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Dulce Maria: (ex)posição diante da dor do outro
Virginia Maria Yunes
Doutoranda no PPGAV- UDESC, na linha de pesquisa de Processos Artísticos Contemporâneos. Graduada em
Educação Artística - UDESC. Atua como fotógrafa free-lance e professora no seu estúdio fotográfico no Coletivo
Artístico Nacasa. Foi professora de fotografia no ensino universitário por 12 anos. Autora de muitas exposições
fotográficas nacionais e internacionais. Longa experiência como fotografa documentarista em muitos países e
para diversas organizações entre elas UNICEF e CARITAS em Guine Bissau em 1999 Autora do livro ―Cartas
entre Marias: uma viagem a Guiné Bissau‖ Membro do Grupo de Pesquisa CNPq Poéticas do Urbano
(CEART/UDESC).
Resumo: Este ensaio busca trazer uma reflexão sobre a exposição fotográfica ―Dulce Maria‖,
do processo criador que envolveu minha relação com as pessoas fotografadas e os diferentes
olhares contemplados e comentados no livro de registro da exposição que tratou da relação
amorosa mãe-filha numa situação limite onde a precariedade da condição humana é exposta
em toda sua fragilidade e grandeza.
Palavras-chave: fotografia, processo criador, processo de apropriação
Dulce Maria: (ex)posicion frente al dolor del otro
Resumen: Este ensayo busca aportar una reflexión sobre la exposición "Dulce María", el
proceso creativo que envolvió mi relación con las personas fotografadas y las diferentes
miradas contempladas e comentadas en el libro de registro de la exposición que trato de una
relacion amorosa madre-hija en una situación límite donde la precariedad de la condición
humana está expuesta en toda su fragilidad y grandeza.
Palabras-llave: fotografia, proceso creador, processo de apropriación
Meu encontro com Dulce Maria(s)
―Falar de fotografia e falar sobre fotografia
são formas diferentes de entender o mundo das imagens, sobretudo quando elas se propõem a mostrar a dor outros‖.
(Susan Sotang)
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Conheci Dulce Maria numa viagem que realizei em julho de 2010, quando fui para Santiago
de Cuba levando a exposição fotográfica ―Africanidades‖ para participar do ―Festival del
Caribe‖, um evento que acontece todos os anos sobre cultura Afro. Fiquei hospedada na casa
de Maria, mãe de um amigo.
Na convivência diária de um cenário familiar, comecei a observar o carinhoso e rotineiro
cuidado de Maria para com sua mãe Dulce Maria e perceber a precariedade da condição
humana retratada na velhice em dialogo com a dedicação amorosa da filha.
Este ensaio tem como objetivo trazer uma reflexão sobre a exposição diante da dor do outro,
do processo criador que envolveu minha relação com essa família e os diferentes olhares
comentados.
Ao observar Dulce Maria, já bastante adoecida e praticamente acamada, dependendo dos
constantes cuidados de sua filha, que sem medir esforços, transformava a cena cansativa e
sofredora numa rotina de amor incomensurável, delicadeza e compaixão, foi aumentando
minha admiração pela dedicação de Maria à sua mãe, e o desejo de registrar momentos que
possam nos sensibilizar frente a doença e a velhice. Na ocasião, registrei sem pretensões
futuras, sem saber que destino teria a esse material. A única certeza que tinha era de valorizar
as atitudes de Maria, essa filha amorosa que nos últimos quatros anos vinha se dedicando dia e
noite à sua mãe, repartindo sua atenção com seu marido, filhos e netos. Para isso, Maria
mudou-se para o dormitório junto a sua mãe para poder atendê-la na madrugada. Com muito
esforço, Maria a levantava da cama para a cadeira de rodas e vice-versa, pelo menos cinco
vezes ao dia, agravando o estado de sua hérnia abdominal.
Conversei com Maria e resolvemos realizar um vídeo e fotografias que possibilitasse a ela se
expressar e deixar registrado momentos de carinho e saudades dos últimos dias de convívio
com sua mãe, nessa conversa ela me revela:
Minha mãe faz quatro que está em cadeira de rodas, devido a sua doença e idade eu tenho me
dedicado a ela. Ela tem 83 anos, se chama Dulce Maria. Ela é uma mulher de origem pobre e
sempre foi bem lutadora, criou seus filhos sozinha sendo professora de educação infantil....
Para mim o dia começa muito cedo, de seis a seis e meia me levanto e vou preparando
condições para levantar minha mãe lá pelas sete. Dou-lhe banho, café da manha, limpo seu
quarto, uma vez que devo dar-lhe o banho dentro do quarto. Depois preparo o café para os
demais e logo lavo a roupa dela, do dia anterior e da noite. Lá pelas onze da manha a coloco na
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cama, vou para a cozinha e preparo o almoço dela e dos demais, então levanto ela, dou-lhe o
almoço e logo para o resto da família. Minha mãe enquanto isso escuta as novelas no radio, ela
gosta muito de radio, de musica, da noticia embora ela não fale, também perdeu a visão, tenho
que dizer tudo a ela, tudo o que está acontecendo. A coloco na cama lá pelas 14h para dormir a
cesta, enquanto eu continuo fazendo as tarefas da casa. Levanto-a às cinco da tarde para dar
sua merenda e vejo se precisa algo mais. Volto a deita-la às sete até a hora do jantar e eu
continuo trabalhando, sempre tenho algo para fazer. Sento-me para assistir o jornal e logo
preparar a janta. Levanto ela, dou-lhe de jantar e depois o resto da família, volto a deitá-la lá
pelas dez da noite e eu aproveito para costurar ou ler para assim distrair minha mente e relaxar
um pouco. Me deito bastante tarde depois da meia-noite, mas antes eu levanto minha mãe por
última vez para fazer pipi e trocar sua roupa e assim termina meu dia até que amanhece
novamentei.
Nos meses que antecederam minha viagem, acompanhei a dor de duas amigas diante da morte
de suas mães, me deixando bastante sensibilizada com o tema da ausência materna e da
fugacidade da vida, o que fez voltar meu olhar de maneira especial para a experiência de
conviver com Maria e Dulce Maria.
Lembrando Rouillé (2009), para quem a fotografia-expressão requer o uso de práticas e
métodos específicos, que promovam um dialogo e não seja invasivo, mas cuidadoso em não
expor de forma inconveniente, ou como as pessoas não gostariam de serem vistas, inspirei e
sustentei meu trabalho.
Assim, as imagens foram produzidas na espontaneidade do encontro e do acolhimento
recebido. Para mim, a fotografia é um encontro. Um encontro entre o fotógrafo e o momento.
A fotografia nasce da capacidade de nos maravilhar, de encontrarmos sentido, de deixarmo-
nos tocar por aquilo que vemos. Fotografia é a linguagem do inesperado. O encontro pode ser
previsto ou inesperado, a fotografia é resultado também de uma busca, de uma intenção que
possibilita ver coisas que poderiam passar despercebidas. Acontece porque sintonizamos com
algo, nos identificamos naquele momento de nossas vidas ou até mesmo para sempre.
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Figura 01: Foto da autora
No primeiro momento, filmei o depoimento de Maria, a filha, como um exercício de escuta.
Sentada à mesa de jantar, em primeiro plano, a mãe ao fundo, vemos Maria nos poucos
minutos que sentou-se para descansar e fazer um lanche. Ela se apresenta, fala de sua mãe e
um pouco da história de vida. A seguir, me descreve minuciosamente seu itinerário diário para
dar conta de cuidar de sua mãe, da casa, de seu marido e dos filhos que a visitam com
frequência. Na fala e em seu olhar enigmático parece pairar uma certa perplexidade pelo
mistério da vida, que sobre seus cuidados se esvai.
Após essa primeira conversa, decidi acompanhar e documentar Maria durante três jornadas
inteiras, das seis da manhã até a hora que ela deitava, às vezes passando da meia-noite.
Procurei registrar momentos de forte interação entre as duas, de carinho e atenção, a
delicadeza com que Maria segura sua mãe enquanto dá o banho, o cuidado em secar seus pés e
cada cantinho do corpo passando creme das feridas; as expressões fisionômicas, os olhares e
os sorrisos, os momentos de solidão e solidariedade de ambas, de afazeres domésticos e
descanso e a rotina do banho, da troca de roupa e da refeição. A medida que as imagens eram
realizadas eram partilhadas através do visor da máquina digital que permite um acesso rápido
do material capturado facilitando a troca de olhares. A postura do fotografo com relação ao
assunto deve ser sempre de respeito, o fotógrafo Cartier Bresson dizia que ―qualquer que seja nossa
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reportagem, estaremos chegando como intrusos. É essencial, portanto, que nos aproximemos do
assunto nas pontas dos pés - ainda que se trate de uma natureza morta”.
Figura 02: Fotos da autora
Totalmente dependente, Dulce Maria - a mãe idosa sem visão, praticamente sem fala em
estágio avançado da doença, é um esquálido corpo idoso, flácido que jaz inerte sobre o leito,
com um radio de pilha ao lado. Comunica-se com a filha, ao liga-lo. Essa fragilidade contrasta
com a vitalidade e o vigor da filha, que lava, cozinha, limpa, cuida, costura sem transparecer
em momento algum o menor sinal de exasperação, rancor ou impaciência. Trata-se
literalmente de uma relação amorosa pautada no respeito e na dignidade com que o ser
humano merece ser tratado em qualquer circunstância da vida.
Figura 03: Fotos da autora
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Me preocupei também em registrar o espaço físico em que a cena se desenrolava, a sala de
estar, o quarto, a cama vazia, a mesa de jantar e o quintal. Procurei fotografar detalhes dos
objetos e utensílios que referenciavam sua presença e memoria: rádio, porta-retrato, estátua de
santinhas sob o criado-mudo, vasilha com os produtos de higiene, jarro, varal, álbum de
família e a máquina de costurar onde Maria se distraia no fim do dia, entre outros.
Figura 04: Fotos da autora
Tempo depois, de volta ao Brasil, recebi o convite para fazer uma exposição durante o ―II
Festival Floripa na Foto‖, em Florianópolis, e ainda sensibilizada pelo que havia vivenciado
em Cuba, na casa de Dulce Maria e Maria, decidi junto com a curadoria que este seria o
momento e o espaço apropriado para expor as imagens realizadas nessa viagem.
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Primeiramente, entrei em contato com Maria e meu amigo cubano, para compartilhar a
decisão e conhecer suas opiniões. Enviei as fotografias pré-selecionadas por e-mail para que
eles me ajudassem na edição final, apontando caso alguma imagem não fosse do agrado deles,
dando assim continuidade ao dialogo estabelecido no começo. A princípio, eles ficaram um
pouco apreensivos, mas logo entenderam o sentido e a importância da exposição, autorizando
o uso das imagens. Muitas vezes, é através do olhar e da expressão do artista que vemos o que
nem sempre vemos, permitindo novos olhares sobre a realidade. Para Roland Barthes (1984) a
fotografia é portadora de uma mensagem visual que pode muito bem ser vivenciada, lida e
compartilhada como forma de ajudar o homem a falar do homem.
A exposição foi composta de um vídeo de oito minutos, exibido numa tela de TV de 32
‗polegadas com ―replay‖ e um ensaio visual de trinta e seis imagens impressas em papel
FineArt, ampliadas em diferentes tamanhosii.
A edição do material foi pensando na construção de uma narrativa visual, num único cenário e
duas personagens, foi uma experiência nova. Entende-se por narrativa, um novo modo de
mostrar o tema, contar uma história e construir um discurso. Selecionar, ordenar, estabelecer
relações e sugerir a disposição em determinado suporte na montagem da exposição, fazem
parte do processo de edição.
Em torno de cada imagem escondem-se outras, forma-se um campo de analogias,
simetrias, e contraposições. Na organização desse material, que não é apenas visual,
mas igualmente conceptual, chega o momento em que intervém minha intenção de
ordenar e dar um sentido ao desenrolar da história — ou, antes, o que faço é procurar
os significados que podem ser compatíveis ou não com o desígnio geral que gostaria
de dar à história, sempre deixando certa margem de alternativas possíveis.
(CALVINO, 1990).
O editor, segundo Sene (2005), é responsável pela ―imantação‖, ou seja, pelo magnetismo que
se interpõe entre imagens. Essa ideia de que as imagens funcionam como ímãs é interessante
porque, quando se alternam as posições dos imãs, pode-se estabelecer entre eles forças de
atração ou repulsão. Deste modo as fotografias, olhadas separadamente, poderão ter sua leitura
modificada pela leitura do conjunto como um todo.
As associações que uma fotografia provoca suscitam uma espécie de deslocamento,
tanto nos temas como nas formas, pois induz o receptor a ―experimentar‖ objetos
distantes e também ―ver‖ o invisível quando imagina o complemento de trechos,
objetos, pessoas ou cenas recortadas (SENE, 2005).
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Figura 05: Foto da autora
A obra completa-se com o olhar do outro, no momento que é compartilhada e, é nessa
perspectiva, que me interessa conhecer as impressões e olhares provocados pelas imagens nas
pessoas que visitaram a exposição ―Dulce Maria‖, que trata de um assunto delicado e
particular.
Olhares provocados: comentados
Como o espectador reage diante da dor do Outro distante e alheio? O que sentimos diante de
certas cenas da velhice, da doença e da morte, que quebram nossos paradigmas
contemporâneos de um corpo jovem e saudável? Porque, para que e para quem realizamos
estas imagens? Qual o sentido de mostrar tais fotos? Para despertar a solidariedade ou afrontar
com sentimentos mais íntimos?
A exposição ―Dulce Maria‖ permaneceu por um período de vinte dia na Galeria de Arte
Martinho de Haro‖, na Câmara Municipal de Florianópolis. Foi visitada por pessoas de
distintas classes sociais, idades e gênero. As impressões deixadas no livro de assinatura e
recebidas pessoalmente foram as que incentivaram a escritura deste texto,
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O "público" não compartilha do mesmo código simbólico para interpretação da imagem
fotográfica. O impacto da visualização é cheio de nuances, o registro escrito demostrou isso,
daí sua importância em pesquisas dessa natureza. As impressões foram variadas e por vezes
antagônicas, muitos se sentiram tocados positivamente, outros identificados e houve quem
rejeitou. Como colocou John Berger: " Nunca olhamos apenas uma coisa, estamos sempre
olhando para a relação das coisas e nós mesmos." (apud, Leite, 1983).
Em alguns comentários percebia-se uma certa rejeição e distanciamento: “Achei de uma
agressividade muito forte para com as pessoas. A exposição de um ser humano degradante.”
Seguindo este mesma critica: “Entendo seu ponto de vista, porém achei deprimente. Se a
intensão da artista é fazer a pessoa sentir-se mal, ela conseguiu”. Para Sontag ,
apresentar fotos de dor é uma maneira de tornar real – ou mais real – questões que a maiorias
das pessoas possivelmente prefeririam ignorar.
Susan Sontag no seu livro ―Diante da Dor dos Outros‖ reflete sobre a variedade de
interpretações e de reações perante a fotografia que evidencia a dor alheia, a morte, o trágico,
sobretudo a guerra. O questionamento principal da autora é como reagimos diante da dor dos
outros?‖. Se as imagens do sofrimento de um desconhecido distante ainda nos chocam ou se
tornam tão habituais que a tratamos como forma de entretenimento, de espetáculo.
Nem todas as reações diante de fotos que expõe o sofrimento do outro estão sob a supervisão
da razão e da consciência. Muitas vezes, o sentimento é de satisfação ao pensar ―isso não esta
acontecendo comigo, não estou doente, não estou morrendo, não estou metido em uma
guerra‖. Muitas vezes suscita um sentimento de impotência diante do que se vê, sentimento de
que nada se pode fazer e aparentando um certo descaso.
De fato, para muitas pessoas na maioria das culturas modernas, a brutalidade física é antes um
entretenimento do que um choque, reflexo da cultura do espetáculo. Embora nem toda
violência seja vista com igual distanciamento, algumas desgraças são mais passiveis de ironia
do que outras. A compaixão é um sentimento instável. Somos bombardeados de imagens
atrozes e pensamos que isso nos torna mais insensíveis e passivos, entretanto, os estados
definidos como apatia, anestesia moral ou emocional, são repletos de sentimentos de raiva e
frustração. A frustração de não ser capaz de fazer nada a respeito daquilo que as imagens
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mostram pode se traduzir numa acusação contra a indecência de olhar tais imagens. As
imagens são criticadas por representarem um modo de ver o sofrimento à distancia.
Quanto do que vemos se torna familiar? Constatamos uma relação entre as imagens, algo em
comum, algo ali, no interior da foto, que nos transportam para fora dali, para uma certa
situação, em algum lugar, em outro tempo, a um sorriso ou a uma imensa dor. A câmara
fotográfica e o relógio são instrumentos íntimos, ambos testemunham o tempo.
Se sentimos horror nas imagens da insanidade, das guerras, da fome, da doença,
sentimos, também uma desagradável sensação de impotência ao observarmos as
fotografias dos que já se foram, tomamos consciência de que temos diante dos olhos
testemunhos do tempo, constatamos mais uma vez, que independente da situação
econômica ou classe social, todos temos nossos tempos individuais, intrasferíveis
(KOSSOY, 2007, p.147)
O olhar contracena com nosso repertório, nossas experiências passadas, nosso valores e
crenças, nossos medos, desejos e modos de estar no mundo. Algumas pessoas compartilharam
suas histórias de vida registrando a forte identificação que sentiram “Eu sei o que é ter alguém
fragilizado para cuidar, é difícil mas com amor tudo é possível”, outras duas pessoas
relataram experiências semelhantes “Não consegui conter as lagrimas, minha avó e minha
mãe passaram 13 anos em semelhante situação” e “Minha irmã fez a mesma coisa com minha
mãe por 10 anos. Esse afeto, esse vazio, esse azul de noturno maio”. Essa relação singular do
contemplador com a fotografía é explicada por Kossoy nas seguintes palavras:
reagem de formas totalmente diversas – emocionalmente ou indiferentemente – na
medida em que tenham ou não alguma espécie de vínculo com o assunto registrado, na
medida em que reconheçam ou não aquilo que vêem (em função dos repertórios
culturais individuais) na medida em que encarem com ou sem preconceitos o que
veem (em função das posturas ideológicas de cada um. (KOSSOY, 2001, p.106).
Ao contrário da rejeição sentida por alguns, a exposição foi admirada por muitos, seja pelo
tema apresentado, a relação - mãe-filha, cuidadora-paciente, jovem-velhice ou seja pelo
trabalho da fotografa. Expressões como “Ousadia, coragem, sensibilidade, alteridade,
humanidade assim como vejo ser humano” ou “O importante não está no que é belo ou feio,
a essência do amor da filha e mãe é o que importa, a aparência pode ser tocante para alguns
mas o que está além dos nosso olhar, do nosso comodismo, do julgamento que geramos de
tudo o que nos agrada ou não é o que deve ser visto aqui a dedicação de um ser humano para
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com o outro” ainda “Chocante tuas fotos, revelam a natureza humana, um tapa na cara da
hipocrisia”, revelam como a maneira de olhar estabelece relação com o objeto. As imagens
fotográficas, por sua natureza polissêmica permitem sempre uma leitura, dependendo de quem
as apreciam. Estes já trazem embutido no espírito, suas próprias imagens mentais pré-
concebidas a cerca de determinados assuntos - os referentes, que funcionam como filtros
ideológicos, culturais, morais e éticos.
Filtros esses, que podem ser considerados de studium, elemento e modo de processar a
imagem que se opõe ao punctum segundo Roland Barthes 1984 . O ―studium” significa
vastidão, espécie de gosto por algo, um interesse geral, uma afeto médio que se percebe com
bastante familiaridade em função do saber, da cultura, seja ele mais ou menos estilizado, mais
ou menos bem sucedido, através do reconhecimento deste se encontram as possíveis intenções
do fotografo. O ―punctum‖, significa picada, pequeno buraco é esse acaso que na imagem
punge - mas também fere, é um detalhe que chama a atenção, não levando em consideração a
moral ou o bom gosto. Há pessoas que sabem articular estes dois elementos enquanto outras se
deixam levar por um ou outro. Interessante saber quais dos elementos predominou nas pessoas
que deixaram seus comentários. Seria possível relacionar o studium a razão e o puctum a
emoção?
Quanto a exposição, ao olhar e intenção do fotografo, percebe-se através da fala de
muitos a relevância e o papel social da arte capaz de transformar olhares, sensibilizar, instigar,
desacomodar, incomodar e provocar reflexões. Interessante e motivador saber que a exposição
provocou “Surpresa, admiração, choque , sinto em suas fotos e sua forma ilustre e profunda
de ver o invisível por trás de cada click”, ―Gosto do olhar que tem das coisas, acho que olhas
com o coração! Ou será que sentes com o olhar?”, “Bela exposição, principalmente para nos
fazer refletir sobre como somos tão pequenos perante o próximo”, “Suas fotos despertam
nossos sentimentos amorosos e nossas reflexões sobre o milagre da vida e a dignidade da
velhice”, “Suas fotos e arte se misturam e perpassam sentimentos nobres diante da realidade
da vida em seu findar”. O papel social desta obra teve sua potencia já no momento que foram
produzidas as imagens, momento este que permitiu a Maria uma certa visibilidade e se sentir
em fim, protagonista de sua história.
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“Terceira vez que venho e também terceira vez que me emociono com estas fotos reais”. Uma
imagem tem sua força drenada pela maneira como é usada, pelos lugares onde é vista e pela
frequência com que é vista. Sotang (2003) nos provoca a refletir qual seria o significado
dessas imagens quando ―consumidas‖ a partir de um museu ou de uma exposição, por
exemplo, distante geográfica e temporalmente dos fatos ali eternizados. Teriam elas ainda a
capacidade de nos fazer refletir, questionar os eventos retratados?
O processo de criação poética, mesmo retirando do cotidiano observado o seu material base,
está diretamente ligado transgressão. ―As transgressões expressam as vontades de soltar o
olhar que nos prende. Elas acontecerão enquanto „olhar que prende andar solto e o olhar que
solta andar preso‟ Dorival Caymmi ‖ e a arte pressupõe transgressão.
A arte nos faz entender certos aspectos que a Ciência não pode fazer p. , isto é, ―a
educação dos sentidos e da percepção ampliam nosso conhecimento de mundo, o que
vem reforçar a ideia de que a arte é uma forma de conhecimento que nos capacita a um
entendimento mais complexo e de certa forma mais profundo das coisas. ... A
explicação artística é extremamente particular, não passível de grandes generalizações,
mas mesmo assim transmite invariavelmente mensagens de natureza bastante ampla
(Zamboni, 2001, p.21).
Considerações Finais
De acordo com Andrade (2002), pesquisas etnográficas tem mostrado como a compreensão da
realidade é também composta por sensações e sentimentos (p. 29). Algumas imagens nos
levam a rememorar, outras a moldar nosso comportamento, ou a formar conceitos ou reafirmar
pré-conceitos que temos sobre determinado assunto. As imagens dialogam com a realidade e
com a representação dessa realidade, também são observações estéticas e documentais da
realidade. Os sentimentos gerados frente as imagens mostradas nesta exposição seja de
rejeição, identificação ou admiração, estão vinculados ao repertório cultural pessoal, portanto é
uma experiência singular.
Parece simples, mas nossa sociedade costuma varrer para baixo do tapete temas incômodos
como esse. Degenerescência, doença, velhice e morte são coisas que podem acontecer com
todos, mas são incompatíveis com um sistema que propõe o consumismo de um mundo
artificial, fútil e sem piedade.
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Tudo é assunto para fotografia, especialmente as coisas difíceis de nossas
vidas. Ansiedade, traumas de infância, mágoas, pesadelos desejos sexuais. As
coisas que não podem ser vistas são as mais significativas. Elas não podem ser
fotografadas, apenas sugeridas (Duane Michals).
A exposição ―Dulce Maria‖ foi sem dúvida uma experiência impar para todos os envolvidos no
processo. Primeiro, para mim, sem dúvida, mas também para a família que em Santiago de Cuba
me acolheu, os contempladores e minha relação com ambos. Embora as falas apresentadas
registraram a impressão de um momento, uma fruição num determinado tempo e espaço,
possibilitou a compreensão dos sentimentos gerados diante das imagens que trazem a dor do
Outro e ampliou a reflexão sobre ―o que‖ e ―como‖ documentar e mostrar determinados assuntos
no meio artístico.
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________, Os tempos da fotografia. Ateliê Editorial. São Paulo. 2007. 174p.
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SENE, Joel La Laina. Fotografia: Ensino é Pesquisa. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos
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SONTANG, Susan. Sobre fotografia. Companhia das letras, São Paulo, 2004. 223p
________ , Diante da dor dos outros. Companhia das Letras. Tradução Rubens Figueiredo. São
Paulo, 2003. 107 p.
ZAMBONI, Silvio. A pesquisa em arte – um paralelo entre arte e ciência. São Paulo: Autores
Associados, 2001.
i Conversa gravada, transcrita e traduzida por mim.
ii As fotografias foram ampliadas no seguintes tamanhos: 60x80 cm, 40x60cm e 20X30cm