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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
INSTITUTO A VEZ DO MESTRE
PÓS GRADUAÇÃO “LATO- SENSU”
PSICOLOGIA, CRIMINOLOGIA E PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE
Aluna: Itiana Rochele Pedroso da Silva
Rio de Janeiro
2010
UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
INSTITUTO A VEZ DO MESTRE
PÓS GRADUAÇÃO “LATO- SENSU”
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PSICOLOGIA, CRIMINOLOGIA E PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES
OBJETIVOS:
Este trabalho atende a produção e desenvolvimento de
monografia, para o curso de pós-graduação lato-sensu em
Psicologia Jurídica pela autora.
AGRADECIMENTOS
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Aos meus pais que me ensinaram desde muito cedo a
valorizar o conhecimento. A todos os mestres professores que
passaram pela minha vida acadêmica e me despertaram a
capacidade crítica e a sensibilidade necessários para o bom
uso deste conhecimento.
RESUMO
A Criminologia desde sua disseminação na sociedade como ciência que
dedica-se do indivíduo criminoso tem falado de uma sempre crescente onda de
criminalidade e violência. A mídia ocupa-se da cotidiana violência e do pânico
que vivem as classes elitizadas da violência oriunda das classes abastadas,
porém quem vive na alma e na carne cotidianamente tal violência são os
grupos pauperizados de nossa sociedade.
Desde seu nascimento a criminologia, apoiada na cientificidade positivista do
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contexto onde emergiu tem despejado perigosos discursos sobre o criminoso
buscando nele uma essência criminosa, perigosos pois retiram este individuo
de seu território, retiram-lhe o contexto e a humanidade, a ele são associados
essencilismos, naturalizações, intimidações e respostas violentas e
estigmatizastes. A criminologia crítica surge trazendo novo olhar sobre a
questão da criminalidade, ocupa-se não mais do individuo criminoso e sua
essência criminosa mas passa a lançar luz sobre os processos de
criminalização que surgem dentro da própria sociedade e dita o que é crime e
conseqüentemente quem será criminoso. Ainda assim, a criminologia
positivista construída sob um solo cientifico continua sendo escolhida para
respaldar praticas de controle social.
A psicologia insere-se neste campo a partir de um momento especifico e desde
o inicio desta relação entre criminologia e psicologia tem sido um reforçador de
tais praticas e produção de saberes essencialistas e intimistas que
desterritorializam os indivíduos no momento em que lhes dá um rotulo de
criminoso e não-humano, a estes são endereçadas praticas cada vez mais
violentas de controle e repressão que partem de todos os lados, inclusive da
própria psocologia com seu saber/poder.
A desconstrução da psicologia hegemônica que busca essencialismos e
adequações é um caminho proposto para que este saber deixe de ser um
conformador e passe a ser transformador. À psicologia resta apossar-se do
poder que necessariamente possui, assumi-lo e a partir disto assumir que sua
ação é política pois produz efeitos na sociedade onde se apresenta e atua,
portanto um posicionamento e reflexão critica devem nortear o trabalho do
psicólogo principalmente quando o saber psicológico entra em relação com
saberes tão estigmatizastes e perigosos como a criminologia.
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METODOLOGIA
A metodologia utilizada para realização deste trabalho é a pesquisa
bibliográfica. Deste modo, foram consultados livros, artigos científicos,
periódicos que passaram por uma analise critica da autora a fim de selecionar
àqueles que alcançavam o objetivo de realizar uma pesquisa com viés
cientifico e critico, histórico, contextualizado da criminologia e da relação entre
essa e a psicologia.
A proposta deste trabalho é elucidar o leitor para questões que envolvem toda
a sociedade e há tempos vem sendo tratadas como questões individuais, e
descontextualizadas.
A bibliografia selecionada para a pesquisa passou pela analise criteriosa de
seu posicionamento crítico e voltado para as praticas sociais, deste modo, todo
tema tratado neste trabalho tem forte ligação com vivencias atuais e que
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atravessam a experiência de todos.
O caminho percorrido para falar da criminologia passa inicialmente por um
breve histórico do nascimento da ciência criminológica e sua cristalização no
tecido social. Num segundo momento fala-se da criminologia critica que
considera além do individuo criminoso, seu contexto e o modo como a
sociedade seleciona e trata a questão da criminalidade. Ao final, discute-se a
contribuição da psicologia dentro do campo da criminologia e possibilidades de
atuação com praticas que abram possibilidades e não encerrem os indivíduos
como há muito vem se fazendo.
A conclusão de que toda ação humana é política, seja para transformar seja
para conservar finaliza o trabalho deixando a todos a responsabilidade por sua
postura diante do modo como nossa sociedade lida com a questão da
criminalidade desde que esta foi eleita como um problema a ser combatido.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 9
CAPÍTULO I
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CRIMINOLOGIA NO BRASIL
CAPÍTULO II
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A CONSTRUÇÃO DISCRUSIVA DA RELAÇÃO CRIME X POBREZA:
DISCURSOS (IN) COMPETENTES.
CAPÍTULO III 36
PSICOLOGIA, POLÍTICA E CRIMINOLOGIA: A PRODUÇÃO DE VETDADES
E PRÁTICAS COMPETENTES.
CONCLUSÃO 46
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INTRODUÇÃO
A criminologia é um saber que surge no século XIX dentro de um contexto de
emergência do paradigma positivista cientifico e da eclosão de várias ciências
transversais à criminologia que, desde seu nascimento pode ser considerada
interdisciplinar.
A questão interdisciplinar, característica da ciência criminológica, permite
pensar de que forma a criminologia se fragmentou e se fundamentou
cientificamente invadida por outros saberes científicos, entre eles, a psicologia.
A literatura nos aponta que a ciência criminológica surge em um contexto
específico para atender a demandas específicas, pode-se considerar que
desde sua emergência, este saber tem servido como um mecanismo de
controle social e repressão dos indivíduos e das classes sociais menos
privilegiadas.
Ao longo deste trabalho far-se-á um passeio pela história das ciências
criminológicas e sua polifonia discursiva desde a criminologia positivista que
busca uma essência e natureza do criminoso até a criminologia crítica que
modifica o foco do criminoso para os processos de criminalização ofertando um
saber implicado com as praticas sociais que nos constituem e ao mesmo tempo
elegem os conceitos de crime e criminoso. O cunho positivista tem sido eleito
ao longo dos tempos para respaldar praticas do sistema penal e judiciário como
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um todo fazendo de modo discreto e pretensamente “cientifico” a associação
perversa entre crime e pobreza.
Tal estudo se justifica pois sabidamente a criminologia foi atravessada por
saberes variados na busca de seu reconhecimento cientifico e deste modo se
afirmou na sociedade como um saber que nunca anda só, vem sempre
acompanhado de políticas criminais que visam solucionar aquilo que a própria
criminologia coloca como um corpo estranho à sociedade, o individuo
criminoso. Ao longo deste passeio pelo saber criminológico, o criminoso terá
seu status de humano retirado e, sendo não-humano, a ele serão endereçadas
práticas extremamente violentas, estigmatizadoras, repressivas e genocidas,
além disso, o fenômeno crime também será desapropriado de seu caráter
humano e antropológico.
A psicologia se insere na criminologia contribuindo para a manutenção desta
visão intimista/familiariza/individualizada/descontextualizada/despolitizada do
criminoso pois é deste modo que hegemonicamente a psicologia tem afirmado
seu saber/fazer/poder na sociedade desde seu nascimento, este encontro
desde sua emergência tem se localizado muito mais no campo do desastre do
que no campo das possibilidades.
Este trabalho propõe uma reflexão crítica, passando por rompimentos, quebras,
rachaduras de formas já prontas de se pensar e fazer psicologia e de sua
relação com outros saberes como a criminologia. Para tanto, utilizando-se de
importantes ferramentas como a arqueologia e a genealogia de Foulcault,
chega-se ao reconhecimento de que toda pratica psicológica é também política
seja para transformar, seja para conservar, reconhecendo e valorizando a
dimensão política do saber psicológico. Não nega-se aqui o poder, ao
contrário, toma-se posse deste poder e a partir disto, uma nova problemática
aparece como algo sempre fundamental para o profissional de psicologia: que
uso será feito de tal poder? Que efeitos sociais pretende-se proliferar quando
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despejamos nossos discursos no meio social? Que postura política será
tomada toda vez que se fala em nome da psicologia?
Nega-se aqui a neutralidade cientifica em que se esconde a psicologia
enquanto metralha seus discursos e produz suas praticas, psicologia e política
tornam-se um poderoso instrumento na luta por justiça, igualdade e dignidade.
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Capítulo I
Criminologia no Brasil
A análise da constituição histórica da criminologia no Brasil nos impõe o exame
crítico de diferentes discursos que ao longo da história serviram de “arma“
para instrumentalizar este saber/poder bem como a história das
transformações dos dispositivos de poder que este saber foi capaz de
instrumentar. Abordar a complexidade de sua história, seus discursos e seus
efeitos políticos exige um recorte que atenda aos fins deste trabalho. Assim,
este estudo não se aprofunda no contexto histórico do país em cada momento
da criminologia e se concentra nos principais paradigmas criminológicos para
produzir uma discussão crítica do papel político da psicologia ontem e hoje
inserida no “coro” criminológico.
A criminologia se constitui como um saber que dialoga com diversos outros
saberes, assim sendo, sua análise exige um passeio pelos diferentes
discursos que dela se apoderaram e que numa multiplicidade de
atravessamentos, encontros e desencontros foram constituindo-a e
desenhando seus efeitos no tecido social. A proposta deste capítulo é realizar a
reconstituição do saber da criminologia.
Rauter (2003), ao realizar a análise da historia da criminologia no Brasil,
esclarece o que entende por reconstituição de um saber:
“Não se trata de buscar nos precursores os primeiros
sinais de uma verdade que ao longo do tempo pode se
tornar mais evidente. Não se trata de marcar o ponto a
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partir do qual passou-se ao domínio científico, fazendo
aparecer o passado como um passado de erros.
Interessará aqui conceber a história da criminologia como
a história das marchas e contramarchas de um novo
dispositivo de poder que se armou no Brasil, no interior do
qual o saber deve ser entendido, literalmente, enquanto
“arma”. (p.17)
Assim, seguindo o mesmo caminho, a análise aqui proposta se preocupará
com os discursos jurídicos e as mudanças provocadas nos dispositivos legais
em conseqüência dos discurso criminológico que se difundia. Primeiramente, é
necessário apontar que não há um único saber criminológico. Carvalho (2008),
caracteriza a criminologia:
“Não houve (sequer há) padronização na criminologia, ou
seja, inexiste ‘a’ criminologia. Há criminologias entendidas
como pluralidade de discursos sobre o crime, o criminoso,
a vítima, a criminalidade, os processos de criminalização
e as violências institucionais produzidas pelo sistema
penal.” (p.12)
Assim, a criminologia foi colonizada em diferentes momentos por diferentes
discursos desde seu nascimento. Colonizada pois foi tomada, possuída,
vestida por diferentes falas que ao longo da sua história fizeram dela e com ela
discursos potentes que difundiram diferentes praticas sociais. Tal fato faz
surgir uma primeira dificuldade: existe uma história oficial da criminologia? Há
uma sucessão de idéias/práticas presente nos diferentes saberes
criminológicos?
A criminologia enquanto ciência foi atravessada por um paradigma etiológico -
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composto por discursos positivistas do indivíduo que cometeu um delito - e por
discursos críticos que iluminam outras perspectivas que não exclusivamente o
individuo criminoso, mas os processos de criminalização.
Carvalho (2008), ao falar da fragmentação da criminologia aponta para o fato
de que a limitação do ensino da criminologia ao seu percurso histórico acaba
limitando-a a sua história e a das teorias criminológicas, assim, perde espaço a
possibilidade da criminologia ser utilizada como recurso interpretativo dos
sintomas individuais, sociais e institucionais.
Há que se ter um cuidado ao falar da ciência criminológica: o de não confundir
a história da criminologia com a criminologia mesma, assim, alerta Carvalho
(2008): “necessário, pois, avançar no sentido de pensar com a criminologia e
não restar limitado à sua descrição histórica e/ou ao desenvolvimento de suas
principais teorias” (p. 15)
1.1 - Breve Histórico da Criminologia Positiva: Uma abordagem científica
do crime.
Já enunciada a não pretensão de esgotar a criminologia em sua historicidade,
cabe aqui um pequeno passeio pela polifonia discursiva da criminologia desde
sua origem.
Foucault (1970), ao analisar a emergência dos discursos fala das condições de
possibilidades que permitem o surgimento dos diferentes discursos. A
emergência do paradigma positivista da ciência no século XIX exigia a
necessidade de comprovação, um nexo causal-explicativo para o surgimento
dos fenômenos estudados, demonstração empírica reproduzível garantindo-se
desse modo o status cientifico aos saberes. Estas circunstâncias, oferecem
condições de possibilidades para o surgimento da Criminologia com ideal de
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oferecer um conhecimento racional e fundamentado, alinhado às exigências
positivistas vigentes. Elbert (2003)
A noção de poder disciplinar elaborada por Foucault (1977) leva-nos a
compreender o saber enquanto parte de estratégias de poder, assim sendo,
as ciências humanas (psicologia,sociologia, criminologia,psiquiatria etc)
aparecem em determinado contexto histórico ofertando ao Estado novos
saberes e novas técnicas para gerir as massas humanas. Controlar para
produzir corpos dóceis do ponto de vista político e úteis do ponto de vista
produtivo. A criminologia desde seu nascimento é um saber excessivamente
ofertado ao Estado e seus interesse que não existe somente numa dimensão
de reflexão acadêmica, cada teoria criminológica se traduz, em uma política
criminal diferente, diferentes formas de entender e analisar o crime e o
criminoso que resultam em diferentes modos de lidar com o fenômeno crime. A
positividade do poder como nos mostra Foucault em Vigiar e Punir
apresenta-se na medida em que se percebe que o modo como uma sociedade
pensa e trata certa questão é sintoma de um exercício de poder , sempre
vinculado a um saber, que a direciona.(Rauter, 2003; Foulcault, 2008)
De meados a fins do século XIX, dá-se a emergência de numerosas disciplinas
novas que rapidamente ocuparam o território cientifico em expansão. Neste
contexto,detecta-se a origem da complexa e sempre atual natureza
interdisciplinar da criminologia. (Elbert, 2003)
Neste processo, o corpo aparece como um objeto de bastante interesse na
explicação das condutas desviantes. Cesare Lombroso [1835-1909], italiano,
médico, faz surgir a antropologia criminal positivista. Lombroso acreditava na
existência de um sujeito potencialmente criminoso, assim, através de medições
e estudo sobre o tamanho do crânio e do cérebro de indivíduos presos,
dedicou-se a estabelecer um nexo causal entre características físicas
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mensuráveis e a virtualidade criminosa, procurou apontar uma natureza
criminosa que teria como destino delinqüir sempre que determinadas condições
ambientais se apresentassem Elbert (2003)
Para Lombroso, os criminosos são uma espécie à parte do gênero humano.
Pela observação dos criminosos na prisão, submetidos à disciplinarização,
individualizados, num mesmo espaço, extrai-se um saber que vai transformar o
direito penal. Nesta escola o crime é um ente natural, o criminoso é atávico
(reaparece nele, um caráter presente em seus ascendentes remotos primitivos)
e a pena regeneradora, pautada numa perspectiva de cura para uma
anormalidade, uma punição baseada num certo tipo de anormalidade de que
padeceria o criminoso. Lombroso acredita que a anormalidade do criminoso
expressa-se em características físicas, que vão dos “zigomas enormes” à cor
negra dos cabelos, passando pela analgesia (insensibilidade à dor). Uma série
de procedimentos de medição, inclusive com aparelhos (algômetro elétrico),
vão descrever fisicamente o delinqüente. (Carvalho,2008;Rauter,2003)
Assim, as ciências criminais nascem no final do século XIX como um campo de
estudo colonizado por diferentes disciplinas (direito, psiquiatria,sociologia,
antropologia e psicologia), guiadas pelo paradigma positivista da criminologia
de Lombroso que, embora cientificamente contestável, “armou” e definiu
durante o século XX o modo de atuação das agencias penais e seu modelo
cientifico.
Enrico Ferri [1856-1929] também preocupava-se com uma explicação causal
para o comportamento delituoso, contemporâneo de Lombroso, acreditava que
a conduta humana respondia a fatores de diferentes tipos que em certo
momento levariam ao delito ,para Ferri, três fatores levavam ao delito: fatores
antropométricos, sociais e físicos. Este autor traz a descoberta de que o
criminoso é um anormal moral. Para o autor, o criminoso é incapaz de realizar
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um adequado controle moral, o que o diferencia das pessoas honestas. Com
Ferri, amplia-se o discurso da criminologia, agora, pode-se ver o crime não
apenas nas características físicas dos indivíduos como em Lombroso, mas
também em seus comportamentos, seus hábitos de vida. Neste discurso o
crime é visto como um mal moral hereditário que não necessariamente se
exterioriza para a fisionomia dos indivíduos influenciado pelo meio social e
transmitido. (Bicalho 2005; Rauter, 2003)
“As teses de Ferri sobre a conduta delitiva afirmavam que
o homem é uma máquina, que não fornece em seus atos
nada mais do que recebe do meio físico e moral em que
vive [...] O nível de criminalidade está determinado, cada
ano, pelas diferentes condições do meio físico e social,
combinados com as tendências congênitas e os impulsos
ocasionais do individuo” Elbert (2003, p.59)
A reação seria deste modo uma conseqüência natural e justificada: “assim
como o individuo está predeterminado a cometer delitos, diziam os positivistas,
a sociedade esta predisposta a defender-se.” Elbert (2003, p.59)
Visivelmente, o modelo causal-explicativo de Ferri nos leva a sua vontade de
verdade compatível ao modelo cientifico tal qual Lombroso.
Raffaele Garófalo [1851-1934] é terceiro grande representante da escola
positiva, ao lado de Ferri e Lombroso. Em 1885 publicou o livro Criminologia
Foi o primeiro a usar o termo criminologia para as ciências penais e realizou
estudos sobre o delito, o delinqüente e a pena. Para ele, a pena teria uma
função social de proteção e para tanto poderia ocorrer através de intimidação,
correção ou eliminação. (Bicalho, 2005)
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Garófalo antecipou-se à sociologia critica reconhecendo que a noção de crime
dependia dos modelos fixados pela lei, contribuiu com temas como
periculosidade (perversidade constante e atuante no delinqüente), a noção
criminológica do delito e os conceitos de prevenção especial. Para o autor, o
delito resultava de anomalias psíquicas ou morais hereditárias do indivíduo que
comete o crime. Vê-se neste momento seu determinismo característico da
escola positiva da qual faz parte. Garófalo afastava-se claramente das idéias
da antropologia de Lombroso e do sociologismo de Ferri, porém
compartilhava da idéia de defesa social como fundamento para uma política
criminal. (Elbert, 2003)
Rauter (2003) ao estudar o discurso da criminologia no Brasil e seu processo
de implantação mostra a indissociabilidade dos discursos criminológicos e da
política criminal. Para a autora, a constituição histórica da criminologia está
relacionada à instauração de diferentes formas de julgamento, à reforma
sempre em andamento das instituições penais e à implantação de novas
estratégias de controle social que dão ao judiciário instrumentos para realizar a
“defesa da sociedade”, conceito este da própria criminologia.
1.2 A criminologia Crítica de Foulcault
Utilizando-se dos instrumentos de Foulcault pode-se olhar para o mesmo
objeto de estudo de diferentes ângulos. A arqueologia e a genealogia são
ferramentas do autor, instrumentos metodológicos que permitem uma
ampliação do olhar sobre o crime e o criminoso, deste modo, o autor nos
permite analisar os discursos positivistas produzidos sobre o crime e o
criminoso sob a ótica das condições de possibilidades que permitiram a
emergência de uma produção de verdade positivista essencialista e
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individualizante sobre o individuo que comete um crime.
Segundo Bacca, et al (2004) “A arqueologia trata das relações de saber,
produção de saber, “condições de possibilidade” para a produção de saber, e a
genealogia trata das relações de poder. (pg. 21)
Para Bicalho (2005), as relações de poder em Foucault
“não tem forma nem matéria e, portanto, não podem se
localizar em um determinado lugar: nem no Estado, nem
nos estabelecimentos, nem em ninguém. Relações de
poder constituem-se como relações de força e podem ser,
no máximo, representadas por vetores, cujas intensidades
podem ser capturadas e exercidas momentaneamente ,
as quais interagem e se afetam, sempre em movimento.”
(pg.22)
Assim, Foulcault nos oferece uma caixa de ferramentas que nos permite
quebrar as instituições, emperrar a máquina em funcionamento, cavar para dar
voz ao que foi silenciado.
Em sua obra Vigiar e Punir (2008), utilizando-se da arqueologia e da
genealogia, suas ferramentas de análise, Foulcault foca sua investigação nos
diferentes modos de produção de verdade sobre o crime e o criminoso, as
condições que possibilitaram a emergência desses saberes/poderes e nos
diferentes dispositivos de controle e punição destes desde a Idade Média até a
Idade Moderna. Assim, Foulcault lança luz sobre outros ângulos de uma
questão social problema. O autor enfatiza que a forma como uma sociedade
lida com uma determinada questão é resultado de um exercício de poder que a
direciona.
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Foulcault nos mostra que o modo como o delito foi e é historicamente
assimilado é manejado por um exercício de poder em vigor que
necessariamente está relacionado a uma produção de saber sobre o que é
crime e quem é o criminoso para então “armar” as instituições penais e mostrar
que tratamento será dado a estes. Não se trata mais aqui de lançar o olhar
sobre o individuo que cometeu o crime na tentativa de buscar sua essência,
trata-se de visualizar antes de mais nada o funcionamento do saber/poder que
produz e prolifera formas/verdades de compreender o autor do delito e dita
fórmulas para seqüestrá-lo, controlá-lo,tratá-lo e conformá-lo.
Assim, a psicologia, bem como as outras ciências Humanas, surgem a partir da
emergência das sociedades disciplinares no final do século XVIII. A sociedade
disciplinar implanta o que Foulcault chamou de “poder panóptico” que se
caracteriza principalmente pela vigilância continua dos individuos.
“O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o
esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma anatomia
política, que é também igualmente uma mecânica de
poder, está nascendo; ela define como se pode ter
domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para
que façam o que se quer, mas para que se operem como
se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia
que se determina. A disciplina fabrica assim corpos
submissos e exercitados, corpos dóceis. A disciplina
aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de
utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos
políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o
poder do corpo”. Foucault (2008; p.119).
Este contexto possibilita o nascimento das ciências humanas, saberes que
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colocam-se a serviço deste funcionamento azeitando esta máquina disciplinar e
ofertando-lhe discursos que vão fundar e justificar sua atuação no tecido social.
Uma importante característica que surge com a emergência das sociedades
disciplinares para Foulcault (2003 APUD Bicalho, 2005 ) é que “a preocupação
já não se continha a infrações e às normas vigentes, mas à possibilidade de vir
a infringi-las. O controle assim, já não seria mais sobre o ato, mas sobre o que
se poderia vir a fazer”. (p.59)
Rauter (2003) em seu estudo sobre subjetividade e criminologia no Brasil
destaca: “Sob o impacto das ciências humanas, o próprio direito penal irá
transformar o direito de seqüestrar (ou de punir) numa função técnica, baseado
nas noções de anormalidade e de cura”. (p.43)
A literatura com freqüência aponta que os discursos criminológicos, a media
que foram se tornando cada vez mais científicos, repetidas vezes falam da
sempre crescente “onda de criminalidade”. Trata-se de uma estratégia
discursiva que legitima e faz surgir a demanda pelo constante reaparelhamento
do sistema judiciário bem como da repressão penal.
Ao ser colonizada pelas ciências humanas, a criminologia tornou-se um
importante instrumento de controle social armada de um discurso científico
sobre o crime e o criminoso.
Capítulo II
A construção discursiva da relação crime X pobreza: discursos
(in)competentes.
Foucault (2002) em sua obra “Os Anormais” ao analisar relatórios de exames
psiquiátricos penais no século XVIII chega a uma interessante conclusão sobre
os discursos que este saber oferta ao aparelho judiciário:
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“discursos que podem matar, discursos de verdade e
discursos que fazem rir. E os discursos que fazem
rir e que têm o poder institucional de matar são, no fim das
contas, numa sociedade como a nossa, discursos que
merecem um pouco de atenção”. (p. 08)
O autor continua sua análise sobre tais discursos e considera que esses
possuem algumas propriedades, uma delas se refere a um poder de vida e de
morte que determina a decisão de liberdade ou detenção de um ser humano;
outra diz respeito a legitimidade destes discursos que circulam no interior das
instituições judiciárias e ofertam um saber que tem um valor de verdade e peso
cientifico, pois, advém de especialistas qualificados para tal função. Foucault
(2002).
Importante pensar com Foulcault que a disseminação destes discursos fazem
movimentar todo um aparato de poder, discursos médicos, psiquiátricos,
psicológicos, todos amparados pelo cientificismo servindo ao Estado e ao
aparelho judiciário naquilo que eles sabem fazer de melhor: a repressão.
Para Rauter (2003, p.19), o aparelho judiciário é a “instância que possibilita e
assegura as condições de exploração que um grupo de indivíduos exerce
sobre outro na sociedade”. Porém como bem nos alerta a autora, o
funcionamento deste aparelho não se limita somente a sua forma repressiva de
atuação, da violência policial explícita ou do encarceramento seletivo e
excludente, através deste aparelho funciona toda uma engrenagem que
necessita de saberes para respaldar e validar sua atuação, neste espaço entra
a psicologia bem como as outras ciências humanas.
A emergência da disciplina marca um processo de civilização das leis e das
penas. Trata-se da emergência de uma nova tecnologia de poder que estende
a ação do judiciário para toda a sociedade. A literatura e a história nos mostram
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que houve um processo de humanização das leis que na realidade significou
uma forma mais sutil de atuação do poder em oposição às formas violentas de
punição que agiam diretamente sobre o corpo (suplício, açoite,fogueiras etc).
Assim, o poder disciplinar representa este aparente abrandamento das penas
que , na realidade, significou uma nova tecnologia que sutilmente, através de
métodos aparentemente mais brandos buscam e conseguem produzir a
docilidade e utilidade dos corpos. Rauter (2003)
O que significa este suposto “abrandamento” das leis numa sociedade desigual
como a nossa e marcada pela violenta repressão cotidiana sobre classes
abastadas? Será que a sociedade disciplinar se aplicou a toda a sociedade
brasileira? A humanização que acompanhou o processo de civilização da
sociedade se destinou a quais humanos? Estes são alguns questionamentos
que surgem e merecem espaço para que o caminho a ser percorrido revele a
outra face das nossas políticas criminais e a contribuição da psicologia para
este poder em ação.
Sabe-se que as políticas criminais que se colocam em atuação não vêm só,
estas vêm preenchidas de discursos, armadas com cientificidade e legitimidade
para então metralhar o “inimigo”, espalhando seus efeitos por toda a sociedade
e muitas vezes experimentando o resultado de sua ação dentro desta mesma
sociedade.
Que efeitos produziu Ferri com sua criminologia positivista quando afirmou que
o criminoso é um anormal moral numa sociedade como a nossa à época cheia
de costumes brasileiros relacionados a uma imoralidade como o samba, o
carnaval e a miscigenação? O que significa proliferar cientificamente discursos
criminológicos como os de Lombroso que julgam o criminoso segundo
características físicas dando-lhe uma essência natural? Discursos que como
nos mostrou Foulcault, tem o poder de matar e fazer rir, merecem portanto,
nossa atenção pois selecionam, categorizam, estigmatizam, esquadrinham
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grupos específicos da nossa sociedade e dão ao aparelho judiciário a
possibilidade de neutralizar o “inimigo” agora já localizado.
Lobo (1997) citado por Bicalho (2005) fala de algumas teorias que vão fornecer
um aporte cientifico à emergência das classes perigosas e ao conceito de
periculosidade, tais teorias afirmam que:
“Pela falta de consciência do dever e do sentimento de
moralidade dos atos, a miséria produz um estado de
degradação física e moral, que constitui o que
chama de ‘classes perigosas’, porque instala o
perigo permanente no seio da sociedade”
(p.59)
Rauter (2003) revela que com a emergência da sociedade burguesa surgem
também a medicina social, a escolarização em massa, a polícia, os métodos de
racionalização da produção e os sistemas carcerários. A história nos mostra
que a classe burguesa não só adquiriu o domínio econômico advindo do
acumulo de capital através do comércio como usou e explorou a força de
trabalho, e ainda reivindicou para si os domínios político, jurídico e ideológico.
Bicalho (2005) conclui que é neste contexto, com a intenção de promover a
assepsia aos que não eram aceitos pelos ideais da burguesia em elevação que
surge e se fortalece cada vez mais o conceito de classes perigosas. Segundo o
autor: “perigosas porque pobres, por desafiarem as políticas de controle social
no meio urbano e por serem propagadoras, em potencial, de doenças.
Portanto, não humanos”. (p.57)
Retornemos ao questionamento que surgiu há alguns parágrafos atrás: A
humanização que acompanhou o processo de civilização da sociedade
destinou-se a quais humanos? Certamente não a todos, pois o status de
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“humano” se restringia a uma parcela da população mas não a toda ela.
Importante ressaltar a emergência de outros movimentos que surgem e
atravessam a malha social promovendo seus efeitos e oferecendo condições
de possibilidades para emergência de outros movimentos e para
produção/fortalecimento de discursos. Os movimentos higienista e eugenista
surgem no Brasil no final do século XIX e suas teorias espalham-se,
encontram-se com outros discursos e passam a justificar encaminhamentos de
diferentes instituições. Para Yamamoto e Boiarini (2004), estes movimentos
não possuem caráter popular, trata-se de um movimento gerado por um grupo
pequeno, bastante específico da nossa sociedade na época, da qual faziam
parte, em sua grande maioria, médicos. Renato Kehl é o grande representante
destes movimentos no nosso país por volta de 1917. Estes movimentos
difundiram-se e deram corpo a idéias que foram dominantes na sociedade
brasileira no final do século XIX e inicio do século XX.
O objetivo era higienizar a sociedade e eugenizar a raça. Estratégias de poder
que não poderiam surgir desacompanhadas de um suporte discursivo forte e
convincente o bastante, analisemos então que discursos foram estes.
Renato Kehl (1935) citado por Yamamoto e Boiarini (2004), caracteriza e
diferencia os movimentos higienista e eugenista:
“a higiene, por exemplo, procura melhorar as condições do
meio e as individuais, para tornar os homens em melhor
estado físico, a eugenia, intermediária entre a medicina
social e a medicina pratica, favorecendo os fatotes sociais
de tendência seletiva, se esforça pelo constante e
progressivo multiplicar de indivíduos bem dotados ou
eugenizados.” (p.05)
A (des)construção do indivíduo criminoso e das classes potencialmente
25
perigosas alvo de ações repressivas que visam à proteção da sociedade passa
necessariamente pela (des) construção destes diferentes discursos e
movimentos que escondidos atrás de uma pretensa neutralidade científica e
carregados de poder desenharam a atuação do Estado, as estratégias de
neutralização do perigo social que se apresentava e deste modo foram
produzindo o encontro entre a pobreza e o crime.
O processo de industrialização pelo qual passou nosso país no final do século
XIX conseqüentemente trouxe mudanças para a sociedade: urbanização sem
planejamento, problemas de ordem médica decorrentes deste processo como
epidemias, condições precárias de saneamento e a conseqüente proliferação
de uma série de doenças graves como varíola, febre amarela,malaria,
tuberculose, lepra. Neste contexto a medicina ganha força através de suas
descobertas como a microbiologia e a bacteriologia, a possibilidade de controle
das doenças dá a medicina status, legitimidade e livre circulação pela
sociedade. Neste contexto ela interpenetra o espaço social, a família, a escola,
o quartel e etc. A higienização tanto individual quanto coletiva passa a ser a
ordem, o corpo o alvo, a infância e a entrada na escola o momento ideal para
iniciar este processo. Yamamoto e Boiarini (2004)
Os autores acima destacam duas questões importantes: Ao se atribuir à escola
o poder e a responsabilidade de higienizar, não se problematizou o fato de que
grande parcela da população em idade escolar não estava inserida na
escolarização, muitas delas trabalhavam para contribuir no orçamento familiar;
Também é necessário pensar que em algumas situações (talvez na grande
maioria delas) a simples informação higienista não seria suficiente para
mudança de hábitos tamanha a precariedade e impotência em que viviam
muitos grupos familiares à época.
A disseminação da idéia de que havia uma crescente degradação dos povos
em geral foi uma das condições de possibilidade para a emergência do
26
movimento eugenista. Este movimento tem como característica/meta o controle
sob a constituição biológica do individuo através do controle de sua reprodução
para a melhoria e a regeneração racial. Yamamoto e Boiarini (2004).
Uma pausa para reflexão neste momento se faz necessária: que ligações
podemos fazer entre estes movimentos e a criminologia? Que impactos sociais
produziram e ainda produzem as idéias higienistas e eugenistas? Batista
(2003) faz uma importante afirmação em sua obra O Medo na Cidade do Rio
de Janeiro e nos ajuda a responder tal questionamento: “A polifonia dos
discursos morais, dos dicursos higiênicos, dos discursos que localizam o mal
convergem para um único e grande objetivo: a eliminação do mal, do sujo, do
estranho, do portador do caos. (p.117)
Foulcault nos ensina que existem relações de saber/poder que atuam no
campo social e descarregam neste seus efeitos. Efeitos que segregam, que
(des) legitimam, que matam, que (des)apropriam, que eliminam. Efeitos cruéis
que se utilizam de um discurso da violência aplicada para o bem. Segundo
Bicalho (2005)
“Teorias surgem para corroborar a tese de que há
disposições inatas para a criminalidade,
defendendo a idéia de criminosos natos, os perigosos em
potencial, os quais deveriam ser
esterelizados,como afirmava o movimento
eugênico no Brasil. Tal natureza propicia, assim,
a produção de ‘suspeitos’ a partir de características
biológicas. O negro por exemplo, foi considerado pela policia
brasileira, por muito tempo, ‘como cor padrão’ [...]” (pg
59)
27
Discursos que se encontram, se fortalecem, se complementam, produzem
subjetividades e incitam estratégias de controle social. Os movimentos
higienista e eugenista, embora divergentes em suas condições de
possibilidades de emergência, bases teóricas e contextos históricos tem em
comum o objetivo ultimo de tornar o Brasil uma grande nação limpa e eugênica.
Uma necessidade que imperava.
Criminologia, higienismo, eugenia fazem parte de uma série de múltiplas linhas
que se atravessam e perpassam o tecido social disseminando a idéia de que
os excluídos da sociedade agem diferente das classes elitizadas porque vivem
de modo diferente. Os efeitos disso no campo social é a atribuição de
problemas que são sociais a características individuais e biológicas, o
reconhecimento das diferenças como inferioridades que precisam ser
percebidas e normatizadas, e a perversa eleição de uns (superiores) sobre
outros (inferiores).
“todos aqueles que habitando os chamados ‘territórios dos
pobres’, passam a ser classificados como diferentes,
carentes, incapazes e potencialmente perigosos, os quais
representam ameaças para as classes dominantes,
levando, portanto, a medidas de controle ou
eliminação”. Bicalho (2005,
p.56)
Discursos que não envelhecem, produções discursivas que, como citado
anteriormente, servem de “arma” para justificar e nortear convenientemente a
ação do Estado. Convenientemente porque não há neutralidade cientifica,
estas teorias não se sustentam diante de uma analise e avaliação mais critica,
entretanto, são de algum modo hegemônicas e dominantes para nortear a
individualização e culpabilização das populações pobres que são
responsabilizadas por sua miséria, criminalidade e marginalidade inatas
atribuídas a uma suposta natureza enfatizando seu potencial perigoso. O papel
28
do Estado e das políticas públicas ficam em segundo plano, não são implicados
no contexto social que se mostra.
Importante lembrar que a criminologia deve ser utilizada como uma ferramenta
que nos permite a leitura da realidade. A produção discursiva está sempre em
construção, portanto, o rompimento com a criminologia positivista etiológica
gera condições de possibilidade para a ampliação da discussão criminológica.
Carvalho (2008) ao analisar criticamente as ciências jurídicas conclui que
essas produzem um saber que dialoga consigo mesmo e auto referente, o
fato da criminologia ser atravessada por varias disciplinas e possuir portanto
um caráter interdisciplinar não significa o rompimento com o dogmatismo
vigente que acaba por disciplinar o que desde o inicio se propôs interdisciplinar.
Para o autor, a abertura da criminologia para uma discussão ampla e critica
exige a superação de seu “fechamento narcísico” pois necessita reconhecer
fracassos sociais explícitos que a própria criminologia não quer ver, também o
abandono da vontade de sistema que se caracteriza pela vontade de verdade,
característica própria da ciência. Deste modo, o autor propõe:
“Em decorrência da predisposição histórica da criminologia
à abertura e ao dialogo com as demais ciências,
fundamental, para superar a tendência à
dogmatização, desobrigar-se do rótulo da cientificidade -
sobretudo porque ‘a’ ciência não existe - visualizando a
investigação criminológica como construção de campos de
saber(es) voltado(s) ao debate sobre as formas e os
mecanismos de criminalização e de controle social [...]
assim, se há necessidade de desenvolvimento de
saber critico que integre dogmática penal (direito penal e
processual penal), criminologia e política criminal, este
movimento deve, antes de tudo, pautar-se pela negativa a
29
vontade de sistema. Não buscar modelos integrados
(críticos) de ciências criminais, mas inventar espaços de
integração de saberes críticos.” (p.40)
Seguindo o mesmo método do autor, sobre os mecanismos de criminalização e
controle social devem pousar nossa análise, deste modo, far-se-á uma análise
implicada, contextualizada, nunca neutra pois nega-se aqui a pretensa
neutralidade dos discursos científicos, a implicação nos remete a olhar para o
modo como nossa sociedade vem construindo a noção de crime e o perfil do
criminoso, a absorção de tais produções pelas políticas criminais e a ação do
Estado que nunca se dá sem certa dose de violência.
Batista (2003) ao citar Zaffaroni (2000) lembra que o autor considera que o
perigo da criminologia é ser um “saber e arte de despejar perigos discursivos”.
(p. 94)
“Se o perigosismo cientifico da fundação da criminologia é
constituído pelos discursos medico e jurídico, ele é
complementado posteriormente por outros discursos
(psicologicos, antropológicos, políticos etc) na luta pela
hegemonia dessa espécie de ‘ciência administradora de
medos’. Batista, (2003 p.94)
Partindo do mesmo pressuposto que Bicalho (2005, p.91) quando afirma que “o
mundo, os objetos que nele existem, os sujeitos que nele habitam e sua
praticas são produzidas historicamente, não tendo, portanto uma existência em
si, coisas já dadas, essência ou natureza”, este trabalho pretende elucidar as
produções históricas que através da criminologia, movimentos higienistas e
eugenistas entre outros mobilizaram e ainda movem políticas criminais e
políticas de segurança pública no nosso país.
Guatarri e Rolnik (2000) nos trazem o conceito de subjetividade, para os
30
autores:
“O sujeito, segundo toda uma tradição da filosofia e das
ciências humanas, é algo que encontramos como uma
‘etrê-lá’, algo do domínio de uma suposta natureza
humana. Proponho, ao contrário, a idéia de uma subjetividade
de natureza industrial, maquinica, ou seja, essencialmente
fabricada, modelada, recebida, consumida (...) A produção
de subjetividade constitui matéria prima de toda e qualquer
produção (...) A problemática micro política não se situa no
nível da representação, mas no nível da produção de
subjetividade.” (p.25)
Podemos pensar com os autores que subjetividades normalizadas, inseridas
em sistemas hierárquicos e em sistemas de valores e submissão são
produzidas de forma hegemônica. Criminologia, psicologia,medicina, sociologia
e todas as demais disciplinas participam deste processo de produção de
subjetividades em constante e contínua produção através de nossas praticas
cotidianas.
Para Coimbra e Leitão (2003), são essas produções de subjetividades que
produzem e limitam as formas de pensar, sentir, agir, perceber no mundo,
sendo forjadas, tecidas, maquinadas pelos diferentes equipamentos sociais,
dentre eles as praticas psicológicas.
Bicalho (2005, p.104) ao falar destas “fisionomias datadas historicamente, não
sendo portanto naturais” ,aponta sua constante presença no cotidiano de nossa
sociedade, tratam-se, portanto, de competentes e eficazes contruções que
atravessam, influenciam e transversalizam nossas praticas diárias, ainda
segundo o autor:
“Poderosos e eficazes processos de subjetivação que
31
forjam existências, vidas, bandidos e mocinhos, heróis,
vagabundos e vilões, meliantes, ‘pés-inchados’ e
‘sementinhas do mal’, excluídos e perigosos”. (p.104)
A subjetividade é produzida no meio social a partir de elementos
heterogêneos.O medo e a insegurança tornam-se importantes e poderosos
instrumentos utilizados pelo Estado para garantir a legitimação de sua violenta
ação apoiada nos discursos positivistas-etiológicos da criminologia positivista
em detrimento da produção discursiva da criminologia critica. Para tanto as
instituções formais (poder judiciário, poder legislativo etc) e informais (família,
igreja, escola, meios de comunicação etc) do Estado propagam na alma dos
indivíduos o sentimento subjetivo de insegurança e medo, deste modo,
afunilam o olhar da sociedade para o individuo criminoso e uma discussão
ampla do conceito de violência considerando a violência estrutural e os
processos de criminalização das classes subordinadas se perde na demanda
social de ações mais repressivas diante da assustadora e crescente
criminalidade e violência que se alardeia. (Xavier, 2008)
Dessa forma, é importante pensar o que as atuais políticas de segurança
publica e os dispositivos de controle social têm produzido. Vê-se que a forma
como a violência é compreendida e apresentada para a sociedade determina,
de certo modo, que estratégias serão utilizadas para combatê-la, assim como a
caracterização de determinado problema faz parte da construção de uma
política para combatê-lo. A partir disso, um dos objetivos deste capitulo é
problematizar as atuais políticas de segurança publica que legitimam certas
praticas cotidianas, dentre elas, a criminalização da pobreza acompanhada da
violência contra esta parcela da população.
O neoliberalismo, que se caracteriza pela substituição do estado providencia
pelo estado penal, necessita de um poder punitivo eficaz e onipresente para o
controle social daqueles que ele próprio marginaliza. O sensacionalismo
32
midiático sobre a criminalidade e a violência individual prolifera o medo de uma
forma bastante particular e atinge o cotidiano de uma forma muito concreta.
Este processo “se transforma assim em discursos, em teorias criminológicas
baseadas num senso comum, mas que vigoram a ode ao extermínio e pedem
políticas criminais de derramamento de sangue”. Batista (2003, p.107)
A mesma autora cita que o medo hiperbolizado nas práticas cotidianas atinge
as cidades dando espaço para políticas de segurança exterminadoras que
constrói inimigos e retira-lhes o rótulo de humanos. Desumanizados estes
passam a ser alvo de uma violência naturalizada no dia-a-dia. Processos como
a brutal criminalização da pobreza e o uso da violência clamados pelas classes
altas amedrontadas são banais e constantes no nosso país.
Wacquant (1999) em seu exame minucioso e critico das políticas públicas fala
e da construção de uma política utilizada para encerrar os pobres e excluir os
indesejáveis.
Para Rebeque e Bicalho (2008), a lógica do inimigo interno herdada da
Doutrina de Segurança Nacional e a constante afirmação de que vivemos em
uma guerra interna, a tão falada guerra civil têm sido justificativas utilizadas
para respaldar perseguições, violações e o domínio de certos grupos sobre
outros. Os autores mostram como tal lógica, associada as políticas de mais
Estado policial e menos Estado econômico e social do neoliberalismo e às
chamadas políticas de tolerância zero (criminalização de pequenos delitos)
produzem o que chamam de “senso comum punitivo”. Assim, a violência
urbana dá lugar às chamadas classes perigosas e a solução para tal violência,
estrategicamente localiza-se no controle e criminalização do cotidiano e no
tratamento penal da miséria.
Todas estas teorias contribuem para associação entre pobreza e
periculosidade/violência/criminalidade. A criminologia orienta tais práticas,
33
justifica-se, portanto, a análise de seus aportes. Tais aportes permitem, por sua
vez, que sejam eleitos aqueles que serão considerados suspeitos e perigosos
em nossa sociedade. Daí surgem políticas de segurança, amansamento e
exclusão daqueles que segundo uma lógica capitalista de consumo estão
excluídos, portanto, marginalizados. O estado penal é eleito para dar conta
desta parcela da população, conseqüentemente, investe-se pesado em Estado
penal e elimina-se o Estado social providencia, eis o neoliberalismo. A real
função do direito penal e do estado Penitencia neste contexto passa a ser o
controle punitivo dos excedentes, os que sobram dentro da sociedade de
consumo, os não cidadãos, excluídos que não tem espaço no mercado de
trabalho.
O próximo passo deste trabalho é pensar nas possibilidades de intervenção
da psicologia mergulhada neste contexto marcado por injustiças, exclusão,
criminalização, estigma e violência. Que psicologia pretende se encontrar com
questões sociais tão complexas e com saberes/poderes tão enraizados? De
que forma é possível tornar a psicologia um instrumento de resistência frente a
tais desigualdades?
Capítulo 3
Psicologia, Política e Criminologia: a produção
de verdades e práticas competentes.
““(...) que tipo de saber vocês querem desqualificar no
momento em que vocês dizem “é uma ciência”? Que
sujeito
falante, que sujeito de experiência ou de saber vocês
querem “menorizar” quando dizem: “Eu que formulo
este discurso, enuncio um discurso científico e sou um
34
cientista”?” (Foulcault 1988: 122).
Antes de problematizar a atuação psicologia no campo da criminologia um
imprescindível questionamento surge e impõe a necessidade de reflexão para
que o caminho a percorrer seja claro e crítico: afinal, de que psicologia estamos
falando? O que é a psicologia? Que psicologia tem se encontrado com tal
criminologia?
Para tanto, alertam Cambaúva, Silva e Ferreira (1998) citando Antunes (1989):
“A reflexão sobre o que é a psicologia, de onde vem, para
que e a quem serve, é algo tão imprescindível para o
psicólogo como o conteúdo de suas teorias e o
domínio de suas técnicas”. (p. 208)
Nega-se aqui o entendimento hegemônico da psicologia como algo a-histórico,
cientificamente neutro, que possui uma natureza e uma essência. Para tanto,
faz-se necessário refazer o caminho da emergência da psicologia como um
saber/poder datado historicamente em permanente construção através de
diferentes praticas sociais, nunca objetivo ou neutro, ao contrário, um saber
carregado de poder de dominação que dita modos de ser e existir no mundo
segundo padrões de normalidade proliferados como únicos e verdadeiros
enfraquecendo o discurso do sujeito sobre si, classificando e rotulando os
sujeitos em nome de uma ciência, ou como prefere Chauí (1982), citado por
Coimbra (2010 p. 08), um saber que dita a todos como “ver, tocar, sentir, falar,
ouvir, escrever, ler, pensar e viver”.
Em Foucault (2008) vê-se que as ciências humanas, entre elas a psicologia,
são, de certo modo, uma conseqüência da chamada sociedade disciplinar.
Essa surge no final no século XVIII e inicio do século XIX como uma nova
tecnologia de poder que se caracteriza como uma forma de organização do
35
espaço, controle do tempo e obtenção de um registro ininterrupto dos
indivíduos e suas condutas. Com a finalidade de vigiar, disciplinar e ordenar,
produzir corpos dóceis do ponto de vista político e úteis do ponto de vista
produtivo, esta sociedade implanta o que Foulcault chamou de poder
panóptico, tal poder se disseminou na sociedade através de diferentes
discursos e praticas sociais.
Em sua Obra “A verdade e as Formas Jurídicas” (1996) Foulcault apresenta
algumas observações sobre a sociedade disciplinar e o panoptismo. Para o
autor, a condição de possibilidade para a emergência da sociedade disciplinar
é uma reorganização e reforma do sistema judiciário e penal que consistiu
numa reforma teórica da lei penal. O crime passa a ser entendido não mais
como uma infração a uma lei religiosa e moral fortemente associado ao
pecado, mas uma ruptura com um pacto social que prejudica e conturba à
sociedade, uma infração a uma lei civil que representa, inicialmente, o que é
bom para toda a sociedade e vai sofrendo alterações durante todo o século XIX
transformando-se em algo que visa ajustar-se ao indivíduo. A partir disso, o
criminoso passa a ser visualizado como um inimigo social e a pena ganha um
caráter não mais vingativo e de redenção de um pecado como caracterizavam
os suplícios, mas deve favorecer uma reparação do dano social cometido pelo
inimigo conturbador. Neste contexto, a prisão surge como alternativa à reforma
do sistema de penalidades além de oferecer um suposto abrandamento e
humanização das penas
O autor revela que as penas sofrem uma alteração em seu endereçamento,
essas passam a se dirigir não mais apenas para os atos que os indivíduos
cometeram a favor ou contra a lei, mas adquirem a função de controlar aquilo
que os indivíduos estão sujeitos a fazer, suas potencialidades. Foulcault aponta
que a noção de periculosidade emerge nesse momento da história e os
indivíduos passam a ser considerados diante da sociedade além dos atos
36
praticados a nível de suas virtualidades. Foulcault (1996)
“Essa espécie de controle penal dos indivíduos ao nível de
suas virtualidades não pode ser efetuado pela própria
justiça, mas por uma série de outros poderes
laterais, à margem da justiça, como a policia e toda uma rede
de instituições de vigilância e de correção - a policia para a
vigilância , as instituições - psicológicas, psiquiátricas,
criminológicas, medicas, pedagógicas para a correção. É
assim que, no século XIX, desenvolve-se, em torno da
instituição judiciária e para lhe permitir assumir a função e
controle dos indivíduos ao nível de sua periculosidade,
uma gigantesca série de instituições que vão enquadrar os
indivíduos ao longo de sua existência (...) todas essa rede
de poder que não é o judiciário deve desempenhar uma
das funções que a justiça se atribui neste momento: função
não mais de punir as infrações dos indivíduos, mas de
corrigir suas virtualidades”. Foucault (1996, p. 86)
Esta foi a condição de possibilidade para o surgimento da psicologia
acompanhada das outras ciências humanas e sociais acima citadas, foi um
momento que Foulcault chamou de “ortopedia social”, a idade do controle
social, a psicologia acata a demanda a ela endereçada e o psicólogo se torna
um destes ortopedistas que desenvolve um conhecimento sobre os indivíduos
com o objetivo de adequá-los às necessidades do sistema social vigente
escondido atrás de um véu de cientificidade.
No Brasil, vale lembrar, a psicologia se funda como uma profissão em 1962,
período em que nosso país vivia sob o período da ditadura militar. Cambaúva,
Silva e Ferreira (1998) assinalam que neste momento, o período ditatorial teve
grande preocupação com as universidades intervindo diretamente através da
37
Reforma Universitária com objetivo de patrulhar os conteúdos ministrados e
difundidos nas universidades afim de danificar a potencialidade crítica das
pesquisas cientificas, transformando o aluno universitário “considerado como
um ser histórico, ativo e criador” em um sujeito “passivo, a-histórico,
domesticado e dependente”. (p.212)
Ainda assim, segundo os autores acima citados, a psicologia não representou
uma grande ameaça à ditadura vigente, isso porque:
“A concepção de ciência adotada pela ‘psicologia
brasileira’ assumiu o modelo biológico, fazendo uma analogia
acrítica (a-histórica) entre o meio natural e o meio social ao
qual o homem - objeto de estudo - tem de ajustar-se da
melhor maneira possível para que sobreviva enquanto
individuo. Não se considera, nessa concepção, a natureza
histórica do homem e da sociedade que ele produz.
Atendendo às necessidades de sustentação do próprio
modo de produção capitalista (...) a psicologia vem atender aos
imperativos do mercado de trabalho, que apelam para um
determinado tipo de racionalidade e produtividade”
Cambaúva, Silva e Ferreira ( 1998 P. 212)
Desse modo, a psicologia se institui nesse contexto histórico especifico e
dirige-se para indivíduos intimizados, psicologizados, abstratos, a-históricos e
desvinculados de seus contextos sócio-histórico-político-culturais, uma ciência
que se torna um dispositivo e desde seu nascimento se coloca a serviço do
mundo capitalista onde foi concebida. Coimbra (2010)
Relembrando Foulcault mais uma vez, pode-se observar a psicologia com toda
sua pretensão cientificamente neutra como uma ciência que desde seu
nascimento possui o poder institucional e social de matar, um saber que arma
seu discurso sobre bases adaptativas, individualistas, descontextualizadas, que
38
isola os indivíduos, retira-os de seu terreno e dos múltiplos atravessamentos
que o constituem, que elege modelos e a partir deles comparações
hierárquicas de bem X mal, certo X errado, que fomenta a utilização de
conceitos morais, que desqualifica, esquadrinha, retira dos indivíduos a
capacidade de dizer de si, elimina as múltiplas possibilidades de ser e estar no
mundo. Uma potente arma a metralhar seus efeitos cotidianamente, sempre
em constante construção.
A pergunta que inicia este capítulo encontrou sua resposta: afinal, de que
psicologia estamos falando? É essa psicologia que hegemonicamente ao longo
da história tem se afirmado e se encontra com os discursos criminológicos,
médicos, pedagógicos, jurídico, sociológicos entre tantos outros. O
reconhecimento destas práticas datadas historicamente surge como uma
necessidade primeira para romper com tais caminhos até então percorridos, tal
rompimento exige que se percorra um caminho inverso de desconstrução
destas verdades construídas pela psicologia, caminho esse que , como afirma
Coimbra (2010 p. 3) é:
“Extremamente espinhoso e marginal, pois vai contra
verdades estabelecidas e fortemente instituídas em
nosso mundo psi. Crenças que nós trazemos, produzidas
não só ao longo de nossa formação, mas que estão
profundamente entranhadas nas sociedades
ocidentais, também conhecidas como capitalísticas.
O reconhecimento da psicologia como um saber e prática historicamente
construída através de nossas ações cria condições de possibilidades para
novas criações, novas produções discursivas e conseqüentemente diferentes
praticas que rompem com formas de dominação instituídas, que possibilitam
novas formas de relações sociais, que abrem caminhos para outras
perspectivas sobre os indivíduos, que nega o lugar da neutralidade e afirma os
39
múltiplos atravessamentos que constituem os seres humanos e a própria
psicologia, que é capaz de reconhecer o poder e o valor político que esta
ciência possui desde seu nascimento, que nega acima de tudo o caráter
essencialista/intimista/familiarista que a psicologia tem atribuído aos indivíduos
negando outras dimensões que o atravessam.
Ainda hoje, como apontam Rebeque, Jaguel e Bicalho (2009), a demanda que
é endereçada à psicologia quando esta se insere em diferentes campos como
o da escola, do trabalho, da justiça é o de “psicologizar”, revelar essências,
produzir padrões e, ao lado destes, patologias e anormalidades, oferecer
técnicas de amansamento e ajustamento dos indivíduos, proliferar seus
discursos intimistas através de laudos e pareceres por meio da analise de um
território individualizado, descontextualizado e despolitizado.
Tal prática remete àquilo que Baptista (1999) denominou “amoladores de faca”
que através de seus discursos amolam suas facas e dirigem-se ao outro de
forma violenta. Para o autor, os amoladores de faca carregam consigo uma
pratica genocida camuflada, genocidas por que “retiram do ato de viver o
caráter pleno de luta política e o da afirmação de modos singulares de existir”.
( p.49)
“Destituidos de aparente crueldade, tais aliados amolam a
faca e enfraquecem a vitima, reduzindo-a a pobre coitado,
cúmplice do ato, carente de cuidado, fraco e estranho a
nós, estranho a uma condição humana plenamente viva.
Os amoladores de faca, à semelhança dos cortadores de
membros, fragmentam a violência da cotidianidade,
remetendo-a a particularidades, a casos individuais (...)
Onde estarão os amoladores de faca?”
(Baptista, 1999 p.46)
A dicotomia entre psicologia e política é mais uma destas verdades produzidas
40
dentro da ciência psicológica que, considerando-se pura, nega sua dimensão
política e seus efeitos devastadores. Há que se reconhecer o poder que se
carrega quando se fala em nome da psicologia, há que se reconhecer que toda
ação humana é política, seja para transformar seja para conservar, Bicalho e
Curi (2009) utilizam-se das palavras de Guatarri para reforçar que “todos
aqueles cuja profissão consiste em se interessar pelo discurso do outro, estão
numa encruzilhada política fundamental”. (p.125)
Verani (1994) ao falar da aliança da psicologia com o direito, atenta-se para um
problema que merece nossa atenção, não basta reconhecer “que” psicologia
pretende se encontrar com o direito, com a criminologia e tantos saberes e
ciências, é necessário que se reconheça que outros saberes são esses e que
práticas têm produzido, logo, nosso questionamento deve ser: que psicologia
pretende se encontrar com que direito? Com que pedagogia? Com que
medicina? Com qual criminologia? Com quais práticas nossa psicologia tem
feito alianças? O que pretendem nossas alianças quando saímos do terreno da
psicologia para visitar outros terrenos? O autor relembra que, no caso do
direito, esta aliança tem se realizado ainda no sentido de “reforçar ainda mais o
conteúdo e a natureza repressora que estão inseridos no direito” (p.14), isto
porque, segundo Verani, “o conhecimento jurídico é fundamentalmente, um
conhecimento não-cientifico, é um conhecimento dogmatizado, burocratizado,
elitizado, excluidor, prepotente e autoritário” (p.14) . A psicologia firma sua
aliança neste terreno de forma acrítica armando o direito com seu saber dando
a ele o poder de determinar “o que é certo, o que é errado, o que normal, o que
é anormal, o que é justo, o que é injusto, quem tem culpa e quem não tem.”
(p.14)
“Tenho certeza que, do meu ponto de vista em relação ao
direito, esse encontro só será possível no sentido de não
ser um encontro para estimular a repressão, para fomentar
a desigualdade e a injustiça, mas sim, no sentido de ajudar
a pessoa, o adolescente ou a criança, a se libertar
41
enquanto ser humano (...) há princípios que podem orientar
essa aliança do Direito com a Psicologia (...) basta ler a
Constituição Federal e entender o que significam os
princípios fundamentais (...) que podem servir de
parâmetros para um trabalho jurídico . Verani (p.15)
A partir destes questionamentos e críticas acerca das praticas cotidianas do
profissional de psicologia, cria-se condições de possibilidades para a produção
de novos encontros entre uma psicologia assumidamente política e outras
ciências potencialmente devastadoras como a criminologia e o direito.
Encontros produzidos por uma série de atravessamentos entre saberes e
práticas sociais que se cruzam e juntos podem romper com a lógica
estabelecida, reconhecer as relações de poder ao qual inevitavelmente
estamos inseridos e usar tal poder para promover rachaduras, provocar
estranhamentos, desfazer verdades, promover outros encontros e quem sabe
ao longo do tempo possibilitar a construção de sociedades mais justas e
igualitárias. Este deve ser sempre o compromisso do profissional de psicologia
seja qual for seu campo de inserção.
Desformando o Mundo
“É preciso transver o mundo.
Isto seja,
Deus deu a forma. Os artistas desformam...
É preciso desformar o mundo.
Tirar da natureza as naturalidades.
Fazer cavalo verde por exemplo.
Fazer noiva camponesa voar - como em Chagall.
Agora é só puxar o alarme do silencio
Que eu saio por aí a desformar.”
42
(As lições de R.Q - Manuel de Barros)
CONCLUSÃO
Num País como o Brasil, marcado por intensa desigualdade e violência das
mais variadas formas e destinatários, a discussão sobre criminologia torna-se
fundamental e necessária, isto porque, a ela dedica-se o título de ciência que
diz sobre o crime e o criminoso na nossa sociedade.
A produção de um saber a respeito do que é crime e de quem é o criminoso
dentro da ciência criminológica historicamente favoreceu um processo
generalizado de criminalização da pobreza, através da união dos discursos da
criminologia, psicologia, direito, medicina, entre outros, que ao despejar seus
discursos dentro das instituições promoveram o encontro entre a criminalidade
e a pobreza.
43
O encontro destes perigos discursivos produzem conseqüências que são
vivenciadas no dia-a-dia da nossa sociedade por todos. As classes altas
temem a violência e a criminalidade, mas quem experimenta tal violência
diariamente são as classes abastadas que recebem o rótulo de perigosas em
potencial, a elas é destinada altas doses de violenta repressão.
Inserida nesta trama, a psicologia não pode fugir das lutas e das relações de
poder em que está inevitavelmente inserida, assim sendo, é fundamental
romper com dicotomias que a própria psicologia construiu ao longo de seu
desenvolvimento buscando valor cientifico, pretendendo-se asséptica e neutra.
É preciso reconhecer o poder, apossar-se dele, incorporar as multiplicidades
teóricas e praticas que constituem a psicologia e abrir os olhos para os
poderosos efeitos transformadores que podem ser alcançados quando
psicologia e política, ciência e ideologia, teoria e pratica se encontram.
Se é fato que a ciência psicológica é mais uma arma de que se utilizam
diversas outras instituições para respaldar suas praticas muitas vezes
genocidas como no caso da criminologia e da ciências jurídicas em geral, é
necessário que se tenha sempre uma postura política, critica, contextualizada
quando se fala em nome da psicologia, somente deste modo estaremos
caminhando em direções opostas aos caminhos até então trilhados.
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