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Educação Popular Erick Morris Publicado em 2019-04-01 Qual a necessidade de uma educação popular? Por que temos que adjetivar um processo que deveria contemplar a todos? Não bastaria falarmos de educação? Ao adotarmos a denição de popular, carregamos de sentido a nossa escolha por uma educação que não se contenta com o modelo hegemônico, por este ser excludente e antipopular. Modelo este não só constituído de silêncio político, num sentido mais estrito do termo, mas de um “epistemicídio”, calando diferentes formas de se compreender o mundo e de se produzir conhecimentos. A perspectiva da educação popular busca romper o silenciamento imposto por uma dominação bastante complexa, que perdura por séculos, embora metaformoseando-se de diferentes maneiras. Trata-se, portanto, de uma opção transformadora da realidade e emancipadora dos grupos subalternizados ao longo da história. Baseada no diálogo crítico, no contexto sócio-cultural, nos saberes prévios das pessoas e em princípios de horizontalidade, é impossível entender a educação popular sem perceber que é a construção de uma teoria do conhecimento do seu tempo e em constante transformação. Portanto, faz-se necessário compreender um pouco do seu contexto social de origem. Na América Latina, a educação popular tem uma longa e diversa tradição, cujas origens remontam aos movimentos de resistência à ocupação europeia e à luta pela independência política, ganhando consistência em meados dos anos 1950-1960. Inuenciada pelas inúmeras experiências de comunidades de base vinculadas à Teologia da Libertação e aos grupos de alfabetização de adultos, além das Revoluções Cubana e Sandinista, o período foi marcado por vários processos emancipatórios e participativos articulados em várias partes do continente. Mário Vitória (2015) Num cruzamento é sempre necessária uma passadeira [tinta da china e acrílico s/papel, 50x65cm] Dicionário Alice PT EN ES Destaque Semanal Pan-Africanism Pan-Africanism refers to the conviction that all Africans and descendants of Africans in the diaspora share a common history, common interests and, ultimately, a common fate which thus(...) Jihan El-Tahri

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Page 1: Educa çã o Popular - Estudo Geral · Atualmente, muitos grupos tentam reinventar o legado da educação popular, buscando uma luta mais ampla e inclusiva, capaz de traçar novos

  

Educação PopularErick Morris

Publicado em 2019-04-01

Qual a necessidade de uma educação popular? Por que temos que adjetivar um processo que deveriacontemplar a todos? Não bastaria falarmos de educação? Ao adotarmos a de�nição de popular, carregamos desentido a nossa escolha por uma educação que não se contenta com o modelo hegemônico, por este serexcludente e antipopular. Modelo este não só constituído de silêncio político, num sentido mais estrito do termo,mas de um “epistemicídio”, calando diferentes formas de se compreender o mundo e de se produzirconhecimentos. A perspectiva da educação popular busca romper o silenciamento imposto por umadominação bastante complexa, que perdura por séculos, embora metaformoseando-se de diferentes maneiras.Trata-se, portanto, de uma opção transformadora da realidade e emancipadora dos grupos subalternizados aolongo da história. Baseada no diálogo crítico, no contexto sócio-cultural, nos saberes prévios das pessoas e em princípios dehorizontalidade, é impossível entender a educação popular sem perceber que é a construção de uma teoria doconhecimento do seu tempo e em constante transformação. Portanto, faz-se necessário compreender umpouco do seu contexto social de origem. Na América Latina, a educação popular tem uma longa e diversatradição, cujas origens remontam aos movimentos de resistência à ocupação europeia e à luta pelaindependência política, ganhando consistência em meados dos anos 1950-1960. In�uenciada pelas inúmerasexperiências de comunidades de base vinculadas à Teologia da Libertação e aos grupos de alfabetização deadultos, além das Revoluções Cubana e Sandinista, o período foi marcado por vários processos emancipatórios eparticipativos articulados em várias partes do continente. 

Mário Vitória (2015) Num cruzamento é sempre necessária uma passadeira [tinta da china e acrílico s/papel, 50x65cm]

Dicionário Alice

PT EN ES

Destaque Semanal

Pan-AfricanismPan-Africanism refers to the conviction that allAfricans and descendants of Africans in the diasporashare a common history, common interests and,ultimately, a common fate which thus(...)

Jihan El-Tahri

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Embora seja um processo bastante coletivo, com expoentes, práticas e origens em diversas partes para além daAmérica Latina, tais como Myles Horton, Ivan Illich dentre outros, dois grandes pensadores latinoamericanos sedestacam na formação teórico-política da educação popular e continuam incontornáveis para tratarmos dotema: Paulo Freire (1921-1997) e Orlando Fals Borda (1925-2008). No contexto brasileiro, Paulo Freire começa aganhar destaque e a desenvolver suas propostas de uma educação libertadora, por meio dos processos dealfabetização de adultos no nordeste brasileiro, contextualizados com a realidade dos/as educandos/as em umaação altamente política. A prática e a metodologia utilizadas por Freire na campanha nacional de alfabetizaçãono governo de João Goulart (1961-64) e sua principal obra, A Pedagogia do Oprimido (1970), tiveram grandeimpacto na conotação emancipadora que o conceito de educação popular passou a carregar. Longe de proporum método de educação popular, o que Freire propôs foi uma concepção nova de educação. É importante ressaltar que, com o exílio após o golpe militar de 1964, Paulo Freire passa a percorrer diversaspartes do mundo e a conviver com as mais variadas experiências político-educativas que vão aprofundar suavisão e práxis educativa, sobretudo na imersão com as lutas anticoloniais e de independência em África. Nessecenário, vale destacar que a in�uência de Amílcar Cabral a partir de suas vivências em Guiné-Bissáu e CaboVerde e a sua aproximação com o marxismo e com o socialismo africano, tem um profundo impacto noscontextos multilinguísticos no seu pensamento. Estas experiências foram responsáveis por conferir uma maiorpolitização da obra freiriana (Romão e Gadotti, 2012). Assim, a educação popular ganha cada vez mais contornossociais e de construção coletiva na superação da dicotomia opressor-oprimido. No caso do pesquisador colombiano, Orlando Fals Borda foi um dos principais sistematizadores/as dametodologia investigação-ação participativa, que une propostas de educação popular com elementos maisacadêmicos de pesquisa, visando uma transformação social a partir do empoderamento epistemológico dosgrupos marginalizados socialmente. Nos anos 1960 foi bastante in�uenciado pelo pensamento e prática dopadre guerrilheiro Camilo Torres Restrepo, que promovia o diálogo entre marxismo e cristianismo, fundandojuntos uma das primeiras faculdades de sociologia da América Latina, em Bogotá, em 1959. Fals Borda continuatendo um profundo impacto na metodologia sociológica latino-americana e nos esforços para a descolonizaçãoda universidade ao buscar a aproximação desta com a sociedade. Desde o período de sua formação, a educação popular teve um longo percurso e sofreu diversas mudanças quecontribuíram para a construção de movimentos sociais e de sociedades mais democráticas na América Latina,África e também com experiências no Norte global, inclusive com experiências alfabetizadoras em Portugalapós a Revolução de 25 de Abril. Nessa trajetória, conquistou espaços na educação escolar, numa tentativa deelaborar uma educação pública emancipatória, mas parte desse sucesso resultou em efeitos imprevistos. Aburocratização e a estagnação da força pulsante dessas experiências juntas com o avanço do neoliberalismo edo neodesenvolvimentismo colocaram em crise essa proposta educativa transformadora que tinha comoprincipais referências as disputas de classes sociais. Atualmente, muitos grupos tentam reinventar o legado da educação popular, buscando uma luta mais ampla einclusiva, capaz de traçar novos percursos a partir da autonomia e de redes solidárias e colaborativas,  como aUniversidade Popular dos Movimentos Sociais, que busca articular diferentes saberes (popular, militante,artístico e acadêmico) num processo de tradução intercultural. Outro exemplo signi�cativo é o grupo feministaargentino Pañuelos em Rebeldía, que aporta com a construção de uma educação popular feminista baseadaem “emancipação integral, múltipla, complexa, dialética, alegre, colorida, diversa, ruidosa, desa�ante, libertária,ética, polifônica, insubmissa, rebelde, pessoal, coletiva, solidária, desa�ante” (Korol, 2007: 2).  Referências e sugestões adicionais de leitura:Iglesias, Roberto “Tato” (2014), Un Viaje Hacia la Autonomía: Un recorrido sobre los conceptos y procesos deorganización desde la educación popular em Argentina, Río Cuarto: Unirío.Korol, Cláudia (org.) (2007), Hacia una Pedagogía Feminista: generos y educación popular, Buenos Aires: ElColectivo, América Libre.Romão, José Eustáquio; Gadotti, Moacir (2012), Paulo Freire e Amílcar Cabral: a descolonização das mentes, SãoPaulo: Editora Instituto Paulo Freire.Santos, Boaventura de Sousa (2016), “Master Class #5: Para que serve a educação? A Educação Popular e/naUniversidade”, in Projeto Alice. https://www.youtube.com/watch?v=A4K6DJ-p9Q4 

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Erick Morris, Doutorando em Pós-Colonialismos e Cidadania Global (CES/FEUC). Pesquisa educação popular naAmérica Latina, universidades populares, movimentos sociais e epistemologias do Sul. É membro do grupo deinvestigação Curupiras - Colonidades e Outras Epistemologias (Brasil) e faz parte do conselho editorial daRevista del Cisen Tramas/Maepova (Argentina).  Como citarMorris, Erick (2019), "Educação Popular", Dicionário Alice. Consultado a 27.05.19, emhttps://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=1&entry=24274. ISBN: 978-989-8847-08-9