duglas teixeira monteiro

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Fichamento: MONTEIRO, Duglas Teixeira. “Um Confronto entre Juazeiro, Canudos e Contestado.” In: FAUSTO, Boris (org.). O Brasil Republicano: Sociedade e instituições (1889-1930) . 4ª Ed. São Paulo: Difel, 1985. [História Geral da Civilização Brasileira, Tomo III, vol. 9]. I – Introdução 1 – Crítica à noção de Cristianismo Rústico: “A variante do catolicismo, comumente designada como catolicismo rústico é, com frequência, vista apenas como a expressão de um empobrecimento com relação às fontes originais, ou como o resultado de sincretismos espúrios. Entende-la desse modo significa”: I – primeiramente, aferi-la e maneira arbitrária e enviesada, através do contraste com as modalidades ilustradas do cristianismo, minimizando sua especificidade e originalidade. II – Em segundo lugar, implica em ignorar o papel desempenhado universalmente pelos sincretismos em todas as grandes religiões. (p. 41) Raízes judaico-cristãs do catolicismo brasileiro (salvação tanto coletiva quanto angústias individuais): “a esperança messiânica do Reino de Deus numa terra renovada, e as expectativas de uma expiação individual.” (p. 41) O cristianismo na América Latina e as relações com a dominação colonial e ideia de igualdade conformista no reino dos céus : “... na América Latina, ao contrário [...] do que aconteceu em outras partes do mundo afetadas pela expansão do Ocidente, a cristianização foi regularmente associada à instauração de um poder colonial sobre as populações submetidas.” (p. 41) “Mais importante do que isto: gerou uma ‘cristandade colonial’, expressão da submissão das classes inferiores, mas, paradoxalmente, com potencialidades subversivas que se estenderam muito além dos momentos históricos da libertação

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Fichamento do Texto de Duglas Monteiro sobre Juazeiro, Canudos e Contestado.

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Fichamento: MONTEIRO, Duglas Teixeira. Um Confronto entre Juazeiro, Canudos e Contestado. In: FAUSTO, Boris (org.). O Brasil Republicano: Sociedade e instituies (1889-1930). 4 Ed. So Paulo: Difel, 1985. [Histria Geral da Civilizao Brasileira, Tomo III, vol. 9].I Introduo1 Crtica noo de Cristianismo Rstico: A variante do catolicismo, comumente designada como catolicismo rstico , com frequncia, vista apenas como a expresso de um empobrecimento com relao s fontes originais, ou como o resultado de sincretismos esprios. Entende-la desse modo significa: I primeiramente, aferi-la e maneira arbitrria e enviesada, atravs do contraste com as modalidades ilustradas do cristianismo, minimizando sua especificidade e originalidade. II Em segundo lugar, implica em ignorar o papel desempenhado universalmente pelos sincretismos em todas as grandes religies. (p. 41)Razes judaico-crists do catolicismo brasileiro (salvao tanto coletiva quanto angstias individuais): a esperana messinica do Reino de Deus numa terra renovada, e as expectativas de uma expiao individual. (p. 41)O cristianismo na Amrica Latina e as relaes com a dominao colonial e ideia de igualdade conformista no reino dos cus: ... na Amrica Latina, ao contrrio [...] do que aconteceu em outras partes do mundo afetadas pela expanso do Ocidente, a cristianizao foi regularmente associada instaurao de um poder colonial sobre as populaes submetidas. (p. 41)Mais importante do que isto: gerou uma cristandade colonial, expresso da submisso das classes inferiores, mas, paradoxalmente, com potencialidades subversivas que se estenderam muito alm dos momentos histricos da libertao poltica, na medida em que, apesar desta, persistiam estruturas sociais e econmicas opressivas. (p. 41-42)2 As transformaes sociais, polticas e econmicas com a instaurao da Repblica e ocidentais: Os movimentos brasileiros, objeto desta anlise, inserem-se no contexto de transformaes sociais, polticas e econmicas que tiveram seu princpio antes da instaurao da Repblica, mas que nesta encontraram sua mais completa manifestao. (p. 42)Teses de Vitor Nunes Leal: De modo sinttico, e sob um de seus aspectos, pode-se dizer que esses fenmenos ligam-se com o que tem sido caracterizado como uma crise no mandonismo tradicional e, mais especificamente, com a emergncia do coronelismo. (p. 42)A importncia do voto e o mandonismo local: Com a emergncia do coronel, o mandonismo local tem seu poder de barganha acrescido em decorrncia do significado adquirido pela representao poltico-eleitoral. (p. 42)A expanso do capitalismo mundial pano de fundo da modificao do cenrio brasileiro: Como um amplo pano de fundo para esses fenmenos, certamente pode ser invocado o processo mundial de expanso dos modos de produo capitalistas. Seja atravs das repercusses nacionais dos surtos econmicos mundiais, ligados borracha e ao algodo, seja pela intensificao da aplicao de capitais europeus e americanos na construo e na explorao de ferrovias, de modo direto, ou indireto, nas ltimas dcadas do sculo XIX, e durante a Primeira Repblica... (p. 43)3 A ecloso de movimentos sociais de carter reacionrio luta de classes pela economia rural, pela tradio: Alguns grupos submetidos a esse processo [de modernizao] reagiram em face do desmoronamento do mundo a que estavam habituados. Ao faz-lo, irromperam no curso de uma histria dramtica de submisso para trilhar os caminhos da rebeldia sem projeto, ou seguir as vias msticas que lhes eram dadas, ousando assumir a condio de sujeitos. (p. 43)

II Canudos e Juazeiro no contexto da Igreja CatlicaReformas ultramontanas na igreja catlica fator comum nos dois fenmenos: A interpretao dos movimentos sociais de Canudos e de Juazeiro beneficiou-se recentemente com os resultados de pesquisas histricas que puseram em evidncia os nexos entre as transformaes pelas quais passou a Igreja Catlica no Brasil da poca, e a atuao de Antnio Conselheiro, Padre Ccero e seguidores. (p. 44)Trs pontos da reforma religiosa no nordeste:I busca de uma aproximao maior com relao ao povo, especialmente com os elementos das classes subalternas;II reorganizao das jurisdies eclesisticas;III reavivamento espiritual, entre leigos, mas, particularmente, entre clrigos.Tentava-se com tudo isso abandonar um catolicismo colonial, frouxo e permissivo, e adotar uma linha europeia romanizante. (p. 44)No Brasil, o conflito entre a hierarquia da Igreja e a monarquia conhecido como Questo Religiosa (1872) e a romanizao, situam-se dentro desse quadro internacional e correspondem preocupao de reforar a Igreja contra os avanos das ideias republicanas, da maonaria, do positivismo e do protestantismo. (p. 45)Um percussor do Padre CceroA precedncia do clima religioso j presenta na regio nordestina: ... tanto o Padre Ccero, como Antnio Vicente Mendes Maciel o futuro Conselheiro certamente, de modo direto ou indireto, como observa Della Cava, viram-se envolvidos pela aura de Ibiapina. Mais do que isto, no deram curso a um estilo totalmente de piedade e prtica religiosas. Antes, acentuaram, de modo dramtico (ou trgico, no caso do Conselheiro), uma orientao que, no somente era consentnea com relao ao clima religioso da regio e da poca, como tinha precedentes bem estabelecidos no Nordeste. (p. 46)

III Juazeiro do Padre CceroQuesto religiosaDe incio, cabe observar que a unidade desse movimento [...] dada pela biografia do Padre Ccero Romo Baptista.I Em termos positivos, assim , pelo carter central que apresenta;II Em termos negativos, pela ausncia de estudos sistemticos sobre a comunidade de seus seguidores.Sabe-se hoje bastante a respeito de Ccero, das figuras que, de modo direto, o cercaram nos vrios momentos de sua carreira, dos jogos polticos e econmicos em que se envolveu, de seu dramtico relacionamento com a hierarquia da Igreja. Conhece-se pouco, todavia, sobre os horizontes ideolgicos e as expectativas polticas e religiosas de seus fiis mais humildes, ou seja, da grande massa de seus afilhados. (p. 46-47)Caractersticas carnais de Ccero: Amoldando-se sobre vrios aspectos tradio de Ibiapina, nos desastrosos perodos de seca, reunia-se a outros padres da regio para rezar e fazer promessas, consolidando-se progressivamente sua fama de desprendimento, integridade e devoo. (p. 48)A crise no clero aps constatao do milagre do sangue a preocupao cismtica da Igreja: O relatrio preparado por padres cultos, da confiana do bispo, com base em observaes diretas, confirmou os eventos enquanto milagres. Dadas as graves implicaes teolgicas desse reconhecimento, basicamente ligadas ideia de uma Segunda Redeno, o bispo comeou a temer um movimento cismtico. E isto, com razo, porque j se faziam sentir entre os padres do Nordeste os indcios de um sentimento nacionalista que levava a indagar por que somente a Europa podia beneficiar-se com manifestaes como, por exemplo, as de Lourdes. (p. 48)Questo polticaConexo politico-religiosaAtuando como rbitro nas disputas entre coronis do Vale do Cariri, tomando partido, de modo direto, ou indiretamente, atravs de homens de sua confiana, imps-se como um poltico, cuja presena marcou a histria da Repblica Velha no Cear e, secundariamente, em todo o Nordeste. (p. 48)Interveno federal no estado do Cear contra o governo do estado e o favorecimento das foras pr-Ccero: Em maro de 1914, foi nomeado o General Fernando Setembrino de Carvalho como interventor federal no Cear [...] Floro e Pinheiro Machado saem vencedores, ficando assegurada para o senador uma base eleitoral para sua pretendida candidatura presidncia da Repblica. (p. 51)Questo econmica... Juazeiro firmava-se como um mercado de mo-de-obra barata para todo o Nordeste. Agora, com o advento de uma situao mais favorvel aos coronis do Cariri, os homens vlidos, em sua maioria, pegavam em enxada. Progredia no apenas o cultivo da manioba [...] plantava-se mais e mais mandioca, que proporcionava a base quantitativa da alimentao da pobreza. (p. 51)Benefcios trazidos regio pelo coronel-religioso e a articulao do recrutamento de mo-de-obra: Em 1926 a cidade alcanada pela estrada de ferro. A mo-de-obra necessria construo de audes, financiados pelo governo de Artur Bernardes, e realizada por empresas inglesas e americanas, recrutada graas ao prestgio de Ccero. (p. 52)Alm do recrutamento, Ccero consegue controlar e disciplinar essa mo-de-obra por meio de seu prestgio enquanto clrigo: Em suas prdicas, o padre defendia a vida ordeira e o trabalho, o que, de modo nenhum entrava em conflito com o fato de ter recebido o bando de Lampio. [...] Ccero era ento como afirmava seu ativo brao poltico uma fora de ordem [fora de Floro]. (p. 52)Questo socialOs penitentes: Dentro da tradio regional das prticas religiosas populares, intensificadas a partir da segunda metade do sculo XIX, e sem grandes inovaes, floresceram em Juazeiro, entre outros grupos, os de penitentes. (p. 53)No sendo raros no serto nordestino, e contando com uma tradio antiga, os beatos se multiplicavam em Juazeiro. Eram mulheres e homens que se dedicavam, se no exclusivamente, pelo menos de modo intenso, a rezar nas igrejas, visitar doentes, enterrar mortos, ensinar oraes etc. (p. 53)As irmandades: Sob uma forma estruturada de modo slido e, em certo sentido, mais cannico, adquiriram grande importncia das irmandades religiosas. Algumas delas eram anteriores ao milagre, outras foram fundadas, ou revividas, por um leigo Jos Joaquim de Maria Lobo cuja liderana marcou fortemente a histria de Juazeiro em certo perodo. (p. 53)A submisso das irmandades aos cnones da Igreja: Todas, sem exceo, conquanto vivessem sob as condies gerais de rebeldia e autonomia de Juazeiro, eram formalmente subordinadas organizao da Igreja ou, pelo menos, alimentavam a pretenso de alcanar essa legitimao. (p. 53-54)A legio da CruzA dupla face dos movimentos que tiveram em Juazeiro e Ccero como centros, revela-se claramente no caso destas irmandades e, de modo mais acentuado, no que se refere Legio da Cruz. Organizaes locais [...], elas lutavam, no plano das lideranas, pela integrao e consequente reintegrao plena, de Ccero e do milagre nos quadros institucionais e ideolgicos da Igreja. Enquanto entidades de massa [...], refletiam a indiferena, e mesmo a hostilidade de um catolicismo regional com relao s estruturas da Igreja. (p. 54)Vises e Classes sociais... pode-se dizer que, em Juazeiro, estavam dados os elementos capazes de deflagrar um movimento milenarista com a afirmao expressa de um recomeo absoluto. Isto no aconteceu, entretanto, porque, durante todo o transcorrer dos eventos, as lideranas leigas e clericais mantiveram, acima de uma rebeldia, por vezes ousada, os vnculos com a Igreja e o comprometimento com as estruturas de poder regional e nacional. No mximo, teria sido possvel a constituio de uma igreja cismtica, capaz de acomodar em seus quadros organizatrios e ideolgicos os ardores milenaristas de beatos e demais afilhados incultos do padrinho Ccero. (p. 57-58)

IV CanudosCritica do autor em relao a leituras anteriores: ... a excessiva acentuao na referncia aos traumas de sua existncia anterior diretamente proporcional ao entendimento errneo pelo qual Canudos vista como uma aberrao que foi parcialmente responsvel uma personalidade psicologicamente anormal. (p. 58) [grifos nossos]Posio do autor: O ponto de vista aqui adotado , ao contrrio, o de considerar Canudos dentro de um contexto histrico capaz de favorecer uma compreenso equilibrada. Quanto ao lder espiritual do movimento, pode-se dizer principalmente a partir do conhecimento que se tem agora de suas prdicas que no era um demente; seus desvios de personalidade no teriam sido maiores do que aqueles que podem ocorrer em lderes cuja atuao se faz sob condies to atrozes como as que teve que enfrentar. (p. 58)Entre as duas alternativas de vida indicadas pelo Riobaldo de Grande Serto: veredas padre sacerdote, ou chefe de jagunos as duas metas histricas que tm sido da plebe rural brasileira..., Antnio Vicente [o Conselheiro] principiava a encontrar um caminho intermedirio. Em certo sentido, acabou por ser ambas as coisas a um s tempo. (p. 59)O subversivo Antnio ConselheiroPor volta de 1877 [...] fixou-se na comarca de Itapicuru onde, nas terras de uma fazenda, formou-se o arraial do Bom Jesus. (p. 59) Primeiros conflitos contra o clero e o estado: Foi proibido de pregar nas igrejas e lanou uma campanha contra o poder municipal de arrecadamento de impostos.A instalao em Canudos: A fixao em Canudos fazenda abandonada, junto ao Vaza-Barris fez-se por esta poca, vindo a alcanar o arraial, em seu curto perodo de existncia, dimenses inusitadas no serto. Para l afluram sertanejos de vrios Estados que, desfazendo-se de seus haveres, abandonavam os lugares e iam engrossar as fileiras daquele que, ento, j era o Conselheiro. (p. 60)Viso de CanudosA organizao citadina descrio de Euclides da Cunha: A descrio que Euclides faz do casario do arraial corresponde bem s designaes pejorativas e de espanto que adora: urbes monstruosa de barro, cidade selvagem, um misto de acampamento de guerreiros e de vasto kraal africano, tapera colossal. (p. 61)Interpretao da organizao da cidade , segundo Duglas, coerente com a populao sertaneja: Que espcie de estrutura urbana seria de se esperar de grupos sertanejos secularmente habituados disperso das moradias, conforme o padro rural brasileiro? Tratava-se de gente certamente, em sua maioria que jamais havia vivido, de modo sedentrio, numa aglomerao to grande. Exigir, na formao do povoado que se constituiu no curto perodo de quatro anos (1893-1897), um plano; ou pensar a ausncia aparente de qualquer plano, como reflexo de alguma espcie de delrio coletivo , seguramente, excessivo. (p. 61-62)Ao referir-se ao padro de construo das casas, com a estranheza de um viajante estrangeiro e civilizado, carregado de uma forte dose de etnocentrismo, Euclides acaba por descrever o que, nada mais e nada menos, a habitao comum do sertanejo pobre. (p. 62)A organizao interna de Belo Monte (Canudos) e as relaes sociais com o mundo externo a dinamicidade e relaes sociais, polticas e econmicas com outros povoados a normalidade tradicional das cidades do Serto: Especificamente, um quadro compatvel com as indicaes de que existia uma certa diferenciao social e econmica; de que eram bastante intensas as transaes comerciais com o mundo circundante; de que as relaes do tipo religioso com vigrios estabelecidos em localidades vizinhas eram frequentes e, finalmente, com as referncias ao significado poltico-eleitoral que Canudos assumiu em certos perodos. (p. 62)A aceitao dos preceitos da Igreja catlica e o repdio aos ideais republicanos a visita pastoral de alguns frades: ... so conhecidas as condies sob as quais efetuou-se a visita pastoral de dois frades enviados pelo arcebispo da Bahia vila. [...] Em Canudos, eles pregaram, fizeram casamentos, batizados e algumas centenas de confisses. Todavia, ocorreu que, no desempenho da parte poltica de sua misso ostensiva, insistiram de modo inbil a respeito do acatamento ordem republicana vigente, o que, pela indignao e suspeita suscitadas, resultou na expulso de que foram vtimas segundo Euclides sob o estrpito de vivas ao Bom Jesus e ao Divino Esprito Santo. (p. 64)A prdica do ConselheiroA pobreza justificada: Na esfera econmico-social, fica bem claro o reconhecimento de uma ordem divina que admite desigualdades e reserva a cada um, conforme sua posio, determinados direitos e deveres. Quanto aos deserdados aos pobres h para eles o consolo de que, pelo caminho das privaes e sofrimentos, o cu pode ser alcanado e, ao mesmo tempo, a recomendao de conformismo com a sorte, poro que Deus lhes reservou. (p. 65)Em contraposio misria inevitvel, nos sermes, so valorizados o desprendimento e a generosidade dos que tm para com os que no tm. (p. 65)A imperfeio do homem e a lei de Deus e do Monarca: Ao que parece, como consequncia da imperfeio humana, os poderes deste mundo, institudos por Deus, ou substabelecidos pelo monarca, so necessrios. So aqueles que, numa distino curiosa, designa como juzes de vara vermelha, em contraste com o governo do amor, inaugurado pelo Cristo o primeiro de vara branca que houve no mundo. (p. 66)As autoridades republicanas so ms, pois no derivam da legitimidade de Deus, do Pontfice e do Prncipe: A legitimidade da autoridade do pontfice, do prncipe e do pai, consequncia direta do fato de que procede de Deus. Como as autoridades da Repblica no dispem desta garantia, so ms por princpio, mesmo que, eventualmente, tragam o bem para o pas. (p. 66)O antirrepublicanssimo de Antnio ConselheiroA Repblica como inimiga da f crist, um grande mal, segundo Conselheiro: A Repblica, instaurada poucos anos antes, era um grande mal para o Brasil, pois que, sendo exterminadora da religio, opressora da Igreja e dos fieis, configura-se como o ludbrio da tirania. Alias, as palavras tirania e tirano, aparecem sempre em contextos nos quais designam uma autoridade ilegtima, isto , que no vem de Deus, a quem, em primeiro lugar a obedincia devida. o caso, por exemplo, da autoridade do presidente da Repblica, contestada por Conselheiro. (p. 66)Os males trazidos pela Repblica: (1) uma alargada interdio da Companhia de Jesus; e (2) a introduo do casamento civil. Neste ltimo caso, a nfase particularmente grande, girando os argumentos em torno da contestao do que entendia ser uma invaso do Estado em terreno que, de direito, pertencia Igreja. (p. 67)A vulgarizao da doutrina tridentina por Conselheiro: As meditaes em torno do tema marial indicam uma doutrina em nada original: idntica que fundamentava a pregao naquele tempo, e prpria do ensino que seria ministrado por qualquer padre da poca. Trata-se da vulgarizao de uma teologia tridentina que, nessa altura, em grande parte, j estava esclerosada. Sob nenhum aspecto poderia ofender a sensibilidade do catlico mais exigente em matria de ortodoxia. (p. 67)Sntese das prdicas de Antnio Conselheiro: Em sntese, Antnio Conselheiro faz uma vulgarizao sem requintes, mas sem imprecises, da teologia escolstica corrente. Uma teologia da Trindade, associada sequncia clssica criao elevao, pecado, pena, promessa, remisso e reconciliao. (p. 68)Suas crenas so compatveis com a imagem comum que dele se tem, enquanto mstico, diretor espiritual, beato. Nada mais do que isto, entretanto. Nenhum sinal nestes documentos de messianismo ou de profetismo. Nenhuma forma nova, ou simplesmente renovada, de milenarismo: a Histria um interim. Nela se acumulam, particularmente pelo sofrimento, os mritos que nos decorrem da Paixo de Cristo. Antnio Conselheiro foi o arauto de uma ordem j estabelecida e fundada. (p. 68) [grifos nossos]Reivindicao da tradio Canudos, uma vira reacionria: O impulso na direo da edificao de uma cidade separada, prpria de quase todos, se no de todos os movimentos sociais de teor religioso do meio rural brasileiro, uma indicao sugestiva da preocupao em definir as bases de um estilo de convivncia social e de controle, negador do estado de coisas que reinava nas cidades comuns. Isto, independentemente do fato de serem essas cidades percebidas, ou no, como prefiguraes de um reino milenarista. (p. 68) [grifos nossos]No foi, como no caso das vilas santas do Contestado, a ante-sala de um Reino de Deus na Terra. Mas foi, certamente, um esforo de aproximao com relao concepo de justia, tal como o Conselheiro a entendia, apertada dentro da estreiteza da condio humana. (p. 69)Caracterstica de carnais de Conselheiro: Sem assumir funes de padre, mas tomando a condio de conselheiro que, segundo indicaes de Jos Calazans, correspondia no Nordeste daqueles beatos que eram reconhecidos e aceitos como predicadores, Antnio Vicente Mendes Maciel buscou conduzir-se como uma autoridade religiosa exemplar, isto , hipertrofiando certos traos de um modelo ideal de sacerdote. (p. 69)... na medida em que a ascendncia adquirida sobre numeroso grupo de sertanejos, significou o aparecimento de uma alternativa para as formas costumeiras de subordinao e um eventual desafio autoridade de sacerdotes e de coronis. As tenses assim geradas desencadearam um processo de isolamento que implicou na criao de Belo Monte, uma espcie de ilha da purificao, dentro de um mar agitado e infestado por falsos cristos, maus padres protestantes, maons e republicanos, mas onde podiam existir tambm bons catlicos. (p. 69)Canudos e as Vilas Santas do Contestado: Deve ser acentuado, entretanto, que Canudos, com toda a probabilidade, no foi [...] percebida como um centro do mundo, fulcro de um espao sagrado, tal lugar privilegiado, mas no exclusivo, onde, pelo sofrimento e pela vida limpa e piedosa, os sertanejos se preparavam para alcanar o Cu. (p. 69)O papel social de Antnio Conselheiro: ... a atuao de Antnio Conselheiro como chefe religioso encontrava um desdobramento natural na condio de chefe civil, capaz de interferir, orientar e comandar no plano poltico e econmico e, de um modo geral, na esfera dos cuidados profanos de seus seguidores. (p. 70)Encerrando esta parte, algumas consideraes ainda devem ser feitas:I ... por estranho que parea, Antnio Conselheiro foi, em certo sentido, um lder menos mstico do que padre Ccero. Nem com relao a ele, nem com relao a seus seguidores, h referncias a milagres e a vises que tivessem tido um significado no processo de formao do movimento e de sua ideologia. (p. 70)II A segunda observao, diz respeito ao reconhecimento da relativa ignorncia a que se est condenado, por ora, no que se refere s condies sociais e histricas concretas que impulsionaram as adeses ao movimento. (p. 70)A anlise feita por Maria Isaura Pereira de Queiroz, situando o movimento dentro do quadro das rebeldias rsticas reformistas e conservadoras, que pretendem reordenar um mundo minado pela anomia, aponta, sem dvida um caminho. Todavia, a obteno de respostas mais especficas a estas questes depende de investigaes sobre um contexto histrico-sociolgico no qual, certamente, ao lado da religiosidade rstica e dos encaminhamentos tomados pela poltica eclesistica regional, devem ser levadas em conta a evoluo do cangaceirismo e do mandonismo local. (p. 71) [grifos nossos]

V ContestadoA figura tpica do beato, peculiar ao catolicismo rstico do Nordeste, encontrava, nesta mesma poca, seu correspondente meridional no monge, cuja atuao, sob vrios aspectos, foi semelhante dos congneres do Nordeste. No apenas estes, entretanto, os pontos de contato. Tambm no serto catarinense [...] havia escassez de padres. (p. 72)A presena de clrigos na regio do Contestado: Em 1892, um grupo de franciscanos alemes instalou-se em Lajes onde, com esprito combativo, comearam a enfrentar adversrios tidos, como no Nordeste, na conta de sria ameaa para o catolicismo: a ignorncia religiosa dos sertanejos e as foras satnicas da maonaria. (p. 72) [grifos nossos]Os mongesRelao com os outros movimentos a ausncia de um lder permanente: Uma das caractersticas que singularizou o movimento do Contestado com relao a Juazeiro e a Canudos, foi a ausncia da personalidade central e marcante de um lder. Jos Maria foi somente o seu iniciador. Comeara como rezador e curador, por volta de 1912, nos arredores de Curitibanos e de Campos Novos, numa poca particularmente conturbada. (p. 73)Os pares de FranaA construo das ferrovias nas terras do Contestado e o acumulo de sertanejos: Terminados os festejos, os caboclos se deixaram ficar em Taquau muitos, porque no tinham para onde ir gastando os ltimos dias em rezas, ouvindo respeitosamente a leitura de Jos Maria lhes fazia de trechos da Histria da Carlos Magno e dos Doze pares de Frana, obra muito divulgada no serto. Foi nesse perodo que comeou a surgir um princpio de organizao, com a constituio do primeiro grupo de pares de Frana, uma espcie de corpo de elite, cuja inspirao era calcada sobre a tradio carolngia popular. (p. 73)Coincidindo com a intensificao dos conflitos polticos em Curitibanos, difundiu-se no planalto catarinense a crena no regresso de Jos Maria, na vinda, tambm miraculosa, de um exrcito encantado, e no incio da guerra de So Sebastio, entendida como um embate escatolgico. Taquaruu tornou-se novamente um centro de exaltao religiosa. A partir de vises, onde Jos Maria falava a uma menina e orientava seus antigos adeptos, comea a nuclear-se em torno dos parentes da visionria um novo ajuntamento que seguia, em linhas gerais, o modelo anterior. (p. 74)Em fins de 1915 conformou-se a liquidao dessa rebelio sertaneja, restando apenas pequenos grupos esparsos. Em 1916, Adeodato o ltimo de seus chefes caiu prisioneiro. (p. 75)Diferenas marcantes entre Contestado e Canudos Dos trs movimentos que vm sendo estudados, a Guerra do Contestado foi o nico que tomou, inequivocamente, um carter milenarista. (p. 75)Averso Repblica e louvor Monarquia Celeste: Adversrios da Repblica [...] os participantes da irmandade rebelde diziam-se monarquistas. Entretanto, a monarquia que aspiravam, mais do que uma instituio poltica, era percebida como a realizao do Reino escatolgico. Na tosca, mas expressiva indicao de um prisioneiro era uma coisa do cu uma nova ordem que resultaria da unio entre combatentes terrestres e o exrcito encantado de So Sebastio. (p. 75)A caracterstica festiva do Contestado, diferente dos demais movimentos (Canudos), que tinha carter penitente: Contudo a santa religio da irmandade reproduzisse muitos aspectos do catolicismo rstico tradicional do serto brasileiro, de um modo geral, havia nela uma peculiaridade que precisa ser devidamente acentuada: no era marcada pelo esprito de mortificao, mas antes, pela alegria. Em certo sentido, pode-se dizer que a vocao das comunidades constitudas nas vilas santas era a da festa permanente. (p. 75)Organizao social das vilas santas: No plano da organizao social, o igualitarismo e a fraternidade eram valores fundamentais. A distribuio dos papis de mando e de liderana eventualmente, disputadas com violncia obedecia, basicamente a dois critrios que podiam entrecruzar-se:I a posse de qualidades ou experincias significativas para a situao de guerra em que viviam;II a exibio de dons carismticos. (p. 76)Dos homens que comandaram as numerosas vilas santas, sabe-se que alguns haviam sido chefes locais que dispunham de grandes clientelas, ou apenas pequenos fazendeiros, donos de algum prestgio na rea. Outros, entretanto, vinham de camadas baixas da populao, ou eram criminosos ou aventureiros homiziados no serto. (p. 76)Festas para o advento do milnio e o sentimento de apropriao do que est em suas terras, e no furto: ... desperdcio no significava, sumariamente, incria. Era, no caso, um aspecto da festa permanente e da expectativa do advento do milnio, ambas as coisas, incompatveis com rotinas de produo. O saque, por outro lado, era apenas a apropriao violenta de bens tidos como pertencentes irmandade, j que o gado [...] ocupava seu territrio. (p. 77)Repdio aos smbolos republicanos: As ordens recebidas pelos irmos combatentes estipulavam proibies muito severas quanto apropriao de dinheiro e quanto violncia exercida contra mulheres e crianas. (p. 78)A proibio acima referida a respeito do dinheiro adversrios no corresponde a um princpio de honestidade, mas atitude de repulsa diante do papel-moeda da Repblica. (p. 78)Ttica de guerrilha adotada pelos contestados: No decorrer da luta, o estilo de combate foi, bem caracteristicamente, o das guerrilhas, contra os quais as foras regularem muitas vezes mostraram-se impotentes tendo de recorrer aos vaqueanos. (p. 78)A participao dos pares de Frana no movimento do Contestado levanta o problema do significado que teria assumido a gesta carolngia na formao do universo ideolgico da comunidade rebelde. (p. 78-79)Os pares de Frana e o imaginrio milenarista: Deste modo, instituies como a dos pares de Frana, deixariam de ser expresso de um delrio, ou inversamente, no poderiam ser consideradas apenas em seu significado emblemtico, adquirindo a dignidade da afirmao de uma continuidade e de uma militncia inspirada na expectao milenarista. (p. 79)As relaes de compadrio no passado monrquico e a atenuao das relaes de desigualdade entre padrinhos e afilhados: Neste passado os tempos da monarquia a violncia e a opresso de superiores sobre inferiores no aparecia de modo cru e desnudo, como comearia a ocorrer na regio depois da penetrao de interesses econmicos modernos, e com o perecimento do patriarcalismo tradicional. Eram antes encobertas, mas tambm amenizadas, por um relacionamento onde a desigualdade econmica entre fazendeiros e agregados, coronis e clientes, colocada sob a capa do compadrio e do apadrinhamento, permitia aos subordinados alimentarem a iluso de que eram potencialmente iguais. (p. 79)... a recitao de trechos da lenda carolngia em Taquaruu, longe de ter tido um carater secular e banal, alcanaria as dimenses de um ritual de refundao da Ordem. (p. 79)As relaes do Compadrio... ela se superpe a relaes sociais assimtricas, onde a desigualdade tanto pode originar-se de diferenas etrias, como diferenas sociais e econmicas. (p. 80)No Contestado, antes da ecloso do movimento, o batismo domstico, sem a presena do padre, era uma prtica corrente. O batismo da Igreja vinha depois quando vinha na oportunidade oferecida pelas visitas pastorais. [...] Esta modalidade de batismo, costumeira no serto, diferia do batismo da Igreja, no apenas pela ausncia do padre, como tambm pelo fato de que, nesta ltima forma, o apadrinhamento era usualmente feito por pessoas com posies sociais superiores s dos pais da criana. (p. 80)O aparecimento dos monges fez surgir na regio um batismo preferencial, inclusive com relao ao domstico; o de Joo Maria e, depois, o de Jos Maria. Simultaneamente, o batismo eclesistico comeou a ser rejeitado, criando-se situaes nas quais se julgava prefervel aguardar durante anos a passagem do beato, uma vez de aceitar aquele que poderia ser oficiado pelo padre. Com isto, os monges vieram a tornar-se padrinhos e compadres efetivos ou principais em todo o serto. (p. 80)O poder simblico do batismo dos monges: O batismo do monge apresentava-se como uma forma livre das contaminaes decorrentes da presena de um elemento de superao das diferenas etrias entre geraes (uma das funes do batismo domstico, no caso do primognito, garantir a ascenso do casal jovem condio de adultos plenos). Era tambm, obviamente, livre da contaminao econmico-social inerente ao batismo da Igreja, que conduzia, via regra, a um compadrio interclasses. Vinha a ser, nesse sentido, um batismo mais espiritual, realizado por um homem que assumia a condio de ancio privilegiado. (p. 80-81)Situao sensitiva de liberdade na Irmandade do Contestado laos fraternais: Entretanto, monges, de um lado, afilhados, compadres e seguidores, de outro, estavam separados pelas barreiras que distinguem o sagrado do profano. Com o desaparecimento de Jos Maria e com a formao da irmandade, essas barreiras caram. Ingressando no movimento, e [...] tomando um novo nome, o sertanejo incorporava-se a uma comunidade fraterna onde no prevalecia mais a dominao econmica; onde a subordinao entre as geraes, se persistia, podia passar para segundo plano; onde a distino sagrado-profano tendia a desaparecer. (p. 81) [grifos nossos]

Frei Rogrio Neuhaus. Sua atuao nos acontecimentosOs principais pontos de atrito entre o frade e o monge giraram em torno da disputa a respeito das atribuies especficas de padres e de leigos. Rogrio pretendia proibir Joo Maria de batizar crianas, a no ser em situaes que envolvessem perigo de vida. A missa e a eucaristia no podiam ser menosprezadas e colocadas em plano secundrio, o mesmo acontecendo com a confisso. (p. 81-82)

Motivos de adeso ao movimentoAo que parece, a devoo a S. Joo Maria, na poca j bastante difundida entre os caboclos, bem como convices a respeito das afinidades entre a atuao de Jos Maria e a militncia religiosa de seu antecessor, facilitaram as adeses e engrossaram as fileiras do monge de Taquaruu. Relaes de compadrio, deveres de lealdade e o reconhecimento pelas curas que teria efetuado, tambm contriburam para isso. (p. 83)Dois tipos de adeptos s fileiras do Contestado de Jos Maria:I De um lado, aqueles que se colocavam, como clientes e capangas, ao lado do coronel Henriquinho de Almeida, inimigo figadal de Albuquerque, superintendente de Curitibanos e dono da situao poltica dessa mesma vila.II De outro, os grupos de deslocados, vtimas das expulses promovidas pela Brazil Railway e pela Lumber; criminosos refugiados no serto; ex-trabalhadores da construo da estrada de ferro que, trazidos das capitais de vrios Estados, recrutados que haviam sido grupos marginalizados, acabaram sendo abandonados prpria sorte pela empresa, ao terminar a construo da ferrovia. Em todos esses casos, tratava-se de gente que encontrava no ajuntamento uma alternativa de reconhecimento social, uma chance de obter proteo e uma possibilidade de eventuais revides. (p. 83) [grifos nossos]Caudilhos e grupos ligados s disputas territoriais aderem ao movimento do Contestado aps bito de Jos Maria: Posteriormente morte de Jos Maria, quando a segunda Taquaruu veio a formar-se, a esses elementos acrescentam-se bandos diretamente ligados s lutas pela questo de limites e que, chefiados por caudilhos, alguns com prestgio at mesmo entre as autoridades estaduais, aderiram ao movimento. (p. 83)Situao de aglutinao desse contingente a unidade do movimento: Essa variedade de motivaes manifestas tornaria difcil admitir a unidade do movimento, no fosse o fato de que, acima delas, recobrindo-as e anulando-as, acabaram por prevalecer os motivos de natureza religiosa. (p. 83)O sentido do monarquismo na guerra do ContestadoAlgumas coisas seguras a este respeito so conhecidas. A primeira delas, bastante compreensvel, que estava ausente ou, pelo menos, era rara, inclusive entre os chefes, uma apreenso poltica da monarquia. (p. 84)Na guerra do Conquistado, os motivos tradicionais de conflito na regio a honra, a poltica e a terra cederam lugar a valores de outra natureza. Defesa da honra pessoal passou-se para a luta por uma santa religio. O saudosismo do II Reinado herana das lutas federalistas substitudo pela busca de uma santa monarquia. (p. 84)A questo dos limites sem nenhum significado para a maioria dos combatentes passa para segundo plano. Anula-se a importncia dos conflitos locais entre os coronis. (p. 84)A terra da nova ordem: A terra que passaram a defender no era a terra em que plantavam, mas aquela onde estavam sepultados os seus mortos e de onde sairiam no grande dia no qual, pela juno do Cu e da Terra, uma ordem absolutamente nova seria inaugurada, cessando a histria, com seus desacertos e sofrimentos. (p. 84)O reencantamento do mundo sertanejo por meio da religio: ... os caboclos do planalto catarinense encontraram, pelo nico caminho que lhes era dado o da religio a soluo radical de um reencantamento, capaz de ressitu-los no mundo e de permitir que vivessem, por curto perodo, na esperana de uma ordem totalmente renovada. (p. 85)VI Consideraes Finais As deficincias de informao, decorrncia do fato de que os participantes desses movimentos pelo menos nas fileiras eram homens analfabetos, no suficiente para explicar a qualificao que recebem, vagamente, mas de modo regular, como expresses de fanatismo e de banditismo. As distores ideolgicas e o etnocentrismo parecem ser razes mais plausveis para isto. (p. 85)Dades relacionais nos casos analisados: De modo geral nos casos de Juazeiro e do Contestado e menos diretamente no caso de Canudos registra-se a presena de certas relaes sociais que assumem uma posio de relevncia. Padres e fiis, coronis e clientes, padrinhos e afilhados, beatos e seguidores, santos e devotos estes so pares hierarquizados de relaes que definem alguns laos de importncia, tomados separadamente, ou nas conexes que entre si mantm, justifica uma tentativa de anlise que, possivelmente, poder contribuir para a compreenso desses fenmenos. (p. 87)a) padre/fiel:... observa-se que esta conexo pressupe um lao que lhe exterior: a insero necessria do padre na hierarquia da Igreja. (p. 87)De um lado, a estrutura eclesistica, e tudo o que significa, do ponto de vista ideolgico e organizatrio; do outros, a comunidade dos leigos, com exigncias e expectativas, eventualmente, diferentes. (p. 87-88)Pela primeira vez, o padre prendeu-se a uma esfera externa ao serto, sujeitando-se s linhas de fora da poltica eclesistica e, por essa via, poltica nacional e internacional. Com isso, o destino da comunidade dos leigos vem a ser afetado por uma ordem que lhe estranha. Atravs da segunda, o padre v-se constrangido pelo jogo local de foras, cujo dinamismo pode seguir caminhos pouco ortodoxos. (p. 88)b) coronel/ cliente:Tambm nela, a conexo s se mantm pela fora de um lao externo: aquele que liga o coronel oligarquia. (p. 89)A autoridade do coronel na se fundamentaria apenas em seu poder de coagir, mas, tambm, no de criar consenso. Desse modo, sua figura definir-se-ia, ao mesmo tempo, pela garantia de um lao externo ao serto (com a oligarquia e, atravs dela, com a poltica nacional, e mesmo internacional) e por um lao interno ao serto, garantido pela estrutura patrimonialista de dominao. A ruptura de um desses dois laos seria suficiente para tornar invivel a persistncia da figura do coronel. (p. 89)c) padrinho/afilhado:A assimetria inerente relao no pode ser explicada apenas no mbito de uma tradio rstica, mas pressupe um sistema de dominao local cuja existncia s compreensvel no contexto mais amplo do sistema econmico e social nacional. (p. 89-90)d) beato/seguidor santo/devoto:O exame das relaes [...] ser feito tomando como objeto de anlise os casos de Juazeiro e do Contestado. No primeiro deles est exemplificada de modo muito rico a juno dos cinco possveis tipos de relaes que vm sendo analisadas; no segundo, parece ser possvel encontrar a mais completa expresso de uma dinmica de autonomizao do mundo rstico e de ruptura das snteses contraditrias acima referidas. (p. 90)A religio dos seguidores de Ccero era, sem dvida, tambm uma das variantes do catolicismo rstico, apenas com uma certa inclinao hertica e com uma forte potencialidade cismtica. A religio de Conselheiro, por sua vez, era estritamente ortodoxa, e a de seus adeptos, possivelmente, no se afastava dos padres da religiosidade rstica. Em ambos os casos, a ruptura Hierrquica partiu da prpria Hierarquia. Do primeiro, pode-se dizer que era um padre com seguidores, isto , fortemente inclinado para a condio tpica de beato; do segundo, que era um beato com fiis, isto , tendente para a condio de padre. Dadas estas circunstncias, razovel supor que, tanto em Juazeiro, como em Canudos [...] no ocorreu superao do lao padre-fiel. (p. 91) [grifos nossos]Bem diferente foi o curso do processo no Contestado, onde essa ruptura deu-se em nome de uma santa religio, feita de verdades escondidas pelos padres. Na pessoa de Frei Rogrio Neuhaus, o padre rejeitado; primeiramente de modo dbio, depois, frontalmente. (p. 91)I No Contestado, de modo completo, ocorreu a ruptura do lao coronel-cliente, acompanhada de uma afirmao autnoma de poder;II Em Juazeiro, a contestao do poder poltico veio a ser circunstancial e operou dentro das regras do jogo costumeiro;III Em Canudos, ao que parece, a contestao efetiva, e no a mera afirmao de anti-republicanismo, decorreu de uma imposio das circunstncias, produto das presses crescentes e, depois, da violentssima represso. (p. 91-92)

Para encerrar, resta dizer que a comparao entre os trs movimentos permite identificar elementos de homogeneidade lastro profundo e trao de unio entre diferentes regies do pas bem como singularidades que os distinguem, por fora da especificidade dos contextos sociais e histricos em que se desenvolveram. Permite ainda [...] abrir caminho para uma compreenso cientificamente mais correta e moralmente mais isenta dessas expresses dramticas do mundo rstico brasileiro. (p. 92)