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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
NIETZSCHE E A PERSPECTIVA DOS AFETOS
UMA VISO FISIOLGICA DO CONHECIMENTO
LUCIANA ZATERKA
Dissertao de mestrado apresentada ao Departamento
de Filosofia da FFLCH/USP, para a obteno do ttulo
de Mestre em Filosofia.
Orientadora: Profa Dra Scarlett Zerbetto Marton.
SO PAULO
junho de 1998.
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LUCIANA ZATERKA NIETZSCHE E A PERSPECTIVA DOS AFETOS UMA VISO FISIOLGICA DO CONHECIMENTO
COMISSO JULGADORA
DISSERTAO PARA OBTENO DO GRAU DE MESTRE
Presidente e Orientador
2 Examinador
..
3 Examinador
..
So Paulo, de 1998
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Como difcil a realizao de um trabalho acadmico! Como gratificante aprender e trocar idias!
Como prazeroso adquirir conhecimento mediante afeto! Dedico este trabalho intelectual, professora e amiga
Ana Maria Alfonso-Goldfarb que me mostrou como possvel transmutar paixes tristes em paixes alegres!
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Agradecimentos
Scarlett, pela orientao e dedicao. memria de meu pai Sioma: com ele vivenciei o leit motiv
nietzschiano: faa sempre do obstculo estmulo! minha me Myriam, um motivo vital para desejar que a hiptese do
eterno retorno do idntico seja verdadeira! Ao Kleverton Bacelar, meu interlocutor. Com ele aprendi que o trabalho
filosfico s faz sentido mediante discusso. Kl, obrigado por tudo; sem voc este trabalho no faria o menor sentido.
Yara e Marisa pelo carinho e apoio que me deram durante todo o
percurso. Simone e Mair, com eles aprendi a resgatar o melhor da vida. Obrigada
pela eterna amizade. um privilgio compartilhar vida com vocs! Ao Hlio, pela pacincia de me agentar em final de tese. Li, acho que
superamos tudo! Ao Samuel, por tornar minha casa um lugar absolutamente alegre. minha famlia, especialmente Bia e ao Beno. Obrigada pelo carinho. Aos professores do Departamento de Filosofia da USP, em especial Maria
das Graas Nascimento, Jos Carlos Estevo e Ricardo Terra. s professoras Marilena Chau e Maria Lucia Cacciola pelas observaes
feitas no exame de qualificao e por tudo mais... Aos colegas de Ps-graduao do Departamento de Filosofia da USP, em
especial Brbara Luchesi e Marisa Russo. Mari, Rubem, Roseli, Maria Helena, Vera e Geni: sem vocs o
Departamento de Filosofia da USP no teria a menor graa. Luna, minha fiel e silenciosa companheira. CAPES pela bolsa de estudos concedida.
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Lista de abreviaturas
NT Die Geburt der Tragdie (O nascimento da tragdia)
HH Menschliches Allzumenschliches (vol.1) (Humano, demasiado humano)
OS Menschliches Allzumenschliches (vol.2) (Miscelnea de opinies e
sentenas)
AS Menschliches Allzumenschliches (vol.2) (O andarilho e sua sombra)
A Morgenrte (Aurora)
GC Die frhliche Wissenschaft ( A gaia cincia)
Za Also sprach Zarathustra (Assim falou Zaratustra)
BM Jenseits von Gut und Bse (Para alm de bem e mal)
GM Zur Genealogie der Moral (Genealogia da moral)
CW Der Fall Wagner (O caso Wagner)
CI Gtzen-Dmmerung (Crepsculo dos dolos)
NW Nietzsche contra Wagner
AC Der Antichrist (O anticristo)
EH Ecce homo
VM ber Wahrheit und Lge im aussermoralischen Sinne (Sobre verdade e
mentira no sentido extramoral)
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Resumo
Esta dissertao analisa alguns aspectos da teoria do conhecimento em
Nietzsche, nomeadamente seu pragmatismo e seu perspectivismo. Antes de
expor as crticas s categorias clssicas do conhecimento empreendida pelo
filsofo em sua "doutrina da perspectiva dos afetos", que opera com as
noes de vida, vontade de potncia e fisiologia, mostraremos o dilogo com
a filosofia espinosana que est na matriz dessa doutrina (cap. I). Efetuado
esse trabalho inicial examinaremos o pragmatismo e a noo de verdade que
dele decorre (cap. II). Por fim, abordaremos o carter perspectivista do
conhecimento que a marca da teoria gnosiolgica nietzschiana.
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Sumrio
INTRODUO ........................................................ 6
NIETZSCHE E ESPINOSA: A NATURALIZAO DOS AFETOS .. 18
A "VERDADE" COMO FICO............................................43 INTERPRETAO: UMA NOVA ATITUDE FRENTE AO CONHECIMENTO..........................................................72 CONCLUSO ..............................................................96 BIBLIOGRAFIA .......................................................... 101
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INTRODUO
A recepo de Nietzsche tem sido marcada pela constante preocupao
em salientar os aspectos inovadores do seu pensamento, a originalidade de
suas teses. Ao realar sua ruptura radical ou sua viragem decisiva na histria
do pensamento, a crtica, muitas vezes, esqueceu-se de apontar a posio de
Nietzsche dentro desta histria. Uma exposio da teoria nietzschiana do
conhecimento como, alis, de seus outros temas deve acentuar antes seus
motivos tradicionais, na medida em que julgamos ingenuidade querer isolar
Nietzsche do seu tempo. O filsofo herdou temas e problemas que o situam no
entrecruzamento de vrias correntes do pensamento. No campo da literatura,
lembremos a presena de Dostoivski, de Emerson, dos moralistas franceses e
dos romnticos. Tambm fcil perceber o dilogo com a cincia do sculo
XIX, como a fsica de Boscovich ou a biologia de Roux. Quanto filosofia,
no difcil encontrarmos, dentre outros, motivos espinosanos, kantianos e
schopenhauerianos. Entretanto, com a exceo de Herclito, Nietzsche nega,
freqentemente e com o seu estilo corrosivo e destruidor, tais dilogos.
Este trabalho versa sobre a doutrina nietzschiana da perspectiva dos
afetos. Trataremos de expor as consideraes do filsofo acerca do
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conhecimento, em especial, o seu pragmatismo e perspectivismo, ressaltando-
se a sua teoria da verdade como fico. Contudo, esta exposio enfatizar
os motivos tradicionais dessa teoria, reinscrevendo Nietzsche em sua poca.
Neste sentido, pretendemos apontar no primeiro captulo, Nietzsche e
Espinosa: a naturalizao dos afetos, o quo importante foi o conceito
espinosano do conatus para que Nietzsche desenvolvesse a sua doutrina da
vontade de potncia, matriz da doutrina nietzschiana da perspectiva dos afetos.
Veremos que os dois filsofos apontam para uma naturalizao dos afetos.
A legitimidade dessa aproximao atestada pelo prprio Nietzsche em
vrias passagens de sua obra. Em 30.06.1881 o filsofo escreve a seu amigo
Overbeck: Estou assobrado e encantado! Tenho um precursor e de que
gnero! Quase no conhecia Espinosa e o que me trouxe agora desejos de l-lo
foi qualquer coisa realmente instintiva (Nietzsche, 1881, Sils Maria). No ano
de 1884 afirma em um fragmento pstumo: Quando eu reflito sobre minha
linhagem filosfica, eu me sinto em relao com o movimento anti-teolgico,
ou seja, espinosano, de nosso tempo. Sabemos que Nietzsche travou
conhecimento com a filosofia espinosana em 1881 por meio da leitura da
monografia de Kuno Fischer, Geschicte der neueren Philosophie; isto fica
ntido sobretudo nos excertos sobre Espinosa da primavera/outono de 1881,
11[193-197] (vol. 9, p. 518 s). Devemos notar que o filsofo alemo ir
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definir o conceito de vontade de potncia somente entre 1882 e 1885. Entre os
comentadores, Deleuze no cansou de apontar e defender a proximidade
Nietzsche/Espinosa: De fato, comecei com livros de histria da filosofia, mas
todos os autores de que me ocupei tinham algo em comum. E tudo tendia para
a grande identidade Espinosa Nietzsche (Deleuze, 1992, p. 169).
Neste contexto, pretendemos mostrar as semelhanas e dessemelhanas
entre ambos os filsofos. Para tanto, estabeleceremos como fio condutor o
embate conatus versus vontade de potncia. De incio esclarecemos nossa
posio: no pretendemos buscar em Espinosa um precursor de Nietzsche.
Assim, no temos pretenses de discutir uma possvel influncia que o
pensador da tica teria exercido sobre o pensador alemo. Preferimos pensar
num encontro ou num dilogo entre ambos os filsofos. Portanto, no temos
preocupaes genealgicas, pois acabaramos por ignorar dois sculos de
histria. O sculo XVII a poca da mecnica clssica, do princpio de
inrcia, da busca do ponto fixo; o sculo XIX o momento da
termodinmica, da entropia, da morte de Deus. Como se fosse pouco, entre
eles encontramos o sculo das Luzes, entre eles a filosofia crtica, entre eles
Hegel, entre eles, entre eles... Ignorar a histria seria incidir de imediato em
erro. Estamos cientes dos aspectos que diferenciam ambas as filosofias. De
um modo geral, podemos afirmar que a noo de natureza que est subjacente
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ao sculo XVII a mecanicista. Assim, toda a natureza se reduz a um
conjunto de leis mecnicas. Os adeptos desta corrente filosfica postularam
que todos os fenmenos naturais poderiam ser explicados, no limite,
referindo-os matria em movimento. Ao contrrio da cincia antiga, a
causa eficiente e no mais a causa final que foi o fio condutor desta nova viso
acerca dos fenmenos naturais. Neste contexto, o mundo era visto como uma
mquina complexa, um conjunto de partculas agindo umas sobre as outras, e
cabia ao filsofo natural elucidar suas engrenagens, ou seja, descobrir as leis
que regem este mundo mquina. Esta revoluo no se restringiu ao
domnio da astronomia e da fsica, onde se destacavam nomes como os de
Galileu, Coprnico e Kleper, mas tambm se fez presente no campo da
histria natural, no qual William Harvey constitui um excelente exemplo. No
seu famoso livro, De motu cordis et sanguinis (Sobre o movimento do corao
e do sangue), publicado em 1628, Harvey apresenta uma descrio anatmica
precisa do corao e do sistema das artrias e das veias. Com base em suas
experincias, ele demonstra que o sangue corre do corao pelas artrias para
o corpo todo e regressa pelas veias. O que nos interessa aqui ressaltar que
Harvey apontou uma causa mecnica da circulao sangnea, a contrao
muscular do corao. Esse seria um exemplo do modo como operavam os
homens de cincia ante a nova mecnica. Ele indicou que o corao, as
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veias e as artrias constituam um sistema mecnico para o transporte do
sangue. Harvey descrevia o corao como uma pea de uma mquina, na
qual, apesar de uma roda mover outra, todas as rodas parecem mover-se
simultaneamente. No seu trabalho revela-se, antes de mais nada, a viso de
natureza que prevaleceu nos sculos XVII e XVIII.
Note-se que no sculo XIX temos o aparecimento de uma certa noo
de vida e a biologia se firmou efetivamente como uma rea especfica da
cincia voltada para o estudo das criaturas vivas, incluindo a descrio e
explicao das suas estruturas e dos processos vitais. O que a vida? essa
a questo que percorre todo o sculo XIX. Grosso modo poderamos
destacar trs respostas distintas a esse respeito: a mecanicista, a animista e a
vitalista. Sabe-se que os filsofos mecanicistas identificam matria bruta com
matria viva e reduzem os fenmenos vitais a mecanismos fsico-qumicos. O
animismo teria como fio condutor a crena numa alma transcendente que seria
incorporada aos corpos. E, finalmente, a resposta da corrente que prevaleceu
no sculo de Nietzsche, o vitalismo, diferencia a matria bruta da matria
viva, acreditando que esta ltima possui um princpio vital imanente
natureza. John Mller, por exemplo, afirmava que: a fora orgnica, a causa
ltima do ser orgnico, uma fora criadora que modifica adequadamente a
matria. E Bichat, um renomado histologista francs, distinguia tantas foras
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vitais como o nmero de espcies de tecidos existentes no corpo, ou seja, para
cada tecido do corpo existiria um princpio vital particular. Segundo este
pensador, a fora vital constitua a essncia de tudo o que faz a vida ser vida.
Podemos encontrar ainda homens de cincia, como Claude Bernard, que
identificam essencialmente, qualitativamente, matria bruta e matria viva,
mas que postulam a diferena entre elas assentada apenas na complexidade, ou
seja, quantitativamente. Acreditamos que Nietzsche, de alguma maneira, filia-
se a esta corrente filosfico-cientfica. fato entre os comentadores que
Nietzsche teria se interessado pela biologia da poca. Andler salienta o
interesse do filsofo por Darwin, e Mller-Lauter o dilogo intenso com
Roux. Em ambos o casos Nietzsche teria uma posio crtica. No que se refere
a Darwin, este teria enfatizado a questo da conservao da vida, mas no
teria compreendido que a vida expanso de potncia: erros fundamentais
dos bilogos at hoje: no se trata da espcie, mas de indivduos que se
sobressaem com mais fora. (A maioria apenas um meio). A vida no
adaptao das condies internas s externas, mas vontade de potncia que, do
interior, submete e incorpora a si mesma cada vez mais exterior (XII, 7 (9)).
Nietzsche discordara tambm do trabalho de Roux sobre a luta seletiva das
partes do organismo (Der zuchtende Kampf der Teile oder die Teilauslese im
Organismus, zugleich eine Theorie der funktionellen Anpassung), pois este,
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por ter tratado os seres vivos como mquinas, teria descartado o dinamismo
e as hierarquias presentes no interior dos corpos.
neste contexto que a nossa proposta deve ser compreendida. Espinosa
prope uma naturalizao dos afetos. Nietzsche, por seu lado, introduzir uma
fisiologizao dos afetos. So noes distintas? Sem dvida alguma. Contudo,
o que nos fez esboar uma possvel aproximao entre ambas as filosofias o
modo como tratam a provenincia dos valores. Para estes filsofos os valores
derivam deste mundo, desta vida; no so considerados valores-em-si,
impostos por algum poder divino. A negao do mundo transcendente faz com
que ambos proponham uma teoria imanente ao mundo; ou, em termos
deleuzianos, ambos os filsofos apontariam para um plano de imanncia.
Ora, a noo de afeto que ser o caminho para compreendermos esta
empreitada. Assim sendo, acreditamos que um estudo comparativo ajude a
uma melhor compreenso da doutrina nietzschiana da perspectiva dos afetos.
Mediante a noo de afeto, que remete ao conceito de vontade de
potncia, pretendemos no segundo captulo, A verdade como fico, expor a
concepo nietzschiana de verdade. Para tanto, utilizaremos como fio
condutor sua crtica lgica, cincia, gramtica e linguagem. Veremos
que a noo de afeto importante para sugerirmos que os pressupostos deste
ataque esto vinculados perspectiva fisiolgica. Nietzsche aponta a origem
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biolgica da conscincia (GC 11) e mostra o seu surgimento concomitante
com o da linguagem (GC 354). Dessa maneira, o pensador parte da fisiologia
para empreender sua crtica seduo da gramtica e da lgica: o encanto
exercido por determinadas funes gramaticais , em ltima instncia, o
encanto de condies raciais e juzos de valor fisiolgicos (BM 20). Assim,
Nietzsche teria proposto, no terceiro perodo do seu empreendimento
filosfico, uma viso pragmtica das questes gnosiolgicas, peculiar, por
certo. Aqui mostraremos que Nietzsche proporia uma positividade do falso
na medida em que conhecer seria, antes de mais nada, criar fices por uma
questo de sobrevivncia. O conhecimento, assim, ilusrio, porm vital. De
fato, desde o ensaio de 1873, Sobre verdade e mentira no sentido extramoral,
Nietzsche j apontaria nesta direo. Contudo, a nosso ver, estas reflexes
ganham dimenso no terceiro perodo de sua obra, pois nessa fase que o
filsofo elabora o conceito de vontade de potncia. Aqui nos ser de grande
importncia a anlise dos aforismos 3 e 4 de Para alm de bem e mal, o 349
da Gaia cincia, alm de vrios fragmentos pstumos.
Por fim, no terceiro captulo, Interpretao: uma nova atitude frente ao
conhecimento, analisaremos os conceitos de vida e vontade de potncia a
partir da noo de relao e mostraremos que o conhecimento , antes de mais
nada, interpretao. Para Nietzsche, o que constitui o mundo orgnico so
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foras em relao, o que lhe permite refutar qualquer resduo slido para a
matria. O conhecimento refletiria esta viso de natureza (physis), e, assim
sendo, pode ser abordado como relacional, plural, dinmico e perspectivo.
Aqui, veremos que Nietzsche manteria um dilogo intenso com a cincia de
sua poca, em especial, com a fsica do jesuta Roger Boscovich. Ocorre que
ao expormos a concepo nietzschiana do conhecimento, ou seja, o
pragmatismo e o perspectivismo de qualquer juzo, deparamo-nos com a
difcil questo de sua auto-refutao: afirmar que tudo interpretao seria
apenas mais uma interpretao? Em caso afirmativo, a doutrina da vontade de
potncia que embasa esta teoria seria simplesmente uma hiptese
compreensiva do efetivo (caos). Em caso negativo, qual seria o estatuto da
doutrina da vontade de potncia que apresenta, no tocante ao conhecimento,
uma teoria geral da interpretao? Em qualquer dos casos, a teoria
nietzschiana do conhecimento acabaria por operar com a positividade do
falso. Ou seja, a interpretao que temos de algo (de um fenmeno) nos faz
ver coisas, objetos, etc. onde s h vir-a-ser; pois, no limite, o real o
efetivo falsificado. A questo reaparece ento: qual o estatuto do efetivo?
Lembraria a coisa-em-si do kantismo? Ou o efetivo o modo de ser da
vontade de potncia?
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No proporemos respostas a essas complexas questes, pois extrapolam
o formato desse trabalho. No obstante, a exposio sistemtica dos aforismos
e fragmentos em que Nietzsche formula uma possvel gnosiologia na qual as
categorias clssicas da teoria do conhecimento (verdade, objetividade, sujeito,
objeto) so desterritorializadas a ponto de se tornarem irreconhecveis
pode nos fornecer valiosos elementos para a resoluo futura desses
problemas.
* * *
No nosso trabalho utilizaremos sobretudo o terceiro perodo da obra
nietzschiana, pois nessa fase que o pensador elabora o conceito de vontade
de potncia. Diferentes autores, dependendo do critrio, adotam divises
distintas da obra nietzschiana. Entre os comentadores de Nietzsche que
operam com a periodizao, podemos destacar Karl Lwith e Scarlett Marton.
Seguiremos no nosso trabalho a diviso sugerida por Marton no seu livro Das
foras csmicas aos valores humanos. Nele podemos identificar trs perodos
na obra de Nietzsche: o primeiro comearia com O nascimento da tragdia e
terminaria com as Consideraes extemporneas, abarcando assim os anos de
1870 a 1876; o segundo se estenderia de Humano demasiado humano aos
quatro primeiros livros da Gaia cincia, incluindo assim os anos de 1876 a
1882; e, finalmente, o terceiro (1882-1886) englobaria as seguintes obras:
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Assim falou Zaratustra, o Ensaio de autocrtica, o Prefcio de 1886 a O
nascimento da tragdia, os Prefcios a Humano demasiado humano, Aurora e
Gaia cincia, o quinto livro da Gaia cincia, Para alm de bem e mal,
Genealogia da moral, O caso Wagner, Crepsculo dos dolos, O anticristo,
Ecce homo, Nietzsche contra Wagner e Ditirambos de Dionisio, alm dos
fragmentos pstumos deste perodo.
Quanto aos critrios para as referncias bibliogrficas das citaes de
Nietzsche, nos basearemos na conveno adotada pelos Cadernos Nietzsche,
publicao semestral do Departamento de Filosofia da FFLCH/USP, tanto
para as abreviaturas, quanto nas remisses bibliogrficas nas citaes. Nas
referncias das citaes de textos publicados por Nietzsche, o algarismo
arbico indicar o aforismo. No caso da GM, o algarismo romano anterior ao
arbico remeter parte do livro; no caso do Za, o algarismo romano remeter
parte do livro e a ele se seguir o ttulo do discurso; quanto ao CI e ao EH, o
algarismo arbico, que se seguir ao ttulo do captulo, indicar o aforismo.
Nas referncias bibliogrficas dos fragmentos pstumos, o algarismo romano
indicar o volume, e os arbicos que a ele se seguem, o fragmento pstumo.
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NIETZSCHE E ESPINOSA:
A NATURALIZAO DOS AFETOS
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Aqueles que escreveram sobre as Paixes e a conduta da vida humana parecem, na sua maioria, tratar no de coisas naturais que decorrem das leis comuns da Natureza, mas de coisas que esto fora da Natureza. Na verdade, dir-se-ia que concebem o homem na Natureza como um imprio dentro de um imprio. Supem, com efeito, que o homem perturba a ordem da Natureza mais que a segue, que tem sobre suas prprias aes um poder absoluto e tira apenas dele mesmo sua determinao. Procuram, pois, a causa da impotncia e da inconstncia humanas no na potncia comum da Natureza, mas em no sei qual vcio da natureza humana e, por essa razo, choram por causa dela, riem, desprezam-na ou, as mais das vezes, a detestam; quem sabe mais eloqentemente ou mais subtilmente censurar a impotncia da alma humana tido por divino.
Espinosa, tica, prefcio do Livro III.
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Em 30.06.1881 Nietzsche, escrevendo a seu amigo Overbeck, afirma:
Estou assombrado e encantado! Tenho um precursor. E de que gnero! Quase
no conhecia Espinosa e o que me trouxe agora desejos de l-lo foi qualquer
coisa realmente instintiva. Achei que no s a sua tendncia principal igual
minha fazei do conhecimento a paixo mais poderosa se no que
coincido com ele em cinco pontos essenciais da sua doutrina, nos quais aquele
original e solitrio pensador se aproxima grandemente de mim, e que so: a
negao do livre arbtrio, da intuio, da ordem moral universal, do inegosta e
do mau. Ainda que seja certo que a diferena entre ns seja enorme, ela
depende, principalmente, da diferena da poca, da cultura e da cincia.
Enfim: no isolamento que, como a altura nas elevadas montanhas, me cortava
por vezes a respirao, encontro agora um companheiro. maravilhoso!1.
Quais as semelhanas e dessemelhanas que tanto encantaram e
assombraram Nietzsche? O que propiciou o crtico radical encontrar um
companheiro? Talvez uma primeira pista esteja na prpria histria da
filosofia: corpo, paixo, potncia, desejo, vida, esta vida..., conceitos to
espinosanos quanto nietzschianos, e vistos com to maus olhos pela tradio2.
1 Carta Overbeck de 30/06/81, Sils Maria. 2 Yirmiyahu Yovel, no seu livro Spinoza and other heretics, volume 2, analisa, no captulo 5, a
relao entre Espinosa e Nietzsche. Aqui, entre outros temas, o comentador aborda as possveis afinidades pessoais (personal affinities) entre ambos os filsofos. Inicialmente, encontramos a semelhana entre duas vidas solitrias e independentes. A seguir, Yovel menciona suas mensagens revolucionrias: ambos so considerados antimorais, objetos de choque, e foram,
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No terceiro perodo de sua produo filosfica, Nietzsche identifica a
vida vontade de potncia: Somente onde h vida, h tambm vontade; mas
no vontade de vida, e sim assim vos ensino vontade de potncia (Za, II,
Da superao de si). Este conceito sem sombra de dvida um dos mais
problemticos do empreendimento nietzschiano pode ser entendido
sucintamente como um impulso3. Este impulso s pode manifestar-se em face
de obstculos, ou seja, a todo momento, a vontade de potncia, vencendo as
resistncias, se auto-supera. A vontade de potncia efetiva-se numa mesma
direo fundamental: aumentar a sua prpria potncia. Esta intensificao
ocorre atravs da dominao ou assimilao de mais potncia: Minha
concepo que todo corpo especfico tende a tornar-se senhor de todo o
espao e a estender sua fora ( sua vontade de potncia) e a repelir tudo o que
se ope a essa extenso. Mas ele se choca constantemente com esforos
similares de outros corpos e acaba por se unir com aqueles que lhe so mais
cada um na sua poca, denegridos como ateu ou niilista. Finalmente, observamos a necessidade, para ambos, da utilizao de mscaras: Espinosa, como Nietzsche, foi um grande conhecedor das mscaras e um mestre da ambigidade (Yovel, 1989, p.108).
3 Lembremos que, para Nietzsche, existe uma distino entre fora e vontade de potncia: Esse conceito vitorioso de fora, graas ao qual os nossos fsicos criaram Deus e o mundo, tem necessidade de um complemento; preciso atribuir-lhe um querer interno que denominarei vontade de potncia, quer dizer, apetite insacivel de demonstrao de potncia; ou uso e exerccio de potncia, sob a forma de instinto criador etc. (XI, 36 (31)). A vontade de potncia no uma propriedade da fora, o impulso de toda fora no prprio ato de efetivar-se. Gostaramos ainda de ressaltar que no somente a vida que identificada vontade de potncia; Nietzsche possui uma concepo de mundo ou, se quisermos, uma cosmologia. Todavia, na presente dissertao, nos limitaremos perspectiva humana, pois acreditamos, antes de tudo, que os aspectos relativos ao conhecimento pertencem predominantemente a esta esfera. Sobre a relao entre fora e vontade de potncia, cf. Marton, 1990, cap.1.
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prximos: e ento eles conspiram juntos para tomar o poder. E o processo
continua... (XIII, 14 (186)). Percebemos aqui o carter hierrquico presente
na filosofia nietzschiana: sempre teremos os que dominam e os que so
dominados. Contudo, dizer que a vontade de potncia s pode manifestar-se
em face de obstculos no significa que as lutas tm um fim; no existe
nenhum telos, a luta no visa a metas nem a objetivos: O mundo subsiste, no
nada que perece. Ou antes: vem a ser, perece, mas nunca comeou a vir a ser
e nunca cessou de perecer - conserva-se em ambos... Vive de si prprio: seus
excrementos so seu alimento" (XIII, 14 (188)).
Nietzsche concebe o mundo orgnico como vontade de potncia. Como
entender, ento, as diferenas entre os seres? Para o filsofo, os seres se
distinguem quantitativamente: Sob determinadas mudanas de quantidade
nasce isso que ns sentimos como uma qualidade (XII, 27 (31)). Assim, a
qualidade uma conseqncia de relaes quantitativas presentes no mundo;
no limite, a qualidade provm da quantidade. Contudo, os homens interpretam
a quantidade como qualidade, acreditando que a ltima originria: As
qualidades so nossos limites intransponveis; ns no podemos nos impedir
de sentir atravs de simples diferenas de quantidade algo completamente
diferente da quantidade, a saber como qualidades, que no so mais redutveis
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umas s outras (XII, 6 (14))4. Assim, Nietzsche acredita que as diferenas
qualitativas no so nada mais que graus de potncia diferenciados; desta
maneira, a distino entre o orgnico e o inorgnico tratada, no limite, como
uma diferena de graus5. O que ir diferenciar a vida como vontade de
potncia da matria inorgnica o seu grau de complexidade6; por exemplo, o
aparecimento de rgos tardios como a conscincia. A vida humana est em
combate constante, e nesta luta cada espcie viva tenta sobreviver, seja
4 Sobre a relao entre quantidade e qualidade no terceiro perodo da obra de Nietzsche, cf.
Brando, 1997, Causalidade e perspectiva na obra de maturidade de Nietzsche, cap. 1. 5 Sabemos que Nietzsche, desde cedo, interessou-se pela hiptese da sensibilidade da matria de
Lange. Comentando a influncia que o historiador exerceu sobre Nietzsche, Stack afirma: Pelo seu estudo entre 1866 e 1868 da Histria do materialismo, Nietzsche aceitou a viso de que a essncia das coisas no pode ser conhecida. Ele adotou a nfase dada por Lange na organizao psico-fsica do homem como a base da experincia e do conhecimento no lugar da unidade transcendental da apercepo de Kant (Stack, 1994, p. 31). Seguindo esta trilha, o filsofo acreditaria que entre orgnico e inorgnico no existe distino fundamental: tudo vontade de potncia (BM 36). Para dar conta deste problema, o filsofo, no terceiro perodo, prope a chamada teoria das foras; no limite, o mundo orgnico e o inorgnico so constitudos por foras em relao. No terceiro captulo da presente Dissertao, veremos que Nietzsche utilizar o conceito de fora (Kraft) para criticar a viso mecanicista de natureza. Contudo, no presente trabalho, no examinaremos a teoria das foras propriamente dita. Para ns, vontade de potncia e fora possuem o mesmo registro: constituem o mundo orgnico, ou melhor, so o mundo orgnico.
6 Neste sentido, Nietzsche identifica qualitativamente matria bruta e matria viva, e as distingue quantitativamente. A diferena, no limite, de complexidade. Alguns fisilogos da poca pensavam a matria desta maneira, entre os quais podemos destacar Claude Bernard (1813-1878). Este pensador, na sua famosa obra, Introduo medicina experimental, afirma: Em resumo, os fenmenos vitais so o resultado do contato dos elementos orgnicos do corpo com o meio interior fisiolgico; esse o eixo de toda a medicina experimental. Quando se chegar a conhecer quais so, nesse meio interior, as condies normais e anormais da manifestao da atividade vital dos elementos orgnicos, o fisiologista e o mdico tonar-se-o senhores dos fenmenos da vida; porque, salvo a complexidade das condies, os fenmenos de manifestao vital so, assim como os fenmenos fsico-qumicos, o efeito de um contato de um corpo que age, e do meio no qual ele age (Bernard, 1978, p. 99). E ainda: Mas, se esta complexidade dos fenmenos vitais constitui grande obstculo, isso no deve, no entanto, aterrorizar-nos; porque, no fundo, como j o dissemos, a menos que se queira negar a possibilidade de uma cincia biolgica, temos de reconhecer que os princpios so idnticos por toda a parte (id., p.94, grifo nosso).
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criando valores como os da cincia e os da religio, seja criando rgos como
a conscincia. Nietzsche acredita que estes rgos foram desenvolvidos para a
prpria manuteno e intensificao da vida humana: Todos os nossos rgos
de conhecimento e sentidos desenvolveram-se apenas em relao s condies
de conservao e crescimento (XII, 28 (38)).
Em Assim falava Zaratustra, especificamente no discurso Dos
Desprezadores do Corpo, Nietzsche aborda questes fundamentais relativas
ao homem, especialmente relao entre o corpo e a alma, ou, para
sermos mais precisos, entre a grande e a pequena razo. Inicialmente, o
filsofo afirma: O corpo (Leib) uma grande razo, uma multiplicidade com
um nico sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor. Aqui o
corpo identificado grande razo, ou seja, o corpo visto como uma
multiplicidade de vontades de potncia, e a grande razo temporariamente
fornece o sentido da vontade de potncia dominante: o teu corpo e a tua
grande razo: esta no diz eu, mas faz o eu. Percebemos que a multiplicidade
do corpo a grande razo no uma unidade do dizer, no uma unidade
consciente; , antes de qualquer coisa, o resultado de uma operao; no limite,
a unidade no se funda mais no logos. Em seguida, Nietzsche far a imploso
da dicotomia entre corpo e alma: Instrumento de teu corpo , tambm, a tua
pequena razo, meu irmo, qual chamas esprito, pequeno instrumento e
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joguete da tua grande razo. A pequena razo (Ich), to enfatizada pela
tradio, somente um instrumento e joguete da grande razo. O Ich, se
quisermos, a alma, o esprito, o eu, a conscincia o resultado de um
processo, de um fazer corporal. Neste sentido, no existe um eu consciente,
separado e autnomo do seu corpo. Para o filsofo do Zaratustra, o Selbst, em
seu prprio benefcio e em um momento determinado do desenvolvimento7 do
homem, criou a conscincia. O filsofo acrescenta: Instrumentos e joguetes,
so os sentidos e o esprito; atrs deles acha-se, ainda, o si-mesmo (Selbst). O
si-mesmo procura tambm com os olhos dos sentidos, escuta tambm com os
ouvidos do esprito. Aqui o filsofo esclarece que o si-mesmo a "estrutura"
que compe o corpo. Ocorre que, para Nietzsche, essa "estrutura"
necessariamente hierrquica. O corpo, no nos esqueamos, uma
complexidade de vontades de potncia sempre em luta8. O que constitui este
corpo exatamente o Selbst. Desta maneira, o esprito e os sentidos, assim
7 Sabemos que Nietzsche se interessou pelas epistemologias naturalistas de feio neodarwinista.
Por este motivo, acreditamos que o uso da palavra desenvolvimento mais adequado que evoluo. Embora a seleo natural darwinista no aponte necessariamente para uma melhoria das espcies o que apto para um determinado meio pode no ser apto para outro , este termo posteriormente adquiriu tal conotao. Lembremos, por exemplo, do neodarwinismo, do darwinismo-social, da sociobiologia e da eugenia. Evoluo muitas vezes confundida com progresso. Como para o empreendimento nietzschiano no cabe nenhum tipo de teleologia, ficamos com a primeira opo. Concordamos aqui com a posio de Antonio Marques em o Sujeito e o Perspectivismo, onde este comentador afirma que, para Nietzsche, as novas formas criadas a partir de dentro no se orientam segundo um fim (Marques, 1989, p. 94).
8 No aforismo 19 de Para alm de bem e mal Nietzsche afirma: ...pois nosso corpo apenas uma estrutura social de muitas almas... Em todo querer a questo simplesmente mandar e obedecer, sobre a base, como disse, de uma estrutura social de muitas almas: razo porque um filsofo
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como o fgado, o corao, o bao etc. so simples ferramentas da grande
razo. No mbito gnosiolgico isto significa, antes de mais nada, uma crtica
s correntes racionalistas e empiristas: Aquilo que os sentidos experimentam,
aquilo que o esprito conhece nunca tem seu fim em si mesmo. Mas os
sentidos e o esprito desejariam persuadir-te de que so eles o fim de todas as
coisas: tamanha sua vaidade. Mas partir dos sentidos, como os empiristas,
ou do esprito, como os racionalistas ou criticistas, para atingir o
conhecimento, uma iluso. Subjacente ao esprito, ou aos sentidos,
encontramos o si-mesmo9. ele que ter que ser o referencial para as questes
gnosiolgicas. Percebemos, assim, que Nietzsche volta sua crtica contra
sistemas como os de Locke, Hume, Descartes e Kant, dentre tantos outros.
Todos esses pensadores no teriam compreendido a anterioridade do si
mesmo, construindo uma dicotomia inexistente, ou melhor, ficcional, ou seja,
a dicotomia entre o corpo e a conscincia. Observamos, assim, que a to
endeusada conscincia se torna, com Nietzsche, um simples instrumento do
corpo; ele que ser o fio condutor da filosofia nietzschiana da maturidade. O
deve se arrogar o direito de situar o querer em si no mbito da moral moral, entenda-se, como a teoria das relaes de dominao sob as quais se origina o fenmeno vida.
9 Lembremo-nos do aforismo 16 de Para alm de bem e mal, onde Nietzsche faz uma crtica noo de sujeito: por exemplo, que sou eu que pensa, que tem de haver necessariamente um algo que pensa, que pensar atividade e efeito de um ser que pensado como causa, que existe um Eu, e finalmente que j est estabelecido o que designar como pensar que eu sei o que pensar. Pois se eu j no tivesse me decidido comigo a respeito, por qual medida julgaria que o que est acontecendo no talvez sentir ou querer?
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corpo, a grande razo, os afetos, enfim, a vontade de potncia ser o
paradigma para o ato de conhecer10.
Gostaramos de ressaltar um aspecto que nos parece fundamental para a
histria da filosofia. Sem sombra de dvida, Nietzsche, implodindo a
dicotomia entre corpo e alma, mostra que a conscincia se torna
simplesmente um instrumento do corpo. Contudo, acreditamos que Espinosa,
de alguma maneira, j apontava para esta questo. Na verdade, o filsofo da
tica foi o primeiro a enfatizar a importncia do corpo, ou melhor, a no
subordinao do corpo em relao alma, o que quer dizer que Espinosa nega
a superioridade da alma em relao ao corpo. Seno vejamos: essncia do
homem no pertence o ser da substncia; por outras palavras, a substncia no
constitui a forma do homem afirma Espinosa na proposio 10 do Livro II
da tica. Para compreendermos o sentido desta proposio e o enorme
rompimento dezessete sculos de histria da filosofia que efetua Espinosa
em relao tradio, necessrio analisarmos o que o filsofo entende por
substncia. Inicialmente, Espinosa vai definir esse conceito: Por substncia
entendo o que existe em si e por si concebido, isto , aquilo cujo conceito
10 Scarlett Marton aponta a relao, em Nietzsche, entre pensar, querer e sentir: pressupe-se aqui
que todo o organismo pensa, todas as formas orgnicas tomam parte do pensar, no sentir, no querer , por conseguinte, o crebro apenas um enorme aparelho de centralizao. No s o querer, mas tambm o sentir e o pensar esto disseminados pelo organismo; a relao entre eles de tal ordem que, no querer, j se acham embutidos o sentir e o pensar, de modo que pensamento, sentimento e vontade aparecem como indissociveis (Marton, 1990, p.32).
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no carece do conceito de outra coisa do qual deva ser formado (E, I, P III).
Substncia, para o filsofo da tica, aquilo que em si e por si e que
concebido por si mesmo11. Assim, a substncia espinosana , antes de
qualquer coisa, causa de si, ou seja, aquilo cuja essncia exige a existncia
necessria: Por causa de si entendo aquilo cuja essncia envolve a existncia;
ou, por outras palavras, aquilo cuja natureza no pode ser concebida seno
como existente (E, I, P 1). Notemos que aquilo que causa de si no se limita
a si mesmo, sendo necessariamente infinito. Ele forma a si mesmo e tambm a
totalidade dos seus atributos. Dentro de tal contexto, s podemos pensar em
uma nica substncia: Deus12. Espinosa afirma que, pelo fato de Deus ser uma
substncia, ele causa de si, porm ele tambm causa de todas as coisas, ou
seja, o ato pelo qual a substncia se autoproduz o ato pelo qual ela produz
tambm todas as coisas. Temos aqui a causalidade imanente. Deus imanente
natureza porque a sua essncia se exprime em todas as coisas. Assim, Deus
concebido como uma substncia que nica, infinita, complexa e constituda
por uma infinitude de qualidades infinitas. Como Deus a nica substncia,
tudo o que existe na natureza ser entendido como uma modificao desta
substncia. Percebemos aqui claramente o rompimento com a filosofia
11 Por meio desta definio, Espinosa deixa claro que a substncia no pode ser considerada um
suporte de acidentes, ou um sujeito de inerncia de predicados, pois ela ontologicamente se auto-explica. Alm disto, o filsofo demonstra que a substncia existe e subsiste por si mesma.
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cartesiana: o homem no uma substncia, ou um composto substancial, ele
uma modificao de Deus. Por isso, na proposio 10 acima citada, o filsofo
afirmou que a substncia no constitui a forma do homem. O homem,
modificao substancial, finito e constitudo por duas modificaes finitas
de dois atributos divinos: a alma e o corpo.
Espinosa desenvolve a sua teoria do corpo ou, se quisermos, a sua
fsica, no Livro II da tica. Levando em considerao o princpio de inrcia
elemento central da nova mecnica e, portanto, operando com a causa
eficiente interna, e no mais com a causa final, Espinosa define um corpo
como um indivduo complexo composto de outros corpos e constitudo por um
equilbrio interno na proporo de movimento e repouso13. No postulado
referente proposio XIII do Livro II da tica, Espinosa afirma que O
corpo humano composto de um grande nmero de indivduos (de natureza
diversa), cada um dos quais tambm muito composto, e ainda os
12 Espinosa constri a essncia de Deus nas proposies de 1 a 15 do Livro I da tica, tendo como
base a idia de substncia. 13 Afastamo-nos aqui da posio de Diogo Pires Aurlio em seu artigo Espinosa e Nietzsche: a
vontade de poder. Este comentador afirma: Mas o conatus, tal como Espinosa o concebe, alm de no se confundir com a potncia aristotlica, tambm no se confunde com a verso mecanicista que dele apresenta Descartes, toda ela decalcada no princpio de inrcia (org. Marques, 1986, p. 56). Para Diogo Aurlio, o fato de no podermos pensar o conatus espinosano como um corpora simplicissima j afastaria Espinosa do contexto que envolve o princpio de inrcia. Sem sombra de dvida, o corpo para Espinosa uma complexidade, e aqui o filsofo se distancia consideravelmente das partculas duras da fsica cartesiana. Todavia acreditamos que a mecnica a via de acesso fsica espinosana; veremos que o conatus espinosano s poder ser pensado perante a nova mecnica, pois graas a ela que a idia de uma finalidade, de uma causa final rompida, elemento essencial da doutrina espinosana.
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indivduos que compem o corpo humano e, consequentemente, o prprio
corpo humano, so afetados de numerosas maneiras pelos corpos exteriores.
Note-se que o que ir diferenciar um corpo de outro exatamente a diferena
entre movimento e repouso, rapidez e lentido. Assim, a idia de um
equilbrio interno fundamental para entendermos a noo espinosana do
conatus. O corpo vai agir, o corpo ir tornar-se uma causa agente, para
garantir este equilbrio interno. No nos esqueamos: Espinosa define o
indivduo pela causa, ou seja, quando vrios corpos atuam no mesmo sentido,
com uma causa nica, eles constituem um indivduo14. O filsofo afirma que a
alma idia do seu corpo e idia de si mesma. A alma , portanto, a
conscincia do que se passa no seu corpo, ou seja, conscincia das afeces
corporais afetos , alm de ser conscincia de si prpria15. Desta maneira, o
corpo constitui o objeto da alma, pois faz parte da sua essncia pens-lo16.
14 Como nos alerta Marilena Chau, no seu livro Espinosa uma filosofia da liberdade, O corpo
humano... uma unidade estruturada: no um agregado de partes, mas unidade de conjunto e equilbrio de aes internas interligadas de rgos, portanto, um indivduo. Sobretudo, um indivduo dinmico, pois o equilbrio interno obtido por mudanas internas contnuas e por relaes externas contnuas, formando um sistema de aes e reaes centrpeto e centrfugo, de sorte que, por essncia, o corpo relacional: constitudo por relaes internas entre seus rgos, por relaes externas com outros corpos e por afeces, isto , pela capacidade de afetar outros corpos e ser por eles afetado sem se destruir, regenerando-se com eles e os regenerando. O corpo, sistema complexo de movimentos internos e externos, pressupe e pe a intercorporeidade como originria (Chau, 1995, p.54). No captulo III da Dissertao, veremos como importante para Nietzsche a idia de relao. Alis esta noo fundamental, a nosso ver, para todo o projeto nietzschiano. No nos esqueamos: vida luta; e, para lutar, necessrio sobretudo oponentes, obstculos, enfim, relaes.
15 Como nos lembra Marilena Chau, A alma no idia de uma mquina corporal que ela observa de fora e sobre a qual formaria representaes. Espinosa demonstra com preciso: ela idia das afeces corporais. Em outras palavras, conscincia dos movimentos, das mudanas, das aes
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Na proposio 7 do Livro II da tica, Espinosa nos apresenta as
relaes complexas que se estabelecem entre o corpo e a alma: A ordem e a
conexo das idias a mesma que a ordem e a conexo das coisas. Para ele,
existe uma nica substncia operando em ns atravs de dois modos de dois
atributos: o corpo e a alma. Assim, o homem simplesmente exprime a unidade
complexa dos atributos na substncia. O que o atributo extenso faz o atributo
pensamento compreende. Contudo, ele acrescenta: Nem o corpo pode
determinar a alma a pensar, nem a alma determinar o corpo ao movimento ou
ao repouso ou a qualquer outra coisa (se acaso existe outra coisa) (E, III, P
2). Para o filsofo da tica no existe relao causal entre o corpo e a alma.
Os corpos so determinados pelo atributo extenso e as almas so
determinadas pelo atributo pensamento. O que existe entre eles uma
correspondncia, se quisermos, um paralelismo. Assim, a causalidade que
rege os modos uma causalidade intra-atributiva: a alma opera no interior do
atributo pensamento, e o corpo no interior do atributo extenso, havendo a
completa independncia entre a causalidade psquica e a causalidade corporal.
e reaes de seu corpo na relao com outros corpos, das mudanas no equilbrio interno de seu corpo sob a ao das causas externas. A alma conscincia da vida de seu corpo e conscincia de ser consciente disso. Deixa de existir, portanto, o problema metafsico da unio entre a alma e o corpo: da essncia da alma, por ser atividade pensante estar ligada ao seu objeto de pensamento, o corpo. Melhor, vida do seu objeto (Chau, 1995, p. 60).
16 Este pensamento pode ocorrer de vrias maneiras: atravs das noes comuns, de idias imaginativas, de desejos ou por meio de idias reflexivas. Assim, o conhecimento pode se dar de modo confuso e imaginativo, como tambm de modo verdadeiro. No presente trabalho, por questes metodolgicas, no trabalharemos a teoria do conhecimento espinosana.
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Como esta relao deriva diretamente da unidade dos atributos na substncia,
o homem ontologicamente concebido como uma unidade entre corpo e alma.
Este corpo e esta alma no possuem uma relao hierrquica, so ativos
juntos, ou passivos juntos. O que ao na alma tambm necessariamente
ao no corpo, e o que paixo no corpo necessariamente paixo na alma
(E, III, P2, E). Neste sentido, no existe predomnio do corpo em relao
alma, nem da alma em relao ao corpo. Desta maneira, no podemos explicar
a ao e a paixo pela atividade causal entre o corpo e a alma, ou seja, a alma
no possui mais o poder sobre as paixes do corpo como afirmava a tradio,
pois a alma passiva junto com o corpo. Expliquemos: a alma s pensa aquilo
que o corpo faz. Portanto, se a alma anseia por crescer, necessariamente o
corpo tem que aumentar a sua potncia17. Neste sentido o empreendimento
espinosano abre a possibilidade para pensarmos a relao entre corpo e alma
de uma maneira distinta da tradio. As paixes, os afetos, enfim, o corpo tem
seu lugar assegurado neste novo modo de refletir sobre a natureza humana.
Notemos que, em pleno sculo XVII, existe uma filosofia que sob o mos
geometricus denuncia a conscincia, os valores e as paixes tristes.
17Deleuze, em seu livro Espinosa e os signos, escreve que Espinosa prope aos filsofos um novo
modelo: o corpo. Prope-lhes instituir o corpo como modelo: No se sabe o que pode o corpo.... Esta declarao de ignorncia uma provocao: ns falamos da conscincia e dos seus decretos, da vontade e dos seus efeitos, dos mil meios de mover o corpo, de dominar o corpo e as paixes mas no sabemos realmente o que pode um corpo. Tagarelamos, falta de o saber. Como dir Nietzsche, espantamo-nos diante da conscincia, mas o que surpreendente , acima de tudo, o corpo (Deleuze, 1970, p.25).
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Para Espinosa, o corpo composto de outros corpos e constitudo por
um equilbrio interno na proporo de movimento e repouso. Utilizando a
nova mecnica, ele pode afirmar que um corpo no age em busca de uma
finalidade: ele opera segundo sua causa eficiente interna. E no poderia ser
diferente; por meio da ontologia espinosana observamos que a natureza
humana um modo finito dos atributos da substncia. Os atributos no agem
tendo em vista fins; agem como um desdobramento necessrio da sua
potncia. O homem exprime os atributos da substncia; assim, os homens
operam tambm segundo a causa eficiente interna. E se, para Espinosa, a alma
idia das afees do corpo e idia de si mesma, seja na relao da alma com
o corpo, seja na relao da alma consigo mesma, tambm no encontraremos
uma relao finalista. Assim, afirmando somente a causa eficiente interna,
Espinosa pode definir o conatus: Toda a coisa se esfora, enquanto est em
si, por perseverar no seu ser (E, III, P 6); e ademais: O esforo pelo qual
toda coisa tende a perseverar no seu ser no seno a essncia atual dessa
coisa (E, III, P 7). Assim, o corpo apresenta internamente,
imanentemente, um esforo para manter o seu equilbrio interno, e a alma,
da mesma maneira, possuiria a conscincia deste esforo.
No corpo, o conatus se chama apetite e, na alma, se chama desejo. O
corpo humano, como uma complexidade, pode afetar e ser afetado de
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inmeras maneiras por outros corpos. Espinosa construir a sua teoria dos
afetos apoiado em um nico critrio a variao da intensidade do conatus, ou
em termos nietzschianos, "o aumento ou a diminuio da potncia. Desta
maneira, o corpo humano interage com outros corpos sempre aumentando ou
diminuindo a sua potncia de agir. O pensador acrescenta que o conatus
envolve uma durao indefinida, pois perseverar durar: O esforo pelo qual
cada coisa tende a perseverar no seu ser no envolve tempo finito, mas um
tempo indefinido (E, III, P 8). Podemos dizer que o homem, relacionando-se
com outros modos, pode determinar-se e ser determinado pelo mundo exterior.
Aqui o homem esfora-se por aumentar a sua potncia ou, na linguagem
espinosana, busca paixes alegres18: Quando a alma imagina coisas que
diminuem ou reduzem a potncia de agir do corpo, esfora-se, tanto quanto
pode, por se recordar de coisas que excluem a existncia delas (E, III, P 13).
Contudo, corre-se o risco de encontrar algo mais potente que ns, sob o qual
se pode at morrer. Como o conatus uma essncia atual de um modo finito,
18 Como nos lembra Deleuze: De qualquer modo, o conatus define o direito do modo existente.
Tudo aquilo que eu sou determinado a fazer para perseverar na existncia (destruir o que no me convm, o que me nega, conservar o que me til ou me convm) pelas afeces dadas (idias de objetos), sob afetos determinados (alegria e tristeza, amor e dio), tudo isso o meu direito ou natureza. Este direito rigorosamente idntico minha potncia, e independente de toda a ordem de fins, de toda a considerao de deveres, visto que o conatus fundamento primeiro, primum movens, causa eficiente e no final. Este direito no contrrio nem a lutas, nem a dios, nem a clera, nem ao engano, nem absolutamente a nada do que o apetite aconselha. O homem racional e o insensato distinguem-se pelas suas afees e pelos seus afetos, mas esforam-se igualmente por perseverar na existncia em funo de tais afees e afetos: deste ponto de vista, a sua nica diferena radica na potncia (Deleuze, 1970, p.122-3).
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ele no possui internamente nenhuma causa para desaparecer. Assim, a morte
sempre aquilo que vem de fora; ela s surge por intermdio da luta com
corpos exteriores, portanto, o conatus possui uma durao ilimitada at que
causas exteriores mais fortes o destruam. No limite, a finitude o que vem de
fora, ela s ocorre na relao com o outro19. Dentro de tal contexto, evidente
que o homem buscar sempre elevar a sua potncia de agir e fugir daquilo que
diminui a sua potncia, ou seja, das paixes tristes.
No final do livro III da tica, Espinosa apresenta a definio geral dos
afetos: Um afeto, chamado paixo do nimo (animi pathema), uma idia
confusa pela qual a alma afirma a fora de existir, maior ou menor do que
antes, do seu corpo ou de uma parte deste, e pela presena da qual a alma
determinada a pensar tal coisa de preferncia a tal outra. Por conseguinte, as
paixes so afetos pelas quais a potncia de agir deste corpo aumentada ou
diminuda, e pelo paralelismo, o mesmo ocorrendo com a potncia da
mente. A paixo, para o filsofo, est vinculada ao campo da imaginao. Por
qu? Pois necessariamente na paixo somos causa inadequada de nossos
apetites e desejos. Em outras palavras, a exterioridade aqui mais potente do
que nossa interioridade corporal e psquica. De fato, a grande virada da
filosofia espinosana em relao tradio que as paixes no so vistas
19 Como afirma Espinosa (E, III, P IV): Nenhuma coisa pode ser destruda, a no ser por uma
causa exterior.
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como vcios ou foras do mal20. Os homens so naturalmente seres
passionais21. Mediante a teoria das paixes, Espinosa demonstra que o acesso
verdadeiro pode ser atingido pela alma. Decerto isto ocorre quando ela assume
sua prpria essncia, sua prpria potncia, ou seja, a capacidade plena para
pensar. Contudo, o contrrio tambm pode ocorrer. A paixo aumentando ou
diminuindo imaginariamente a intensidade do conatus. Esse aumento ou esta
diminuio da fora para existir, no campo imaginativo, o que Espinosa
denomina servido22.
A filosofia espinosana prope a busca da alegria e a impossibilidade de
se fugir das paixes; os homens so intrinsecamente apetites e desejos.
Portanto, temos em Espinosa a naturalizao dos afetos; ao homem s cabe
controlar estes afetos. Este controle ocorre quando o sujeito a causa total do
20 Lembremos o comentrio de Marilena Chau: Esto desfeitos tanto o voluntarismo quanto o
intelectualismo que pretenderam, durante sculos, outorgar vontade e razo um poder que no possuem e que, justamente para encobrir a impotncia de ambas, inventou a moral asctica e a moral dos fins e valores como paradigmas externos a serem obedecidos pelos humanos. O moralismo, impondo finalidades externas ao apetite e ao desejo humanos, impondo modelos de virtudes e vcios, a forma imaginria de suprir o fracasso de um outro imaginrio: o da vontade onipotente e da razo onisciente capazes de exercer o pleno imprio da alma sobre o corpo... Da decorre uma outra inovao espinosana [que sem dvida ser retomada por Nietzsche, LZ]: ...bom e mau no so valores em si nem correspondem a qualidades que existiriam nas prprias coisas. Bom tudo quanto aumente a fora de nosso conatus. Eis por que Espinosa afirma que algo no desejado por ns por ser bom, mas bom porque o desejamos (Chau, 1995, p.67).
21 Espinosa apresenta as definies dos afetos no Livro III da tica. A seguir daremos as definies dos trs afetos primrios. Os demais so dedues destes. O desejo (Cupiditas) a prpria essncia do homem, enquanto esta concebida como determinada a fazer algo por um afeto qualquer nela verificada (E, III, P IX, E); A alegria (Laetitia) a passagem do homem de uma perfeio menor para uma maior (E, III, P XI, E); A tristeza (Tristitia) a passagem do homem de uma perfeio maior para uma menor (E, III, P XI, E ).
22 Sobre a relao entre servido e liberdade em Espinosa, cf. o artigo de Chau, 1993, "Servido e Liberdade na tica IV", in Discurso, 22, p.63.
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que se passa com ele (causa adequada); caso contrrio, o sujeito poder ser
controlado por algo exterior a ele (causa inadequada). A diferena entre o
esforo de autopreservao adequado e o inadequado que o primeiro realiza
este esforo exclusivamente a partir da sua potncia interna, enquanto o
segundo depende de causas exteriores. Podemos afirmar que a natureza
humana sempre buscar o que a favorece e afastar o que a prejudica, pois o
nico critrio o aumento ou a diminuio da potncia. Por isso, a essncia do
homem nunca se modifica o que varia a intensidade do conatus, a essncia
singular permanece indefinidamente a mesma. Neste contexto, Nietzsche se
aproxima da posio espinosana. Na Genealogia da Moral, o pensador mostra
que os tipos so constitudos por uma multiplicidade de instintos, sugerindo,
portanto, graus nesta tipologia. Assim, o que varia, tal como em Espinosa, a
intensidade da vontade de potncia23. A essncia, o tipo, permanece, no
limite, o mesmo.
Desta aproximao surge um outro aspecto fundamental para
entendermos o empreendimento de ambos os filsofos. Espinosa define a
paixo como inadequao; contudo, ela absolutamente natural. O homem
23 No poderamos deixar de mencionar o background fisiolgico que existe no filosofar de
Nietzsche. Os tipos so complexos de vontades de potncia, complexos de impulsos e so estes que iro, no limite, servir de fundamento para a tipologia nietzschiana. Lembremos do seguinte pstumo: Os estados morais so estados fisiolgicos (IX, 6 (445)). Sobre esta questo, cf. Onate, 1997, dissertao de mestrado de Alberto Marcos Onate, O Crepsculo do sujeito em Nietzsche ou como abrir-se ao filosofar sem metafsica.
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finito, portanto, ele necessita da relao com os outros corpos para existir. E
neste momento que surge a paixo, na luta com os corpos exteriores.
Observamos que, para a filosofia espinosana, o conflito originrio, pois os
homens intrinsecamente como modos finitos relacionam-se com os outros
corpos24. Logo, o filsofo da tica rompe com qualquer transcendncia
moral, ou, se preferirmos, os valores esto para alm de bem e mal. Cada
corpo distintamente guiado pelo seu prprio conatus; no limite, somos ns
humanos que impomos valores s coisas. No existe, portanto, possibilidade,
dentro da filosofia espinosana, para uma tica normativa. Assim, o homem
no age por bondade, por caridade ou por amor ao prximo, por exemplo;
sempre o conatus, logo, o interesse particular de cada corpo que o guia. No
limite, a direo sempre dada pelo desejo e pelo apetite de cada um de ns.
A filosofia nietzschiana, sabemos, tem como fio condutor esta mesma
impossibilidade. Nietzsche, por intermdio do procedimento genealgico,
mostra a origem humana de todos os valores. Para a conservao e aumento de
sua potncia, a vida, em suas manifestaes complexas, institui valores (bem e
mal, verdadeiro e falso, belo e feio). Desta maneira, todos os tipos de valores
24 Contudo, gostaramos de lembrar que cada modo finito uma potncia de agir que busca a
autopreservao. Essa busca, ao fazer-se imaginativamente por meio das paixes, institui a luta originria entre todos os seres e entre todos os homens, na medida em que o direito natural se define pela fora. Espinosa considera, porm, que a Natureza Naturada um sistema racional de relaes necessrias de concordncia entre as partes, de sorte que, inimigos passionais, os homens podem tornar-se amigos racionais quando seguem as leis da Natureza de maneira no passiva (passional), mas ativa (racional afetiva) .
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estaro vinculados sempre a condies de conservao e aumento de potncia
especficos de cada corpo. Para o filsofo alemo, a vida humana um
combate constante, e nesta luta cada espcie viva sobrevive criando valores.
Desta maneira, Nietzsche vincula os valores a interesses de ordem prtica25.
Temos aqui, de modo similar a Espinosa, a naturalizao dos valores.
Para Espinosa, o critrio utilizado para determinar a relao entre os
corpos o aumento ou a diminuio da potncia de agir de um determinado
corpo. Portanto, necessariamente o homem busca o aumento da sua potncia,
consequentemente, o homem busca, no limite, as paixes alegres. Observamos
tambm que este critrio a variao da intensidade do conatus no
guiado por uma causa final. Desta maneira, acreditamos poder apontar um
equvoco por parte de Nietzsche. Em Para alm de bem e mal, aforismo 13, o
filsofo afirma: Os fisilogos deveriam refletir, antes de estabelecer o
impulso de autoconservao como o impulso cardinal de um ser orgnico.
Uma criatura viva quer antes de tudo dar vazo sua fora a prpria vida
vontade de potncia : a autoconservao apenas uma das indiretas, mais
freqentes conseqncias disso. Em suma: nisso, como em tudo, cuidado
com os princpios teleolgicos suprfluos! um dos quais o impulso de
autoconservao (ns o devemos inconseqncia de Espinosa). Assim pede
25 Sobre esta questo, cf. o captulo II da Dissertao, A verdade como fico.
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o mtodo, que deve ser essencialmente economia de princpios. Inicialmente,
o conatus no simplesmente um impulso de autoconservao. evidente
que o conatus pode ser definido como a tendncia de um corpo para
perseverar no seu ser. Contudo observamos que, pela construo da sua
teoria dos afetos, Espinosa deixa claro que o aumento (e eventualmente a
diminuio) da potncia de um determinado corpo essencial para a vida
deste corpo. Alis, os corpos, modos finitos, necessitam da relao com os
corpos exteriores e, portanto, aumentam ou diminuem a sua potncia quando
interagem. Em segundo lugar, o conatus no um princpio teleolgico
suprfluo. Vimos que Espinosa rompe com a idia aristotlica de
finalidade26.
Contudo gostaramos de apontar uma diferena que nos parece
fundamental. O indivduo, para Espinosa, a convenincia dos corpos
microscpicos numa ao comum. No obstante, o conflito pode ser
considerado originrio da natureza humana, pois este ocorre na relao entre
26 O conceito nietzschiano Wille Zur Macht traduzido, dependendo dos comentadores, ora por
vontade de potncia, ora por vontade de poder. Analisando o percurso que fizemos at aqui, acreditamos que a primeira traduo a que melhor expressaria o conceito nietzschiano. Lembremos que a vida, para Nietzsche, entendida como conservao e intensificao de potncia. Esta intensificao no possui teleologia alguma, ela simplesmente efetiva-se. A todo momento a vontade de potncia tenta se superar. A vida como um todo identifica-se com esta superao, dominao. Ora, vimos em vrias passagens que o conatus uma potncia; uma potncia imanente que se efetua sem nenhuma finalidade. Portanto encontramos, j em Espinosa, a desconstruo do sentido aristotlico do termo potncia. Como este conceito chave para a elaborao da teoria gnosiolgica de Nietzsche, bem como para seus outros temas, acreditamos que restringi-lo ao mbito poltico vontade de poder seria limitar a prpria filosofia de Nietzsche.
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os corpos. Por isso, Espinosa define a paixo como inadequao quando a
exterioridade mais potente que a interioridade. No caso nietzschiano, a luta
ocorre em todos os seres vivos microscpicos. Portanto, a vontade de potncia
essencialmente dominao. O que no ocorre na definio espinosana do
conatus. Talvez neste sentido, e somente neste sentido, Nietzsche possa ter
pensado o conatus espinosano como um princpio de autoconservao do ser.
Pois o corpo sozinho, para Espinosa, tende somente a se perseverar no seu
estado e no a se intensificar. Aqui, Nietzsche teria radicalizado: o conflito
que era intrnseco relao entre os corpos passa a ser intrnseco a um mesmo
corpo. Talvez a diferena esteja no que ambos entendem por corpo: para
Espinosa, nos simplssimos que compem o complexo o conatus
perseverao no seu estado, ou seja, temos aqui somente a conservao; j nos
complexos que constituem o indivduo, o conatus perseverao no ser, e
aqui sim temos a intensificao.
Observamos que Nietzsche, escrevendo ao seu amigo Overbeck, disse
em 1881 estar surpreso e encantado por encontrar em Espinosa um
predecessor capaz de transformar sua prpria solido em uma solido a dois27.
Nesta carta, ele enumerou cinco pontos todos temas ticos da filosofia de
Espinosa que coincidem com seus prprios argumentos. A noo de afeto
27 Carta Overbeck de 30/06/81, Sils Maria.
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em Espinosa aponta para a impossibilidade de uma tica normativa, o mesmo
ocorrendo com Nietzsche. Em 1888, tendo j elaborado toda a sua filosofia,
Nietzsche assim resumiu sua tica: O que bom? Tudo o que aumenta no
homem o sentimento de potncia, a vontade de potncia, a prpria potncia. O
que ruim? Tudo o que nasce da fraqueza. O que a felicidade? O sentimento
de que a potncia cresce, de que uma resistncia foi vencida. No o
contentamento, mas mais potncia. No a paz finalmente, mas a guerra; no a
virtude, mas a excelncia (virtude no estilo do Renascimento, virt, virtude
isenta de moralismos) (AC 2). Aps este breve percurso em que abordamos
a ontologia espinosana, no ficaramos surpresos, de forma nenhuma, se este
aforismo fosse de autoria de Espinosa28.
Vontade de potncia e conatus apontam para a naturalizao dos afetos,
impossibilidade de uma tica normativa e, enfim, rompem com qualquer
transcendncia moral29. claro que no empreendimento espinosano, em pleno
sculo XVII, no fervor da chamada revoluo cientfica, a razo possui um
lugar privilegiado. Inimigos passionais, os homens, seguindo as leis da
natureza de maneira ativa racional afetiva , podem tornar-se amigos.
Existe, portanto, um sistema racional que garante uma necessria
28 Claro que, no caso de Espinosa, ele no concordaria com a posio de Nietzsche em relao
guerra. Afinal, para o filsofo excomungado do judasmo, a paz superior guerra. Quanto ao restante do aforismo, acreditamos que os dois pensadores se poriam de acordo.
29 Em termos deleuzianos, ambos os pensadores apontam para um plano de imanncia.
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concordncia entre as partes. E este o objetivo para aqueles que almejam a
verdadeira liberdade. No caso de Nietzsche, a conscincia simplesmente um
instrumento do corpo. Assim, fica sem sentido enumerar as faculdades
intelectuais. Querer, pensar, agir, sentir fazem parte de um todo e mesmo
processo. o corpo, no limite, que comanda. Contudo, ambos apontam para a
necessidade de um olhar interessado para o mundo; pois, antes de qualquer
coisa, so os afetos que conduzem este novo olhar.
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A verdade como ficoA verdade como fico
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Verdade
A porta da verdade estava aberta,
mas s deixava passar meia pessoa de cada vez.
Assim no era possvel atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava s trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis no coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividida em metades diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente mais bela. E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua iluso, sua miopia.
Carlos Drummond de Andrade
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Na tradio filosfica o termo verdade recobre uma vasta gama de
significados. Em seu sentido mais amplo, a razo o meio para se alcanar a
verdade. Na medida em que se fez guardi da racionalidade, a filosofia
debateu-se exaustivamente em estabelecer as condies do conhecimento
verdadeiro. Ora, Nietzsche na contracorrente prope o corpo como
paradigma do conhecimento, ou seja, com ele teremos de repensar o estatuto
dos conceitos gnosiolgicos. O que significa esta fisiologizao da teoria do
conhecimento? Ser que Nietzsche, nesse contexto, possuiria um critrio de
verdade? Acreditamos que seja necessrio refazer o percurso da crtica
nietzschiana lgica e linguagem para que, ao final deste trajeto, possamos
reunir elementos suficientes para responder a estas questes.
No terceiro aforismo de Para alm de bem e mal Nietzsche escreve:
Por trs de toda lgica e de sua aparente soberania de movimentos existem
valoraes, ou, falando mais claramente, exigncias fisiolgicas para a
preservao de uma determinada espcie de vida... tais avaliaes poderiam,
no obstante a sua importncia reguladora para ns, ser apenas avaliaes-de-
fachada, um determinado tipo de niaiserie, tal como pode ser necessrio
justamente para a preservao de seres como ns.... O pensador vincula
valoraes com exigncias fisiolgicas, ou seja, o conhecimento, no caso
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especfico a lgica, ligado preservao ou, se quisermos, conservao de
determinadas formas de vida. Nietzsche, na esteira de Schopenhauer, aborda
as questes do conhecimento no registro fisiolgico: A questo em que
medida ele promove ou conserva a vida, conserva ou at mesmo cultiva a
espcie (BM 4).
Ns vemos que o instrumento da inteligncia, quer dizer, o sistema
cerebral e os rgos dos sentidos foram desenvolvidos de acordo com as
necessidades do organismo; o aumento da parte representativa (em oposio
parte volitiva) da conscincia, tem sua expresso fsica (corporal) na
predominncia do crebro sobre o cerebelo (grifo nosso) afirma
Schopenhauer no captulo XIX dos Suplementos do Mundo como vontade e
representao (Schopenhauer, 1978, p.13). Apontando o a priori no crebro e
introduzindo a vontade no lugar do sujeito transcendental, Schopenhauer
opera uma inverso em relao ao kantismo. Enquanto Kant pretende mostrar
o funcionamento da mente, aplicando o a priori na experincia, Schopenhauer
vai alm, objetivando apresentar a origem deste a priori. Para ele, so dados
cerebrais inatos. Analisemos mais de perto como o filsofo opera esta
fisiologizao do crebro, pois conduzir, sem sombra de dvida, a uma nova
viso das questes gnosiolgicas.
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No captulo intitulado Da primazia da vontade sobre a conscincia de
si30 encontramos a tese schopenhaueriana da superioridade da vontade sobre
o intelecto. Aqui o filsofo mostra que a conscincia condicionada pelo
intelecto e, este, um mero acidente do ser, pois ele uma funo do crebro
e, como outros rgos do corpo (nervos, medula, etc.) um parasita do
organismo. De fato, o crebro, para o filsofo do Mundo, serve somente para a
autoconservao. Inicialmente, o pensador afirma: O organismo, ele mesmo,
a vontade individual objetivada; o organismo sua imagem e como imagem
que aparece para o crebro (p.13). Esta imagem fenmeno se d pelas
formas do conhecimento que se localizam no crebro: espao, tempo e
causalidade. O filsofo prossegue: o intelecto o fenmeno secundrio, o
organismo o fenmeno primrio, a saber, o fenmeno imediato da vontade; a
vontade metafsica, o intelecto fsico. O intelecto tanto quanto estes
objetos um puro fenmeno; a vontade somente coisa-em-si... A vontade a
substncia no homem, o intelecto o acidente; a vontade a matria, o
intelecto a forma, a vontade o calor, o intelecto a luz (p.13). Percebemos
que o elemento primeiro e original a vontade; o sujeito cognoscente, por
outro lado, somente o fenmeno secundrio e derivado. Assim, encontramos
30 Este captulo o XIX dos Suplementos do Mundo como vontade e representao. Todas as
citaes a seguir referem-se a ele.
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necessariamente a superioridade da vontade sobre o intelecto. Este ltimo
somente uma frao em relao ao organismo como um todo.
Para Schopenhauer, a conscincia de si s possvel perante a
dicotomia sujeito/objeto: A inteligncia como o sol que somente ilumina o
espao graas presena dos corpos, que reflete seus raios (p.14). Isto
significa que sem a presena dos objetos exteriores no h o que ser refletido.
Sabemos ainda, continua o filsofo, que o sujeito do conhecimento no pode
ser conhecido; isto s ocorreria se ele fosse o objeto conhecido de um outro
sujeito do conhecimento. Assim, o pensador conclui: mas como o elemento
conhecido na conscincia de si ns encontramos exclusivamente a vontade
(p.14), e ainda: So, em efeito, as pulses e as modificaes da vontade e,
no somente a volio e a resoluo, no sentido restrito do termo, mas ainda
toda aspirao, todo desejo, toda repulso, toda esperana, toda crena, todo
amor, todo dio, em suma, tudo que imediatamente constitui a felicidade ou o
sofrimento, o prazer e a dor; todos estes estados da alma so precisamente os
atos da vontade, enquanto agindo no exterior (p.14). Assim, em qualquer
conhecimento, o elemento conhecido e no o que conhece o elemento
primeiro e essencial, o prottipo; o sujeito que conhece, por outro lado, a
cpia ou o ctipo. Utilizando uma rvore como analogia, Schopenhauer
afirma: a raiz a vontade, a corola o intelecto e o ponto comum entre as duas
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o eu. O eu o milagre por excelncia o sujeito pro tempore do
conhecimento e da vontade. O eu o ponto de partida e de contato de todo
fenmeno, ou melhor, da objetidade (Objektitt) da vontade31: Do mesmo
modo que uma grande corola provm geralmente de uma grande raiz, as
grandes habilidades mentais so encontradas somente nos indivduos que
possuem uma vontade violenta e passional (p.15). Encontramos aqui uma
prova fisiolgica da relao entre a vontade e o intelecto; a impetuosidade
da vontade condio para a potncia intelectual: atividade cerebral que
determinada pelo movimento que as grandes artrias que correm base do
crebro e se comunicam com ele a cada pulsao (p.15).
Para reafirmar sua tese, o filsofo introduz a seguinte questo: o que
diferencia os homens dos animais? Sabemos, pois nos familiar, que os
animais querem viver, se propagar, se reproduzir. E, como os objetos desta
vontade so idnticos aos homens, estes no hesitam por analogia em
atribuir aos animais todas as afeces da vontade que os homens observam
neles mesmos: desejos, repugnncias, clera, dio, amor, tristeza etc.
Contudo, o filsofo acrescenta que, quanto aos fenmenos do conhecimento
animal, ns freqentemente camos em incertezas: De um lado, o que
31 Com o termo objetidade Schopenhauer indica o corpo humano como um ponto privilegiado entre
subjetividade e objetividade. De um lado encontramos a imediatez da vontade, de outro, a mediatez do intelecto. a partir deste cruzamento que se pode ter acesso aos objetos exteriores.
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peculiar a toda conscincia, o desejo, as aspiraes, a vontade, a repugnncia,
a averso, o no-querer. Isto o essencial e a base de toda conscincia. De
outro lado, encontramos o abismo entre ns e os animais: o intelecto (p.16).
Assim, ele pode concluir que em todos os seres animais a vontade o
elemento primeiro e o intelecto uma derivao deste; de fato, o intelecto um
mero instrumento a servio da vontade. Em tal contexto, no nos
surpreenderia em nada se Schopenhauer tivesse afirmado: Instrumento do teu
corpo , tambm, a tua pequena razo, meu irmo, qual chamas esprito,
pequeno instrumento e joguete da tua grande razo (Nietzsche, Zaratustra, II,
Dos desprezadores do corpo). esta a grande herana que Nietzsche receber
de Schopenhauer: o fisiolgico como ponto de partida para o conhecimento.
Ora, qual foi o erro fundamental de todos os filsofos? (p.17). Eles
acreditaram sempre que o elemento essencial o pensamento alma e
sempre olharam a vontade como alguma coisa secundria e adicional32.
Contudo, se verdade que a vontade emana da inteligncia, como podem os
animais ter um conhecimento extremamente pobre e ao mesmo tempo uma
32 Como nos lembra Maria Lcia Mello e Oliveira Cacciola, no seu artigo Schopenhauer e o
inconsciente, quanto maior a complexidade do organismo e quanto maiores suas necessidades, tanto mais extensa a parte representativa da conscincia. no homem que esta fora de representao adquire o maior grau de perfeio e ele no somente capaz de representaes intuitivas, mas tambm de representaes abstratas e, portanto, dotado de pensamento e Razo. por isso que nele a parte secundria da conscincia adquire papel preponderante e, por mais fortes que sejam seus apetites e paixes, sua mente est sempre ocupada com representaes e pensamentos. a que Schopenhauer detecta a gnese do erro fundamental cometido pelos
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vontade veemente e violenta? este o grande erro cometido pela tradio:
falar em acidente no lugar de substncia. O intelecto limitado e imperfeito,
j a vontade: Por sua simplicidade como coisa-em-si, como parte metafsica
do fenmeno, seu ser no admite graus, sempre e inteiramente a mesma
(p.18). Na verdade, o organismo, como um todo, a prpria vontade
corporificada, quer dizer, vista objetivamente no crebro.
Todavia, no nos enganemos. Para o pensador do Mundo, o crebro
uma estrutura que est presente igualmente em todos os seres, e isto garante a
objetividade do conhecimento. Schopenhauer do ponto de vista da
representao33 mantm ainda uma estreita ligao com o chins de
Knisgberg34. Por outro lado, no podemos esquecer que a filosofia
filsofos que atribuem a primazia ao pensamento ou quilo que chamam de alma, isto , a vida espiritual ou inferior dos homens (Cacciola, 1991, p.20).
33 Referimo-nos aqui ao livro de Cacciola, Schopenhauer e a questo do dogmatismo, onde a autora mostra que, para se compreender o empreendimento schopenhaueriano, necessrio olhar para os dois lados do mundo: Assim, o dualismo Vontade e intelecto, coisa-em-si e representao, pode ser interpretado de forma no-reificadora, mas como expresso de uso corrente nos textos schopenhauerianos: os dois lados da mesma moeda, os dois lados da lua, o visvel e o no-vivvel (Cacciola, 1994, p.53).
34 Rubens Rodrigues Torres Filho, no seu belo artigo Dogmatismo e Antidogmatismo Kant na sala de aula (Torres Filho, 1987), mostra a importncia da proposio als na Crtica da razo pura. Esta proposio, inexistente em portugus, significa no sentido de, ou tomadas como. Assim, teramos de um lado, as coisas als objetos da experincia, e de outro, as mesmas coisas als coisas em-si mesmas. Schopenhauer, na esteira de Kant, tambm afirma a dupla significao do Mundo, ora considerando-o como (als) representao, ora como (als) vontade. Alis, dentre os elogios que o pensador do Mundo faz a Kant, encontramos a distino entre fenmeno e coisa-em-si. Nesta direo, Schopenhauer pode ser considerado um continuador do criticismo. Se a dupla significao do Mundo j pode ser considerada uma matriz do perspectivismo nietzschiano, infelizmente, no temos argumentos suficientes para responder. De qualquer maneira, acreditamos que esta dupla significao introduz uma dicotomia, que no cabe no empreendimento nietzschiano. Sobre esta questo, cf. captulo III desta Dissertao.
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schopenhaueriana no possui fundamento transcendente. A vontade como
coisa-em-si est em toda parte, do reino mineral ao orgnico. No entanto,
Schopenhauer claro: para conhecer o ntimo da vontade teramos de aplicar o
princpio de razo. Ora, este s pode ser aplicado no mundo enquanto
representao: A vontade como coisa-em-si permanece estrangeira ao
domnio do princpio de razo em todas as suas figuras e , por conseguinte,
absolutamente sem fundamento. Assim sendo, encontramos neste
empreendimento filosfico uma metafsica imanente. O pensador rompe com
qualquer mundo supra-sensvel ou transcendente. Afinal, no nos esqueamos:
o nosso mundo rodeado por guerras, dios, sofrimentos. Assim, a vontade
originariamente autodiscrida, um impulso cego. Neste sentido, onde o mal
prevalece, o bom Deus est excludo.
Deus est morto! com esta afirmao Nietzsche aponta o maior
acontecimento da histria universal e localiza, assim, o ponto de partida de
sua reflexo filosfica. Deus sinnimo de transcendncia, de idealidade; ele
o fundamento dos valores absolutos: Belo, Bem, Verdadeiro. Com a morte
de Deus, o filsofo alemo coloca a vida humana na sua verdadeira dimenso,
denunciando os antropomorfismos e as iluses transcendentes. Neste sentido,
a divinizao do mundo, o alm-mundo, a metafsica sero o alvo privilegiado
da crtica nietzschiana. Anunciada a morte de Deus, o conhecimento no pode
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mais possuir legitimao transcendente; portanto, cabe ao homem ser o doador
de todo e qualquer sentido. Vimos que Nietzsche, na esteira de Espinosa,
acredita ser a perspectiva humana, com o seu olhar interessado, o fio condutor
desta nova viso acerca do conhecimento. A to sonhada verdade torna-se
uma criao humana, demasiado humana; contudo, nada de niilismos. Se o
conhecimento no mais visto como passivo e necessrio, no importa; o
homem que fornecer este sentido. Neste contexto, o filsofo abre um espao
para se pensar os valores dentro de uma concepo naturalista, na qual a
fisiologia possui um papel determinante.
A gnosiologia ser abordada como uma atividade ligada vida que
necessita intrinsecamente conservar-se, preservar-se. Todos os tipos de valores
esto ligados s condies de conservao e eventualmente de crescimento de
potncia, e com o conhecimento no seria diferente: no conhecer, mas
esquematizar, impor ao caos suficiente regularidade e formas para satisfazer
s nossas necessidades prticas... O constrangimento subjetivo de no poder
sustentar o contrrio um constrangimento biolgico: o instinto do interesse
prtico que existe a raciocinar como ns raciocinamos, ns o temos no sangue,
ns somos por assim dizer este instinto... (XIII,14 (152)). Dentro deste
mbito, a proposta nietzschiana em relao ao conhecimento a de perceber a
realidade de diferentes modos, explorar suas implicaes e conseqncias e
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localizar quais so mais ou menos teis para o homem, porque, no limite, o
homem conhece o mundo sempre com o objetivo de control-lo. Os
instintos, para os homens se conservarem, visam utilidade: A aberrao da
filosofia vem do fato de que em lugar de ver na lgica e nas categorias da
razo meios de acomodar o mundo para fins utilitrios (logo, por princpio,
de uma falsificao utilitria), acreditamos ver a o criterium de verdade ou de
realidade. O critrio de verdade era somente a utilidade biolgica de um
tal sistema de falsificao por princpio: e como uma espcie animal no
conhece nada mais importante que sua preservao, poderamos de fato falar
aqui de verdade (XIII, 14 (153)). O terreno aqui presente no o de
veracidade ou falsidade; o registro fisiolgico um terreno extralgico,
inserindo-se numa concepo fisiolgica a utilidade biolgica: sentido do
conhecimento... a utilidade da conservao, e no qualquer necessidade
abstrata e terica de no estar enganado, o motivo que se deve buscar atrs do
desenvolvimento dos rgos do conhecimento... (XIII, 14 (122)). Podemos
notar que Nietzsche dirige sua crtica a um tipo de conhecimento enfatizado
pelo nascimento da cincia moderna que permanece entre ns: o
conhecimento neutro e terico. Para o pensador, a gnosiologia est
necessariamente ligada praxis. Lembremos que o ato de conhecer est, antes
de mais nada, ligado vida; portanto, a famosa e to endeusada dicotomia
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entre teoria e prtica somente uma funesta distino (cf. XIII, 14 (142)).
Os conceitos gnosiolgicos estaro vinculados diretamente utilidade
biolgica e s tero sentido no terreno das chamadas hipteses regulativas35:
Na cincia, as convices no tm nenhum direito de cidadania; assim se diz
com bom fundamento: somente quando elas resolvem rebaixar-se modstia
de uma hiptese, de um ponto de vista provisrio de ensaio, de uma fico
regulativa, pode ser-lhes concedida a entrada e at mesmo um certo valor no
reino do conhecimento (GC 344). Com o mundo do ser, portanto, da
identidade, o homem cria as hipteses regulativas sempre com propsitos
prticos36. A vida para Nietzsche necessita destas fices, e, no limite, o
mundo ilusrio do sujeito, da substncia, da razo, do tomo condio
necessria para a prpria perspectiva humana: uma questo de
sobrevivncia. Vejamos porque.
Num fragmento pstumo, redigido na primavera de 1888, Nietzsche
escreve: O homem procura a verdade: um mundo que no se contradiz, no
se engana, no muda, um mundo verdadeiro... (XII, (46) 9 (60)). Notemos de
35 Sobre o terreno kantiano em que Nietzsche se move, cf. Stack (1994), Marques (1989), Vaihinger
(1968). 36 Gostaramos aqui de esclarecer que Nietzsche no se aproxima de forma alguma dos chamados
utilitaristas. Sabemos que esta corrente afirma que o valor de uma cincia encontra-se na quantidade de aplicaes prticas que ela possa desenvolver. o uso ou a utilidade imediata dos conhecimentos que prova a verdade de uma teoria cientfica e lhe confere valor. Ora, na tica nietzschiana no podemos pensar a Verdade conferindo-lhe uma veracidade ou falsidade universal. Essa questo ser retomada no captulo III da presente dissertao.
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incio como o filsofo redige as palavras verdade e verdadeiro: a primeira
entre aspas e a segunda destacada no escrito original. Sabendo-se da