Núcleo Especializado da Infância e Juventude
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO EGRÉGIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
HABEAS CORPUS COLETIVO – DECISÃO ADMINISTRATIVA ILEGAL
IMPETRANTE: DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO
PACIENTES: ADOLESCENTES DOMICILIADOS OU QUE SE ENCONTREM EM CARÁTER
TRANSITÓRIO NA COMARCA DE URÂNIA/SP
IMPETRADO: JUÍZO DA COMARCA DE URÂNIA
A DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, por seu Núcleo
Especializado da Infância e Juventude, pelos Defensores Públicos subscritores, agindo
nos termos do artigo 134 da CF c/c. o artigo 5º, inciso III, da LC nº 988/2006, vem à
presença de Vossa Excelência impetrar
HABEAS CORPUS COLETIVO
em favor de adolescentes que sejam apreendidos pela suposta prática de ato
infracional na Comarca de Urânia/SP, contra decisão administrativa proferida pelo
Juízo da Vara Única da Comarca de Urânia, nos autos do processo administrativo nº
0000165-54.2020.8.26.0646, pelos fatos e fundamentos jurídicos a seguir aduzidos.
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1. DOS FATOS
No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS)
classificou como pandemia a disseminação da contaminação pela COVID-19, doença
causada pelo novo Coronavírus.
Em decorrência disso e com o aumento do número de casos no Brasil, foi
declarada Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN),
materializada na Portaria nº 188/2020 do Ministro de Estado da Saúde.
O Decreto Estadual nº 64.862/2020, do Governador João Doria,
reconheceu tal situação e adotou medidas temporárias e emergenciais de prevenção
de contágio, dentre elas suspensão de aulas e eventos, evitando-se a aglomeração de
pessoas, que foi alterado pelo Decreto Estadual nº 64.864/2020.
No dia 21 de março de 2020, foi publicado o Decreto Estadual nº 64.879,
do Governador João Doria, que reconhece o estado de calamidade pública decorrente
da pandemia do Covid-19.
A situação trazida pela pandemia é multifacetária, trazendo reflexos graves
não só na esfera da saúde, mas também social, econômica, trabalhista, afetando a
todos, incluindo-se as crianças e os adolescentes.
E, nesses termos, este Egrégio Tribunal não foi alheio à questão, editando
uma série de atos normativos com o intuito de adequar a prestação jurisdicional à
atual situação, buscando a garantia de direitos, sem aumentar o risco de transmissão
comunitária do vírus.
Assim, o Conselho Superior da Magistratura editou uma série de normas,
notadamente os provimentos CSM nº 2546/2020, 2549/2020 e o comunicado nº
47/2020, a respeito do funcionamento do Poder Judiciário em primeira instância e
sobre as medidas socioeducativas em cumprimento no Estado de São Paulo.
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No mesmo sentido, o Conselho Nacional de Justiça editou a Recomendação
nº 62/2020, a respeito da “adoção de medidas preventivas à propagação da
infecção pelo novo coronavírus – Covid-19, no âmbito dos sistemas de justiça
penal e socioeducativo”.
Por fim, o Conselho Nacional do Ministério Público editou a Recomendação
nº 71/2020, recomendando a não realização, pelos/as Promotores/as de Justiça, da
oitiva informal, utilizando-se, para decisão acerca da representação ou não de
adolescente, das peças de informação existentes.
Desse modo, fica claro que as autoridades do Sistema de Justiça vêm
empreendendo esforços para adequar, provisoriamente, sua atuação, de modo a
evitar a majoração na transmissão do Coronavirus, mas, evidentemente, sem violar
direitos e garantias fundamentais ou normas expressas da legislação processual.
No entanto, em 09 de abril de 2020, a partir de Ofício encaminhado pelo
Comandante da 2ª Companhia de Polícia Militar de Jales/SP, o Magistrado da Vara
Única de Urânia/SP, através de uma decisão administrativa, concedeu autorização para
que, durante o período de isolamento social:
“1) Caso haja notícia da ocorrência de ato infracional, ou algum
adolescente seja surpreendido na prática de ato infracional,
com o fim de evitar a condução dos adolescentes nas viaturas,
e para evitar o contato dos adolescentes envolvidos com
quaisquer outras pessoas, os Policiais Militares devem sempre
buscar formas alternativas de colocar o adolescente em
contato com a Autoridade Policial competente, por meio de
vídeos chamadas por exemplo, priorizando que este exerça o
juízo de valor quanto a situação, a gravidade do fato e
necessidade de encaminhamento do adolescente ou liberação
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para os pais ou responsáveis. E ainda, caso haja necessidade
de perícia, devem preservar o local dos fatos e contatar a
Autoridade Policial, para que este requisite a presença do
perito, sem a necessidade de encaminhamento do adolescente.
2) Sem prejuízo, não havendo dúvidas, se o ato infracional for
cometido sem violência real ou presumida, ou grave ameaça à
pessoa, mesmo que em situação flagrancial, desde que haja o
comparecimento dos pais ou responsáveis legais no local, a
Polícia Militar deverá elaborar o Boletim de Ocorrência
Circunstanciada, nos termos descritos, no item 2.5 do ofício,
com a versão completa do adolescente acerca dos fatos,
colhida na presença do responsável legal, com informações
sobre a moradia, matrícula escolar, informações quanto a
testemunhas, que devem ser devidamente qualificadas, e
poderá liberar o adolescente sem a necessidade de seu
encaminhamento a Autoridade Policial. Referido Boletim de
Ocorrência da PM deverá ser encaminhado por e-mail para este
Juízo da Infância e Juventude da Comarca, com cópia, no
mesmo e-mail, para a Delegacia de Polícia responsável, para
que a Autoridade Policial competente determine a realização
das diligências e investigações necessárias, inclusive eventuais
requisições de perícias.
3) Se cometido com violência real ou presumida, ou grave
ameaça à pessoa (casos previstos no artigo 122 do Estatuto da
Criança e Adolescente, em que é cabível a apreensão e
internação do adolescente), e ainda, se se tratar de ato
infracional equiparado ao delito de tráfico de entorpecentes
(tendo em vista que nos termos da Súmula 492 do Superior
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Tribunal de Justiça, cabível a apreensão e internação mesmo
que não haja violência), ou ainda, se pelas circunstâncias
houver dúvida quanto a natureza do ato infracional, o
adolescente deverá ser encaminhado a Autoridade Policial, que
é responsável pelo juízo de valor, quanto a gravidade do ato
infracional e sua repercussão social, para decidir se o
adolescente será apreendido ou liberado aos pais.
4) Como já explícito acima, as requisições de eventuais perícias
ao Núcleo de Criminalística e Instituto Médico Legal, devem ser
feitas pela Autoridade Policial competente. A presente
Autorização tem validade somente enquanto perdurar a
determinação de quarentena e isolamento social no Estado de
São Paulo, como medidas de contenção da disseminação do
novo coronavírus, causador da pandemia de Covid-19.
Encaminhe-se cópia da presente Decisão-Ofício ao Comandante
da 2ª CIA da Polícia Militar de Jales, ora requerente, bem como
a OAB local.”
Em suma, verifica-se que o Juízo de Urânia, por meio de decisão
administrativa, concedeu à Polícia Militar prerrogativas alheias a tal órgão,
subvertendo completamente não só o processo legalmente estabelecido pelo Estatuto
da Criança e do Adolescente, mas a própria divisão de atribuições trazidas na
Constituição Federal e na Constituição do Estado de São Paulo, além de ter
estabelecido procedimento diverso dos estabelecidos por este Tribunal de Justiça e
pelo Conselho Nacional de Justiça, tudo isso em prejuízo dos/as adolescentes
eventualmente apreendidos na Comarca, que terão seus direitos ao devido processo
legal frontalmente violados.
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2. DA POSSIBILIDADE JURÍDICA DO HABEAS CORPUS COLETIVO
As ações constitucionais, enquanto espécie de garantia constitucional1,
visam conceder proteção e eficácia plena aos direitos fundamentais, guardando
verdadeira relação de interdependência com tais direitos. Assim é, porque, enquanto
os direitos declaram a situação subjetiva particular de seu titular, as garantias, em
especial as ações constitucionais, criam mecanismos para assegurar que o referido
titular usufrua da situação subjetiva declarada.
Nesse passo, como afirma Geisa de Assis Rodrigues2, “é cediço que as
ações constitucionais garantem a existência dos direitos e das liberdades
fundamentais e por isso demandam o mesmo regime constitucional”.
Destarte, o conteúdo e a amplitude do “direito-garantia”3 consubstanciado
em cada uma das ações constitucionais deve ser compreendido de acordo com os
métodos de interpretação/aplicação próprios dos direitos humanos fundamentais.
Aplicam-se, pois, às ações constitucionais, dentre outros, os princípios da
unidade, da máxima efetividade e da concordância prática das normas constitucionais.
Com efeito, de há muito a jurisprudência, visando garantir efetividade
máxima ao direito de livre locomoção, vem interpretando o conteúdo da garantia
constitucional do habeas corpus de modo à, harmonizando-o com os direitos
constitucionais à tutela jurídica efetiva e célere (CF, art. 5º, incisos XXXVI e LXXVIII),
1 Manoel Gonçalves Ferreira Filho, em sua obra Direitos Humanos Fundamentais, 2ª ed., Saraiva, pp. 32/33, fala em três espécies de garantias constitucionais: garantias-limites, garantias-institucionais e garantias-instrumentais, sendo essas últimas correspondentes às ações constitucionais.2 Rodrigues, Geisa de Assis. Reflexões Em Homenagem Ao Professor Pinto Ferreira: As Ações Constitucionais No Ordenamento Jurídico Brasileiro.
3 JÚNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito Constitucional, 4ª ed, Editora Jus Podivm, pp. 617.
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permitir a utilização do chamado habeas corpus coletivo, o qual objetiva resguardar a
liberdade de locomoção de uma coletividade de pessoas que esteja ameaçada ou
vilipendiada de forma homogênea, por ato ilegal ou abusivo, mediante o manejo de
uma única ação constitucional.
Nesse passo, adéqua-se a garantia constitucional/processual do habeas
corpus ao que Mauro Cappelletti e Bryant Garth chamaram de “segunda onda de
acesso à justiça”4, pela qual se propõe justamente a utilização de instrumentos
processuais voltados à tutela de direitos e interesses difusos como meio de romper as
barreiras ao amplo acesso à justiça.
Veja-se, como exemplo de utilização do habeas corpus coletivo para tutela
de direitos de pessoas submetidas à Execução Criminal em um mesmo
estabelecimento, o seguinte julgado:
“HABEAS CORPUS – REGIME SEMIABERTO – INEXISTÊNCIA DE
ESTABELECIMENTO PENAL ADEQUADO – COLÔNIA PENAL –
FORÇOSA A COLOCAÇÃO DOS REEDUCANDOS NO REGIME
MENOS GRAVOSO – DOMICILIAR – ATÉ QUE SEJAM
DISPONIBILIZADAS VAGAS NO LOCAL ADEQUADO NA FORMA
DA LEI DE EXECUÇÕES PENAIS – ORDEM CONCEDIDA A FIM DE
QUE SEJAM COLOCADOS NO REGIME DOMICILIAR TODOS OS
ENCARCERADOS DO REGIME SEMIABERTO QUE CUMPREM
PENA DO PRESÍDIO DE DOIS IRMÃOS DO BURITI. No caso
vertente, a execução da pena no regime que lhes foi designado
– semiaberto - é direito inegociável, e, a inexistência de
estabelecimento penal adequado, não enseja ao Estado a
possibilidade de manter os encarcerados em regime mais
gravoso. Imperativa a colocação em regime domiciliar. Os
4 Obra “Acesso à Justiça”. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, p. 31.
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artigos 91 e 92 da Lei de Execução Penal, especificam o
estabelecimento referente a cada modalidade de cumprimento
de pena, estipulando no caso do regime semiaberto. Doutrina:A
Colônia Penal deve ser “estabelecimento penal de segurança
média, onde já não existem muralhas e guardas armados, de
modo que a permanência dos presos se dá, em grande parte,
por sua própria disciplina e senso de responsabilidade. É o
regime intermediário, portanto, o mais adequado em matéria
de eficiência.” - O Poder Judiciário não pode ser conivente com
o descumprimento da lei pelo Poder Executivo, quando não
providencia os estabelecimentos adequados aos reeducandos,
conforme prevê o ordenamento jurídico.” (TJ/MS – 1ª Turma
Criminal – HC 2009.032499-0/0000-00 – Impet.: DPEMS –
Pacientes: Internos do Presídio de Dois Irmãos do Buriti –
Relato: Des. Dorival Moreira dos Santos – Jul.: 12/01/2010, v.u.)
Ressalte-se, por oportuno, que o cabimento do habeas corpus coletivo
torna-se ainda mais incontroverso quando destinado à resguardar o direito de
locomoção de crianças e adolescentes.
Isso porque, além do princípio da máxima efetividade das normas
constitucionais, bem como dos direitos à efetiva e célere tutela jurisdicional, aplica-se
à tutela jurisdicional da liberdade de ir e vir das crianças e adolescentes o dever de
integral proteção e promoção dos direitos das crianças e adolescentes (CF, art. 227),
o qual permite o reconhecimento de lesão ou ameaça de lesão a tais direitos por
meio de qualquer tipo de ação judicial. Irretocável, quanto ao tema, o disposto no
artigo 212 do ECA, in verbis:
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“Art. 212. Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por
esta Lei, são admissíveis todas as espécies de ações
pertinentes.
Logo, nos moldes do artigo 5º, inciso LXVIII, da CF/88, interpretado em
consonância com o exposto acima, resta inequívoco o cabimento do presente writ,
uma vez que visa defender o direito de locomoção de adolescentes que forem
apreendidos pela suposta prática de ato infracional dentro dos limites da Comarca de
Urânia/SP contra ato judicial que, conforme será exposto a seguir, é inconstitucional,
ilegal e abusivo.
3. DO CONSTRANGIMENTO ILEGAL
O Código de Menores de 1979 trazia em seu bojo a Doutrina da Situação
Irregular, que era calcada na ideia de incapacidade dos menores e no dever de tutela
dos mesmos pelo Estado.
A “situação irregular” dos menores era declarada tanto pela conduta
pessoal destes (caso de infrações), como por atos da família (maus-tratos) ou da
Sociedade como um todo (abandono), e fazia com que fosse atribuída aos mesmos a
condição de “objetos da tutela protetiva do Estado”.
Interessante, para o presente caso, notar a descrição das principais
características da Doutrina da Situação Irregular trazida por João Batista Costa Saraiva,
em sua festejada obra “Compêndio de Direito Penal Juvenil – Adolescente e Ato
Infracional”, Editora Do Advogado, 3ª edição, pág. 24/25:
“Do trabalho de Mary Beloff extraem –se as principais
características da Doutrina da Situação Irregular:
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a-) As crianças e os jovens aparecem como objetos de proteção,
não são reconhecidos como sujeitos de direitos, e sim como
incapazes. Por isso as leis não são para toda a infância e
adolescência, mas sim para os “menores”.
b-) Utilizam-se categorias vagas e ambíguas, figuras jurídicas de
‘tipo aberto’, de difícil apreensão desde a perspectiva do
direito, tais como ‘menores em situação de risco ou perigo
moral ou material’, ou ‘em situação de risco’, ou ‘em
circunstâncias especialmente difíceis’, enfim estabelece-se o
paradigma da ambigüidade.
c-) Neste sistema é o menor que está em situação irregular; são
suas condições pessoais, familiares e sociais que o convertem
em um ‘menor em situação irregular’ e por isso objeto de uma
intervenção estatal coercitiva, tanto ele como sua família.
(...)
e-) Surge a idéia de que a proteção da lei visa aos menores,
consagrando o conceito de que estes são ‘objetos de proteção’
da norma.
f-) Esta ‘proteção’ freqüentemente viola ou restringe direitos
porque não é concebida desde a perspectiva dos direitos
fundamentais.” (g.n.)
Em virtude da mencionada concepção, que enxerga no menor o objeto da
norma protetiva, ele, enquanto ser incapaz, era despido dos direitos mais básicos
concedidos aos adultos, como os direitos à liberdade, a não ser obrigado a fazer ou
deixar de fazer algo senão em virtude de lei, ao devido processo legal, à ampla defesa
etc., ficando a mercê do “prudente arbítrio” das autoridades constituídas.
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É neste contexto que surge o “juiz de menores”, que devia atuar na
“proteção geral dos menores”, para além da lei, como um “bom pai de família”, com
faculdades ilimitadas e onipotentes de disposição e intervenção sobre as famílias e as
crianças, com amplo poder discricionário. Veja-se, nesse sentido, a literal disposição do
artigo 8º do Código de Menores:
“Art. 8º - A autoridade judiciária, além das medidas especiais
previstas nesta Lei, poderá, através de portaria ou provimento,
determinar outras de ordem geral, que, ao seu prudente
arbítrio, se demonstrem necessárias à assistência, proteção e
vigilância ao menor, respondendo por abuso ou desvio de
poder” (g.n.)
Todavia, a experiência de anos sob a égide da doutrina da situação
irregular, fez ver que atuação ilimitada dos órgãos estatais, desconectada com
parâmetros mínimos de direitos a serem compulsoriamente observados, ainda que
voltada à suposta proteção dos menores, gerava desigualdades e arbitrariedades, que
mais oprimiam que protegiam essa parcela da sociedade.
Calcada nessa experiência, bem como inspirada no texto da Declaração
Universal dos Direitos da Criança de 1959, a Constituição Federal de 1988, após
afirmar a vigência para todos, sem qualquer tipo de discriminação, dos direitos
humanos fundamentais (art. 1º, inciso III; art. 3º, incisos I e IV; e art. 5º, caput),
introduz no ordenamento jurídico brasileiro, por seu artigo 227, a Doutrina da
Proteção Integral, segundo a qual, as crianças e os adolescentes são considerados
como pessoas em desenvolvimento, dotadas, pois, de todos os direitos e garantias
conferidos aos adultos e mais daqueles necessários para assegurar seu crescimento
saudável.
Reafirmando a adoção deste novo paradigma, o artigo 3º do ECA,
editado em 1990, declara:
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“Art. 3º - A criança e o adolescente gozam de todos os direitos
fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da
proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes,
por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e
facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico,
mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e
de dignidade.”
Supera-se, pois, a visão da criança e do adolescente como objetos da
norma protetiva, passando-se a enxergar neles os sujeitos titulares dos direitos
garantidos pela lei.
Em suma, sob essa nova ótica da Doutrina da Proteção Integral, o Estado
deixa de atuar como “tutor de menores”, para atuar como “tutor de direitos”5, posição
pela qual ele, por seus agentes, deixa de intervir no exercício dos direitos postos às
crianças e adolescentes e passa a criar possibilidades para que referido exercício se dê.
Ou seja, ao invés de privar o “menor incapaz”, “em situação de risco” ou
“em situação irregular” do exercício de seus direitos “para protegê-lo”, o Estado, por
força dos novos dispositivos constitucionais e legais, deve adotar postura positiva de
criar meios para que a criança e o adolescente, na qualidade de pessoas em
desenvolvimento, consigam exercer todos os direitos fundamentais.
Reflete bem este modo positivo de atuar do Estado para zelar pela
promoção dos direitos das crianças e adolescentes o artigo 16 da Convenção das
Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, promulgada no Brasil por meio do Decreto
99.710/90, que determina:
“Art. 16.
5 Edson Seda – Artigo: “A Criança e o Afamado Toque De Cidadania” – www.edsonseda.com.br
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1. Nenhuma criança será objeto de interferências arbitrárias
ou ilegais em sua vida particular, sua família, seu domicílio, ou
sua correspondência, nem de atentados ilegais a sua honra e a
sua reputação.
2. A criança tem direito à proteção da lei contra essas
interferências ou atentados.” (g.n.)
No mesmo sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente não deixa
margem para quaisquer dúvidas:
“Art. 110. Nenhum adolescente será privado de sua liberdade
sem o devido processo legal.”
Reforçando ainda mais a concepção de que a criança e o adolescente são
pessoas dotadas de todos os direitos inerentes à condição humana, não podendo
sofrer restrições nesses direitos que não partam exclusivamente da constituição e da
lei, o ECA extingue a figura do “juiz de menores” dotado de gama ilimitada de poderes,
traçando o perfil do “juiz da infância e juventude”, que atua para promover os direitos
desta parcela da sociedade, respeitando tais direitos, dentro dos limites legalmente
fixados para sua atuação.
Nesses termos, o antigo poder normativo, extremamente amplo, do
qual dotava o Juízo de Menores é absolutamente incompatível com a atual
normativa vigente no país.
O artigo 149 do ECA, que disciplina o uso das portarias pelo juízo da
Infância e Juventude, está assim estabelecido:
“Art. 149. Compete à autoridade judiciária disciplinar, através
de portaria, ou autorizar, mediante alvará:
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I - a entrada e permanência de criança ou adolescente,
desacompanhado dos pais ou responsável, em:
a) estádio, ginásio e campo desportivo;
b) bailes ou promoções dançantes;
c) boate ou congêneres;
d) casa que explore comercialmente diversões eletrônicas;
e) estúdios cinematográficos, de teatro, rádio e televisão.
II - a participação de criança e adolescente em:
a) espetáculos públicos e seus ensaios;
b) certames de beleza.
§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, a autoridade
judiciária levará em conta, dentre outros fatores:
a) os princípios desta Lei;
b) as peculiaridades locais;
c) a existência de instalações adequadas;
d) o tipo de freqüência habitual ao local;
e) a adequação do ambiente a eventual participação ou
freqüência de crianças e adolescentes;
f) a natureza do espetáculo.
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§ 2º As medidas adotadas na conformidade deste artigo
deverão ser fundamentadas, caso a caso, vedadas as
determinações de caráter geral.”
Note-se, inicialmente, que não há qualquer autorização legal para que a
autoridade judicial regulamente processo de apuração de ato infracional. O poder
regulamentar mediante portaria se refere unicamente à presença ou participação de
adolescentes nos locais ou eventos trazidos pelo próprio artigo.
Ou seja, o artigo 149 do ECA, proíbe as portarias editadas relativamente
a situações não previstas em seu bojo, bem como as portarias de caráter geral,
porque revogou o poder normativo conferido aos vetustos “juízes de menores”.
Nesse sentido, veja os ensinamentos de Antônio Fernando do Amaral
Filho, trazidos na obra coletiva “Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado –
Comentários Jurídicos e Sociais”, que foi coordenada Munir Cury, editora Malheiros,
10ª edição, pág. 736:
“Não mais se cogita do antigo poder normativo.
Houve coerência e juridicidade ao se extinguir o poder
normativo do art.8º do Código de Menores.
Não é do Judiciário ditar normas de caráter geral, mas decidir,
no caso concreto, a aplicação do Direito objetivo.
Juiz não é legislador, não elabora normas de comportamento
social. Julga os comportamentos frente às regras de conduta
da vida social. Essas geralmente decorrem do processo
legislativo, reservado pela Constituição à outra órbita.” (g.n.)
O mesmo entendimento foi esposado pelo STJ em decisão que revogou
portaria que criava o chamado “toque de recolher”.
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“ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. PODER
NORMATIVO DA AUTORIDADE JUDICIÁRIA. LIMITES. LEI
8.069/90, ART. 149. 1. Ao contrário do regime estabelecido
pelo revogado Código de Menores (Lei 6.697/79), que atribuía à
autoridade judiciária competência para, mediante portaria ou
provimento, editar normas "de ordem geral, que, ao seu
prudente arbítrio, se demonstrarem necessárias à assistência,
proteção e vigilância ao menor" (art. 8º), atualmente é bem
mais restrito esse domínio normativo. Nos termos do art. 149
do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), a
autoridade judiciária pode disciplinar, por portaria, "a entrada e
permanência de criança ou adolescente, desacompanhada dos
pais ou responsável" nos locais e eventos discriminados no
inciso I, devendo essas medidas "ser fundamentadas, caso a
caso, vedadas as determinações de caráter geral" (§ 2º). É
evidente, portanto, o propósito do legislador de, por um lado,
enfatizar a responsabilidade dos pais de, no exercício do seu
poder familiar, zelar pela guarda e proteção dos menores em
suas atividades do dia a dia, e, por outro, preservar a
competência do Poder Legislativo na edição de normas de
conduta de caráter geral e abstrato. 2. Recurso Especial
provido.” (RECURSO ESPECIAL Nº 1.292.143 – SP, RELATOR :
MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCK)
Desse modo, fica claro que a decisão administrativa proferida pelo Juízo
ora apontado como autoridade coatora é inconstitucional e ilegal, tendo o Juízo se
arvorado de competência legislativa, que não lhe pertence.
Ao proceder desta forma, o Juízo viola frontalmente o direito
constitucional ao devido processo legal dos adolescentes residentes na Comarca de
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Urânia ou que porventura sejam lá apreendidos, trazido expressamente no texto
constitucional:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos
termos seguintes:
(...)
LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem
o devido processo legal;” (g.n.)
Outra não é a garantia emanada pelo ECA, como já citado:
“Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao
respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de
desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e
sociais garantidos na Constituição e nas leis.
(...)
Art. 103. Considera-se ato infracional a conduta descrita como
crime ou contravenção penal.”
E o ECA prevê expressa, clara e minuciosamente como deve se dar o
processo de apuração de ato infracional quando da apreensão de adolescente, sem
nenhuma margem para alegação de omissão:
“Art. 171. O adolescente apreendido por força de ordem
judicial será, desde logo, encaminhado à autoridade judiciária.
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Art. 172. O adolescente apreendido em flagrante de ato
infracional será, desde logo, encaminhado à autoridade policial
competente.
Parágrafo único. Havendo repartição policial especializada para
atendimento de adolescente e em se tratando de ato
infracional praticado em co-autoria com maior, prevalecerá a
atribuição da repartição especializada, que, após as
providências necessárias e conforme o caso, encaminhará o
adulto à repartição policial própria.
Art. 173. Em caso de flagrante de ato infracional cometido
mediante violência ou grave ameaça a pessoa, a autoridade
policial, sem prejuízo do disposto nos arts. 106, parágrafo
único, e 107, deverá:
I - lavrar auto de apreensão, ouvidos as testemunhas e o
adolescente;
II - apreender o produto e os instrumentos da infração;
III - requisitar os exames ou perícias necessários à comprovação
da materialidade e autoria da infração.
Parágrafo único. Nas demais hipóteses de flagrante, a lavratura
do auto poderá ser substituída por boletim de ocorrência
circunstanciada.
Art. 174. Comparecendo qualquer dos pais ou responsável, o
adolescente será prontamente liberado pela autoridade
policial, sob termo de compromisso e responsabilidade de sua
apresentação ao representante do Ministério Público, no
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mesmo dia ou, sendo impossível, no primeiro dia útil imediato,
exceto quando, pela gravidade do ato infracional e sua
repercussão social, deva o adolescente permanecer sob
internação para garantia de sua segurança pessoal ou
manutenção da ordem pública.
Art. 175. Em caso de não liberação, a autoridade policial
encaminhará, desde logo, o adolescente ao representante do
Ministério Público, juntamente com cópia do auto de
apreensão ou boletim de ocorrência.
§ 1º Sendo impossível a apresentação imediata, a autoridade
policial encaminhará o adolescente à entidade de atendimento,
que fará a apresentação ao representante do Ministério Público
no prazo de vinte e quatro horas.
§ 2º Nas localidades onde não houver entidade de
atendimento, a apresentação far-se-á pela autoridade policial.
À falta de repartição policial especializada, o adolescente
aguardará a apresentação em dependência separada da
destinada a maiores, não podendo, em qualquer hipótese,
exceder o prazo referido no parágrafo anterior.
Art. 176. Sendo o adolescente liberado, a autoridade policial
encaminhará imediatamente ao representante do Ministério
Público cópia do auto de apreensão ou boletim de ocorrência.
Art. 177. Se, afastada a hipótese de flagrante, houver indícios
de participação de adolescente na prática de ato infracional, a
autoridade policial encaminhará ao representante do
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Ministério Público relatório das investigações e demais
documentos”.
Como se vê, a decisão administrativa proferida pelo Juízo de Urânia
subverte completamente as determinações legais sobre como deve se dar o processo
de apuração de ato infracional.
A decisão estabelece uma “forma alternativa de colocar o adolescente em
contato com a Autoridade Policial”, violando frontalmente o dever de imediata
apresentação de adolescente apreendido em flagrante à Autoridade Policial
competente, no caso, o/a Delegado/a de Polícia (art. 172 do ECA).
Estabelece que a Polícia Militar elabore Boletim de Ocorrência
Circunstanciada e garante a este órgão o poder de decidir pela liberação ou não de
adolescente, competência que pertence ao/à Delegado/a de Polícia e deve se dar nos
termos trazidos pelo ECA (arts. 174/175 do ECA).
Também estabelece que o referido Boletim deve ser encaminhado ao
Juízo e não ao Ministério Público (art. 176 do ECA).
Por fim, também confere à Polícia Militar o poder de analisar a tipificação
do ato infracional, sua gravidade e a necessidade de manutenção da apreensão, caso
em que o mesmo deverá ser encaminhado à autoridade policial. Novamente, trata-se
de juízo que o ECA confere ao/à Delegado/a de Polícia, além de construir um rol de
hipóteses de apreensão diverso daquele trazido pelo ECA (art. 174).
Além disso, o Juízo, por meio de decisão administrativa, subverte
completamente a distribuição constitucional de atribuições às polícias. Dispõe a
Constituição Federal que:
“Art. 174. A segurança pública, dever do Estado, direito e
responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da
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ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio,
através dos seguintes órgãos:
§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de
carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as
funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais,
exceto as militares.
§ 5º Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a
preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros
militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a
execução de atividades de defesa civil.”
Da mesma forma, dispõe a Constituição do Estado de São Paulo:
“SEÇÃO II
Da Polícia Civil
Artigo 140 - À Polícia Civil, órgão permanente, dirigida por
delegados de polícia de carreira, bacharéis em Direito,
incumbe, ressalvada a competência da União, as funções de
polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as
militares.
(...)
§2º - No desempenho da atividade de polícia judiciária,
instrumental à propositura de ações penais, a Polícia Civil
exerce atribuição essencial à função jurisdicional do Estado e à
defesa da ordem jurídica. (NR)
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§3º - Aos Delegados de Polícia é assegurada independência
funcional pela livre convicção nos atos de polícia judiciária. (NR)
(...)
SEÇÃO III
Da Polícia Militar
Artigo 141 - À Polícia Militar, órgão permanente, incumbe, além
das atribuições definidas em lei, a polícia ostensiva e a
preservação da ordem pública.”
A decisão do Juízo, no entanto, confere à Polícia Militar atribuições
exclusivas da Polícia Civil, violando, assim, frontalmente o texto constitucional federal
e estadual.
Por fim, de se ter em conta que este Tribunal de Justiça, bem como o
CNJ, já vem tomando as medidas cabíveis para adequação dos processos e
procedimentos em virtude da pandemia atualmente vivenciada pelo país.
Seria uma completa afronta à ordem jurídica que cada Juízo de cada
Comarca estabelecesse um procedimento específico para seu território, causando
verdadeiro caos e insegurança jurídica extrema.
No mesmo sentido, é violação patente à hierarquia do Tribunal que um
Juízo de primeiro grau desrespeite as normas proferidas pelos órgãos mais altos do
Judiciário Paulista, criando um procedimento próprio em violação ao estabelecido
pelos órgãos competentes.
Assim, pelo exposto, a decisão administrativa proferida pelo Juízo de
Urânia é material e formalmente inconstitucional, ilegal e não deve mantida.
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4. DO PEDIDO DE LIMINAR
O fumus boni iuris da medida pleiteada foi devidamente exposto na
presente peça, restando claro que a decisão ora impugnada é formal e materialmente
ilegal e inconstitucional.
Quanto ao perigo de dano irreparável, este fica evidente ao
considerarmos que qualquer adolescente que venha a ser apreendido na Comarca de
Urânia não terá respeitado seu direito ao devido processo legal, podendo ser
processado à revelia das normas estabelecidas pela Constituição Federal e pelo ECA.
Assim, requer-se a concessão da medida liminar a fim de que seja,
imediatamente, suspensos os efeitos da referida decisão.
5. DOS PEDIDOS
Por todo o exposto, requer-se:
a) SEJA CONCEDIDA A ORDEM, LIMINARMENTE, para o fim de
determinar a suspensão dos efeitos da decisão administrativa proferida pelo Juízo da
Comarca de Urânia, até o julgamento do mérito do presente writ;
b) Ao final, SEJA CONCEDIDA A ORDEM PARA CASSAR A REFERIDA
DECISÃO, determinando-se seja respeitado o procedimento previsto pelo ECA, bem
como as normas publicadas por este Tribunal de Justiça e pelo CNJ em relação às
medidas emergenciais relativas à pandemia de COVID-19.
Outrossim, informa-se acerca da previsão legal contida na Lei
Complementar Federal nº 80/1994 (art. 128, inc. I), quanto à necessidade de intimação
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e vista pessoal, de todos os atos processuais, bem como da contagem em dobro dos
prazos.
São Paulo, 27 de abril de 2020.
ANA CAROLINA OLIVEIRA GOLVIM SCHWAN
Defensora Pública do Estado de São Paulo
Coordenadora do Núcleo Especializado da Infância e da Juventude
DANIEL PALOTTI SECCO
Defensor Público do Estado de São Paulo
Coordenador Auxiliar do Núcleo Especializado da Infância e da Juventude
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