VIII Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política
Gramado, RS, 01 a 04 de agosto de 2012
Área temática: Política, Direito e Judiciário
Para um novo mapa judiciário no Brasil1
Leonardo Avritzer (UFMG)2
Marjorie Marona (UFMG)3
Resumo: As transformações pelas quais passaram estado, sociedade civil e mercado induziram a ampliação
da litigação em vários domínios. As dificuldades de oferta da prestação jurisdicional, face o novo cenário,
suscitaram as questões da eficiência e acessibilidade dos tribunais, que levaram à inclusão do tema das
reformas do judiciário nas agendas políticas dos governos. A redefinição dos territórios da justiça e da
estrutura da organização judiciária constituem questões centrais. O presente trabalho aponta para a
necessidade da construção de um novo mapa do judiciário no Brasil, que espelhe a ruptura com a ilusão de
que o estatuto do direito e da justiça dependem apenas de uma política voluntarista dos atores, desvendando
as determinantes sociais e políticas da actividade judicial, a partir da ideia de que a questão da justiça
comporta desafios de natureza política, institucional e social.
Palavras-chave: Acesso à justiça, Direito e Democracia, Organização da Justiça, Administração da Justiça,
Reforma do Judiciário
1 Este artigo aproveita, em grande medida, os resultados da pesquisa desenvolvida pelo Observatório da Justiça Brasileira, com o
apoio da Secretaria da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, sob coordenação do Prof. Doutor Leonardo Avritzer,
intitulada “Por uma nova geografia da justiça brasileira”. A metodologia utilizada pelo Observatório da Justiça Brasileira remete
aos trabalhos desenvolvidos pelo CES/Coimbra, sob coordenação do Prof. Doutor Boaventura de Sousa Santos, cedidos por meio
de um protocolo de cooperação com o CES/América Latina. 2 Doutor pela New Schol for Social Research, Professor Titular do Departamento de Ciência Política pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG) e coordenador do Observatório da Justiça Brasileira (OJB). 3 Doutoranda em Ciência Política (UFMG). Bolsista CAPES, Processo BEX 4759/11-7, pesquisadora do Centro de Estudos
Sociais América Latina (CES/AL) e Observatório da Justiça Brasileira (OJB).
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Introdução
Em nível global, as transformações pelas quais passaram o Estado, a sociedade e o sistema
econômico, no último século induziram, de certa forma, a ampliação da litigação em vários
domínios, o que veio a se traduzir no aumento exponencial da procura judiciária, um pouco por
todo o lado. As dificuldades de oferta da prestação jurisdicional diante do novo contexto social
suscitaram as questões da eficácia, da eficiência e da acessibilidade ao sistema formal de justiça,
de modo que desde finais dos anos 80, em nível global, as reformas do judiciário passaram a
constituir componentes principais das agendas políticas dos diferentes governos.
As respostas, em geral, têm incluído reformas processuais, reaparelhamento dos tribunais, no
que diz respeito aos recursos humanos e de infra-estrutura, indistintamente, criação de tribunais
especializados e informatização e autonomização da justiça, além da aposta em soluções
alternativas ao modelo formal e profissionalizado da justiça, que, visando a atuar sobre a procura
de tutela judicial, desviando-a dos tribunais judiciais, fez proliferar mecanismos alternativos de
resolução de litígios. Mais recentemente as reformas de organização e gestão da administração
da justiça passaram a constituir um “tópico obrigatório” das agendas de reforma em vários países,
inclusive no Brasil. No entanto, a orientação predominantemente hegemônica das reformas
judiciais acaba por comprometer a refundação democrática do judiciário, de modo que a
redefinição dos territórios da justiça é uma das questões centrais do debate sobre as reformas
judiciais, quando tomado em uma perspectiva contra-hegemônica (SANTOS; 2005, 2007).
O presente artigo insere-se nesse debate e aponta para a necessidade de um novo mapa do
judiciário no Brasil. Constitui o primeiro resultado da pesquisa desenvolvida pelo Observatório da
Justiça Brasileira (OJB), na sequência do itinerário traçado, de modo pioneiro, por Cappelletti e
Garth (1978) e aprofundado pelas inúmeras contribuições de estudiosos do campo das ciências
jurídicas e sociais, nas últimas décadas, com destaque para os diversos trabalhos de Boaventura
de Sousa Santos (1980, 1996, 2003, 2012) sobre os desafios do acesso à justiça em sociedades
contemporâneas.
Mas, mesmo que o foco da questão seja aqui o sistema judiciário formal, longe de um modelo de
abordagem institucional de acesso à justiça, toma-se o direito em uma perspectiva ampliada,
como “um corpo de procedimentos regularizados e de padrões normativos, com base nos quais
uma terceira parte previne ou resolve litígios no seio de um grupo social” (SANTOS, 2012:39,40),
produto de uma “negociação e de um juízo político de sujeitos colectivos” (SOUSA JÚNIOR,
2002:43). Nesse contexto, os tribunais devem se articular em uma rede muito mais ampla de
3
administração do consenso e do dissenso, interindividual e coletivo, no interior de um
determinado território, a partir de um conjunto de regras historicamente estabelecidas.
A partir da demonstração de uma série de mapas, evidencia-se a necessidade de superação do
debate acerca do acesso à justiça a partir da verificação da existência (ou não) de normas
jurídicas, garantidoras de direitos, e a insuficiência da abordagem institucional, assente na
redução do direito ao direito estatal, e restrita aos esforços de superação das dificuldades para
transpor os canais formais de resolução de conflitos. Por fim, em conformidade com a natureza
exploratória da pesquisa sobre a qual assenta o presente trabalho, são apresentadas as
conclusões parciais do estudo, um conjunto de propostas para debate e uma agenda de
investigação sociojurídica.
I. Acesso ao direito e à justiça: o que é e para que serve?
Por um lado, os tribunais são, cada vez mais, espaços privilegiados de definição e
aprofundamento dos direitos dos cidadãos, que se concretizam, em maior ou menor escala, pela
prossecução das funções4 atribuídas ao poder judicial em sociedades contemporâneas. Por outro
lado, o acesso à justiça, que no plano normativo constitucional é direito fundamental de todo
cidadão brasileiro, independentemente de sexo, género, cor de pele, raça, etnia, classe social,
grupo de origem, vê sua possibilidade de concretização condicionada à posição do Estado no
sistema mundial, o que se traduz, muitas vezes, no plano individual, em condicionantes de ordem
socioeconómicas ou identitárias, que fundam estruturas de exclusão e desigualdade social.
Promover o acesso ao direito e à justiça, em toda a amplitude da sua acepção, é reconhecer que
a conversão de um determinado ato ilícito, gerador de dano, em litígio, depende de numerosos e
variados factores, sobre os quais se pretende atuar não apenas para permitir que,
verdadeiramente, o ato violador de uma norma e promotor do dano seja convertido num litígio,
mas também que a esse litígio seja dada uma solução justa, eficiente e eficaz (Santos, 1987;
1996; 2007).
Assim é que se atua em múltiplas dimensões que dão conta desse longo e tortuoso trajeto
através de políticas de (a) informação e divulgação jurídica, que permitam a conscientização dos
cidadãos quanto aos seus direitos; (b) de consulta ou aconselhamento jurídico, que possibilite
que o lesado possa avaliar a forma como o dano pode ser ressarcido; (c) de patrocínio judiciário,
4 Assume-se, no marco teórico de Boaventura de Sousa Santos (1996), que os tribunais exercem funções de três ordens: funções
instrumentais, políticas e simbólicas. Pelo exercício de suas funções instrumentais, os tribunais exercem funções políticas e
simbólicas, isto é, proporciona que campos setoriais de atuação social contribuam para o sistema político e informem o conjunto
das orientações sociais com que os diferentes campos de atuação social contribuem para a manutenção/destruição do sistema
social no seu conjunto.
4
que viabilize que, livre de quaisquer constrangimentos económicos ou sociais o lesado se faça
representar em tribunal por um profissional qualificado apto à defesa dos seus interesses; e, por
fim, (e) de direito a um processo equitativo, que garanta um solução justa, eficiente e eficaz diante
do caso concreto que originou a procura judicial.
O debate em torno das várias dimensões do acesso ao direito e à justiça impõem, de imediato, o
enfrentamento de três fundamentais questões: (1) a multiplicidade de bloqueios de diferente
natureza à sua concretização universalizante; (2) a necessidade de compreensão do sistema de
justiça como um sistema global e integrado de diferentes instâncias de resolução de litígios, que
não se circunscreve aos tribunais judiciais; (3) o impacto que reformas sectoriais da política
pública de justiça têm forçosamente na vertente do acesso.
Em diversos países essas questões têm vindo a ser consideradas no desenvolvimento de
políticas públicas e reformas dirigidas à promoção do acesso ao direito e à justiça, entretanto,
esse conjunto de reformas não foi capaz de colmatar todos os bloqueios que pretendiam eliminar.
O seu objectivo último sempre foi o de dotar o acesso ao direito e à justiça de carácter universal,
mas o seu alcance na prática tem sofrido várias limitações, que revelam, de certo modo, a
necessidade de superação da perspectiva mais redutora do direito e consequente de ampliação
do espectro das políticas públicas do direito e da justiça.
Genericamente, as reformas da justiça na atualidade podem dividir-se em dois campos de luta:
por um lado, um campo hegemônico que reclama uma justiça eficiente, previsível e célere, que
confira estabilidade e segurança jurídica aos negócios e às transacções comerciais; por outro, um
campo contra-hegemônico que exige do direito e dos tribunais a assunção de um papel de
transformação social (SANTOS, 2007). A esses dois pólos opostos correspondem duas
orientações fundamentais no âmbito das quais as reformas de justiça vêm oscilando: uma de viés
mais democrático, que busca promover a igualdade no acesso ao direito enquanto ferramenta
para resposta à necessidade dos cidadãos, e outra de viés marcadamente tecnocrático, que
privilegia a otimização de recursos e coloca a tônica na eficiência e eficácia do sistema judicial,
podendo redundar numa progressiva seletividade da prestação serviços públicos de justiça.
Desse modo, qualquer agenda de reforma da justiça pressupõe a concreta definição e
delimitação das funções dos tribunais, pois só dessa maneira poder-se-á concretizar as
demandas constantes do papel atribuído ao judiciário (ZAFFARONI, 1995). A opção pela
continuidade ou pela ruptura com os atuais modelos organizacionais e territoriais depende,
portanto, e desde logo, da resposta política que se der à questão da manutenção da atual matriz
judicial em que a comarca constitui a unidade de referência ou, ao contrário, da busca de outros
5
patamares territoriais, através da reorganização mais eficaz dos meios auxiliares da justiça, da
introdução de novos mecanismos de administração e gestão dos recursos humanos e materiais e
da especialização dos órgãos judiciais de modo a possibilitar um tratamento diferenciado dos
litígios. Depende, ainda, da construção de um novo paradigma de processo, menos complexo e
burocrático, mais adequado às atuais expectativas dos cidadãos e ao seu tempo social, orientado
pela oralidade, consenso, simplificação dos procedimentos, uso de novas tecnologias,
exemplarmente. Por fim, a agenda estratégica de reforma do sistema de justiça precisa incluir, em
suas linhas mestras, a preocupação com a assunção de uma nova cultura judiciária, o que passa,
necessariamente, pelo desenvolvimento de um novo modelo de seleção e formação dos
operadores do direito, em especial, dos magistrados.
Mas depende, antes, da definição de uma política pública de justiça que assente em um sistema
integrado de resolução de litígios, integrando os mecanismos extrajudiciais e judiciais e também
os mecanismos comunitários. Trata-se, em síntese, de romper com a ilusão de que o estatuto do
direito e da justiça obedecem apenas a uma política voluntarista por parte dos atores em causa,
desvendando, antes de tudo, as determinantes sociais e políticas da atividade jurídica e judicial
(Commaille, 2009).
O presente trabalho, por óbvio, não pretende oferecer respostas a todas as complexas e tão
diversas questões que envolvem o tema da universalização e democratização do acesso à justiça
no Brasil, nem mesmo em seu reduzido aspecto institucional. Muito mais modesta, a análise que
aqui se apresenta assenta em um trabalho de pesquisa que consistiu no levantamento de um
conjunto de dados empíricos, em seis estados-membros da federação5, referentes à estrutura
base do sistema formal de justiça, para que esses dados possam orientar a reflexão acerca da
dinâmica de ampliação da participação dos tribunais na conformação da vida política e social
brasileira. Na esteira de Jacques Commaille (2005) assumimos, portanto, que não é
recomendável instituir políticas públicas no âmbito jurídico, sem o auxílio de uma cartografia
detalhada do universo judiciário.
Não basta um estímulo governamental, uma intervenção do Estado e das autoridades públicas,
seguindo o princípio de uma regulação top down, para que seja efetuado o ajustamento com os
objetivos estabelecidos. A questão do direito e da justiça comporta desafios de natureza política,
5 Realizamos este trabalho em seis estados-membros da federação: Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul, Pará,
Pernambuco e Rio de Janeiro. Esses seis estados representam bem a diversidade brasileira, na medida em que estão distribuídos
por quatro regiões que expressam as desigualdades, as variações entre atores sociais e também a concentração de atores
econômicos. Apresentaremos, aqui, o resultado da pesquisa para três estados-membros da federação: Minas Gerais, Rio Grande do
Sul e Pernambuco. Para dois estados e uma Comarca apresentaremos, ainda, dados sobre o uso do judiciário feito por macroatores
importantes, em especial atores estatais e macroatores económicos: Rio Grande do Sul, São Paulo e Belo Horizonte.
6
institucional, social e cultural que devem ser considerados antes de ser pretender enunciar aquilo
que deve ser (Commaille, 2009).
II. Estrutura judiciária e cultura jurídica brasileira: as prestimosas lições da história
A trajetória sociopolítica do sistema judicial em qualquer país depende do seu nível de
desenvolvimento econômico e social, pelo condicionamento que exerce na configuração da
litigiosidade judicial. Parece prudente, portanto, que, no âmbito do debate acerca da
democratização do acesso à justiça, o qual passa pela implementação de reformas institucionais
com vistas à modernização e aperfeiçoamento do sistema integrado de justiça, que se atente às
prestimosas lições da história, considerando, especialmente, a condição de colonizado que
qualifica o nosso país, pelas marcas que a perpetuação do colonialismo, enquanto relação social,
ainda faz sentir (Santos, 2004). Nesse sentido, a análise da evolução da organização judiciária
brasileira pode, pela explicitação de seus fundamentos, auxiliar na identificação de um conjunto
de fatores que tem vindo a influenciar a sua evolução, e na colocação crítica da questão da
necessidade de reformulação do modelo de organização judiciária. O mapa judiciário brasileiro se
organizou, desde suas origens, a partir das fortes relações estabelecidas entre o poder político e
o judiciário. A justiça brasileira foi, durante a fase colonial, a “justiça do rei” e o modelo de
organização jurídica que o Brasil herdou de Portugal traduz o desejo de regulação desde cima,
com predominância do Estado (e, nessa fase, do Executivo), condizente com a ideia de justiça
como um atributo das funções soberanas do Estado (encarnadas na figura do Governante, por
muito tempo).
Esse modelo se fez sentir durante a fase colonial pela confusão entre as funções judiciais,
administrativas e políticas e também pela enorme ingerência do poder administrativo sobre o
poder judicial. No final do período colonial a justiça brasileira possuía juízes e tribunais próprios,
mas as instâncias recursais derradeiras ainda estavam em Portugal, o que só veio a ser alterado
pela vinda da família real ao Brasil.
A semente plantada na fase colonial florescia no Império: o modelo de organização judiciária
brasileira atendia aos argumentos típicos da concentração, em que a justiça aparecia com a
função de exercer o poder soberano do Estado, em uma dimensão simbólica, traduzida na ideia
de justiça como uma “encarnação institucional de uma meta-razão” (Commaille, 1990:94),
assente na unidade da jurisprudência e na qualificação técnica dos operadores do direito. Se bem
que ainda subsistiam, nessa fase, os juízes de paz, legítimos representantes da sociedade, a
presidir alguns mecanismos extrajudiciais de resolução de conflitos, bem como instalava-se um
tribunal especial para julgamento dos crimes em geral, composto por membros da sociedade.
7
É que a determinação da Constituição do Império, promulgada em 1824, no sentido de organizar-
se, o quanto antes, um código civil e um criminal, foi apenas parcialmente cumprida. O código
criminal foi promulgado em 1830, e, no seu rastro, foi criado um Conselho do Júri, ou Juízo de
Jurados, que, inspirado no modelo inglês, julgava os crimes em geral. Os jurados eram eleitos
pela Câmara Municipal (60 nas capitais e 30 nas cidades e vilas). O código civil, entretanto, não
seria promulgado até o final do Império, fazendo-se presente tradição jurídica portuguesa,
corporificada na vigência das Ordenações Filipinas, ainda que “atualizada”6 pela inserção de
novos critérios de integração e interpretação tipicamente jusracionalistas, que timidamente a
tingiu com cores iluministas, adaptando-as, sobretudo, aos interesses econômicos das elites
agrárias brasileiras.
Houve, outrossim, uma série de importantes adventos legislativos ao longo do Império, com
destaque para a promulgação de um código comercial, em 1850, e para a promulgação da Lei de
Terras, do mesmo ano, que, com intento de transformar a propriedade rural em verdadeira
mercadoria de livre circulação no mercado, buscou promover uma até então inédita separação
entre as terras públicas e privadas7. Vê-se que, desde o início do Império, os princípios liberais,
tal qual conformados pelas revoluções oitocentistas, foram sendo incorporados no Brasil, na justa
medida em que se adaptassem aos interesses das elites, não favorecendo, portanto, a ampliação
dos correlatos direitos civis e políticos.
Ao longo dos primeiros anos após a Independência não existia, no Brasil, sequer um ambiente
que pudesse propiciar a formação de uma cultura jurídica8 autóctone, o que se deve não apenas
ao fato de que, nesse momento, utilizava-se o Brasil de todo o arsenal jurídico português9, mas
também ao fato de que as universidades brasileiras só foram permitidas a partir de 1808, quando
6 Editada pelo Marquês do Pombal, a lei de 18 de agosto de 1769, alcunhada Lei da Boa Razão, amplamente ancorada num
ambiente cultural iluminista e jusnaturalista, buscava basicamente impor novos critérios de interpretação e integração das lacunas
na lei 7 FONSECA, Ricardo Marcelo (2005). A lei de terras e o advento da propriedade moderna no Brasil, in Anuario Mexicano de
Historia del Derecho, Mexico, XVII, Instituto de Investigaciones Jurídicas, pp. 97/112. 8 A expressão cultura jurídica é aqui empregada como um conjunto de significados (standards doutrinários, padrões de
interpretação, marcos de autoridade doutrinária nacionais e estrangeiras, influências e usos particulares de concepções
jusfilosóficas) que efectivamente circulem na produção do direito e sejam genericamente aceitos e reconhecidos. Trata-se do
conjunto de padrões e significados que circulam e prevalecem nas instituições jurídicas, e, como tal, é um fato histórico
antropológico que se dá a partir de elementos (humanos, doutrinais, sociais, econômicos, etc.) presentes em uma determinada
sociedade em uma determinada época, nos limites dos aparatos institucionais localizáveis. No dizer de Foucault (sobretudo em A
Ordem do Discurso, traduzido por Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 1996.) trata-se de uma configuração
discursiva, plena de mecanismos de controle, seleção, organização, procedimentos de interdição e de estabelecimento de
privilégios, que só pode ser compreendida dentro de um tempo-espaço determinado. Ver FONSECA, Ricardo Marcelo. Vias da
Modernização Jurídica Brasileira: a cultura jurídica e o perfil dos juristas brasileiros do século XIX, in Revista Brasileira de
Estudos Políticos, Belo Horizonte: Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, n. 98, Julho-Dezembro/2008,
pp. 257-293. 9 Logo após a independência do Brasil, em 1822, o novo governo, fruto de uma composição entre as elites brasileiras, a coroa
portuguesa e a Inglaterra, apressou-se em determinar (Lei de 20 de Outubro de 1823) a manutenção da vigência das Ordenações,
leis, regimentos, alvarás, decretos e resoluções promulgados pelos reis de Portugal, enquanto não se organizassem um novo
código civil ou não fosse essa legislação, por outro modo, especialmente alterada.
8
a família real portuguesa estabeleceu-se no país. Até então os filhos das elites brasileiras
buscavam formação superior no exterior e, no caso da formação jurídica, sobretudo na
Universidade de Coimbra10, razão pela qual a quase totalidade dos quadros burocráticos da
esfera jurídica brasileira de então era formada em Portugal11. Ainda na segunda metade do
século XIX vigoravam concepções jurídicas fundadas em um jusnaturalismo de tipo teológico,
pré-liberal. Somente depois da estabilização do Império, na década de 70 do século XIX, é que
iniciou, propriamente, a “ilustração brasileira”, fundada em um ideário positivista-evolucionista de
base racional (VENANCIO FILHO, 1982:75).
Entretanto, o fato de a cultura jurídica brasileira da primeira metade do século XIX ter sido
fortemente conformada por um pequeno grupo de filhos das elites, com formação na
Universidade de Coimbra e um menos influente contingente de estudantes formados a partir da
década de 30 nos incipientes e pragmáticos cursos de direito do Recife e de São Paulo induziu a
que as decisões e posições teóricas fossem influenciadas muito mais por outra sorte de
conveniências do que por uma espécie de cultura jurídica avassaladora, tal como aquela que
invadiu a Europa continental logo no início do século XIX. Desse modo, os princípios liberais, e,
em particular, o valor do individualismo, que lhes dá sustentação, foram, sistematicamente,
retorcidos, dado o modelo de família patriarcal, como base da organização da sociedade
brasileira e pela presença avassaladora da escravidão dos negros africanos durante um longo
período.
De fato, a mitigação do individualismo, pela superestimação de caracteres pessoais, originou
relações sociais que se estabelecem menos em razão de interesses (relações instrumentais, que
pressupõem o valor da igualdade) e mais em razão de afinidades. O personalismo das relações
sociais induz uma visão hierarquizante da sociedade, fundada no prestígio, na distinção social,
que, definitivamente, não concebe o valor da liberdade/igualdade individual. Nesse sentido,
Sérgio Buarque de Holanda12 observa que:
“(…)desse comportamento social, em que o sistema de relações se edifica essencialmente sobre laços diretos, de pessoa a pessoa, procedem os principais obstáculos que na Espanha e em todos os países hispânicos – Portugal e Brasil inclusive -, se erigem contra a rígida aplicação de normas de justiça e de quaisquer prescrições legais”.
10
Entre os anos de 1772 e 1872 passaram pela Universidade de Coimbra 1242 estudantes brasileiros. 11
Os cursos jurídicos foram inaugurados no Brasil em 1827, estabelecendo-se uma Faculdade em Olinda e outra em São Paulo. A
partir daí é que se vai iniciar a lenta e gradual formação de uma cultura jurídica tipicamente brasileira. Entretanto, os cursos
possuíam um viés demasiadamente técnico, pouco teórico, de tal modo que em 1854, quando a Faculdade de Direito de Olinda
transferiu-se para o Recife, uma reforma no ensino tornou obrigatório o ensino do Direito Romano. Ademais, como observou
Clóvis Beviláqua, um dos grandes nomes da chamada Escola do Recife no fim do século XIX e início do século XX, nesses
primeiros anos, os cursos jurídicos de Olinda e São Paulo não passavam de “bisonhos arremedos de Coimbra”, sendo a influência
teórica portuguesa dominante até a metade do século XIX (VENACIO FILHO, 1982:53). 12
HOLANDA, Sérgio Buarque de. (1995) Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, p. 134.
9
A exaltação da personalidade tem fértil ambiente com a generalização da escravidão. Nesse
contexto, a recepção da cultura jurídica moderna europeia, que floresce no norte ainda no século
XVIII, de cunho generalista e formalista, fundada em um tratamento igualitário dar-se-á no Brasil
de modo tardio e mitigado. Paralelamente, e em razão da inexistência de uma relação de
identificação entre as (poucas) garantias judiciais asseguradas pela legislação (estatal) e o
atendimento às necessidades do povo, a maioria dos conflitos não vinha a ser resolvida com base
na legislação oficial do Império, mas ao contrário, sofria forte impacto das presenças
preponderantes da ordem local (familiar, religiosa, moral), dominada pela lógica e interesses dos
proprietários rurais, fortalecidos pela necessidade do governo central de com eles estabelecer
compromissos para fazer alcançar, minimamente, a sua vontade nas províncias e municípios.
A instauração da República, a despeito das descontinuidades que se verificaram, consolidou e
ampliou o modelo concentrado de justiça no Brasil. Durante a República Velha (1889-1929), o
poder judiciário estava à mercê do controle oligárquico: a inexistência de garantias de
vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos dos juízes estaduais era parte do
compromisso coronelista (LEAL, 1975). A organização do judiciário possibilitava o controle local
das nomeações, facilitando o processo de adequação das instituições políticas importadas às
condições nacionais e impedindo a vigência das liberdades políticas e civis no país (VIANNA,
1967; FAORO, 1987). Os interesses particulares (das oligarquias locais) determinavam, portanto,
a relação dos juízes, promotores, serventuários e delegados “no generalizado sistema de
compromisso do coronelismo” (LEAL, 1975 apud KOERNER, 1994)13.
O processo de formação do estado nacional, a partir de suas raízes coloniais, ao longo do
Império (1882-89) e da chamada República Velha (1889-1930), entretanto, passou pela
racionalização da administração pública que se consolidou e se atualizou, em um movimento que
se deu de forma lenta e superficial nos primeiros cem anos de história do Brasil independente,
mas encontrou seu ponto de inflexão e aceleração na Revolução de 1930 (COSTA, 2008). De
fato, o governo de Getúlio Vargas iniciou uma série de mudanças que tinha na racionalização
burocrática do serviço público - por meio da padronização, normatização e implantação de
mecanismos de controle - uma de suas vertentes principais. No entanto, o conjunto de programas
13
No âmbito da justiça estadual, a divisão social do trabalho jurídico pesava sobre os juízes leigos ou temporários (juízes de paz,
juízes municipais, substitutos e jurados), os quais não tinham formação profissional e nem liberdade individual para exercer as
funções judiciárias; os juízes de direito possuíam melhor formação, pois bacharéis, mas não gozavam de autonomia, sendo
controlados por meio da intimidação e do favorecimento. O poder judiciário federal, por sua vez, teve suas características
institucionais determinadas pelo sistema de compromisso da política dos governadores, estabelecida por Campos Salles, em 1900.
No jogo de troca de apoio entre o governo federal e as oligarquias estaduais - reconhecidas como sujeitos privilegiados para as
alianças de nível federal – manter o controle sobre os cargos de ministros do Supremo Tribunal Federal e dos juízes federais
(seccionais) era muito importante para as oligarquias estaduais, devido as atribuições constitucionais, pois os juízes federais
julgavam os conflitos entre a União e os Estados e os crimes políticos.
10
e ações de modernização da administração pública não ecoaram no âmbito do judiciário
brasileiro.
Não se chega a generalizar o modelo burocrático do juiz funcionário do estado, encarregado da
aplicação da legislação posta pelo Legislativo, induzindo uma organização de forma
hierarquizada, de raiz administrativa, ou de carácter burocrático. De fato, a busca de uma maior
profissionalização do serviço público, a instituir os concursos públicos como principal mecanismo
de seleção no Brasil, exigindo-se a apresentação de conhecimentos técnicos específicos que
deveriam ser aferidos, evitando o alinhamento meramente político dos juízes a determinados
interesses, atingiu somente o acesso aos graus inferiores de jurisdição, no âmbito da justiça nos
estados14.
Foi consagrado, paralelamente, o conjunto de garantias dos magistrados – vitaliciedade,
inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos – e ampliou-se a autonomia administrativas dos
tribunais. Proibiu-se os magistrados de realizarem qualquer atividade político-partidária e de
acumularem funções públicas (exceto o magistério), em um claro movimento de neutralização
política do judiciário. A adoção de um modelo organizacional tipicamente liberal, assente em uma
atuação neutra do ponto de vista político, em um contexto de ausência generalizada de uma
cultura cívica, favoreceu o florescimento de uma prática corporativista e autoritária dos membros
do judiciário brasileiro, a qual, a despeito da inflexão que sofreu com a promulgação da
Constituição da República de 1988 (CRFB/88), e as posteriores reformas institucionais do
judiciário, consolidou-se como a pedra angular da cultura jurídica brasileira.
A CRFB/88 contém uma ampla regulamentação do Poder Judiciário brasileiro, determinando a
estrutura, a organização, os princípios gerais e a fixação de competência para juízes e tribunais15.
A complexa estrutura judiciária brasileira é frequentemente apontada como causa da lentidão e
ineficiência na prestação do serviço jurisdicional. E foi esse o argumento cerne, mobilizado pelo
pelos esforços reformistas que, no Brasil, remontam à década de noventa do século passado.
A reforma, entretanto, assumiu outros contornos, obscurecidos pelo discurso da ineficiência: o do
controle político institucional sobre o judiciário. Constituiu-se em uma reação ao desenho
institucional constitucional inaugurado em 1988, por via do estabelecimento de mecanismos de
14
E mesmo nos estados, o acesso às jurisdições superiores (Cortes de Apelação), as quais possuíam competência normativa,
administrativa e disciplinar, mantinha-se alheio aos perigos que a igualdade de oportunidades, gerada pelo concurso público,
poderia oferecer. A fórmula acomodou as elites locais, permitindo, inclusive, acesso direto aos Tribunais, ainda que em regime de
exceção, por meio do chamado quinto constitucional, resolvendo, ademais, o problema da cobertura integral do território do
estado, por meio do envio de juízes recrutados mediante concurso público para as localidades mais longínquas. 15
O constituinte dedicou 35 artigos (art.92 a 126) ao Capítulo intitulado “Do Poder Judiciário”. Além disso, o Capítulo IV (Das
Funções Essenciais à Justiça) conta com mais oito artigos que tratam do Ministério Público, da Advocacia Pública, da Advocacia
Privada e da Defensoria Pública.
11
controle compatíveis com o auto grau de independência que a Carta Constitucional havia
proporcionado ao judiciário.
De fato, o novo quadro normativo constitucional possibilitava que o judiciário brasileiro avançasse
na (re)definição de políticas públicas, rivalizando, muitas vezes, com maiorias Congressuais
duramente negociadas pelo Executivo. A judicialização do conflito social, protagonizada por
movimentos sociais e grupos de interesse, ao eleger, sistemática e estrategicamente, o judiciário,
como o local institucional mais favorável para contestação das políticas públicas, evidenciou-se
durante o primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso.
Os tribunais foram sistematicamente convocados por atores externos para julgar todas as
principais políticas públicas (especialmente as de cariz reformista neoliberal) adotadas pelo
Executivo e seus aliados no Congresso, através do recurso ao questionamento metódico acerca
da constitucionalidade das leis e atos normativos do poder público. Os tribunais dificultaram a
realização de leilões de privatização e intervieram nas reformas tributária e previdenciária, dentre
outras. Foi nesse contexto, em que o judiciário brasileiro despontava como um ator político novo e
poderoso, desdobrado em comarcas, seções e subseções judiciárias pelo Brasil afora, que se
formou o consenso governativo em torno da necessidade de reforma judicial, a ser realizada em
nome das estratégias do governo para a reforma do Estado.
Desse modo, os debates acerca da reforma do judiciário passaram ao largo de questões
referentes à universalização do acesso ou democratização da justiça. Pior: o discurso acerca da
necessidade de controle público externo sobre a atividade jurisdicional, foi reduzido ao aspecto
político institucional e materializado na criação do Conselho Nacional de Justiça16, sustentado em
uma forte campanha de descrédito das instituições judiciárias, pela exploração midiática de
inúmeras irregularidades e processos de corrupção no interior dos tribunais.
O resultado é que a estrutura rígida e hierárquica do judiciário brasileiro não foi alterada e pouco
se avançou em temas que pudessem induzir o surgimento de uma cultura jurídica crítica, tais
como os modelos de recrutamento e selecção dos magistrados. Ao contrário, reafirmou-se o
modelo concentrado de justiça que alinha às perspectivas hegemônicas de reforma, assente
16
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem, atualmente, competência precípua de governo do judiciário e assume, por vezes, a
condição de órgão propositor e executor de políticas públicas de justiça (SANTOS, 2007). Contudo, dada a autonomia
administrativa e financeira dos tribunais estaduais, cada um deles possui regras próprias de ocupação dos cargos de direção
administrativa, no âmbito dos quais o governo e a gestão do judiciário se realiza autonomamente, em cada estado-membro da
federação.
12
naquele arquétipo judicial da modernidade ocidental, fundado em uma teoria da separação dos
poderes que conformou a organização do poder político de modo a neutralizar o judiciário17.
Também os modelos de governo e gestão instituídos a partir da reforma espelham, em grande
medida, as exigências de neutralidade, tipicamente liberal, como base da legitimidade dos
tribunais. Em contrapartida, as mutações na sociedade, designadamente pela complexificação
das relações sociais, que colocam os tribunais diante de um conjunto novo de desafios,
convocam a necessidade de estarem eles aptos a resolver conflitos que envolvem questões de
princípios, problemas que são, fundamentalmente, políticos.
A busca por novos modelos estruturais, e de governo e gestão dos tribunais é parte integrante de
um desafio mais amplo, qual seja, a construção de um sistema integrado de resolução de litígios
que assente na promoção do acesso ao direito pelos cidadãos e permita vencer as barreiras
sociais, econômicas e culturais que obstem à sua resolução. No interior de um sistema integrado
de resolução de conflitos sociais, construído pelos esforços conjugados de Estado e sociedade
civil, a pluralidade de mecanismos alternativos de resolução de litígios, pode tanto consistir em
alternativas aos tribunais judiciais, resolvendo litígios que os tribunais também dirimem, ou em
seu complemento, para litígios que nunca chegariam aos tribunais, ou, ainda, em seu substituto,
quando se verifica a transferência de competências de resolução de litígios dos tribunais para
estes meios.
O que importa é que a terceira parte escolhida pelo cidadão para resolver o seu litígio não lhe
deve ser imposta pelas estruturas sociais, mas ao contrário, deve corresponder ao meio mais
acessível, próximo, rápido e eficiente de tutela dos seus direitos. Um tal sistema integrado de
resolução de litígios demanda a conformação de uma política pública de justiça que inclui os
tribunais judiciais e o denominado pluralismo jurídico18, isto é, que reconhece também aos meios
não judiciais que o Estado e a sociedade geral, informalmente ou formalmente, legitimidade para
dirimir litígios.
17
Sobre a neutralização política do judiciário no Estado Liberal ver Campilongo, 1994; Ferraz Jr., 1994. 18
Alinhados a Boaventura de Sousa Santos propomos uma concepção de pluralidade de ordens jurídicas que se contrapõe à
tendência romântica de grande parte do pensamento jurídico pluralista para equiparar todas as ordens jurídicas existentes numa
determinada unidade geopolítico e, portanto, negar o primado do direito estatal nas formações sociojurídicas modernas. Entende-
se que a pluralidade de ordens jurídicas em circulação na sociedade hoje é mais complexa do que nunca, considerando que ao lado
das ordens jurídicas locais e nacionais estão a surgir ordens jurídicas supranacionais que interferem de múltiplas formas com as
anteriores. Trata-se de imperativos jurídicos concebidos pelos estados hegemônicos, por agências financeiras multilaterais ou por
poderosos atores transnacionais (empresas multinacionais), sobretudo na área económica, e impostos globalmente, principalmente
a países periféricos e semiperiféricos do sistema mundial. Não pressupõe, ademais, que haja algo de intrinsecamente bom,
democrático e progressista ou emancipatório no pluralismo jurídico. É preciso estar atento para o fato de que há ordens jurídicas
não estatais que são mais despóticas do que a ordem jurídica estatal do país em que operam e que, por isso, a ideia de pluralidade
jurídica não tem um conteúdo fixo. O valor despótico ou democrático de determinada ordem jurídica está relacionado não só com
a posição do país no sistema mundial, mas também com as especificidades históricas da construção ou da transformação do
Estado.
13
Nas palavras de Commaille (2009:97): “A justiça enquanto instituição encontra-se confrontada
com a obrigação de se submeter às contingências e admitir que são os agentes inscritos nos
territórios específicos que determinam uma definição dos problemas e uma nova coordenação
das instituições públicas”. A territorialidade, no seu sentido pleno, diz com a adaptação da
resposta judicial aos lugares e às pessoas, tendo em conta às funções a que os tribunais são
chamados a exercer no interior de um sistema integrado de justiça.
Entretanto, as regras definidoras das jurisdições e repartição das competências são, elas
mesmas, um importante fator de seletividade e conformação da litigância processual. A
modificação dessas regras implica, por vezes, que um número imenso de casos possa ser
transferido de uns tribunais para outros, para mecanismos alternativos de resolução de litígios
judiciais, ou, ainda, para outras vias de resolução dos casos que não o recurso aos tribunais.
Existe, portanto, uma tensão inevitável entre o critério idealizado da seleção e repartição na
entrada dos processos no sistema judicial e as funções que os tribunais são chamados a exercer,
nas sociedades contemporâneas.
III. Geografia da Justiça a partir da análise de mapas: inclusões e exclusões estruturais
A organização interna dos tribunais brasileiros é fixada pelos próprios tribunais, em seus
respectivos Regimentos (art. 96, I, a, da CRFB /88), considerando-se, no caso da justiça estadual,
a estrutura fundamental estabelecida nas respectivas Constituições Estaduais, bem como nos
Códigos de Organização e Divisão Judiciária de cada estado-membro. Isso porque os estados-
membros possuem competência para organizar seu respectivo sistema judiciário (art. 125 da
CRFB/88), observados os princípios comuns inscritos na Constituição da República. O modelo
fornecido pela CRFB/88 compreende a existência de um Tribunal de Justiça em cada estado-
membro, com competência definida na respectiva Constituição estadual, e organização e divisão
judiciária baseada em comarcas, que podem abranger um ou mais municípios19.
Portanto, para efeitos da administração da Justiça Comum Estadual20, o território de cada estado-
membro da federação é dividido em Comarcas, as quais estão distribuídas de forma desigual pelo
território. É nas comarcas que se encontram os principais serviços jurisdicionais
institucionalizados e profissionalizados. Os demais distritos, subdistritos e divisões administrativas
criadas em cada estado-membro estarão vinculados a determinada comarca, situada em um
19
No âmbito das Comarcas pode haver apenas uma vara, com competência ampla para todas as matérias, ou várias varas,
especializadas por matéria (Varas Cíveis, Criminais, de Execução Penal, do Tribunal do Júri, de Família, de Sucessões, de
Falências e Concordatas, Agrárias, da Fazenda Pública e os Juizados Especiais, para causas de menor complexidade). 20
A justiça comum estadual é a grande “porta de entrada” do judiciário brasileiro. Embora possua competência residual é na
justiça comum que a maior parte dos conflitos sociais cotidianos, caso juridicizados, vai encontrar acolhida. As justiças
especializadas (Trabalho, Eleitoral e Militar) têm a competência definida em razão da matéria. Já a justiça federal comum, grosso
modo, julga os casos que envolvem os interesses da União Federal.
14
município “sede”. Os municípios, portanto, são considerados “sede de comarca”, para os fins aqui
pretendidos, quando possuem algum serviço jurisdicional institucional profissionalizado.
As leis estaduais de organização e divisão judiciárias determinam os limites geográficos de cada
comarca. Nessas leis são definidos os critérios e requisitos para que os municípios sejam
considerados sede de comarcas. Designadamente, nos estados-membros analisados os
critérios/requisitos são os que seguem.
Quadro 1: Critérios e Requisitos para a criação de comarcas judiciais, por Estado-membro da Federação
Estados
Requisitos para criação de Comarcas
População e
Eleitorado
Movimento Forense
(anual) Receita Tributária Municipal
Minas Gerais 18 mil habitantes;
3 mil eleitores 400 feitos judiciais --
Pernambuco 20 mil habitantes;
6 mil eleitores 300 feitos judiciais
Igual a exigida para a criação
de municípios
Rio Grande do Sul 20 mil habitantes;
5 mil eleitores 300 feitos judiciais
Igual a exigida para a criação
de municípios
Fonte: Código de Organização e Divisão Judiciária de Minas Gerais, Pernambuco e Rio Grande do Sul
Não há grande variação. Atende-se ao volume populacional (e amplitude do eleitorado), e ao
volume de processos, a indicar a movimentação forense anual. Em Pernambuco e no Rio Grande
do Sul considera-se, ainda, a receita tributária municipal. Os critérios legais não condizem com
um modelo de justiça de proximidade: não há qualquer indicador que aponte para a idéia de que
a justiça participa da noção de espírito público, o que justificaria a existência de jurisdição (com a
correlata estrutura burocrática) mesmo nas pequenas aglomerações populacionais,
exemplarmente.
Ao contrário, os critérios básicos de organização da justiça estadual nos estados deixam antever
a preocupação com a racionalização econômica do sistema de justiça, otimizando, de um ponto
de vista quantitativo, a atividade das várias jurisdições, para evitar a existência de jurisdições sem
processo. Daí porque a implantação de uma determinada comarca demande um volume mínimo
de feitos judiciais anuais, mas não haja qualquer referência na lei acerca do tipo de feito, da
natureza do litígio. Tampouco há referência legal a existência (ou não) de outras instâncias de
resolução de conflitos (igrejas, associações de bairro, profissionais da área do direito, da saúde,
assistentes sociais). Não há, por fim, referência à necessidade de análises de tipo socio-
econômico antes da instauração de uma comarca judicial ou um tribunal.
15
Considerando o número total de municípios de cada um dos estados-membros e, observando os
critérios legais para implementação de comarcas judiciais, observa-se que em Minas Gerais e no
Rio Grande do Sul menos da metade dos municípios são sede de Comarca. As estruturas
permanentes de prestação jurisdicional estatal, formal, profissionalizada, estão alocadas da
seguinte forma: dos 853 municípios mineiros, apenas 320 são sede de comarca (38% do total); e
dos 496 municípios gaúchos, apenas 164 são sede de comarca (33% do total).
Mapa 1: Organização Judiciária: Minas Gerais Mapa 2: Organização Judiciária: Rio Grande do Sul
Fonte: IBGE e COJE Fonte: IBGE e COJE
Em Pernambuco a realidade é outra: dos 185 municípios pernambucanos, 152 são sede de
comarca, o que equivale a 82% do total.
Mapa 3: Organização Judiciária: Pernambuco
Fonte: IBGE e COJE
A primeira observação que pode ser feita, em um esforço analítico exploratório, com objetivo de
identificar as questões, as tensões e as possíveis soluções acerca da organização judiciária no
Brasil, é que, embora os critérios normativos para instalação das comarcas judiciais não variem
substancialmente de um estado-membro para outro, na prática, o Poder Judiciário não está
16
organizado de forma igual no território, que, por sua vez, também não é estruturado
homogeneamente.
A miopia sócio-econômica que permeia o modelo de organização judiciária no Brasil resulta em
inevitáveis e sistemáticas exclusões de atores e demandas se impõem, de modo que nem todos
os conflitos sociais, econômicos e políticos que têm lugar no território são processados pelo
Poder Judiciário, e tampouco são canalizados pelo Estado para vias alternativas de resolução de
conflitos sociais.
Por outro lado, quando efetuamos o cruzamento de um dos critérios normativos para instalação
de comarcas – densidade populacional – e a distribuição dos municípios sede, observamos que
em aproximadamente 40% dos casos a população do município sede de comarca é atualmente
menor do que a exigida em lei para a referida instalação da comarca.
Em Minas Gerais, 37,5% dos municípios sede de comarca têm, atualmente, população inferior ao
que é exigido por lei para sua instalação, o que corresponde a 120 municípios.
No Rio Grande do Sul, pouco mais de 37% dos municípios sede de comarca têm, atualmente,
população inferior ao exigido por lei para sua instalação, o que corresponde a 61 municípios.
Mapa 4: Sede de Comarca X População (MG) Mapa 5: Sede de Comarca X População (RS)
Fonte: IBGE e COJE
Em Pernambuco a realidade não é muito diferente: 37,5% dos municípios sede de comarca têm,
atualmente, população inferior ao exigido por lei para a sua instalação.
17
Mapa 6: Sede de Comarca X População (PE)
Fonte: IBGE e COJE
Os dados apontam, mais uma vez, para a inadequação dos critérios legais. Em primeiro lugar
porque ainda que se considere acertada a verificação de uma densidade populacional mínima
para a instalação de uma comarca, na linha de um processo de racionalização da prestação
jurisdicional, é preciso ter em conta fenômenos de mobilidade populacional.
Em segundo lugar, assumindo agora pressupostos de uma justiça de proximidade, deve-se
considerar que se a justiça participa da vida social deve haver jurisdição efetiva mesmo nas
pequenas aglomerações populacionais, ainda que ela não seja directamente prestada pelo
Estado, via judiciário.
Por fim, ao relacionar a divisão judiciária com variáveis empíricas que diagnosticam a
desigualdade entre a população, medida pelo Índice de Desenvolvimento Humano – IDH,
observamos a inadequação flagrante dos critérios legais estabelecidos21.
Quadro 2: Intervalos do Índice de Desenvolvimento Humano por estado-membro
UF/Intervalos
IDH 2000
Intervalo 1
Max.-Min.
(cor azul)
Intervalo 2
Min.
(cor verde)
Intervalo 3
Min.
(cor amarelo)
Intervalo 4
Min.
(cor laranja)
Intervalo 5
Min.
(cor vermelho)
Minas Gerais 0,841-0,77 0,744 0,708 0,668 0,568
Rio Grande do Sul 0,87-0,817 0,798 0,777 0,754 0,666
Pernambuco 0,862-0,669 0,633 0,604 0,581 0,467
Fonte: PNUD (Atlas do Desenvolvimento Humano, 2000)
21
O IDH, ainda que não seja o melhor índice possível para determinar a distribuição da desigualdade no território, é o mais
utilizado. Foram utilizados diferentes intervalos de IDH (respeitando as particularidades de cada Estado), os quais foram medidos
a partir de uma distribuição estatística (quintil), que dividiu os municípios em um conjunto ordenado de IDH em cinco partes
iguais. Assim, a distribuição do IDH corresponde à realidade de cada Estado, sendo o primeiro intervalo correspondente aos 20%
de munícipios com IDH mais alto no Estado e o quinto intervalo corresponde aos 20% dos municípios com IDH mais baixo no
Estado.
18
Na confecção dos mapas, cada intervalo foi relacionado a uma cor específica, de modo que os
mapas têm uma mesma identidade visual. A distribuição a partir do quintil possibilitou analisar, na
comparação com a divisão judiciária, se há ou não variação na distribuição do IDH.
Ou seja, tendo uma distribuição igual em cinco partes no IDH nos municípios, pode-se observar
se essa distribuição sofre alguma variação quando filtramos pela divisão judiciária (municípios
sede de comarcas e municípios não sede), e com isso verificar se há alguma relação entre a
desigualdade social (medida pelo IDH) e a ausência ou presença de estruturas jurídicas (divisão
judiciária).
Para isso, foram feitos, para cada Estado, dois mapas que correspondem: ao IDH somente das
sedes; e ao IDH somente dos municípios não sede. Do total de municípios sede de comarca, em
Minas Gerais, 62% possuem IDH alto (Mapa 7, à esquerda), enquanto do total de municípios não
sede de comarca , apenas 25% possuem alto IDH (Mapa 7, à direita).
Mapa 7: Minas Gerais - Organização Judiciária X Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)
Municípios Sede de Comarca Municípios Não-Sede de Comarca
Fonte: PNUD (Atlas do Desenvolvimento Humano, 2000)
Do total de municípios sede de comarca, no Rio Grande do Sul 52% possuem IDH alto (Mapa 8, à
esquerda), enquanto do total de municípios não sede de comarca , apenas 29% possuem alto
IDH (Mapa 8, à direita).
19
Mapa 8: Rio Grande do Sul - Organização Judiciária X Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)
Municípios Sede de Comarca Municípios Não-Sede de Comarca
Fonte: PNUD (Atlas do Desenvolvimento Humano, 2000)
Do total de municípios sede de comarca, em Pernambuco, 42% possuem IDH alto (Mapa 9, à
esquerda), enquanto do total de municípios não sede de comarca , apenas 24% possuem alto
IDH (Mapa 9, à direita).
Mapa 9: Pernambuco - Organização Judiciária X Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)
Municípios Sede de Comarca Municípios Não-Sede de Comarca
Fonte: PNUD (Atlas do Desenvolvimento Humano, 2000)
O que se observa, ao contrastar a divisão judiciária com o indicador de desigualdade no território
dos estados-membros analisados é que as estruturas permanentes do poder judiciário se
concentram, sobremaneira, nos municípios com melhores índices de desenvolvimento,
reforçando, portanto, o modelo de distribuição desigual de acesso aos bens e serviços públicos,
no interior dos territórios.
20
Por outro lado, ainda que tomemos como dado o modelo concentrado de organização judiciária e
assumamos a impossibilidade de estender a todos os mais longínquos povoados brasileiros a
estrutura física do poder judiciário, lotando, pelo menos, um juiz em cada município, seria
fundamental, mesmo dentro da lógica da delegação, que a Defensoria Pública se fizesse
presente, considerando sua missão institucional de garantir assistência jurídica integral, gratuita,
judicial e extrajudicial, aos mais necessitados, prestando-lhes a orientação e a defesa em todos
os graus e instâncias, de modo coletivo ou individual, priorizando a conciliação e a promoção dos
direitos humanos.
A partir da Emenda Constitucional n° 45, de 2004, as Defensorias Públicas estaduais ganharam
autonomia funcional e administrativa. Cada estado-membro da federação é responsável por lei
que dispõe sobre sua organização, desde que em consonância com a lei complementar n° 80, de
2004, recentemente alterada. Segundo a lei estadual complementar 65/2003, que dispõe sobre a
organização da Defensoria no Estado de Minas Gerais, “é obrigatória a instalação de Defensoria
Pública em todas as comarcas do Estado” (art. 41).
No entanto, podemos observar (Mapas 10 e 11) que ainda é baixa a presença de Defensoria
Pública nos municípios mineiros, e que sua distribuição não atende especificamente à
obrigatoriedade citada. Em Minas Gerais, apenas 399 municípios contam com serviços da
Defensora Pública, o que representa 47% do total dos municípios mineiros (em verde).
Mapa 10: Defensoria Pública em Minas Gerais – distribuição no território
Fonte: IBGE e Legislação Estadual
Ademais, a Defensoria Pública mineira está presente em 195 das 320 comarcas do estado, o que
representa 61% dos municípios sede de comarca (à esquerda, mapa 11). Considerando os
municípios não-sede de comarca o percentual cai para 38%, com apenas 204 municípios que
21
contam com estrutura da defensoria (à direita, mapa 11).
Mapa 11: Defensoria Pública em Minas Gerais X Divisão Judiciária
Municípios Sede de Comarca Municípios Não-Sede de Comarca
Fonte: IBGE e Legislação Estadual
Isso indica, mais uma vez, a inadequação dos parâmetros legais de organização judiciária à
realidade territorial. A situação de Minas Gerais é exemplar. Do total de 853 municípios mineiros:
329 municípios não possuem instalações permanentes do judiciário (fórum) e nem Defensoria Pública, o que representa 38,5% do total de municípios mineiros;
204 municípios não possuem instalações permanentes do judiciário, mas contam com Defensoria Pública, o que representa 23, 9% do total de municípios mineiros;
125 municípios possuem instalações permanentes do judiciário, mas não contam com Defensoria Pública, o que representa 14,6% do total de município mineiros;
195 municípios, apenas, possuem instalações permanentes do judiciário e também contam com a presença da Defensoria Pública em seu território, representando 22,8% do total de municípios mineiros.
Ademais, ao filtrarmos a presença da Defensoria Pública no território de Minas Gerais pelo IDH
dos municípios mineiros, observamos situação muito similar a que já havíamos constatado no
caso da divisão judicial, isto é, existe uma concentração da presença da instituição nos
municípios que apresentam os mais altos níveis de IDH.
Do total de municípios que possuem Defensoria Pública instalada, 45% possuem índices de
desenvolvimento humano elevados para os parâmetros estaduais (nível de IDH no primeiro e
segundo intervalos - cores azul e verde, no Mapa 13).
22
Mapa 13: Defensoria Pública em Minas Gerais X Índice de Desenvolvimento Humano
Fonte: IBGE e PNUD (2000)
Esse mapa se assemelha àquele dos municípios sede de comarcas (Mapa 7), apesar da relação
entre a desigualdade social e presença de Defensoria Pública ser menos intensa do que aquela
encontrada entre a desigualdade social e a divisão judiciária. Essa relação, no entanto, se
intensifica quando dividimos a presença e/ou ausência de Defensoria Pública entre os municípios
sede de comarcas e municípios não sede de comarcas, conforme se observa do Quadro 3.
Quadro 3: Distribuição do IDH entre Sede de Comarcas e Não Sede de Comarcas e existência de Defensoria
Pública
Municípios/IDH Sede de Comarca Não-sede de Comarca
Com Defensoria Sem Defensoria Com Defensoria Sem Defensoria
Intervalo 1 96(49%) 28(22%) 9(4%) 36(11%)
Intervalo 2 40(21%) 36(29%) 35(17%) 56(17%)
Intervalo 3 27(14%) 26(21%) 55(27%) 67(20%)
Intervalo 4 17(4%) 15(12%) 57(28%) 77(23%)
Intervalo 5 15(8%) 20(16%) 48(24%) 93(28%)
Fonte: Munic, IBGE(2009) e Lei de Divisão Judiciária do estado de Minas Gerais
Vê-se que dos 336 municípios concentrados nos intervalos 1 e 2 (altos índices de IDH para os
parâmetros estaduais), apenas 136 possuem tanto estruturas permanentes do judiciário quanto
defensorias públicas (40,5%). Por outro lado, dos 342 municípios concentrados nos intervalos 4 e
5 (baixos índices de IDH para os parâmetros estaduais), apenas 32 possuem instalações
permanentes do judiciário e da defensoria pública (9.35%).
23
Ademais, dentre os municípios com maiores índices de desenvolvimento humano (Intervalos 1 e
2), 92 não possuem nem fóruns nem defensoria pública (27.3%). Ao analisarmos os municípios
concentrados nos intervalos 4 e 5 (baixos índices de IDH para os parâmetros estaduais) esse
número sobe para sobe para 170 municípios (49,7%). Pode-se, portanto, concluir que as
variáveis sede de comarca com Defensoria Pública e não sede de comarca sem Defensoria
Pública reforçam as análises realizadas na relação entre a desigualdade social (medidas pelo
IDH) e a ausência ou presença de estruturas administrativas do sistema de justiça (verificada pela
divisão judiciária).
Designadamente, no caso das Defensorias Públicas, pode-se mesmo afirmar que quanto maior o
IDH, maior a presença de Defensorias Públicas e quanto menor o IDH menor a presença de
Defensorias Públicas. Além disso, a associação entre a presença de Defensorias Públicas e
municípios sede de comarcas faz intensificar a relação entre altos índices de desenvolvimento
econômico e a presença de estruturas administrativas do sistema de justiça.
Reflexões Finais
As transformações pelas quais passaram Estado, sociedade e o sistema económico induziram
uma explosão de litigiosidade que evidenciou as dificuldades de oferta da prestação jurisdicional
diante desse novo contexto social e suscitou debates em torno das questões da eficácia,
eficiência e acessibilidade do sistema de justiça.
As respostas, que em geral têm incluído reformas processuais, reaparelhamento dos tribunais, no
que diz respeito aos recursos humanos e de infra-estrutura, indistintamente, criação de tribunais
especializados e informatização e autonomização da justiça, além da aposta em soluções
alternativas ao modelo formal e profissionalizado da justiça, e reformas de organização e gestão
da administração da justiça, passaram a constituir uma das principais apostas das agendas de
reforma em vários países, inclusive no Brasil.
No âmbito destas medidas de caráter organizacional, a redefinição dos territórios da justiça e da
estrutura da organização judiciária constituem questões centrais do debate sobre o sistema de
administração da justiça, induzidas pelo descompasso entre o processo de desenvolvimento
sócio-econômico e de mutação do território que provocam profundas assimetrias na busca pela
prestação jurisdicional. No entanto, tais questões parecem ter passado ao largo do debate que
culminou com a reforma do judiciário no Brasil, que teu seu marco institucional na Emenda
Constitucional 45/2004.
24
Em verdade, a opção pela continuidade ou ruptura com os atuais modelos organizacionais e
territoriais da justiça depende, desde logo, da resposta política que se der à pergunta sobre se
quer-se manter ou não a atual matriz judicial em que a comarca constitui a unidade de referência
ou, ao contrário, se quer-se procurar outros patamares territoriais, através da reorganização mais
eficaz dos meios auxiliares da justiça, da introdução de novos mecanismos de administração e
gestão dos recursos humanos e materiais e da especialização dos órgãos judiciais de modo a
possibilitar um tratamento diferenciado dos litígios.
Mais: é preciso definir uma política pública de justiça que não dependa tanto dos tribunais, mas,
ao contrário, assente em um sistema integrado de resolução de litígios, ampliando os
mecanismos extrajudiciais. A agenda estratégica de reforma do sistema de justiça precisa incluir,
em suas linhas mestras, a criação de uma nova cultura judiciária, o que passa, necessariamente,
pelo desenvolvimento de um novo modelo de seleção e formação dos operadores do direito, em
especial, dos magistrados.
Trata-se, em síntese, de romper com a ilusão de que o estatuto do direito e da justiça dependem
apenas de uma política voluntarista por parte dos atores em causa, desvendando, antes de tudo,
as determinantes sociais e políticas da atividade jurídica e judicial (Commaille, 2009). Assumir um
modelo de justiça de proximidade significa, justamente, adaptar a resposta judicial aos lugares e
às pessoas, e demanda, antes de tudo, uma articulação entre os Estados e a sociedade civil, que
passa pela redefinição das funções daquele que assume, pelo incentivo às ações públicas de
justiça, a posição de parceiro da comunidade na consagração dos ideais de justiça social.
Uma justiça de proximidade abrange, pelo menos, dois movimentos fundamentais, dos conjuntos
de práticas: um referente à problemática da delinquência e da insegurança, e, outro, que põe
acento no tratamento dos pequenos litígios entre os particulares. As exigidas proximidades,
capazes de atenuar o cenário de desterritorialização da justiça, implicam em mudanças
institucionais, designadamente pela revisão dos critérios para implementação das comarcas e
outros serviços administrativos de justiça (desde delegacias, até postos da defensoria pública e
ministério público, além dos juizados especiais). Mas não é só.
O Estado deve encarar a si próprio como um componente do sistema integrado de resolução de
litígios, reconhecendo legitimidade e incentivando a preservação e proliferação dos mecanismos
não judiciais de resolução de conflitos sociais. Reconhecida pelo Estado uma política pública de
justiça que inclui os tribunais e o denominado pluralismo judicial, deve-se promover, antes de
tudo, uma proximidade geográfica, fazendo com que a divisão judiciária melhor acompanhe a
evolução sócio-demográfica da população. É preciso, ainda, promover uma proximidade humana,
25
que coloca em primeiro lugar a escuta, a preocupação em compreender, em restabelecer uma
relação não somente entre a justiça e os cidadãos, mas também entre o agressor e sua vítima.
No âmbito penal, a pequena infração é convertida em conflito e, regulado por um terceiro neutro
disposto mais a (re)aproximar as partes do que aplicar a sansão. A mediação penal ou
comunitária pode ser um instrumento eficaz e a presença de um árbitro com habilidade para
escuta e conciliação, mais do que dotado de grande conhecimento técnico-jurídico, é
fundamental. Na seara cível, destaca-se a preocupação em oferecer um tratamento judicial
renovado aos litígios da vida cotidiana, incrementando a conciliação e, assim, a escuta dos
jurisdicionados. Aí a proximidade humana é, sobretudo, uma proximidade processual, pois,
obedecendo a regras processuais simples e propiciando a conciliação e escuta das partes, a
jurisdição de proximidade concorre para dissolver a imagem, por vezes disseminada entre os
jurisdicionados, de uma justiça opaca e complexa.
Por fim, é fundamental a concretização de uma proximidade temporal, isto é, é preciso responder
ao crescimento da pequena delinquência não apenas diferentemente, mas também rapidamente,
lutando contra o sentimento de impunidade dos infratores e de abandono das vítimas. No âmbito
cível, trata-se, antes de tudo, de arejar os órgãos de primeira instância, sobrecarregados, em
particular pelos contenciosos civis de massa, podendo haver recurso à transferência de
contenciosos a juízes não profissionais ou cidadãos legitimados pela comunidade, buscando
oferecer um tratamento judicial renovado aos litígios da vida cotidiana.
No Brasil, inúmeros mecanismos de proximidade são previstos pela legislação e outros tantos
órgãos da administração pública possuem funções essencialmente jurisdicionais, de modo que,
em boa medida, democratizar o acesso à justiça é revestir de eficácia esses mecanismos e fazer
atuar esses órgãos. Designadamente a Defensoria Pública, o Ministério Público, os Juizados
Especiais, as Varas Especializadas nos Tribunais, os Tribunais de Arbitragens e ainda, os
projetos e programas de Conciliação, Mediação e Arbitragem, que são reeditados
sistematicamente pelos tribunais, os multirões em matéria penal, a justiça itinerante, dentre tantos
outros.
Por outro lado, a utilização e funcionamento eficaz desses mecanismos e órgãos públicos
dependem, sobretudo, da prévia ruptura com a ideia de que o direito e a justiça dependem
apenas de uma política voluntarista por parte dos atores em causa, e subsequente assunção de
que essa é uma questão que resulta de uma abordagem que deve levar em conta, quer as ações
das instituições públicas, quer as de múltiplos agentes, públicos ou privados, tanto da sociedade
civil como da esfera governamental, atuando conjuntamente, em múltiplas interdependências, par
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produzir formas de regulação das atividades coletivas. É, portanto, considerando que toda
sociedade minimamente complexa possui à disposição dos litigantes um conjunto mais ou menos
numeroso de mecanismos de resolução de litígios, dentre os quais os tribunais ocupam um lugar
cada vez mais central, é que se constitui o nosso sentimento no sentido de que é preciso rever os
critérios fundamentais de organização do judiciário brasileiro, adequando-os aos fatores sociais,
econômicos, políticos e jurídico-institucionais.
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