ebook 1 - teorias da justica

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Org. Prof. Dr. Alvaro Luis de A. S. Ciarlini Temas de Jurisdição Constitucional e Cidadania (Teorias da Justiça)

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Org. Prof. Dr. Alvaro Luis de A. S. Ciarlini

Temas de Jurisdição Constitucional e Cidadania

(Teorias da Justiça)

Organização

Alvaro Luis de A. S. Ciarlini

TEMAS DE JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

E CIDADANIA (TEORIAS DA JUSTIÇA)

2º Vol.

Autores:

Gabrielle Tatith Pereira

Eitel Santiago de Brito Pereira

Adriana da Fontoura Alves

José Wilson Ferreira Lima

Ana Carolina Figueiró Longo

Vick Mature Aglantzakis

Flávia Martins Affonso

Roberto Carlos Martins Pontes

IDP

Brasília

2013

CIARLINI, Alvaro Luis de A. S.. Título / Organizadores Alvaro Luis de A. S Ciarlini, – Brasília : IDP, 2013. 143 p. ISBN 1. Teoria das Justiças 2. Direitos Fundamentais. I

CDD 341.2

Apresentação

A presente obra representa o esforço de pesquisa dos alunos do

Programa de Mestrado Acadêmico em “Constituição e Sociedade” do Instituto

Brasiliense de Direito Público, na disciplina “Teorias da Justiça”, ministrada no

segundo semestre do ano de 2012.

Os artigos acadêmicos abordam topoi de grande relevo para o atual

estágio de compreensão do Direito Constitucional no Brasil, notadamente em

virtude da elevada complexidade e densidade das questões que lhe são afetas,

a revelar a insuficiência do uso das ferramentas teóricas usuais,

fundamentadas na dogmática constitucional, para a análise desses temas.

No mesmo momento em que a crescente complexidade gerada pela

dinâmica social produz a diversificação e o aumento da produção de novos

fatos e diferentes relações e situações jurídicas examinadas diariamente pelos

tribunais, a implicar na igualmente variada e crescente demanda em torno da

descoberta e da afirmação de inovadoras posições jurídico-políticas dos

cidadãos e dos correlatos direitos fundamentais passíveis de reconhecimento e

proteção, instaura-se uma crise em relação aos meios de fundamentação e

justificação das correlatas decisões judiciais aptas a subsidiar essas novas

descobertas.

As teorias da justiça estudadas cumprem a função de trazer a exame

uma série de diversificados e abundantes esquemas conceituais e estruturas

cognitivas a respeito dos tópicos centrais persistentes no trato dos direitos

fundamentais, auxiliando na elaboração de novas linhas discursivas de

fundamentação, inclusive ao propor distintos critérios valorativos e ao convidar

à reflexão a respeito de temas concernentes à ética e à moralidade política.

Atentos a esse desiderato, nossos articulistas trataram dos temas

centrais em curso nas Teorias da Justiça, notadamente ao versar a respeito da

igualdade, liberdade e também da conceituação do justo, abordando ainda os

três eixos axiológicos das sociedades democráticas, quais sejam, a equidade,

o bem-estar e o reconhecimento.

A leitura deste compêndio, portanto, é indispensável aos interessados na

iniciação e no aprofundamento dos assuntos concernentes às Teorias da

Justiça.

Prof. Dr. Alvaro Luis de A. S. Ciarlini

SUMÁRIO

CAPÍTULO 1: PLURALISMO, IGUALDADE E JUSTIÇA SOCIAL NA

EDUCAÇÃO: UMA ANÁLISE DA APLICAÇÃO DAS POLÍTICAS DE

REDISTRIBUIÇÃO E DE RECONHECIMENTO AOS BENS EDUCACIONAIS . 7

Gabrielle Tatith Pereira ......................................................................... 7

CAPÍTULO 2: Justiça e Reconhecimento. ....................................................... 28

Eitel Santiago de Brito Pereira ........................................................... 28

CAPÍTULO 3: O modelo de justiça distributiva de Dworkin e a saúde pública na

República Federativa do Brasil ......................................................................... 40

Adriana da Fontoura Alves ................................................................. 40

CAPÍTULO 4: O PENSAMENTO DE RAWLS APLICADO À REALIDADE

CONSTITUICIONAL BRASILEIRA: A QUESTÃO DO PLURALISMO .............. 56

José Wilson Ferreira Lima .................................................................. 56

CAPÍTULO 5: ORDEM DE CADASTRO DE ADOÇÃO CEDE DIANTE DO

MENOR INTERESSE DA CRIANÇA ................................................................ 73

Ana Carolina Figueiró Longo .............................................................. 73

CAPÍTULO 6: Ações Afirmativas: A integração social através da conexão entre

o direito e a moral ............................................................................................. 90

Vick Mature Aglantzakis ..................................................................... 90

CAPÍTULO 7: Breves esboços na busca de um conceito de justiça, nas

perspectivas de John Rawls e Ronald Dworkin.............................................. 106

Flávia Martins Affonso ...................................................................... 106

CAPÍTULO 8: REFLEXÕES ACERCA DA CONCEPÇÃO DE DEMOCRACIA DE

DWORKIN E O MODELO DE SUPREMACIA JUDICIAL ............................... 127

Roberto Carlos Martins Pontes ........................................................ 127

CAPÍTULO 1: PLURALISMO, IGUALDADE E JUSTIÇA SOCIAL

NA EDUCAÇÃO: UMA ANÁLISE DA APLICAÇÃO DAS

POLÍTICAS DE REDISTRIBUIÇÃO E DE RECONHECIMENTO

AOS BENS EDUCACIONAIS

Gabrielle Tatith Pereira1

Introdução

O momento político-constitucional vivenciado pelo Estado Democrático

brasileiro com as discussões acerca das cotas raciais, étnicas e sociais para

ingresso nas universidades públicas cria um ambiente acadêmico propício para

se discutir a justiça social na educação.

Em sociedades altamente complexas e pluralistas, a problemática da

igualdade deve abranger políticas de reconhecimento tanto quanto políticas

distributivas. A igualdade deve ser compreendida de forma complexa, como

uma igualdade na diferença.

Nesse contexto, pretende-se analisar a legitimidade das políticas de

redistribuição e de reconhecimento aplicadas a bens educacionais, no ensino

obrigatório e no ensino especializado, a partir das contribuições de Michael

Walzer, Nancy Fraser, Ronald Dworkin e John Rawls em suas teorias de justiça

distributiva.

2 Pluralismo, igualdade simples e igualdade complexa

Em sociedades complexas e pluralistas, o ideal de igualdade política

merece uma reflexão crítica. Uma sociedade que iguala seus cidadãos constrói

uma falsa aparência e produz um resultado de conformismo e monotonia.

As pessoas não são apenas fisicamente diferentes, mas também

possuem origens, interesses, capacidades, necessidades e valores diferentes.

Nenhum tratamento político igualitário será capaz de apagar ou diminuir a

1 Graduada em Ciências Sociais e Jurídicas pela Universidade Federal de Santa Maria/RS e

mestranda em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP.

pluralidade; a imposição da igualdade, nesses termos, instituirá mecanismos de

dominação e de violência.

Contrariamente, o papel das sociedades democráticas é permitir que as

pessoas desenvolvam-se na diversidade sem violência. A igualdade não

consiste no nivelamento do ser humano, mas na necessidade que ele tem de

ser reconhecido como merecedor de igual consideração e respeito pelos seus

semelhantes. A igualdade é uma igualdade de reconhecimento, apesar das

diferenças.

É nesse sentido que Michael Walzer afirma que a raiz do significado da

igualdade é negativa, porque a igualdade é, em sua origem, uma política

abolicionista. Ou seja, não pretende eliminar todas as diferenças entre os seres

humanos, mas apenas um determinado conjunto de diferenças, variáveis em

cada contexto e lugar, como os privilégios, a riqueza, o poder burocrático, a

supremacia racial ou sexual, etc.. A igualdade destina-se a evitar a dominação

de um grupo por outro, a afastar a superioridade.2

Uma sociedade igualitária não pode pretender que todos sejam iguais e

possuam as mesmas coisas, porque esse é um objetivo inalcançável. Em

termos políticos e morais, todos são iguais quando estão livres dos

mecanismos de dominação e podem, livremente, viver segundo os seus

interesses e capacidades.

Nesses termos, tem-se uma forma de igualdade complexa, que

reconhece e respeita as diferenças entre os seres humanos e cuja pretensão

de igualdade tem como cerne o reconhecimento de igual consideração e

respeito.

Disso não resulta que a justiça social possa ser produto exclusivamente

do reconhecimento, prescindindo-se da redistribuição.3 As sociedades

2 WALZER, Michael. Esferas da justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade. Trad.

Jussara Simões. São Paulo : Martins Fontes, 2003. p. XV. 3 Nancy Fraser refere-se criticamente ao fenômeno da globalização como o grande

responsável por transferir o centro de gravidade da justiça social da redistribuição para o reconhecimento. Segundo ela, a viragem para o reconhecimento representa um alargamento da contestação política e um novo entendimento da justiça social, incluindo a diferença sexual, a raça, a etnicidade, a sexualidade, a religião e a nacionalidade. Assim, a justiça social não se restringe apenas a questões de distribuição, mas também de representação, de identidade e

igualitárias devem distribuir os seus bens de modo que eles não sirvam como

instrumentos de dominação.

Todo o bem social, inclusive (e especialmente) a educação, deve ser

distribuído de modo a promover a justiça social, num sistema que congregue o

reconhecimento, ou seja, a afirmação de identidades, e a redistribuição, ou

seja, a eliminação de privilégios.

3 Educação e justiça social: reconhecimento e redistribuição de bens

educacionais

As mais diversas lutas por reconhecimento fortalecem-se (ainda que

paradoxalmente) num contexto de significativa desigualdade social e devem

ser empregadas como instrumento de reforço das políticas distributivas.

Reconhecimento e redistribuição são as duas faces da igualdade, formando o

que Nancy Fraser denominou de concepção bidimensional de justiça.4

Significa que a justiça é tanto uma questão de distribuição justa, quanto

uma questão de reconhecimento recíproco. Nenhuma das políticas, por si só,

basta. Por meio da distribuição, pretende-se eliminar as desigualdades sociais

e todas as formas de privilégio e exploração. Por meio do reconhecimento,

pretende-se eliminar a hierarquia institucionalizada de valor cultural, toda a

forma de falso reconhecimento em sentido lato, abrangendo a dominação

cultural, o não reconhecimento e o desrespeito.

O grande desafio da justiça social está em fazer com que as suas duas

esferas promovam-se conjuntamente.

Nas sociedades atuais, é cada vez maior a consciência das múltiplas

identidades étnicas, sexuais, filosóficas, religiosas, entre outros. Entretanto, o

reconhecimento e o respeito à diversidade nem sempre contribuem para a

redistribuição de bens.

de diferença. A autora observa, contudo, não ser evidente que as atuais lutas pelo reconhecimento estejam a contribuir com a redistribuição, já que aparentemente se está a trocar um paradigma por outro: um economicismo truncado por um culturalismo igualmente truncado. In: A justiça na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, Outubro 2002, p. 09. 4 FRASER, Nancy. A justiça na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, Outubro 2002, p. 11.

Nesse sentido, Nancy Fraser afirma que a concretização da justiça

bidimensional demanda um princípio normativo que inclua as reivindicações de

reconhecimento e de distribuição, sem reduzi-las uma às outras. Esse princípio

é o da paridade de participação, segundo o qual a justiça requer arranjos

sociais que assegurem aos membros da sociedade agir como pares, mediante

as seguintes condições: distribuição de recursos de modo a garantir um mínimo

de independência e “voz” aos participantes; institucionalização de padrões

culturais que exprimam igual respeito e iguais oportunidades para a obtenção

de consideração social.5

A primeira condição demanda um mínimo de recursos materiais, um

mínimo de igualdade que permite o exercício da liberdade e da participação. A

segunda condição exige um mínimo de igual consideração e respeito entre os

indivíduos e grupos sociais.

Partindo desses pressupostos, tem-se como inegável o papel

fundamental da educação no desenvolvimento da concepção bidimensional de

justiça social. Não apenas a educação é um bem que deve ser distribuído de

modo a reduzir a superioridade e a dominação sociais, como também é o

espaço destinado a formar cidadãos conscientes da diversidade e da

necessidade de se reconhecerem como iguais.

A educação é o primeiro – e talvez o mais importante – espaço para o

fomento da justiça social, por meio da conjunção de políticas de redistribuição e

reconhecimento.

4 Educação, distribuição e igualdade

As sociedades humanas educam as suas crianças, os seus novos e

futuros membros, como um programa de sobrevivência social. A educação

expressa o mais profundo desejo das sociedades de progredirem, de

continuarem, de perseverarem no tempo. Nesse sentido, a educação relaciona-

5 Ibidem, p. 13.

se com cada sociedade em particular e destina-se a formar o caráter dos seus

cidadãos.6

Mas a escola não deve ser um espaço de reprodução da sociedade tal

como ela é, com suas ideologias e hierarquias, porque isso implicaria afastar

qualquer possibilidade de justiça na distribuição de bens educacionais.

As escolas, os professores e as ideias revelam-se intermediários entre a

família e a sociedade e preenchem um espaço entre a infância e a maturidade.

Oferecem um contexto importante, embora não único, para o desenvolvimento

do entendimento crítico e para a produção de críticos sociais. Nas sociedades

complexas e pluralistas, as escolas possuem autonomia relativa, a qual lhes

possibilita uma distribuição também independente dos bens educacionais.7

As escolas preparam para o presente e para o futuro, para o exercício da

cidadania. Devem ser um espaço relativamente livre das pressões

socioeconômicas e devem educar as crianças independentemente da sua

origem social, econômica, étnica, racial, entre outros.

O propósito do ensino básico é formar os alunos de modo a lhes

assegurar (tanto quanto possível) o mesmo rendimento. A igualdade simples

que se pretende na fase inicial da formação dos indivíduos implica

desconsiderar as diferenças de interesse e de capacidade dos alunos,

garantindo-lhes democraticamente uma vaga no sistema educacional (uma

criança/uma vaga), porque todos os cidadãos precisam de educação.8

É inegável que, na prática, os alunos distinguem-se segundo o seu

interesse e a sua capacidade e a resposta que a escola oferece a essas

diferenças dependerá do seu currículo e de suas finalidades institucionais.

Deve-se ressaltar que a finalidade da escola não é reprimir diferenças, mas

apenas retardá-las, para que as crianças aprendam primeiro a ser cidadãs.

Significa que, nessa fase inicial, há uma presunção de que os alunos tenham o

mesmo interesse e a mesma capacidade.

6 WALZER, Michael. Esferas da justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade. Trad.

Jussara Simões. São Paulo : Martins Fontes, 2003. p. 269. 7 Ibidem, p. 270-271.

8 Ibidem, p. 277.

Contudo, cumprida a fase inicial e obrigatória de formação das crianças,

esse sistema de igualdade simples torna-se inadequado, pois, alcançada a

finalidade comum da educação democrática, o ensino deve ser adaptado aos

interesses e às capacidades de cada um.9

Significa, primeiramente, que os cidadãos devem dispor de liberdade para

escolher continuar ou não o seu aperfeiçoamento intelectual. O livre-arbítrio é

fundamental, uma vez que há inúmeras atividades importantes na sociedade

que podem ser desempenhadas apenas com a formação educacional

obrigatória.

Havendo interesse, a sociedade deve decidir em que termos financiará os

estudos para que os alunos desenvolvam-se segundo as suas capacidades.

Essa decisão é de natureza política e já é praticada em muitos países, inclusive

no Brasil, por meio das universidades públicas.

Num plano ideal, todos aqueles que tivessem interesse deveriam ter

acesso às universidades públicas. Como não há vagas para todos, critérios

devem ser fixados para o preenchimento das vagas. O processo seletivo é uma

contingência. O critério comumente adotado para a seleção é o meritório, ou

seja, aqueles que tiverem o melhor desempenho escolar ingressam na

universidade.

O mérito é certamente um critério objetivo e seria muito adequado se

estivéssemos numa sociedade em que todos, independentemente de aspectos

sociais, econômicos, étnicos, raciais, entre outros, possuíssem a mesma

formação básica, a mesma educação para a democracia.

Essa não é, entretanto, a realidade de muitos países e do próprio Brasil,

em que as escolas públicas têm (como regra) qualidade inferior às escolas

particulares. A disparidade na formação básica dos alunos torna inadequada a

seleção exclusivamente calcada no mérito para o fim de se promover a

educação especializada dos jovens e dos adultos.

A ausência de uma igualdade simples na formação fundamental dos

alunos acaba por reforçar as ideologias e as posições hierárquicas da

9 Ibidem, p. 282.

sociedade no momento de promoção do estudo especializado. Em sua maioria,

alcançam as universidades aqueles alunos que, provenientes de classes mais

elevadas, tiveram condições familiares de cursar as melhores escolas,

comumente particulares.

Em tal sistema, a distribuição de bens educacionais revela-se um

instrumento de dominação e não um instrumento de justiça distributiva. Por

isso, numa sociedade em que a formação fundamental é excessivamente

dispare, o critério meritório, isolado, tem como resultado a concentração de

poder e riqueza.

Assim, até que a formação fundamental dos alunos seja semelhante,

outros critérios devem ser congregados ao meritório para que se possa

promover justiça social com bens educacionais.

5 Educação, reconhecimento e igualdade

O ensino fundamental é um espaço de formação dos cidadãos para o

exercício da democracia. A escola encontra-se num intermediário entre a

ideologia (temporariamente) predominante do Estado e da sociedade e os

valores morais, políticos e religiosos cultivados no seio das famílias.

Em decorrência de sua autonomia relativa, as escolas constituem um

espaço de reunião das diferenças e, consequentemente, um espaço em que

todos devem ser destinatários da mesma consideração e do mesmo respeito,

independentemente de suas características físicas, de suas capacidades ou de

suas opções morais, políticas ou religiosas.

O propósito da escola é conscientizar os alunos de que todos são

igualmente destinatários de reconhecimento, sem enfraquecer a formação e o

desenvolvimento das identidades culturais individualmente. Em outras

palavras, o objetivo é formar os cidadãos para a igualdade na diferença,

permitindo que eles consolidem suas próprias identidades, mas sejam capazes

de reconhecer as identidades dos demais.

Nesse papel, a escola está em permanente tensão com outros atores,

especialmente com a família e com a sociedade, porque neutraliza (embora

não anule) as influências e as hierarquias preestabelecidas nestas. Tanto é

assim que, se a educação compulsória fosse abolida, essa tensão

desapareceria e as crianças tornar-se-iam meros súditos de suas famílias e da

hierarquia social na qual se inserem.10

A educação fundamental é obrigatória porque é instituída no interesse da

comunidade. É por isso que a formação para o exercício da cidadania tem uma

relação indispensável com as políticas de reconhecimento. A escola deve ser,

por excelência, o locus em que os alunos aprendem a conviver com as

diferenças sociais, raciais, étnicas, culturais, religiosas, etc., e, mesmo assim,

iniciam a formação de suas identidades individuais.

E essa experiência será mais rica quanto mais diversificado o ambiente

escolar. Por consequência, a distribuição de vagas e de turmas não deve se

orientar por critérios que (justamente) inviabilizem a convivência na diversidade

e/ou fomentem a dominação.

Contudo, a experiência de muitos países demonstra o contrário, inclusive

no Brasil, porque as escolas não representam um local de diversidade. Em

regra, os alunos das classes média e alta frequentam escolas particulares, que

oferecem melhor formação, e os alunos da classe baixa frequentam escolas

públicas, que oferecem uma formação precária.

Nesse contexto, o fato de a distribuição de bens educacionais ser

desigual sob o prisma da qualidade do ensino, fazendo com que as escolas

meramente reproduzam as hierarquias sociais, também conduz a um processo

de falso reconhecimento, porque a ausência de diversidade no momento da

formação do aluno não permite o desenvolvimento do senso crítico necessário

ao respeito à diferença.

Esse problema, criado ainda no ensino fundamental, repercute igualmente

no acesso à educação especializada, que se torna cada vez mais elitizada e

que, em nenhuma medida, reproduz a pluralidade existente na sociedade.

10

WALZER, Michael. Esferas da justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade. Trad. Jussara Simões. São Paulo : Martins Fontes, 2003. p. 295.

Em contextos tais, questiona-se se as políticas de reconhecimento devem

ser reforçadas na educação especializada, por meio de ações afirmativas, no

intuito de compensar o lapso na formação fundamental dos cidadãos. Em

outras palavras, questiona-se se o ingresso nas universidades deve associar

critérios econômicos, de nacionalidade, de origem geográfica, de raça, de etnia

e de religião aos critérios meritórios tradicionais.

A questão central de estender ao ensino especializado as políticas de

reconhecimento está em desvirtuar a própria característica do ensino

especializado, que é a distribuição de bens educacionais segundo os

interesses e as capacidades de cada um. Num plano ideal, é admissível que o

ingresso nas universidades dê-se por critérios exclusivamente meritórios, já

que a educação universitária não atende apenas ao interesse da comunidade

(como no ensino obrigatório), mas especialmente ao interesse do indivíduo.

Assim, ao utilizar-se de um critério não meritório para o acesso ao ensino

especializado, a comunidade amplia seu poder de participação no processo

seletivo, fazendo sobrepor o seu interesse em detrimento do interesse

individual, já que a facilidade de ingresso de indivíduos menos preparados

(menos interessados e/ou capacitados) atende ao propósito da comunidade de

promover (tardiamente) políticas de reconhecimento e de redistribuição.

É evidente que essa interferência seria desnecessária se a sociedade

investisse mais seriamente na formação fundamental de seus cidadãos,

assegurando, nesse momento inicial, adequadas políticas de redistribuição e

de reconhecimento em face dos bens educacionais. Aperfeiçoar o ensino

obrigatório é a melhor forma de se garantir justiça social em sociedades

democráticas, ainda que os custos sejam elevados e os resultados apareçam a

médio e longo prazo.

Como alternativa, pode-se legitimamente compensar as deficiências na

formação obrigatória dos cidadãos com políticas de redistribuição e de

reconhecimento no ensino especializado?

6 Justiça social no ensino especializado: uma análise a partir da teoria

da igualdade de recursos de Ronald Dworkin

A fábula da formiga e da cigarra tem sido frequentemente citada para

ilustrar a principal crítica às teorias de justiça distributiva. Enquanto a formiga

trabalha incessantemente no verão para armazenar alimento para o inverno

rigoroso, a cigarra canta o verão inteiro e, consequentemente, passa fome no

inverno. Sob o prisma das teorias da justiça, essa fábula reforça que a

igualdade absoluta na distribuição de bens releva a responsabilidade que as

pessoas devem assumir por suas próprias escolhas como, por exemplo, entre

o lazer e o trabalho.11

Ronald Dworkin, ao desenvolver uma teoria de justiça distributiva, afirma

que uma sociedade somente atingiria o ideal de igual consideração e respeito

entre os cidadãos por meio de uma igualdade de recursos (e não por meio de

uma igualdade de bem-estar). A partir de um leilão hipotético (um mercado em

condições ideais), em que todos os participantes dispusessem inicialmente do

mesmo poder aquisitivo e tivessem à disposição os mesmos bens para

aquisição, a igualdade de recursos seria alcançada quando todos tivessem

adquirido os bens segundo o valor que possuíssem para si e para os demais,

sem cobiçar os recursos adquiridos pelos demais.12

Nesse sistema, desde o princípio as pessoas seriam responsáveis pelas

suas escolhas pessoais e pelo modo como decidem viver suas vidas (ou seja,

pelos bens que decidem comprar no leilão e pelas transações futuras no

mercado), assumindo os riscos decorrentes de suas opções.

Considerando, entretanto, que algumas pessoas possuem deficiências

físicas e mentais que lhes reduzem os recursos iniciais, comparativamente aos

11

FERRAZ, Octávio Luiz Motta. Justiça distributiva para formigas e cigarras. Crítica. p. 243. 12

Segundo Dworkin: “nenhuma divisão de recursos será uma divisão igualitária se, depois de feita a divisão, qualquer imigrante preferir o quinhão de outrem a seu próprio quinhão. (...) Agora a distribuição passou no teste da cobiça. Ninguém cobiçará as compras de ninguém porque, hipoteticamente, poderia ter comprado tal porção com suas conchas, em vez da porção que comprou. (...) Na igualdade de bem-estar, as pessoas devem decidir que tipo de vida querem, independentemente das informações pertinentes para decidir o quanto suas escolhas reduzirão ou aumentarão a capacidade de outros terem o que querem. (...) Na igualdade de recursos, porém, as pessoas decidem que tipo de vida procurar munidas de um conjunto de informações sobre o custo real que suas escolhas impõem a outras pessoas e, consequentemente, ao estoque total de recursos que pode ser equitativamente utilizado por elas. As informações que sob a igualdade de bem-estar passam a um nível político independente são, sob a igualdade de recursos, levadas ao nível inicial da escolha individual.” In: A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. 2ª ed. São Paulo : Martins Fontes, 2012. p. 81-86.

demais, admitir-se-ia, nesses casos, uma compensação da sociedade (uma

espécie de responsabilidade coletiva). Para deficiências físicas e mentais

supervenientes (posteriores ao leilão), criar-se-ia uma espécie de seguro, como

um bem disponível para a compra e cujo risco de sinistro deveria ser

individualmente avaliado.

Um dos aspectos centrais a teoria da igualdade de recursos está em

determinar os limites da responsabilidade consequencial dos indivíduos. Até

que ponto é correto que os cidadãos carreguem sozinhos os fardos dos seus

infortúnios e desvantagens e até que ponto os membros da comunidade devem

atenuar ou aliviar as consequências dessas desvantagens?13

A resposta de Dworkin é que os indivíduos devem ser eximidos da

responsabilidade consequencial pelas características de sua situação que

decorrem de puro infortúnio, mas não pelas que decorrem de suas próprias

escolhas. Segundo exemplifica o autor, se alguém nasceu cego ou sem os

talentos que outros possuem, uma sociedade justa deve compensá-lo por isso.

Mas se possui menos recursos porque anteriormente os gastou com

preferências luxuosas ou porque resolveu não trabalhar ou trabalhar num

emprego de remuneração mais baixa, a sociedade não possui qualquer

responsabilidade.14

Para Dworkin, o que impede a maioria das pessoas de ter felicidade,

autorrespeito e um papel razoável na comunidade é a falta de recursos, tanto

de recursos impessoais (riqueza e outros bens materiais, como a educação)

como de recursos pessoais (saúde e capacidade física e mental). Assim,

garantir aos cidadãos uma adequada redistribuição de recursos impessoais e

um mecanismo de amenização das diferenças de recursos pessoais, como o

mercado hipotético de seguros, implicaria a igualdade de recursos, sem impedir

que esses cidadãos realizassem escolhas pessoais sobre suas vidas e se

responsabilizassem por essas escolhas.15

13

DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. 2ª ed. São Paulo : Martins Fontes, 2012. p. 402. 14

Ibidem, p. 402. 15

Ibidem, p. 425-426.

O relevante da teoria da igualdade de recursos de Dworkin, para este

trabalho, é a distinção entre circunstâncias e escolhas. A comunidade não pode

ser chamada a responder pelas escolhas e pelas consequências das escolhas

dos indivíduos. Entretanto, a comunidade pode ser chamada a responder pelas

circunstâncias de vida de certos indivíduos, não decorrentes de escolhas, que

reduzam seus recursos e os coloquem em situação de desvantagem em

relação aos demais.

Segundo defendido por Dworkin, a educação é um recurso impessoal,

que deve ser distribuído segundo um critério distributivo adequado e que esteja

em conformidade com as consequências das escolhas individuais.

Essa compreensão do autor não parece contrariar o quanto defendido em

tópicos anteriores, acerca da formação fundamental dos cidadãos. Parece

inegável que, numa comunidade, a preparação para o exercício da cidadania

deve ser obrigatória e igualmente assegurada a todos (igualdade simples),

porque se presume, no interesse da coletividade, que todos os alunos possuem

iguais interesses e capacidades.

Em relação ao ensino especializado, contudo, o acesso dos cidadãos

estaria a depender, num plano ideal, das suas próprias escolhas e

capacidades, ou seja, do quanto se dedicaram no período de educação básica

e do rendimento escolar obtido. E se a primeira fase escolar fosse um espaço

também de diversidade, como o deveria ser, a adoção de políticas adequadas

de redistribuição e de reconhecimento na fase inicial da educação asseguraria

o ingresso no ensino especializado com justiça social.

Mas como antes afirmado, as deficiências na formação fundamental dos

alunos impõem à sociedade considerar a adoção de políticas de redistribuição

e de reconhecimento na também em relação à educação especializada.

Dworkin reconhece expressamente que a educação superior de elite nos

Estados Unidos é um recurso valioso e escasso e que, embora esteja

disponível a pouquíssimos alunos, é paga por toda a comunidade, mesmo nos

casos de universidades particulares, as quais recebem verbas públicas e cujas

doações são objeto de deduções tributárias. Desse modo, afirma que as

universidades, públicas ou particulares, possuem uma responsabilidade pública

e devem escolher metas que beneficiem a comunidade como um todo e não

apenas os seus corpos discente e docente.16

Isso significa que, ao lado do critério meritório (rendimento escolar), as

universidades podem adotar como critério de seleção outros aspectos que

sejam relevantes para a concretização dos seus fins institucionais e dos fins da

própria comunidade. Nesse sentido, o critério de seleção estaria mais centrado

nas potencialidades de contribuição futura do universitário, comparativamente

aos demais alunos, em face das metas da universidade e da comunidade.

Mas como compatibilizar essa ideia com a base da sua teoria da

igualdade de recursos, ou seja, com a responsabilidade individual pelas

escolhas e com a responsabilidade coletiva pelas circunstâncias?

Considerando que circunstâncias raciais e étnicas, por exemplo, não são

decorrentes de opção e que, em determinados contextos históricos e políticos,

infligem a alguns indivíduos uma desvantagem inicial de recursos, é legítimo

esperar que a sociedade responsabilize-se por tais circunstâncias. O mesmo

em relação às deficiências físicas e mentais.

É evidente que há outros aspectos que podem infligir desvantagem inicial

de recursos aos indivíduos, como o próprio critério econômico, nos casos em

que as escolas públicas possuam qualidade inferior às escolas particulares.

Sendo assim, esse critério pode ser considerado, juntamente com critérios

meritórios, raciais, étnicos, de nacionalidade, etc., como relevantes para o

processo seletivo do ensino especializado.

Contudo, a teoria da justiça como igualdade de recursos parece

compatível com a ideia de que as deficiências no ensino fundamental dos

cidadãos podem ser compensadas com a adoção de políticas de redistribuição

e de reconhecimento no ensino especializado, ainda que temporárias, visando

à promoção de maior justiça social.

Isso não significa desvirtuar a própria natureza do ensino especializado,

que deve estar disponível aos alunos mais interessados e capacitados.

16

Ibidem, p. 569.

Significa apenas ampliar a noção de interesse e capacidade, de modo a

abranger aspectos outros que não apenas o critério meritório. A seleção dos

alunos mais interessados e mais capacitados incluirá as potencialidades que

eles têm de contribuir futuramente com a justiça social, a partir de uma análise

que congrega o mérito escolar a critérios raciais, étnicos, de nacionalidade, de

origem, de classe social, entre outros.

Para que essa realidade torne-se plausível, o ideal de justiça social não

pode se restringir à tradicional ideia de políticas de redistribuição, mas deve

abranger igualmente as políticas de reconhecimento. Em outras palavras,

justiça social não significa apenas redistribuir bens sociais, mas redistribuir

bens sociais considerando a diversidade presente na sociedade e permitindo

que esse processo contribua para a afirmação das identidades dos indivíduos e

dos grupos17 e para assegurar suas participações paritárias na vida social.

7 Justiça social no ensino especializado: uma análise a partir da teoria

da justiça como equidade de John Rawls

A problemática da justiça social no ensino especializado também pode ser

analisada à luz da teoria da justiça como equidade, de John Rawls.

Segundo o autor, a teoria da justiça como equidade é concebida para

uma sociedade democrática, que se constitui a partir de um sistema equitativo

de cooperação social entre cidadãos livres e iguais e que se rege por dois

princípios básicos: o princípio da igualdade de liberdades básicas (cada pessoa

tem o mesmo direito a um esquema plenamente adequado de liberdades

básicas iguais que seja compatível com o esquema de liberdade dos outros) e

17

Embora não seja propósito deste trabalho, vale ressaltar a crítica de Nancy Fraser acerca da necessidade de se buscar uma política não-identitária de reconhecimento. Afirma a autora que muitas lutas pelo reconhecimento tomam a forma de um comunitarismo que simplifica e reifica as identidades de grupo, de modo que não promovem o respeito à diferença em contextos multiculturais, mas o separatismo e a formação de enclaves grupais. Assim, ao não pretender a valorização da identidade de grupo, propõe um modelo de estatuto voltado à superação da subordinação, à introdução da parte subordinada como membro pleno da vida social, capaz de interagir paritariamente com os outros. Em outras palavras, propõe desinstitucionalizar padrões de valor cultural que impedem a paridade de participação e substituí-los por padrões que a fomentem. In: A justiça na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, Outubro 2002, p. 14-16.

o princípio da igualdade equitativa de oportunidades (as desigualdades sociais

e econômicas devem estar vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos

em igualdade de oportunidades e devem beneficiar ao máximo os membros

menos favorecidos da sociedade – aplicação específica do princípio da

diferença).18

Esses princípios mantêm entre si uma relação de precedência, no sentido

de que, ao aplicar um princípio, presume-se estarem atendidas as condições

ideais do princípio anterior.

O princípio da igualdade de liberdades básicas pode ser representado

pelo conjunto de direitos e liberdades assegurados numa constituição, escrita

ou não, os quais resultam do consenso sobreposto numa sociedade pluralista e

complexa, permeada por doutrinas abrangentes conflitantes. São questões

fundamentais em face das quais é mais urgente a formulação de um acordo

político.

Trata-se de um princípio prioritário, ou seja, o segundo princípio somente

pode ser aplicado no contexto de instituições de fundo que satisfaçam as

exigências de se assegurar o valor equitativo das liberdades políticas, o que,

segundo definição de Rawls, acontece numa sociedade bem ordenada.

Significa que os cidadãos similarmente dotados e motivados têm praticamente

uma chance igual de influenciar a política governamental e de ocupar posições

de autoridade independentemente de sua classe social e econômica.19

O segundo princípio, o da igualdade equitativa de oportunidades, exige

que os cargos e as posições sociais estejam igualmente acessíveis a todos e

que as desigualdades sociais e econômicas sejam tratadas segundo o princípio

específico da diferença.20 A igualdade de oportunidades relaciona-se com a

capacidade que a sociedade tem prover instituições de fundo da justiça social e

econômica na forma mais adequada a cidadãos considerados livres e iguais. É,

portanto, o princípio mais afeto à justiça social.

18

RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação. Trad. Claudia Berliner. São Paulo : Martins Fontes, 2003. p. 60. 19

Ibidem, p. 65. 20

Ibidem, p. 67.

Numa sociedade bem ordenada, em que os cidadãos agem

cooperativamente e estão asseguradas as liberdades políticas básicas e a

igualdade equitativa de oportunidades, a distribuição de renda e de riqueza

atende ao que Rawls denomina de justiça procedimental pura de fundo. Isso

porque, quando todos seguem as normas publicamente reconhecidas de

cooperação, as distribuições de bens resultantes presumem-se justas.21

Desde que observadas as normas das instituições (o procedimento de

fundo), não se analisam as distribuições individualmente, porque decorrentes

das opções e dos esforços de cada um dentro do sistema de cooperação

social.

É que as normas de fundo impostas pelos dois princípios básicos

destinam-se a manter a cooperação social equitativa ao longo do tempo. As

normas pretendem evitar que, a longo prazo, as transações e as associações

entre indivíduos produzam concentrações de riqueza capazes de esvaziar as

condições de igualdade e liberdade iniciais. Assim, a justiça distributiva, na

visão do autor, é entendida como uma justiça procedimental pura.22

Entretanto, o autor reconhece que mesmo as sociedades bem ordenadas

possuem desigualdades que deveriam ser evitadas ou minimizadas e a teoria

da justiça como equidade considera essas desigualdades em termos de

perspectivas de vida dos cidadãos, que são afetadas por três tipos de

contingências: a classe social de origem, os talentos naturais (em

contraposição aos talentos adquiridos) e; a boa ou má sorte ao longo da vida

(doenças, acidentes, desemprego involuntário, etc.).23

Essas contingências sociais, naturais e fortuitas são relevantes para o

alcance das metas de uma sociedade baseada num sistema equitativo de

cooperação social. São desvantagens que se contrapõem à ideia de cidadãos

livres e iguais e que inviabilizam a concretização dos princípios básicos da

justiça como equidade.

21

Ibidem, p. 71. 22

Ibidem, p. 73. 23

Ibidem, p. 78.

Nesse sentido, o autor reconhece que primeiramente as sociedades bem

ordenadas devem educar seus cidadãos para que se reconheçam como livres

e iguais e como igualmente merecedores de participação paritária. Significa,

em outras palavras, que as sociedades equitativas devem promover políticas

de reconhecimento como parte indispensável da formação (obrigatória) de seus

membros para o exercício da cidadania. O reconhecimento recíproco deve

fazer parte da cultura política pública.

Mas isso não se mostra suficiente. A sociedade cooperativa deve tratar

das contingências acima mencionadas, especialmente da econômica, já que

ela é capaz de influenciar positivamente as consequências das duas outras

(com o emprego dos recursos adequados, aquele que não tem talentos

naturais pode desenvolver talentos, bem como eliminar ou remediar os efeitos

de doenças, acidentes e desempregos).

Os menos favorecidos são, portanto, os cidadãos que pertencem à classe

de mais baixas expectativas. Nesse contexto, o princípio da diferença,

subordinado ao princípio das liberdades iguais e ao princípio da igualdade

equitativa de oportunidades, deve nortear a justiça distributiva segundo um

critério público de justificação e no interesse das instituições de fundo.24

Segundo esse princípio, as desigualdades de renda e riqueza, por

maiores que sejam e por mais que as pessoas trabalhem para ampliar sua

parcela da produção, devem sempre beneficiar os menos favorecidos. Ou seja,

as desigualdades econômicas são admitidas desde que elas efetivamente

beneficiem os menos favorecidos. O princípio da diferença é um princípio de

reciprocidade.

A título exemplificativo, seria como dizer que o aumento da desigualdade

social entre empregador e empregados é admissível, segundo a teoria da

justiça como equidade, se o incremento da riqueza do empregador possibilitar

o aumento do salário de seus empregados, colocando-os, portanto, em

situação mais vantajosa.

24

Ibidem, p. 88.

Mas Rawls reconhece que, ao lado das contingências de natureza

econômica, há outras que podem ser consideradas bens primários na estrutura

básica das sociedades, como as distinções de raça e gênero.

A ênfase à renda e à riqueza justifica-se porque, na teoria ideal, os dois

princípios de justiça são aplicados à estrutura básica de uma sociedade

cooperativa, em que os cidadãos usufruem de liberdades básicas e de

oportunidades equitativas, de modo que as diferenças econômicas assumem

uma posição relevante.25

Não obstante, outras posições relevantes podem ser consideradas, seja

porque não são asseguradas as liberdades básicas dos cidadãos, seja porque

não são asseguradas oportunidades equitativas, a depender do contexto

histórico, econômico e político da sociedade em questão.

Portanto, as posições relevantes devem ser determinadas segundo a

estrutura básica de cada sociedade, podendo incluir questões raciais, étnicas,

de origem ou de nacionalidade, e o princípio da diferença deverá ser aplicado

como um instrumento de justiça distributiva.

A partir de tais considerações, pode-se testar a teoria da justiça como

equidade em face dos bens educacionais, a fim de responder à pergunta antes

formulada, sobre a legitimidade de se compensar as deficiências na formação

obrigatória dos cidadãos com políticas de redistribuição e de reconhecimento

no ensino especializado.

Como já afirmado, a teoria da justiça como equidade sustenta-se nos

princípios da igualdade de liberdades políticas e da igualdade equitativa de

oportunidades, os quais, num plano ideal, pressupõem uma formação

fundamental dos cidadãos para o exercício da democracia, ou seja, um ensino

básico obrigatório que desconsidere os interesses e as capacidades e que

promova a diversidade e o reconhecimento recíproco.

Em tese, satisfeitas essas condições ideias, o acesso ao ensino

especializado dar-se-ia segundo os interesses e as capacidades de cada um,

porquanto seria resultado do esforço individual, e o critério exclusivamente

25

Ibidem, p. 92.

meritório (rendimento escolar) seria suficiente para assegurar a equidade. As

contingências econômicas presentes na sociedade seriam admissíveis em

relação aos bens educacionais se, pelo princípio da diferença, esse critério

seletivo permitisse um ingresso cada vez maior de menos favorecidos nas

universidades, ainda que o acesso dos mais favorecidos fosse predominante.

Ocorre que, na prática, as contingências econômicas, raciais, étnicas, de

origem e de nacionalidade, entre outras, impedem a concretização do princípio

da igualdade equitativa de oportunidades em muitas sociedades. Essa

circunstância, por si só, justificaria a consideração de tais posições como

relevantes e merecedoras de normatização.

Para Rawls, as distinções de raça e de gênero são desigualdades que

somente se justificam se trouxerem vantagens para os negros e para as

mulheres, por exemplo, e se forem aceitáveis do ponto de vista dos mesmos.

Mas o próprio autor reconhece que historicamente essas desigualdades

originaram-se de desigualdades de poder político e econômico e que nunca

parecem ter sido vantajosas para os menos favorecidos.26

Numa sociedade bem ordenada, o autor espera que as distinções de raça

e gênero não sejam consideradas posições relevantes. Entretanto, se

constituírem fator de desigualdade em prejuízo dos menos favorecidos, a elas

deve ser aplicado o princípio da diferença, como um instrumento de justiça

social.

Nesse sentido, a teoria da justiça como equidade também parece

compatível com as políticas de distribuição e de reconhecimento destinadas a

minimizar desigualdades econômicas, raciais, étnicas, de origem e de

nacionalidade, inclusive em relação ao ingresso no ensino especializado, como

forma de compensar as deficiências da formação fundamental dos cidadãos e

assegurar-lhes futuramente iguais oportunidades de participação paritária nas

mais diversas esferas da vida social.

Conclusão

26

Ibidem, p. 92-93.

A justiça social na educação não pode prescindir da conjugação de

políticas de redistribuição e de reconhecimento. A educação, enquanto bem

social, deve ser distribuída com o propósito de reduzir a superioridade e a

dominação sociais, bem como de formar cidadãos conscientes da diversidade

e da necessidade de se reconhecerem como iguais.

É por isso que uma sociedade democrática e igualitária deve investir

seriamente na formação fundamental dos seus cidadãos, mediante a adoção

de políticas de redistribuição e de reconhecimento adequadas.

Quando a formação obrigatória é excessivamente dispare, o processo

educacional reforça a concentração de poder e riqueza e os meios de

exclusão. Assim, aperfeiçoar o ensino obrigatório é a melhor forma de se

garantir justiça social para o presente e para o futuro, ainda que os custos

sejam elevados e os resultados apareçam a médio e longo prazo.

Alternativamente, tem-se como legítimo compensar as deficiências na

formação obrigatória dos cidadãos com políticas de redistribuição e de

reconhecimento no ensino especializado.

As teorias da justiça analisadas são perfeitamente compatíveis com a

extensão dessas políticas ao ensino universitário, ainda que temporariamente,

visando à promoção de justiça social a curto e médio prazo. A utilização de

critérios raciais, étnicos, econômicos, de origem e de nacionalidade juntamente

com o critério meritório não releva a responsabilidade dos indivíduos pelas

suas escolhas. Ao contrário, permite a assunção coletiva da responsabilidade

por fatos históricos, políticos e econômicos, passados ou presentes, que não

resultam de opção e que infligem desvantagens e exclusão a indivíduos e

grupos.

Nesse sentido, as ações afirmativas para o ingresso no ensino

especializado têm a finalidade (tardia) de redistribuir bens educacionais

considerando a diversidade social e permitindo que esse processo contribua

mais efetivamente para a afirmação pacífica das identidades dos indivíduos e

dos grupos e para a suas participações paritárias na vida social, mostrando-se,

portanto, instrumentos importantes de justiça social.

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CAPÍTULO 2: Justiça e Reconhecimento.

Eitel Santiago de Brito Pereira

1. Justiça como virtude e como valor assegurado pelo Estado.

Que se deve compreender por justiça? É difícil retorquir. Há diversas

doutrinas apontando os fundamentos das normas que avaliam os atos

humanos. A procura por uma definição ocupa filósofos, políticos, juristas e

sociólogos. Todos buscam, em suas diferentes áreas de atuação, a resposta

adequada, pondo o vetusto problema na conta das questões mais árduas a

respeito dos fundamentos das leis que disciplinam a vida coletiva.

Segundo José Flóscolo da Nóbrega, o conceito atual da justiça “é

em substância o mesmo dos antigos filósofos”27, que perceberam cedo a

impossibilidade de sobrevivência do ser humano fora do justo convívio com

seus semelhantes.

Em reforço da opinião esposada por Nóbrega, outros juristas, como

Tércio Sampaio Ferraz Jr, sustentam a impossibilidade de conservação da

própria sociedade “numa situação em que a justiça, enquanto sentido

unificador do universo moral,” viesse a ser destruída, porque a vida gregária,

em semelhante contexto, perderia o sentido e ficaria insuportável.28

Parece evidente que a justiça desdobra-se em duas dimensões: ora

se revela, no plano subjetivo, como virtude que ornamenta a personalidade do

indivíduo em suas interações; ora se mostra, no plano objetivo, como valor

assegurado pelo Estado no espaço do seu domínio, onde convivem as pessoas

submetidas à respectiva soberania.

Importa, no entanto, memorar que a justiça se caracteriza como um

valor escorado na alteridade, porquanto somente se manifesta nos atos sociais.

27

NÓBREGA, J. Flóscolo da. Introdução ao Direito. O direito como princípio. O direito como norma. O direito como poder. O direito como garantia. 8ª edição revista e atualizada. João Pessoa/PB: Edições Linha d’Água, 2007. P. 50. 28

FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito. Técnica, decisão, dominação. 4ª edição. São Paulo/SP: Atlas, 2003. P. 352.

Dela não se cogita sem a existência de duas ou mais pessoas se relacionando.

Com essa convicção, explicita COMTE-SPONVILLE que:

(...) A justiça só existe na medida em que os homens a querem, de comum acordo, e a fazem. Portanto, não há justiça no estado natural, nem justiça natural. Toda justiça é humana, toda justiça é histórica; não há justiça (no sentido jurídico do termo) sem leis, nem (no sentido moral) sem cultura – não há justiça sem sociedade.”29

Aristóteles dizia que a justiça corresponde a um dote ético superior,

englobando “a excelência moral inteira”. Para o sábio heleno, a referida virtude

é a expressão mais elevada da moralidade, de modo que “nem a estrela

vespertina nem a matutina é tão maravilhosa” quanto aquela disposição para a

prática do bem.30

Com base nos ensinamentos do famoso filósofo da Antiguidade,

conclui-se que a justiça se entrelaça com tudo o que é bom e capaz de

impulsionar as ações humanas, sendo a virtude absolutamente boa, porque

congrega outras qualidades positivas.

Comte-Sponville, pensador francês da Modernidade, concorda com

a visão aristotélica. Defende, inclusive, que as demais qualidades visíveis nas

personalidades das pessoas “só são virtudes a serviço do bem, ou

relativamente a valores”, que as superam e as motivam. Assim, por exemplo,

não passam de “simples talentos ou qualidades do espírito ou do

temperamento” a prudência, a temperança e a coragem postos “a serviço do

mal, ou da injustiça”.31

Tais opiniões evidenciam que a noção de justiça repousa no domínio

da moral, mesclando-se ao conceito de boa vontade de que nos fala Kant, em

sua “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”. Eis como se expressa o

sábio de Königsberg:

29

COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo/SP: Martins Fontes, 2010. P 84. 30

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. (Livro II). Tradução do grego, introdução e notas de Mário Gama Kury, 3ª edição. Brasília/DF: Editora Universidade de Brasília, 1985,1999, p. 41. 31

COMTE-SPONVILLE, André. Obra citada. P. 69.

Não há nada em lugar algum, no mundo e até mesmo fora dele, que se possa pensar como sendo irrestritamente bom, a não ser tão-somente uma boa vontade. Entendimento, engenho, poder de julgar e como quer que se possam chamar, outrossim, os talentos da mente, ou coragem, decisão, persistência no propósito, enquanto propriedades do temperamento são, sem dúvida, coisas boas e desejáveis sob vários aspectos; mas podem também tornar-se extremamente más e nocivas, se não é boa a vontade que deve fazer uso desses dons da natureza e cuja qualidade peculiar se chama por isso caráter. Com os dons da fortuna dá-se o mesmo. Poder, riqueza, honra, a própria saúde e o completo bem-estar e contentamento com o seu estado, a que damos o nome de felicidade, dão coragem e destarte também, muitas vezes, soberba, quando não há uma boa vontade para corrigir sua influência sobre o ânimo e, ao mesmo tempo, sobre todo o princípio do agir, tornando-os assim conformes a fins universais; para não mencionar o fato de que um espectador imparcial e racional jamais pode se comprazer sequer com a vista da prosperidade ininterrupta de um ser a quem não adorna traço algum de uma vontade boa e pura e, assim, que a boa vontade parece constituir a condição indispensável até mesmo da dignidade de ser feliz..32

Os estudos a respeito da justiça realçam todos, ou apenas alguns

dos traços que marcam a aludida virtude.

Em certo momento, o escritor enaltece seu aspecto comutativo,

observável na vida privada. A justiça então aparece atuando na determinação

de direitos e obrigações decorrentes de contratos ou de atos ilícitos, para

resguardar a igualdade nas relações entre as pessoas.

Noutra ocasião, o autor privilegia a característica distributiva da

justiça, que se manifesta na vida social. Aqui, a virtude emerge repartindo os

encargos e vantagens da vida social, segundo critérios de proporcionalidade, a

fim de que cada um receba os benefícios de acordo com suas necessidades, e

dê, por outra banda, a sua contribuição de conformidade com a respectiva

capacidade.

Numa terceira oportunidade, o jurista exalta o sistema legal. A justiça

movimenta-se, nesta nuança, regendo as condutas dos governantes e

32

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução com introdução e notas por Guido Antônio de Almeida. São Paulo/SP: Discurso Editorial : Barcarolla, 2009. Págs. 101 a 103.

governados, como membros da sociedade, para prescrever à obediência à lei e

aos deveres impostos em mercê do interesse coletivo.

Por fim, os filósofos dão especial relevo aos fundamentos dos

comportamentos humanos. Nas avaliações deles, a justiça exibe-se através de

elucubrações profundas sobre as ideias de liberdade, igualdade e

solidariedade, que informam o seu conceito e vêm estimulando, no curso da

História, as lutas contra as injustiças do mundo.

Virtude aglutinadora de outras qualidades que enfeitam o caráter do

ser humano, a justiça também é um valor supremo, afiançado pelo próprio

Estado. Atesta o último aspecto o texto preambular da Constituição Federal, ao

proclamar que o povo brasileiro, por seus representantes, instituiu uma ordem

destinada a garantir a justiça como um dos “valores supremos de uma

sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social

e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das

controvérsias”.33

2. Elogio à permanente e necessária luta dos justos.

Por causa da evidente interligação entre as duas, convém que a lei e

a justiça caminhem sempre na mesma direção. Contudo, nem sempre isso

acontece. A legislação algumas vezes distancia-se da liberdade, da igualdade,

da solidariedade ou de outros princípios integrados na noção daquela virtude.

Nestas situações, advém a pergunta: a lei injusta deve ser obedecida ou é

legítimo resistir à sua aplicação? Não é fácil responder. Especialmente porque

surgem, na prática, dificuldades para se dizer com precisão o que é justo, ou

injusto. Aliás, a justiça, esclarece Michael J. Sandel, também “diz respeito à

forma certa de avaliar as coisas.”34

Consciente dessa dificuldade de avaliação, Comte-Sponville invoca

lições aristotélicas e afirma, com muita propriedade, que “não é a justiça que

33

Dizeres contidos no Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988. 34

SANDEL, Michael J. Justiça. O que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo. 8ª edição. Rio de Janeiro/RJ: Civilização Brasileira, 2012. P. 323.

faz os justos, são os justos que fazem a justiça”35. Elogia, assim, a disposição e

a rebeldia dos que pelejam contra as injustiças. Para o filósofo francês, um

justo

É alguém que põe a sua força a serviço do direito, e dos direitos, e que, decretando nele a igualdade de todo homem com todo outro, apesar das desigualdades de fato ou de talentos, que são inúmeras, instaura uma ordem que não existe, mas sem a qual nenhuma ordem jamais poderia nos satisfazer. O mundo resiste, e o homem. Portanto, é preciso resistir a eles – e resistir antes de tudo à injustiça que cada um traz em si mesmo, que é si mesmo. É por isso que o combate pela justiça não terá fim. Esse Reino, pelo menos, nos é proibido ou, antes, já estamos nele só quando nos esforçamos por alcançá-lo. Felizes os famintos por justiça, que nunca serão saciados!36

Qualquer ato (inclusive o proveniente da função legislativa), que se

dissocia da liberdade, da igualdade, ou da solidariedade, afasta-se do padrão

da justiça. Em tais circunstâncias, justifica-se a resistência e o combate, para

mudar o curso dos acontecimentos, restaurando o valor supremo da vida

coletiva.

Por mais complexa que possa ser a avaliação a respeito de um ato

ou de uma conduta, a justiça não é um objeto inatingível. Ninguém tem

dificuldade para encontrá-la por meio da emoção. Nóbrega registra isso,

anunciando que:

A justiça é elemento moral do direito, moral no sentido de espiritual, de teleológico; e é seu princípio e fim, pois sem ela não se conceberia o direito, que existe tão só como meio, ou técnica de realizá-la. Não é possível defini-la com precisão, pois como todo conceito limite, escapa à formulação lógica. Podemos alcançá-la, como valor, através da via emotiva; mas a emoção não é redutível ao pensamento. Mesmo o homem do povo tem o sentimento claro do que é justo, como sente o encanto de um pôr de sol, a doçura de uma melodia, embora lhe escapem o significado da justiça e da beleza. A justiça ‘é o horizonte na paisagem do direito’, horizonte que é ao mesmo tempo um limite para a paisagem e um ponto de referência para apreciá-la. A paisagem é penetrada de horizonte e vive da claridade que dele flui; o direito é

35

COMTE-SPONVILLE, André. Obra citada. P.75. 36

COMTE-SPONVILLE, André. Obra citada. Págs. 94 e 95.

encarnação da justiça e só tem vida e sentido quando visto à sua luz.37

A permanente e necessária luta contra as injustiças merece elogios.

Tem servido, ao longo do tempo, para concretizar o direito na sua inesgotável

dimensão de “luta dos povos, dos governos, das classes sociais, dos

indivíduos.” Em tal contexto, Rudolf Von Ihering ressalta que:

(...) O Direito não é uma simples ideia, é uma força viva. Por isso a justiça sustenta numa das mãos a balança com que pesa o direito, enquanto na outra segura a espada por meio da qual o defende. A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada, a impotência do direito. Uma completa a outra, e o verdadeiro estado de direito só pode existir quando a justiça sabe brandir a espada com a mesma habilidade com que manipula a balança.38

3. Combates em defesa da liberdade e da igualdade.

No Estado Moderno, que superou o estágio primitivo do poder

arbitrário, colocando-se como uma organização fundada no Direito,

transformou-se a justiça num valor constitucional a ser protegido pelas

autoridades. Mas esse modelo não surgiu espontaneamente. Proveio das lutas

do movimento constitucionalista39, dos embates travados nas conflagrações

liberais, vitoriosas na segunda metade do século XVIII.40

Naquela quadra da história da civilização, os homens brigaram

contra os que praticavam injustiças exercendo o poder de forma absoluta. Os

justos pretenderam e conseguiram sujeitar as autoridades à vontade do povo,

expressa nas leis feitas por seus representantes. Nos embates que travaram,

plantaram as sementes da democracia e do pluralismo, que se desenvolveu

37

NÓBREGA, J. Flóscolo. Obra citada. P. 49. 38

IHERING, Rudolf von. A Luta pelo direito. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo/SP: Editora Martin Claret, 2002. P. 27. 39

O constitucionalismo “visa estabelecer em toda parte regimes constitucionais, quer dizer, governos moderados, limitados em seus poderes, submetidos a Constituições escritas.” – FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 36ª edeição revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2010. P. 33. 40

As conflagrações referidas são os movimentos políticos que desaguaram na Revolução Gloriosa da Inglaterra, na Independência Americana e na Revolução Francesa.

nos países onde foram partilhadas as funções do poder e declarados os

direitos individuais e as liberdades civis.

Apesar do histórico entrelace entre os direitos humanos e a natureza

democrática da organização advinda das lutas do liberalismo, o modelo político

proveniente daquelas pelejas se desgastou com o correr dos anos.

Algumas Soberanias não dispuseram de outros atributos

indispensáveis para formar governos legítimos, dando origem a autocracias

ditatoriais e totalitárias. Outras, embora obedientes às principais diretrizes do

regime representativo, assumiram feições acentuadamente abstencionistas.

Mesmo enaltecendo os direitos de primeira geração (vida, liberdades,

propriedade, segurança, nacionalidade e cidadania), não tiveram sensibilidade

para interferir nas questões econômicas. Assim, apegados à ideia de uma

igualdade formal, permaneceram indiferentes aos dramas provocados pela

injustiça dos desníveis sociais.

O Estado Moderno, no modelo liberal clássico, deixou de atender às

aspirações da maioria do povo, perdendo paulatinamente a legitimidade.

Estouraram, então, as pugnas das classes menos favorecidas pela fortuna, em

defesa da justiça representada no princípio da igualdade substancial das

pessoas. As reivindicações socialistas se tornaram intensas. Os justos

pelejaram na defesa das prerrogativas fundamentais de segunda geração, nas

quais se colocam os direitos sociais referentes ao trabalho e lazer, como

também os relacionados à educação, saúde, moradia, previdência e

assistência social. Era necessário garantir a igualdade de maneira

proporcional, tratando desigualmente os desiguais na medida de suas

desigualdades. Exigia-se a interferência do poder estatal nos processos

econômicos, para corrigir os desequilíbrios e garantir um mínimo de dignidade

às pessoas mais pobres.

Triunfaram as rebeliões do socialismo na primeira metade do século

XX41, fomentando o aparecimento de outro padrão de organização política. Em

nome da igualdade e proporcionalidade, surgiu o chamado Estado Social,

41

As mais importantes vitórias do Socialismo, na versão comunista, aconteceram com o triunfo da Revolução Russa, em 1917, e da Revolução Chinesa, em 1949.

impondo aos governos atuações positivas contra as injustiças decorrentes das

desigualdades sociais.

No cadinho daquelas sublevações, compôs-se o arcabouço do

Estado Social, que se concretizou em dois padrões distintos conforme as

necessidades de adaptação às exigências das sociais democracias e dos

comunismos autocráticos. Os dois modelos se propuseram a desencadear

ações destinadas a erradicar ou, pelo menos, abrandar as desigualdades.

Nos países que preservaram as liberdades civis e não eliminaram a

propriedade privada dos meios de produção, surgiram as sociais democracias.

Os que mais se afastaram dos valores democráticos provenientes do

liberalismo, deram origem às autocracias comunistas.

Enquanto as sociais democracias ajustaram o padrão liberal clássico

de Estado às novas exigências decorrentes da afirmação dos direitos sociais,

as autocracias comunistas suprimiram liberdades civis, consagradas no Estado

liberal. Nos dois casos, os governantes passaram a intervir na ordem

econômica para garantir maior igualdade aos seres humanos. Todavia, as

experiências do comunismo demonstram que, nos países em que prevaleceu

tal regime, os dirigentes não hesitaram em eliminar a propriedade privada dos

meios de produção, anulando o pluralismo, sufocando as liberdades civis,

silenciando as minorias, amordaçando a imprensa e impedindo o povo de

fiscalizar os atos do governo.

Funcionou o Estado Social, nos comunismos, de maneira

antidemocrática, abrigando a ditadura do proletariado, que logo se transformou

num sistema totalitário, intolerante e cruel com as minorias dissidentes.

Esgotou-se, assim, a esperança de igualdade preconizada pelo socialismo com

a implantação das autocracias comunistas, que se debilitaram mergulhadas no

lamaçal da prepotência de seus dirigentes e findaram soçobrando no lodaçal

da corrupção administrativa, dos privilégios da burocracia e da falta de

transparência dos respectivos governos.

Foi muito importante a contribuição que as lutas do socialismo

trouxeram para a afirmação e o reconhecimento dos direitos de segunda

geração. Apesar disso, o Estado Social representou um tremendo retrocesso

político, em sua versão comunista da ditadura do proletariado. Retrocesso que

gerou insatisfações, que foram reprimidas por algum tempo, mas terminaram

eclodindo nas revoltas coletivas que provocaram a extenuação e posterior

ruína daquele tipo de organização política.

Nas sociais democracias, o Estado Social esvaziou-se por outras

razões. Concorreu para isso a chegada de uma terceira geração de direitos

fundamentais, ainda pouco mencionados na época da consolidação daquele

modelo. Esta concausa estimulou o engenho dos políticos, que idealizaram

outro protótipo de organização política: o Estado Democrático de Direito.

A evolução da doutrina dos direitos e garantias fundamentais traz à

discussão uma terceira geração dessas prerrogativas, agora voltadas para

atender as necessidades de fortalecimento dos laços de solidariedade entre as

pessoas, nos planos interno e internacional. Em documentos internacionais (a

Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, de 1981, e a Carta de

Paris para uma nova Europa, de 1990) existem referências a direitos humanos

de terceira geração, entre os quais os concernentes à paz, à autodeterminação

dos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,

ao usufruto do patrimônio comum da humanidade, etc.

Dos escombros dos dois arquétipos de Estado procedentes do

liberalismo e do socialismo, germinou o Estado Democrático de Direito. Esse

novo padrão resultou das lutas do pós-socialismo e carrega consigo uma noção

ampliada da justiça. Com efeito, se submete o poder à ordem constitucional,

preservando as liberdades civis, impõe, por outro lado, a adoção de ações

governamentais positivas e indispensáveis à proteção dos direitos sociais,

visando diminuir as desigualdades. Ademais, não descura dos direitos de

terceira geração nem despreza as reivindicações de grupos minoritários, que

querem afirmar suas identidades e diferenças, que se rebelam contra as

injustiças das discriminações, exigindo reconhecimento. É o que explicaremos

no próximo tópico do presente trabalho.

4. Justiça e reconhecimento.

Antes de sua dissolução, a União das Repúblicas Socialistas

Soviéticas interferia numa parte do mundo, enquanto a outra se submetia à

influência dos Estados Unidos da América. Naquele tempo da chamada Guerra

Fria, as relações entre os povos não era tão grande, apesar do sempre

crescente desenvolvimento das tecnologias de comunicação e informação.

O quadro acima descrito se transformou no final do século XX, a

partir do desmantelamento do protótipo comunista de Estado. A queda do

império soviético não apenas revitalizou o padrão liberal adotado nas sociais

democracias, mas aprofundou as interações entre os povos, produzindo o

fenômeno da globalização, com seus processos de integração econômica,

social, cultural, e política dos países do mundo.

No mundo globalizado, a noção de justiça se alargou. Já não

envolve somente as exigências de contenção do poder, para que sejam

reprimidos os abusos e assegurados os direitos à vida, à propriedade, à

segurança e à liberdade. Nem se contenta apenas em abrigar as pelejas

fundadas na igualdade dos seres humanos, que reivindicam a proporcional

redistribuição dos recursos e das riquezas, de modo a suavizar os sofrimentos

das classes mais necessitadas. Vai além, acolhendo as lutas apoiadas na

solidariedade, e exigindo o reconhecimento dos direitos de terceira geração e a

afirmação das diferenças culturais de pessoas e grupos minoritários, carentes

de proteção contra as injustiças decorrentes de quaisquer tipos de

discriminação.

Há, com anota Nancy Fraser42, apenas um aparente antagonismo

entre as lutas do movimento socialistas, que pleiteavam eliminar, ou, pelo

menos, diminuir as desigualdades entre as pessoas, e as novas pelejas

patrocinadas por grupos minoritários raciais, étnicos, sexuais, religiosos ou

culturais, que postulam demonstrar suas diferenças e exigem respeito por suas

identidades, proscrevendo quaisquer discriminações.

42

FRASER, Nancy. A Justiça social na globalização: Redistribuição, reconhecimento e participação. Artigo traduzido por Teresa Tavares e publicado na Revista Crítica de Ciências Sociais nº 63, Outubro de 2002. Págs. 7/20.

Os justos, presentes nestes grupos minoritários, combatem,

principalmente, as injustiças decorrentes do não reconhecimento de quem os

avalia sem considerar suas diferenças. No entanto, as suas pelejas não

substituem nem esvaziam os combates dos que pedem mais igualdade, como

insinuam os neoliberais. Pelo contrário, muitas vezes as duas pretensões

ajuntam-se no mesmo grupo, como ocorreu com os negros estadunidenses,

que precisaram de reconhecimento mediante políticas afirmativas, e

necessitaram, igualmente, de redistribuição através de políticas sociais

inclusivas.

Fraser destaca, como muita lucidez, a inexistência de antinomia

entre as reivindicações por redistribuição das encetadas por reconhecimento.

Ao seu sentir, ninguém deve se impressionar com a falácia do argumento

neoliberal, que sustenta o antagonismo entre as duas posições. Do ponto de

vista da pensadora estadunidense, é recomendável olhar a justiça

(...) de modo bifocal, usando duas lentes diferentes simultaneamente. Vista por uma das lentes, a justiça é uma questão de distribuição justa; vista pela outra, é uma questão de reconhecimento recíproco. Cada uma das lentes foca um aspecto importante da justiça social, mas nenhuma por si só basta. A compreensão plena só se torna possível quando se sobrepõem as duas lentes. Quando tal acontece, a justiça surge como um conceito que liga duas dimensões do ordenamento social – a dimensão da distribuição e a dimensão do reconhecimento.43

Dessa forma, se a injustiça decorre de desigualdades semelhantes

às de classe, se provém de qualquer forma de exploração do trabalhador, o

remédio será a luta por uma melhor redistribuição dos recursos sociais e

econômicos. Mas se a injustiça se revestir sob a forma de um falso

reconhecimento, que implique na dominação cultural, no não-reconhecimento e

no desrespeito, a solução será o combate em prol da revalorização da

identidade desrespeitada ou do produto cultural do grupo discriminado, visando

o seu reconhecimento e a valorização de sua diversidade. Finalmente, se a

43

FRASER, Nancy. Obra citada. P. 11.

injustiça decorre simultaneamente das duas situações, a luta deve se dá nos

dois sentidos. Somente, assim, se combaterá a iniqüidade.

Nem o Estado de Direito, no modelo do liberalismo clássico, nem o

Estado Social, nos padrões do comunismo e da social democracia, se

mostraram capazes de atender todas as aspirações de organização política da

sociedade no momento atual. Foi por isso que se modelou o Estado

Democrático de Direito, com o objetivo de suplantar aqueles protótipos de

organização, através da incorporação e a harmonização dos valores

consagradas pela civilização.

Em conclusão, percebe-se que, além de ser uma virtude e um valor

supremo que precisa ser protegido pelo Estado, a justiça é, também, liberdade,

igualdade, proporcionalidade, solidariedade e reconhecimento.

Referências Bibliográficas

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FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito. Técnica, decisão, dominação. 4ª edição. São Paulo/SP: Atlas, 2003.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 36ª edeição revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2010.

FRASER, Nancy. A Justiça social na globalização: Redistribuição, reconhecimento e participação. Artigo traduzido por Teresa Tavares e publicado na Revista Crítica de Ciências Sociais nº 63, Outubro de 2002. Págs. 7/20.

IHERING, Rudolf von. A Luta pelo direito. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo/SP: Editora Martin Claret, 2002. P. 27.

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SANDEL, Michael J. Justiça. O que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo. 8ª edição. Rio de Janeiro/RJ: Civilização Brasileira, 2012.

CAPÍTULO 3: O modelo de justiça distributiva de Dworkin e a

saúde pública na República Federativa do Brasil

Adriana da Fontoura Alves44

Resumo

A justiça distributiva aplicada à assistência à saúde, na perspectiva de

Dworkin, em A virtude soberana, envolve a implementação do que ele chama

de seguro-prudente, através do qual cada cidadão gastaria, de forma justa e

ideal, para garantir sua própria assistência à saúde, apartado da participação

do Estado. A realidade atual do sistema de assistência à saúde nos Estados

Unidos demonstra um quadro adverso, no sentido de seu custo

insensatamente elevado, em paralelo a sua baixa eficácia e cobertura, em

termos populacionais. Nesse contexto, a Suprema Corte norte-americana

considerou constitucional a reforma no sistema de assistência à saúde

proposto pelo presidente Barack Obama - o Affordable Care Act, que inclui a

previsão da “obrigação individual” a exigir que os cidadãos adquiram um plano

de saúde privado, caso não sejam enquadrados como beneficiários de um dos

programas do sistema público de saúde. O Sistema Único de Saúde brasileiro,

principal forma de prestação de serviços na assistência à saúde em nosso

país, possui características bastante diversas daquelas observadas nos

Estados Unidos, reduzindo a pertinência da aplicabilidade do modelo de

Dworkin colocado em relevo.

Palavras-chave: justiça distributiva; liberdade; Dworkin; saúde; Brasil.

Abstract

Distributive justice applied to health care, from the perspective of

Dworkin in The Sovereign Virtue, involves the implementation of what he calls

the prudent insurance, through which every citizen would spend in a fair and

44

Mestranda em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, advogada especialista em Direito do Estado, em Ciências Penais e em Direito Civil e Direito Processual Civil. Médica, com título de especialista em Clínica Médica, Neurologia e Medicina Intensiva. Plantonista da Unidade de Terapia Intensiva de Neurotrauma do Hospital de Base do Distrito Federal e analista de saúde lotada na Promotoria de Defesa da Saúde do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.

ideal to ensure their own care health, apart from the state's participation. The

current reality of the health care system in the United States demonstrates an

adverse situation, to their insanely high cost, in parallel to its low efficacy and

coverage, in terms of population. In this context, the Supreme Court considered

constitutional the reform in the health care system proposed by President

Barack Obama - the Affordable Care Act, which includes provision of “individual

mandate” to require citizens acquired a private health plan, unless they are

classified as one of the beneficiaries of programs of public health. The Brazilian

Public Health System, main form of service delivery in health care in our

country, has characteristics very different from those observed in the United

States, reducing the relevance of applicability of the model Dworkin.

Keywords: distributive justice, freedom, Dworkin, health, Brazil.

Introdução

Ronald Dworkin, em A virtude soberana: a teoria e a prática da

igualdade, composta de escritos datados dos últimos anos do século passado,

delimita sua concepção de igualdade distributiva e explicita seu modelo de

aplicabilidade prática em políticas públicas de governo. Tal obra servirá como

paradigma para as análises a seguir descritas, com foco na sua interface com

aspectos de saúde pública.

Preliminarmente, através de elaborações imaginativas como o “leilão

hipotético” e o “teste da cobiça”, Dworkin conduz ao arcabouço do que designa

como a “igualdade de recursos”, a qual pressupõe que “os recursos dedicados

à vida de cada pessoa devem ser iguais”45 e remete à ideia de que essa

concepção aproxima-se do segundo princípio de justiça de Rawls – o “princípio

da diferença”.46

Nesse contexto, cabe destacar que John Rawls vai mais além, em seu

primeiro princípio de justiça, e adverte que “cada pessoa possui uma

inviolabilidade na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um

45

DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 86. 46

Ibidem. p. 148.

todo pode ignorar”, portanto, em uma sociedade justa os direitos da cidadania

“não estão sujeitos à negociação política ou ao cálculo de interesses sociais”.47

A chamada justiça distributiva, no sentido moderno, insta o Estado a

garantir que a propriedade seja distribuída para toda sociedade, de tal forma

que se assegure o suprimento de um “certo nível” de recursos materiais a

todas as pessoas.48

Sob a perspectiva de tais concepções, aspectos particulares que

ilustram a realidade hodierna dos sistemas de assistência à saúde nos Estados

Unidos da América e no Brasil serão cotejados.

2 Princípio do “seguro prudente” nos Estados Unidos da América

No capítulo intitulado A justiça e o alto custo da saúde, Dworkin explica

seu ideário de justiça distributiva aplicado à política de saúde, direcionado à

realidade do sistema norte-americano existente à época da publicação de sua

obra.

As premissas estabelecidas são de que os Estados Unidos da América

“gastam demais em saúde” e têm uma “distribuição injusta” dos serviços

médicos, com exclusão da assistência de significativa parcela da população.49

Na sequência, diante da declarada perspectiva de que, nos próximos

cinco anos, um quarto da população do país estaria excluída de qualquer

cobertura de seguro-saúde, de forma absoluta, o autor afirma: “não podemos

oferecer a todos a assistência médica que os mais ricos dentre nós podem

comprar para si”.50

O plano apresentado por Bill Clinton ao Congresso norte-americano, em

1993, e não aprovado, é citado como uma forma de racionamento da

assistência médica naquele país, garantindo para “quase todos” um “pacote

básico” que excluía “alguns tipos específicos de tratamento”. Seria criado o

47

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 2. ed. p. 4. 48

FLEISCHACKER, Samuel. Uma breve história da justiça distributiva. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 8. 49

DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 431. 50

Ibidem.

Conselho Nacional de Saúde, com a função de decidir “quais tipos de

tratamentos seriam necessários e apropriados e em que circunstâncias”. O

autor, todavia, demonstra sua inquietação sobre o plano quando questiona:

“como um órgão do governo com tamanha responsabilidade deveria tomar tais

decisões?”51

Nesse contexto, é consignada a existência de uma posição divergente,

no sentido da desnecessidade de racionamento da assistência médica, sob a

justificativa de que “se fossem eliminados os desperdícios e a ganância no

sistema de saúde dos Estados Unidos”, seria economizado o suficiente para

“dar às pessoas todos os tratamentos necessários”.52

Dworkin, entretanto, registra sua discordância desta posição e atribui os

gastos excessivos na assistência à saúde dos norte-americanos, de forma

preponderante, à avançada tecnologia dos meios diagnósticos e terapêuticos

incorporados ao sistema e afirma: “não podemos evitar a questão da justiça: o

que é um tratamento médico “apropriado” depende do que seria injusto

restringir com a desculpa do custo”.53

Então, é introduzido o conceito do “princípio do resgate”, segundo o qual

os médicos, na opinião do autor, ao fazerem “apologias a uma justiça ideal na

Medicina”, reforçam a premissa cartesiana de que a vida e a saúde são “os

bens mais importantes: todo o resto tem menor importância e deve ser

sacrificado em favor desses dois bens”.54

Dworkin estabelece que tal princípio ensejaria gastos até que não fosse

“mais possível pagar nenhuma melhora de saúde ou na expectativa de vida” e

“nenhuma sociedade sadia tentaria alcançar esse padrão”, sendo necessário

outro padrão de “justiça ideal na assistência médica”.55

Ao analisar a questão do seguro-saúde, Dworkin declara que ele “torna

as pessoas insensíveis” ao custo da assistência médica, e o “verdadeiro preço

51

Ibidem. p. 432. 52

DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 433-434. 53

Ibidem. 54

Ibidem. p. 435-436. 55

Ibidem.

do seguro é subsidiado pela nação”. E assim conclui seu pensamento, sobre o

tema:56

Nossas despesas médicas são, portanto, irracionais: o sistema faz para as pessoas as escolhas que elas não fariam sozinhas, e o resultado é que há um exagero no cálculo de nossos gastos coletivos, como deveria haver, com relação à quantidade de assistência médica que realmente queremos, em conjunto, pelo preço que queremos pagar.

O autor completa dizendo que os economistas conservadores

“aproveitam-se” desse fato e preconizam um “mercado livre” de assistência,

“para que as pessoas só possam ter a assistência médica que puderem pagar”.

Porém, discorda desse posicionamento, em virtude da realidade social dos

Estados Unidos: a distribuição de riquezas é “injusta”; as pessoas, em geral,

têm “informações insuficientes” sobre os riscos à saúde e a tecnologia médica

disponível e as companhias de seguro cobram prêmios mais altos (até

“proibitivos”) de pessoas com maiores riscos de saúde.57

Diante de tal análise, Dworkin anuncia seu ideal de justiça “mais

satisfatório” na assistência médica - o “seguro prudente” -, retomando seu

exercício de imaginação do início do livro: seu país seria transformado, de

forma a corrigir as distorções sociais supracitadas e a comunidade

transformada se ajustaria gastando de forma ideal e justa para obter sua

assistência à saúde, sem qualquer influência do Estado. Como decorrência

desse exercício, ele estabelece que a aplicação “justa” de recursos na saúde é

aquela que as pessoas “bem informadas” criam para si, desde que a

distribuição de riquezas na comunidade seja “justa”.58

Através do resultado obtido nesse modelo ideal, o autor crê ser possível

especular sobre qual assistência médica deve ser oferecida a todos “na nossa

comunidade imperfeita e injusta”. Enumerando várias possibilidades de

situações reais, em que aplicaria sua teoria do “seguro-prudente”, Dworkin

56

Ibidem.. p. 437. 57

DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 437. 58

Ibidem. p. 438-440.

conclui que, então, os limites impostos à cobertura universal da assistência

médica não seriam “transigências da justiça, mas exigidos por ela”.59

E resume assim sua teoria:60

O princípio do seguro prudente equilibra o valor estimado do tratamento médico com outros bens e riscos: presume que as pessoas talvez pensem que levam uma vida melhor quando investem menos em medicina duvidosa e mais para tornar a vida bem sucedida ou agradável, ou para proteger-se contra outros riscos, inclusive econômicos, que também possam arruinar sua vida.

Ele complementa esclarecendo que o órgão estatal com prerrogativa

para decidir “quais tipos de tratamentos seriam necessários e apropriados e em

que circunstâncias” deveria ser composto por médicos e especialistas da área

da saúde e por “leigos de diversas idades, de diversas partes do país e, se

possível, de estilos de vida diferentes” e suas decisões teriam que ser

periodicamente revistas. Adicionalmente, enfatiza a necessidade de consultar a

opinião pública sobre sua noção de prioridade, antes de serem tomadas as

decisões de racionamento.61

Em síntese, Dworkin sustenta que o “teste do seguro prudente” ajudaria

a responder as perguntas-chave da justiça: “quanto os Estados Unidos devem

gastar, no geral, em seu sistema de saúde? Quanto desse sistema deve ser

distribuído entre os cidadãos?” E arremata, com convicção: “o plano de saúde

elaborado para respeitar as decisões dos cidadãos como seguradores

prudentes é, de fato, igualitário”.62

A esta altura é interessante anotar que uma crítica frequentemente

dirigida ao modelo supra descrito é que ele só pode ser considerado válido

para sociedades “justas”, uma vez que estando presentes desigualdades

econômicas, elas se traduzem em inequidades nas condições de saúde: o

status econômico adverso de uma pessoa amplia seu risco de adquirir doenças

59

Ibidem. p. 444. 60

Ibidem. p. 446. 61

DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 447-448. 62

Ibidem. p. 446-449.

associadas a inadequações da dieta, a deficiências de saneamento básico, à

falta de acesso à atenção básica de saúde, entre outras circunstâncias, que

somente agravam a situação de injustiça material pré-existente.63

3. Breve análise do atual sistema de saúde dos Estados Unidos

Considerando que a obra de Dworkin, em relevo, tem como referencial o

sistema norte-americano de assistência à saúde, sob um viés notadamente

econômico, torna-se oportuna uma análise, ainda que perfunctória, de sua

realidade atual.

A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)

é uma entidade internacional que congrega trinta e quatro países

industrializados, com economia do mercado, da qual os Estados Unidos fazem

parte desde 1961.64

Segundo dados da OCDE, o sistema de saúde dos Estados Unidos, que

se caracteriza como um dos poucos países com predomínio da assistência

privada, é o mais caro do mundo e 31° melhor em cobertura e assistência à

população65. Em 2009, os gastos com o sistema somaram quase US$

8.000/habitante, equivalentes a 17,4% do Produto Interno Bruto (PIB) do país,

o que corresponde a mais de 2,5 vezes a média de investimentos de todos

países membros da Organização, superando em mais de um terço os gastos

da Noruega – segunda colocada no ranking.66

As causas para esses gastos exorbitantes foram analisadas pela OCDE

e os resultados foram extravagantes: em 2007, por exemplo, o custo de um

parto normal era 50% mais caro e uma prótese de quadril era 45% mais cara,

nos Estados Unidos, em relação à França e ao Canadá. Paralelamente, o custo

63

KURTULMUS, A.F.. Dworkin’s prudent insurance ideal: two revisions. Journal of Medical Ethics, 2012. v. 38. p. 243-246. 64

OECD. Members and partners. Disponível em: < http://www.oecd.org/about/membersandpartners/>. Acesso em 04 nov. 2012. 65

GLOBO.COM. Dez fatos sobre o sistema de saúde americano. Disponível em <http://oglobo.globo.com/mundo/dez-fatos-sobre-sistema-de-saude-americano-5342414#ixzz2BJC6heji>. Acesso em 04 nov. 2012. 66

OECD. Why is health spending in the United States so high? Disponível em: <http://www.oecd.org/els/healthpoliciesanddata/49084355.pdf>. Acesso em 04 nov. 2012.

dos medicamentos nos Estados Unidos foi de, pelo menos, 60% acima dos

cinco grandes países europeus.67

A partir de tais dados, inclusive considerando que o sistema de saúde

norte-americano não demonstra eficácia sequer proporcional à desmesurada

magnitude de seus gastos, torna-se possível a ilação de que tal sistema

congrega características extremamente peculiares que fogem ao padrão geral

de gastos no setor, como o observado em outros países, com realidades e

demandas sociais comparáveis, bem como análogo aparato tecnológico

médico / hospitalar.

Entre essas características específicas do sistema de saúde dos

Estados Unidos, podem-se colocar questões mais amplas e intangíveis,

histórica e ideologicamente definidas, associadas ao âmbito da política

econômica liberal e, até mesmo, vinculadas a práticas capitalistas extremadas.

Sendo assim, a proposta de Dworkin, em A virtude soberana, precisaria

ser cuidadosamente revista, sob a óptica de uma justiça distributiva

contextualizada para o sistema de saúde atualmente disponível nos Estados

Unidos, para que não reforce, de forma simplista, o liberalismo econômico,

valorizando o individualismo, em detrimento da assistência à saúde oferecida a

todos os cidadãos daquele país, que ainda vive, hodiernamente, uma grave

crise econômica, com escassez de empregos e de eficácia do Estado, na

medida em que as estimativas são de 50 milhões de pessoas não são

assistidas por nenhum seguro-saúde.68

É interessante, também, observar que em Justice for Hedgehogs,

publicado em 2011, Dworkin enquanto declara que, nos Estados Unidos, a

distância entre pobres e ricos têm aumentado de forma implacável e que as

teorias de justiça distributiva precisam ser reformuladas em sociedades

capitalistas “avançadas”, não deixa de ressaltar sua discordância quanto à

67

Ibidem. 68

GLOBO.COM. Dez fatos sobre o sistema de saúde americano. Disponível em <http://oglobo.globo.com/mundo/dez-fatos-sobre-sistema-de-saude-americano-5342414#ixzz2BJC6heji>. Acesso em 04 nov. 2012.

caracterização feita por Amartya Sen, no sentido do “transcendentalismo” das

teorias da justiça descritas por autores como ele próprio e Rawls.69

Talvez, não por acaso, é fato que em 28 de junho de 2012, a Suprema

Corte norte-americana decidiu, em apertada maioria, pela constitucionalidade

da reforma no sistema de sáude proposta pelo presidente Barack Obama - o

Affordable Care Act. A principal questão analisada foi a previsão da “obrigação

individual” (individual mandate) que, a partir de 2014, exige que os cidadãos

(observadas exceções) adquiram um plano de saúde privado, caso não sejam

enquadrados como beneficiários de um dos programas do sistema público de

saúde, tornando compulsória uma cobertura médica mínima, pública ou

privada, com previsão do pagamento de multas progressivas para o cidadão

que não cumprir sua “obrigação”.70

Neste ponto torna-se pertinente uma digressão sobre o poder do Estado,

em um contexto liberal democrático, no que tange à liberdade individual e ao

próprio ideal de igualdade.

A doutrina liberal entende que a igualdade não é somente compatível

com a liberdade, como é por ela solicitada. Desde as origens do Estado liberal,

a igualdade inspira dois princípios fundamentais: a igualdade perante a lei e a

igualdade dos direitos. Este último, inclusive, é enunciado no art. 1º da

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789.71

Paulo Bonavides, todavia, salienta que o liberalismo contemporâneo,

“realmente democrático”, não pode ser aquele da Revolução Francesa,

devendo ser acrescido de “elementos de reforma e humanismo com que se

enriquecem as conquistas doutrinárias da liberdade”, assim explicando:72

Recompô-lo em nossos dias, temperá-lo com os ingredientes da socialização moderada, é fazê-lo não apenas jurídico, na

69

DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge: Harvard University Press, 2011. p. 350-352. 70

BALIARDO, Rafael, MELO, João Ozorio de. Obamacare é constitucional, diz Suprema Corte dos EUA. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-jun-28/suprema-corte-eua-mantem-lei-reforma-sistema-saude>. Acesso em 06 nov. 2012. 71

BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. 6. ed. 6. reimp. São Paulo: Brasiliense, 2006. p. 39-40. 72

BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 62.

forma, mas econômico e social, para que seja efetivamente um liberalismo que contenha a identidade do Direito com a Justiça.

Bobbio prossegue enfatizando que “a igualdade nos direitos compreende

a igualdade em todos os direitos fundamentais enumerados numa Constituição”

e, portanto, “são fundamentais os direitos que numa determinada Constituição

são atribuídos a todos os cidadãos indistintamente, em suma, aqueles diante

dos quais todos os cidadão são iguais”.73

Sobre a liberdade, como um direito negativo, Canotilho descreve que,

através dela, “visa-se defender a esfera dos cidadãos perante a intervenção do

Estado”.74

No mesmo sentido, Bobbio explica que, na doutrina liberal, liberdade é

entendida em relação ao Estado, protegendo o indivíduo dos abusos do

poder.75 E complementa:” (...) Estado liberal é aquele no qual a ingerência do

poder público é a mais restrita possível (...)”.76

Ante o exposto sobre o binômio liberdade - igualdade, faz-se mister

refletir sobre a legitimidade da posição do Estado definindo, de forma

compulsória, que o cidadão “contrate” um seguro-saúde.

Nesse contexto, o editor do periódico norte-americano The Washington

Times escreveu que “os amantes da liberdade estão em pânico” com a decisão

da Suprema Corte dos Estados Unidos, na medida em que respaldou o poder

do Estado em relação ao cidadão, obrigando-o a adquirir um produto ou

serviço, justamente naquela que costumava ser a “Terra da Liberdade”.77

Diante de tal situação fática, torna-se inevitável apresentar algumas

indagações, ou mesmo inquietações: como será viabilizado o acesso à

73

BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. 6. ed. 6. reimp. São Paulo: Brasiliense, 2006. p. 41. 74

CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 395. 75

BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. 6. ed. 6. reimp. São Paulo: Brasiliense, 2006. p. 20. 76

Idem. Teoria Geral da Política. A filosofia política e as lições dos clássicos. São Paulo: Elsevier, 2000. p. 101. 77

DECKER, B. M.. Obamacare and the death of liberty. Disponível em: <http://www.washingtontimes.com/news/2012/jun/28/obamacare-and-the-death-of-liberty/#ixzz2ByzdZ6jR>. Acesso em 12 nov. 2012.

assistência à saúde daquele que não dispuser dos meios para cumprir tal

determinação? Não seria cabível a consideração acerca de

corresponsabilidade do Estado na gênese de tal indisponibilidade? Em caso

positivo, é razoável aceitar como justa a simples transferência da

responsabilidade do Estado para o cidadão, exigindo que ele disponha de

meios próprios para assegurar seu direito? Quais seriam os parâmetros de

racionamento do direito à assistência à saúde aceitáveis perante a justiça

distributiva?

4. Aplicabilidade da teoria de Dworkin ao sistema de assistência à

saúde no Brasil

No Brasil, a Constituição Federal de 1988, ao estatuir o conceito de

saúde como um direito fundamental, assim o fez:78

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas públicas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (g.n.)

Portanto, a Constituição Federal definiu o protagonismo do Estado na

assistência à saúde dos cidadãos brasileiros, reservando às instituições

privadas uma participação, tão somente, complementar ao sistema único de

saúde (SUS), conforme o estatuído no art. 198.79

O SUS consolidou-se nas últimas duas décadas como a maior política

de Estado nesse país de dimensão territorial ímpar, com o princípio da

universalidade assegurando a todos, sem nenhum tipo de restrição, ou

“racionamento”, o direito à saúde.80

Entre os mais recentes resultados viabilizados pelo SUS pode-se citar a

redução da mortalidade infantil; a ampliação do número de consultas de pré-

natal; a erradicação do sarampo; a interrupção da transmissão da cólera e da

78

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em 04 nov. 2012. 79

Ibidem. 80

BRASIL. Sistema Único de Saúde. Brasília: CONASS, 2011. p. 28.

rubéola. O SUS também se consolidou como o principal fornecedor de

medicamentos e realizou mais de 90% do total de cerca de 20.000 transplantes

de órgãos realizados em 2009, colocando o Brasil em segundo lugar no

mundo, nesse ranking, em números absolutos.81

Entre as políticas desenvolvidas pelo SUS, inclusive com

reconhecimento internacional, destacam-se o Programa Nacional de Doenças

Sexualmente Transmissíveis e Síndrome da Imunodeficiência Adquirida

(AIDS), além de um dos mais completos e bem sucedidos programas de

imunização do mundo, garantindo elevados índices de cobertura vacinal, em

todos os segmentos populacionais.82

Não obstante todo esse desenvolvimento na assistência pública à saúde

no Brasil, nos últimos anos, os gastos totais com o sistema são bem distantes

daqueles descritos para os países desenvolvidos, notadamente dos Estados

Unidos, significando, em 2009, valores de US$ 943/habitante - o equivalente a

menos de um terço da média da OCDE.83

Nesse intervalo de tempo, o Brasil, que chegou a se consolidar como a

sexta economia do mundo, ultrapassando a do Reino Unido,84 manteve

investimentos da ordem de 9% de seu PIB (inferior à média da OCDE) no setor

de assistência à saúde.85

De forma adicional, ainda convivemos com reiterados flagrantes

escabrosos de situações que evidenciam a inconsistência dos argumentos de

escassez de recursos financeiros para manter o SUS no Brasil, que

frequentemente ensejam alusão à ficta pertinência da denominada “teoria do

possível”, tão somente comprovando a magnitude da prática de má gestão, no

âmbito do Poder Executivo pátrio.

81

Ibidem. p. 28-29. 82

Ibidem. p. 29. 83

OECD. Why is health spending in the United States so high? Disponível em: <http://www.oecd.org/els/healthpoliciesanddata/49084355.pdf>. Acesso em 04 nov. 2012. 84

COSTA, Ana Clara. PIB fraco faz Brasil perder posto de 6ª economia do mundo. Disponível em: <http://exame.abril.com.br/economia/noticias/pib-fraco-faz-brasil-perder-posto-de-6a-economia-do-mundo>. Acesso em 05 nov. 2012. 85

OECD. Why is health spending in the United States so high? Disponível em: <http://www.oecd.org/els/healthpoliciesanddata/49084355.pdf>. Acesso em 04 nov. 2012.

Apenas a título de exemplo, conforme publicação datada de 11 de

novembro de 2012, segundo dados do Ministério da Saúde, desde 2003 foram

transferidos R$ 1,03 bilhão aos Estados e municípios brasileiros para

programas de tratamento e prevenção da AIDS, porém, R$ 161 milhões (15,6%

do total) não foram usados. Deve ser enfatizada a informação de que, a cada

ano, mais de 11 mil soropositivos morrem em nosso país e o número de mortes

por AIDS no Brasil tem se mantido estável desde 1998, enquanto no mundo

todo caiu, em média, 24% entre 2005 e 2011. Também é de se notar a

“simplicidade” da solução proposta para o caso em tela:86 “a partir de outubro

deste ano, a Comissão Intergestora Tripartite do SUS, que reúne 21

representantes do Ministério da Saúde, Estados e municípios, passou a discutir

o que fazer com o dinheiro que não foi usado”, como se a referida verba não

tivesse destinação juridicamente pré-estabelecida, de forma compulsória.

Outro aspecto a ser analisado, diante do pensamento de Dworkin sobre

a justiça distributiva, em relação ao seguro-prudente, é a questão da escolha.

Ele define que as pessoas “bem informadas” devem ser “responsáveis por suas

escolhas”. Nesse contexto, parece haver espaço para uma reflexão sobre a

real possibilidade de uma massa de cidadãos sem acesso à educação mínima,

muitas vezes portadores de sérias restrições cognitivas, tomarem decisões

embasadas em avaliações minimamente conscientes, sopesando

adequadamente a relação risco / benefício acerca do seu investimento pessoal.

Segundo dados do último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística (IBGE), no Brasil há cerca de 14 milhões de analfabetos (taxa de

9,6%), na faixa etária acima de 15 anos de idade.87 Apenas para efeito de

raciocínio sobre a magnitude da tragédia educacional / cognitiva em nosso

país, cabe o registro de que, de acordo com dados do Banco Mundial, em

86

BALZA, Guilherme. Em 10 anos, Estados e municípios deixam de usar R$ 160 milhões em programas de combate à Aids. Disponível em: < http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/11/11/em-10-anos-estados-e-municipios-deixam-de-usar-r-160-milhoes-em-programas-de-combate-a-aids.htm>. Acesso em 12 nov. 2012. 87

BRASIL. Censo 2010: cai taxa de analfabetismo no país. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/noticias/arquivos/2011/11/16/censo-2010-cai-taxa-de-analfabetismo-no-pais>. Acesso em 09 jul 2012.

2009, a taxa de analfabetismo no Zimbábue, país africano com PIB per capita

igual a 5% do brasileiro, era de 8,14%.88

Tal situação é bem diversa daquela descrita nos Estados Unidos, onde

foi descrita, em 2011, uma taxa de analfabetismo de 1%.89

Assim, a simples transferência da responsabilidade sobre a assistência à

saúde do Estado para o cidadão, no Brasil, pode ensejar consequências

funestas e até irreversíveis para nossa sociedade como um todo.

Conclusão

Dworkin, ao tensionar os parâmetros de justiça distributiva preconizados

por Rawls, pode ter se afastado do bem-estar social a ser alcançado pelo

Estado, em um contexto de equidade, cabível no âmbito das políticas públicas

de saúde, admitindo, inclusive, restrições a diretos de cidadania, como a

liberdade, por exemplo.

O modelo proposto através de uma concepção do “seguro prudente”

parece ter sido considerado apropriado ao sistema do liberalismo norte-

americano, a se considerar a posição adotada pela Suprema Corte daquele

país.

Todavia, é inequívoca a percepção de que não há nenhum parâmetro

comparativo racional que permita uma aproximação entre o sistema de

assistência à saúde vigente nos Estados Unidos e aquele praticado no Brasil,

atualmente.

Portanto, resta claro que seria necessário, de fato, um real esforço

“hercúleo” para visualizar alguma eventual pertinência da aplicabilidade direta

da tese de Dworkin, descrita no presente texto, à política de assistência à

saúde da República Federativa do Brasil.

Referências

88

MONTEIRO, André. Analfabetismo cai no Brasil, mas ainda é maior que no Zimbábue. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/saber/1007173-analfabetismo-cai-no-brasil-mas-ainda-e-maior-que-no-zimbabue.shtml>. Acesso em 06 nov. 2012. 89

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RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 2. ed. 708 p.

CAPÍTULO 4: O PENSAMENTO DE RAWLS APLICADO À

REALIDADE CONSTITUICIONAL BRASILEIRA: A QUESTÃO DO

PLURALISMO

José Wilson Ferreira Lima90

RESUMO

O presente artigo aborda aspectos pontuais da Teoria de Rawls

aplicados à Constituição Federal brasileira. Em especial, traça uma linha de

abordagem a partir da perspectiva política da justiça tratada em "Uma Teoria

da Justiça" (1971), de John Rawls, como também analisa e aponta como a

teorização de Rawls encontra ressonância, em parte, com a realidade

constitucional brasileira, notadamente quanto à diretriz que assegura o

pluralismo político, como um preceito fundamental.

Palavras-chave: Teoria Constitucional. Pluralismo. Preceito

Fundamental.

ABSTRACT

This article discusses specific aspects of Rawls's Theory applied to the

Brazilian Federal Constitution. In particular, it draws a line of approach from the

perspective of political justice addressed in "A Theory of Justice" (1971), John

Rawls, as well as analyzes and points of Rawls theory resonates in part with

reality Brazilian Constitution, particularly regarding its guideline that ensures

political pluralism as a fundamental precept.

Keywords: Constitutional Theory. Pluralism. Fundamental Precept.

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal brasileira é genericamente explícita quanto aos

princípios e fundamentos adotados, que regem as relações do Estado, interna

90

Aluno do Curso de Mestrado Acadêmico do Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP.

e externamente, com os seus cidadãos e também com todos os demais entes

públicos e privados com os quais a República Federativa do Brasil mantém

vínculos.

Chamados de "Princípios Fundamentais", eles se desdobram em

fundamentos (art. 1º e 4º) e em objetivos (art. 3º), e são seguidos por um

catálogo de direitos e de garantias fundamentais (art. 5º), que foram

positivados pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro (BRASIL, 2011).

A Constituição Federal, considerada em sua inteireza, reúne outros

vários princípios que se prestam à caracterização do perfil do Estado e da

sociedade brasileira, o que decorre não só da compreensão do texto (análise

literal), como também do contexto constitucional em que se encontram

inseridos. Entre eles, há de se destacar o pluralismo político (art. 1º, V), a

liberdade de crença (art. 5º, VI) e a liberdade de convicção filosófica ou política

(art. 5º, VIII),91 como importantes vetores de política do Estado, que disciplinam

as relações públicas para com os indivíduos e garantem seus direitos mais

essenciais.

Neste artigo, algumas reflexões sobre esses princípios evidenciarão a

correlação que guardam, a partir da dimensão constitucional que ocupam, com

a linha de abordagem na perspectiva política da justiça tratada em "Uma Teoria

da Justiça" (1971), de John Rawls, onde o autor enfoca o Estado organizado a

partir de uma visão de equidade e de justiça social, considerados como seus

parâmetros fundamentais:

A teoria da justiça como eqüidade foi apresentada por John Rawls em 1971, com a publicação da obra A Theory of Justice, que estabeleceu um novo marco em filosofia política na segunda metade do século XX, no mundo ocidental. Sua teoria da justiça como equidade parte de um pressuposto ético motivacional, com a pergunta pelas razões para o

91

Não apenas estas, mas também outras várias disposições constitucionais consagram e reafirmam o pluralismo, de que são exemplos: o princípio da autodeterminação dos povos (art. 4º, III), o do repúdio ao terrorismo e ao racismo (art. 4º, VIII), o da concessão de asilo político (art. 4º, X), a livre manifestação do pensamento (art. 5º, IV), a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (art. 5º, IX), a de reunião (art. 5º, XVI), a de associação para fins lícitos (art. 5º, XVII), a de criação de associações (art. 5º, XVIII), a não extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião (art. 5º, LII), a liberdade de associação profissional ou sindical (art. 8º) e a de filiação (art. 8º, V), a liberdade de comunicação social (art. 220) etc.

compromisso enquanto membro de uma comunidade moral, defendendo a tese da co-originalidade de liberdade (liberty) e igualdade (equality) em uma sociedade marcada pelo pluralismo razoável (reasonable pluralism) de doutrinas abrangentes (compreensive doctrines), visando fornecer uma orientação filosófica e moral para as instituições democráticas (SILVEIRA, 2007, p.169-170).

O que Rawls propôs em seus estudos filosóficos foi a conformação de

um modelo estatal baseado na justiça e na equidade, capaz de se opor às

violações às liberdades fundamentais, propiciar a eliminação das diferenças

entre os indivíduos e permitir o desenvolvimento e a prosperidade de todos.

Como questão central, Rawls lançou uma nova proposta de abordagem

ao modelo político, com o envolvimento participativo mais intenso da sociedade

na seara política. Ele buscou estabelecer princípios que formariam a base de

todo o Estado. No passo seguinte, com esses princípios e mais um catálogo

abrangente de direitos e deveres, entendeu ser possível a organização de uma

sociedade mais justa. Com o passar do tempo, Rawls (2000, p. 201) fez

algumas "atualizações" na sua proposta original: "[...] farei algumas

observações gerais sobre a maneira pela qual encaro atualmente a concepção

de justiça que eu havia denominado 'teoria da justiça como equidade' em meu

livro Uma teoria da justiça".

Rawls produziu, posteriormente, entre outros novos trabalhos, dois

importantes artigos: a) A teoria da justiça como equidade: uma teoria política, e

não metafísica (2000, p. 197-241) e b) O campo do político e o consenso por

justaposição (2000, p. 333-372), os quais deram suporte à ideia central do

presente artigo, cujo objetivo é analisar e apontar como a teorização de Rawls

encontra ressonância, em parte, com a realidade constitucional brasileira,

notadamente quanto à diretriz que assegura o pluralismo político, como um

preceito fundamental.

2 PLURALISMO: UM CONCEITO

É intuitivo o sentido positivo que o termo pluralismo encerra,

especialmente porque sugere a reunião ou a aproximação de muitos

indivíduos. O pluralismo é, por assim dizer, uma concepção, uma forma própria

de enfocar e qualificar a sociedade:

Na linguagem política chama-se assim a concepção que propõe como modelo a sociedade composta de vários grupos ou centros de poder, mesmo que em conflito entre si, aos quais é atribuída a função de limitar, controlar e contrastar, até o ponto de o eliminar, o centro de poder dominante, historicamente identificado com o Estado (BOBBIO, 1998, p. 928).

O pluralismo, enquanto expressão de pensamento, atua de modo a se

opor às formas de concentração e de unificação do poder. Sua importância

revela-se na medida em que se reconhecem as inúmeras formas e atividades

presentes no meio social, que disputam o poder, buscando fazer prevalecer

suas próprias doutrinas, como as políticas, religiosas, filosóficas, econômicas e

sociais, entre outras.

É importante pontuar que, embora diversas, as várias doutrinas

existentes podem se compatibilizarem e coexistirem, formando uma sociedade

plural:

[...] as propostas das doutrinas pluralistas são perfeitamente compatíveis, já com as propostas da doutrina constitucionalista, uma vez que a divisão horizontal do poder não obsta, mas integra a divisão vertical, já com as da doutrina liberal, visto a limitação da ingerência do poder estatal constitui, de per si, condição de crescimento e desenvolvimento dos grupos de poder diversos do Estado, já com as da doutrina democrática, pois a multiplicação das associações livres pode constituir um estímulo e uma contribuição para o alargamento da participação política. Todas elas são compatíveis, porquanto visam ao mesmo alvo comum: o Estado como único centro de poder (BOBBIO, 1998, p. 928).

3 PLURALISMO POLÍTICO

Um sistema com vários partidos políticos é um sistema que adota o

regime do pluralismo político, ou pluripartidarismo, que correspondente,

portanto, à existência de vários partidos, todos legítimos representantes do

povo, na perspectiva do Estado democrático. Sendo assim, pode-se dizer que

os partidos políticos devem representar a vontade popular. E é nisso que

consiste a essência da democracia: permitir que todos participem

igualitariamente dos rumos da política, da sociedade e do próprio Estado.

No Estado democrático, como o é a República Federativa do Brasil, a

Constituição é o instrumento que permite a realização da democracia, o que

guarda perfeita adequação à noção de justiça política delineada por Rawls

(2008, p. 273), segundo o qual a Constituição "deve ser um procedimento justo

que satisfaça as exigências da liberdade igual", como também "deve ser

estruturada de modo que, dentre todos os arranjos justos viáveis, seja aquele

que tem maiores probabilidades de resultar num sistema de legislação justo e

efetivo".

No regime democrático, onde a democracia pode ser entendida como

"um sistema de organização política em que a direção geral dos interesses

coletivos compete à maioria do povo" (MALUF, 1988, p. 289), o interesse da

maioria (vontade) deve mesmo ser representado por grupos ou associações

(partidos), que mantenham uma linha de pensamento ou de ideologia comum

(internamente), mas que, ao mesmo tempo, permita a coexistência de várias

linhas distintas de pensamento (externamente), equalizáveis por meios

razoáveis de entendimentos, evitando-se que haja conflitos violentos.

Objetivamente, na República Federativa do Brasil, exige-se que os

partidos políticos, representantes da vontade popular, tenham caráter nacional

(art. 17, I) (BRASIL, 2011), o que confirma e reforça a pretensão de que sejam

representantes do povo em toda extensão do território nacional, vedando-se,

portanto, a representação de pequenos grupos ou facções com pretensões

políticas oligárquicas. Lembre-se: "Se oligárquicos, os partidos deformarão

completamente o sistema" (FERREIRA FILHO, 2001, p. 124).

Digno de registro, é que o pluralismo partidário corresponde ao ideal

democrático de iguais oportunidades para todos os indivíduos, na medida em

que, fomentando a produção de novas ideias de cunho político, permita os

avanços sociais almejados, senão por todos, mas ao menos pela maioria.

Desse modo, o pluralismo há de ser considerado um "sistema político

dentro do qual se permite a criação de inúmeros partidos" (NETO, 2006, p.

204) e, para além de um mero sistema, há de ser também o meio por

intermédio do qual as pessoas que tenham as mesmas "concepções" sobre

questões de interesse geral, possam se expressar.

Conceitualmente, partido político pode ser entendido como:

[...] associação voluntária de pessoas, com determinada ideologia e programa, com a intenção de conquistar total ou parcialmente o poder, possivelmente mediante meios constitucionais, e satisfazer os interesses de seus membros (FERREIRA, 1989, p. 320).

Para Rawls (2008, p. 8), a justiça deve ter como principal objeto "o modo

como as principais instituições sociais92 distribuem os direitos e os deveres

fundamentais e determina a divisão das vantagens decorrentes da cooperação

social". Nessa ordem de ideias, é perceptível que o sistema de justiça que

propõe somente pode se tornar viável na esfera de um ambiente social

ajustável às diferenças, a partir do reconhecimento da necessidade de se dar a

todos o tratamento mais igualitário possível. Naturalmente, esse ambiente

social somente pode ser alcançável no contexto de um regime constitucional

democrático, assim considerando que: "Democracia é o império da opinião

pública" e ainda que "Democracia sem liberdade participativa, democracia não

é; democracia sem justiça social de massas, democracia não pode ser"

(FERREIRA, 1989, p. 36).

A justiça em questão deverá não apenas zelar pela proteção dos direitos

dos iguais, mas ao mesmo tempo permitir que os indivíduos considerados

"desiguais" possam também fruir de todos os benefícios propiciados pelo

sistema. Vale dizer: "A justiça de um arranjo social depende, em essência, de

como se atribuem os direitos e os deveres fundamentais e também das

oportunidades econômicas e das condições sociais dos diversos setores da

sociedade" (RAWLS, 2008, p. 9).

Por assim entender, Rawls (2008, p. 73) lançou mão de dois princípios

que formam a essência de seu pensamento quanto à justiça:

Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais extenso de iguais liberdades fundamentais que seja compatível com um sistema similar de liberdades para as outras pessoas. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem estar dispostas de tal modo que tanto (a) se possa razoavelmente

92

Rawls relaciona a proteção jurídica da liberdade de pensamento e da liberdade de consciência, mercados competitivos, a propriedade privada dos meios de produção e a família monogâmica como exemplos de instituições sociais importantes.

esperar que se estabeleçam em benefício de todos como (b) estejam vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos.

Esse dois princípios formam a base de uma especial concepção política

de justiça, que se pode explicar da seguinte maneira: "Todos os valores sociais

– liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases sociais do auto-

respeito – devem ser distribuídos de forma igual, a não ser que uma

distribuição desigual de um ou de todos esses valores seja vantajosa para

todos" (RAWLS, 2008, p. 75).

Mas porque o interesse numa concepção política de justiça? Para Rawls

(2000, p. 274), concepção política é um "quadro que guia a deliberação e a

reflexão" e "ajuda a alcançar um acordo político que incide pelo menos sobre

as exigências constitucionais essenciais.". Desse modo, pode-se extrair que a

concepção política de justiça deve albergar todo um regime de deliberações e

reflexões, que podem ser seguidas – ou não – de um acordo político, forjado

sempre em atendimento aos valores constitucionais mais fundamentais, entre

os quais se destacam: a liberdade e a igualdade.

Essa percepção quanto ao trato da justiça social, conduzida a partir de

uma visão mais igualitária dos indivíduos, se ajusta perfeitamente aos

delineamentos da democracia moderna, notadamente por se encontrar

lastreada por um conjunto de ideias e propostas de acordos, seladas entre

vários partidos que formam a base política do Estado brasileiro93, mesmo

considerando a carência de unanimidade de entendimento em inúmeras

questões ligadas aos interesses gerais do Estado, da sociedade e dos

indivíduos.

De forma ampla, e ainda que não unânime, as aspirações sociais e

individuais, traduzidas sob a forma de acordos políticos, têm se concretizado

de modo a atender os interesses dos blocos que formam a maioria política,

mas sem desprestigiar os interesses da minoria. Nessa linha de entendimento,

portanto, há que se acolher a democracia como "o governo constitucional das

maiorias, que, sobre a base da liberdade e igualdade, concede às minorias o

93

Atualmente, existem 30 (trinta) partidos políticos registrados no Tribunal Superior Eleitoral (Cf. http://www.tse.jus.br/partidos/partidos-politicos).

direito de representação, fiscalização e crítica no Parlamento" (FERREIRA,

1989, p. 37).

A possibilidade de participação das minorias, às vezes determinando a

direção do acordo em favor do bloco político de centro, de esquerda ou de

direita, às vezes lançando apenas novas propostas para discussão, já se

mostra uma vantagem bastante considerável, na perspectiva de que em todos

os casos as minorias têm assegurado o direito de participação no debate

político. Entretanto, o que não se pode é confundir o justo direito das minorias,

com a ilusória representação de partidos oligárquicos:

Dominados por pequenos grupos, servirão eles, sobretudo, para propiciar uma influência desmedida aos militantes que os controlam. Esses políticos, por assenhorearem-se da máquina partidária, poderão a seu bel-prazer e segundo seus interesses, raramente coincidentes com o interesse comum, escolher candidatos, predeterminando forçosamente a escolha popular, impor diretrizes cujo cumprimento a fidelidade partidária tornará obrigatório (FERREIRA FILHO, 2001, p. 124).

Na dicção de Rawls (2000, p. 204), a concepção da justiça, enfocada

pelo viés político: "[...] deve ter em conta uma diversidade de doutrinas e a

pluralidade das concepções do bem que se defrontam e que são efetivamente

incomensuráveis entre si, sustentadas pelos membros das sociedades

democráticas existentes".

Por certo o pluralismo, diante do cenário atual da organização do Estado

e da sociedade brasileira, é o mecanismo que melhor se adéqua e responde

aos propósitos do regime constitucional democrático, inclusive fortalecendo-o.

Naturalmente, por óbvio, pode a decisão da maioria, tomada num ambiente

pluralmente concebido, em que há ampla liberdade de opções políticas,

religiosas e filosóficas, não ser a melhor decisão ou a decisão mais justa.

Todavia, o ambiente livremente plural permite, aos menos, a exposição e a

discussão mais aprofundada de importantes questões que tenham sido

apresentadas por todos os segmentos sociais, inclusive os que representam os

grupos minoritários.

Nesse contexto, é de grande relevância ter em consideração que a

pluralidade política requer que igualmente se tenha assegurada a liberdade à

pluralidade religiosa e à filosófica, de modo a conferir o igual respeito a que

todos os atores sociais possam participar do processo decisório, em quaisquer

das instâncias públicas, que exerçam alguma forma de controle social.

Pensar de maneira diversa, como inadmitir, por exemplo, manifestações

de apreço a teses religiosas diversas daquelas professadas pela maioria,

conduziria, forçosamente, à negação do pluralismo político, como preceito

fundamental consagrado na Carta Política do Estado brasileiro. Diga-se o

mesmo quanto a qualquer forma de restrição ou de negação a posições

ideológicas ou filosoficamente opostas àquelas adotadas pela maioria.

A título de exemplo, é suficiente destacar a ausência de concordância

sobre qual o sentido da democracia, embora esteja ela extraordinariamente em

alta em todo o mundo (DWORKIN, 2005, p. 501). Considere, portanto, que a

discordância geral sobre democracia num ambiente plural nada mais é que

uma específica forma de manifestação da própria democracia e também um

exercício da liberdade, que pode se desdobrar nas vertentes físicas, de

expressão, de pensamento, de arte etc.

Seguindo por esse viés, o que se poderia entender por democracia

noutro ambiente, que fosse, por exemplo, unipartidário, avesso à liberdade

religiosa e às convicções filosóficas diversas, senão aquelas professadas

unicamente pelo partido ou pelo grupo que controlasse o Estado? (considere,

neste caso, por exemplo, o momento em que a igreja atuou como agente

inquisidor).

Importante pressuposto para a compreensão da democracia é o de que

ela "significa governo exercido pelo povo, e não por alguma família, classe

social, tirano ou general", do que resulta claro que o "ideal democrático

repousa na compatibilidade entre a decisão política e a vontade da maioria, ou

pluralidade de opinião" (DWORKIN, 2005, p. 502).

Tudo isso conduz à possível conclusão de que o "Estado é democrático,

[...], até o ponto em que o governo aprova as leis ou procura exercer a política

que tenha, na época, a aprovação do maior número de cidadãos" (DWORKIN,

2005, p. 502).

O "fato do pluralismo", a que Rawls (2000, p. 252) concebe como

diversidade de doutrinas, não é, para ele, uma simples condição histórica, na

medida em que ele a tem como característica permanente da cultura pública

das democracias modernas: "Nas condições políticas e sociais garantidas

pelos direitos fundamentais e pelas liberdades historicamente associadas a

esses regimes, a diversidade das opiniões é chamada a durar ou até mesmo a

se desenvolver."

Nesse contexto, Rawls (2000, p. 252) enfatiza que um "acordo público e

efetivável, baseado numa única concepção geral e abrangente, só poderia ser

mantido pelo uso tirânico do poder". No cerne desse debate, ao buscar uma

concepção da justiça, segundo a perspectiva política, Rawls (2000, p. 255).

adverte: "Esta não pode ser formulada nos termos de uma doutrina religiosa,

filosófica ou moral geral e abrangente, mas antes nos de certas intuições

fundamentais latentes no seio da cultura política pública de uma sociedade

democrática". Segundo Rawls (2000, p. 346), uma "doutrina é totalmente

abrangente se ela cobre todos os valores e virtudes reconhecidos no seio de

um mesmo sistema relativamente bem estruturado".

É dentro desse cenário que emerge do núcleo fundamental da

Constituição brasileira o pluralismo partidário, como forma ou instrumento hábil

a preservar a igualdade, reduzir as desigualdades e, sobretudo, permitir que os

mais diversos setores da sociedade se interrelacionem e se comuniquem,

independentemente das diversidades de suas doutrinas políticas, religiosas ou

filosóficas.

4 LIBERDADE DE CRENÇA RELIGIOSA

Como consectário lógico do pluralismo político, ex-surge da construção

constitucional a liberdade de crença religiosa, que está moldada no texto

normativo sob a forma de garantia da inviolabilidade de crença e do exercício

dos cultos religiosos, assim como a proteção aos locais onde se praticam os

cultos e suas liturgias (art. 5º, VI) (BRASIL, 2011).

Esse dispositivo assegura a justa e necessária garantia de que se ao

indivíduo foi consagrado o direito de participar ativamente dos rumos da

política, mediante a livre escolha de uma ideologia partidária, de modo a

exercer a vida política no meio social, com mais razão há de ser assistido

também do direito de livremente professar e praticar a religião de sua escolha,

ou ainda não estar obrigado a professar crença alguma. Sob esse enfoque,

pode-se "sustentar, numa certa medida, a doutrina da liberdade religiosa com o

apoio da liberdade de consciência igual para todos" (RAWLS, 2000, p. 270).

Doutrinariamente, a "liberdade religiosa consiste na liberdade para

professar fé em Deus" (MENDES; BRANCO, 2012, p. 365). Nessa perspectiva,

faz-se mister esclarecer: "A Constituição assegura a liberdade dos crentes,

porque toma a religião como um bem valioso por si mesmo, e quer resguardar

os que buscam a Deus de obstáculos para que pratiquem os seus deveres

religiosos" (MENDES; BRANCO, 2012, p. 364).

Rawls (2008, p. 260) entende que a "justiça com equidade oferece, [...],

argumentos fortes a favor da igual liberdade de consciência". Essa "igual

liberdade de consciência", como se pode inferir, é muito mais abrangente que

uma simples consciência política, projetando efeitos também no campo da

religião:

Parece que a liberdade igual de consciência é o único princípio que as pessoas presentes na posição original podem reconhecer. Não podem correr riscos que envolvam sua liberdade, permitindo que a doutrina religiosa ou moral predominante persiga ou reprima outras doutrinas se assim o desejar (RAWLS, 2008, p. 254).

Consequentemente, a justiça como equidade irradia efeitos para além

dos limites físicos, objetivamente determináveis, para ter ingresso no campo

metafísico, em que permite que o indivíduo possa ter paz espiritual,

professando ou não religião: "O Estado não se ocupa de doutrinas religiosas ou

filosóficas, e sim regula a busca de interesses espirituais e morais dos

indivíduos, de acordo com os princípios com os quais eles próprios

concordariam em uma situação inicial de igualdade" (RAWLS, 2008, p. 261).

Assim, considerando que há uma separação de finalidades entre o

Estado e o segmento religioso, é imperativo ter resguardado e bem

compreendido que o "Estado não pode favorecer nenhuma religião específica e

nenhuma penalidade ou incapacitação legal pode estar vinculada a uma dada

afiliação religiosa ou ausência dela" (RAWLS, 2008, p. 260-261). Entretanto,

ainda que assim se considere, não se pode olvidar que a atividade religiosa

sempre teve algum contato ou influenciou, de alguma maneira, o modo de ser

do Estado:

As condições históricas e sociais dos regimes democráticos modernos encontram sua origem nas guerras de religião que se seguiram à Reforma, no desenvolvimento do princípio de tolerância que ela acarretou e, por outro lado, na extensão da modalidade de governo constitucional e das economias ligadas a um vasto mercado industrial (RAWLS, 2000, p. 251).

Diante do atual cenário da organização política brasileira, é possível

constatar que há um considerável envolvimento de diversos segmentos

religiosos não apenas de forma difusa na sociedade, mas também com intensa

atuação na política e, diretamente, na própria estrutura do Estado. A propósito,

tem-se o caso do Partido Social Cristão, cujo estatuto encontra-se registrado

no Tribunal Superior Eleitoral, dispondo que se rege com fundamento na

doutrina Cristã:

[...] o Cristianismo, mais do que uma religião, representa um estado de espírito que não segrega, não exclui, nem discrimina, mas que aceita a todos, independentemente de credo, cor, raça, ideologia, sexo, condição social, política, econômica ou financeira (PCS, 2007, não paginado).

Referido partido político é um dos que têm representação no Parlamento

brasileiro e participa, entre outros vários, da Frente Parlamentar Evangélica do

Congresso94, a qual tem natureza jurídica de associação civil, não

governamental, e representa as diversas denominações evangélicas no

Congresso Nacional, sendo integrada por deputados federais e senadores.

Com efeito, tanto quanto é reconhecida a pluralidade partidária como um

dos fundamentos do Estado brasileiro, é igualmente reconhecido em favor do

94

Sobre a Frente Parlamentar Evangélica do Congresso confira-se em: http://www.mjcp.com.br/noticia.php?id=162

indivíduo, diretamente, em nome da democracia, a liberdade de alguém ter e

manter sua fé, segundo uma doutrina religiosa qualquer, ou mesmo sem fé

alguma:

A lei protege o direito de imunidade no sentido de que a apostasia não é reconhecida e muito menos punida como uma transgressão, assim como não o é o fato de não se ter religião nenhuma. É dessas maneiras que o Estado preserva a liberdade moral e religiosa (RAWLS, 2008, p. 261).

5 LIBERDADE DE CONVICÇÃO FILOSÓFICA

Também a liberdade de convicção filosófica apresenta-se como um

importante direito positivado e resguardado em nível constitucional, na medida

em que possibilita o desenvolvimento de ideias dentro de um ambiente plural e

ao mesmo tempo livre de opressões.

A adoção de um sistema livre, que permite que o debate de questões

polêmicas possa se realizar sem prejuízo aos direitos individuais fundamentais,

reforça significativamente os valores da liberdade e da igualdade, a que todos

aspiram.

Em verdade, nenhuma garantia de liberdade física seria autêntica e útil

se não acompanhada, também, da liberdade de expressão de ideias, de

pensamento e de defesa de pontos de vistas. Uma convicção filosófica que não

pudesse ser expressada e defendida não permitiria qualificar o Estado como

"de Direito"; de igual modo, não haveria "Estado de Direito" se os

antagonismos e as divergências não pudessem ter espaço livre para o debate.

Modernamente, existem "espaços" suficientemente abertos e

qualificados para a exposição de novas propostas filosóficas, como o são, por

exemplo, o ambiente acadêmico, o artístico e o religioso. Com efeito, o "espaço

público", onde se desenvolvem os diversos acordos políticos, não poderia se

furtar da responsabilidade de garantir não apenas a formal liberdade das

manifestações filosóficas, mas também garantir meios adequados ao pleno

exercício dessa liberdade, traduzida constitucionalmente como uma variante do

direito real de expressão.

O direito à livre convicção filosófica, tratado no catálogo constitucional de

direitos fundamentais (art. 5º, VIII), não é condicionado, mas permite que o

Estado possa, por exemplo, atribuir serviço alternativo aos que invocarem o

imperativo de consciência, na perspectiva religiosa, filosófica ou política, para

se eximirem da prestação de atividades militares (art. 143, § 1º) (BRASIL,

2011). Nesse tópico, a Constituição resguardou a "objeção de consciência",

que, segundo Rawls (2008, p. 459), "não se fundamenta obrigatoriamente em

princípios políticos", podendo "fundamentar-se em princípios religiosos ou em

princípios que diferem da ordem constitucional".

Nessa ordem de ideias, é salutar que não se imponha ao indivíduo

nenhuma obrigação da qual possa resultar violações às suas próprias

convicções religiosas, filosóficas ou políticas. Mas, ao contrário, na medida em

que o indivíduo livremente aceite participar e integrar as ações do Estado, ele

deve observar e cumprir todas as diretrizes do encargo assumido, ainda que

isso venha em oposição às suas convicções, sejam elas quais forem.

O que pode parecer paradoxal, verdadeiramente não o é. A "livre

adesão" do indivíduo a qualquer tipo de atividade estatal ou privada, ainda que

isso venha em oposição à sua convicção filosófica, por exemplo, é mais uma

expressão de sua liberdade de escolha.

A rigor, convicções filosóficas, religiosas e políticas podem não ser

ajustáveis entre si, e quase sempre não são, o que impõe o cuidado de se

observar que "ao defender uma concepção política da justiça, corremos os

risco de ter de afirmar alguns aspectos, pelo menos, da nossa própria doutrina

religiosa ou filosófica abrangente" (RAWLS, 2000, p. 270).

Todavia, a liberdade de escolha, dentro de um conjunto de opções,

permite ao indivíduo adotar uma ou outra postura política, ainda que não

atenda plenamente aos seus preceitos religiosos, ou mesmo às suas

convicções filosóficas. Mesmo assim, o exercício da escolha conduz à

satisfação pessoal dentro de uma medida razoavelmente possível. Trata-se,

nesse caso, de uma opção adotada numa visão democrática de liberdade:

Numa sociedade livre, ninguém pode ser obrigado, como os primeiros cristãos o eram, a realizar atos religiosos, o que representa uma violação à liberdade moral, nem deve um soldado obedecer a comandos de inerente malignidade enquanto aguarda um recurso a uma autoridade superior (RAWLS, 2008, p. 462).

Nesse sentido, Rawls (2000, p. 202) enfatiza que "numa democracia

constitucional, a concepção pública de justiça deveria ser, tanto quanto

possível, independente de doutrinas religiosas e filosóficas sujeitas a

controvérsias", embora ressalve, mais adiante, que "a concepção política não é

considerada incompatível com os valores religiosos, filosóficos ou morais

básicos" (RAWLS, 2000, p. 276). Dentro desse campo de visão, percebe-se

que o instrumental constitucional brasileiro encontra-se afinado com a

perspectiva traçada por Rawls, uma vez que positivou e consagrou com o título

de direito fundamental, o direito ao livre exercício das ideais, num ambiente

plural, que permite a coexistência de várias doutrinas políticas, religiosas e

filosóficas, ou permite, ainda, o desinteresse por qualquer uma delas.

Um exemplo singular e bastante pragmático desse preceito e de sua

aplicação, encontra-se identificado na lei que fixou as diretrizes e bases da

educação brasileira, a qual apregoou que o ensino será ministrado tendo como

base o "pluralismo de idéias" (art. 3º, III) e o "respeito à liberdade e apreço à

tolerância" (art. 3º, IV) (BRASIL, 1996).

CONCLUSÃO

No contexto da temática aqui enfrentada, percebe-se que a Constituição

Federal (1988) encontra perfeita ressonância com o pensamento desenvolvido

por Rawls, na parte em que ela assegura, objetiva e expressamente, o direito

ao regime do pluripartidarismo político, assim como garante a liberdade

individual quanto às escolhas de doutrinas religiosas e filosóficas.

Se para Rawls (2008, p. 462) o regime democrático é "algo que

pressupõe a liberdade de expressão e de reunião e liberdade de consciência e

pensamento", para a Constituição Federal brasileira estes são princípios que

asseguram a existência e a manutenção do regime dos direitos fundamentais

do indivíduo.

Sem mais, considerando, ainda, que a "democracia é a ideologia do

nosso tempo, talvez não por convicção, nem por hábito, mas por falta de

alternativas" (ZAGREBELSKY, 2011, p. 36), não se pode deixar de concordar

que nestas poucas palavras há muita verdade, mas, ainda que se tenha em

vista a precariedade dos regimes constitucionais democráticos, estes são

sumamente necessários e ainda indispensáveis.

Verdadeiramente, seguindo na linha do pluralismo proposto por Rawls

(2000, p. 344), um regime democrático, duradouro e estável, que conte com o

apoio da maioria dos cidadãos "deve ser uma doutrina aceitável por uma

diversidade de doutrinas abrangentes, morais, filosóficas e religiosas". Com

efeito, o regime democrático brasileiro, constitucionalmente alicerçado, é o

melhor regime que se apresenta para o povo, em especial por ser um povo de

muitas culturas, muitas religiosidades, com diversos padrões morais,

intelectuais e políticos.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de política. Tradução de Carmem C.

Varriale et al. 11 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). 45. ed. São

Paulo: Saraiva, 2011.

BRASIL. Lei 9.394, de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação

nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm>.

Acesso em: 6 nov. 2012.

DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade.

Tradução de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 27.

ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

FERREIRA, Pinto. Comentários à constituição brasileira. São Paulo:

Saraiva, 1989.

MALUF, Sahid. Teoria geral do estado. 19. ed. São Paulo: Sugestões

Literárias, 1988.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet Branco. Curso de

direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

NETO, Manoel Jorge e Silva. Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2006.

PCS. Partido Social Cristão (2007). Estatuto do partido social cristão.

Disponível em: <http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/tse-estatuto-do-

partido-psc-de-1o-10-2007.2007>. Acesso em: 26 out. 2012.

RAWLS, John. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São

Paulo: Martins Fontes, 2000.

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Jussara Simões. São

Paulo: Martins Fontes, 2008.

SILVEIRA, Denis Coitinho. Teoria da justiça de John Rawls: entre o

liberalismo e o comunitarismo. Disponível em:

<http://www.scielo.br/pdf/trans/v30n1/v30n1a11.pdf>. Acesso em: 23 out. 2012.

ZAGREBELSKY, Gustavo. A crucificação e a democracia. Tradução de

Monica de Sanctis Viana. São Paulo: Saraiva, 2011.

CAPÍTULO 5: ORDEM DE CADASTRO DE ADOÇÃO CEDE

DIANTE DO MENOR INTERESSE DA CRIANÇA

Ana Carolina Figueiró Longo95

Introdução

Este é um trabalho reflexivo que resultou das discussões ocorridas no

curso de Teoria das Justiças, oferecido pelo Professor Álvaro Luis de A. S.

Ciarlini, no Programa de Mestrado em Constituição e Sociedade da Escola de

Direito do IDP.

As pesquisas e debatas em sala procuraram dar uma visão ampla e

panorâmica do problema da Justiça. Por isso, a bibliografia incluiu Hans

Kelsen, John Rawls, Ronald Dworkin e Habermas e dentro deste contexto

buscou-se o sentido do justo.

A reflexão que proponho, aqui, fundada nesta análise dos textos

consultados durante o curso e a respeito da justiça das decisões judiciais.

Refletir sobre a possibilidade de se atribuir o valor de justiça a um provimento

jurisdicional. Refletir se há um ideal de justiça a que a atuação jurisdicional está

vinculada e se é possível definir, a priori, a justiça ou injustiça.

Relevante registrar, que o presente artigo não tem a pretensão de

esgotar o conteúdo da doutrina de cada um dos autores apresentados, mas

apenas conciliar os principais conceitos discutidos em sala de aula e refleti-los

com base no caso concreto apresentado.

2 Da apresentação do problema

Em novembro de 2012 o Superior Tribunal de Justiça proferiu decisão

que determinou a quebra da ordem cronológica de inscrição no Cadastro

Nacional de Adoção, sob o argumento de que deve prevalecer o princípio do

melhor interesse da criança.

95

Mestranda em Constituição e Sociedade pelo IDP. Analista Processual do MPF e Assessora da Diretoria Acadêmica do IDP.

No caso analisado um casal acolheu uma criança desde o nascimento e

com ela conviveu por dois anos. A criança foi entregue ao casal pela genitora

porque não tinha condições de mantê-la. E o casal passou a cuidar dela como

se filha fosse, independentemente de qualquer anuência estatal.

O casal já pretendia adotar uma criança e havia se habilitado para

adoção, nos termos do procedimento previsto no art. 197-A do Estatuto da

Criança e do Adolescente. Da habilitação decorreu, pois, a inscrição do casal

no Cadastro Nacional de Adoção,

Art. 197-E. Deferida a habilitação, o postulante será inscrito nos cadastros referidos no art. 50 desta Lei, sendo a sua convocação para a adoção feita de acordo com ordem cronológica de habilitação e conforme a disponibilidade de crianças ou adolescentes adotáveis, (BRASIL, 1990).

Dez dias após a acolhida, o casal ajuizou o pedido de adoção junto à

Vara da Infância e Adolescência de seu domicílio. A decisão de primeira

instância determinou o afastamento da criança da família que a acolheu e a

internação em uma unidade de acolhimento. A decisão do Tribunal de Justiça,

na apelação apresentada pelos adotantes confirmou a sentença, mantendo a

institucionalização da criança.

A decisão da apelação levou cerca de um ano para ser proferida e neste

ínterim o juiz da vara da infância e adolescência determinou a inserção da

criança em outra família, que estava numa posição mais privilegiada na lista do

Cadastro Nacional de Adoção. Nesta nova família, a criança permaneceu por

menos de dois meses, até retornar à família inicial, em cumprimento a decisão

cautelar proferida pelo Superior Tribunal de Justiça.

A decisão do STJ levou em consideração o disposto no parágrafo

primeiro do referido art. 197-E do Estatuto da Criança e do Adolescente,

segundo o qual “a ordem cronológica das habilitações somente poderá deixar

de ser observada pela autoridade judiciária nas hipóteses previstas no § 13 do

art. 50 desta Lei, quando comprovado ser essa a melhor solução no interesse

do adotando” (BRASIL, 1990). E o art. 50, § 13, do Estatuto assim dispõe:

§ 13. Somente poderá ser deferida adoção em favor de candidato domiciliado no Brasil não cadastrado previamente nos termos desta Lei quando: (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) I - se tratar de pedido de adoção unilateral; (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) II - for formulada por parente com o qual a criança ou adolescente mantenha vínculos de afinidade e afetividade; (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) III - oriundo o pedido de quem detém a tutela ou guarda legal de criança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de convivência comprove a fixação de laços de afinidade e afetividade, e não seja constatada a ocorrência de má-fé ou qualquer das situações previstas nos arts. 237 ou 238 desta Lei. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)

Verificou-se que a legislação de modo expresso determina que não se

pode seguir a ordem cronológica do cadastro estritamente, se isso

representará situação jurídica menos favorável para a criança e a adolescente

a ser adotado. Segundo o ministro relator, a institucionalização do menor, após

a retirada da companhia da primeira família, enquanto não colocado em outra

família “evidencia interregno absolutamente nocivo de vida em estabelecimento

de internação, que deve a todo custo ser evitado” (Coordenadoria de Editoria e

Imprensa, 2012).

Segundo a decisão do Tribunal Superior não havia impedimento para

que a primeira família acolhesse a criança, já que habilitados para adoção e já

convivendo com ela desde seu nascimento. Os únicos óbices apontados para

contraditar a adoção referem-se exclusivamente à ordem cronológica do

Cadastro de Adoção. “Conclui-se, assim, que só a inobservância da ordem

estabelecida no cadastro de adoção competente não constitui obstáculo ao

deferimento da adoção quando isso refletir o melhor interesse da criança”

(Coordenadoria de Editoria e Imprensa, 2012).

Além disso, constatou-se da narrativa do oficial de justiça que cumpriu a

ordem de busca e apreensão do menor, que o menor parecia estar inserido

naquela família, tratando os adotantes por “papai” e “mamãe”, e se recusando

a deixá-los. Ainda segundo o oficial de justiça, a criança precisou ser levada a

força.

Aqui nos deparamos com duas decisões diametralmente opostas, sob o

mesmo fato, ambas alegadamente fundadas na legislação positivada, mas com

interpretações diversas do que seria “o melhor interesse da criança” de que

trata o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Se cabe ao Poder Judiciário, na repartição dos Poderes do Estado, a

tarefa de dizer o direito, temos uma situação de fato em que dois magistrados,

imbuídos desta tarefa, o fizeram, entretanto, chegando a soluções opostas para

a mesma situação de fato.

O juiz de primeiro grau teve acesso mais próximo às partes, lhe foi

oportunizado ouvir seus relatos e conhecer de perto as circunstâncias que

justificaram suas ações, além de contar com uma equipe técnica de caráter

multidisciplinar para auxiliá-lo no momento da decisão. De outro lado, o

Superior Tribunal de Justiça é um órgão colegiado, formado por magistrados de

notável saber jurídico e com idade suficiente para ter a experiência de vida

necessária para formular um juízo coerente com os ditames do ordenamento

jurídico vigente e com os ideais de justiça que pautam a atuação dos

magistrados.

A pergunta que se coloca, pois, é qual das duas decisões representa o

ideal de justiça que deve viger no momento da atuação do Poder Judiciário? E

a resposta, necessariamente, deve levar em consideração que nem sempre a

última decisão é aquela mais justa, mas apenas aquela que transitará em

julgado e que a atividade jurisdicional envolve buscar a solução mais justa

levada a conhecimento do magistrado. E finalmente se pode indagar se, neste

contexto a ideia de Justiça que se busca é apenas aquela que favorecerá as

crianças envolvidas, já que o princípio norteador é o “melhor interesse da

criança”, ou se seria preciso encontrar uma Justiça que contemplasse

igualmente todos os demais envolvidos no processo?

3 DA ATIVIDADE JURISDICIONAL

Na lição de Gomes Canotilho, o Estado de Direito é um conceito

constitucionalmente caracterizado que se conjuga com os seguintes elementos:

(1) o princípio da constitucionalidade e correlativo princípio da supremacia da constituição; (2) divisão dos poderes, entendida

como princípio impositivo da vinculação dos actos estaduais a uma competência, constitucionalmente definida e da ordenação relativamente separada de funções; (3) princípio da legalidade da administração; (4) independência dos tribunais (institucional, funcional e pessoal) e vinculação do juiz à lei; (5) garantia da proteção jurídica e abertura da via judiciária para assegurar ao cidadão o acesso ao direito e aos tribunais. (CANOTILHO p. 255)

A existência de ordem superior contendo os princípios eleitos como mais

importantes por aquela sociedade constituída é garantia de um Estado de

Direito. Isso porque é da decisão do povo a eleição dos princípios

fundamentais que guiarão a ordem interna do Estado e, nessa sorte, devem ser

imutáveis pelo sistema ordinário, sob pena de completa instabilidade e

desestruturação. Por tal razão, é de se considerarem nulas todas as normas

editadas em desconformidade com o ordenamento superior, visto que a ordem

constitucional vincula o legislador. Assim como também é função do juiz, ao

defrontar-se com situação em que há incidência tanto de norma quanto da

Constituição no caso concreto, ambas incompatíveis entre si, determinar que é

a primeira a incidir, visto ser esta a lei suprema do Estado (CANOTILHO) .

No mesmo sentido, Karl Larenz explicita que “o Estado de Direito só se

realiza plenamente quando também o legislador permanece vinculado aos

princípios jurídicos fundamentais” (LARENZ, 1985 p. 172). Prossegue o jurista

alemão, no mesmo texto, afirmando que a constituição de um Estado não é

apenas o somatório de regras estruturais, mas também tem sentido de Lei

Fundamental, de Direito Justo, de superdireito, no qual estão contidos, além

dos princípios jurídicos informadores, o capítulo de direitos fundamentais, e, é

por tal razão que o legislador está vinculado ao texto constitucional.

Ressalte-se que a vinculação do legislador à Constituição não está

fundada apenas no sistema jurídico constituído, mas na prevalência positivada

de normas fundamentais que estão acima de qualquer ordenamento jurídico,

tais como a preservação da dignidade humana ou da autodeterminação dos

povos.

Para que se caracterize o Estado de Direito, é preciso, igualmente, que

exista divisão entre os Poderes do Estado, de modo que a Administração

proceda de forma equilibrada e garanta efetividade da atividade pública voltada

para a busca do bem comum, e não no interesse do titular do Poder. O controle

exercido entre os Poderes, pois, é essencial para evitar os abusos, nos termos

do que já disse Karl Larenz:

A primeira exigência de um Estado de Direito é a limitação do poder, a prevenção de possível abuso do poder que eventualmente venha a dominar e a sua vinculação ao Direito. O primeiro princípio que o Estado de Direito trata de realizar com sua própria constituição é por isto o princípio da limitação e do controle do poder, do qual este tipo de estado não pode estar afastado totalmente, porque nele, junto aos ímpetos associativos, existem outros autoritários e de dominação. (...) O poder ilimitado contradiz o Direito. Para limitar o poder na medida necessária, existem os controles do poder, porque, sem esses controles, existe em acréscimo o perigo de abuso de poder. Limitação e controle de poder se coordenam mutuamente. (LARENZ, 1985 p. 159)

O Estado, constituído como Estado de Direito, está limitado

especialmente pela lei. É a norma escrita e positivada que irá ordenar a

atividade do governante e toda a estrutura estatal, tudo com o escopo de

preservar a estrutura de segurança e estabilidade que se adquire com a

ordenação do Estado sob o manto do direito.

A vinculação da Administração à lei é de vital importância para se

evitarem abusos e desrespeitos aos princípios que conformam um Estado de

Direito, exatamente porque é essa a relação mais direta que o cidadão tem

com o Estado, seja mediante ordens que abranjam grande número de pessoas,

seja mediante comandos de caráter individual, seja, ainda, por meio de

concessões ou autorizações de atividades e, em muitos casos, no exercício do

poder de polícia – coação direta sobre o cidadão, impedindo-o de tomar certas

atitudes ou , ao contrário, obrigando-o a isso. O cidadão fica, pois,

especialmente vulnerável a qualquer classe de arbítrio ou tratamento desigual.

Por essa razão, no Estado de Direito, é somente dentro da lei positivada que

está o limite de atuação da Administração, mesmo quando se confere certa

margem de discricionariedade (LARENZ, 1985) .

A garantia da preservação dos direitos fundamentais e da ordem

constitucional vigente e, por conseguinte, do Estado de Direito é a existência

de tribunais livres e independentes. Para isso, conferem-se aos juízes

garantias tais como a inamovibilidade, a vitaliciedade e a irredutibilidade de

salários, bem como a própria independência entre as esferas de julgamento. A

nomeação dos magistrados por meio de concurso e a existência de regras

claras para as promoções também são prerrogativas para que se preserve a

ordem jurídica da forma como ela se estabeleceu.

Por fim, reveste-se da forma de Estado de Direito o Estado que permite

que os cidadãos tenham amplo acesso à Justiça, de modo que possam

reclamar direitos sem retaliação e resolver controvérsias sob a proteção do

Estado. Tudo com a garantia de que o sistema será acessível a todos,

indistintamente, e passível de fornecer resultados socialmente justos

(CAPPELLETTI, et al., 2002) .

Com a garantia da ordem jurídica e a preservação dos princípios do

Estado de Direito, a Constituição brasileira pretendeu resguardar o patrimônio

cultural de toda a sorte de agressão, com o intuito de assegurar sua

preservação para as gerações futuras.

A função primordial do Estado é garantir a paz e a segurança para a

sociedade que o compõe, as quais são alcançadas justamente pela

manutenção da ordem pública e das normas legitimamente criadas para

regular a vida em sociedade. “A rigor, pode-se dizer que o cumprimento das

leis pelo Estado encerra a razão de sua própria existência, haja vista que

constitui o bem comum, assim entendida a ordem social que atenta aos

anseios e expectativas dos indivíduos componentes da sociedade, o

fundamento último do Direito. Trata-se do caráter imperativo do ordenamento

jurídico” (CHAMI, 1997 p. 93).

Contemporalizando as teorias contratualistas sobre a origem do Estado,

pode-se dizer que os indivíduos membros da sociedade relegam parcela de

sua liberdade ao Estado, que se torna investido da responsabilidade de garantir

a harmonia nas relações sociais. Isso implica a possibilidade de que os

conflitos existentes entre os membros da sociedade sejam pacificados por um

ente especialmente constituído para esse fim. Assim, é preciso que tal ente

seja dotado de poder e legitimidade para impor e fazer respeitar as normas

indispensáveis para a convivência entre as pessoas.

É imprescindível que o Estado tenha força imperativa para fazer valer as

normas que edita. Se consideramos que todos os indivíduos são iguais – o

que, de fato, faz a Constituição brasileira de 1988, em seu art. 5º –, em caso de

conflito de interesses, é necessário existir um meio de solução do dissídio, para

que a isonomia possa manter-se e, assim, perpetuar-se a paz social. Do

contrário, o indivíduo mais forte, seja pela força física, seja pela força

econômica ou política, imporá sua vontade aos demais, tornando insubsistente

a norma que garante a igualdade a todos.

Por outro lado, o poder do Estado também precisa ser legítimo. A

sociedade que o compõe precisa reconhecer nele o poder pacificador dos

conflitos de interesses. E o faz quando submete ao Estado suas controvérsias,

aguardando que ele as resolva, com base na legislação previamente

estabelecida e tornada pública.

Assim, dotado de força e legitimidade, o Estado exerce sua função

essencial de preservação do bem comum, garantindo a paz dentro da

sociedade por meio do estabelecimento de normas impositivas e da

prerrogativa da solução das controvérsias entre os particulares.

Se a função do Estado é precisamente evitar que o mais forte domine o

mais fraco e permitir que haja harmonia nas relações sociais, não pode ser ele

o responsável por desequilibrar essas relações, sob pena de se dissipar sua

própria razão de ser.

Nesse sentido, mostra-se precisa a doutrina de Darcy Azambuja:

O Estado, por meio de seus diversos serviços de govêrno e de administração, faz reinar a paz e a justiça, procura coordenar as atividades particulares e auxiliar as iniciativas privadas. Todos êsses benefícios, que formam o bem público, são oferecidos a todos e não a indivíduos determinados, são distribuídos entre os membros da coletividade política. O Estado, pois, produz e distribui os benefícios do bem público, mas essa distribuição não deve ser arbitrária, ao bel-prazer e caprichos dos titulares do poder. Deve estar subordinada a uma regra obrigatória, que será uma regra de justiça social, pois se trata da distribuição de benefícios sociais; será uma regra de justiça distributiva. Não só os benefícios, como também os encargos, devem obedecer a uma norma de justiça distributiva, que, assim, compreende a admissão aos

empregos, o gôzo dos serviços, os impostos, etc (AZAMBUJA, 1963 p. 386)

Dessa forma, por segurança, criam-se mecanismos para evitar que os

governos pervertam a função essencial do Estado de repartir igualitariamente o

bem comum. E o sistema de freios e contrapesos decorrente da divisão de

poderes permite as limitações que evitam abusos.

4 DA JUSTIÇA DE KANT

A Justiça é uma norma de natureza moral, porque referente à conduta

de outra pessoa, num contexto intersubjetivo, e “o juízo segundo o qual uma

conduta é justa ou injusta representa uma apreciação, uma valoração da

conduta” (KELSEN, 1998)

Daí ser possível indagar a conduta de ambos os magistrados envolvidos

no problema posto, em relação às partes que foram afetadas por suas

condutas, ou, diga-se, decisões. E, portanto, ser possível valorar como justa ou

injusta cada decisão tomada na função jurisdicional.

Para Kelsen, justo é aquele que se comporta de acordo com as normas

propostas na sociedade, até porque o não cumprimento de uma regra implica

uma sanção (1998). A relação de justiça, para Kelsen, é uma relação de

obediência.

Uma norma de direito positivo não pode ser injusta. Ela é sempre justa.

E o descumprimento da norma deve ser considerado como desvalor. Mas se

uma decisão judicial se pauta sempre pela norma positivada, é possível

reconhecer injustiça em decisões contrárias entre si?

Pode-se completar esse quadro para afirmar que o direito positivado é

justo porque derivado de uma norma justa. “o fundamento de validade do

direito positivo é essencialmente vinculado ao seu conteúdo” (KELSEN, 1998)

Por essa razão, busca um critério para definir essa justiça contida na

norma, do que decorre um direcionamento no sistema que determina

comportamentos socialmente legítimos. Prêmios e punições, por condutas

justas ou injustas, guiará as ações dos cidadãos. E a justiça deverá ser

mensurada, pois, por um critério de igualdade, pela proporcionalidade e

igualdade na lei.

É possível uma decisão judicial injusta? E para quem a decisão judicial

deve ser justa? para as partes? para a sociedade?

No caso descrito, o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê que a

ordem cronológica das habilitações somente poderá deixar de ser observada

pela autoridade judiciária nas hipóteses previstas no § 13 do art. 50 desta Lei,

quando comprovado ser essa a melhor solução no interesse do adotando.

Se é a própria lei quem autoriza quebrar a ordem cronológica das

habilitações, dentro dos parâmetros da justiça kelseniana, seria preciso

investigar, qual é a solução que atenta para o melhor interesse do adotando,

chega-se a uma primeira conclusão no sentido de, na lei, a justiça perseguida é

aquela que atinge, em primeiro lugar, a criança a ser adotada.

Entretanto, ainda não é possível resolver em que consiste o interesse

adotado e como sopesar este interesse para verificar qual se adequa melhor ao

conteúdo da justiça.

5 DA JUSTIÇA DE RAWLS

John Rawls parte de um pressuposto diferente. Para ele não é possível

chegarmos a um conceito único e unitário do que seja a Justiça, mas um

conceito decorrente do consenso e, por esta razão, relativo.

Além disso, são as liberdades públicas ou direitos fundamentais que

pautam o que se pode entender por norma justa (RAWLS, 2003). Se direitos

fundamentais se sobrepõe a qualquer norma – ainda que a norma positivada –

não há como ser reconhecer justiça em qualquer conduta que se perpasse por

pressupostos contrários aos direitos fundamentais. Depois, as liberdades

públicas e as intervenções obrigatórias do Poder Público são o alicerce do

Estado de Direito, o que, por decorrência lógica afasta da Justiça decorrente da

ação estatal, condutas contrárias aos direitos fundamentais.

Vale dizer, de outro lado, que a desobediência civil sustentada por Rawls

só é possível se se pensar que as normas que determinam os comportamentos

dos súditos daquele Estado estão contrárias àquele ideal de justiça descrito.

Implica dizer, só se pode considerar válidas as ações de desobediência civil a

partir do momento em que são condutas que se guiam pela noção de justiça da

sociedade e, portanto, de direitos fundamentais.

Ainda que uma lei considerada socialmente injusta não tenha sua

inconstitucionalidade, ou incompatibilidade com os direitos fundamentais

declarada por um ente dotado de jurisdicionalidade, ainda assim, em razão do

desuso deixaria de viger, sob pena de descrédito das instituições (HECK).

Há que se diferenciar, pois, justiça substantiva, ou de resultado, da

justiça procedimental, sem embargo da conclusão que o processo conduz a um

resultado justo.

Para se atingir o conceito de justiça em Rawls, deve-se partir de um

modus vivendi, segundo o qual os integrantes da sociedade convivem num

estado de tolerância. Neste contexto, é por meio da negociação política que se

atinge um consenso que beneficiará toda a comunidade (RAWLS, 2003).

Observe-se, entretanto, que este equilíbrio somente se atinge em razão

da posição egoísta de cada integrante da sociedade, que aceita ponderar

acerca de seus direitos porque com isso conseguirá melhores condições de

vida em sociedade, ou seja, o ponto de equilíbrio depende de cada indivíduo

considerar que aquela negociação política seja boa para sua doutrina

abrangente.

Deste equilíbrio consensual, do modus vivendi de cada indivíduo dentro

da sociedade é que obtemos um consenso constitucional (RAWLS, 2003).

Consenso que se baseia em princípios liberais, que não são apenas

procedimentais, que vão gerar um consenso mínimo sobre valores

constitucionais. Se dentro de uma sociedade com doutrina abrangente

minimamente razoável, a sociedade pode chegar a um consenso sobreposto,

no qual os valores de justiça, ou os direitos fundamentais, se sobreporão.

Da reunião que temos das vontades individuais e diversas concessões

políticas individuais, visualizamos o consenso sobreposto, que pode ser

reduzido ao respeito aos princípios liberais e aos princípios constitucionais.

Nunca se chega ao consenso sobreposto, mas se pode chegar a uma

aproximação (HABERMAS, et al.). O acordo entre os cidadãos de que a

formação de sua vontade obedecerá um senso de razoabilidade, ainda que

esta liberdade acordada não possa ser pleiteada (HABERMA, et al., 2001)

Ele pode ser avaliado com base na ideia de razão pública. A razão

pública é resultado do consenso sobreposto e uma forma de analisar e manter.

O que Rawls propõe é que conceito de justiça decorre da legitimidade

(RAWLS, 2003).

Controle de constitucionalidade é um caso exemplar de razão pública. O

procedimento segue as regras de um critério racional político para enfrentar a

questão do consenso sobreposto. O controle mantém a racionalidade do

consenso sobreposto, de modo que o processo tem por objetivo assegurar que

a legitimidade se converta em justiça.

Desta forma, o conteúdo da justiça dependerá da legitimação que se dá

às condutas sociais e às normas que as conformam.

No caso aqui analisado, temos que o conjunto de consensos individuais

a norma que se positivou determina que se busque o melhor interesse da

criança ou adolescente que está sendo adotado.

E este princípio se conforma à teoria acima descrita no ponto em que

identifica que há uma infinidade de variáveis a ser considerada para a definição

do conteúdo deste princípio e, por consequência, qualquer decisão judicial que

possa se afirmar justa.

Definir o melhor interesse do menor em processo de adoção implica

reconhecer os elementos que a sociedade considera significativos para definir

como a criança teria melhor seus direitos interentes preservados. Depois, há

que se fazer um juízo de ponderação.

Observe-se, contudo, que esta ponderação dependerá do estado atual

da sociedade, que possui valores mutáveis ao longo dos tempos – nem sempre

o que se considera justo, hoje, o poderia ser há cinquenta anos atrás e

possivelmente não o será em cinquenta anos.

6 DAS LEITURAS DE DWORKING E HABERMAS

A decisão a ser tomada pelo Estado, na função de garantidor dos

direitos fundamentais de seu súditos não é simples. Visto que é necessário

optar entre a liberdade e a igualdade e o limite de tensionamento entre estes

valores que asseguram a democracia.

Há sempre o risco de a democracia conflitar com direitos individuais,

uma vez que cada vez que a Corte é instada a se pronunciar acerca de direitos

individuais, ela está usurpando a função da maioria e pondo em perigo a

democracia. De outro lado, numa postura liberal, sempre que se decide em

favor dos direitos individuais acaba-se por negligenciar o direito de escolha e a

responsabilidade que cada indivíduo tem dentro da sociedade.

É verdade que uma nação não pode oferecer a mesma atenção para a

vida de cada um de seus cidadãos, e o conflito se torna trágico quando se

torna apenas uma questão de escolha (DWORKIN, 2004). Como na hipótese

aqui sob análise, segundo a qual o magistrado precisa escolher qual é a

posição que melhor atende o interesse do menor a ser adotado.

Se protegemos os direitos, ampliando a jurisdição, em seguida, fazemos

batota na democracia, que não é apenas uma questão de ter tudo o que

queremos, mas de fazer algo por si só errado. Se proteger a igualdade,

negando a liberdade, então, uma vez que a liberdade é um direito fundamental,

ou em qualquer caso de algo de fundamental importância, fizemos algo de

muito errado. Esta sugestão assustadora - que fazemos de errado tudo o que

fazemos - é a sede da ideia moderna de conflito inevitável.

Contudo, Dworking chega a uma hipótese na qual não há conflito, visto

que a Igualdade é preservada quando ninguém inveja o pacote de trabalho e

recompensa que alguém alcançou.

Ele imagina um leilão hipotético que ocorrerá numa sociedade que parte

do zero, sem pressupostos, e que todos possuem igualdade de recursos e

talentos. Neste contexto, a liberdade é a possibilidade de dispor como quiser

de bens ou recursos que lhe foram concedidos sob um sistema razoavelmente

justo da propriedade e outras leis, livre de interferência de outros, desde que

você não viole direitos de ninguém. “a distribuição das riquezas sociais deve

expressar de algum modo as escolhas das pessoas e que, portanto, uma

distribuição idêntica de riquezas não é necessariamente uma distribuição

justa ou igualitária” (FERRAZ, 2005 p. 455).

Para Dworking, liberdade, igualdade, democracia, comunidade e demais

conceitos são conceitos interpretativos. A existência de um conflito entre

liberdade e igualdade decorre não da circunstância de que é necessário fazer

uma escolha, mas de que em razão desta escolha de valores há sempre uma

perda, independentemente de qual escolha foi feita.

Ainda, todo governo deve mostrar igual cuidado pelo destino de cada

pessoa sob seu domínio, contudo, deve respeitar as esclhas e as

consequências destas, eleitas por cada indivíduo.

Temos aqui, por outro lado, um outro conflito difícil de ser resolvido. que

vem primeiro? a liberdade individual dos membros da moderna sociedade de

mercado? ou o direito dos cidadãos democraticamente organizados de

participação política? (HABERMA, et al., 2001). Isso porque a

autodeterminação do indivíduo depende na igualdade no que toca à

possibilidade de escolha. Nestas condições apenas as normas que pressupõe

direitos igualitários para cada um irá ao encontro da aceitação de todos.

Dentre as atribuições estatais, a função jurisdicional atuará justamente

na interferência entre a autodeterminação dos indivíduos que bucam o Poder

Judiciário, e a manutenção da ordem democrática. A questão é que os

magistrados não possuem a legitimidade do povo, visto que a lei é feita pela

acordância do povo e não dos expertos. Entretanto sua interpretação é técnica.

A participação popular nas decisões da Corte, aumenta a legitimidade e

aceitabilidade do povo, bem como fornece ao juiz as bases jurídica para suas

decisões.

Vale dizer, por outro lado, que esta legitimação não precisa

necessariamente perpassar pela participação direta do povo no processo

decisório, mas as decisões se legitimam ao usar o discurso popular, que deve

estar temporal, social e materialmente especificado em relação à opinião

política e a formação de vontade nas arenas públicas ou corpos legislativos e

relação à correção da lei e a materialidade das decisões tomadas nas cortes

administrativas (HABERMA, et al., 2001).

A legitimidade do resultado de qualquer discurso depende da

legitimidade das regras sob as quais aquele tipo de discurso foi especificado e

estabelecido sob o ponto de vista temporal, social e material.

No caso aqui proposto, indaga-se, apesarde divergentes, é possível

verificar justiça nas decisões judiciais que orientaram a demanda por adoção.

O ponto central de discussão é descobrir o melhor interesse do menor, que a

lei determina seja o norteador das decisões onde haja dúvida acerca de qual

seria a destinação da criança ou do adolescente.

A criança, cuja decisão descrevemos, foi retirada de uma família, com

quem vivia desde o nascimento, mas cujo acolhimento não obedeceu os

ditames da legislação ordinária. De outro lado, há a situação de

institucionalização e, postariormente, colocação em uma nova família

substituta.

A criança começou a viver em companhia de uma família que a acolheu

desde o nascimento. Contudo, com a intervenção do Estado a criança deixou

aquela família para passar a viver num abrigo. A primeira vista, pode-se

concluir que se trata de uma conduta aprubta e injusta, que coloca em estado

de vulnerabilidade a estrutura de segurança na qual a criança vivia.

Há que se olhar com especial atenção as circunstâncias que envolvem o

caso. Se o conceito de justiça está no conjunto da ponderação das diversas

variáveis que envolvem cada decisão.

O Estado é a entidade constituída para assegurar a melhor posição para

seus súditos, garantindo o equilíbrio entre a democracia e as decisões

individuais de cada pessoa. Daí a necessidade de se buscar compreender que

ao Estado, na figura do Poder Judiciário, não é adequado permitir que uma

criança seja adotada de modo enviesado, inobservando os ditames legais.

A decisão de primeira instância observou o que diz a lei e,

cautelarmente, afastou a criança de seu primeiro lar, com receio de que a

adoção sem a intervenção do Judiciário poderia significar um prejuízo grande

para a criança. Observe-se que, nesta fase, o magistrado não decide sem

antes consultar a equipe multidisciplinar que o auxilia, e sem que tenha havido

ao menos uma visita ao local onde a criança vivia. Sob estes argumentos e,

com a ponderação destes valores, esta parece ter sido a decisão mais

condizente com os princípios de justiça.

De outro lado, a decisão do STJ levou em consideração outros

pressupostos, porque verificou que a primeira família já estava habilitada para

acolher uma criança, ou seja, o Estado, dentro de sua função jurisdicional já

havia avaliado a capacidade para adotar. Além disso, a relação de confiança

que se estabeleceu entre a primeira família e a criança deve ser considerada,

sendo o melhor intersse do menor permanecer junto com aqueles com quem

sempre viveu.

Há que se buscar quais das duas decisões alcançam maior legitimação

e, portanto, é justa. Vai se buscar qual é o discurso popular que legitimaria a

decisão para verificar qual atinge o ideal de Justiça.

CONCLUSÃO

Em todas as teorias aqui destacadas, o conteúdo interpretativo é sempre

destacado. Há que se fazer um diálogo entre as diversas variáveis que

envolvem cada situação posta a apreciação do Poder Judiciário. A Justiça será

encontrada no momento em que a interpretação conseguir inferir qual é

discurso que melhor atende aos anseios popular.

A mera quebra da ordem cronológica do cadastro nacional de adoção

não é justificativa suficiente para determinar o abrigamento de uma criança. De

fato a criança foi acolhida em desacordo com a norma vigente, o que afastaria

a justiça deste acolhimento pela doutrina kelseniana.

Entretanto, sob a ótica das demais teorias, é preciso analisar as

circunstâncias e haverá justiça pela legitimação dos argumentos usados pelo

magistrado.

REFERÊNCIAS

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BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.

Coimbra : Almedina.

CAPPELLETTI, Mauro und GARTH, Bryant. 2002. Acesso à Justiça. [Übers.]

Ellen Gracie NORTHFLEET. Porto Alegre : Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.

CHAMI, Jorge Antonio Ioriatti. 1997. A legalidade do Direito Administrativo.

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FERRAZ, Octávio Luiz Motta. 2005. JUSTIÇA DISTRIBUTIVA PARA

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HABERMA, Jürgen und REHG, Willian. 2001. Constitucional Democracy: A

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HABERMAS, Jürgen und RAWLS, John. Debate sobre el Liberalismo polít ico.

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HECK, José N. Por que obedecer a leis que desaprovamos? Belo Horizonte :

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KELSEN, Hans. 1998. O problema da justiça. São Paulo : Martins Fontes,

1998.

LARENZ, Karl. 1985. Derecho Justo: Fundamentos de ética jurídica. Mardid :

Civitas, 1985.

RAWLS, John. 2003. Just iça como Equidade: Uma Reformulação. São Paulo:

Mar t ins. São Paulo : Martins Fontes, 2003.

CAPÍTULO 6: Ações Afirmativas: A integração social através da

conexão entre o direito e a moral

Vick Mature Aglantzakis

RESUMO: O presente estudo trata das ações afirmativas como forma de

inclusão social das categorias menos favorecidas na sociedade, tendo por base

o julgamento da ADPF 186 e a doutrina de Ronald Dworkin. Passaremos por

um breve resumo histórico a respeito das ações afirmativas ocorridas nos

Estados Unidos da América e no Brasil. Veremos que enquanto fenômeno de

proteção dos menos favorecidos esta não é tão recente. Pretendemos

demonstrar o acerto desta política de inclusão social e de distribuição de

justiça, que tem por objetivo diminuir os excessivos desníveis sociais de nossa

sociedade e a conexão entre o direito e a moral.

PALAVRAS-CHAVES: ação afirmativa, Dworkin, direito e moral.

ABSTRACT: This study deals with affirmative action as a means of social

inclusion of disadvantaged categories in society, based on the judgment of

ADPF 186 and the doctrine of Ronald Dworkin. We pass by a brief history about

affirmative action occurring in the United States and Brazil. We will see that

phenomenon while protecting the less fortunate this is not so recent. We intend

to demonstrate the correctness of the policy of social inclusion and distribution

of justice, which aims to reduce excessive social inequality in our society and

the connection between law and morality.

KEYWORDS: affirmative action, Dworkin, law and morality.

Introdução

A igualdade material, implementada através de ações afirmativas,

passou a adquirir forte conotação doutrinária a partir de 1965, quando aquelas

passaram a ser debatidas nos Estados Unidos da América, após discurso

proferido pelo Presidente Lyndon Johnson, em 04 de junho na Howard

University, e após a expedição da Ordem Executiva (EO 11246). Esta tinha por

objetivo estabelecer metas de inclusão de minorias suplantando o marco civil

para que a igualdade deixasse de ser apenas de direito e vigorasse como

realidade substancial, como informa a ministra Carmém Lúcia96.

Em 1978, no caso Bakke97, a Corte Suprema Norte-Americana

referendou a constitucionalidade no uso das ações afirmativas para cotas no

sistema de ensino, desde que as mesmas não fossem fixas e que não se

adotasse apenas o critério racial.

Contudo, a Suprema Corte Americana pode mudar de posição

jurisprudencial, o que representaria um retrocesso em termos de avanços

sociais. Está sob julgamento o caso Fischer versus University of Texas at

Austin, que poderá dar uma guinada de cunho negativo em termos de políticas

de ações afirmativas para ingresso em suas instituições de ensino. As

sustentações orais ocorreram em 10 de outubro de 201298.

A Constituição Federal de 1988, também denominada cidadã, já em seu

preâmbulo, assevera que a Assembleia Nacional Constituinte criou um Estado

Democrático não nos moldes clássicos, também dito liberal, mas uma

Democracia marcada por forte cunho social que objetiva resguardar os valores

e princípios máximos da sociedade brasileira. Para tanto, erige já em seu art.1º

e incisos, seus princípios fundamentais, ressaltando a cidadania e a dignidade

da pessoa humana (II e III).

A Constituição ao realçar o valor cidadania, tem por objetivo a exclusão

da cidadania de 2º grau ou marginal. Esta se caracteriza por excluir os menos

favorecidos (sejam por questões raciais, culturais, religiosas, entre outras).

Para tanto, o Poder Público e os agentes privados devem voltar-se a efetivar

ações concretas de inserção do indivíduo na comunidade da qual participe,

proporcionando-lhes oportunidades de inclusão social.

Esse é o pensamento de José Afonso da Silva, para quem a cidadania:

96

Rocha, C. L. A. Ação afirmativa. O conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica. Revista de Informação Legislativa, Brasília, 33 nº 131 jul/set 1996, pág. 285. 97

Regents of the University of California versus Bakke, 438 U.S.265 (1978). 98

Pereira, T. H. J. Ação afirmativa: uma jurisprudência em evolução. Disponível em http://www.conjur.com.br/2012-out-13/observatorio-constitucional-licoes-eua-acoes-afirmativas

É um signo de nosso tempo que a cidadania se tenha convertido em um conceito de moda em todos os setores da política. Isso nos põe diante da necessidade de reelaborar o conceito de “cidadania”, a fim de lhe dar sentido preciso e operativo em favor da população mais carente da sociedade e de modo a retirá-lo da pura ótica da retórica política, que, por ser formal, tende a esvaziar o conteúdo ético valorativo dos conceitos, pelo desgaste de sua repetição descomprometida99.

As diversas espécies de ações afirmativas no Direito Brasileiro, em face

de inúmeros diplomas legislativos que contém alguma regra sobre o tema e as

recentes decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de

Descumprimento de Preceito Fundamental nº 186, Ação Declaratória de

Inconstitucionalidade nº 3.330 e no Recurso Extraordinário nº 597.285/RS,

reafirmaram e consolidaram o entendimento da constitucionalidade das ações

afirmativas entre nós.

É de se indagar se as mesmas tem conseguido cumprir o seu papel de

efetivar a justiça social, dando oportunidades aos menos favorecidos? As

ações afirmativas tem conseguido ocupar o papel que a doutrina as situam, ou

seja, são formas de igualar as desigualdades que ocorrem no âmbito do

princípio da igualdade? É o que iremos procurar demonstrar neste trabalho,

com amparo na doutrina de Ronald Dworkin e no pensamento das

possibilidades levadas a cabo pelo Supremo Tribunal Federal.

O tema não se trata de modismo passageiro. Ao contrário. As ações

afirmativas como forma de desigualar o acesso a diversos segmentos (escolas,

universidades, empregos públicos e privados, cargos de livre nomeação), bem

como instrumentos para ascender uma posição na sociedade, vêm sendo

corriqueiramente aceitas pelos tribunais e implementadas pelo Poder Público

(Executivo, Legislativo e Judiciário), como forma de pagamento de uma dívida

do passado ocorrida em virtude da escravidão dos negros e dos índios, da

diferenciação negativa quanto as pessoas com algum tipo de limitação física,

econômica ou do desprezo pela minoria dominante.

2 Conceito e natureza jurídica da ação afirmativa

99

Silva, Jose Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 3ª Ed, Malheiros editores, São Paulo, SP 2007, pág.35.

O prof. Paulo Gonet, citando Anne Peters, define as ações afirmativas

na seguinte indução: “... a locução alcança uma gama larga de políticas,

públicas e mesmo privadas, que buscam amparar grupos mais fracos na

sociedade.”100

O entendimento do min. Joaquim Barbosa preconiza que as ações

afirmativas se definem como “políticas públicas (e privadas) voltadas à

concretização do princípio constitucional da igualdade material e à

neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de

origem nacional e de compleição física 101”.

Já a min. Carmen Lúcia em artigo sobre o tema entende que ação

afirmativa significa:

a exigência de favorecimento de algumas minorias socialmente inferiorizadas, vale dizer, juridicamente desigualadas, por preconceitos arraigados culturalmente e que precisavam ser superados para que se atingisse a eficácia da igualdade preconizada e assegurada constitucionalmente na

principiologia dos direitos fundamentais 102.

No plano jurisprudencial, o STF, no voto condutor do min. Ricardo

Lewandowski, proferido na ADPF nº 186, assentou o conceito das ações

afirmativas como “medidas especiais e concretas para assegurar o

desenvolvimento ou a proteção de certos grupos, com o fito de garantir-lhes,

em condições de igualdade, o pleno exercício dos direitos do homem e das

liberdades fundamentais103”.

Dos conceitos vistos acima, extrai-se que as ações afirmativas possuem

natureza jurídica de direito fundamental, alojando-se no princípio da igualdade,

tanto no seu desdobramento formal quanto material. Trata-se de instrumento

para assegurar a igualdade substancial de diversos grupos marginalizados no

100

Branco, Paulo Gustavo Gonet, Ação Afirmativa e Direito Constitucional. Exposição no V Congresso de Direito Constitucional do IDP – 19.11.2002. 101

Barbosa, Joaquim B. Gomes, O debate constitucional sobre as ações afirmativas 102

Rocha, Carmen Lucia A., em revista de informação legislativa, Brasília 33n, 131 jul/set 1996, pág.285. Acesso em 17 de novembro. Site: http:// www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/176462 103

Informativo do STF nº 663. ADPF nº 186, Rel. Min. Ricardo Lewandowski.

seu sentido mais amplo. Isso acaba por reverberar no próprio centro do

princípio da dignidade da pessoa humana, enquanto considerado como tal.

Assim, têm se que as ações afirmativas são gênero, do qual as cotas

para ingresso nas instituições de ensino federal superior são espécies,

cabendo aos três poderes a sua implementação dentro das possibilidades

aceitáveis moralmente por uma sociedade.

Essa foi a conclusão que chegou o Supremo Tribunal Federal, por

ocasião do julgamento da ADPF 186, no qual o relator Min. Ricardo

Lewandowski, acentuou que:

... para efetivar a igualdade material, o Estado poderia lançar mão de políticas de cunho universalista – a abranger número indeterminado de indivíduos – mediante ações de natureza estrutural; ou de ações afirmativas – a atingir grupos sociais determinados – por meio da atribuição de certas vantagens, por tempo limitado, para permitir a suplantação de desigualdades ocasionadas por situações históricas particulares. Certificou-se que a adoção de políticas que levariam ao afastamento de perspectiva meramente formal do princípio da isonomia integraria o cerne do conceito de democracia. Anotou-se a superação de concepção estratificada da igualdade, outrora definida apenas como direito, sem que se cogitasse convertê-lo em possibilidade104

3 Ação Afirmativa no Brasil.

Antes mesmo de se falar em ações afirmativas nos Estados Unidos, o

Brasil, por intermédio do Governo Provisório de 1930 editou o Decreto nº

19.482, de 12.12.1930, conhecido como Lei da Nacionalização do Trabalho, ou

Lei dos Dois Terços. O mencionado diploma legal estabeleceu que dois terços

dos trabalhadores tinham de ser brasileiros natos, desde que a empresa

estivesse em funcionamento no Brasil. Essa lei procurou evitar a discriminação

contra os nacionais, que não tinham a preferência, face a mão-de-obra

estrangeira que aqui estava estabelecida devido o fluxo do processo

imigratório.

104

Informativo STF nº 663 de 03 de maio de 2012.

A Lei nº 5.463, de 03 de julho de 1968105, também pode ser considerada

a primeira lei que instituiu o sistema de cotas no âmbito do ensino brasileiro.

Pelo mencionado diploma, 50% (cinquenta por cento) das vagas destinadas em

estabelecimentos de ensino médio e nas escolas superiores de Agricultura e

Veterinária, desde que mantidos pela União, eram destinadas a candidatos

agricultores ou aos seus filhos, proprietários ou não de terra, desde que

residissem em zona rural. Destinou-se ainda 30% (trinta por cento), na forma

estabelecida acima, àqueles que residissem em vilas ou cidades sem

estabelecimentos de ensino médio. Esta lei veio a ser revogada em 1985, ao

argumento que beneficiava somente os filhos dos grandes latifundiários e

fazendeiros mais abastados economicamente.

O constituinte brasileiro também inseriu no texto maior uma série de

disposições voltadas para o âmbito da ação afirmativa, tais quais: o contido nos

artigos 3º, IV (promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,

sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação); 7º, XX (proteção do

mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos) e 37, VIII (a

lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas

portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão)106. Após a

promulgação da Constituição, tivemos a edição das Leis 8.666/93, art.24, XX

(assegurou à dispensa da licitação para associações de portadores de

deficiência física), a 8.112/90 (art.5º§2º assegura a inscrição de até 20% das

vagas para vagas em concurso público de pessoas portadoras de deficiência),

a, 9504/97, art.10§3º, (prescreve que no mínimo 30% das vagas para

candidatos a cargos proporcionais são destinadas para as mulheres, a

10.558/02 que estabeleceu o programa de diversidade na universidade,

10.678/03, a 12.288/10, que instituiu o ordenamento da igualdade racial e a

recente lei 12.711, de 29 de agosto de 2012, que dispõe sobre o ingresso nas

universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível

médio). Esta lei foi regulamentada pelo Decreto nº 7.824, de 11 de outubro de

2012.

105

Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L5465.htm. Acesso em 30.nov.2012 106

Brasil, Constituição Federal do de 1988. Brasília, 34ª Ed. Edições Câmara, 2011.

Com isso, observa-se que no Brasil o instituto da ação afirmativa foi

sendo aplicado na prática sem que houvesse uma ampla discussão doutrinária

sobre o tema, o que ocorreu posteriormente, em especial, com a criação das

cotas universitárias advindas de etnias ou cor de pele. Trilhamos o caminho

inverso efetuado nos Estados Unidos, em que primeiro houve amplo debate

sobre as mesmas, para depois serem efetivadas no âmbito legislativo.

4 Critério de validade das ações afirmativas no Brasil

Outro aspecto bastante controvertido quando se trata de ações

afirmativas é quanto aos critérios que devem nortear o legislador na elaboração

destas. Os grupos selecionados a serem beneficiados com as medidas não

devem se sentir “menores” em relação aos demais, em especial quando se

tratar do sistema de cotas no sistema de ensino universitário.

Em passagem de brilhante artigo já citado, a min. Carmén Lúcia107

ensina que:

É importante salientar que não se quer ver produzidas novas discriminações com a ação afirmativa, agora em desfavor das maiorias, que sem serem marginalizadas historicamente, perdem espaços que antes detinham face aos membros dos grupos afirmados pelo princípio igualador no Direito. Para se evitar que o extremo oposto sobreviesse é que os planos e programas de ação afirmativa adotados nos Estados Unidos e em outros Estados primaram sempre pela fixação de percentuais mínimos garantidores da presença das minorias...

Há uma nota característica nas ações afirmativas, tanto no Brasil quanto

em outros países. É o fator temporalidade. Com efeito, como as mesmas tem o

objetivo de ofertar condições para todos, mesmo que com a admissibilidade de

critérios variados, elas devem perdurar até que haja efetividade concreta e

diminuição dos abismos sociais existentes. Em outras palavras: a concreção da

justiça distributiva.

107

Rocha, C. L. A., Ação afirmativa. O conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica. Revista de Informação Legislativa, Brasília, 33 nº 131 jul/set 1996, pág. 286.

Em estudo específico sobre o tema, o prof. Manoel Gonçalves Ferreira

Filho, enumera as condições jurídicas de validade das ações afirmativas, que

são:

Primeira, a identificação do grupo desfavorecido, e seu âmbito,

deve ser objetivamente determinado. Regra de Objetividade.

Segunda, a medida do avantajamento decorrente das regras deve ser ponderada em face da desigualdade a ser corrigida. Regra de Medida. Ou, como se usa dizer, deve ser proporcional o avantajamento à desigualdade a reparar. Por isso, alguns, a chamam de Regra de Proporcionalidade. Do contrário, haverá um privilegiamento do grupo beneficiado em relação aos demais grupos e à sociedade como um todo. Isto se explicita na terceira condição. As normas de avantajamento devem ser adequadas à correção do desigualamento a corrigir. Regra de Adequação. Tal adequação se exprime na sua racionalidade. Por isso, é também esta uma Regra de Razoabilidade. Quarta condição, a finalidade dessas normas deve ser a correção de desigualdades sociais. Regra de Finalidade. Quinta, enfim. As medidas, como aponta a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, devem ser temporárias. Regra de Temporariedade108.

Os critérios acima enumerados foram acolhidos pelo Supremo Tribunal

Federal, conforme se depreende da passagem do voto do min. Ricardo

Lewandowiski:

...o Estado poderia lançar mão de políticas de cunho

universalista — a abranger número indeterminado de indivíduos — mediante ações de natureza estrutural; ou de ações afirmativas — a atingir grupos sociais determinados — por meio da atribuição de certas vantagens, por tempo limitado, para permitir a suplantação de desigualdades ocasionadas por situações históricas particulares...109

5 Necessidade da concretização da justiça social nas ações

afirmativas

O acolhimento das ações afirmativas não vem destituído de objetivos.

Ao contrário, estas medidas buscam, no seu sentido mais amplo, a realização

108

Filho, M.G.F. Aspectos Jurídicos das ações afirmativas. Revista TST, Brasília, vol.69, nº2, jul/dez 2003, pág.76. 109

STF. Informativo nº 663. Trecho do voto do Min. Ricardo Lewandowski na ADPF 186.

da justiça social visando aproximar os menos favorecidos dos mais

afortunados. Em síntese: é a busca por iguais oportunidades.

Nesse desiderato, a política das ações afirmativas deve priorizar a

apresentação das exposições de motivos que convençam a população a

aceitá-las. É necessário eliminar as possíveis consequências de uma

discriminação reversa das mesmas, as quais sem a aceitação da sociedade

poderiam por em cheque o próprio convívio social, por acabar elevando os

antagonismos sociais.

Esse alerta é feito por Dworkin, que ressalva “...a raça está tão

intimamente ligada a arbitrariedade e ao favoritismo que algumas

classificações raciais que pareçam benignas a olho nu podem revelar-se, após

exame minucioso, agressivas à Constituição110”.

Além do mais, arremata Dworkin , com pensamento exposto abaixo, com

enfoque na sociedade americana, porém, plenamente aplicável ao Brasil:

As justificativas compensatórias presumem que a ação afirmativa é necessária, conforme explicou Scalia, para “compensar” as minorias pelos danos a sua raça ou classe no passado, e estava certo ao assinalar o erro de se supor que uma raça “deve” compensação a outra. Mas as universidades não aplicam os critérios de admissão sensíveis à raça para compensar indivíduos nem grupos: a ação afirmativa é um empreendimento voltado para o futuro, e não retroativo, e os alunos minoritários a quem ela beneficia não foram, obrigatoriamente, vítimas, individuais, de nenhuma injustiça no passado111.

É no dizer do min. Celso de Mello112:

O presente tema deveria ser apreciado não apenas sob a estrita dimensão jurídico-constitucional, mas, também sob perspectivas moral, pois o racismo e as práticas discriminatórias representam grave questão de índole moral com que defrontada qualquer sociedade, notadamente, as livres e fundadas em bases democráticas.

110

Dworkin, R. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade: Trad: Jussara Simões. 2ª Ed. São Paulo, Editora Martins Fontes, 2011. Pág.587. 111

Dworkin, R. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade: Trad: Jussara Simões. 2ª Ed. São Paulo, Editora Martins Fontes, 2011. pág. 606 112

STF. Informativo nº 663

Com base nos argumentos até aqui expostos, o Pretório Excelso adotou

plenamente a validade do conceito de justiça distributiva com enfoque no

princípio da igualdade material e com o estabelecimento de regras. O mais

interessante foi a aproximação entre o direito e a moral, ficando nítido pontos

de intercessão como forma de resgatar e dotar oportunidades para os menos

aquinhoados.

Atento aos reclamos da doutrina e ao posicionamento jurisprudencial, o

Parlamento Brasileiro aprovou e a Chefe do Poder Executivo sancionou a Lei

no 12.711, de 29 de agosto de 2012, a qual estabeleceu um sistema misto de

cotas para o ingresso nos cursos de graduação e instituição federal de ensino

superior, de ensino técnico de nível médio, e regulamentou a mesma lei por

intermédio do Decreto nº 7824, de 11 de outubro de 2012, ampliando o seu

alcance através dos resultados obtidos pelos estudantes no exame nacional de

ensino médio (Enem).

É interessante frisar que a legislação criou um sistema misto de cotas

baseado em renda, em etnia- nos casos em que houver autodeclaração de

pretos, pardos e indígenas -, e por aqueles que tenham cursado integralmente

em escolas públicas. Verifica-se a existência de um critério triplo de inclusão

em decorrência do princípio da igualdade material.

A grande questão é como definir critérios para aferir a equação justa da

desigualdade material dos negros, pobres, marginalizados pela raça, pelo sexo,

por opção religiosa, por condições econômicas inferiores, por deficiência,

idade, etc??

Nessa seara, indaga-se em que dimensão podem e devem intervir os

planos e programas de governo e das instituições privadas no universo de

cidadãos usuários de algum serviço público, emprego em disputa em face dos

grupos que o Estado entende necessário tutelar em face do principio da

igualdade material113? A sugestão otimizada pela ministra Carmem Lúcia é no

sentido de utilizar-se da experiência decorrente dos Estados Unidos, em que

consignou a seguinte afirmação:

113

Rocha, C. L. A., Ação afirmativa. O conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica. Revista de Informação Legislativa, Brasília, 33 nº 131 jul/set 1996, pág. 286

É importante salientar que não se quer ver produzidas novas discriminações com a ação afirmativa, agora em desfavor das maiorias, que , sem serem marginalizadas historicamente, perdem espaços que antes detinham face aos membros dos grupos afirmados pelo princípio igualador do direito. Para se evitar que o extremo oposto sobreviesse é que os planos e programas de ação afirmativa adotados nos Estados Unidos e em outros estados primaram sempre pela fixação de percentuais mínimos garantidores da presença das minorias que por eles se buscavam igualar, com o objetivo de se romperem os preconceitos contra elas, ou pelo menos propiciarem-se de condições para a sua superação em face da convivência juridicamente obrigada.

No mesmo sentido arremata o prof. José Nicolau Heck, para quem “ O

estabelecimento dos sistemas de cotas para negros é um mecanismo

adequado do Estado Democrático de Direito para compensar injustiças de

longa duração contra a população negra em todo o território brasileiro (...).

Democracia é um preceito e não um boné social”114 .

Por fim, é interessante a observação feita por Dworkin115 quando ele

apropriadamente distingue a política de princípio:

Denomino “política” aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade (ainda que certos objetivos sejam negativos pelo fato de estipularem que algum estado atual deve ser protegido contra mudanças adversas). Denomino “princípio” um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade”.

6 A conexão entre o direito e a moral nas ações afirmativas

Os direitos individuais são prerrogativas, trunfos, que os seres humanos

possuem e que fazem valer quando as justificativas apresentadas para

negarem os mesmos se mostram insuficientes, dezarrazoadas ou imorais.

114

Heck, J. N. Sistema de cotas versus exclusão social. Disponível em http://www2.ucg.br/flash/artigos/0308cotas.html. Acesso em 29 de out de 2012. 115

Dworkin, R. Levando os direitos a sério. Trad: Nelson Boeira. 2ª ed. São Paulo. Edição Martins Fontes, 2007.

Entende-se o conceito imoral em um dado tempo espaço-cultural de uma

determinada sociedade.

Dworkin116 defende que os indivíduos podem ter outros direitos, ainda

que não expressados pela lei ou por qualquer decisão judicial, mesmo que

venham a se tratar de casos difíceis:

O capítulo 4 sugere uma teoria conceitual alternativa que mostra como os indivíduos podem ter outros direitos jurídicos além daqueles criados por uma decisão ou prática expressa, isto é, que eles podem ter direitos ao reconhecimento judicial de suas prerrogativas, mesmo nos casos difíceis, quando não existem decisões judiciais ou práticas sociais inequívocas que exijam uma decisão em favor de uma ou outra parte.

A questão das ações afirmativas está revestida não raro de aspectos

morais. Não há como negar isso. Na fundamentação dos argumentos

favoráveis e contrários, encontramos expressões de como ocorrerá violação ao

critério meritório (como entender o mérito se não há igualdades na disputa), tal

como: busca da necessária compensação por um passado infame e elitista que

subtraiu oportunidades a diversos segmentos sociais nos dias de hoje (não há

como compreender se não revestirmos de moral, uma vez que ninguém

pertence a esse passado já não tão recente).

Seria correto dizer que as ações afirmativas prejudicam os que delas

são beneficiados, em virtude de seus critérios estigmatizantes que por ventura

possuem nas instituições de ensino? Existirão sempre duas opiniões

doutrinárias: as favoráveis e as contrárias. Não obstante, esta divergência

prevalece ainda entre aqueles inseridos como aptos a participarem das ações

afirmativas. Contudo, não se pode afirmar a inferioridade dos ingressantes

deste sistema. Não se pode também cotejar que será bem ou mais sucedido no

plano profissional. Apenas o tempo revelará. O expressivo número de

preenchimento através das cotas no sistema de ensino superior está a

demonstrar, em um primeiro momento, o êxito das ações afirmativas.

116

Dworkin, R. Levando os direitos a sério. Trad: Nelson Boeira. 2ª ed. São Paulo. Edição Martins Fontes, 2007 Pág. XVI

A ação afirmativa imprime duplo papel: a diversidade e a justiça social. A

diversidade acaba por permitir a troca de valores, culturas, costumes e

realidades socioeconômicas, a seu turno, a justiça social aproxima aqueles que

por infortúnio estão distantes da camada econômica mais desenvolvida e

permite, para servirmos de um linguajar comum, uma oportunidade ao sol.

Essa aproximação entre o direito e a moral na jurisprudência pátria

decorre do próprio pluralismo encartado na Carta Magna, que de resto é

possível verificar em grande parte do mundo ocidental. Lapidar a lição de

Gustavo Zagrebelsky117, ao enfatizar que:

Las sociedades pluralistas actuales – ES decir, las sociedades marcadas por la presencia de uma diversidad de grupos sociales com intereses, ideologias y proyectos diferentes, pero sin que ninguno tenga fuerza suficiente para hacerse exclusivo o dominante y, por tanto, establecer la base material de la soberania estatal em el sentido del pasado -, esto es, las sociedades dotadas em su conjunto de um cierto grado de relativismo, asignam a la Constitución no la tarea de establecer directamente um proyecto predeterminado de vida em común, sino la de realizar las condiciones de posibilidad de la misma.

Acreditamos que não é equivocado dizer que a Constituição acaba por

irradiar diversos valores morais que não excluem, nem tampouco incluem

nenhuma categoria: permitem a integração dos diversos segmentos sociais

através da multifocalidade abrangente, sem que haja exclusão de nenhum,

dentro de possibilidades morais abertas no trato da interpretação do Texto

Maior, ou seja, dentro de uma proposição de uma interpretação moral.

A velha dicotomia direito e moral não tem mais razão para subsistir, ao

menos no plano concebido da superada dogmática jurídica, na qual o direito

válido era o posto e não o suposto. É que aos poucos as normas já não se

faziam suficientes por si só para responderem aos anseios sociais. As

demandas sociais e jurídicas que não encontravam solução no ordenamento

positivado fizeram com que os tribunais utilizassem os princípios, os valores e

o aspecto moral contido na Carta Magna.

117

Zagrebelsky, G. El derecho dúctil. Trad: Marina Gascón.10ª ed. Editorial Trotta. Madrid, 2011, pág.13.

Nesse diapasão, as diversas partes integrantes ou plurais, acabam por

modelar o seu conceito de justiça, de forma que as suas aspirações estejam

encartadas e no centro da discussão do direito. Isso acaba por permitir uma

variedade de interpretações sem que se possa dizer que uma é melhor do que

a outra, pois o que se está em busca é a plena efetividade constitucional.

Acentua Gustavo Zagrebelsky118, que:

En estas condiciones, la pluralidad de métodos y su equivalência no es um defecto, sino uma posibilidad de êxito cuando se interpreta la ley buscando la regla adecuada. La interpretación legislativa abierta no es um error que la actual ciência Del derecho deba corregir, sino um aspecto irrenunciable a la vista de su objetivo. Las posibilidades de la interpretación dependem además de la actitud del proprio legislador. La discrecionalidad de que goza el intérprete para reconduzir a la ley las exigências de regulación que presenta el caso no sólo depende de lós métodos de interpretación y de su número, sino tambien de la estructura de la propia ley. A veces, incluso, El derecho, por así decirlo, no presenta resistência a ser interpretado de acuerdo com estas exigências <<casuísticas>>. Esto sucede sobre todo com las normas <<elásticas>> o <<abiertas>>, es decir, las que utilizan las llamadas <<clausulas generales>>...

Conclusão

Dworkin, em sua obra a Virtude Soberana119, reporta-se a um estudo

levado a cabo nos 30 anos de ações afirmativas nos Estados Unidos para

ingresso nas instituições de ensino denominado “A forma do rio”,

demonstrando que os mesmos foram exitosos, em especial nas universidades

mais exigentes, e que também não houve nenhum grande constrangimento ou

arrependimento dos que cursaram a faculdade, sendo igual as diversas

possibilidades de participação de negros e brancos nos mais variados campos

profissionais ou políticos.

No Brasil, não obstante não possuirmos nenhum estudo científico

comparativo sobre as ações afirmativas e suas consequências sociais, não é

118

Zagrebelsky, G. El derecho dúctil. Trad: Marina Gascón.10ª ed. Editorial Trotta. Madrid, 2011, pág.136. 119

Dworkin, R. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade: Trad: Jussara Simões. 2ª Ed. São Paulo, Editora Martins Fontes, 2011

errado afirmar o êxito destas medidas, pois permitem o acesso ao ensino de

qualidade para aqueles que ficam a margem da sociedade brasileira.

Contudo, frisa-se que as ações afirmativas não devem ser eternas.

Dessa forma teríamos uma espécie de discriminação odiosa, que não atingiria

o efeito preconizado por elas, que é buscar a igualdade material enquanto as

mesmas persistirem, ou seja, a temporalidade é a sua marca mais forte.

O confinamento social ao qual alude Dworkin120, acaba sendo superado

pela implementação das políticas de ações afirmativas, e ao traçar a linhas

mestras de sua obra á pouco citada, afirma:

O argumento deste livro – a resposta que oferece ao desafio da consideração igualitária – é dominado por esses dois princípios agindo em conjunto. O primeiro princípio requer que o governo adote leis e políticas que garantam que o destino dos seus cidadãos, contanto que o governo consiga atingir tal meta, não dependa de quem eles sejam – seu histórico econômico, sexo, raça ou determinado conjunto de especializações ou deficiências. O segundo princípio exige que o governo se empenhe, novamente se o conseguir, por tornar o destino dos cidadãos sensível às opções que fizeram.

Os abismos sócio-econômicos existentes no Brasil ainda são gritantes.

Porém, muito já foi feito, em especial com a construção pretoriana do Supremo

Tribunal Federal que reconheceu a constitucionalidade das ações afirmativas

nas instituições de ensino superior federal no País e estabeleceu balizas para

que as mesmas não transbordem no abuso e no desrespeito ao cidadão.

A própria interpretação das ações afirmativas, não obstante estar

revestida do caráter hermenêutico, não só admitem como reclamam uma

interpretação aberta, em que há pontos de contatos na sua argumentação

entre o direito e a moral como forma de validar o instituto de favorecer os

menos favorecidos.

Em síntese, as ações afirmativas são justas, e de certa forma, tem

conseguido levar a cabo a efetividade da justiça social promovendo a justiça

120

Dworkin, R. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade: Trad: Jussara Simões. 2ª Ed. São Paulo, Editora Martins Fontes, 2011

distributiva. A discussão colocada com êxito por Ronald Dworkin reflete a

importância que este instituto analisado possui no cenário jurídico e moral da

comunidade jurídica contemporânea.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Joaquim B. Gomes, O debate constitucional sobre as ações

afirmativas.

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, Ação Afirmativa e Direito Constitucional.

Exposição no V Congresso de Direito Constitucional do IDP – 19.11.2002.

BRASIL, Constituição Federal do de 1988. Brasília, 34ª Ed. Edições Câmara,

2011.

DWORKIN, R. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade: Trad:

Jussara Simões. 2ª Ed. São Paulo, Editora Martins Fontes, 2011.

_______Levando os direitos a sério. Trad: Nelson Boeira. 2ª ed. São Paulo. Edição Martins Fontes, 2007.

FILHO, M.G.F. Aspectos Jurídicos das ações afirmativas. Revista TST, Brasília, vol.69, nº2, jul/dez 2003.

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http://www2.ucg.br/flash/artigos/0308cotas.html. PEREIRA, T. H. J. Ação

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http://www.conjur.com.br/2012-out-13/observatorio-constitucional-licoes-eua-

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ROCHA, Carmen Lucia A., em revista de informação legislativa, Brasília 33n, 131 jul/set 1996, pág.285. Disponível em: www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/176462

SILVA, Jose Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 3ª Ed,

Malheiros editores, São Paulo, 2007.

STF. Informativo nº 663.

ZAGREBELSKY, G. El derecho dúctil. Trad: Marina Gascón.10ª ed. Editorial

Trotta. Madrid, 2011.

CAPÍTULO 7: Breves esboços na busca de um conceito de

justiça, nas perspectivas de John Rawls e Ronald Dworkin

Flávia Martins Affonso121

.

RESUMO: Buscando o trabalho demonstrar que a justiça de um não representa

necessariamente a do outro, e muito menos a de todos, vem apresentar um

pequeno esboço das correntes doutrinárias de John Rawls e Ronald Dworkin,

tentando realizar um cotejo de suas visões.

Palavras-chaves: Justiça. Conceito indeterminado. Teorias. John Rawls.

Ronald Dworkin.

ABSTRACT: Seeking to demonstrate that the job of a justice does not

necessarily represent the other, much less all, is to present a brief outline of the

current doctrinal John Rawls and Ronald Dworkin, trying to make a comparison

of their views

Keywords: Justice. Concept undetermined. Theories. John Rawls. Ronald

Dworkin

Introdução

Em sendo a “Justiça” um conceito indeterminado e metafísico, muito

vem se discutindo na doutrina a respeito de sua abrangência. Clássicas são as

discussões, na Grécia Antiga, a respeito do termo.

Apesar de Sócrates não ter formulado nenhum sistema sobre o Direito,

deixando considerações esparsas sobre lei e justiça, estabeleceu a ideia de

121

Mestranda no Instituto Brasiliense de Direito Público- IDP, Curso Constituição e Sociedade. Especialização em Processo Civil, pelo Instituto Brasiliense de Direito Público e pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Especialização em “Globalização, Justiça e Segurança Humana”, pela Escola Superior do Ministério Público da União- ESMPU. Advogada da União

justiça ligada a lei, classificando de justo quem obedecesse às leis do

Estado122.

Contudo, acabou vindo influenciar seu aluno, Platão, no sentido de

acreditar ser possível expressar as essências designadas pelos termos morais,

sustentando a necessidade de se conhecer o que fosse justiça ou virtude para

que uma ação fosse praticada sem dúvidas123.

Assim, toda a filosofia de Platão passa a ter uma conotação ética, sendo

o longo diálogo da República inspirado pelo tema fundamental da justiça. No

livro II da República, Platão declara que a partir do momento em que as

pessoas começaram a cometer injustiças uma para outras que se originou o

estabelecimento de leis e convenções entre elas.

Assim, para o filósofo, a cidade justa seria aquela em que todos os seus

cidadãos desempenham a função que melhor condiz com a natureza e talento,

exercendo cada um suas atividades conforme suas aptidões naturais. Tendo

uma doutrina exclusivamente moral, vem defender que as pessoas, ao fazerem

mal a alguém, estariam fazendo mal a si mesma. Não vem confundir, então, a

justiça com a lei.124

Aristóteles, ex-aluno de Platão, em Atenas, veio desenvolver o conceito

de justiça, que afirma ser a virtude por excelência, afirmando ser justo aquele

que obedece à lei. Contudo, preocupado com a dificuldade de aplicação da lei

abstrata em cada caso particular, assinala a importância do uso da equidade,

para fins de evitar seu uso de forma rígida e inumana.

Para tanto, vem desenvolver o conceito de justiça em seu aspecto

distributivo, deixando pressupor que a igualdade ou a desigualdade entre as

pessoas se acham já fixadas em harmonia com um certo ponto de vista que

não pode ser dado pelo princípio da justiça. Contudo, vem reconhecer que nem

122

NADER, Paulo. Filosofia do Direito. 6ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002. 123

DURANT, Will. História da Filosofia. 2ª ed. São Paulo: Record, 1996. 124

BORGES, Arnaldo. Origens da Filosofia do Direito. 1ª edição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,1999.

os homens nem as coisas são iguais entre si, sendo a igualdade sempre uma

abstração, um ponto de vista.125

Apesar de Aristóteles ser apontado como expoente da doutrina

comunitarista, ao proclamar o valor da comunidade, buscando reconciliar o

homem ao seu mundo (Hegel), e reprovando qualquer pensamento que dê

prioridade ao indivíduo, ao reconhecer que homens e coisas não são iguais

entre si, inaugura os primeiros caminhos para os correntes que, apesar de

liberais e contratualistas, por partirem do pensamento de Kant e Locke de

valorização do indivíduo e acordo de vontades para estabelecer uma ordem,

reconhecem que as desigualdades econômicas e sociais são inevitáveis, por

diferenças entre os homens.

Contudo, até o presente século, inexiste um consenso sobre o conteúdo

da Justiça, muito contribuindo, para cada visão, o lugar que o crítico pertence

na sociedade.

Como menciona Jeremy Waldron, em sua Introdução feita à sua obra

“Law and Disagreement”126, desde a publicação, em 1971, do livro de John

Rawls, “A Theory of Justice”127, “Uma Teoria da Justiça”, cientistas políticos

vêm contribuindo, muito mais do que estabelecer um significado, para as

discussões, com o não entendimento a respeito do tema, apresentando como

ponto principal de teoria o oferecimento de uma coerente e persuasiva visão de

uma sociedade bem ordenada por princípios de justiça e direito.

Apesar das críticas recebidas por Rawls, não há como se partir para

definição de um conceito moderno da Justiça sem conhecer seus estudos.

Nesse sentido, o artigo buscará abordá-los, pela leitura da obra “Justiça como

Equidade”128, em que, contudo, o próprio autor menciona existir mudanças da

teoria, bem como avançará no estudo da teoria da justiça, pelo ponto de vista

125

RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. Coimbra: Arménio Amado Editor – Sucessor, 1997, p. 90. 126

WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. New York: Oxford University, 1999, p. 1. 127

RAWLS, John. A Theory of Justice. Londres: Harvard University Press, 1971. 128

RAWLS, John. Justiça como Equidade. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

de Ronald Dworkin, estabelecido em sua obra “A virtude soberana: a teoria e a

prática da igualdade”129, que estabelece críticas àquele.

2. A teoria da justiça para Rawls

John Rawls, um dos mais conhecidos filósofos políticos norte-

americanos, falecido aos 81 anos, em 2002, é tido como o principal teórico da

democracia liberal dos dias de hoje. Em sua obra “Uma teoria da justiça”, tem

diretamente compromisso histórico com o liberalismo igualitário e o repúdio ao

utilitarismo (funcionalismo), que também marcará os trabalhos de outros

autores de importância, como Ronald Dworkin. No pensamento de Rawls, para

o utilitarismo, as ideias de igualdade e de reciprocidade somente seriam

consideradas indiretamente, como aquilo que normalmente seria necessário

para maximizar o total de bem-estar social.

Rawls, em seu percurso, buscou debater quais seriam os fundamentos

de uma sociedade justa. Em “A Theory of Justice”, propôs uma concepção de

justiça que denominou de “justiça como equidade”. Por essa concepção, “os

princípios de justiça mais razoáveis seriam aqueles que fossem objeto de

acordo mútuo entre pessoas em condições equitativas”130. E esses princípios,

apesar de afirmarem uma concepção liberal ampla de direitos e liberdades

básicos, só admitiriam desigualdade de rendas e riquezas que fossem

vantajosas para os menos favorecidos.

Para Rawls, a Justiça seria a primeira virtude das instituições sociais.

Nesse sentido131:

Justice is the first virtue of social institutions, as truth is of systems of thought. A theory however elegant and economical must be rejected or revised if it is untrue; likewise laws and institutions no matter how efficient and well-arranged must be reformed or abolished if they are injust.

129

DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. 2ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. 130

RAWLS, John. Justiça como Equidade. Op. cit., introdução feita por Erin Kelly. 131

RAWLS, John. A Theory of Justice. Op. cit., p. 3. Tradução livre: A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade é dos sistemas de pensamento. Uma teoria, porém elegante e econômica, deve ser rejeitada ou revista se é falsa, do mesmo modo as leis e instituições, não importa quão eficientes e bem-dispostas, devem ser reformadas ou abolidas se forem injustas.

No seu entender, alguma medida de acordo na concepção da justiça

seria requisito prévio para uma comunidade humana viável.

Em seu trajeto, contudo, Rawls realizou mudanças em sua teoria, nos

dois princípios de justiça usados como equidade, na organização do argumento

a favor desses princípios na posição original e em como a própria teoria da

equidade deve ser entendida, como uma concepção política de justiça e não

como parte de uma doutrina moral abrangente, respondendo a críticas de

outros juristas.

Partindo da ideia de fornecer uma base filosófica e moral aceitável para

as instituições democráticas e assim responder a questão de como entender as

exigências da liberdade e igualdade, estabelece que a ideia mais fundamental

nessa concepção de justiça é a da sociedade como um sistema equitativo de

cooperação social que se perpetua de uma geração para outra. Para tanto,

aponta duas ideias que lhe estão associadas, a de pessoas livres e iguais, e de

uma sociedade bem-ordenada, ou seja, efetivamente regulada por uma

concepção pública de justiça132.

Assim, para o pensador, a função dos princípios da justiça seria definir

os termos equitativos de cooperação social.

Por outro lado, dizer que uma sociedade é bem ordenada significaria

primeiro, e implícito na ideia de justiça, tratar-se de uma sociedade na qual

cada um aceita, e sabe que os demais também aceitam, a mesma concepção

política de justiça; segundo, e implícito na ideia de regulação efetiva por uma

concepção de justiça, todos sabem, ou por bons motivos acreditam que a

estrutura base da sociedade- suas principais instituições políticas e sociais e a

maneira como elas interagem como sistema de cooperação- respeita esses

princípios da justiça e, terceiro, os cidadãos têm um senso normalmente efetivo

de justiça.

Aponta Rawls que, na justiça como equidade, a questão da justiça entre

os povos é preterida, privilegiando-se uma definição de justiça política para

132

RAWLS, John. Justiça como Equidade. Op. cit., p. 7.

uma sociedade democrática bem-ordenada. Contudo, vem afirmar que, talvez a

melhor maneira de conceber uma ordem mundial justa seja como uma

sociedade de povos, cada povo com um regime político (doméstico) bem

ordenado e decente, não necessariamente democrático, mas que respeite

plenamente os direitos humanos básicos. Todavia, a teoria da justiça como

equidade é uma concepção política de justiça para o caso especial da estrutura

básica de uma sociedade democrática contemporânea.

Como partiu Rawls da ideia organizadora de sociedade como um

sistema equitativo de cooperação entre pessoas livres e iguais, veio apresentar

a questão de como determinar os termos equitativos de cooperação, dando a

solução de que proviriam de um acordo celebrado por aqueles comprometidos

com ela. Assim, um acordo válido, do ponto de vista da justiça política, deve

exigir pessoas livres e iguais, não devendo permitir que alguns tenham

posições de negociação mais vantajosas do que as de outros. Na posição

original, com a sua característica de “véu da ignorância”, não se permitiria que

as partes conhecessem as posições sociais ou as doutrinas abrangentes

específicas das pessoas que elas representam, também ignorando a raça e

grupo étnico, sexo, ou outros dons naturais como força e inteligência das

pessoas. Nesse sentido, é conferir133:

Um dos motivos pelos quais a posição original tem de abstrair contingências- as características e circunstâncias particulares das pessoas- da estrutura básica é que as condições para um acordo equitativo entre pessoas livres e iguais sobre os princípios primeiros de justiça para aquela estrutura têm de eliminar posições vantajosas de negociação que, como o passar do tempo, inevitavelmente surgem em qualquer sociedade como resultado de tendências sociais e históricas cumulativas.

Rawls descreve os agentes da ‘posição original’ como indivíduos que

desconhecem os traços básicos de suas biografias, vindo afirmar que uma

teoria justa não merece ser reconhecida como tal se permite que as pessoas

sejam beneficiadas ou prejudicadas por circunstâncias alheias às suas próprias

escolhas.

133

Ibidem, p. 22.

Assim, vistos exclusivamente como pessoas livres e iguais, deveriam

concordar com os termos equitativos de cooperação que devem reger a

estrutura básica.

A teoria de Rawls vem ser considerada contratualista, por Gargarella,

em sua obra “As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de

filosofia política”134, que chama a atenção para o forte igualitarismo nela

implícito.

Contudo, utilizando no seu conceito a necessidade de cidadãos livres e

iguais, tem que apontar igualdade em quê, uma vez ser da essência das

pessoas essa diferença. Assim, vem dizer que são vistas como iguais na

medida em que considera que todos têm, num grau mínimo essencial, as

faculdades morais necessárias para envolver-se na cooperação social a vida

toda e participar da sociedade como cidadãos iguais. Assim, a base da

igualdade consistiria, no grau mínimo necessário, as capacidades morais e

outras que nos permitem participar da vida cooperativa da sociedade. A

igualdade dos cidadãos na posição original seria formalizada pela igualdade de

seus representantes, direitos iguais no tocante aos procedimentos que adotam

para chegar a um acordo,

Por sua vez, os cidadãos seriam livres na medida em que consideram a

si mesmos como aos demais detentores da faculdade moral de ter uma

concepção do bem. Em segundo lugar, os cidadãos consideram a si mesmos

como livres na condição de fontes de reivindicação legítimas que se autenticam

por si mesmas.

Apesar de Rawls se determinar como um procedimentalista, vem afirmar

que nenhuma justiça procedimental pode se basear só no procedimento. Para

ele, toda teoria da justiça é substancial e procedimental- passa do

procedimento para, a partir dele, estabelecer várias concepções abrangentes.

Existiria um mínimo ético comum de todos os círculos, o mínimo do consenso,

contudo, um consenso comum, adotando como modus vivendi a tolerância.

134

GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. Tradução Alonso Reis Freire; revisão da tradução Elza Maria Gasparotto; revisão técnica Eduardo Appio. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.

Rawls, admitindo que o procedimentalismo pensado por ele nem sempre

vai levar a um resultado justo, apresenta a justificação pública como crítica a

essa legitimidade que pode levar à injustiça. Por exemplo, o Estado social

nazista era legítimo, em razão de coincidir com o consenso, mas tão injusto,

que corrompe.

A justificação pública originaria de um consenso, sendo característica de

uma sociedade bem-ordenada que sua concepção pública de justiça política

estabeleça uma base comum a partir da qual os cidadãos justificam, uns para

os outros, seus juízos políticos. Assim, para que a justiça como equidade tenha

sucesso, ela tem de ser aceitável, não só em termos de nossas convicções

bem-ponderadas, mas também para a dos outros, em todos os níveis de

generalidade, num equilíbrio reflexivo mais o menos amplo e geral.

Introduz Rawls a ideia de consenso sobreposto como forma de tornar a

sociedade bem-ordenada mais realista e ajustá-la às condições históricas e

sociais das sociedades democráticas, que incluem o fato do pluralismo

razoável135.

Assim, diz que, embora numa sociedade bem-ordenada todos os

cidadãos afirmem a mesma concepção política de justiça, não se deve supor

que façam pelas mesmas razões. Isso porque cidadãos têm opiniões

religiosas, filosóficas e morais conflitantes, e, portanto, afirmariam a concepção

política a partir de doutrinas abrangentes diferentes e opostas, mas isso não

impediria que a concepção política seja um ponto de vista comum a partir do

qual podem resolver questões que digam respeito aos elementos

constitucionais essenciais.

Procurou Rawls uma concepção política de justiça que possa granjear o

apoio de um razoável consenso sobreposto razoável para servir de base

pública de justificação.

Também, no seu capítulo 5 do livro A Theory of Justice, Rawls vem dizer

ser natural que a vida humana envolva múltiplos valores e que, em razão disso,

as pessoas discordem em como balanceá-los e priorizá-los. Que maiores que

135

RAWLS, John. Justiça como Equidade. Op. ci, p. 44.

sejam as diferentes posições e perspectivas e experiências de vida darão

diferentes bases para diferentes julgamentos. Contudo, se espera que pessoas

conscientes, após um livre discurso, cheguem à mesma conclusão, apesar de

continuarem a discordar sobre termos básicos e princípios de sua associação.

Busca Rawls estabelecer, em sua obra, quais os princípios de

justificação seriam mais apropriados para determinar direitos e liberdades

básicos e para regular as desigualdades sociais e econômicas das

perspectivas de vida dos cidadãos. Para tentar responder a pergunta, Rawls se

utiliza de dois princípios de justiça discutidos em Teoria, §§12 e 14, que são,

em ordem de precedência, os seguintes136:

Cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável a um esquema plenamente adequado de liberdades básicas iguais que seja compatível com o mesmo esquema de liberdades para todos; e As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições: primeiro, devem estar vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades; e, em segundo lugar, têm de beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade (o princípio da diferença).

Assim, a igualdade equitativa de oportunidades exigiria não só que

cargos públicos e posições sociais estivessem abertos no sentido formal, mas

que todos tivessem a chance equitativa de ter acesso a eles.

Ademais, a igualdade equitativa de oportunidades significaria a

igualdade liberal, quando seria preciso estabelecer um sistema de mercado

livre no contexto das instituições políticas e legais que ajuste as tendências de

longo prazo das forças econômicas a fim de impedir a concentração excessiva

da propriedade e da riqueza, sobretudo aquela que leva à dominação política.

Nos dois princípios transcritos, verifica-se que o primeiro abarca os

elementos constitucionais essenciais; já o segundo exigiria que a igualdade

equitativa de oportunidades e as desigualdades sociais e econômicas sejam

governadas pelo princípio da diferença.

136

Ibidem, p. 60.

Isso porque, segundo Rawls137:

Mesmo que o estado inicial tenha sido justo, e as condições sociais subsequentes também tenham sido justas durante algum tempo, os efeitos cumulados de muitos acordos separados e aparentemente equitativos celebrados por indivíduos e associações tendem, num período de tempo longo, a minar as condições de fundo necessárias para acordos livres e equitativos.

Assim criando o princípio da diferença como uma fórmula para ajustar

esses desequilíbrios sociais, Rawls o representa como um acordo que

determina que a distribuição dos talentos naturais seja considerada um bem

comum e que os benefícios dessa distribuição sejam compartilhados, sejam

eles quais forem. E, o que deveria ser considerado um bem comum seria a

distribuição dos talentos naturais, isto é, as diferenças entre as pessoas.

E, considerando a forma mais simples do princípio da diferença, os

menos favorecidos seriam aqueles que usufruem em comum com os outros

cidadãos das liberdades básicas iguais e oportunidades equitativas, mas têm a

pior renda e riqueza.138

Resumindo, para Rawls, o princípio da diferença somente deve vigorar

quando os princípios de justiça prioritários estiverem satisfeitos. Defende que

ele pressupõe um contínuo aproximado de estruturas básicas praticáveis e que

exemplos numéricos arbitrários podem facilmente ser enganosos se não

prestarmos atenção ao pano de fundo institucional comumente aceito. O

princípio da diferença seria um princípio de justiça e não uma resposta a

interesses próprios a um determinado grupo; e, por fim, as posições sociais

relevantes têm se de ser especificadas corretamente139.

O princípio da diferença exigiria um mínimo social que, junto com todo o

conjunto de políticas sociais, maximizaria as perspectivas de vida dos menos

favorecidos ao longo do tempo. Para o filósofo, a educação e saúde deveriam

ser encaradas de acordo com as diretrizes do princípio da diferença. A

137

Ibidem, pp. 74/75 138

Ibidem, p. 92. 139

Ibidem, p. 101.

assistência médica assim como os bens primários em geral devem satisfazer

às necessidades e exigências dos cidadãos livres e iguais, devendo ser

assegurado um nível básico para todos e, na medida do possível, disposições

para realizar a igualdade de oportunidades na educação e em treinamento de

vários tipos.

Defendendo uma democracia de cidadãos-proprietários, onde se

colocaria nas mãos de todos os cidadãos, e não só de uns poucos, meios

produtivos suficientes para que eles possam ser membros plenamente

cooperativos da sociedade em pé de igualdade, afirma Rawls que, ao

assegurar os direitos básicos, as liberdades básicas e as oportunidades

equitativas iguais, a sociedade política garante para as pessoas o

reconhecimento de sua condição de livres e iguais.

3. A teoria da justiça de Dworkin

Tomando por base os ensinamentos de Ronald Dworkin, na sua obra “A

virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade”140, buscarei esboçar o

conceito de justiça, sob o enfoque distributivo, do jurista, notadamente no que

se prende ao conceito de igualdade.

Para Dworkin, a igualdade se baseia em dois postulados: igual cuidado e

o princípio da responsabilidade, que indica que cada um vem ser responsável

por sua escolha. Salienta Dworkin, também, que as pessoas não podem ser

apenadas por suas circunstâncias naturais, para as quais não escolheram.

Sustenta o autor que nenhum governo legítimo pode negar a igualdade

de consideração. Consideração igualitária seria a virtude soberana da

comunidade política. Sem ela, o governo não passaria de tirania.

Aponta Dworkin que a igualdade absoluta e indiscriminada não seria um

valor. Segundo o mesmo141:

...a igualdade absoluta e indiscriminada não é apenas um valor político fraco, ou um valor que seja facilmente sobrepujado por outros valores. Não é de modo algum um valor: não há nada que se possa dizer em defesa de um mundo no qual aqueles

140

DWORKIN, Ronald. Op. cit. 141

Ibidem, p. x

que optam pelo ócio, embora pudessem trabalhar, são recompensados com o produto dos trabalhadores.

Apresenta o jurista a igual consideração como pré-requisito da

legitimidade política. A igual consideração requer que o governo aspire a uma

forma de igualdade material que chama de igualdade de recursos.

Conforme acima já afirmado, para ele, dois princípios do individualismo

ético são fundamentais: princípio da igual importância e da responsabilidade

especial.

O princípio da igual importância exige que o governo adote leis e

políticas que garantam que o destino de seus cidadãos, contanto que o

governo consiga atingir tais metas, não dependa de quem eles sejam, seu

histórico econômico, sexo, raça ou determinado conjunto de especializações ou

deficiências.

Já, pelo princípio da responsabilidade especial, embora devamos

reconhecer a igual importância objetiva do êxito na vida humana, uma pessoa

tem responsabilidade especial e final por esse sucesso. A pessoa como

responsável por suas próprias escolhas.

Assim, a resposta que Dworkin oferece ao desafio da consideração

igualitária é a combinação de dois princípios agindo em conjunto. O princípio

da igual importância requer que o governo adote leis e políticas que garantam

que o destino de seus cidadãos, contanto que o governo consiga atingir tais

metas, não dependa de quem eles sejam, seu histórico econômico, sexo, raça

ou determinado conjunto de especializações ou deficiências. Por sua vez, o

princípio da responsabilidade especial exige que o governo se empenhe por

tornar o destino dos cidadãos sensíveis às opções que fizeram.

Dworkin vem ser expoente do igualitarismo liberal, corrente que aceita a

premissa liberal de que a distribuição de riquezas sociais deve expressar, de

algum modo, as escolhas das pessoas e, que, portanto, uma distribuição

idêntica de riquezas não é necessariamente uma distribuição justa ou

igualitária. Todavia, vem sustentar que, em direção oposta, deve-se concluir

que as desigualdades materiais que não poderiam ser atribuídas às escolhas

das pessoas, ou seja, as que se devem a circunstâncias fora de seu controle,

não são justificadas. Assumimos responsabilidades por nossas escolhas de

variadas maneiras. Todavia, as desigualdades resultantes de circunstâncias

são moralmente arbitrárias e merecem alguma forma de correção.

Ao falarmos de igualdade, devemos sempre perguntar de quê? Para

Dworkin, a igualdade é de recursos e não de bem-estar.

A palavra bem-estar envolveria uma indeterminabilidade de conceito (o

que seria felicidade?). Assim como dependeria da subjetividade, das diferenças

entre as pessoas, bem como existente a dificuldade de comparação dos seus

níveis.

Aponta como críticas ao conceito de bem-estar, para balizar a ideia de

igualdade, as deficiências142 e gostos dispendiosos143.

Como ponto problemático do bem-estar, sob o enfoque do gosto

dispendioso, indica Dworkin o gosto pelo champanhe. Contudo, salienta que se

a comunidade resolver desencorajar os gostos dispendiosos, pode gerar uma

sociedade conformista, sem imaginação e, por outro lado, sem atrativos. Quem

escolhe uma vida dispendiosa, por outro lado, não merece compensação.

Também temos as deficiências. Em muitos casos, os deficientes têm

renda inferior e, portanto, não têm nem recursos materiais iguais aos dos

outros. E algumas pessoas, com deficiências gravíssimas, precisam de renda

extra só para sobreviver. No entanto, muita gente com deficiências graves tem

alto nível de bem-estar em qualquer conceito. Também, uma pessoa com

deficiência muito séria, mesmo que recebesse muito recurso, não teria um

bem-estar maior, como um tetraplégico.

Dworkin, para usar a igualdade de recursos como critério para a

igualdade, estabelece que deve ser sensível às escolhas e insensível às

circunstâncias.

142

Ibidem, pp.70-74. 143

Ibidem, pp.55-69;

Requer, para tanto, uma estratégia de filosofia, da situação hipotética, de

um leilão hipotético em uma ilha deserta, em que os indivíduos devem decidir,

como se fosse a primeira vez, regras justas de convivência.

O leilão hipotético representaria um mercado em condições ideias,

levando em conta as diversidades de preferências entre as pessoas e as

escolhas implicadas por essas diversidades. Nesse leilão, os náufragos

participariam com poder paritário de aquisição. O melhor lance representaria as

preferências e planos de vida. Escolhas voluntárias, mas não as circunstâncias

pessoais.

Dworkin acaba por reafirmar a importância do mercado como

instrumento de alocação justa de custos de oportunidade, mas enfatizando a

necessidade de corrigi-lo com medida retributiva para que a divisão de riqueza

seja efetivamente sensível ao critério de escolha. Nesse sentido144:

Assim, se a justiça exige um leilão igualitário quando chegam, deve exigir um novo leilão igualitário de vez em quando a partir de então, e se a justiça exige o laissez-faire dali em diante, deve exigir quando chegam.

Pelo seguro hipotético, as pessoas se tornariam iguais em face do risco.

Assim, se é impossível, em alguns casos indesejáveis, equalizar todas as

desigualdades materiais atribuíveis às circunstâncias, é possível equalizar as

oportunidades que as pessoas têm para se proteger dos riscos de possuir

menos riquezas por razões aleatórias, isto é, circunstâncias.

Aponta que, no seguro, haveria um poder aquisitivo paritário, mais o não

conhecimento da predisposição do risco (véu da ignorância), representando

medida correta para redistribuir na sociedade os recursos entre quem ganha e

quem perde. O mecanismo do seguro não eliminaria as desigualdade materiais

produzidas em decorrência das circunstâncias, mas as minimizaria.

Inclusive, para a saúde, defenderia um seguro hipotético, com a

cobertura que as pessoas médias da comunidade teriam contratado em um

mercado de seguro competitivo.

144

Ibidem, p, 111.

Na igualdade de recursos, as pessoas decidem que tipo de vida procurar

munidas de um conjunto de informações sobre o custo real que suas escolhas

impõem a outras pessoas e, consequentemente, ao estoque total de recursos

que pode ser equitativamente utilizado por elas.

Para Dworkin, a igualdade requer que aqueles que escolhem meios mais

dispendiosos de viver, o que inclui a escolha de ocupações menos produtivas

avaliadas pelo que os outros querem, tenham como consequência menores

rendimentos residuais, mas também requer que ninguém tenha menos

rendimentos simplesmente por ter menos talento inato145.

Então precisamos procurar, em outra parte, o fundamento para rejeitar a ideia de levar o trabalho como recurso ao leilão. Não precisamos procurar muito longe, de fato, pois o princípio de que não se deve punir as pessoas pelo talento simplesmente faz parte do mesmo princípio em que nos baseamos para rejeitar a ideia obviamente oposta, de que se deve permitir que as pessoas conservem os benefícios do talento superior.

Dworkin apresenta a hipótese no sentido de que admitamos um mundo

imaginário no qual, embora a distribuição de habilidades por toda a

comunidade fosse, no conjunto, o que realmente é, por algum motivo todas as

pessoas tivessem as mesmas oportunidades prévias de sofrer as

consequências da falta de determinado conjunto de habilidades, e estivessem

todas dispostas a comprar um seguro contra essas consequências na mesma

estrutura de preço. Apólice do tipo, seguro contra a ausência de oportunidade

de alcançar qualquer nível de rendimentos escolhido pelo segurado, dentro da

estrutura projetada, e, nesse caso, a companhia de seguros pagará ao

segurado a diferença entre o nível de cobertura e a renda que ele de fato tem a

oportunidade de receber.

Para o cálculo do valor do prêmio e cobertura, aponta o seguinte critério:

embora a perda financeira na queda em rendimentos, digamos dos 70% para

os 60%, seja muitíssimo maior do que a perda na queda dos 40% para 30%, as

consequências do bem-estar provavelmente seriam, em média, muito piores

para a segunda queda.

145

Ibidem, p. 115.

Quando o nível de cobertura e, por conseguinte, do prêmio cai, essas

desvantagens especiais de bem-estar não são mitigadas, mas, na verdade,

desaparecem completamente. Isso por gerar maiores opções de emprego e

diminuição do risco de ser escravizado em uma carreira que não goste, em

razão de ter escolhido um prêmio mais caro. Aponta um exemplo hipotético do

caso Deborah, a artista de cinema, cujo talento era reconhecido por todos, mas

que detestava a profissão, porém estava presa e escravizada por seu talento

por ter um nível de cobertura de seguro muito alto.

Aponta Dworkin que a tributação colocada como prêmio, com base no

mercado hipotético, tem defeitos graves. Isso porque, além de injusto que tanto

ricos e pobres paguem o mesmo imposto, como risco de trapaceamento de

habilidades.

4. Das críticas de Dworkin a Rawls

Para Dworkin, o princípio da diferença de Rawls não estaria

suficientemente aprimorado em diversos aspectos146.

Para ele, existiria um grau de arbitrariedade concedido na escolha de

qualquer descrição de grupo baseado na pior situação, pois, de qualquer

forma, seria um grupo cujas fortunas só poderiam ser registradas por meio de

uma média mítica ou de um membro representativo daquele grupo.

Em especial, aponta que a estrutura se mostra insuficientemente

sensível à posição das pessoas com deficiências naturais, físicas ou mentais,

que não constituem em si um grupo em pior situação, pois este, para Rawls, é

definido economicamente, não podendo contar com um representante ou um

membro médio de tal grupo.

O próprio Rawls indicaria que, nesse caso, deveria ser usado o princípio

da reparação, que não estaria contido no da diferença, que funcionaria de

maneira similar ao descrito no princípio da igualdade de Dworkin.

Contudo, afirma Dworkin que Rawls indicaria que o princípio da

diferença se encaminharia no mesmo sentido do da reparação, na medida em

146

Ibidem, pp.148-156.

que a educação especial para os deficientes acabaria por privilegiar a classe

economicamente mais desprivilegiada, criticando esse pensamento, afirmando

não haver motivo para pensar que funcionaria, pelo menos em circunstâncias

normais.

Dworkin aponta também que tem sido assinalado, com frequência, que o

princípio da diferença não teria sensibilidade suficiente para variações na

distribuição acima da classe econômica em pior situação. Para tanto, nos

apresenta o exemplo da catástrofe. Para Dworkin, alguma catástrofe iminente

obrigaria as autoridades a escolher, agindo de modo que o representante da

pequena classe dos mais pobres piore muito pouco, enquanto a dos outros

piore drasticamente e ele se tornem quase tão pobres quanto os mais pobres.

Apesar de entender, contudo, ser uma hipótese rara, critica que, em

todas as circunstâncias, seria realmente a situação do grupo mais pobre que

determinaria o que é justo.

Já, ao defender a sua teoria, em contraposição, Dworkin nos explica que

a igualdade de recursos não isola qualquer grupo, mas pretende oferecer uma

descrição de igualdade de recursos pessoa por pessoa, propondo que a

igualdade é na questão do direito individual e não de grupo. Assim, mesmo

quando a teoria emprega a ideia de curva média de utilidade, como faz no

mercado hipotético de seguros, toma em consideração, para os juízos de

probabilidade, os gostos e aspirações de determinadas pessoas, sob o ponto

de vista individual e não de grupos. Já o princípio da diferença, de Rawls,

vincularia a uma classe, pois, para ele, a justiça, na posição original, estaria

organizada, por motivos práticos, em classes desde o início.

Também indica o jurista que a igualdade de recursos apontaria para uma

igualdade absoluta maior no que Rawls chamaria de bens primários, dando o

exemplo de um imposto necessário para oferecer a cobertura aos deficientes e

aos desempregados que tenha, a longo prazo, a possibilidade de reduzir os

investimentos, bem como as perspectivas de bens primários para o membro

representativo da classe mais pobre. Enquanto o princípio da diferença

condenaria o imposto, a igualdade de recursos o recomendaria assim mesmo.

Também, pelo princípio da diferença, de Rawls, deve haver a igualdade

generalizada nos bens primários, sem contemplar as diferenças em aspirações,

ocupações, consumo, etc. Para Dworkin, essa análise unidimensional da

igualdade seria simplesmente insatisfatória se aplicada pessoa a pessoa.

Também, como crítica, vem apontar que o contrato social de Rawls

pretende isolar a moralidade política dos pressupostos éticos e das

controvérsias a respeito do caráter da vida boa.

Por fim, como uma diferença marcante entre as teorias vem dizer

Dworkin que, enquanto a teoria da igualdade permite às pessoas um

autoconhecimento suficiente, como indivíduos, para manter relativamente

intacta a noção de suas próprias personalidades, é essencial à posição original

de Rawls que seja exatamente esse conhecimento que falte às pessoas. Para

Dworkin, a posição original exigiria alguma teoria da igualdade para poder ser

utilizada como dispositivo das argumentações pela justiça. Assim, seria

necessária alguma teoria da igualdade para explicar porque a posição original

é um dispositivo útil.

Conclusão

O artigo, por um método descritivo, vem traçar as linhas básicas dos

pensamentos de Rawls e Dworkin, ambos considerados liberais igualitários,

naquilo que os seus ensinamentos abordam a justiça distributiva.

Ambos os juristas, partindo da ideia liberal de liberdade, buscam conter

os desequilíbrios do mercado por meio de uma cooperação social embasada

em uma concepção de justiça.

Enquanto para Rawls, a socidade deve garantir os meios mínimos que

permitam aos indivíduos realizar seus projetos de vida, para tanto se utilizando

do conceito filosófico da posição original, onde os indivíduos deliberariam,

nesse grande contrato, sob o véu da ignorância, situação hipotética em que

desconheceriam as particularidades do grupo que representam, Dworkin vem

criticar esse conceito, aduzindo desprezar as particularidades individuais e,

criando, por outro lado, a sua teoria do leilão hipotético, onde todos os

náufragos, também em posição original, ganhariam um mesmo número de

conchas que possibilitassem escolher, no leilão, a parte do território de uma

ilha ainda não habitada.

Nesse sentido, cada um, conforme as suas particularidades, poderia

investir naquilo que correspondesse seus desejos e aspirações.

Depois do leilão realizado, seria promovida a conferência do seu acerto,

ou seja, da distribuição ideal, por meio do teste da cobiça, que, mesmo assim,

já demonstraria desigualdades, não só provocadas por circunstâncias

pessoais, como talento, como pelas naturais, como catástrofes.

Por sua vez, Rawls admite que, ao valorizar as liberdades, acaba por

reconhecer que produzem desigualdades sociais, para tanto se utilizando de

um método corretivo do princípio da diferença.

Para fins de entender as exigências da liberdade e igualdade e

harmonizá-las, Rawls estabelece como ideia mais fundamental na concepção

de justiça a da sociedade como um sistema equitativo de cooperação social

que se perpetua de uma geração para outra, para tanto, sendo necessárias

pessoas livres e iguais e uma sociedade bem-ordenada.

Está na base do pensamento de Rawls a ideia de acordo. Assim, como

já afirmado, na posição original, com a sua característica de “véu da

ignorância”, não se permitira que as partes conhecessem as posições sociais

ou as doutrinas abrangentes específicas das pessoas que elas representam,

também ignorando a raça e grupo étnico, sexo, ou outros dons naturais como

força e inteligência das pessoas.

Por sua vez, através da justificação pública, introduz Rawls a ideia de

consenso sobreposto como forma de tornar a sociedade bem-ordenada mais

realista e ajustá-la às condições históricas e sociais das sociedades

democráticas, que incluem o fato do pluralismo razoável.

Para Rawls, pela igualdade equitativa de oportunidades, seria preciso

estabelecer um sistema de mercado livre no contexto das instituições políticas

e legais que ajuste as tendências de longo prazo das forças econômicas a fim

de impedir a concentração excessiva da propriedade e da riqueza, sobretudo

aquela que leva à dominação política. Daí o princípio da diferença, sendo

considerado bem comum a distribuição dos talentos naturais.

Dworkin, por sua vez, vem nos conceder a ideia do seguro hipotético

como mecanismo para corrigir as distorções do mercado, representando a

simbologia de um reavivamento do leilão igualitário. Esse seguro hipotético

permitiria que as pessoas se tornassem iguais em face do risco, defendendo

um nível de cobertura não alto, para fins de se evitar a escravização do talento

assim como permitir a participação de todos.

Ao defender a sua teoria, em contraposição a Rawls, Dworkin nos

explica que a igualdade de recursos não isola qualquer grupo, mas pretende

oferecer uma descrição de igualdade pessoa por pessoa, propondo que a

igualdade é na questão do direito individual e não de grupo. Assim, mesmo

quando a teoria emprega a ideia de curva média de utilidade, como faz no

mercado hipotético de seguros, toma em consideração, para os juízos de

probabilidade, os gostos e aspirações de determinadas pessoas, sob o ponto

de vista individual e não de grupos. Já o princípio da diferença, de Rawls,

vincularia a uma classe, pois, para ele, a justiça, na posição original, estaria

organizada, por motivos práticos, em classes desde o início.

Assim, para Dworkin, pelo princípio da diferença, de Rawls, deve haver a

igualdade generalizada nos bens primários, sem contemplar, contudo, as

aspirações, ocupações consumos, etc, o que seria simplesmente insatisfatória.

Assim como também aponta que existiria um grau de arbitrariedade na escolha

de qualquer descrição de grupo baseada na pior situação, bem como o

princípio da diferença não teria sensibilidade suficiente para variações na

distribuição acima da classe econômica em pior situação.

Por fim, como uma diferença marcante entre as teorias, vem dizer

Dworkin que, enquanto a teoria da igualdade permite às pessoas um

autoconhecimento suficiente, como indivíduos, para manter relativamente

intacta a noção de suas próprias personalidades, é essencial à posição original

de Rawls que seja exatamente esse conhecimento que falte às pessoas.

Referência Bibliográficas

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tradução Elza Maria Gasparotto; revisão técnica Eduardo Appio. São Paulo:

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Fontes, 2003.

WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. New York: Oxford University,

1999.

CAPÍTULO 8: REFLEXÕES ACERCA DA CONCEPÇÃO DE

DEMOCRACIA DE DWORKIN E O MODELO DE SUPREMACIA

JUDICIAL

Roberto Carlos Martins Pontes

Resumo:O presente artigo objetiva examinar as bases conceituais da

democracia, conforme os estudos de Ronald Dworkin, constantes de sua mais

recente e derradeira obra Justiça para Ouriços. Além de discutir as concepções

de democracia, também se discute a adequação da concepção majoritária, e a

regra da maioria, às questões políticas, com especial atenção ao judicial

review, e o modelo de supremacia judicial. Além dos aspectos teóricos, o artigo

faz considerações sobre o contexto brasileiro, especialmente sobre propostas

de aperfeiçoamento do modelo institucional atual, e sobre decisões recentes do

STF que foram objeto de controvérsias também relativas ao nosso peculiar

modelo de supremacia judicial.

Palavras-chaves: Democracia – Jurisdição Constitucional – Escrutínio

Judicial -Democracia Majoritária – Democracia de Parceria - Regra da Maioria -

Supremacia Judicial - Separação de Poderes – Diálogo Institucional.

Introdução

O debate acerca da tensão entre a jurisdição constitucional e o regime

democrático tem sido cada vez mais intenso, seja na academia e até no

quotidiano brasileiro.

Casos recentes decididos pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de

grande repercussão, tais como a perda de mandatos de parlamentares

condenados criminalmente147 e a determinação de apreciação sequencial de

vetos presidenciais, aqueceram o debate sobre o monopólio da última palavra

nas questões constitucionais.

147

STF – Ação Penal nº470 – caso popularmente conhecido como “Mensalão”.

O cerne desse debate reside na crença de que o Parlamento expressa a

vontade popular no processo de elaboração de leis e na possibilidade de um

grupo de juízes nomeados (não eleitos) e vitalícios decidirem anular algumas

das leis elaboradas por tais representantes eleitos.

Nesse ambiente de tensão entre democracia e jurisdição, começamos

examinando as bases conceituais da democracia, e suas vertentes. Nesse

artigo, seguiremos o estudo de Ronald Dworkin sobre democracia, contido em

sua mais recente obra “Justiça para Ouriços”.

Nessa obra, de título curioso148, Dworkin aborda entre tantos temas, a

Política. Nessa parte (Parte V), dedica um capítulo ao exame da Democracia. É

manipulando os conceitos e concepções de Dworkin sobre democracia e temas

correlatos – A Representação Política - que avançamos para o exame do

modelo supremacia judicial e como a jurisdição constitucional pode contribuir

ou comprometer a democracia.

Naturalmente, as considerações acadêmicas de Dworkin não se

restringem ao seu país – os Estados Unidos – ou à Europa – onde viveu parte

de sua vida, e desenvolveu estudos sobre o Direito -, mas procuramos trazê-los

ao contexto brasileiro.

2 Democracia - Concepções

Uma comunidade política não pode prescindir da imposição coercitiva de

decisões tomadas coletivamente sobre justiça e moral. O desafio posto é, em

síntese, definir o procedimento de tomada das decisões coletivas.

Em face do conteúdo interpretativo do conceito de democracia (as

pessoas discordam sobre o seu sentido e significado) e de suas faces, há que

se levar em conta sempre o contexto institucional dos países considerados no

estudo.

148

Ronald Dworkin se autodenominava um “ouriço”, na perspectiva do que disse o poeta grego Arquíloco: “A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa muito importante”. Em sua obra “Justiça para Ouriços”, Dworkin trata entre tantos assuntos, da integridade de valores, que em sua concepção, não se põem em conflito.

Sem dúvida, influenciam a democracia a indeterminação do conjunto de

votantes, o sistema eleitoral em vigor (distrital ou proporcional149), o sistema de

governo (presidencialismo ou parlamentarismo), a forma do Estado (o grau de

federalismo150), a frequência na realização de eleições, e outros fatores.

Por influenciar a determinação do conjunto de votantes, bem como do

modo de participação nas tomadas de decisões, tais fatores interferem

claramente no conteúdo (teor democrático) das leis. É justamente nesse tópico

que Dworkin lança várias indagações: seria um sistema mais democrático que

o outro? O controle judicial de constitucionalidade de atos legislativos e

executivos feito por juízes nomeados e vitalícios seria um corretivo necessário

ou desejável para a democracia? Ou ainda uma prática indispensável para se

experimentar uma democracia genuína?

Tais indagações são cruciais, tendo em vista o conceito indeterminado e

interpretativo de democracia. Trataremos de responde-las ao longo do artigo.

Dworkin propõe, e contrapõe em diversos momentos ao longo de seu

texto, dois modelos de democracia: a majoritária e a de parceria (partnership),

a partir do quais examina as questões postas.

Na concepção majoritária, as estruturas do governo representativo são

concebidas para fazer refletir nas leis e políticas públicas as preferências do

grupo que traduz a maioria da comunidade. Presume-se, por óbvio, a

realização frequente de eleições.

Dworkin alerta também para o cuidado de não se confundir a concepção

majoritária de democracia com modelos agregativos de justiça, como o

utilitarista – que entende as leis como justas quando produzem a “maior

quantidade possível” de bem estar médio (geral) em dada comunidade. É bem

149

Em linhas gerais, o sistema proporcional visa a representar o mosaico social, assegurando às minorias uma representação parlamentar compatível com sua dimensão. O sistema distrital majoritário é acompanhado sempre do desafio relacionado ao desenho dos distritos e da distribuição da população em tais distritos. Sua definição é até intuitiva: o mais votado no distrito conquista a vaga parlamentar. Tal sistema, segundo estudos de ciência política, pode gerar subrepresentação de minorias. 150

DWORKIN, Ronald. Justiça para Ouriços. Coimbra: Almedina, 2012. Tradução: Pedro Elói Duarte. p. 389. Dworkin sustenta que o federalismo e a descentralização propiciam, normalmente, decisões políticas “mais racionais e fornecem um maior sentido de participação no governo democrático”.

possível (como já ocorreu) de a maioria produzir leis que causem graves

prejuízos ao bem estar médio, assim como o inverso também é possível: uma

distribuição justa de recursos ser realizada por um autocrata.

Por essas razões os defensores da concepção majoritária de

democracia enfatizam a distinção entre democracia e justiça.

A concepção de parceria da democracia, por sua vez, não encontra seu

significado central no governo da maioria, que exerce sua autoridade sobre o

conjunto de todas as pessoas, mas nas próprias pessoas, quando agem como

parceiras.

Evidentemente, parceria não significa unanimidade, mas a aceitação das

condições de legitimidade, assim como o compromisso de agir com respeito e

igual consideração com todos os parceiros (integrantes) da comunidade.

Estabelecidas as bases conceituais de cada concepção de democracia,

Dworkin indica, então, a diferença mais relevante entre elas. A concepção

majoritária é naturalmente um “procedimento”, enquanto a concepção de

parceria está ligada ao grau de legitimidade alcançado - é um ideal buscado

pelas comunidades, com êxito variável -.

O contraste entre as concepções é ilustrado no debate acerca da

compatibilidade entre a democracia e jurisdição constitucional (judicial review),

sobretudo nos Estados Unidos.

A concepção majoritária não é, necessariamente, incompatível com o

judicial review, desde que sua incidência seja limitada a assegurar a

permanência da livre manifestação do pensamento. Em geral, é o que

defendem os procedimentalistas, como John Hart Ely.

Outras matérias, no entanto, enfrentam a oposição de adeptos da

concepção majoritária. Referimo-nos a questões como aborto ou casamento

homossexual151. Dada a natureza controversa dessas questões, em vez de

151

No Brasil, as questões controversas, com evidente custo eleitoral, em face da divisão da sociedade, tais como a união homoafetiva, têm sido levadas diretamente ao Poder Judiciário, sob o argumento de que o Parlamento não enfrenta a questão. Observa-se, assim, um verdadeiro “atalho” de setores da população que buscam o STF para decidir questões

“delegar” a decisão a um pequeno grupo de juízes isentos de eventual

“afastamento” pela via eleitoral, a decisão deveria caber à maioria.

Na concepção de parceria, há que se observar o pré-requisito de

legitimidade das instituições que decidem em nome da maioria, para

obediência de todos. Nesse modelo, a maioria só tem autoridade moral para

decidir questões controversas se forem suficientemente legítimas.

Nesse contexto, Dworkin considera o judicial review uma estratégia

possível que reforça tanto a legitimidade do governo – pela proteção que deve

exercer em relação à minoria –, quanto o direito moral da maioria para impor

sua vontade à minoria.

Ao analisar mais detidamente o instituto do judicial review no contexto

norte-americano, Dworkin nega que seja um instituto inevitável na democracia,

embora não proponha outro modelo alternativo. Mais adiante voltaremos a

examinar o escrutínio judicial sob a ótica de Dworkin, que sinaliza não mais

estar aberto à “acusação” de defendê-lo.

2.1 Qual o melhor modelo?

Dworkin se manifesta claramente favorável à concepção de parceria da

democracia, mas é essencial que analisemos os fundamentos de sua

preferência.

O regime democrático, além de tornar menos provável a atuação de

governos corruptos, por conta de uma imprensa livre e forte (requisito

obrigatório), apresenta outras vantagens, entre elas, a estabilidade política.

Essa estabilidade política, observado e respeitado o Estado de Direito, é que

deve induzir as alianças e a troca legítima de favores na busca pela satisfação

dos interesses dos grupos constituídos na comunidade.

Contudo, não há respostas razoáveis e assertivas quanto ao modelo que

produziria maior estabilidade política e prosperidade econômica. Dworkin situa

essa questão da escolha do modelo como sendo de princípio e não de

“ignoradas” pelo Paramento. Em outras nações, como a França e a Inglaterra, o Parlamento tem sido a instância decisória.

resultado, por conta da dependência de circunstâncias políticas e econômicas

de cada país.

O foco de sua atenção é o modo de participação das pessoas no

governo (exigência do princípio da dignidade). Nesse aspecto, a concepção

majoritária responde com a regra da maioria, que trata todos os participantes

de forma igualitária, atribuindo idêntico peso aos seus votos.

Dworkin vê esse modelo como uma equidade “processual”, e se revela

surpreso com a popularidade do argumento do princípio majoritário (método de

contagem de cabeças), por não ser esse um princípio fundamental de

equidade. É necessário, no entanto, que a comunidade a qual pertença o grupo

majoritário seja a comunidade “certa”, com poder moral sobre os demais.

É nesse ponto que surge o debate com Jeremy Waldron, com direito a

réplica e tréplica, em torno do exemplo do bote salva-vidas, com repercussão

no debate sobre o judicial review.

2.2 O Caso do Bote Salva-Vidas

A alegoria do bote salva-vidas motivou o debate, com direito a réplica e

tréplica, entre dois importantes jusfilósofos – Dworkin e Waldron – em torno da

aplicação da regra da maioria.

A situação exemplo consiste em um bote salva-vidas que está com

excesso de peso, e portanto, com risco de naufrágio e de morte para todos os

passageiros. A solução seria, então, sacrificar um passageiro, atirando-o na

água, para salvar os demais.

A questão consiste, em princípio, em como decidir quem deve ser

atirado na água.

No exemplo, em rápida passagem152, Dworkin rejeita a aplicação da

regra da maioria e aponta uma solução óbvia: a realização de um sorteio.

152

Embora Dworkin tenha qualificado seu próprio exemplo como “singelo”, Waldron localizou um caso real, cujos contornos são muito semelhantes: United States v. Holmes, de 1842. Nesse caso particular, 14 passageiros foram jogados ao mar para evitar o naufrágio do bote, levando-se em conta alguns critérios: casais não seriam separados e mulheres não seriam atiradas ao mar antes de homens. O juiz que condenou Holmes por homicídio culposo por participar da expulsão dos passageiros do bote, cogitou de outro critério (class principle), no

Waldron, segundo Dworkin, afirmara inicialmente que na hipótese de os

passageiros discordarem do sorteio, o mais justo seria fazer uma votação para

escolher o método a ser adotado. Dworkin critica o aspecto recursivo da

sugestão, uma vez que se propõe uma votação majoritária para escolha de um

método majoritário.

Uma votação majoritária, nesse caso, seria evidentemente injusta, e

tampouco se pode deduzir do exemplo que o sorteio seja uma boa escolha em

decisões políticas (aliás, Dworkin rejeita claramente seu emprego nessa seara).

Em nova resposta, escrita em um artigo153, Waldron levanta questões

importantes acerca do critério da maioria, relacionando-o, inclusive, ao controle

de constitucionalidade exercido pelas Cortes Constitucionais, que muitas vezes

decide pelo apertado resultado de 5x4. Esse resultado pode causar relevante

impacto na vida de toda a população. Indaga Waldron: se a regra da maioria

não é intrinsecamente justa, por que seria apropriada para as Cortes Supremas

decidirem casos complexos com a diferença mínima de um voto?

Em seu artigo escrito, Waldron afirma ainda que os passageiros do bote

deveriam escolher, por maioria, o método de exclusão de algum deles, mas o

critério majoritário não mais deveria fazer parte das alternativas. E reconhece:

“Of course, majority decision is not necessarily democratic”.

Na verdade, Waldron defende o critério majoritário para decidir o

princípio da decisão de quem sacrificar, e não diretamente a quem sacrificar.

Ao cabo, Waldron concorda com Dworkin quanto à oposição ao uso do critério

majoritário para decidir quem será sacrificado, e declara seu objetivo com o

debate, qual seja, de levantar complicações que levam à reflexão acerca de

questões políticas análogas (ex: judicial review).

qual apenas o número suficiente de marinheiros aptos a conduzir o bote deveria ser preservado, e os demais deveriam ser “sacrificados” antes dos passageiros. 153

WALDRON, Jeremy. A Majority in the Lifeboat. http://www.bu.edu/law/central/jd/organizations/journals/bulr/documents/WALDRON.pdf

Sobre o uso de critérios apropriados em decisões políticas, Dworkin,

comentando as considerações de Waldron, também deixa consignados

importantes pontos sobre a questão154:

é claro que não se trata de dizer que o governo da maioria nunca é um método justo de decisão. Pelo contrário, insisto que é apropriado na política quando as condições de legitimidade são satisfeitas. (...) Concordo que o caso do salva-vidas não em força para negar os argumentos que ele oferece; certamente que não vejo esse exemplo, como ele receia que eu faça, como um argumento ‘arrasador’ contra a concepção majoritária da democracia. (...) As razões evidentes por que uma votação majoritária seria injusta no caso do bote salva-vidas aplicam-se,também, pelo menos, a algumas decisões políticas. Tal como as tendências e as antipatias pessoais de uma maioria não devem ser levadas em conta na decisão sobre que passageiro deve ser atirado para fora de bordo, também não são relevantes quando uma comunidade política decide sobre os direitos de uma minoria identificada pouco apreciada. No caso do bote salva-vidas, há uma solução óbvia: a sorte. No entanto, a sorte não seria um processo adequado de decisão na política. Quando as decisões têm grandes conseqüências na vida das pessoas, deixar essas decisões para a sorte ou para qualquer outra forma de oráculo é uma má ideia; pode ter funcionado durante algum tempo para os Atenienses, mas não funcionaria para nós. A opinião de uma maioria sobre ir para a guerra pode não ser melhor do que a opinião de uma minoria, mas é provável que seja melhor do que uma decisão tomada por meio do lançamento de dados

Nesse ponto, é possível assentar algumas conclusões de Dworkin sobre

sua concepção de democracia:

a) A democracia favorece a estabilidade política e proteção

contra corrupção.

b) Os cidadãos, em vez de receber tratamento de acionistas ou

membros de orquestra, devem desempenhar papel relevante

em sua própria governação, como requisito de sua dignidade.

c) A concepção de maioria é apropriada para uso na área política

quando as condições de legitimidade são satisfeitas.

154

DWORKIN, Ronald. Ob. cit. p. 492.

d) O governo da maioria não é um processo de decisão

intrinsecamente justo.

3 A Representação Política

Já de início, Dworkin estabelece uma condição básica para que haja

legitimidade de governos representativos: a rejeição às discriminações

eleitorais formais. O direito de voto universal parece ter prevalecido, pelo

menos nas democracias maduras155.

Um segundo aspecto a ser considerado no governo representativo é o

poder que é conferido ao governante, muito maior do que o do cidadão comum.

Dada a inevitabilidade desse desenho, diz-se que a concepção majoritária de

democracia vê o governo representativo como um mal necessário. Os

mecanismos de correção seriam representados por uma imprensa livre e forte

e pela realização frequente de eleições.

Dworkin defende156, ainda, a limitação quantitativa de mandatos,

imprimindo, aparentemente, um viés negativo ao instituto da reeleição – os

governantes assumem compromissos às vezes desconectados do interesse

público em busca da preservação de suas possibilidades de reeleição -.

A concepção majoritária, em síntese, não responde satisfatoriamente

aos argumentos de supressão da decisão de questões políticas relevantes dos

governos representativos e a transferência para os referendos populares. Essa

concepção de democracia valoriza demasiadamente o valor da igualdade de

impacto político.

A concepção de parceria oferece uma justificativa mais bem sucedida do

governo representativo. Uma vez que está apegada ao respeito e igual

consideração por todos, e não à matemática da maioria, haveria maiores

possibilidades de proteção a mudanças perigosas na opinião pública, e

consequentemente, maior proteção aos direitos individuais.

155

No caso brasileiro, parece-nos não haver maiores problemas nesse ponto específico. Há outros, relacionados à captação ilícita de sufrágio, abuso de poder econômico e político, mas não há exclusão de pessoas do universo eleitoral em face de condição econômica, racial, religiosa, ou outra qualquer. 156

DWORKIN, Ronald. Ob. cit. p. 401

No tocante aos mecanismos eleitorais, Dworkin faz duras críticas ao

sistema de eleição presidencial norte-americano: “A eleição do presidente por

um colégio, em vez de por voto direito, distorce as eleições presidenciais; os

candidatos concentram a sua atenção, e concebem as suas políticas para

atraírem os estados ‘oscilantes’ e esquecem os demais”157.

Também é objeto de crítica de Dworkin o diferenciado impacto político

decorrente dessa votação indireta, assim como a composição do Senado norte-

americano. Tais mecanismos teriam sido úteis na consolidação da nação, com

o fim de proteger as minorias dos interesses das regiões mais ricas do país.

Essas desigualdades, no entanto, não mais encontrariam justificativas

plausíveis nos dias atuais.

O contexto brasileiro apresenta diferenças e semelhanças. Parece-nos

natural a desigualdade do impacto político de alguns eleitores em relação a

outros, no tocante à composição do Senado. Está em jogo a Federação, e

nesse campo, deve prevalecer a igualdade das unidades federativas. Como o

sistema representativo brasileiro é bicameral, a representação popular é

refletida na Câmara dos Deputados, e aí não deveria haver diferencial. Ocorre

que a Constituição de 1988 estabeleceu quantitativos mínimos e máximos de

Deputados para as unidades federativas, o que acaba por gerar desigualdades

do impacto político entre os cidadãos. Por exemplo, os pequenos estados

dispõem de oito representantes, independentemente de sua população,

enquanto o mais populoso, como São Paulo, alcança o limite máximo de

setenta representantes. O resultado é que o “peso específico” do voto de um

eleitor de São Paulo é menor do que o de um eleitor de Roraima.

4 O Controle Judicial de Constitucionalidade

A questão principal do presente artigo, assim como do debate entre

Dworkin e Waldron sobre democracia, é refletir sobre o eventual caráter

antidemocrático do controle judicial de constitucionalidade.

Essa tensão entre jurisdição constitucional e democracia é, de fato,

antiga, mas, ao mesmo tempo, é atual. Pode-se resumir a questão relativa na

157

DWORKIN, Ronald. Ob. cit. p. 403

possibilidade de juízes não eleitos poderem negar à maioria o que esta decidiu

por meio de seus representantes legitimamente eleitos.

Afora as tentativas ilegítimas de perpetuação no poder, e de modo geral,

de subversão do processo participativo em que todos possam ter vez e voz, a

concepção majoritária rejeita a intervenção judicial substantiva.

Dworkin não discute o evidente impacto político do judicial review

substantivo, mas entende que a visão de juízes vitalícios que anulam decisões

de representantes eleitos constitui uma simplificação grosseira e desvia a

atenção do essencial.

Analisando o contexto norte-americano, Dworkin entende que a

sociedade, dada a ampla divulgação das audiências no Congresso, exerce

maior influência sobre o candidato a juiz do que sobre certos Senadores de

pequenos estados que, depois de eleitos, podem assumir importantes e

poderosos cargos, como presidentes de comissões do Congresso. Embora

reconheça que nada pode ser feito após a nomeação do juiz, Dworkin

argumenta no sentido de que vários outros detentores de cargos dispõem de

enorme e incomparável poder, como o próprio Presidente. Por outro lado, um

juiz, individualmente, tem limitações de impor suas idéias no sentido de anular

leis e comprometer políticas públicas.

Por outro lado, reconhece que no exercício desses poderes as Cortes

podem cometer graves erros. Menciona casos que “prejudicaram a

democracia”. Cita o caso Citizens United158 – que liberou o limite de gastos

eleitorais realizados por pessoas jurídicas.

Discordamos, no entanto, dos argumentos de Dworkin quando recorre

ao potencial negativo de decisões de membros de outros Poderes: “Os

presidentes, os primeiros-ministros e os legisladores que dirigem comissões

importantes podem fazer, sozinhos, mais mal do que os juízes coletivamente”.

Tais argumentos são aproveitáveis apenas na perspectiva de que o

judicial review, segundo Dworkin, não figura como o agente mais danoso de um

158

Citizens United v. Federal Election Comission. 558 US 310 (2010).

complexo governo representativo. Aqui, discordamos frontalmente do

jusfilósofo norte-americano.

Embora não o faça claramente, Dworkin afirma que a defesa do judicial

review como um instituto democrático deve comprovar que a legitimidade geral

das decisões da comunidade resta aumentada. Particularmente, entendemos

uma tarefa muito difícil.

Mesmo não propondo qualquer modelo alternativo ao judicial review,

Dworkin parece dar sinais de esgotamento na defesa vigorosa do perfil

democrático desse instituto. Chega a classificar de um “fiasco” a atuação

recente da Suprema Corte, em que pese considerar positivo o saldo de sua

atuação histórica. Manifesta-se, ainda, favorável à adoção de mandatos para a

Suprema Corte dos Estados Unidos (onde os Presidentes estão nomeando

juízes cada vez de menos idade a fim de maximizar o tempo de vida do viés

ideológico que representa), e afirma159:

A história não é decisiva quanto à questão de saber se o escrutínio judicial pode, no futuro, reforçar a legitimidade. Mas a história deve ser levada em conta. Nego aquilo que juristas e politólogos dizem: que o escrutínio judicial é inevitável e, automaticamente, um defeito na democracia. Mas daí não decorre que alguma democracia tenha realmente beneficiado com essa instituição. Se o Supremo Tribunal dos Estados Unidos melhorou ou não a democracia deste país, isso depende de um juízo que eu e o leitor podemos fazer de modo diferente. Durante anos, fui acusado de defender o escrutínio judicial porque aprovava as decisões que o Supremo Tribunal tomava. Mas já não estou aberto a essa acusação. Se tivesse de julgar o Supremo Tribunal dos Estados Unidos pelo seu registro ao longo dos últimos anos, considerá-lo-ia um falhanço. No entanto, penso que o saldo geral do seu impacto histórico é positivo. Tudo depende, agora, do caráter das futuras nomeações do Supremo Tribunal. Temos de fazer figas.

Apesar de reconhecer avanços no espírito crítico, especialmente em

relação ao caráter “inevitável” do judicial review, e a não “sacralização” das

decisões da Suprema Corte, entendemos que um instituto posto à disposição

de Cortes com atuações sofríveis representa, sim, risco à democracia (mesmo

159

DWORKIN, Ronald. Ob. cit. p. 406

a sólida democracia norte-americana). A partir do momento em que reconhece

a dependência das nomeações, e que é necessário “fazer figa”, é porque esse

instituto deve ser visto com desconfiança pela população.

5 O Contexto Brasileiro

Nos Estados Unidos, o judicial review decorre de uma construção

jurisprudencial e não tem previsão constitucional expressa. Esse fato acirra os

debates.

Ao contrário do contexto constitucional norte-americano, que é objeto

dos estudos de Ronald Dworkin, a Carta Política brasileira foi assertiva em

atribuir ao Supremo Tribunal Federal a definição do papel de guardião da

Constituição.

Assim, a princípio, o modelo de supremacia judicial é menos

questionável. Não obstante, pode e deve ser objeto de discussão e

aperfeiçoamento.

Para além das fronteiras jurídicas, a questão da supremacia judicial

chegou ao quotidiano das pessoas. Alguns casos concretos contribuíram para

esse quadro. Um deles foi a decisão de perda do mandato de parlamentares

condenados criminalmente (no caso conhecido como “Mensalão” – Ação Penal

470).

Trata-se de um caso de difícil análise, em face dos contornos políticos e

da pressão da opinião pública para que fosse superada a histórica sensação de

impunidade dos crimes de corrupção. Assim, as análises críticas da atuação do

STF são, por vezes, vistas como tentativas de desqualificação da mais alta

Corte do país, por motivação política. Não é esse o presente caso.

Referimo-nos especialmente à questão da declaração da perda do

mandato de parlamentares condenados criminalmente. Embora seja

respeitável a solução engendrada pelo STF, em apertada maioria de 5x4, e

ainda sujeita, possivelmente (a depender do cabimento de embargos

infringentes), a alteração por meio de recursos, parece-nos mais correta a

interpretação que reconhecia o regime constitucional especial conferido pelo

legislador constituinte originário aos congressistas, dando à Casa a que

pertence o Parlamentar o juízo sobre a perda de seu mandato.

Na prática, figura de um lado um Parlamento desgastado, de outro a

Suprema Corte que vem resgatar o espírito da devida seriedade, da

moralidade, da decência e da retidão na vida pública, impondo as devidas

reprimendas aos transgressores. A quem deve caber a razão?

Nesse contexto, parece-nos um preço até módico a pagar para ver

sepultada a histórica sensação de que aos “poderosos” não incidem punições.

De qualquer modo, correremos o risco de uma análise contra a correnteza.

Sob o aspecto constitucional, da separação de Poderes, e até no intuito

de preservação do modelo de supremacia judicial responsável, entendemos a

decisão do STF como equivocada.

O mesmo ocorreu quando o STF, por decisão monocrática cautelar,

determinou ao Congresso Nacional a apreciação seqüencial de vetos

presidenciais a leis aprovadas pelo próprio Congresso. Fundamental analisar o

contexto da decisão. O tema de fundo não era o respeito à Constituição, tendo

em vista que havia vetos pendentes há mais de dez anos, os quais nunca

suscitaram qualquer incômodo. O que estava, de fato, em jogo era a

possibilidade de rejeição do veto da lei que redefinia a partição de recursos

oriundos dos royalties decorrentes da exploração de petróleo. Os estados

prejudicados eram o Rio de Janeiro e o Espírito Santo.

Pois bem, um Deputado Federal do Rio de Janeiro impetrou um

Mandado de Segurança no STF, e o feito ficou, por coincidência, sob a relatoria

de um ministro também do Rio de Janeiro. Sua decisão: os vetos tinham que

ser apreciados em seqüência. Tal decisão atingia o objetivo de impedir, até

aquele momento, a rejeição do veto presidencial e a conseqüente repartição

dos recursos oriundos dos royalties. Ocorre que os vetos passaram a figurar na

pauta do Congresso Nacional e, por conseqüência imediata – mesmo com a

negativa do ministro que concedera a liminar -, a pauta do Congresso restava

sobrestada, impedindo a votação do orçamento geral da União. Aparentemente

se tratava de um efeito colateral indesejado e imprevisto na decisão que

interferia na dinâmica parlamentar.

Sem considerar o mérito da decisão cautelar, ainda a ser apreciada pelo

plenário do STF, entendemos descabida a intervenção do Supremo no

funcionamento do Parlamento. Não nos parece que tal decisão engrandeça a

democracia, por mais desgastada que se encontre a Legislatura. Há que se

analisar a Instituição, e não o comportamento individual, muitas vezes

reprovável, de certos membros.

5.1 As Possibilidades de Aperfeiçoamento do Modelo

Como já dito, o legislador constituinte originário deixou consignado no

texto constitucional as ações de inconstitucionalidade aptas a anular leis

aprovadas no Parlamento. Ainda que os instrumentos postos à disposição da

jurisdição constitucional tenham sido significativamente ampliados desde a

aprovação da Carta, entendemos que é o momento de se promover ajustes e

aperfeiçoamentos.

O primeiro aperfeiçoamento é o estabelecimento de mandatos fixos para

os membros do Supremo, seguindo a sugestão de Dworkin, o exemplo da

expressiva maioria das Cortes Constitucionais europeias, de alguns ministros

da composição atual do STF. Sobre a indagação que se costuma colocar: o

que fazer com um ministro que, ainda de pouca idade, for forçado a deixar a

Corte em face do termo de seu mandato? Ora, trata-se de uma questão menor,

de cunho personalista, que não merece ser considerada na reavaliação do

cenário democrático e de equilíbrio entre os Poderes.

Persistindo nas hipóteses de aperfeiçoamento, vislumbramos espaço

para a instituição de mecanismos de diálogo institucional - não de revisão de

decisões judiciais por instâncias parlamentares (override clause) -, mas sim de

atos não jurisdicionais emanados do Poder Judiciário, os quais têm servido,

frequentemente, de veículo para excessos do Poder Judiciário (mormente no

campo político-eleitoral).

Referimo-nos à possibilidade de sustação pelo Parlamento de atos

normativos (infralegais) editados pelo Poder Judiciário e pelo Ministério Público

(por exemplo, Resoluções). Atualmente, a Constituição Federal prevê

expressamente essa possibilidade apenas para atos do Poder Executivo que

exorbitem do poder regulamentar.

Outra hipótese de aperfeiçoamento do modelo de separação dos

Poderes, e, de certo modo, da supremacia judicial, embora se relacione com

um ato de natureza não jurisdicional, é a reavaliação das súmulas vinculantes.

Defendemos que o efeito vinculante somente deva ser aposto às súmulas após

a manifestação do Poder Legislativo, que teria prazo fatal para fazê-lo, sob

pena de aprovação tácita e perda do argumento de usurpação de suas

prerrogativas legislativas.

Conclusão

O excepcional “Justiça para Ouriços” que encerrou o ciclo de obras do

jusfilósofo Ronald Dworkin – talvez o mais brilhante de sua geração – trouxe

importantes contribuições sobre o estudo da democracia.

O objetivo central do artigo era o exame do instituto do judicial review,

em um contexto de suprema judicial. Seria esse instituto compatível com a

democracia?

Waldron é forte opositor dessa possibilidade, justamente por violar o

pressuposto básico da soberania popular por um grupo de juízes, não sujeitos

ao crivo de eleitor, sem mandatos, com cargos vitalícios.

Dworkin vê o judicial review como uma estratégia possível, mas nega

sua inevitabilidade. Ademais, considera a concepção majoritária de democracia

possível, desde que assegurada e atendida as condições de legitimidade.

Como vimos, o debate acerca da revisão judicial de leis emanadas do

Poder Legislativo não é expressa na Constituição norte-americana, o que de

certo modo, energiza o debate, justamente por se tratar de uma construção

jurisprudencial.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 prevê expressamente as

ações e a competência do Supremo Tribunal Federal. Assim, trata-se de um

debate em que não mais cabe uma revisão radical do modelo.

Com efeito, a leitura do texto original da Constituição revela um modelo

mais simplificado do que o vigente. Mas consideramos, para o bem da

democracia, mesmo que contemos com um Congresso Nacional

desprestigiado perante a própria sociedade, que sejam realizados ajustes.

Propomos, de início, a possibilidade de sustação de atos normativos do

Poder Judiciário, sobretudo na seara eleitoral, onde a deferência ao legislador

deveria ser a regra. Entendemos que são necessárias alterações no modelo

das súmulas vinculantes, condicionando o efeito vinculante a uma apreciação

do Congresso Nacional, em prazo certo, sob pena de aprovação tácita.

Além disso, consideramos inadequadas certas decisões recentes do

STF, especialmente a que trata da perda do mandato dos parlamentares

condenados criminalmente, e a que determinou a apreciação seqüencial dos

vetos presidenciais. Não qualificamos, nem de longe, a atuação do STF como

um “fiasco” (como fez Dworkin em relação à atuação recente da Suprema

Corte norte-americana), mas há evidentes excessos e equívocos, os quais não

contribuem para o desejável fortalecimento democrático.

Somos favoráveis, ainda, ao estabelecimento de mandatos fixos para os

ministros do Supremo Tribunal Federal, seguindo a recomendação de Dworkin,

o exemplo europeu e a opinião de vários dos membros da composição atual do

STF.

Por fim, somos de opinião o controle judicial de constitucionalidade é

inevitável no Brasil, mas passível de ajustes e aperfeiçoamentos, todos

passando pelo fortalecimento do papel da Legislatura, para o bem da

democracia, seja qual a concepção empregada.

Referências:

ACKERMAN, BRUCE. A Nova Separação de Poderes. Rio de Janeiro: Ed.

Lumen Júris, 2009.

BRANDÃO. RODRIGO. Supremacia Judicial versus Diálogos Institucionais. A

quem cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição. Rio de Janeiro:

Lumen Júris, 2012.

DWORKIN, RONALD. Justiça para Ouriços. Coimbra: Almedina, 2012.

Tradução: Pedro Elói Duarte.

FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. “O Judiciário frente à divisão dos poderes: um

princípio em decadência?”

QUEIROZ, Cristina. Interpretação Constitucional e Poder Judicial. Coimbra

Editora: 2000.

TATE, C. Neal; VALLINDER, Torbjörn. The Global Expansion of Judicial Power.

New York University Press. New York. 1997.

WALDRON, Jeremy. A Majority in the Lifeboat.

http://www.bu.edu/law/central/jd/organizations/journals/bulr/documents/WALDR

ON.pdf