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  • Maria Jos Goulo Machado

    LA PUERTA FALSA DE AMRICA A INFLUNCIA ARTSTICA PORTUGUESA NA REGIO

    DO RIO DA PRATA NO PERODO COLONIAL

    VOLUME I

    Dissertao de Doutoramento na rea de Histria, especialidade de Histria da Arte, apresentada Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sob a orientao do Professor Doutor Pedro Dias

    Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra Coimbra 2005

  • AGRADECIMENTOS

    Esta lista de agradecimentos mais longa do que o habitual. Julgo, no entanto, que se justifica que assim o seja, j que corresponde a um percurso que abrangeu dois continentes, muitas viagens, vrios anos de investigao, inmeros rostos e emoes, momentos de entusiasmo profundo e outros de desalento perante problemas e tarefas que me pareciam intransponveis, pela distncia, pelas dificuldades prticas, pela falta de financiamento, pela necessidade de me ausentar durante longos meses. pois chegada a altura de recordar todas as pessoas que, por muitos e variados meios, em mais de dez pases diferentes, contriburam para o resultado final do meu trabalho.

    O meu primeiro agradecimento, sem dvida o mais sentido, vai para o Professor Doutor Pedro Dias, orientador desta dissertao. Devo-lhe o que qualquer orientando deve ao seu mentor: os conselhos, as pistas de trabalho, o acesso a materiais de consulta, as discusses frutferas. Devo-lhe ainda uma disponibilidade permanente e duradoura, uma abertura ao dilogo constante e sobretudo o ter pacientemente acreditado em mim ao longo destes anos de recuos e avanos. Ao organizar e dinamizar os simpsios luso-brasileiros e luso- -espanhis e os cursos de vero de Histria da Arte, o Professor Pedro Dias abriu--me todo um mundo, pois foi essa dinmica que me fez interessar pelos estudos ibero-americanos.

    Em segundo lugar, gostaria de lembrar todas as instituies que, com o seu apoio e financiamento, tornaram possvel o longo trabalho de pesquisa e as viagens de estudo realizadas.

    O Servio de Belas-Artes da Fundao Calouste Gulbenkian em vrias ocasies me concedeu subsdios de deslocao para participar em reunies cientficas, o que me permitiu no s apresentar e discutir o meu trabalho em fruns internacionais, como estabelecer contactos sempre muito estimulantes com especialistas de renome na rea dos estudos ibero-americanos. Devo, pois, um agradecimento a esta instituio, e particularmente memria do Professor Doutor Artur Nobre de Gusmo, ao Dr. Manuel da Costa Cabral e ao Professor Doutor S Furtado, que me ajudou nos contactos iniciais com a Fundao.

    Fui bolseira para doutoramento no Pas do Instituto Nacional de Investigao Cientfica e, depois da sua extino, da Junta Nacional de Investigao Cientfica e Tecnolgica. A ambas as instituies devo o avano da pesquisa realizada em territrio nacional.

  • Senti desde o incio que nunca poderia realizar este trabalho se no contactasse directamente com a realidade histrico-cultural e artstica ibero- -americana. Essa necessidade foi entendida e atendida pela Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses, que subsidiou vrias viagens de estudo demoradas pela Amrica do Sul. Devo Comisso, particularmente aos seus sucessivos Presidentes, e muito especialmente ao Doutor Antnio Cames Gouveia, uma abertura ilimitada e um apoio generoso aos meus projectos. O Antnio Cames Gouveia revelou-se um excelente amigo, um ptimo companheiro de viagem e um interlocutor atento, com uma sensibilidade fora do comum. A Dra. Maria do Carmo Freitas e o Miguel Loureiro deram-me um contributo inestimvel, pela eficcia com que sempre procuraram resolver problemas logsticos e atender os meus pedidos.

    A obteno de uma bolsa de estudos da Fundao Luso-Americana para o Desenvolvimento e da Comisso Cultural Luso-Americana (American Cultural Council Fellowship Program) permitiram-me viabilizar o projecto de passar alguns meses de trabalho intenso nos Estados Unidos da Amrica, tendo acesso aos maiores especialistas e s melhores bibliotecas a nvel mundial. Fico particularmente agradecida ao Sr. Eng. Lus dos Santos Ferro, da FLAD, e ao Professor Doutor Fernandes de Carvalho, na poca consultor da Comisso Cultural Luso-Americana, pela abertura e entusiasmo com que receberam e encaminharam o meu projecto.

    Agradeo ainda Paul Getty Foundation, E.U.A. (Getty Grant Program) e Fundao para a Cincia e Tecnologia (Programa Fundo de Apoio Comunidade Cientfica), que me concederam outras bolsas de estudo para participar em reunies cientficas internacionais.

    A minha estadia nos E.U.A. foi uma experincia enriquecedora a todos os nveis. A possibilidade de trabalhar na University of Texas, em Austin, onde estive na qualidade de Visiting Scholar, o livre acesso ao fabuloso fundo de livros e documentos da Nettie Lee Benson Latin American Collection, o uso de ficheiros j nessa altura totalmente informatizados, o facto de poder trabalhar ininterruptamente de manh noite nas bilbiotecas, a enorme eficincia do pessoal, o contacto fcil com outros colegas de muitos pases, constituram uma experincia que nunca esquecerei. Pude a aprofundar de forma determinante o estudo da bibliografia relativa ao tema da minha dissertao. Lembro a Doutora Ann Hartness, vice-directora da Benson L.A. Collection, pela sua eficincia, pela forma como alia um conhecimento profundo como bibliotecria a uma slida especializao em temas latino-americanos, pelas inmeras dicas de pesquisa e pelo interesse que mostrou pelo meu trabalho. No posso ainda esquecer, na Universidade do Texas, o Professor Jonathan C. Brown e a sua mulher, Lynore, que me abriram as portas de sua casa e me proporcionaram um acolhimento

  • caloroso, boa maneira texana, e Margery Pinson, que me resolveu problemas com o visto necessrio estadia.

    Rukhsana Qamber, da Quaid-I-Azam University de Islamabad, que se encontrava no Texas a terminar a sua tese de doutoramento em estudos latino-americanos, foi uma amiga de todas as ocasies, e Sue McFarland, uma septuagenria encantadora, revelou-se uma espcie de fada-madrinha providencial. God bless you, Susan.

    Na Emory University, em Atlanta, na Gergia, contei com o interesse e apoio da Professora Susan Socolow, que me recebeu com toda a disponibilidade e abertura, ensinando-me algumas coisas preciosas no meu campo de investigao. Com ela me fui cruzando noutras paragens e noutros continentes, e sempre teve para mim um sorriso e uma palavra amvel, mesmo decorridos alguns anos do nosso primeiro encontro. Em Atlanta, conheci o Professor Peter Bakewell, de cuja amizade muito me orgulho, pois alia qualidades humanas excepcionais ao facto de ser uma das maiores autoridades mundiais em histria econmica e social da Amrica Latina. Agradeo especialmente ao Professor Bakewell as diligncias que efectuou para me obter bibliografia inacessvel em Portugal. A sua mulher, Susan Benforado Bakewell, une-me uma forte amizade, que nos fez manter sempre um contacto estreito, apesar das distncias.

    Quanto Amrica do Sul, quase impossvel reter os nomes e os rostos de todas as pessoas com quem me fui cruzando ao longo dos anos, e que de alguma forma me apoiaram.

    No Brasil, pude contactar com inmeros colegas de vrias universidades e obter a preciosa ajuda e orientao da Professora Myriam Ribeiro de Oliveira, que agradeo reconhecidamente. Na Biblioteca Noronha Santos, do IPHAN, no Rio de Janeiro, que Myriam me deu a conhecer, foi possvel reunir bastante bibliografia sobre ourivesaria luso-brasileira.

    Percorri bibliotecas, museus, coleces pblicas e privadas e instituies religiosas das cidades do Rio de Janeiro, So Paulo, Belo Horizonte, Sabar, Mariana, Tiradentes, Ouro Preto, So Joo d'El Rei, Recife, Olinda, Salvador da Bahia e Belm do Par. Agradeo a todas as instituies que nestes vrios locais me abriram as portas e me facilitaram o trabalho, bem como aos coleccionadores Sra. D. Mrcia de Moura Castro, (Belo Horizonte), Dr. Jaelson Maciel Neto, (Recife) e Arq. Carlos Augusto Lira (Recife).

    O Dr. Eugnio de villa Lins, director do Museu de Arte Sacra da Bahia, a museloga Maria da Conceio Fernandes Brito, do Museu Arquidiocesano de Arte Sacra de Mariana, e a Dra. Slvia, directora do Museu de Arte da Bahia, permitiram-me um acesso sem reservas s coleces, pelo que lhes estou muito grata.

  • O Dr. Jos Guilherme de Stichini Vilela, Cnsul-Geral de Portugal no Rio de Janeiro, constituiu um apoio logstico importante.

    De entre os muitos amigos e colegas brasileiros, uma especial palavra de apreo e amizade vai para Antnio Fernando Batista dos Santos, Snia Gomes Pereira, Mnica Massara, Marcos Hill, Selma Melo Miranda, Olinto Rodrigues dos Santos Filho, Oswaldo Gouveia Ribeiro, Erickson Britto, Dalton Sala, Maria Alice Milliet de Oliveira, Cristvo e Cludia Fernandes Duarte e Arq. Jos Luiz Mota Menezes. Todos eles, de uma forma ou de outra, me acompanharam em pesquisas, me deram apoio logstico, me mostraram coisas que no conhecia, me abriram as portas de conventos, igrejas e coleces privadas, se enfiaram em subterrneos e caixas-fortes poeirentas, que no eram abertas h anos, esperando pacientemente que eu tudo visse e fotografasse.

    No Paraguai, o meu reconhecimento sincero vai para o incansvel Arq. Fernando Lara Castro, que me acompanhou diariamente durante a minha estadia, levando-me a locais remotos que seriam inacessveis sem o seu conhecimento, o seu sentido de orientao nas picadas de terra batida paraguaias e o seu veculo todo-o-terreno.

    No Uruguai, o meu primeiro contacto foi com o Professor Fernando Assuno, e com o seu pai, D. Octvio Assuno, infelizmente j falecido. Recordo-o com muito carinho, e fico grata pela forma como me abriu as portas da sua coleco e arquivo privados. Ao Dr. Fernando Assuno, devo o acesso ao Museo del Gaucho, a muita documentao microfilmada pertencente ao Archivo de ndias de Sevilha, e os passeios de estudo pela Colnia do Sacramento. Outra personalidade que nos deixou recentemente, e que recordo com muita estima, o Arq. Miguel Angel Odriozola, que igualmente me permitiu o livre acesso ao seu arquivo e biblioteca pessoal. O Dr. Abelardo Garca Vieva, director do Archivo General de la Nacin, fez todos os possveis por tornar agradvel a minha estadia em Montevideu. Recordo com saudade os longos passeios nocturnos pela cidade velha e pelo porto, e o muito que aprendi nas nossas conversas. A D. Carlos de Basabe Castellano, agradeo o acesso incondicional sua coleco privada.

    Durante a minha primeira estadia na Argentina, tive o privilgio de conhecer o Professor Adolfo Lus Ribera, que fez questo de me receber, j muito doente. Viria a falecer algum tempo depois, e gostaria de honrar a sua memria, j que representa uma referncia incontornvel da histria da arte argentina; os seus trabalhos foram para mim um importante exemplo de rigor e erudio. Ao Professor Hctor Schenone devo o ter-me introduzido em muitas temticas, o ter-me disponibilizado importantssimas orientaes de leituras e pesquisa, e o ter-me acompanhado em inmeras visitas a igrejas e monumentos de Buenos Aires, que conhece como ningum, muitas vezes em condies climticas

  • adversas, e depois de um longo dia de trabalho na Faculdade. A sua generosidade ilimitada levou-o a permitir-me acompanhar de perto o trabalho de inventariao dos bens mveis da Catedral de Buenos Aires, dando-me a oportunidade de contactar in loco com muitas peas de ourivesaria totalmente inacessveis ao grande pblico.

    A Professora Susana Fabrici e a Arq. Estela de Nucci tudo fizeram para tornar agradveis as minhas estadias em Buenos Aires.

    Aos Professores Graciela Viuales e Ramn Gutirrez devo muito: o acesso sua biblioteca pessoal em Resistencia, bem como ao arquivo e biblioteca do CEDODAL, o convite para leccionar no Curso de Doutoramento em Histria da Arte e da Arquitectura na Ibero-Amrica, na Universidade Pablo de Olavide em Sevilha, que me deu novo nimo num perodo difcil, e uma ateno e incentivo constantes ao longo de muitos anos. Com imensa generosidade, puseram em marcha uma rede de solidariedade entre colegas da mesma rea de estudos, que me permitiu ter sempre as portas abertas nos locais mais recnditos. Rodrigo Gutirrez Viuales, desde Granada, provou-me que o esprito da famlia Gutirrez no se perdeu na travessia do Atlntico.

    O Museo de Arte Hispanoamericano Isaac Fernndez Blanco foi verdadeiramente a minha segunda casa em Buenos Aires. Agradeo aos seus sucessivos directores, e especialmente Dr. Guiomar Olazabal de Urgell, que, mesmo quando j se encontrava com responsabilidades acrescidas frente da Direccin General de Museos, em vrias ocasies abandonou os seus afazeres para, com grande entusiasmo e energia, me acompanhar em excurses e visitas por Buenos Aires. Os Drs. Marta Snchez, Horacio Botalla e Ariel Basualdo foram igualmente ajudas preciosas no Museu.

    Os Professores Abel Roth e Eduardo Saguier, da Universidade de Buenos Aires, e a Sra. Elsie Ribero Haedo forneceram-me pistas de trabalho e contactos importantes.

    Na Embaixada de Portugal na Argentina, os Srs. Embaixadores Dr. Antnio Baptista Martins, Dr. Caymoto Duarte e Dr. Jos Fernandes Fafe tudo fizeram em pocas diferentes para aligeirar o meu trabalho e me receber com simpatia.

    Para o Sr. Vice-Cnsul Francisco Teixeira e para a Graciela, o Arq. Ricardo de Sousa e Silva, a Dra. Margarida Berbern e Mariela Castillo Martins, vai tambm o meu sincero reconhecimento.

    A Dra. Angela Leiva Rodriguez Barros tem um lugar parte no meu corao, pela sua imensa generosidade e pela amizade de longos anos, que nunca se esbateu com a distncia. A sua casa foi a minha em Buenos Aires, bem como, noutras ocasies, a do Eng. Lus Cernich, a quem muito agradeo. Mnica e Isabel Cernich fico devedora de cumplicidades e de uma amizade duradoura,

  • bem como, no caso da Isabel, das melhores recordaes da nossa viagem a Salta, Tucumn e Jujuy.

    Agradeo ainda a todas as instituies no s bonaerenses como das cidades de Corrientes, Santa Fe, Rosario, Resistencia, Jujuy, Tucumn, Salta, Lujn, San Antonio de Areco e Crdoba, onde fui sempre recebida com gentileza e interesse.

    No posso esquecer os coleccionadores privados argentinos, que me permitiram o acesso s suas obras de arte: Dr. Eduardo Drnhfer, Srs. Nelly e Carlos Pedro Blaquier, Casa Vetmas e Casa Eguiguren, e muito especialmente o Sr. Horcio Porcel, e a Sra. Helena Olazabal, que mandou fretar um avio s para mim, para que pudesse visitar a sua maravilhosa Estancia Las Lilas, onde se guarda parte da coleco Hirsh.

    Quanto ao restante territrio da Amrica do Sul, seria longussima a lista de instituies visitadas que me apoiaram em La Paz, Sucre, Potos, Arequipa, Cuzco, Lima, Quito, Santiago do Chile e Valparaso, pelo que envio uma saudao a todos os que por diversas formas facilitaram o meu trabalho.

    Dirijo um agradecimento especial Dra. Nancy Morn de Guerra, do Departamento de Inventrio e Investigao, da Direco do Patrimnio Cultural do Municpio de Quito, que me adiantou dados importantes sobre a ourivesaria quitenha e teve a generosidade de me mostrar o material j recolhido para um trabalho em curso, de inventariao e estudo do esplio de templos equatorianos, com peas de uma riqueza fora de srie.

    Agradeo ainda ao Dr. Joo Pedro Melo Sampaio, Encarregado de Negcios da Embaixada de Portugal no Peru, que me recebeu amavelmente em Lima e ps minha disposio o prestvel Sr. Jaramillo, seu motorista particular, que foi o meu guia nesta cidade.

    Para alm das viagens de estudo, os vrios Congressos Internacionais de Americanistas de Quito, Varsvia e Santiago do Chile foram para mim estimulantes locais de aprendizagem e de frutfero debate de ideias. De entre todos os colegas que participaram, agradeo especialmente Professora Clara Bargellini, do Instituto de Investigaciones Estticas da UNAM, Mxico, que publicou um trabalho meu na prestigiada revista dos Anales do Instituto, a Marta Fajardo de Rueda, da Universidade Nacional de Bogot, na Colmbia, que me enviou vrias publicaes suas e se interessou pelo meu trabalho, a Maria de la Concepcin Garca Siz, do Museu de Amrica, em Madrid, e sobretudo Professora Cristina Esteras Martn, da Universidade Complutense de Madrid, sem dvida a grande autoridade da ourivesaria ibero-americana do perodo colonial, que me deu nimo com o seu exemplo e incentivo.

    Gostaria de enderear uma palavra de apreo a Pilar Lzaro de la Escosura, Chefe do Servio de Referncias do Archivo General de ndias, por me ter

  • ajudado a tentar localizar documentos que sabia existirem no arquivo, mas dos quais no possua cotas, no que foi uma verdadeira busca de agulha em palheiro, infelizmente infrutfera.

    Esta extensa lista no estaria completa sem uma referncia muito particular e sentida aos meus colegas e amigos de sempre, Dalila Rodrigues, Francisco Pato de Macedo, Maria de Lurdes Craveiro, Rui Cunha Martins, Jorge Rodrigues e Helena Barreiros que representam para mim um enorme estmulo intelectual e uma rede de afectos fundamental. A Rosa Oliveira, que teve a imensa pacincia de me auxiliar na releitura do manuscrito original, devo vrias sugestes muito pertinentes quanto ao bom uso da lngua portuguesa.

    Ao Ignacio Vzquez Diguez, agradeo a bibliografia que me enviou de Barcelona. Ao Professor Doutor Eugnio dos Santos, ao Prof. Doutor Jos Manuel Tedim, Dra. Margarida Cunha, Doutora M. da Graa Ventura, ao Professor Eduardo Batarda Fernandes e Professora Beatriz Gentil Ferreira, agradeo as ofertas de livros.

    Paulo Varela Gomes e Paulo Pereira contriburam muito para clarificar as ideias iniciais e estabelecer um plano para a tese, que em traos gerais acabei sempre por seguir. Estou-lhes reconhecida por terem tornado mais fcil o que partida parecia to complicado.

    O arranjo grfico dos volumes da dissertao foi feito pela inexcedvel Lcia Alves, a reviso das transcries paleogrficas contou com o auxlio competente da Sandra da Costa, e o Pedro Amado encarregou-se pacientemente da digitalizao das imagens e da primeira impresso. Aos trs estou muito reconhecida.

    Agradeo o acompanhamento e o apoio constante s minhas amigas Ftima Sneca e Lcia Matos, agradecimento extensivo a todos os restantes colegas da Seco de Cincias da Arte da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e particularmente aos seus coordenadores, Professor Doutor Bernardo Pinto de Almeida e Prof. Doutor Hlder Gomes, bem como ao Conselho Directivo e ao Conselho Cientfico da FBAUP, que em vrias ocasies me concederam dispensa de servio docente, subsidiaram a minha participao em encontros internacionais e facilitaram o acesso aos meios tcnicos da Faculdade.

    Os meus alunos de licenciatura e de mestrado da FBAUP e do curso de doutoramento da Universidade Pablo de Olavide constituram um estmulo importante e permitiram-me manter uma saudvel ligao terra.

    Universidade de Coimbra, e particularmente aos meus colegas do Instituto de Histria da Arte, devo o sentimento de me encontrar sempre em casa quando passo a porta das Letras, mesmo ao fim de vinte anos de mitigado afastamento.

  • Aos meus pais, ao meu cl familiar, ao Pedro e minha filha Francisca, agradeo a pacincia com que suportaram e aliviaram os meus momentos de stress, o nunca duvidarem das minhas capacidades e o terem-me dado sempre a liberdade e a fora para me atirar de cabea para as aventuras em que acredito, constituindo minha volta uma retaguarda slida e incondicional. O meu pai, que dedicou muitas horas a rever o texto da dissertao, merece um obrigada suplementar, bem como o meu cunhado Joo, que me acudiu em inmeras situaes de pnico informtico.

    Dedico esta dissertao aos meus pais, memria da minha av Reveriana, que me inculcou o gosto pelos livros, e memria da Maria Virgnia, que embora analfabeta sabia de cor, o que quer dizer com o corao, todas as lengalengas, incluindo a Nau Catrineta.

    Coimbra, 21 de Abril de 2005

  • ABREVIATURAS

    AC Archivo del Cabildo (Buenos Aires, Argentina)

    ACM Archivo de la Casa de la Moneda (Potos, Bolvia)

    AGI Archivo General de Indias (Sevilha, Espanha)

    AGN Archivo General de la Nacin (Buenos Aires, Argentina)

    AGN(P) Archivo General de la Nacin (Lima, Peru)

    AGN(U) Archivo General de la Nacin (Montevideu, Uruguai)

    AGNM Archivo General de Notarias de Mexico

    AGS Archivo General de Simancas (Espanha)

    AHC Archivo Histrico de Crdoba (Argentina)

    AHN Archivo Histrico Nacional (Madrid, Espanha)

    AHT Archivo Histrico de Tunja (Colmbia)

    AHU Arquivo Histrico Ultramarino (Lisboa, Portugal)

    ANB Archivo Nacional de Bolvia (Sucre, Bolvia)

    ANC Archivo Nacional de Chile (Santiago de Chile)

    ARCS Archivo Regional de Colonia del Sacramento (Uruguai)

    BNRJ Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (Brasil)

    BPRM Biblioteca do Palcio Real de Madrid (Espanha)

    CMEU Complejo Museografico Enrique Udaondo (Lujn,

    Argentina)

    MFRESS Museu da Fundao Ricardo Esprito Santo Silva (Lisboa,

    Portugal)

    MIFB Museo de Arte Hispanoamericano Isaac Fernndez Blanco

    (Buenos Aires, Argentina)

    MNAA Museu Nacional de Arte Antiga (Lisboa, Portugal)

  • NDICE

    VOLUME I

    Introduo.......................................................................................................1

    Captulo I. Reciclar o barroco: novas perspectivas do pensamento historiogrfico e sua contribuio para a rea dos estudos latino-americanos .................................................................................................. 21

    1. Conceitos, problemas e mtodos. Contributos mais significativos ...... 23

    1.1. O retorno do barroco. O debate ps-moderno....................... 25

    1.2. A questo das trocas culturais. Inter-relaes, zonas de contacto e de interseco............................................................... 35

    1.3. As novas reflexes sobre o conceito de fronteira...................... 37

    1.4. Histria local, estudos regionais e micro-histria. O retorno do sujeito...................................................................................... 43

    1.5. A necessidade do retorno a uma viso de conjunto................. 47

    1.6. A geografia artstica. Centros e periferias................................. 51

    2. Historiografia da presena portuguesa nos territrios da Coroa espanhola. Anlise crtica dos vrios estudos publicados sobre a questo.................................................................................................. 57

    Captulo II. Uma mundializao avant la lettre: a Amrica hispnica e os portugueses ....................................................................... 81

    1. Os primrdios da presena portuguesa .............................................. 85

    2. O atractivo da prata peruana ............................................................. 88

    3. Sevilha e a Carreira das ndias .......................................................... 102

    4. A presena dos cristos-novos portugueses em Sevilha e Cdiz ......... 109

    5. A ligao aos portos portugueses ...................................................... 112

    6. O arquiplago dos Aores ................................................................ 115

  • 7. A ligao ao porto de Amesterdo.................................................... 119

    8. A importncia do trfico negreiro .................................................... 121

    9. A ligao aos cristos-novos dos portos brasileiros............................. 123

    10. As conexes com as Filipinas ......................................................... 125

    11. Judaizantes, cristos-novos e Inquisio. Os portugueses nas ndias de Castela ................................................................................. 128

    Captulo III. A porta traseira da Amrica: os portugueses no Rio da Prata...................................................................................................... 173

    1. As primeiras expedies ao Rio da Prata........................................... 178

    2. A cidade de Buenos Aires ................................................................ 181

    3. A complementaridade entre os portos brasileiros e Buenos Aires. As rotas oficiais e o contrabando .......................................................... 190

    4. A imigrao clandestina. Os cristos-novos portugueses ................... 212

    5. A Colnia do Sacramento................................................................ 228

    6. A influncia hispnica no Brasil....................................................... 253

    Captulo IV. A organizao gremial e o estatuto dos artistas portugueses no seio da sociedade platina: o caso dos ourives ......... 261

    Captulo V. O trilho dos objectos: a ourivesaria e o mobilirio. Modos de penetrao e fixao da esttica barroca luso-brasileira no Rio da Prata ......................................................................................... 289

    1. A ourivesaria.................................................................................... 291

    1.1. Entesouramento: o objecto artstico enquanto portador de um valor facial ............................................................................ 292

    1.2. Uso quotidiano ................................................................... 293

    1.3. Ostentao .......................................................................... 296

    1.4. Tipologias e funes mais comuns das peas de ourivesaria no Brasil e nas ndias de Castela.................................................. 309

    1.5. A ourivesaria hispano-americana. Breve caracterizao.......... 320

    1.6. A ourivesaria no Brasil colonial ............................................ 327

    1.7. A ourivesaria no Rio da Prata. A influncia luso-brasileira..... 349

  • 2. O mobilirio ................................................................................... 362

    Captulo VI. Outras situaes exemplares ........................................ 393

    1. A pintura ........................................................................................ 395

    2. A imaginria e a talha....................................................................... 397

    3. Mestiagens: um mestre entalhador portugus nos pueblos de indios de Yaguarn e Capiat............................................................... 418

    4. A Europa na Amrica: Jos Custdio de S e Faria, um engenheiro militar portugus ao servio da Coroa espanhola .................................. 457

    Concluso. Parece por constelao no se poderem os Portugueses em nenhuma parte desapegar dos Castelhanos. ........ 485

    Bibliografia ................................................................................................ 503

    VOLUME II

    I. Nmina de artistas e artfices...................................................................1

    II. Apndice documental ............................................................................ 75

    III. Apndice grfico.................................................................................. 217

  • INTRODUO

  • INTRODUO

    3

    Piedra en la piedra, el hombre, dnde estuvo?

    Aire en el aire, el hombre, dnde estuvo?

    Tiempo en el tiempo, el hombre, dnde estuvo?

    (Pablo Neruda, Canto General, II, Alturas de Macchu Picchu)

    Podemos afirmar que o processo que levou elaborao deste trabalho seguiu verdadeiramente o trilho dos objectos. Com efeito, o primeiro contacto que tivemos com uma realidade histrica at a insuspeitada e invisvel para ns, e estamos em crer que para a generalidade dos historiadores da arte portugueses, aconteceu com a visita exposio Trs sculos de ourivesaria hispano-americana, scs. XVII-XIX, que esteve patente no Museu da Fundao Calouste Gulbenkian entre Novembro de 1986 e Fevereiro de 1987. Registmos nessa altura que no s algumas peas expostas apresentavam grandes similitudes com outras obras portuguesas suas contemporneas, como surgiam no catlogo referncias a nomes de ourives portugueses que haviam trabalhado nos territrios hispano- -americanos.

    Pouca ou nenhuma informao existia na altura sobre a presena e a aco de artistas portugueses nos territrios da Coroa espanhola no perodo colonial. Constatmos este facto quando, alguns anos mais tarde, retommos esta questo que de algum modo nos intrigava, ao escrevermos pela primeira vez sobre o assunto. Com efeito, tornara-se claro para ns que a nica forma de saber mais seria viajar at Amrica do Sul. Assim o fizemos, num priplo intermitente que durou vrios anos e abrangeu mais de dez pases diferentes em dois continentes. Ganhmos com isso o privilgio de conhecer outras culturas e imaginrios e de pertencer a vrios mundos numa s vida, como Serge Gruzinski to bem soube colocar em palavras1.

    O alargamento das pesquisas revelou-nos todo um universo desconhecido, onde se entrecruzam percursos pessoais com conjunturas de vria ordem. Verificmos que a histria da arte portuguesa no Novo Mundo se encontrava sistematicamente confinada ao territrio brasileiro. Esta perspectiva reducionista, que ignorava as relaes entre portugueses e espanhis ocorridas em territrio

    1 Serge Gruzinski, La pense mtisse, Paris, Fayard, 1999, p. 316 (traduo nossa).

  • INTRODUO

    4

    americano, deixava de fora todo um vasto e interessante campo de estudo, cujos contornos eram difceis de definir, e cuja amplitude nos escapava, numa primeira anlise. Estes contactos, no entanto, foram reconhecidamente duradouros e suficientemente fortes para ultrapassar de forma notvel as barreiras geogrficas, polticas e culturais.

    Resolvemos assim levar a cabo uma investigao tanto quanto possvel alargada sobre o contributo artstico portugus na regio do Rio da Prata no perodo colonial, tendente caracterizao de uma paisagem cultural que teve as suas implicaes a nvel artstico, mas que foi de igual modo o resultado de um conjunto de factores econmicos, polticos e religiosos particulares. Procurmos ter sempre presentes alguns aspectos supostamente marginais essncia da obra de arte, como a sua produo e comercializao, o estatuto dos artistas, o imenso dinamismo da burguesia comercial portuguesa, ligado ao peso das redes de cristos-novos, os fenmenos do gosto e a existncia de mercados capazes de escoar essa produo.

    A extrema variedade de fontes consultadas e de ncleos de obras de arte a que recorremos reflecte a natureza complexa deste estudo. Da longa lista de instituies, monumentos, museus, coleces privadas, bibliotecas e arquivos em que tivemos a oportunidade de trabalhar, h que salientar alguns que se revelaram fundamentais.

    Nos E.U.A., o Institute of Latin American Studies e a Nettie Lee Benson Latin American Collection, pertencentes Universidade do Texas, em Austin, onde passmos longas semanas de trabalho intensivo, e o Departamento de Histria da Emory University, em Atlanta, na Gergia, constituram a nossa base para a recolha de bibliografia e o contacto com especialistas da rea dos estudos latino-americanos.

    No Brasil, visitmos, entre outras, as cidades do Rio de Janeiro, So Paulo, Belo Horizonte, Sabar, Mariana, Tiradentes, Ouro Preto, So Joo d'El Rei, Recife, Olinda, Salvador da Bahia, Cachoeira e Belm do Par. A biblioteca Noronha Santos, do IPHAN, no Rio de Janeiro, constituiu o acervo mais significativo para o levantamento da bibliografia relativa ao Brasil. Para alm de vrias coleces privadas, recorremos ainda a inmeras instituies brasileiras, como o arcebispado de Belm do Par, a arquidiocese de Olinda e Recife, o mosteiro de S. Bento de Olinda, o Museu de Arte Sacra de So Paulo, o Museu Regional e o Museu de Arte Sacra de So Joo d'El Rei, o Museu Arquidiocesano de Mariana, o Museu da Inconfidncia de Ouro Preto, o Museu do Ouro de

  • INTRODUO

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    Sabar, o convento do Desterro do Salvador, o Museu Carlos Costa Pinto, no Salvador, o Museu de Arte Sacra da Universidade Federal da Bahia e o Museu de Arte da Bahia.

    No Paraguai, para alm de Asuncin, visitmos as povoaes de It, Aregu, Itaugu, Paraguar, Yaguarn e Capiat. Trabalhmos ainda no Arquivo Histrico Nacional e na Biblioteca Municipal de Asuncin.

    No Uruguai, efectumos pesquisas em coleces privadas e instituies religiosas, bem como no Archivo General de la Nacin, no Archivo Artigas (Montevideu), no Arquivo Histrico Municipal (Montevideu), no Arquivo Regional de Colnia do Sacramento e na biblioteca privada de D. Octvio Assuno.

    Em Buenos Aires, constituram locais de estudo privilegiados as bibliotecas do Instituto de la Historia del Arte Argentino, Instituto de Historia del Arte Julio Payr e Instituto de Historia Argentina y Americana Dr. Emlio Ravignani, integrados na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, bem como as bibliotecas da Academia Nacional de Belas Artes e da Academia Nacional de Histria, o Archivo General de la Nacin, o Fondo Nacional de las Artes, o Fondo de Cultura Econmica de Argentina, a Direccin General de Museos, o arquivo e biblioteca do CEDODAL e as bibliotecas do Museo de Arte Hispanoamericano Isaac Fernndez Blanco e do Museo Nacional de Arte Decorativo.

    Ainda em territrio argentino, tivemos a oportunidade de visitar Corrientes, Santa Fe, Rosario, Resistencia, Jujuy, Tucumn, Salta, Lujn, San Antonio de Areco e Crdoba. Levantamentos sumrios foram efectuados no Arquivo Histrico de Crdoba e no Arquivo da Municipalidade de Santa Fe.

    De entre as coleces privadas argentinas, destacamos os estudos efectuados nas coleces do Dr. Eduardo Drnhfer, Srs. Nelly e Carlos Pedro Blaquier, Sr. Horcio Porcel, Sra. Helena Olazabal (coleco Hirsh), Casa Vetmas e Casa Eguiguren.

    Percorremos ainda outros territrios sul-americanos, que nos permitiram um contacto mais alargado com a arte colonial hispano-americana. Na Bolvia, visitmos as cidades de La Paz, Potos e Sucre, onde efectumos levantamentos no Arquivo Nacional da Bolvia. No Peru, estivemos em Arequipa, Cuzco e Lima. No Equador, demormo-nos na cidade de Quito, e no Chile, visitmos Santiago do Chile e Valparaso.

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    J em territrio europeu, as pesquisas documentais decorreram maioritariamente no Arquivo Histrico Ultramarino, em Lisboa, e no Archivo General de ndias, em Sevilha.

    Desta investigao resultaram um corpus de objectos artsticos, a identificao de um nmero significativo de percursos pessoais relativos aos artfices e uma recolha de documentao indita. A bibliografia consultada permitiu-nos aceder a um manancial de informao muito variado. Procurmos trabalh-la em conjugao com o restante material recolhido, de forma a apresentar um conjunto histrico de alguma coerncia, para usar a terminologia desenvolvida por Maravall2. O resultado uma construo mental que a nossa, necessariamente discutvel, atravs da qual tentmos dar um sentido multiplicidade de relaes e de interdependncias existentes entre os dados histricos.

    Com efeito, temos presente que o nosso conhecimento dos factos nunca nos d uma realidade histrica absolutamente objectiva, mas sim processos de observao que incluem algo mais do que os prprios factos, isto , uma teoria interpretativa. Procurmos assim determinar por que vias se efectivou esta presena portuguesa nos territrios da Coroa espanhola, quais as condicionantes histricas que a explicam e de que forma este contributo foi assimilado no contexto de uma sociedade e de um meio artstico maioritariamente espanhis e crioulos, contribuindo deste modo para esclarecer a especificidade da influncia portuguesa.

    Pareceu-nos adequado o uso de uma prtica historiogrfica cujo resultado no fosse apenas uma acumulao de dados, uma enumerao de nomes de artistas ou um reportrio de obras de arte, mas que procurasse explicar os factos artsticos inscrevendo-os num contexto mais alargado.

    Interessava-nos particularmente a questo das trocas culturais, e nesse sentido tivemos como princpio orientador o no encarar os fenmenos artsticos como realidades estanques, mas procurar analis-los no contexto de uma economia-mundo em desenvolvimento, onde os contactos se estabeleciam por vezes escala planetria, e com mais frequncia escala transocenica, num

    2 Jos Antnio Maravall, A cultura do Barroco, Lisboa, Instituto Superior de Novas Profisses, 1997, p. 17.

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    complexo pluricontinental. A estrada da prata extrada de Potos, que dava a volta ao globo, segundo a metfora de Antnio de Len Pinelo3, serviu igualmente para ligar e pr em contacto mundos diferentes. A sociedade colonial americana o resultado de uma mistura de culturas. A correcta compreenso deste multiculturalismo implica a necessidade do cruzamento de vrias disciplinas, o recurso s chamadas cincias nmadas. O entrecruzar de redes e de experincias permite perceber a dinmica de uma mudana que se deixa captar mal quando imobilizada nas categorias tradicionais da histria econmica, social, poltica, religiosa ou cultural4. Propomos assim uma leitura que se debrua sobre vivncias individuais e colectivas, procurando prestar especial ateno tanto aos aspectos aparentemente microscpicos como aos grandes movimentos escala continental ou mundial.

    Foi nossa preocupao nunca perder de vista os objectos artsticos, mas insistir numa compreenso contextual desses mesmos objectos, tanto no momento histrico da sua realizao como no que concerne ao seu uso e atribuio de novas funes atravs do tempo e em contextos espacio-geogrficos diferentes, o que implica uma metodologia muito ampla e multidisciplinar. Pareceu-nos do maior interesse optar por uma viso integradora das manifestaes artsticas estudadas, que assegurasse uma leitura de conjunto. Com efeito, um dos problemas cruciais da historiografia do sculo XX dedicada arte ibero-americana foi a insistncia numa leitura fraccionada em perodos histricos delimitados ou em territrios geogrficos segmentados, o que tem dificultado muitas vezes a correcta compreenso dos problemas5.

    Tentmos sair do esquema ainda muito presente nas cincias sociais de hoje, grandemente devedor dos modelos aristotlicos e marxistas, que parte de uma definio das culturas e do tempo em conjuntos fechados, imobilizando a realidade em categorias fixas e estveis. Sentimos a necessidade de ultrapassar essas etiquetas e categorizaes, que, se quando aplicadas Europa j apresentam limitaes, revelam-se ainda mais frgeis quando usadas para compreender a

    3 V. Adolfo Luis Ribera, Platera, in Historia general del arte en la Argentina, tomo II, Buenos Aires, Academia Nacional de Bellas Artes, s/d, p. 338. 4 V. Carmen Bernand e Serge Gruzinski, Histoire du Nouveau Monde, tomo I, De la dcouverte la conqute, une exprience europenne, 1492-1550, Paris, Fayard, 1991, pp. 8-9. 5 V. Ramn Gutirrez, Reflexiones para una metodologa de anlisis del barroco americano, in Simposio Internazionale sul Barocco Latino Americano-Atti, vol. I, Roma, Istituto Latino Americano, 1982, pp. 367-385.

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    realidade cultural e social do Novo Mundo. O estudo da Amrica Latina significa sempre um regresso nossa prpria histria. Sentimos a necessidade de recusar as tradicionais fronteiras entre as disciplinas, e de repensar a nossa tradio acadmica, que privilegia o livro e a cultura escrita, ignorando outras manifestaes culturais como as obras de arte, que so importantes expresses de uma poca, igualmente vlidas para o seu conhecimento e compreenso. Numa altura em que tanto se fala do desaparecimento das cincias sociais, devido sua incapacidade de reagir face realidade contempornea, o estudo da histria da Amrica Latina como sociedade multicultural implica necessariamente a renovao dos nossos quadros mentais e a sada do eurocentrismo a que nos fomos habituando.

    Dado que as reas nacionais no so categorias histricas, e que a cronologia se revela um conceito fludo na Amrica, foi necessrio comear por uma delimitao espacio-temporal do objecto de estudo, nem sempre muito evidente.

    Quanto ao espao fsico, circunscrevemo-nos ao territrio do Rio da Prata, de onde provinham os objectos de ourivesaria que haviam despertado a nossa curiosidade inicial, e onde a influncia portuguesa foi efectivamente mais marcante. Ora o Rio da Prata no teve fronteiras claramente delimitadas, a no ser durante o perodo de vigncia do vice-reinado do mesmo nome, a partir da segunda metade do sculo XVIII. Mais do que uma regio artstica de caractersticas homogneas, temos uma rea definida a partir de premissas econmicas e poltico-administrativas.

    O vice-reinado do Rio da Prata englobava duas regies: o litoral, que compreendia o territrio que hoje corresponde Repblica do Uruguai, a provncia de Buenos Aires, e as provncias que eram acessveis por trfego fluvial, Entre Ros, Corrientes e Santa Fe; e o interior, composto por todas as provncias servidas por ligaes terrestres, de Crdoba cordilheira dos Andes, incluindo povoaes como Mendoza, Santiago do Chile, La Rioja, Catamarca, Santiago del Estero, Tucumn, Salta e Jujuy, e o complexo mineiro de Potos, no Alto Peru (actual Bolvia), o principal mercado de que estava dependente a regio, para alm do mercado externo composto pelas ligaes atlnticas ao Brasil e Europa6.

    6 Seguimos aqui a definio proposta por Jonathan C. Brown, A socioeconomic history of Argentina, 1776-1860, Cambridge, Cambridge University Press, 1979, p. 2.

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    Nos primeiros sculos, antes da criao do vice-reinado, o territrio paraguaio, embora funcionasse um pouco como terra de ningum, encontrava-se tambm integrado no Rio da Prata, pelo que o inclumos neste estudo, sobretudo no que diz respeito estadia a de artistas como Jos de Sousa Cavadas.

    Como rea cultural na qual se fez sentir uma poderosa influncia luso-brasileira, o Rio da Prata circunscreveu-se basicamente ao territrio hoje correspondente Argentina, Uruguai e Paraguai, unidades nacionais inexistentes na poca, mas que usamos operativamente como sub-generalizaes lgicas a partir das quais podemos eventualmente obter uma panormica da arte na regio.

    Cronologicamente, considermos como termo a quo a segunda metade do sculo XVI, quando se d a primeira ocupao efectiva do territrio platino. A criao do vice-reinado do Rio da Prata s acontece em 1776. O ano de 1810 constitui o termo ad quem, altura em que comeam as lutas pela independncia nas margens do Prata. No entanto, estas balizas cronolgicas no foram por ns usadas de forma rgida.

    Em termos artsticos, a cronologia da arte barroca nesta regio inicia-se com o sculo XVII, que marca o comeo de uma verdadeira cultura colonial no Rio da Prata, e o aparecimento das primeiras manifestaes documentais de uma presena luso-brasileira nas artes platinas, e estende-se at primeira dcada do sculo XIX, altura em que se d uma verdadeira ruptura socio-cultural e poltica, e se assiste aos ltimos suspiros da esttica barroca7.

    O perodo colonial no Rio da Prata corresponde poca de dominao da Coroa espanhola, pelo que seria talvez mais correcto chamar-lhe perodo hispnico. A qualificao de colonial para designar esta fase da histria do Rio da Prata posta em causa por alguns historiadores, dado que esses domnios nunca foram considerados colnias. As Leis das ndias nunca referem este termo, estabelecendo expressamente que os domnios americanos so provncias, reinos ou territrios de ilhas e terra firme, anexados Coroa de Castela e Leo8.

    7 V. Jos Emilio Burucua, Pintura y escultura en Argentina y Paraguay, in Ramn Gutirrez (dir. de), Barroco Iberoamericano. De los Andes a las Pampas, Barcelona/Madrid, Lunwerg Editores, 1997, p. 403. 8 V. Mara Ins Rodrguez Aguilar e Miguel Jos Rufo, El barroco colonial como estrategia comunicacional para la legitimacin del pasado hispnico, in Ana Maria Aranda, Ramn Gutirrez et al. (dir. de), Barroco iberoamericano Territorio, arte, espacio y sociedad, tomo II, Sevilha, Ediciones Giralda, 2001, pp. 971-972.

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    As vozes que se levantam contra a utilizao do termo colonial aplicado arte barroca latino-americana insurgem-se contra a conotao de dependncia face arte produzida numa metrpole europeia, que o uso desta expresso parece implicar. Para alguns, a utilizao desta terminologia equivale a negar que esta arte representa a primeira grande expresso criadora dos vrios povos americanos, e um elemento fundamental do patrimnio cultural que os distingue dos demais povos9.

    Apesar de termos plena conscincia das limitaes implicadas no uso da expresso perodo colonial, optmos no entanto por utiliz-la, por ser a mais divulgada. Tivemos contudo sempre presente que as colnias no foram apenas uma extenso de Espanha, mas fizeram parte de um contexto mais vasto, a monarquia hispnica, que, durante o perodo dos Habsburgos, englobava povos e lugares muito diversos, que incluam no s Castela e Arago, mas tambm territrios da Itlia, Alemanha, Pases Baixos, Pennsula Ibrica e Amrica. O processo de contacto e de aculturao abarcava tambm os laos comerciais e polticos com outras zonas da Europa10.

    Durante o desenrolar das nossas pesquisas, confrontmo-nos com algumas dificuldades. Nem sempre foi fcil estabelecer os contactos necessrios com instituies e coleccionadores privados e realizar o trabalho de campo e as pesquisas bibliogrficas e arquivsticas, limitados como estvamos em muitas ocasies por curtas estadias em cada cidade ou pas.

    O acesso bibliografia revelou-se complicado, j que os livros sobre arte ibero-americana so normalmente publicados em edies to pequenas que ficam rapidamente esgotadas. Os ensaios mais estimulantes encontram-se dispersos por um sem-nmero de publicaes muito diversas, na sua maioria inacessveis no

    9 V. Bernardino Bravo Lira, Introduccin, in Bernardino Bravo Lira (ed. de), El Barroco en Hispanoamrica. Manifestaciones y significacin, Santiago de Chile, Fondo Histrico y Geogrfico Jos Torbio Medina, 1981, p. 8 [cit. por Walter Moser, Du baroque europen et colonial au baroque amricain et postcolonial, in Petra Schumm (ed. de), Barrocos y modernos Nuevos caminos en la investigacin del barroco iberoamericano, Frankfurt am Main/Madrid, Vervuert / Iberoamericana, 1998, p. 72].

    10 V. Jonathan Brown, La antigua monarquia espaola como rea cultural, in Los siglos de oro en los virreinatos de Amrica, 1550-1700 (cat. da expos.), Madrid, Sociedad Estatal para la Conmemoracin de los Centenarios de Felipe II y Carlos V, 1999, pp. 20-21.

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    nosso pas. A reimpresso e reedio de textos fundamental, bem como a sua traduo.

    A lngua pode ser um obstculo significativo, pois apercebemo-nos de que s o domnio de vrios idiomas nos permitiu abrir horizontes e cruzar linhas de investigao, muitas vezes paralelas, mas praticadas por historiadores inseridos em universos acadmicos diversos.

    A publicao de documentos constitui igualmente um aspecto importante. Com efeito, durante muito tempo os historiadores da arte na Amrica Latina aceitaram uma histria sem datas, sem contratos ou nomes de artistas, porque se partiu do princpio de que no existiam documentos. O anonimato corrente no sculo XVI, justificado pelas condies especiais em que se deu a Conquista, ligou-se ao anonimato do perodo barroco, a uma arte de projectos de iniciativa oficial, de estilos impessoais, de artesos sem rosto. Para os historiadores da arte de geraes anteriores, a cronologia no era determinada a partir de uma armao factual, mas sim deduzida a partir do estilo. Dada a imensa documentao que ficou dos imprios portugus e espanhol, esta no deixa de ser uma posio curiosa.

    Insistir na publicao das fontes nunca demais, pois s com o documento trazido para o domnio pblico que ele pode ser usado por outros estudiosos, permitindo diversas leituras e exploraes, naturalmente enriquecedoras para a histria da arte. Foi esta perspectiva que nos levou a optar por publicar uma srie de documentos, que constam no Apndice Documental inserido no volume II.

    A publicao de listas de artistas extradas de censos e padres outra tarefa fundamental. O volume II inclui uma nmina de artistas e artesos, que fomos identificando e recolhendo ao longo das nossas pesquisas bibliogrficas e arquivsticas. No sendo exaustiva, constitui um primeiro balano provisrio e muito sumrio, tendente a dar um rosto e um percurso pessoal a uma massa annima de artesos. A disperso natural destes dados por inmeros ensaios e estudos no facilitava at agora um correcto diagnstico da presena portuguesa nos territrios da Coroa espanhola, no que concerne ao domnio artstico. Optmos por no cingir o mbito da nmina ao Rio da Prata, incluindo outras reas geogrficas onde essa presena se manifestou.

    No extremo oposto da pesquisa documental, situa-se o trabalho de campo, igualmente imprescindvel em todos os estudos que lidam directamente com os objectos artsticos. Por toda a Amrica Latina ainda se faz sentir a falta de simples inventrios que forneam dados relativos localizao, identificao e classificao, e que disponham da imprescindvel documentao fotogrfica. Por razes compreensveis, que se prendem com os limites desejveis numa

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    dissertao deste tipo, foi necessrio seleccionar muito do material recolhido, que consiste em fichas de identificao e fotografias, excluindo largas dezenas de peas de mobilirio, de ourivesaria e de escultura.

    A opo por tentar no deixar de fora nenhuma das reas artsticas em que se salientaram os mestres portugueses, numa rea geogrfica e num perodo temporal bastante alargados, levou-nos a tentar conciliar a extenso da pesquisa com a profundidade requerida num estudo desta natureza. No entanto, optmos conscientemente por no abordar reas como a arte das misses jesuticas ou o urbanismo e a arquitectura militar, que mereceram na ltima dcada estudos especializados de grande qualidade cientfica.

    Para os que se dedicam a estudar a arte colonial ibero-americana, a imensidade e a solido das tarefas torna-a uma rea pouco atractiva, e por essa razo no h muitos investigadores a trabalhar neste domnio. Tem-se frequentemente a sensao de que a Amrica Latina est cansada das tcnicas da histria da arte tradicional. As categorias mais ortodoxas de investigao no tm grande desenvolvimento, existem poucas monografias sobre artistas individuais e so raros os estudos sobre iconografia.

    Os estudos de arte colonial no tm grande prestgio, so modestamente financiados, deficientemente publicados, ensinados muitas vezes de forma inadequada. At dcada de 70 do sculo passado, no havia praticamente cursos universitrios dedicados arte do perodo ps-conquista, nem nos E.U.A., nem noutros pases americanos, e muito menos na Europa.

    O primeiro desafio, diramos mesmo a obrigao, dos historiadores da arte ibero-americana ainda o de definir o que a nossa tarefa. Como bem observou Elizabeth Weismann, In the thin sunlight of the Andes, what is art history ? () For I believe that if we have not made great progress in presenting the art of Latin America, it may well be because we have failed to consider Latin American art for itself 11.

    No Captulo I, procurmos justamente fazer uma abordagem sumria das novas perspectivas do pensamento historiogrfico relativo ao Novo Mundo. Lidando com uma rea de estudos relativamente recente e ainda pouco

    11 Elizabeth Wilder Weismann, The history of art in Latin America, 1500-1800: some trends and challenges in the last decade, Latin American Research Review, vol. X, number 1, 1975, p. 8.

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    desenvolvida em Portugal, julgmos pertinente reflectir sobre uma srie de problemas tericos e metodolgicos com os quais nos fomos confrontando ao longo do nosso trabalho. Dada a inexistncia de um slido arcaboio terico exclusivo da histria da arte colonial, fizemos uso de contributos vindos de outros ramos das cincias humanas, que julgamos poderem ser teis para lidar com a especificidade do nosso tema.

    Apresentamos ainda um levantamento dos vrios estudos mais significativos publicados sobre a questo da presena portuguesa nos territrios da Coroa espanhola, acentuando os aspectos de uma reflexo terica que nos pareceram mais pertinentes.

    As peas de ourivesaria que se encontravam na exposio de 1986-87 constituram um desafio e um ponto de partida, que nos estimulou a investigar em profundidade, chegando a um campo muito alargado. Na organizao da estrutura da dissertao seguimos um percurso inverso, isto , partimos de uma abordagem contextualizadora, que contempla os grandes vectores de ordem econmica, social, poltica, mental, cultural e religiosa, para tentar uma compreenso to completa quanto possvel dos objectos artsticos, cujo estudo ocupa os ltimos captulos.

    A produo artstica da regio do Rio da Prata durante a poca colonial revela uma forte influncia luso-brasileira. Por outro lado, os censos populacionais e as nminas de artistas e artesos mostram a importncia determinante dos portugueses no desenvolvimento das vrias artes e mesteres da regio platina. Mas os portugueses espalharam-se de igual modo por todos os territrios hispano-americanos de forma surpreendente. Encontramo-los na Bolvia, na Guatemala, na Venezuela, no Chile, no Peru.

    Lidando com os tpicos da disperso, da viagem, da integrao e da complementaridade, o Captulo II dedica-se em exclusivo a delinear o grande quadro que contextualiza e explica a grande mobilidade de artistas e de obras. Esta mobilidade residia numa complexa teia de factores, que devem ser entendidos luz do intrincado sistema de relaes institucionais, polticas e econmicas estabelecidas entre as duas potncias dominantes na Amrica do Sul, Espanha e Portugal. Estas relaes assumiram tambm formas clandestinas e camufladas, que igualmente nos preocupamos em explicar.

    A separao entre a regio do Rio da Prata e o territrio brasileiro perdurou apenas no plano poltico. margem dos ordenamentos jurdicos e polticos, imperava uma realidade social e econmica de compenetrao firme e de indiscutvel simbiose, que os historiadores de ambos os pases tm frequentemente ignorado. A abundncia de referncias a obras de arte e a artistas

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    portugueses no territrio do Rio da Prata parece surpreendente se a analisarmos luz do conflito secular que ops Portugal e Espanha nesta zona da Amrica do Sul. No entanto, se buscarmos a compreenso de tal fenmeno pondo a tnica na complementaridade de interesses e nos laos quotidianamente estabelecidos pelos habitantes das duas margens do Prata, revelia das instncias do poder, e inclusivamente com a sua conivncia camuflada, obtemos uma imagem completamente diferente.

    O Captulo III lida mais de perto com a triangulao Portugal/Brasil/Rio da Prata, analisando a mobilidade dos homens (a imigrao clandestina, a desero), e a circulao dos objectos (o contrabando, a importao legal). A fronteira surge assim com frequncia como rea de integrao, mais do que como rea de conflito, estanque a influncias recprocas. Estes aspectos, quando devidamente analisados, ajudam a compreender a realidade esttica e artstica vivida nas possesses espanholas e portuguesas da Amrica do Sul no perodo barroco, e a esclarecer algumas das suas virtualidades.

    Cingindo-nos ao caso das ligaes entre ambas as potncias na regio do Rio da Prata no perodo colonial, deparamos com uma realidade que, se no domnio poltico e institucional tende a reforar a ideia de conflito, no domnio econmico, social e artstico, paradoxalmente, parece revelar uma situao completamente distinta.

    A expresso escolhida para dar ttulo dissertao, La puerta falsa de Amrica, surge na correspondncia entre o ouvidor D. Francisco de Alfaro e a corte espanhola, em 1611, para designar a cidade de Buenos Aires, a propsito do contrabando12. A cidade, inicialmente fundada para actuar como a porta da regio platina, barrando os interesses portugueses, em pouco tempo comeou a ser considerada a porta falsa das ndias, a porta traseira, ou dos fundos, por onde todos entravam e saam livremente.

    A questo da influncia hispnica no Brasil apenas aflorada, j que constitui em si mesma um vasto territrio para futuras investigaes, que esperamos venha a tornar-se atractivo para outros historiadores.

    Todos os americanistas esto habituados a ter de lidar com o risco que decorre de aceitar que os valores e as tcnicas de uma disciplina tradicional como a histria da arte de um determinado pas europeu devem ser aplicados como

    12 V. Raul A. Molina, Las primeras experiencias comerciales del Plata El comercio martimo, 1580-1700, Buenos Aires, Talleres Grficos Dorrego, 1966, p. 138.

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    um ready-made experincia americana. O Novo Mundo no precisa de obter reconhecimento atravs dos padres do Velho Mundo. Um dos erros mais comuns julgar que o valor da arte americana depende da percentagem que ela tem de influncia autctone, ou hispnica, ou portuguesa, e que os historiadores tm de tomar partido por um ou outro lado da questo. Esta dicotomia, ainda bastante poderosa na actualidade, teve no entanto, no final do sculo XX, a vantagem de ter despertado as atenes dos especialistas para a chamada arte mestia.

    At h bem pouco tempo, notava-se entre os historiadores da arte ibero- -americana um certo desconforto face ausncia de Grandes Artistas. Com efeito, como bem observou Elizabeth Weismann, estamos perante um universo artstico where the nearest thing to a named sculptor seemed to be a cripled mulatto in Brazil 13. A esta invisibilidade relacionada com a inexistncia de grandes mestres, junta-se a questo da arte popular, que seria por definio diferente e inferior s Belas Artes, e como tal ficava de fora da histria da arte dita sria. Mesmo os historiadores mais informados e respeitados eram forados pelas suas premissas a definio europeia da arte barroca a denegrir a experincia americana.

    Na abordagem que desenvolvemos nos trs ltimos captulos da dissertao, procurmos estar atentos a estes preconceitos, e por isso dedicmos uma parte significativa dos nossos esforos a estudar artesos cuja produo se exerceu em reas das chamadas artes decorativas, como o mobilirio ou a ourivesaria, e a resgatar percursos individuais de artistas que, se bem que no possam ser considerados geniais quando comparados com alguns dos seus congneres europeus, tiveram uma importncia muito significativa a nvel local, dado que foram os responsveis pela introduo e divulgao de novas tcnicas, formas e modelos.

    At h algumas dcadas, a discusso volta do barroco centrava-se quase exclusivamente na arquitectura, entendendo-se o barroco essencialmente como um estilo arquitectnico. Tentmos afastar-nos desta leitura, integrando e privilegiando outras manifestaes artsticas, durante muito tempo consideradas secundrias.

    O Captulo IV aborda um caso particular, e de alguma forma exemplar, que diz respeito comunidade dos ourives do ouro e da prata em Buenos Aires,

    13 Elizabeth Wilder Weismann, The history of art in Latin America, p. 9.

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    e ao modo como os artesos portugueses se inseriram nesse grupo scio- -profissional.

    O Captulo V retoma o trilho dos objectos que serviu de mote ao nosso trabalho, fazendo uso da histria comparada para explicar questes como a importncia e funes da prata no contexto da sociedade colonial, ou ainda as tipologias e usos dos objectos mais comuns, procurando contextualiz-los atendendo religiosidade, aos modos de vida e s prticas quotidianas caractersticos da sociedade colonial americana. Muitos elementos dos universos tradicionais dos conquistadores perderam o sentido primordial que lhes era atribudo na Europa: os objectos circulavam entre mundos distintos, e ao circularem foram-se desvinculando do seu significado original, dando origem a fenmenos de descontextualizao, distanciamento ou perda de sentido14.

    Procurmos tambm estabelecer quais os aspectos mais marcantes da influncia portuguesa na ourivesaria e no mobilirio, contrapondo-lhes os modos de fazer hispano-americano, portugus e brasileiro, bem como detectar alguns aspectos estticos e artsticos originais e inovadores, resultantes da adaptao local de formas e modelos importados de Portugal e do Brasil.

    Por fim, o Captulo VI, para alm de incluir uma breve referncia pintura e uma anlise sumria de algumas obras de talha e de imaginria executadas por artistas lusos, detm-se mais alongadamente em duas situaes que escolhemos como paradigmticas.

    O percurso e a obra do entalhador portugus Jos de Sousa Cavadas introduz a questo das mestiagens, numa zona isolada e remota que, muito embora perifrica, no pode ser encarada como um mero satlite dos centros criativos europeus. Neste caso, como em muitos outros, a periferia, em vez de produzir manifestaes estticas seguidistas, passivas e atrasadas em relao aos centros artsticos dominantes, constituiu-se como dinamizadora de rupturas estticas e local de liberdade criativa15.

    Com efeito, a nova situao criada estimulou as capacidades de inveno e de improvisao, dotando os artistas de uma flexibilidade pouco comum em territrio europeu.

    14 V. Serge Gruzinski, La pense mtisse, pp. 78, 80 e 81.

    15 V. Julia Alessi de Nicolini, Pistas para interpretacin del barroco latinoamericano, in Simposio Internazionale sul Barocco Latino Americano-Atti, vol. I, Roma, Istituto Italo Latino Americano, 1982, pp. 249-265.

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    O caso do engenheiro militar Jos Custdio de S e Faria estudado como exemplo de um artista-tcnico de formao europeia, e mais concretamente portuguesa, que foi um dos responsveis pela introduo na regio platina da tendncia neoclssica, ainda tingida dos ltimos laivos da esttica rococ. O seu percurso de vida e as mltiplas actividades a que se dedicou tornam-no um caso verdadeiramente invulgar.

    Qualquer estudo relativo presena da arte portuguesa no Novo Mundo por inerncia, como perspicazmente observou Robert Smith16, um trabalho de propores internacionais. Este programa apresenta-se com uma extenso e dificuldade imensas, raras vezes superadas, sobretudo por limitaes de acesso documentao e bibliografia, muito dispersas, e pela inexistncia de inventrios exaustivos e de levantamentos completos.

    O estado dos estudos da arte colonial nos pases sul-americanos nem sempre o mais animador. A dificuldade de esconjurar um passado prximo, onde predominaram a falta de iseno e a necessidade de exaltar de forma exacerbada um sentimento nacionalista fortemente enraizado, bem como a ausncia de contactos com o estrangeiro durante o perodo da ditadura militar e a emigrao de muitos cientistas e investigadores para a Amrica do Norte, fugidos s perseguies polticas, levaram a que, durante grande parte do sculo XX, a historiografia da arte da regio platina no tenha sido frtil numa produo de ndole terica ou que busque a reflexo sobre os seus mtodos e finalidades.

    No que diz respeito Argentina, pas que conhecemos melhor, a situao tem vindo a mudar favoravelmente, sendo hoje em dia a arte colonial argentina um dos perodos mais bem documentados da arte ibero-americana, devido ao esforo editorial efectuado nas ltimas dcadas pela Academia Nacional de Belas Artes, pela Academia Nacional de Histria e por diversas universidades. No entanto, muita da produo historiogrfica ou da abundante publicao ensastica tm de ser considerados com algum esprito crtico, j que pecam normalmente por um acesso limitado documentao oficial, dificultado pelo estado catico e de extrema penria dos arquivos nacionais e regionais, e tambm, foroso ser reconhec-lo, pela falta de iseno de alguns dos autores.

    16 Robert C. Smith, Luso-Brazilian art in Latin American Studies, in Elizabeth Wilder (ed. de), Studies in Latin American Art, Washington, The American Council of Learned Societies, 1949, p. 73.

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    Actualmente ainda relativamente frequente uma abordagem historiogrfica no oficial, praticada por antiqurios, diletantes ou historiadores locais, sem grandes esforos de conceptualizao.

    No caso do Uruguai e do Paraguai, as prprias condicionantes da vida poltica nas ltimas dcadas tornaram difcil a reflexo isenta e aprofundada sobre um passado comum, bem como o acesso s fontes primrias.

    Se na Argentina a tendncia para uma melhoria significativa, e se no Uruguai o futuro da histria da arte e da historiografia em geral parece promissor, no Paraguai a situao desencorajadora, e apresentando poucas hipteses de mudana a curto prazo17.

    As relaes entre os historiadores da arte brasileiros e portugueses foram consideravelmente implementadas nos ltimos anos, de forma bilateral, dando lugar realizao de um conjunto de colquios que constituram um frum privilegiado para a discusso e a troca de ideias, de que resultaram uma srie de publicaes do maior interesse. O mesmo sucede em relao aos contactos regulares entre investigadores portugueses e espanhis. No entanto, no houve at agora uma atitude concertada no sentido de unir os esforos de estudiosos hispano-americanos, portugueses, brasileiros e espanhis, e muito menos de o fazer numa perspectiva multidisciplinar, com a qual pensamos que os estudos da arte ibero-americana muito teriam a lucrar.

    Em universidades norte-americanas, e nomeadamente na Universidade do Texas, em Austin, que conta com um excelente Instituto de Estudos Latino- -Americanos (ILAS), esta perspectiva pluridisciplinar leva a agrupar num mesmo departamento inmeras reas de estudo, que vo da literatura histria da arte, da msica sociologia, procurando-se estabelecer os estudos latino-americanos como disciplina reconhecida e respeitada, e levando os futuros investigadores, qualquer que seja a sua rea, a familiarizarem-se com os instrumentos de pesquisa e as metodologias usados nos diferentes domnios. Neste departamento, trabalham em estreita colaborao brasileiros, norte-americanos, hispano- -americanos e espanhis, mas, significativamente, nenhum investigador portugus.

    A Nettie Lee Benson Latin American Collection, pertencente Universidade do Texas, talvez a biblioteca mais bem apetrechada a nvel

    17 V. Joseph R. Barager, The historiography at the Ro de la Plata area since 1830, The Hispanic American Historical Review, vol. 39, n. 4, Nov. 1959, pp. 588-642; Robert C. Smith e Elizabeth Wilder, A guide to the art of Latin America, New York, Arno Press, 1971.

  • INTRODUO

    19

    mundial na rea dos estudos latino-americanos, ou o Ibero-Amerikanisches Institut (IAI) Preuischer Kulturbesitzem, em Berlim, que integra a maior biblioteca europeia especializada em cultura ibero-americana, no recebem nunca a visita de historiadores da arte portugueses, embora ofeream condies para a investigao muito superiores s de qualquer instituio similar portuguesa ou brasileira, quer quanto organizao e facilidade de consulta, quer no que diz respeito abundncia de documentao original e qualidade do seu acervo bibliogrfico.

    Uma iniciativa to importante como a Carl-Justi-Vereinigung, ou Associao para uma colaborao entre a Alemanha, Espanha e Portugal no campo da Histria da Arte, sediada na Alemanha, conta com a participao activa de historiadores desta nacionalidade, de Espanha, do Brasil e de vrios outros pases da Amrica Latina, mas h alguns anos, ao assistirmos informalmente a uma reunio realizada em Berlim, destinada a debater os modos de estreitar a cooperao e o intercmbio entre os diversos membros, constatmos que o nosso pas no se encontrava sequer representado.

    Estamos em crer que este panorama um tanto ou quanto desanimador apresenta fortes possibilidades de mudana a curto prazo, dado que o campo de estudos a que nos dedicamos muito vasto e promissor, permitindo o aprofundamento de linhas de investigao diversificadas. Correndo embora o risco de alguma disperso, buscmos um equilbrio que nos pareceu desejvel entre a histria da arte pura e dura e uma viso tanto quanto possvel abrangente, que englobasse aspectos que se nos afiguram fundamentais para a compreenso da vida artstica nos territrios americanos durante o perodo barroco. Quisemos que este trabalho se assumisse essencialmente como um primeiro rastreio onde todas as pistas se encontram praticamente em aberto, permitindo atrair novos investigadores e constituir um estmulo para outras leituras e interpretaes, que certamente se revelaro enriquecedoras.

  • CAPTULO I

    RECICLAR O BARROCO: NOVAS PERSPECTIVAS DO PENSAMENTO HISTORIOGRFICO E SUA CONTRIBUIO PARA A REA DOS ESTUDOS LATINO-AMERICANOS

  • 1. CONCEITOS, PROBLEMAS E MTODOS

    23

    1. Conceitos, problemas e mtodos. Contributos mais significativos

    O que a histria da arte, ou o que deve s-lo, nas Amricas? Afirmar que antes de mais uma forma de histria pode parecer redundante; no entanto, trata- -se de uma premissa fundamental que seria estultcia ignorar. Os objectos artsticos que pretendemos estudar so a histria materializada. A primeira misso do historiador da arte relatar honestamente o que encontra ao contemplar a obra de arte. Essa compreenso do objecto artstico deve ser efectuada atravs dos princpios que o informaram e o criaram. como um crculo que se fecha, dado que a arte um artefacto o que o homem e a sociedade fizeram que remete para a condio material e espiritual do ser humano1. Como George Kubler eloquentemente escreveu, qualquer obra de arte de facto uma poro de acontecimento que fica gravada, ou uma emanao do tempo passado. um grfico de uma actividade agora silenciosa, mas um grfico que se tornou visvel, tal como um corpo astronmico, devido a uma luz decorrente dessa actividade 2.

    A histria da arte no pode ser um mero jogo intelectual. No deve usar a terminologia estilstica divorciada do meio em que foi concebida e que contribui para criar, no deve distanciar-se das finalidades humanas que serve e da situao social que representa. A arte um fenmeno cultural e a sua compreenso deve ser fundamentada no entendimento mais alargado possvel da matriz cultural3. Pretender interpretar a obra de arte atravs da aplicao de um aparato crtico sustentado exclusivamente na razo e numa lgica esttica afigura-se-nos redutor. Perde-se a capacidade de perceber a mensagem que ela encerra e, como tal, de a entender em todas as suas dimenses. fundamental ter-se em ateno os aspectos culturais mais profundos que formam parte da sua essncia. Para compreender esta essncia do barroco sul-americano, necessrio libertarmo-nos da pretenso de o fazer entrar em cnones rgidos, de o fazer corresponder a um conjunto de regras estilsticas enunciadas a partir de uma lgica meramente formal.

    1 V. Elizabeth Wilder Weismann, The history of art in Latin America, 1500-1800: some trends and challenges in the last decade, Latin American Research Review, vol. 10, n. 1, 1975, pp. 9-10. 2 George Kubler, A forma do tempo observaes sobre a histria dos objectos, Lisboa, Vega, 1990, p. 34.

    3 V. Elizabeth Wilder Weismann, The history of art in Latin America, p. 21.

  • CAPTULO I. RECICLAR O BARROCO

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    The philosophy of Latin American art is not supplied to us ready-made; it has got to make itself, and to make itself new, for the New World 4. Esta frase de E. Weismann resume a preocupao de muita da historiografia artstica contempornea relativa ao Novo Mundo. As novas vias de investigao procuram contribuir para a compreenso global da esttica barroca e da sua adaptao nos territrios americanos, ajudando a definir a complexidade das relaes entre a Pennsula Ibrica e o Novo Mundo.

    A actual historiografia da arte latino-americana complexa, mas entre muitas perspectivas diferentes podemos definir duas tendncias extremas: uma que v nela fortes e determinantes razes indgenas, outra que apenas descortina a provincializao e repetio de padres estticos europeus. Oscila-se assim entre afirmar ou negar a originalidade da arte americana.

    Uma forma ortodoxa de escrever sobre arte consider-la como uma sucesso de estilos. O estilo discutido neste perodo o barroco, mas no caso da Amrica Latina esta noo de estilo nem sempre aplicvel. Outra preocupao dos historiadores da arte, a questo da terminologia, levanta igualmente alguns problemas. De facto, nenhum dos termos como arte mestia, indgena, provincial, popular designa um verdadeiro estilo. Ainda sucede haver autores que assumem que a arte colonial simplesmente derivativa de modelos europeus. no entanto mais til escrutinar os artefactos do que partir de ideias preconcebidas. Uma preocupao com as provncias, as diferentes regies, a individualidade das cidades, que marca a historiografia actual em geral, caminha neste sentido, proporcionando novas leituras5.

    Uma das tendncias mais interessantes das ltimas dcadas na literatura da arte colonial latino-americana a deslocao das tentativas de anlise estilstica para as relaes sociolgicas. Na nova historiografia, alargou-se consideravelmente o perodo barroco, situando-o na longa durao, e novas investigaes, nomeadamente nos arquivos da Inquisio, levaram descoberta de novos protagonistas, ligados cultura popular e mestiagem cultural. A cultura colonial adquire assim um novo estatuto, ao incorporar realidades que esto para alm da racionalidade da cultura escrita, de origem europeia, e que dizem respeito a problemticas muito variadas, como a oralidade, a visualidade, a teatralidade ou a sexualidade, em cuja abordagem necessrio ultrapassar as

    4 Elizabeth Wilder Weismann, The history of art in Latin America, p. 10.

    5 V. Elizabeth Wilder Weismann, The history of art in Latin America, pp. 18-19.

  • 1. CONCEITOS, PROBLEMAS E MTODOS

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    fronteiras disciplinares tradicionais, atravs do uso do que se designa por estratgias de saber nmadas6.

    No seio deste alargado debate terico, em que a histria da arte no est sozinha mas em que cruza experincias, mtodos e conceitos com outras reas do saber, pareceu-nos til fazer um breve ponto da situao sobre a questo historiogrfica, a discusso metodolgica, os espaos de pesquisa em aberto, os desafios tericos e as lacunas verificadas, tendo como base a histria da arte e da cultura do Novo Mundo. Surpreendentemente, verificamos que muitas das perspectivas mais estimulantes nos chegam de outros domnios exteriores histria da arte.

    1.1. O retorno do barroco. O debate ps-moderno

    No contexto do debate ps-moderno, o barroco foi objecto de um interesse e de uma revalorizao muito acentuados. Trata-se do chamado retorno do barroco, entendido como uma recepo activa, uma revalorizao, e no um simples retorno ao barroco histrico, impregnado de nostalgia.

    A palavra barroco engloba hoje diferentes realidades culturais e discursos acadmicos muito distintos. Por um lado, assiste-se a um renovado interesse pelo barroco histrico, no s por parte dos estudiosos da literatura e da arte, mas tambm pelos historiadores e socilogos, que conduz revalorizao deste movimento na perspectiva das novas contribuies metodolgicas e a uma reviso dos modelos historiogrficos tradicionais. Por outro lado, nas ltimas dcadas vivemos momentos em que a cultura contempornea denotou um gosto especial pelo barroco, chegando mesmo alguns crticos a falar de um retorno ao barroco, ou neobarroco7.

    A ideia de uma reciclagem metafrica do barroco est na origem da expresso reciclar o barroco8. O conceito heurstico de reciclagem cultural uma metfora epistmica desenvolvida com vista a entender os aspectos da

    6 V. Petra Schumm, El concepto barroco en la poca de la desaparicin de fronteras, in Petra Schumm (ed. de), Barrocos y modernos Nuevos caminos en la investigacin del barroco iberoamericano, Frankfurt am Main/Madrid, Vervuert/Iberoamericana, 1998, pp. 15-16. 7 V. Petra Schumm, El concepto barroco , p. 13.

    8 A expresso reciclar o barroco foi primeiramente usada por Omar Calabrese em 1987, na obra LEt neobarocca, Bari, Laterza, 1987 (ed. port.: A idade neobarroca, Lisboa, Edies 70, 1999), e retomada mais tarde por autores como Joo Adolfo Hansen ou Walter Moser.

  • CAPTULO I. RECICLAR O BARROCO

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    cultura contempornea onde existe uma dominante citacional9, ou canibal. A reutilizao, reapropriao ou reciclagem do barroco pressupe no s uma certa continuidade no processo de transposio para uma nova realidade cultural, mas tambm o tpico da diferena, da descontinuidade, da transformao10.

    Trata-se de um trabalho de comparao muito complexo. Foi no contexto da relao entre a Europa e a Amrica (processo de colonizao) que o paradigma cultural que o barroco se transferiu do Velho Continente para o Novo Mundo. Interessa pois analisar o devir histrico deste paradigma no seio da histria americana, at contemporaneidade, com a questo de um barroco latino-americano ps-colonial11.

    Foram sobretudo os escritores cubanos Alejo Carpentier, Lezama Lima e Severo Sarduy que mais se preocuparam em esboar uma concepo do barroco ou neobarroco, criando uma teoria esttica no isenta de contradies, que se enlaa na cultura contempornea latino-americana e fundamenta posies marcadamente polticas. Sublinhe-se que estes trs autores conformam a chamada trilogia do barroco cubano, vinculando a esttica do barroco a diversos projectos ideolgicos e estticos contemporneos12.

    Este igualmente o universo esttico de Jos Luis Borges, Jlio Cortzar, Gabriel Garca Marquez ou Carlos Fuentes, expoentes de uma produo literria e artstica que em muitos casos se afirma abertamente como neo-barroca, ligada a um realismo fantstico cujas razes se encontram no continente americano; como afirma Julia Nicolini, ciertamente, no puede identificarse el Barroco de Amrica con lo real-maravilloso, pero es posible que lo real-maravilloso solo pueda explicarse (o mejor, comprenderse) a partir del Barroco de Amrica13.

    9 Na ausncia de melhor expresso na lngua portuguesa, optou-se pela traduo directa da lngua francesa do vocbulo citacionelle. 10 V. Walter Moser, Du baroque europen et colonial au baroque amricain et postcolonial, in Petra Schumm (ed. de), Barrocos y modernos Nuevos caminos en la investigacin del barroco iberoamericano, Frankfurt am Main/Madrid, Vervuert/Iberoamericana, 1998, p. 69. 11 V. Walter Moser, Du baroque europen et colonial, p. 67.

    12 Sobre a literatura cubana contempornea e o barroco, cf. Lus Duno-Gottberg, (Neo)barroco e identidad. El periplo de Alejo Carpentier a Severo Sarduy, in Petra Schumm (ed. de), Barrocos y modernos Nuevos caminos en la investigacin del barroco iberoamericano, Frankfurt am Main/Madrid, Ve11.rvuert/Iberoamericana, 1998, pp. 307-320. 13 Julia Alessi de Nicolini, Pistas para interpretacin del barroco latinoamericano, in Simposio Internazionale sul Barocco Latino Americano-Atti, vol. I, Roma, Istituto Latino Americano, 1982, p. 263.

  • 1. CONCEITOS, PROBLEMAS E MTODOS

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    A revalorizao da literatura barroca na Amrica Latina foi precedida por idntico fenmeno nas artes plsticas, mas ultrapassou-o muitas vezes na pertinncia das concluses, no rigor interpretativo e na adequao dos princpios e mtodos do exerccio crtico em relao realidade latino-americana.

    Alejo Carpentier, baseando-se nas teorias de Eugnio D Ors, v no barroco no um estilo histrico, mas uma espcie de pulso criadora, que retorna ciclicamente atravs de toda a histria nas manifestaes da arte14. A Amrica seria assim um continente de predisposio barroca desde o seu incio, marcado pela inclinao para uma ornamentao empolada e para o artifcio, constituindo-se a linguagem do prprio Carpentier ou do seu compatriota Jos Lezama Lima15 como um exemplo desta mesma tendncia16.

    Para Julia Nicolini, a interpretao do barroco latino-americano no se limita simples constatao de que houve um barroco na Amrica Latina, um estilo transplantado, s que empobrecido, esquematizado pelos avatares do transplante e do afastamento. Dever-se- buscar os traos de um barroco da Amrica Latina, capaz de afirmar-se com peculiaridades distintivas. Esta autora concebe o barroco como uma cosmoviso conscientemente integradora, j que a unidade americana feita de diferenas. A cultura americana do sculo XVIII merece assim o nome de barroca entre outros motivos devido sua extraordinria capacidade de sntese17.

    O escritor e ensasta brasileiro Affonso vila, ao reflectir sobre a tropicalidade barroca, retomando esta expresso de Ricardo Averini18, conclui que houve a ocorrncia de uma idade barroca em Minas Gerais. Admite, de acordo com Lezama Lima, o imprio do senhor barroco como imagem tropical

    14 Alejo Carpentier, Lo barroco y lo real maravilloso, in Alejo Carpentier, Razn de ser, Caracas, Universidad Central de Venezuela, Ediciones del Rectorado, 1976, p. 53. 15 V. Jos Lezama Lima, La curiosidad barroca, in Jos Lezama Lima, Obras completas, tomo II, Mxico, Aguilar, 1977, pp. 202-225. 16 V. Trinidad Barrera, El barroco americano: estabilizacin y cultura, in Maria da Graa M. Ventura (coord. de), O barroco e o mundo ibero-atlntico Terceiras jornadas de histria ibero-americana, Lisboa, Colibri, 1998, p. 213. 17 Julia Alessi de Nicolini, Pistas para interpretacin, pp. 251-252 e segs.

    18 Ricardo Averini, Tropicalidade do barroco, Barroco, n. 12, Belo Horizonte, 1982-83, pp. 327-334.

  • CAPTULO I. RECICLAR O BARROCO

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    do mundo, e, com Severo Sarduy19, as origens barroquizantes da civilizao americana20.

    Affonso vila refere-se a um voluntarismo esttico e social de incandescncia tropical, premonitoriamente nacional, perceptvel no barroco e no rococ do eixo Bahia-Minas Gerais nos sculos XVII e XVIII21. Apresenta um esquema que designa por processo de circularidade cultural do barroco em Minas, delineando cinco direces ou vectores bsicos da mobilidade do barroco brasileiro: a disseminao impressa de textos, smulas e modelos plsticos, em edies restritas, a disseminao manuscrita, atravs de cpias, com um alcance mais amplo, a disseminao mnemnica ou sensvel, de modalidade oral, auditiva e visual, com a transmisso dentro de um grupo profissional ou social de modelos formais memorizados de arquitectura e arte ornamental, a disseminao grfico-visual, mediante o desenho ou a reproduo pictural de plantas, riscos, iconografia ou composies emblemticas, atravs de exemplar normalmente nico e manuscrito, ou de cpia restrita, e a disseminao activista, de molde profissional, feita ao nvel da aprendizagem inserida no sistema corporativo, ou em parceria de trabalho que implicava uma permuta de informao e experincias22. Refere-se ainda este autor a uma alta circularidade cultural, acima de uma mdia ou baixa circularidade, que implica uma relao ao nvel dos grandes modelos e fontes, um leque de paradigmas estticos anulador de fronteiras. Ao considerar esta pluralidade e interdisciplinaridade, sem compartimentaes, poderamos comear a entender melhor circunstncias e peculiaridades ainda nebulosas do barroco brasileiro, do barroco latino-americano, at do barroco em geral. E acrescenta A. vila: a falta dessa noo de unidade, de viso globalizadora do fenmeno cultural que tem dificultado entre ns uma ideia competente e abalizada do barroco23.

    19 V. Severo Sarduy, Barroco, Buenos Aires, Sudamericana, 1969. Tanto Severo Sarduy como Jos Lezama Lima se integram num grupo de escritores e ensastas latino-americanos que fazem um uso estratgico do paradigma barroco, como verdadeiro cavalo de batalha num combate cultural alargado, ou, de forma mais suave, na apropriao que fazem de certos traos estilsticos ou estticos identificados como barrocos. (V. Walter Moser, Du baroque europen et colonial, p. 80). 20 V. Affonso vila, O ldico e as projeces do mundo barroco, So Paulo, Perspectiva, 1994.

    21 Affonso vila, Gregrio e a circularidade cultural no barroco in Maria da Graa M. Ventura (coord. de), O barroco e o mundo ibero-atlntico Terceiras jornadas de histria ibero-americana, Lisboa, Colibri, 1998, p. 150. 22 Affonso vila, Gregrio e a circularidade cultural, pp. 151-152.

    23 Affonso vila, Gregrio e a circularidade cultural, p. 161.

  • 1. CONCEITOS, PROBLEMAS E MTODOS

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    Caio Boschi refora a ideia da existncia de um barroco mineiro, conceito alargado que definiria no apenas as artes plsticas, mas nomearia um certo estilo de vida, uma sociedade mineira cujo carcter barroco se evidenciaria no acentuado gosto pelas festas sumptuosas e pelas diverses pblicas repletas de fausto24.

    Outra contribuio importante para a afirmao da singularidade da cultura brasileira foi a do auto-intitulado Movimento antropofgico, iniciado pelo pensador Oswald de Andrade, com a publicao do Manifesto antropofgico em 192825. Este texto constitui-se como o discurso fundador da nova identidade brasileira, que fundamenta o projecto de modernidade para o pas. feita uma reviso da histria da colonizao portuguesa no Brasil, e delineada a construo de uma nova memria nacional que tem como referentes o ndio, o escravo negro e as culturas primitivas, at a consideradas inferiores e causa do atraso do pas26. Esta reabilitao do primitivo e da barbrie feita com vista a integrar todas as raas e a inverter a tradicional relao colonizador-colonizado.

    Encarando a fronteira como metfora, essencialmente nesse espao que a vanguarda antropofgica estabelece um discurso de transgresso, elaborando uma teoria crtica da cultura brasileira focalizada na oposio entre o arcabouo intelectual de origem europeia e a amlgama de culturas locais primitivas, que est na sua base27. A palavra antropofagia usada no Manifesto como arma de arremesso, capaz de provocar o escndalo e o choque, contra o aparelho colonial poltico-religioso que presidiu criao da civilizao brasileira, contra a retrica da sua elite intelectual, vergada ao estrangeiro e imitando a metrpole28.

    Esta afirmao da capacidade que tem a Amrica Latina de absorver as tradies indgenas, africanas e europeias, por via de uma espcie de canibalismo cultural, e de a partir delas produzir algo de radicalmente novo, uma cultura

    24 Caio Boschi, Barroco mineiro, in Maria da Graa M. Ventura (coord. de), O barroco e o mundo ibero-atlntico Terceiras jornadas de histria ibero-americana, Lisboa, Colibri, 1998, p. 59. 25 Oswald de Andrade, O manifesto antropofgico, Revista de Antropofagia, n. 1, Maio de 1928. V. tambm, do mesmo autor, A utopia antropofgica, So Paulo, ed. Globo, 1990. 26 V. Maria Lcia Bastos Kern, O movimento antropofgico e as tenses das fronteiras culturais luso-brasileiras, in Eugnio dos Santos (ed. de), Actas do XII Congresso Internacional de AHILA, vol. III, Porto, Centro Leonardo Coimbra da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2001, p. 505. 27 V. Benedito Nunes, Prefcio, in Oswald de Andrade, A utopia antropofgica, So Paulo, ed. Globo, 1990, p. 11. 28 V. Benedito Nunes, Prefcio, p. 15.

  • CAPTULO I. RECICLAR O BARROCO

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    autnoma, original e com personalidade prpria, serviu para alicerar a ideia da originalidade da arte latino-americana, originalidade esta que consistiria justamente na sua capacidade de transformar e incorporar elementos estranhos num discurso prprio e independente.

    Retomando o priplo pelas acepes mais recentes do barroco, noutras latitudes o debate sobre o que ultimamente passou a chamar-se barroco indiano ou crioulo contou com as contribuies de Octavio Paz e de Leonardo Acosta. Para este ltimo autor, bem como para Hernn Vidal, trata-se de um estilo importado pela monarquia espanhola enquanto parte de uma cultura estreitamente ligada sua ideologia imperialista, e cuja finalidade era a de mitificar e eternizar a conquista, de modo a criar a iluso de um poder aparentemente omnipresente e sancionado pela autoridade divina29.

    A historiografia da literatura barroca latino-americana foi muito influenciada por um certo purismo eurocentrista, que a interpretava como uma extenso ou cpia inferior dos modelos europeus, deixando para segundo plano os factores locais como o impacte das culturas indgenas e africanas, fenmenos de transculturalidade, ou o peso do modelo colonial. Esta perspectiva formalista, que valorizava o conceito de estilo, tendia a considerar o barroco como uma forma de expresso sem relaes com o meio que lhe deu origem. A produo esttica do perodo barroco seria assim uma m cpia dos elementos formais caractersticos do modelo metropolitano. Outra perspectiva mais recente, revisionista hispano-americanista, que contrasta com a anterior, nega qualquer reducionismo formalista e valoriza os aspectos originais do barroco hispano-americano como resultado de um processo scio-histrico diferente, que, devido a factores como a heterogeneidade cultural, o processo de mestiagem ou o peso do colonialismo, originou um barroco outro. A cultura e a esttica barrocas no seriam assim um fenmeno isolado, mas part