TRADIÇÕES DISCURSIVAS: interseções linguístico-discursivas em contos angolanos contemporâneos
Michelle Gomes Alonso DOMINGUEZ 1
RESUMO A presença de traços originários na literatura contemporânea produzida em Angola é fato já reconhecido entre os estudiosos do tema. Sua natureza, entretanto, ainda carece de esclarecimentos. Nesse sentido, considerando tratar-se a tradição oral de um traço fundamental da construção da identidade literária deste país, o estudo parte do conceito linguístico de Tradições Discursivas, proposto por Kabatek (2006), para observar a maneira como as narrativas orais fundadoras se atualizam nas narrativas escritas em língua portuguesa, no século XX. Tendo em vista a maior proximidade estrutural, são analisados textos do gênero conto, buscando-se a comparação com o que se tem estabelecido como marcas de tradições discursivas da narrativa oral angolana. PALAVRAS-CHAVE: discurso, língua portuguesa, literatura angolana. ABSTRACT The presence of origin marks in the contemporary literary production in Angola is common knowledge amongst scholars. However, their nature still lacks claryfication. Therefore, having in mind the oral tradition of the country, the present study uses the linguistic concept of Discourse Traditions as proposed by Kabatek (2006) in order to observe how founding oral narratives have been inserted in written narrative in the Portuguese language in the 20th century. Considering structural proximity, the short story genre has been selected to compare the current standards of traditional discourse marks in the oral narrative produced in Angola. KEYWORDS: discourse, portuguese language, angolan literature.
1 Professora Adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora em Língua Portuguesa pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisadora do Círculo Interdisciplinar de Análise do Discurso (CIAD-Rio).
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INTRODUÇÃO
Até a colonização portuguesa, era a narrativa oral responsável pela transmissão de saberes, tradições
e cultura na sociedade angolana. A introdução da Língua Portuguesa, da escrita e das tradições literárias
lusófonas nessa sociedade teve como consequência a reestruturação do universo cultural compartilhado entre
os habitantes do espaço angolano; não se tratava mais da exclusividade de nativos, mas da convivência entre
sua cultura e o impacto da lusofonia. Dessa reestruturação, nasce uma literatura em que há a incontestável
presença de angolanidade, fundamentada na manutenção e exaltação das tradições culturais mais originais.
Nascida como projeto estético e político, a literatura angolana institui na linguagem seu principal
instrumento de luta contra os códigos de garantia e estabilidade impostos pelos colonizadores e, nesse
sentido, utiliza-a no intuito de transpor para a escrita o discurso oral de raiz africana. E é neste ponto que se
configura o interesse do presente estudo.
A retomada de estruturas linguísticas vinculadas à tradição oral do país tem sido tratada como
índices de oralidade capazes de referenciar o universo simbólico mais sedimentar da cultura nacional. Ora,
considerando o texto como um evento comunicativo em que convergem ações linguísticas, cognitivas e
sociais, as efetivas inter-relações da narrativa literária contemporânea e com a ancestralidade da literatura oral
devem ser analisadas não apenas como simples índices linguísticos, mas no reconhecimento de sua atuação
cognitiva e social. Desse modo, o conceito de Tradição Discursiva (doravante TD) inaugurado pela
linguística alemã parece dar conta de maneira mais completa e consciente das referidas interseções
discursivas.
Instaura-se assim o que se pode considerar a principal hipótese do presente artigo: a de que os
referidos índices de oralidade, mais do que simples transposição de meios de comunicação, se estabelecem
como TDs vinculadas à literatura oral e, assim, investem o projeto literário angolano de uma identidade capaz
de refletir a realidade cultural do país. Dessa forma, o estudo propõe-se a observar se e como as TDs das
narrativas orais fundadoras se manifestam nas narrativas escritas em língua portuguesa e, para tanto, tendo em
vista a maior proximidade estrutural, serão analisados textos do gênero conto.
Buscando a comparação com o que se tem estabelecido como marcas de TD da narrativa oral
angolana, optou-se por fazer um recorte histórico que levasse em conta o momento de maior acirramento das
lutas pela independência do país, já que nele as marcas linguísticas são mais aparentes. Assim, na
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representação das narrativas literárias contemporâneas, foram analisadas as obras Vôvô Bartolomeu, Estórias
de Musseque, Luuanda e Diazanga dia Muenhu2
Já no que se refere à literatura oral, a dificuldade de recolha se impôs de tal forma que a análise
deverá se restringir à retomada de teóricos como Lourenço Rosário (1989) e Laura Padilha (2007) e sua
comparação com as narrativas publicadas por Viale Moutinho (2002).
.
Pretende-se, a partir dessas relações, identificar as TDs instauradas nas narrativas da tradição oral
para analisar sua retomada no conto contemporâneo angolano não como simples recurso de oralidade, mas
como relação de atualização/tradição implicada no conceito de TD.
TRADIÇÃO DISCURSIVA: O CONCEITO E OUTRAS RELAÇÕES TEÓRICAS
O conceito de TD surge da premissa coseriana dos três níveis do falar: universal, histórico e
individual. Tais níveis se estabelecem na consideração de que o falar é uma atividade comum a todos os
homens (portanto, universal) que se particulariza em línguas específicas, cujos sistemas de significação se
constroem historicamente e se atualizam em atos de fala concretos, desenvolvidos em situações determinadas
e organizados em textos/discursos individuais. Trata-se, assim, de níveis indissociáveis implicados em toda
atividade linguística.
É nesse sentido que Koch (1997) reconhece três diferentes perspectivas de consideração da atividade
linguística: (i) a partir da perspectiva relativa à linguagem, como fenômeno universal humano; (ii) a partir da
perspectiva relativa à língua e/ou à variedade da língua usada; (iii) a partir da perspectiva relativa à forma,
organização e construção do texto. Apesar da clara relação entre essas perspectivas e os três níveis do falar,
Koch propõe a duplicação do nível histórico proposto por Coseriu, observando que, para além das fronteiras
das línguas históricas, existem formas e fórmulas tradicionalmente retomadas em textos e discursos, as quais
englobam aspectos relativos a gêneros, estilos, atos de fala, dentre outros. Segundo o autor, dos três níveis
desdobram-se, então, quatro, de acordo com o quadro a seguir:
2 As obras serão referidas no decorrer da análise pelas suas iniciais. Assim, respectivamente, V.B., E.M., L. e D.D.M.
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Nível Campo ou Área Tipo de Norma Tipo de Regra
Universal atividade de falar normas do falar regras do falar
Histórico línguas históricas normas da língua regras da língua
Histórico tradições discursivas normas discursivas regras discursivas
Individual discurso ou texto ___ ___
O que está implicado no referido desdobramento é o reconhecimento de historicidades distintas com
relação a uma língua particular e as TDs, já que “regras do discurso são transportadas por grupos culturais” e
“regras da língua são carregadas por comunidades linguísticas” (KOCH, 1997: 2). Sobre o que Kabatek
(2006:508) esclarece:
[...] quando encontro alguém na rua diante de casa pela manhã e minha intenção ou finalidade comunicativa é a de expressar uma saudação, essa finalidade não encontra a solução só no acervo lexical e gramatical do português, produzindo enunciados corretos como “emito uma saudação para você” ou semelhantes, senão que digo “bom dia” segundo uma tradição estabelecida além das regras da língua [...].
Quer este fragmento dizer que, para além de elementos linguísticos historicamente previstos no
sistema de uma língua, a atividade linguística concreta é mediada ainda por um outro tipo de determinação
que prevê usos tradicionalmente instituídos.
Ora, para que haja tradição são necessárias reprodução e aceitação. E é nesse sentido que Kabatek
identifica como primeiro traço definidor das TDs a repetição total ou parcial de “algo” capaz de relacionar
textos produzidos em tempos distintos. Atentando-se aqui ao fato de que, apesar de toda TD implicar uma
repetição, nem toda repetição deve ser entendida como uma TD; fosse assim, as línguas particulares, em si,
formariam TDs, o que não é o caso.
Para maiores esclarecimentos no que se refere ao tipo de repetição e ao “algo” repetido, seguem as
palavras do autor (KABATEK, 2006:512):
Entendemos por Tradição Discursiva (TD) a repetição de um texto ou de uma forma textual ou de uma maneira particular de escrever ou falar que adquire valor de signo próprio (portanto é significável). Pode-se formar em relação a qualquer finalidade de expressão ou qualquer elemento de conteúdo, cuja repetição estabelece uma relação de união entre atualização e tradição; qualquer relação que se pode estabelecer semioticamente entre dois elementos de
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tradição (atos de enunciação ou elementos referenciais) que evocam uma determinada forma textual ou determinados elementos linguísticos empregados.
Definir a TD como “a repetição de um texto ou de uma forma textual ou de uma maneira particular
de escrever ou falar” é restringir o sentido da repetição anteriormente referida à condição de discursividade.
De acordo com isso, elementos não linguísticos como, por exemplo, tradições culturais, situacionais, naturais
etc. ficam excluídos de sua configuração. Além de discursiva, essa repetição deve, ainda, “adquirir o valor de
signo”, ou seja, deve ser discursivamente significável, produzindo relações significativas entre presente e
passado, “atualização e tradição”. Mais que um simples enunciado, à TD é atribuído o sentido de “ato
linguístico que relaciona um texto com uma realidade, uma situação etc., mas também esse texto com outros
textos da mesma tradição” (KABATEK, 2006: 513).
Apesar de não constituírem TDs, são as situações que evocam determinados tipos de estruturas que,
repetidas, fundam tradições. “A saudação, por exemplo, é evocada por uma situação concreta que se repete:
o mencionado encontro evoca outros encontros nos quais se pronunciava a mesma sequência de palavras”
(KABATEK, 2006: 511). A relação aí implicada remete à natureza composicional das TDs, visto que, no duplo
atualização/tradição, os textos se encontram sempre de maneira relacionável, paradigmática e
sintagmaticamente. Isto significa que os textos podem pertencer, ao mesmo tempo, a diferentes TDs, ou ainda
atualizar tradições diferentes em sua sucessão.
O reconhecimento do caráter composicional das TDs retira do conceito a estaticidade inferida pela
tradição; isto é, não se trata de observar um fenômeno dado, estabelecido, reproduzido igualmente em todos
os contextos, mas sim dinâmico e relacionado com todo o universo textual e discursivo que o circunda. É esse
reconhecimento que possibilita sua transformação3. É nessa composicionalidade que se estabelecem as
diferentes interferências4
Foi tentando observar o tipo de interferência exercido na transformação das TDs e de certas
situações para a evocação de determinados enunciados que Koch e Oesterreicher (apud OESTERREICHER,
2006: 255) postularam o seguinte quadro de condições comunicativas:
capazes de transformar uma TD, ao longo do tempo, em uma realidade totalmente
diferente da inicial.
3 Para maiores esclarecimentos sobre o termo: KABATEK, 2006: 514. 4 KABATEK, 2006: 514-515.
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Determinando as condições comunicativas e os parâmetros das variedades em determinadas
tradições discursivas ou tipos de texto, o quadro supracitado pretende dar conta do espaço comunicativo
implicado em todo e qualquer tipo de discurso. Para isso, os pontos posicionados em [a/j] e [a’/j’] – os
primeiros referentes ao imediato comunicativo (oralidade concepcional) e os últimos à distância comunicativa
(escrituralidade concepcional) – não se estabelecem como extremos fixos, mas sim num contínuo,
possibilitador de diferentes relações paramétricas.
É através dessas relações que se estabelecerão os primeiros pontos relativos à análise e comparação
das TDs nos textos referentes à tradição oral e à narrativa literária angolana. Isto porque, a equivalência ou
discrepância entre os parâmetros pode auxiliar na reflexão sobre a retomada de tradições orais e sinalizar
possíveis justificativas.
No entanto, antes de iniciar a análise propriamente dita, é necessário que se delimite um pouco
melhor o conceito de TD em relação a outros, fronteiriços e facilmente confundidos com ele.
Apresentando como traços definidores a repetição e sua relação com grupos culturais, as TDs podem
ser facilmente associadas (ou mesmo confundidas) com conceitos recorrentes na própria Linguística Textual,
como é o caso dos gêneros, das relações de transtextualidade e mesmo das formações discursivas propostas
pela Análise do Discurso.
(a) caráter privado da comunicação (a’) caráter público da comunicação
(b) intimidade ou familiaridade dos interlocutores, maior conhecimento partilhado
(b’) ausência de intimidade ou de familiaridade entre os interlocutores, menor conhecimento partilhado
(c) forte participação emocional (c’) falta de participação emocional
(d) inserção do discurso no contexto situacional (d’) não inserção do discurso no contexto situacional
(e) referencialização direta (ego-hic-nunc) (e’) referencialização indireta
(f) proximidade local e temporal entre interlocutores (comunicação face-a-face)
(f’) distância local e temporal entre os interlocutores
(g) intensa cooperação (g’) fraca cooperação
(h) dialogicidade (h’) monologicidade
(i) espontaneidade (i’) reflexão
(j) pluralidade temática (j’) fixação do tema
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Segundo Kabatek (2006:509), num primeiro momento, as TDs foram entendidas como “modos
tradicionais de dizer as coisas, modos que podem ir desde uma fórmula simples até um gênero ou uma forma
literária complexa”, e, por isso, foram entendidas em alguns trabalhos como sinônimas de gênero. É
justamente o que parece fazer Koch (1997:5) quando, propondo a distinção entre tradição discursiva e
atividade do falar, atenta para a amplitude que o termo “gênero” tem adquirido, mas acaba por colocar as
TDs como equivalentes a um dos polos do “balaio” instituído sob a denominação gênero: “Seria aconselhável
não utilizar o termo gênero textual indiscriminadamente em relação às regras do falar e do discurso. Para o
nível das regras do discurso parece-me mais adequado o termo tradição discursiva, que é mais historicamente
acentuado”.
As regras do discurso às quais se refere Koch deveriam, então, substituir as células destinadas aos
gêneros textuais apresentadas no quadro a seguir, referente a três perspectivas diferentes de organização das
estruturas textuais:
CHARAUDEAU MARCUSCHI OLIVEIRA Modos de organização do discurso: descritivo narrativo argumentativo enunciativo
Tipos de texto: descritivo narrativo argumentativo expositivo injuntivo
Modos de organização do discurso: descritivo narrativo argumentativo expositivo enunciativo injuntivo
Tipos de texto: jornalístico literário publicitário etc
Domínios discursivos: jornalístico literário publicitário etc
Domínios discursivos: jornalístico literário publicitário etc
Gêneros textuais: (cada tipo tem seus gêneros)
Gêneros textuais: (cada domínio tem seus gêneros)
Gêneros textuais: (cada domínio tem seus gêneros)
Neste quadro, os gêneros são observados como uma estrutura desenvolvida a partir dos diferentes
modos de organização, cujas especificidades se vinculam a cada domínio sociocultural. A eles corresponde a
classificação em “hard news, soft news, notícia de jornal, canção, soneto, etc.”, referidas por Koch e, nesses
termos, as TDs aparecem, segundo este autor, como nomenclatura substituta aos gêneros textuais, concebidos
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a partir de características estruturais e discursivas socialmente estabelecidas, por guardar o sentido da
historicidade mantida na repetição desses textos.
É na divergência com tal concepção que Kabatek (2006) propõe uma dupla ampliação no conceito
de TD primariamente definido. A primeira delas diz respeito à extensão do termo a todos os tipos de tradição
de textos, não unicamente às complexas. Essa ampliação, no entanto, não oferece necessariamente
elementos contrastivos com o gênero, já que um teórico como Bakhtin (1985), por exemplo, apesar de
distinguir gêneros primários e secundários5
A segunda ampliação (KABATEK, 2006: 509), entretanto, apesar de exemplar, parece mais
elucidativa com relação às fronteiras entre as TDs e os gêneros:
, concebe as realizações cotidianas (como o “bom dia” de
Kabatek) também como gênero.
[...] como em todo parlamento, no parlamento nacional da França, diferentes políticos identificam-se mediante os seus discursos com diferentes idéias políticas, e também mostram a sua procedência diversa. Há, evidentemente, uma identificação com conteúdos políticos expressa nas proposições feitas respectivamente; mas observa-se também outra relação de tradição quando políticos que frequentam a prestigiosa fábrica de elites, que é a Escola Nacional de Administração (ENA), evocam o seu passado usando determinadas expressões ou até formas gramaticais como o perfeito do subjuntivo, forma arcaica praticamente morta no francês oral atual. O que fazem esses políticos é evocar um discurso que serve de identificador com um grupo [...]. É uma tradição de falar dentro de um mesmo gênero, o discurso parlamentar.
Se diferentes tradições podem ser evocadas dentro de um mesmo gênero, obviamente, não se trata
TDs e gêneros de conceitos passíveis de igualdade, apesar de relacionáveis. Tais palavras implicam, no
entanto, a identificação de outros conceitos teóricos, pois, na evocação de discursos, podem ser reconhecidas
relações de transtextualidade, e, na identificação entre grupos sociais, reside o conceito de formação
discursiva; ambos não comentados por Kabatek.
Comprovadas pela Palimpsestes genettiana, as relações de transtextualidade recobrem os modos de
enlaçamentos textuais, estabelecendo cinco relações possíveis:
1. Intertextualidade: presença efetiva de um texto em outro texto. Exemplos são a citação, o plágio, a alusão
etc.;
2. Paratextualidade: representada pelo título, subtítulo, prefácio, posfácio, notas marginais, epígrafes,
ilustrações e outros sinais que cercam o texto; 5 Os gêneros primários se constituem na comunicação discursiva imediata, no âmbito da ideologia do cotidiano (as ideologias não
formalizadas e sistematizadas), enquanto os gêneros secundários surgem nas condições da comunicação cultural mais “complexa” que, uma vez constituídas, “medeiam” as interações sociais: na comunicação artística, científica, religiosa, jornalística etc.
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3. Metatextualidade: a relação de comentário que une um texto a outro texto;
4. Arquitextualidade: estabelece uma relação do texto com o estatuto a que pertence – incluídos aqui os
tipos de discurso, os modos de enunciação, os gêneros literários etc. em que o texto se inclui e que tornam
cada texto único;
5. Hipertextualidade: toda relação que une um texto (hipertexto) a outro texto (hipotexto).
No que refere à associação entre a definição de TD e as relações transtextuais de Genette,
pronuncia-se Koch (1997: 5), na consideração exclusiva do conceito de Intertextualidade:
De um lado, o temo “intertextualidade” é utilizado para caracterizar a relação de duas obras literárias. [...] Por outro lado, utiliza-se o termo “intertextualidade” para caracterizar a relação de pertencimento de um discurso individual a uma tradição discursiva, i.e. a um gênero ou estilo. Segre (1984,11) sugere o termo “interdiscursividade”. Trata-se de uma característica inerente a todos os discursos literários ou não. A ligação de uma tradição discursiva (interdiscursividade) é derivada de regras do discurso, o que não acontece no caso do discurso individual (intertextualidade).
Apesar dos equívocos no que diz respeito à equivalência entre as TDs e os gêneros e ao próprio
conceito de intertextualidade, Koch parece sinalizar para uma distinção imprescindível na delimitação das
fronteiras entre as TDs e a transtextualidade6
Em perfeita harmonia com os pressupostos teóricos até aqui expostos, a Semiolinguística inaugurada
por Patrick Charaudeau concebe o texto como uma realidade sociocultural historicamente situada, que
compreende, além da definição de seus interlocutores, também o meio de comunicação utilizado, as
experiências partilhadas, os papéis sociais dos atores envolvidos, a ligação com outros textos etc. Neste nível,
podem-se observar as relações paramétricas propostas por Koch e Oesterreicher, sendo, ainda, nele que se
estabelece a transtextualidade de Genette.
: o nível do texto e o nível do discurso; níveis não
necessariamente distintos por Koch ou Kabatek, mas que parecem de extrema relevância para a maior clareza
na conceituação das TDs.
O discurso, por outro lado, é o jogo comunicativo estabelecido entre a sociedade e suas produções
linguageiras, entendendo-se por jogo comunicativo a forma de ação que envolve uma situação comunicativa,
na qual os parceiros se encontram, não só determinados por uma identidade, como também ligados por um
contrato comunicativo. É nesse enlace entre produção linguística e sociedade que se fundamentam as TDs; é
6 Apesar de as palavras de Koch se referirem apenas à Intertextualidade, suas considerações podem ser extensivas aos outros modos
de transtextualidade.
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nesse “contrato” que a tradição do “Bom dia!” (ou mesmo sua não realização) em Kabatek ganha o status
simbólico do signo.
Instituídos os diferentes níveis, a confusão conceitual outrora referida parece diluir-se. No entanto,
resta ainda a observação de um último conceito que se estabelece justamente na delimitação do nível
discursivo implicado nas TDs pela sua função de identificação entre grupos sociais: o de formação discursiva.
Sem pretender maiores esclarecimentos sobre o termo, a formação discursiva é definida como a
posição discursiva ocupada pelo sujeito no ato comunicativo. Quer isto dizer que há, em cada um dos
possíveis textos, uma formação discursiva subjacente, que orienta sua tessitura a partir dos mecanismos e
operações autorizados pela língua. É nesse sentido, por exemplo, que o discurso de certos parlamentares,
como o citado por Kabatek, aparece associado a uma formação discursiva que os vincula à formação na ENA.
Dito isso, tem-se que, em verdade, ao invés da equivalência, as TDs se colocam em relação de referência às
formações discursivas, já que é através delas que estas podem ser localizadas.
Na delimitação das fronteiras que cercam o conceito de TD, a comparação com as definições de
gênero, transtextualidade e formação discursiva pretendeu o reconhecimento de suas especificidades e,
consequentemente, de sua relevância para os estudos textuais. Não se tratando de um conceito que pretende
apenas renomear fenômenos de enlaçamentos textuais e discursivos, a consideração das TDs proporciona o
estabelecimento de relações distintas das referidas naqueles conceitos, vinculando os textos a sua história e
possibilitando a visualização dos valores socioculturais atribuídos aos diferentes atos comunicativos. E é nesse
sentido que são aplicadas aos textos analisados a seguir.
TRADIÇÕES DISCURSIVAS DA LITERATURA ORAL NO CONTO ANGOLANO
CONTEMPORÂNEO
Partindo do conceito de TD proposto por Kabatek e em acordo com as fronteiras conceituais
previamente definidas, as relações mantidas entre o conto angolano contemporâneo e as narrativas da
literatura oral devem ser entendidas e podem ser explicadas como atualização de TDs.
Escritos em língua portuguesa e em acordo com o cânone literário europeu, os contos
contemporâneos angolanos recorrem a TDs vinculadas a sua ancestralidade cultural para impor a marca de
sua identidade. Como bandeira de luta no projeto de independência, a produção literária do país deveria
manifestar valores culturais de angolanidade e essa manifestação se deu através da atualização de TDs da
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literatura oral tradicional. Buscando a demonstração de tais enlaçamentos, serão elencadas algumas
características relativas às narrativas da literatura oral, para que, posteriormente, sejam identificadas na
configuração do conto contemporâneo.
As narrativas de tradição oral7
É assim que, constituindo-se como sociedade ágrafa até o século XVIII, Angola tinha na literatura
oral um dos seus mais potentes meios de transmissão cultural, através do qual, – com seus misosos, makas,
ji-sabus, dentre outros
são o reservatório dos valores culturais de uma comunidade com
raízes e personalidade regionais, muitas vezes perdidas na modernidade. É através delas que se encontram
veiculadas as regras e interdições que determinam o bom funcionamento da comunidade e previnem as
transgressões. Essas regras e interdições formam um conjunto variável segundo as culturas, o que remete ao
fato de essas narrativas estarem, em geral, ligadas à própria vida das comunidades em que circulam.
8
Na festa do prazer coletivo da narração oral, principalmente entre os grupos iletrados africanos, é pela voz do contador, do griot, que se põe a circular a carga simbólica da cultura autóctone, permitindo-se a sua manutenção e contribuindo-se para que essa mesma cultura possa resistir [...]. A milenar arte da oralidade difunde vozes ancestrais, procura manter a lei do grupo, fazendo-se, por isso, um exercício de sabedoria. (PADILHA, 2007: 35).
– conservava sua filosofia de experiências acumuladas e dialéticas do cotidiano.
Desse modo, com o risco de pôr em perigo a coesão e a sobrevivência histórica do grupo, a própria
natureza e função dessas narrativas impõem estruturas mais fixas tanto no que diz respeito a sua constituição
textual quanto aos papéis de sua realização enunciativa.
Enquanto “exercício de sabedoria”, o ato de contar depende de um contador investido da autoridade
para tal, a qual é adquirida com o tempo e atribuída pela própria comunidade. Nas narrativas de tradição
oral, “o importante é saber contar; dominar a palavra e saber o que fazer com ela na construção de um
universo tão simples nos seus elementos estruturais, mas tão complexo na significação e simbologia que
representa”9
Os ouvintes, por sua vez, devem estar aptos a compreender que os conflitos apresentados na intriga
podem, ao mesmo tempo, ter lugar no universo de seu grupo e constituir um espaço simbólico que lhes
permita o distanciamento necessário à reflexão. O pacto enunciativo que se estabelece entre os atores é então
(ROSÁRIO, 1989: 81).
7 Pelo caráter generalizante da designação “tradição oral”, que ultrapassa em muito o âmbito da criação literária, as considerações a
seguir ficarão restritas às narrativas dessa tradição. 8 Considera-se, conforme Rosário (1989), que as diferenças guardadas entre esses tipos narrativos dizem mais respeito a sua função
social do que à estrutura propriamente dita. Por isso, serão aqui considerados sob o termo generalizante “narrativas”. 9 Grifo nosso.
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descrito por Rosário (1989: 48) da seguinte maneira: “O contador e os ouvintes funcionam de uma forma
complexa em termos de comunicação, embora aquele seja o dinamizador do processo comunicativo, estes
tomam parte de uma forma activa coparticipando na construção das mensagens”.
Não se trata, portanto, de simples comunicação oral entre emissor e ouvintes, mas de uma espécie
de prática ritualística que, como tal, desenvolve-se em uma mise-en-scène que pode contar, por exemplo,
com fórmulas codificadas no princípio ou no fim da narração, bem como na introdução de canções cuja letra
apresenta-se, muitas vezes, em versos cristalizados que nada têm a ver com a própria narrativa.
De acordo com tais padrões comunicativos, as narrativas de tradição oral se desenvolvem através da
interação face a face (o que a vincula ao polo da oralidade concepcional) ao mesmo tempo em que mantêm,
em função de seu caráter ritualístico, pontos de contato com a distância comunicativa (ou escrituralidade
concepcional) implicada, por exemplo, no distanciamento entre os eventos narrados e seu apoio situacional,
no alto grau de monologicidade na distribuição dos papéis enunciativos de narrador e ouvintes. Estabelecem-
se, assim, as seguintes relações com os parâmetros de Koch e Oesterreicher (2006):
É na observação de tais parâmetros que se estabelecem as TDs das narrativas de tradição oral. Ora,
por se tratarem de narrativas, obviamente respeitam, como qualquer outra, a estrutura básica da narratividade
organizada de acordo com o gênero conto e no domínio discursivo literário10
10 Segundo Rosário (1989), apesar do paradoxo lexical, as narrativas orais apresentam determinações estéticas capazes de incluí-las
no domínio literário. Por isso, inclusive, o autor prefere a denominação “literatura oral” para essas narrativas.
. No entanto, seus aspectos
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comunicativos, sua função pedagógica e prática ritualística acabam por determinar certos usos
tradicionalmente reproduzidos. Vejam-se, por exemplo, as fórmulas de abertura e fechamento das narrativas
recolhidas por Héli Chatélain e agrupadas por Moutinho, em Contos Populares de Angola:
SUDIKA-MBAMBI
“Vamos falar de Ngana Kimanaueze kia Tumb’ a Nadala, estimado por todos e pai de Nzuá di Kimanaueze.”
“Daí se diz que em tempestades quando troveja é o mais velho que foi para o Leste e o eco do trovão, que se atribui ao mais novo, para o Oeste.”
O SOGRO E O GENRO “Um belo dia, um sogro e um genro saíram de casa para um passeio”
“E foram beber à saúde de ambos, que voltaram a ser amigos.”
O KIANDA E A RAPARIGA “Havia uma mulher que tinha duas filhas”
“A casa transformou-se numa casa de Ma-Kishi.”
O LEOPARDO, O ANTÍLOPE E O MACACO “Vamos falar do senhor Leopardo e do senhor Antílope”
“Depois fizeram o funeral do Leopardo.”
O FILHO DE KIMANAUEZA E A FILHA DO SOL E DA LUA “Muitas vezes se tem falado a respeito de Kimanaueze, pai de um menino”
“Viveram felizes e desistiram de ir ao céu. Tudo ficaram a dever à inteligência da rã Mainu.”
OS FILHOS DA VIÚVA “Era uma vez uma mulher que assistiu à morte do marido quando os seus filhos ainda eram pequenos”
“O conto acabou.”
Introduzidas por estruturas análogas à do “Era uma vez”, as narrativas instauram um universo
ficcional11
O entendimento da narrativa depende, entretanto, da atenção dos ouvintes. Para tanto, a marca da
linearidade narrativa, bem como da brevidade de espaço-tempo discursivos parecem contribuir para a
caracterização dessas narrativas na sua “extraordinária uniformidade estrutural e monotonia orgânica”
que deve encerrar algum tipo de ensinamento, explicação ou moral desvelado no encerramento
do conto por um “e foi assim que...”, “é por isso que...”, “desde então...”, ou ainda por afirmativas que
adquirem valor de verdade absoluta: “ – Meu amigo, o leão é forte como a amizade.” (p. 31).
11 O sentido de ficcional não deve ser entendido aqui como sinônimo de irrealidade, tendo em vista o valor de verdade atribuído ao
conteúdo das narrativas.
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(ROSÁRIO, 1989: 79). É nesse sentido, ainda, que se justificam os altos índices de atuação, em oposição à
quase ausência de suporte descritivo, e a forte estrutura dialogal. Como exemplo, observe-se o conto “O
Passado e o Futuro”:
Dois homens caminhavam por uma estrada quando encontraram um vendedor de vinho de palma. Os vendedores pediram-lhe vinho e o homem prometeu satisfazê-los, mas com uma condição: – Terão que dizer os vossos nomes. Um deles falou: – Chamo-me De Onde Venho. E o outro: – Para Onde Vou. O homem aplaudiu o primeiro nome e reprovou o segundo, negando Para Onde Vou o vinho de palma. Começou uma discussão e dali saíram à procura do juiz. Este logo ditou a sentença: – O vendedor de vinho de palma perdeu, porque De Onde Venho já nada se pode obter e, pelo contrário, o que se pode encontrar está Para Onde Vou.
O conto se desenvolve em função de três personagens apenas “nomeados”, que se encontram em
um tempo não especificado e em um espaço delimitado apenas como “estrada”. Assim, a narrativa focaliza a
ação dos personagens, em detrimento de um suporte descritivo, o que, traduzido em termos linguísticos,
implica a parca utilização de modificadores e privilégio de estruturas nucleares (nomes e verbos).
Além desses procedimentos discursivos, a perpetuação dos saberes difundidos pela literatura oral é
garantida, ainda, por diferentes estratégias, dentre as quais se apresentam como mais marcantes o uso de
repetições (lexicais ou temáticas), bem como a configuração sintática em orações simples e períodos
preferencialmente coordenados. A esse respeito, leia-se o seguinte fragmento, retirado do conto “Sudika-
Mbambi” (p. 11):
Sudika-Mbambi partiu e alcançou a estrada. Logo que ouviu um ruído, perguntou: – Quem é? Responderam-lhe: – Sou eu, Kipalende, o que construiu uma casa na rocha. Sudika-Mbambi disse: -Anda comigo. Puseram-se a caminho e novamente escutaram o mesmo ruído e a mesma pergunta. Como resposta obtiveram: - Sou eu, Kipalende, que recolho folhas de milho em Kalunga. - Anda conosco. E foram pela estrada a fora. Pela quarta vez, alguém disse: - Sou eu, Kipalende, que posso estender a barba até Kalunga.
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Nesse conto, além da repetição da ação dos personagens (pergunta e resposta), há a repetição da
mesma estrutura na resposta: “Sou eu, Kipalende, aquele que (verbo)”. Recurso bastante recorrente nas
narrativas orais, essa repetição, dada em diversos níveis, atualiza na memória do ouvinte a referência anterior,
mantendo a progressividade da narração. Progressividade que, por sua vez, é estabelecida em padrão
sintático de adição coordenativa como o que se pode ver em “Puseram-se a caminho e novamente escutaram
o mesmo ruído e a mesma pergunta. Como resposta obtiveram”.
Como se pode observar, mais do que pelo respeito à condição de narratividade, as características
estruturais depreendidas das narrativas da tradição oral são impostas pela função sociocultural que exercem.
Historicamente instituídas, essas características ultrapassam as determinações do gênero para se constituírem
na condição de tradições discursivas.
Contrariamente à ficção que circulava pela voz original da tradição oral, a literatura angolana
manteve-se em relação de dependência com o discurso estético do colonizador até a metade do século XX.
Desse modo, o “vínculo placentário”, nos termos de Alfredo Bosi (1987: 35), com a literatura portuguesa fazia
com que a produção literária angolana se desenvolvesse na tentativa de enquadramento com o cânone
literário europeu.
Com o acirramento das lutas pela independência do país e a mobilização da classe artística, inicia-
se, a partir de então, um processo de busca pela face angolana alijada pela cultura literária hegemônica,
passando-se do enquadramento nos moldes canônicos ao grito de alteridade instituído no retorno às tradições
originais.
Esse desejo de reangolanização acaba por encaminhar o ficcionista, naturalmente, à retomada das
manifestações da tradição oral. O que, obviamente, não significa a ruptura com o “vínculo placentário”
anteriormente referido, mas dá novos tons à dicção dessa literatura. Assim, nas palavras de Padilha (2007: 18),
“o ato de leitura caminhou até chegar a um outro tempo em que a voz, outrando-se, fundiu-se com a letra.
Criou-se, então, um lugar dos mais fecundos nas literaturas de língua portuguesa que aqui vou chamando de
‘entre voz e letra’”.
É nesse sentido que o privilégio atribuído ao gênero conto na literatura angolana poderia, por si só,
assinalar a recorrência à tradição mais ancestral do contar vinculada aos griots africanos. Incluído no projeto
político de libertação do país, o conto alicerça-se na estrutura das narrativas de tradição oral e, com isso,
cumpre muito mais a função social de transmissão cultural dessa tradição do que a preocupação estética do
cânone literário. Nesse sentido, o que se estrutura como mera articulação linguística definidora do gênero
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conto na tradição europeia passa a receber um status simbólico na literatura angolana, atuando, portanto,
como atualização da tradição discursiva.
Quer-se dizer com isso que, no pós-50, o gosto da ficção angolana pela narrativa curta literária
ultrapassa em muito os limites de sua função estrutural primária. Nesse momento, explícita a retomada dos
modelos de origem, o ato de narrar implica o ritual do contar e a estrutura contística europeia recebe nova
carga significativa.
Então, na desestabilização da função estetizante cumprida por essas narrativas, fundamentam-se os
deslizamentos dos parâmetros comunicativos que, outrora equivalentes aos do cânone europeu, passam a se
aproximar dos instituídos nas narrativas tradicionais:
Sob a égide do gênero conto, as efetivas diferenças existentes entre os textos pertencentes à tradição
oral, ao cânone europeu ou ao conto angolano contemporâneo se justificam pelas diferenças paramétricas
acima observadas. Desse modo, distanciando-se dos polos b’/c’/g’, ao mesmo tempo em que se mantém
em equivalência com o cânone europeu, a narrativa angolana possibilita a recuperação de TDs vinculadas à
tradição oral.
Ainda não identificado como TD, mas importante na configuração dos contos analisados, o uso de
alguns elementos, como fórmulas de início e encerramento da narrativa ou mesmo a denominação “Estória”
constante de alguns títulos, estabelece uma relação arquitextual entre as narrativas contemporâneas e
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ancestrais, sinalizando, assim, as “novas”/“antigas” funções do gênero contístico. Essa retomada de estruturas
arquetípicas familiares ao público angolano promovia a cumplicidade necessária para os objetivos políticos
de independência.
Aqui, a importante referência à mudança de público-alvo (do colonizador ao homem comum
angolano) implica o reconhecimento de um problema de ordem prática: como pretender a decodificação de
um texto escrito em português por um povo que, em sua grande maioria, era analfabeto? A solução aparece
implícita no seguinte fragmento de Laura Padilha (2007: 175):
Na retomada dos modelos nacionais, a tradição oral vai funcionar como mecanismo transformador dos novos padrões estéticos. O desvio da norma e a nota dissonante – tão caros à modernidade – são conseguidos com o traço dessa nova fala ficcional, griotizada e griotizante, que é tanto letra quanto voz e gesto12
.
No processo de “griotização” do texto, estão implicados procedimentos que possibilitem a
transmissão da mensagem via oral; isto é, era preciso que o texto escrito fosse passível de ser contado em voz
alta e, para tanto, deveria ainda ser passível de memorização. Disso decorre o uso de certos procedimentos
linguísticos que remontam à tradição oral, como, por exemplo, a repetição, o uso de orações simples e a
prevalência de coordenadas, a introdução de canções ou ditados populares, a utilização de pouco suporte
descritivo, dentre outros.
Mesmo justificada por necessidades sociais, a instituição de tais procedimentos linguísticos deve ser
entendida como TD pela própria função que adquirem. Considerando a fundamentação no cânone literário
europeu, o conto, enquanto gênero pertencente a esse domínio discursivo, tem seus fundamentos pautados na
estética. Nesse sentido, a instituição de um “novo” papel sociocultural cujo alicerce é depreendido dos
antigos moldes tradicionais configura o conto contemporâneo angolano nas bases de uma TD vinculada às
narrativas orais.
Considerando, portanto, os referidos procedimentos como TDs de narrativas orais atualizadas no
conto contemporâneo angolano, este estudo priorizou a observação das estratégias de simplificação de
estruturas sintáticas e narrativas, tendo em vista sua generalização no corpus analisado.
No que se refere aos procedimentos narrativos, tal simplificação se dá, em equivalência com a
tradição oral, na focalização dos fatos narrados e em detrimento da descrição do entorno narrativo. A
consequência dessa simplificação se traduz na pouca expressividade de vocábulos e expressões adjetivais,
responsáveis pelo suporte descritivo do universo narrado (atores, tempo e espaço). De acordo com isso, o
12 Grifo nosso.
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gráfico a seguir, relativo ao levantamento de vocábulos definidores de tempo e espaço narrativos, demonstra a
utilização preferencial de formas substantivas:
O uso restrito de estruturas adjetivais se estende também à configuração dos personagens que,
nominalmente identificados, são definidos por suas próprias ações.
Sô Zé da quitanda tinha visto passar nga Zefa rebocando miúdo Beto e avisando para não adiantar falar mentira, senão ia-lhe pôr mesmo jindungo na língua. [...]. Miúdo Xico é que descobriu, andava na brincadeira com Beto, seu mais novo, fazendo essas partidas vavô Petelu tinha-lhes ensinado, de imitar as falas dos animais e baralhar-lhes e quando vieram no quintal de mamã Bina pararam admirados. A senhora não tinha criação, como é que ouvia-se a voz dela, pi,pi,pi, chamar galinha, o barulho do milho a cair no chão varrido? (L. p. 99 – 100).
Garantida através desses procedimentos, a simplificação das narrativas se desenvolve através do foco
na atuação de personagens pouco caracterizados e envolvidos e de um espaço-tempo objetivamente
construído para a funcionalidade narrativa. Linguisticamente, o “corte” do entorno e o foco nos fatos narrados
retomam os padrões nominais e verbais recorrentes nas narrativas orais, podendo ser, portanto, reconhecidos
como TDs.
Por sua vez, os vocábulos que recobrem o universo narrativo são organizados através de padrões
sintáticos em que prevalecem orações simples ou períodos compostos por coordenação, conforme se viu ser
recorrente na tradição oral.
Todas as miúdas do bairro foram lá. De manhã. Jeanne Kololota lhes deu só no cumprimento de olá. Friamente. Na vontade de saudar a companheira de infância, Belita, Filó, Terezinha. Todas. Alegramente. Até amiga dela antiga Teteca, coitadinha, doença de paralisia, veio. Nem que se lembrou dos tempos que brincavam ringue, cabra-cega com elas.
0
20
40
60
80
100
V.B L. D.D.M E.M
Identificação
Caracterização
Processualização
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O fragmento citado ilustra a contabilização relativa aos diferentes padrões sintáticos apresentados
nas obras, os quais aparecem estruturados em orações absolutas ou em SVO, podendo haver coordenação de
todo tipo entre sintagmas e orações:
O baixo percentual de ocorrências de subordinação é estranho – nos moldes canônicos – ao texto
escrito e literário. Inversamente, mas na mesma direção, os altos índices de orações simples e períodos
compostos por coordenação assemelham esses contos aos padrões estruturais anteriormente identificados nas
narrativas da tradição oral.
Construídas, assim, sobre uma estrutura sintática simples, na qual se relacionam vocábulos
preferencialmente nominais e verbais, as narrativas apresentadas nos contos analisados atualizam TDs
veiculadas pela tradição oral, cuja repetição as funda como TDs angolanas do gênero conto.
Por fim, observa-se que, através dessas retomadas de padrões narrativos estabelecidos
tradicionalmente na literatura oral, o conto angolano contemporâneo especifica seus traços de identidade e,
na atualização de TDs originalmente vinculadas à tradição oral, corrompe a dicção europeia, instaurando-se
no entre-lugar das TDs canônicas e nacionais. É nesse sentido que vão as palavras de Padilha (2007: 236),
com as quais se encerra a análise:
A fala literária angolana, com a consciência que cada vez mais passa a ter de si própria, acende o fogo de sua pira e continua a brilhar como nas longas noites em que, ao redor da fogueira, mais velhos contavam estórias que contavam estórias que CONTAVAM ESTÓRIAS. Pela letra que tudo eterniza, tais estórias, em vez de circularem apenas pela voz, muitas vezes se perdendo nos desvãos da noite, ganham a claridade do texto e um corpo – o do livro – que se lhes oferece como espaço de iniciação. Voz e letra finalmente entretecidas.
Oração simles
Oração coordenada
Oração subordinada
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CONCLUSÃO
Reconhecendo os laços entre a tradição oral e a criação do projeto literário angolano, o presente
artigo pretendeu analisar o tipo de vínculo efetivamente mantido entre esses dois universos culturais,
considerando que, para além da transposição de canais comunicativos (oral/escrito), esses enlaçamentos se
instituem em níveis discursivos mais amplos. Para tanto, serviu de aporte teórico o conceito de Tradição
Discursiva proposto por Kabatek, bem como as relações paramétricas de Koch e Oesterreicher.
De acordo com a fundamentação teórica proposta, foram identificadas como TDs das narrativas
orais as estruturas formulaicas iniciais e finais, a repetição (lexical e temática), a focalização dos fatos narrados
em detrimento do suporte descritivo e a consequente estruturação de vocábulos preferencialmente nominais e
verbais em orações simples ou compostas por coordenação.
Já no que se refere ao conto angolano contemporâneo, observou-se que seu “vínculo placentário”
com o cânone europeu é desconfigurado pela retomada de algumas das TDs presentes na tradição oral,
dentre as quais se destacaram o privilégio dado aos nomes e verbos na seleção vocabular e a simplificação
das estruturas narrativas e sintáticas.
Através da quantificação e exemplificação das ocorrências, demonstrou-se que o movimento de
afastamento do conto angolano contemporâneo com seu vínculo placentário europeu, bem como as efetivas
inter-relações entre ele e a ancestralidade da literatura oral fundamenta-se no reconhecimento de funções
sociais distintas do gênero conto. Retomado seu sentido ritualístico e pedagógico, o conto angolano
contemporâneo passa a se configurar em novos parâmetros comunicativos, o que possibilita a instituição das
TDs de narrativas orais enquanto TDs do conto angolano literário.
Conforme previsto na hipótese inicial, os vínculos com a oralidade, mais do que índice vernáculo,
instauram laços discursivos mais profundos que, calcados na relação de Atualização/Tradição prevista pelo
conceito de TD, permitem o reconhecimento dos entretecimentos textuais e discursivos relativos ao percurso
histórico do gênero conto em Angola.
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Data de submissão: ago./2012 Data de aceitação: dez./2012