, da Segunda Guerra Mundial. Nessa verso mais repousada, vinte e
sete anos aps a Segunda Guerra Mundial, Toynbee tenta dar um fundamento terico mais
complexo do que adotou no seu esforo inicial.
18 Ver Gordon Childe, O homem faz-se a si prprio: o progresso da humanidade desde as suas origens
at o fim do Imprio Romano, Lisboa: Cosmos, 1947. Traduo feita por Vitorino Magalhes Godinho e
Jorge Borges de Macedo do livro originalmente publicado em ingls Man makes himself, Londres: Watts,
1936. 19
Arnold Joseph Toynbee, Um estudo da histria, Braslia: Editora da Universidade de Braslia; So
Paulo: Martins Fontes, 1987.
24
Na primeira parte, ao tentar uma morfologia da histria, Toynbee nos coloca:
Comeo meu trabalho buscando uma unidade de estudo histrico que seja de certo
modo independente e, portanto, mais ou menos inteligvel, isoladamente, em
relao ao resto da histria. Rejeito o hbito contemporneo de estudar a histria
em termos de estados nacionais; estes parecem ser fragmentos de algo maior: uma
civilizao. Visto que o homem necessita classificar a informao antes de a
interpretar, tal unidade de maior amplitude se me afigura menos deturpadora do
que uma de menor espectro. Aps definir minha unidade de trabalho, ao observar
as sociedades pr-civilizadas, procuro estabelecer um modelo para a histria das
civilizaes, tomando como rumo os cursos das histrias helnica, chinesa e
judaica. Ao combinar seus principais aspectos, proponho um modelo composto
que, aparentemente, aplicvel s histrias da maioria das civilizaes que
conhecemos. Concluo por elaborar uma lista das civilizaes, passadas e presentes
(p. 15).
O esforo de Toynbee realmente muito impressionante, sobretudo na medida em que ele busca
encontrar os elementos que compem essas civilizaes, distinguindo inclusive as sociedades de
transio e buscando um estudo comparativo das civilizaes. V-se, contudo, um certo limite
de enfoque ao tomar os modelos helnico, chins e judaico como centrais. De fato, ao terminar
sua morfologia ele apresenta uma tbua de civilizaes desenvolvidas e civilizaes abortadas.
Outra vez seu esforo terico se v limitado no s pela perspectiva histrica eurocntrica,
como tambm pela falta de estudos empricos suficientes, sobretudo sobre as regies do mundo
que no fazem parte do imaginrio eurocntrico. Entre as civilizaes independentes no h
dvida que ele s as pode encontrar dos anos 100-200 a.C. para c. claro, por exemplo, sua
ideia de que a civilizao andina no teria relao com outras. Como veremos posteriormente o
mundo andino j estava articulado numa regio relativamente grande em torno do stio
arqueolgico de Caral desde 3.000 a.C. .
Existe, portanto, um vazio tanto arqueolgico como histrico e terico que permita explicar o
verdadeiro papel das Amricas no processo de desenvolvimento das civilizaes. Talvez
pudssemos colocar entre parnteses todo o esforo interpretativo desenvolvido nos ltimos
duzentos anos, a partir sobretudo dos centros acadmicos ocidentais, para reconstruir uma
verdadeira histria das civilizaes. A partir dessa operao de parnteses, imitando a verso
Guerreiro Ramos da reduo filosfica de Husserl, atravs de uma reduo sociolgica20
,
20 Ver Alberto Guerreiro Ramos, A reduo sociolgica : introduo ao estudo da razo sociolgica, Rio
de Janeiro: ISEB, 1958. H uma edio mais recente publicada pela editora da UFRJ em 1996.
25
reordenando essas experincias histricas com hipteses mais amplas que permitam desenhar
um panorama novo desta epopeia humana.
No o objetivo deste trabalho realizar esta tarefa que exige uma equipe ou mesmo vrias
equipes muito amplas. Talvez seja j tempo de refazer a histria das civilizaes sem desprezar,
evidentemente, estes esforos anteriores de compreenso da histria humana. interessante
considerar que Toynbee, nesta sua verso mais ampla e mais moderna, j se sente na obrigao
de resistir a esse enfoque eurocntrico, mas no nada claro que ele tenha conseguido superar
esta limitao21
.
interessante notar o impacto deste esforo de Toynbee num Japo que estava recm
recuperando sua fora histrica diante da civilizao ocidental, particularmente seu centro norte-
americano, que lhe imps uma derrota definitiva na Segunda Guerra Mundial. Umesao Tadao,
diretor do Museu de Osaka, escreve na dcada de 70 um conjunto de trabalhos que busca
responder ao esforo de Toynbee. Em seu livro O Japo na Era Planetria22
, traduzido ao
francs por Ren Siffert, e publicado em Paris em 1983, ele tenta apresentar uma concepo
ecolgica das civilizaes, que comea por criticar a diviso entre Ocidente e Oriente e,
particularmente, identificar o Japo com a cultura oriental. Sua argumentao o conduz a uma
afirmao bastante inquietante. Ele coloca:
A velha concepo evolutiva da histria via a evoluo como uma progresso em
linha reta sobre uma rota nica na qual passe o que passe todo o mundo atingir,
cedo ou tarde, o mesmo objetivo. As diferenas no estado atual so consideradas
como simples diferenas de nveis de desenvolvimento sobre a via do objetivo
final. A verdadeira evoluo dos seres viventes no tem, evidentemente, nada a ver
com isso, mas o enfoque evolutivo adaptado histria da humanidade chegou a
esta maneira de ver simplista. Se admitir-se o ponto de vista ecolgico, por outro
lado, muitas vias se oferecem segundo os casos, no pois surpreendente que nas
primeiras e segundas zonas do mundo euroasitico, distinguidas por ele cada
sociedade desenvolveu seu modo de vida prprio (p. 22).
Ele insiste no caso japons e afirma:
21 A cada dia maior o nmero de acadmicos europeus e norte-americanos que aceitam a ideia de que h
uma viso eurocntrica, particularmente no que respeita ao conceito de uma civilizao ocidental.
Poderamos citar a Niall Ferguson como um exitoso expositor dessa autocrtica limitada. Recomendamos
como um exemplo bastante amplo deste enfoque o seu livro Civilizacin: Occidente y el resto, Barcelona:
Random House Mondadori, 2012. Atravs deste livro pode-se tambm encontrar uma bibliografia
bastante completa dos autores ligados a esta corrente. Outro esforo que pode chamar a ateno seria
Norbert Elias, O Processo Civilizador, 2 v., Rio de Janeiro: Zahar, 2011. 22
Umesao Tadao, Le Japon lre planetire, Paris: Publications Orientalistes de France, 1983, de onde
as citaes seguintes so retiradas.
26
Todo discurso sobre a cultura japonesa que no integra estes fatos que do a
especificidade do caso japons na sua reflexo uma falta de sentido pura e
simples. De outro lado, no se pode conceber toda a transformao na direo de
um progresso da civilizao. Pois, a civilizao nosso ponto de apoio, nossa
tradio, que ns devemos de toda maneira preservar (p.14).
Desta maneira se chega a uma negao totalmente radical da viso eurocntrica que pretende
estabelecer um modelo civilizatrio, inclusive a partir de especificidades da cultura europeia.
Ele continua:
Isto no tem nada a ver com o fato que o Japo seja um pas de capitalismo de alto
nvel. Nem todo pas capitalista atinge forosamente um alto nvel de civilizao e
impossvel afirmar que nenhum pas de alto nvel de civilizao tal como o Japo
no se tornar jamais um pas socialista. (p. 14)
E, ele ento amplia sua observao histrica:
Para tomar as coisas concretamente, contudo, foroso constatar que no mundo
antigo os pases que conseguiram criar uma situao de fato parecida, qualquer que
seja o seu regime, so ainda menos numerosos. No existem aqueles que
pareceram haver se aproximado dessa condio, mas somente o Japo e alguns
pases da Europa Ocidental, que se encontram na outra extremidade do continente
se transformaram na sua globalidade como pases de alto nvel de civilizao. Com
os outros, China, Sudeste asitico, ndia, Rssia, pases islmicos, Europa Oriental
subsiste ao menos vrios graus de diferenas. (pp. 14-15).
Continuando com o caso japons Umesao vai questionar toda a interpretao de que a
modernizao do Japo comea com a dinastia Meiji:
Da minha parte, eu veria mais bem a relao entre a civilizao moderna do
Japo, depois de Meiji, e a civilizao europeia moderna como uma espcie de
progresso paralela. Num primeiro tempo, o Japo se encontrava em retardo, e era
necessrio importar uma quantidade importante de elementos europeus para traar
o seu avano nessas grandes linhas. Logo depois a mquina comeou a mover. No
podia ser a questo contentar-se com comparar-se com a Europa Ocidental. Cada
vez que aparecia um elemento novo o conjunto do sistema era revisado e ampliado.
Estes elementos novos eram, segundo o caso, tirados da Europa, ou colocados pelo
prprio Japo. Na Europa, por sinal, as coisas se passavam da mesma maneira. O
automvel ou a televiso no existiam l desde o princpio. Cada vez que aparecia
27
um ingrediente novo como esses o antigo sistema era revisado e sem cessar
ampliado (p. 15).
E conclui, polemicamente: Qualquer que seja o caso, o Japo jamais teve por objetivo sua
europeizao. E, isto continua uma verdade. Para o Japo o objetivo era o Japo (p. 16).
Vemos assim que a forma mesma da qual se partia para organizar a histria das civilizaes e os
fenmenos interculturais era questionada radicalmente por povos e naes que no aceitavam
jogar fora sua identidade como condio de uma mudana social profunda.
Inegavelmente, um momento de amadurecimento desta conscincia se coloca nos anos do ps-
guerra, particularmente na Frana no debate sobre a reestruturao do ensino da Histria
Universal. Fernand Braudel apresenta em 1963 um manual de histria das civilizaes23
que
comea a abrir caminho para uma tentativa de reinterpretao da histria desde um ponto de
vista que busca ser realmente universal e interdisciplinar. Afinal, a intelectualidade francesa
tinha que colocar-se diante da questo colonial num plano no puramente acadmico, mas
geopoltico e militar. O enfrentamento contra a tentativa de se impor sobre a Indochina,
fracassada nos anos 50, e a derrota da estratgia contrainsurrecional na Arglia obrigavam a
repensar seriamente estas questes.
Sem dvida, o problema do papel secundrio da Frana na reestruturao europeia tambm
exigia uma maior profundidade do debate que haveria que ser travado em torno da questo
civilizatria, da questo colonial e da questo do processo de modernizao. Num excelente
texto de prefcio ao livro de Fernand Braudel Gramtica das Civilizaes, escrito pelo
historiador Maurice Aymard, que dirigiu at recentemente a Maison des Sciences de lHomme,
criada por Braudel, nos diz:
F. Braudel freqentemente fez sua e uma ltima vez na introduo de LIdentit
de la France, a afirmao de Marc Bloch: No existe histria da Frana. Existe
apenas uma histria da Europa, mas apressando-se em acrescentar: No existe
histria da Europa, existe uma histria do mundo. No teve tempo de levar a cabo
essa histria da Frana, que era, como ele bem sabia, seu derradeiro desafio. No
fez mais que esboar, pelo cinema e pelo texto (LEurope, Paris, Arts et Mtiers
Graphiques, 1982), essa histria da Europa que se anunciava em Mditerrane.
Deu-nos ele com Civilization matrielle, conomie et capitalisme, uma histria do
mundo que desaguava, diferentemente de Mditerrane, numa interrogao sobre o
presente e o futuro prximo (pp.11-12).
23 Fernand Braudel, Gramtica das Civilizaes, So Paulo: Martins Fontes, 2004. As citaes seguintes
so retiradas deste livro.
28
Maurice Aymard nos afirma com razo que o livro de Braudel Gramtica das Civilizaes
prepara e completa este esforo colossal. Este livro tenta explicar os caminhos da formao
primria, secundria e universitria de uma Frana que estava j regida por Mitterrand e pelas
aspiraes de um Partido Socialista que tinha ainda pretenses universais. Braudel nos introduz
na problemtica civilizatria ao demonstrar a relao profunda que existe entre a histria e o
presente. Ele afirma:
Esses acontecimentos de ontem explicam e no explicam, por si ss, o universo
atual. De fato, em graus diversos, a atualidade prolonga outras experincias muito
mais afastadas no tempo. Ela se nutre de sculos transcorridos, e mesmo de toda
evoluo histrica vivida pela humanidade at nossos dias. O fato de o presente
implicar semelhante dimenso de tempo vivido no deve parecer-lhes absurdo,
muito embora todos ns tendamos espontaneamente a considerar o mundo que nos
circunda apenas na brevssima durao de nossa prpria existncia e a ver sua
histria como um filme acelerado em que tudo se sucede ou se atropela: guerras,
batalhas, conferncias de cpula, crises polticas, jornadas revolucionrias,
revolues, desordens econmicas, idias, modas intelectuais, artsticas... (p.18).
Esto aqui as bases para a ideia da longa durao na compreenso dos fenmenos estruturais e
at mesmo nas conjunturas, desde que vistas no contexto dessa longa durao. assim que
Braudel nos conduz a uma histria mltipla, onde as civilizaes cumprem um papel
fundamental. Na sua explicao da formao do conceito de civilizao, Braudel chama a
ateno para a sua construo inicial como negao da barbrie, discute os limites da tentativa
de diferenciar radicalmente civilizao de cultura e nos adverte para o aparecimento em 1919 do
conceito de civilizaes no plural. Ele afirma:
Na verdade, o plural que prevalece na mentalidade de um homem do sculo XX;
e, mais que o singular, ele diretamente acessvel s nossas experincias pessoais.
Os museus nos desambientam no tempo, mergulhando-nos mais ou menos
completamente em civilizaes passadas. As desambientaes so ainda mais
ntidas no espao: passar o Reno ou a Mancha, chegar ao Mediterrneo vindo do
Norte so experincias inolvidveis e claras que sublinham a realidade do plural da
nossa palavra. Existem, inegavelmente, civilizaes (p. 28).
Braudel radicaliza ainda mais a sua proposio, quando afirma:
Ento, se nos pedirem para definir a civilizao, sem dvida nos mostraremos
mais hesitantes. De fato, o emprego do plural corresponde ao desaparecimento de
certo conceito, supresso progressiva da ideia, peculiar ao sculo XVIII, de uma
29
civilizao confundida com o progresso em si e que seria reservada a uns poucos
povos privilegiados ou mesmo a determinados grupos humanos, elite.
Felizmente, o sculo XX se desembaraou de certo nmero de juzos de valor e, na
verdade, no saberia definir em nome de que critrios? a melhor das
civilizaes (pp. 28-29).
Dessa maneira a histria das civilizaes tem, para Braudel, que se apoiar na diversidade das
cincias humanas. E ele ilumina as vrias dimenses dessa diversidade: para ele as civilizaes
so espaos, terras, relevos, climas, vegetaes, espcies animais, vantagens dadas ou
adquiridas (p.31). Ele insiste, inclusive contestando a Toynbee, de que a tese deste sobre os
reptos, desafio e resposta, no seria correta se pretende que quanto maior seja o desafio da
natureza mais forte ser a resposta do homem:
o homem civilizado do sculo XX aceitou o desafio insolente dos desertos, das
regies polares ou equatoriais. Pois bem, apesar dos interesses indiscutveis (ouro e
petrleo), at agora ele no conseguiu se multiplicar ali, criar verdadeiras
civilizaes. Portanto, desafio sim, resposta sim, civilizao no necessariamente
(p. 33).
As civilizaes so tambm cultura, para Braudel, mas elas so antes de tudo sociedades. Ele
afirma mesmo que a sociedade nunca pode ser separada da civilizao (e reciprocamente): as
duas noes concernem a uma mesma realidade (p.47). Ele no deixa evidentemente de
encarar o papel da economia, inclusive a incidncia das flutuaes econmicas, a importncia
da criao dos excedentes e de sua gesto. Por fim, ele coloca muito claramente o papel das
mentalidades coletivas o que no nos permite esquecer o papel das religies na construo das
civilizaes.
assim que sua Gramtica das Civilizaes vai apresentar um enfoque sobre as grandes
civilizaes que comea pelo Isl e o mundo muulmano. J naquele momento o papel histrico
do Isl indicava a sua resistncia assimilao pela civilizao ocidental. O continente negro, a
frica subsaariana sobretudo, aparece com menos fora mas no se pode esquecer que o
fenmeno da escravido trouxe os povos negros para a Amrica, criando uma interao afro-
americana que tem, como veremos, uma proposta de identidade civilizatria comum entre
frica e Amrica, pelo menos do Atlntico, incluindo claro o Caribe, onde essa populao se
sobreps inclusive, bastante fortemente, aos povos originrios. A ndia tomada como outra
vertente civilizacional, nunca nos esquecendo de que h uma parte importante da ndia
dominada pelos muulmanos. Se h realmente uma civilizao com uma profunda identidade e
especificidade talvez seja realmente a civilizao indiana.
30
interessante que Braudel vai vincular o extremo-oriente martimo com a Indochina, a
Indonsia, as Filipinas, a Coreia e o Japo. Como vimos anteriormente, Umesao Tadao
representa uma reivindicao de uma grande diferenciao do Japo com esses outros pases. A
ideia de que o Japo se identificou com a civilizao chinesa a partir do sculo VIII uma fonte
de discrdia muito importante na regio e debilita a tese japonesa de sua importncia quase que
paralela evoluo da civilizao ocidental.
S depois de examinar essas civilizaes no-europeias que Braudel parte para uma tentativa
de caracterizao da Europa como uma vertente civilizatria na qual cristianismo, humanismo e
pensamento cientfico so apresentados como parte dessa identidade histrica, dessa civilizao.
Os estudiosos contemporneos da China e do Isl reivindicam uma forte dependncia do
desenvolvimento cientfico da Europa em relao ao avano cientfico tecnolgico dessas
civilizaes.
Por fim, extremamente interessante ver a importncia que Braudel d s Amricas que termina
por ressaltar o fenmeno do universo ingls. Por fim, Braudel no pode escusar-se de pretender
situar a civilizao que ele chama da outra Europa, onde estavam a URSS e os pases da Europa
Oriental. A eliminao ou a autodestruio da URSS obrigaria talvez a refazer esse captulo
final de seu livro.
Mas, no se pode esquecer a identidade que existe entre esta regio e o Imprio Mongol. Para
ilustrar a importncia do Imprio Mongol, apesar da subestimao que certas histrias
universais fazem do mesmo, apresentamos um quadro das reas que estiveram sob domnio
mongol, que nos permite aceitar a designao de maior imprio em extenso contnua de terras
da histria humana, deixando inclusive uma marca gentica:
Um s homem, que viveu h cerca de mil anos em algum rinco da atual
Monglia, realizou um feito reprodutivo sem precedentes na histria da
humanidade: espalhou descendentes masculinos por uma rea que vai do Pacfico
ao Cspio, gente que responde por 8% dos homens que vivem nas fronteiras do
antigo Imprio Mongol, ou 12 milhes de pessoas, se as estimativas estiverem
corretas. Flagrado graas a seu cromossomo Y a marca gentica da
masculinidade esse pai de multides, dizem geneticistas britnicos, foi muito
possivelmente Genghis Khan (1162-1227)24.
24 Reinaldo Jos Lopes. Khan espalhou descendentes do Pacfico ao Cspio. Folha de So Paulo, 2 de
fevereiro de 2003. Disponvel em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u8334.shtml.
31
Fonte: Jack Weatherford, Gengis Khan e a formao do Mundo Moderno, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p.
11.
A antropologia a disciplina das cincias sociais que mais se envolveu com a questo
civilizatria. De certa forma, a antropologia pretendeu estabelecer princpios de comparao
entre as vrias manifestaes da sociedade humana. Estas comparaes terminavam por
estabelecer as respostas mais corretas aos desafios colocados para os seres humanos. Dessa
forma, se conseguia identificar as caractersticas das economias e sociedades europeia e depois
norte-americana como uma aplicao sistemtica da racionalidade como forma cultural, como
princpio ordenador dessas sociedades. Estava a desenhada uma forma histrica sofisticada de
dividir o mundo entre a civilizao e as formas tradicionais de organizao social.
Eric R. Wolf inicia uma crtica destas pretenses da antropologia. Ele nos mostra a relao
profunda entre estas construes cientficas e as formaes sociais que as geraram. Depois de
32
analisar vrias propostas da antropologia nos oferece a seguinte reflexo em seu livro Europa y
la gente sin historia25
:
Lo cierto es que ni europeos ni norteamericanos habran encontrado jams a estos
supuestos porteadores de un pasado prstino, si no se hubieran encontrado unos a
otros, de un modo sangriento, cuando Europa extendi el brazo para apoderarse de
los recursos y poblaciones de otros continentes. De aqu que se haya dicho, y con
razn, que la antropologa es hija del imperialismo. Sin imperialismo no habra
habido antroplogos, pero tampoco habra habido pescadores denes, balubas o
malayos que estudiar. El supuesto antropolgico tcito de que gente como esta es
gente sin historia, es tanto como borrar quinientos aos de confrontacin, matanza,
resurreccin y acomodamiento. Si la sociologa opera con su mitologa de
Gemeinschaft y Gesellschaft, la antropologa opera con demasiada frecuencia con
su mitologa de lo primitivo prstino. Ambas perpetan ficciones que niegan los
hechos de las relaciones y participaciones en marcha (p. 33).
Este vnculo entre os interesses do imperialismo e a tentativa de afirmar a ideia de que o
conceito de civilizao corresponde a uma formao social superior a todas as outras uma
contribuio de Eric Wolf que se completa com suas anlises sobre a violncia epistemolgica
que cometem as cincias sociais para apoiar e garantir esta pretenso terica. Esta crtica nos
leva prpria essncia da teoria do conhecimento que ele tenta articular com a contribuio
terica de Marx ao afirmar o papel negativo da diviso das cincias sociais num conjunto de
disciplinas isoladas.
Eric Wolf busca recuperar a fora cognitiva que emana de uma viso totalizadora do processo
social. Ele define mesmo as dificuldades e deformaes que produz a tentativa de somar
disciplinas construdas isoladamente, ao afirmar:
El obstculo mayor para uno desarrollo de uma nueva perspectiva radica en el
hecho mismo de la especializacin en s (p. 35).
Em seguida, reivindica a proposta de Marx que segundo ele
censur a los economistas polticos por tomar como universales lo que para l
eran las caractersticas de sistemas de produccin historicamente particulares (p.
35).
25 Eric R. Wolf, Europa y la gente sin historia, Mxico, D.F.: FCE, 1987. As citaes seguintes so
retiradas deste livro.
33
Eric Wolf se coloca claramente na escola de pensamento em que participam Andre Gunder
Frank e Immanuel Wallerstein:
Tanto Frank como Wallerstein centraron su atencin en el sistema del mundo
capitalista y la disposicin de sus partes. Aunque utilizaron los hallazgos de los
antroplogos y de los historiadores de la regin, el fin principal que persiguieron
fue entender cmo el centro subyug a la periferia, y no estudiar las reacciones de
las micropoblaciones que habitualmente investigan los antroplogos. Esta eleccin
suya del foco los lleva a no considerar la gama y variedad de tales poblaciones, de
sus modos de existencia antes de la expansin europea y del advenimiento del
capitalismo, y de la manera en que estos modos fueron penetrados, subordinados,
destruidos o absorbidos, primeramente por el creciente mercado y luego por el
capitalismo industrial. Sin un examen as, sin embargo, el concepto de la
periferia sigue siendo un trmino de ocultacin como el de sociedad
tradicional (pp. 38-39).
Como se v, Eric Wolf se alia problemtica da teoria da dependncia ao reivindicar fortemente
a existncia de formaes sociais anteriores ao capitalismo que sobreviveram um bom perodo
de sua expanso, e que se relacionaram com ele sob a forma de choques, contradies, guerras e
levantes. Esse tipo de enfoque o que nos pode explicar como a luta antiimperialista e
anticolonial alcana, aps a Segunda Guerra Mundial, esta dimenso planetria que coloca em
xeque definitivamente a ordenao econmica, poltica, social e cultural do mundo, imposta
pela violenta expanso do capitalismo. Ele nos adverte assim claramente sobre o perigo de
vincularmos civilizao com o processo de explorao, de expropriao, de destruio e terror
sobre sociedades inteiras. No ser possvel pensar o processo civilizatrio exatamente como a
negao destas formas histricas particulares que emergem das prprias contradies que este
processo carrega, desenvolve e impe?
Para ajudar a progresso de nossa proposta crtica devemos assinalar tambm a apresentao
que nos faz Eric Wolf do mundo do sculo XV antes da grande expanso capitalista.
especialmente interessante tomar em considerao o mapa das rotas comerciais que precedem
esta expanso. Fica claro neste quadro o quanto o modo de produo capitalista depende de um
conjunto de relaes econmicas e sociais que j expressavam um desenvolvimento milenar das
relaes mercantis, isto , de uma economia mundial muito identificada com a rota da seda e
toda uma histria de relaes econmicas que no podem ser reduzidas aos conceitos de
relaes tradicionais, atrasadas, brbaras, etc., etc.
34
Fonte: Eric Wolf, op. cit., p. 44.
Wolf foi fiel sua constatao da interao entre imperialismo e antropologia e seu livro sobre
Europa e a gente sem histria vai exatamente trabalhar com sucesso essa relao desse mundo
at 1400 e o impacto da expanso do modo capitalista de produo. Que ele mostra inclusive ter
produzido relaes prprias que no pertencem a um capitalismo puro, como o que ele chamou
de modo tributrio, onde se v o sistema colonial apoiado nessas relaes de expropriao dos
Estados centrais para com as zonas dependentes. Assim, tambm, se preocupa fortemente com
as relaes sociais recriadas pela expanso colonial e pela fase imperialista do capitalismo.
Creio ser importante tomar em considerao a proposta de Darcy Ribeiro na sua obra O
Processo Civilizatrio26
. Darcy se v muito compelido a repensar a histria humana como uma
evoluo e busca introduzir no conceito de civilizao aqueles elementos que permitem captar
de maneira abstrata as tendncias de evoluo muito ligadas s mudanas tecnolgicas. assim
que ele prope todo um esquema de evoluo civilizatria que vai desde as tribos de caadores
e coletores at aquelas formaes sociais muito evidentes na dcada de 70, como o
imperialismo industrial e o nacionalismo. O primeiro conduzindo a um socialismo evolutivo e o
segundo a um socialismo revolucionrio. Tudo isto conduzindo a sociedades futuras que ele no
26 Darcy Ribeiro, O Processo Civilizatrio: etapas da evoluo sociocultural, So Paulo: Companhia das
Letras / Publifolha, 2000. As citaes seguintes so retiradas deste livro.
35
se atreve a caracterizar demasiado mas que est influenciado pela viso de Marx e Engels de
uma tendncia ao comunismo. Para orientar essa proposta, ele a detalha muito audazmente e
recorre a um esquema conceitual que se expressaria bastante bem na seguinte colocao:
Concebemos a evoluo sociocultural como o movimento histrico de mudana
dos modos de ser e de viver dos grupos humanos, desencadeado pelo impacto de
sucessivas revolues tecnolgicas (Agrcola, Industrial etc.) sobre sociedades
concretas, tendentes a conduzi-las transio de uma etapa evolutiva a outra, ou de
uma a outra formao sociocultural (p. 15).
No item sobre revolues tecnolgicas e processo civilizatrio ele nos prope uma continuidade
no mecnica das seguintes revolues: a revoluo agrcola, a revoluo urbana e a revoluo
industrial, e assume como caracterstica fundamental do ps-guerra a revoluo termonuclear.
evidente que um esforo sinttico to amplo merea crticas. O perodo posterior Segunda
Guerra Mundial no creio que est ligado a uma revoluo tecnolgica particular, por maior que
seja seu impacto, mas sim revoluo cientfico-tcnica, isto , a subordinao do processo
produtivo e tecnolgico ao domnio da cincia. Como os leitores podem ver no captulo quatro.
O que importa no discurso de Darcy manter-se nessa perspectiva antropolgica que Eric Wolf
vai apresentar no seu livro de 1982, sendo que o esforo de Darcy publicado em 1978, so
esforos mais ou menos paralelos. Darcy insiste exatamente nessa complexidade do processo
evolutivo no qual se apresentam no s situaes de rupturas revolucionrias, como processos
de difuso cujas contradies so fundamentais, assim como processos de adaptao que
carregam fortes elementos de imposio cultural, ou mesmo momentos de retrocesso de grande
dimenso histrica, como ele v o feudalismo. Assim tambm, a sua tentativa de separar as
civilizaes universalizantes das civilizaes singulares, de forma a permitir pensar o processo
histrico de uma perspectiva evolutiva, mas no mecanicista. Creio que a seguinte citao,
apesar de muito ampla, nos ajuda a compreender o escopo fundamental do seu trabalho sobre o
processo civilizatrio:
36
A evoluo sociocultural, concebida como uma sucesso de processos
civilizatrios gerais, tem uma carter progressivo, que se evidencia no movimento
que conduziu o homem da condio tribal s macrossociedades nacionais
modernas. Os processos civilizatrios gerais que a compem so tambm
movimentos evolutivos atravs dos quais se configuram novas formaes
socioculturais. Os processos civilizatrios singulares so, ao contrrio, movimentos
histricos concretos de expanso, que vitalizam amplas reas, cristalizando-se em
diversas civilizaes, cada uma das quais vive sua existncia histrica, alcanando
o clmax de auto-expresso, para depois mergulhar em longos perodos de atraso.
As civilizaes sucedem-se, dessa forma, alternando-se com perodos de regresso
a idades obscuras, mas sempre reconstruindo-se nas mesmas bases, at que um
novo processo civilizatrio geral se desencadeie