educação, cultura e imaginário · eixo central da educação e representam um modo de pensar e...
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Educação, Cultura e Imaginário
Educação, Cultura e Imaginário
Aberto Filipe Araújo
Fernando Azevedo
Joaquim Machado de Araújo
All rights reserved. This book or any portion thereof may not be reproduced or
used in any manner whatsoever without the express written permission of the
publisher except for the use of brief quotations in a book review or scholarly
journal.
Título: Educação, Cultura e Imaginário
Copyright © 2013 by Aberto Filipe Araújo, Fernando Azevedo e Joaquim
Machado de Araújo
Capa: © pedrolieb - Fotolia.com
Edição: Lulu Entreprises, Raleigh, N.C
ISBN: 978-1-304-63867-0
Data de publicação: 2013
Os autores agradecem aos organizadores dos encontros científicos
e aos editores das publicações a seguir referenciadas o acolhimento em
primeira mão dos seguintes textos:
- “Imaginário e Educação. Da criança mitológica e da modelação
do ser humano”. In João de Deus Vieira Barros (Org.), Imagi-
nário e Educação. Pesquisas e reflexões. São Luís: EDUFMA,
pp. 69-88.
- “A fabricação do humano a partir do Imaginário Educacional”.
Comunicação apresentada no Seminário organizado pelo SPZN
no âmbito da "Didáctica 2000", em 18 e 19 de Maio, Exponor.
- “Dédalo e o labirinto. A figura simbólica do labirinto como
emblema da educação”, Itinerários de Filosofia da Educação,
nº 9, 2º semestre de 2010, 5-20.
- “Os contos dos Irmãos Grimm e o seu poder questionador”. Conferência proferida no XII Encontro de Literatura Infantil,
Chaves, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro/OBLIJ,
17 de novembro de 2012.
- “Educação, Democracia e Imaginário”. In Ana Paula Pedro,
António Martins e Carlos Fernandes (Coord.), Congresso Edu-
cação e Democracia. Representações Sociais, Práticas Educativas e Cidadania, Universidade de Aveiro, 2 e 3 de
Maio de 2007, pp. 75-79.
- “O Tema do ‘Homem Novo’ na Demopedia Republicana: o
caso de João de Barros”. Conferência proferida no Congresso A 1ª República e a Educação, Joane – Vila Nova de Famalicão,
Escola Secundária Padre Benjamim Salgado, 7, 8 e 9 de maio
de 2010.
-“Analfabetismo e Cidadania na 1ª República – As perspectivas
de Adolfo Coelho e João de Barros”. Comunicação ao Con-
gresso A 1ª República e a Educação, Joane – Vila Nova de Famalicão, Escola Secundária Padre Benjamim Salgado, 7, 8 e
9 de maio de 2010.
Conteúdos
Introdução………………………………………………………….…...9
I. Imaginário e Educação. Da criança mitológica e da
modelação do ser humano………………………………….…13
II. A fabricação do humano a partir do Imaginário
Educacional………………………………………………….…..…...31
III. Dédalo e o Labirinto. A figura simbólica do labi-
rinto como emblema de educação..................................49
IV. Os contos dos Irmãos Grimm e o seu poder
questionador…………………………………………………………69
V. Educação, Democracia e Imaginário………….……..77
VI. O Tema do “Homem Novo” na Demopedia
Republicana: o caso de João de Barros…………………..85
VII. Analfabetismo e Cidadania na 1ª República. As
Perspetivas de Adolfo Coelho e João de Barros..….125
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
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Introdução
Os textos apresentados nesta obra estruturam-se em torno do
eixo central da educação e representam um modo de pensar e de
olhar a formação do sujeito em devir através das figuras mítico-
simbólicas que a constituem, assim como das suas preocupações
fundamentais, nomeadamente a relação com as suas formas cul-
turais. Neste contexto, os estudos reunidos debruçam-se sobre um
leque temático aparentemente heterogéneo, mas que na sua
essência tocam na finitude-infinitude do humano: a criança mito-
lógica; modos de modelar ou fabricar o humano; a figura do
labirinto como emblema da educação; o poder questionador dos
contos populares; o tema do homem novo; analfabetismo e cida-
dania; democracia e imaginário.
Os diferentes capítulos apresentados organizam-se em torno
de dois eixos estruturantes: o primeiro, norteado pelas orienta-
ções do imaginário mítico, inclui os capítulos dedicados aos
temas do imaginário educacional e de algumas das suas figuras
pregnantes, como é o caso do labirinto, sem esquecer o poder da
palavra e da ficção como catalisadores na transformação do mun-
do; o segundo, manifestamente inscrito num registo do
imaginário sociocultural, concentra-se na história das ideias edu-
cativas e do pensamento educacional português.
No Capítulo I, intitulado Imaginário e Educação. Da criança
mitológica e da modelação do ser humano, explicita-se a meto-
dologia do imaginário educacional e caracteriza-se a imagem
arquetípica de criança trazida pela infância dos deuses para,
depois, abordar a conceção de modelação e os sentidos de sinal
contrário da metáfora da modelagem, que os autores defendem
ser uma das mais atuantes do discurso educativo. Trata-se de um
capítulo introdutório às questões metodológicas e temáticas do
imaginário educacional onde os autores privilegiam os temas da
Educação, Cultura e Imaginário
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criança mitológica e a metáfora da modelação como aqueles
temas marcantes as correntes fundamentais da pedagogia.
No Capítulo II, com o nome de A fabricação do humano a
partir do Imaginário Educacional, é revisitada uma das peças
mais emblemáticas da literatura infantojuvenil, As Aventuras de
Pinóquio de Carlo Collodi (1883), com a intenção de pensar a
condição humana e a sua trans-formação. Se o velho Pinóquio de
madeira nos remete para um modelo de fabricação tradicional, o
filme Inteligência Artificial (2001), de Steven Spielberg, apresen-
ta-nos David (a criança androide), uma espécie de Pinóquio
ciborgue. A abordagem crítica aqui desenvolvida remete para o
desejo, e o seu significado, de ambos os seres fabricados, Pinó-
quio e David, sonharem em ser meninos de verdade.
O Capítulo III é dedicado a Dédalo e o Labirinto. A figura
simbólica do labirinto como emblema da educação e constitui
um estudo fortemente influenciado por Gilbert Durand e Gaston
Bachelard, sendo Dédalo lembrado como o célebre arquiteto e
construtor mítico construtor do labirinto, sem obviamente esque-
cer-se da importância da simbólica propriamente dita do labirinto.
No seguimento, os autores interrogam-se se Dédalo não será uma
derivação ou usura do mito de Prometeu para, de seguida, ques-
tionarem se o labirinto seja como símbolo, seja com mitologema,
mesmo como metáfora viva, não encarnará, enquanto emblema
profundo, a complexidade, perplexidade dos desafios educacio-
nais, não descurando o papel do mestre no processo educativo
concebido como viagem iniciática.
O Capítulo IV, intitulado Os contos dos Irmãos Grimm e o
seu poder questionador, é um estudo de transição entre os dois
eixos estruturantes desta obra, dado articular os dois registos pró-
prios do imaginário já acima mencionados. Nele se analisa a
dimensão questionadora subjacente a alguns contos dos Irmãos
Grimm, salientando-se que, muitos destes textos, pela sua especi-
ficidade e pelo seu funcionamento pragmático, comportam uma
não negligenciável capacidade perlocutiva. Correlativamente, o
tema da iniciação, como um dos temas mais significativos do
imaginário educacional, não é descurado, aparecendo como regu-
ladora de uma certa ordem simbólica, dado realizar um
determinado esforço, superando um conjunto de provas ou de
obstáculos. Assim, e decorrente da riqueza pedagógica da inicia-
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
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ção, a literatura infantojuvenil, através dos seus contos mais
paradigmáticos, ensina os seus leitores a acreditaram no poder da
palavra e na capacidade desta em transformar o mundo.
Os capítulos seguintes, tal como acima se disse, inscrevem-
se no registo do imaginário sociocultural nos planos das ideias
educativas e do pensamento educacional português. Assim sendo,
o Capítulo V tem por título Educação, Democracia e Imaginário
e pretende cruzar a perspetiva das ideias educativas e do imaginá-
rio educacional como a história cultural encara e contribuir para
um novo olhar sobre o par educação-democracia. O desenvolvi-
mento do capítulo compreende quatro grandes linhas: a primeira
relaciona a História cultural e ideias educativas; a segunda expli-
cita a mitanálise como modelo de abordagem das ideias
educativas; a terceira ilustra esta abordagem no que respeita às
ideias de progresso, educabilidade e democracia; na quarta, e
última parte, afirma-se a educação da pessoa e do cidadão, por-
quanto a educação tem a virtude de criar o homem novo e uma
cidade nova.
O Capítulo VI trata do Tema do “Homem Novo” na Demo-
pedia Republicana: o caso de João de Barros. Baseando-se
fundamentalmente na obra educacional de João de Barros (1881-
1960), um dos principais representantes dos ideólogos do regime
republicano (1910-1926) para as questões educativas, o autor
trata do tema do “homem novo” num duplo registo, o social e o
mítico, e depois apresenta o “cidadão republicano” de João de
Barros no cruzamento dos imaginários mítico e social, concluin-
do que é o caudal mitogénico, em que as próprias ideias
educativas se enraízam, que confere a “aura” a essas mesmas
ideias, daí elas afirmarem-se no imaginário sociocultural como
fortemente mobilizadoras e fascinantes independentemente dos
benefícios e malefícios que advenham.
No Capítulo VII, intitulado Analfabetismo e Cidadania na 1ª
Republica. As perspetivas de Adolfo Coelho e João de Barros, os
autores debruçam-se sobre o problema do analfabetismo, uma das
chagas mais relevantes encontradas pelos republicanos portugue-
sas da segunda década de novecentos e a solução apontada pela
elite republicana para a sua erradicação. Desta dependia, no
entender dos pedagogos ideólogos do novo regime, a construção
de uma cidadania democrática, laica e mensageira dos valores
Educação, Cultura e Imaginário
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republicanos. Pensava-se, então, o analfabetismo como problema
e a escola primária era vista como solução. Contudo, o debate da
época centra-se na tríade “instrução, política e economia”, pelo
que, num tempo em a atenção se vira para as Escolas Móveis e a
Cartilha Maternal, avança-se, de igual modo, para modalidades
de “alfabetização rápida, barata e exequível”. Ao mesmo tempo,
é questionada a racionalidade da alfabetização e distingue-se
educação e instrução.
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
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I Imaginário e Educação.
Da criança mitológica e da modelação
do ser humano 1
Alberto Filipe Araújo
Joaquim Machado de Araújo
Introdução
O conceito de imaginário é poliédrico e fisiologicamente
interdisciplinar, alimentando-se de uma torrente de imagens
literário-poéticas, cósmicas, oníricas e cognitivas. Estas imagens
provêm da faculdade da imaginação reprodutiva e produtiva ou
criadora. Enquanto a imaginação reprodutiva é desprovida de
potência inovadora, é recordação do mero vivido e daquilo que
foi percecionado (Einbildungskraft), a imaginação produtiva ou
criadora (Bildungskraft/Phantasie) inicia-nos em novos mundos e
novas dimensões da realidade, reabrindo passagens para a
transcendência.
É neste quadro que o imaginário educacional faz o seu ca-
minho, e mesmo o seu balanço, entre aquilo que Paul Ricoeur
denominou de imaginário social (de que são expressões a ideolo-
gia e a utopia) e o imaginário mítico (mitos, símbolos,
arquétipos-imagens arquetípicas) sublinhado por Gilbert Durand.
O imaginário educacional é uma espécie de “entre dois”, diría-
mos mesmo um imaginário híbrido e, como tal, ingrato porque
pouco recetivo e pouco maleável à interpretação das figuras
simbólicas que o povoam. Por outras palavras, apresentando-se
como fortemente ideologizado, o imaginário educacional não
facilita que se vislumbre, à primeira vista, a sua potencial riqueza
1 Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT –
Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projecto PEst-
OE/CED/UI1661/2011 do CIEd.
Educação, Cultura e Imaginário
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metafórica, utópica e mítica. A esta dificuldade acresce o facto de
a sua trama de imagens se encontrar latente e fortemente degra-
dada semanticamente. Assim, o hermeneuta vê-se confrontado
com a necessidade de utilizar a mitanálise (Gilbert Durand) como
uma escolha hermenêutica possível para interpretar e legitimar a
sua leitura mítico-simbólica (Wunenburger, 1998a: 151-155).
Daniel Hameline, Nanine Charbonnel, Olivier Reboul, Do-
minique Lecourt, Philippe Meirieu, entre outros, ensinam-nos que
a linguagem “natural” do imaginário educacional são as metáfo-
ras, os símbolos e os mitos. Embora sejam mais recorrentes as
metáforas do crescimento ou cultura vegetal, as metáforas
hortícolas, nos discursos educativos encontramos ainda as
metáforas da navegação, da modelagem, da luz, do “percurso-
deslocação”, do “enchimento-alimentação”. Por sua vez, a árvore
é um bom exemplo dos símbolos usados em educação e os prin-
cipais mitos são os de Prometeu, de Pigmalião, de Frankenstein,
de Hermes, de Fausto e de Orfeu. São domínios privilegiados do
imaginário educacional as utopias educativas (frequentemente
como parte integrante de utopias políticas e sociais) – Tomás
Moro, Tomás Campanela, Francis Bacon, François Rabelais, etc.
–, os romances de formação (Bildungsroman) – de J. W. Goethe,
F. Hölderlin, Jean Paul Richter, Novalis, entre outros – e as
Ideias Educativas, como educabilidade, felicidade, utopia, pro-
gresso, perfetibilidade, natureza, cultura, homem novo, formação,
conversão, … – Rabelais, Montaigne, Rousseau, Montessori,
Freinet, Claparède, Dewey e tantos outros.
Neste texto procuramos, num primeiro momento, explicitar a
metodologia que privilegiamos na abordagem do imaginário edu-
cacional e, num segundo momento, caracterizar a imagem
arquetípica de criança trazida pela infância dos deuses. Por últi-
mo, abordamos a conceção de modelação e os sentidos de sinal
contrário da metáfora da modelagem, que é uma das mais
atuantes do discurso educativo.
1. Para uma abordagem do imaginário educacional A mitanálise é uma hermenêutica pluridisciplinar que se pro-
põe interpretar imagens, símbolos e mitos no imaginário cultural.
Ela realiza a síntese de teorias e métodos antropológicos, filosófi-
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
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cos, sociológicos, históricos, psicológicos e literários. Em último
recurso, a mitanálise não é senão uma metodologia, um método
apropriado ao estudo do imaginário, que se funda na análise
comparativa dos processos simbólicos como elementos determi-
nantes da criação literária e artística (mitocrítica) e como
elementos sintomáticos das atitudes sócio-culturais (mitanálise)
(Wunenburger, 2005). Em síntese, a mitanálise põe em evidência
a importância da intertextualidade e da contextualidade, relacio-
nando a imagem simbólica com a totalidade em cujo seio ela
surge e afirmando o sentido de um dado texto em função do todo
em que ele se insere.
Assim, esta hermenêutica interessa-se pelos mitos presentes
nos textos sem esquecer o seu contexto micro e macro-histórico,
seja ele político, cultural, social, artístico ou até educacional.
Contudo, no trabalho hermenêutico que vimos desenvolvendo,
interessa-nos sobretudo evidenciar os ideologemas em que se
encontram os traços míticos degradados e outras figuras simbóli-
cas. Como não há mitos em estado puro no interior das
ideologias, a pertinência da mitanálise revela-se no desvenda-
mento dos traços míticos, das metáforas e dos símbolos, estejam
eles latentes ou manifestos, nos textos ou mesmo nas sociedades.
Uma vez que os discursos veiculados pelos textos relevam
quer do imaginário social quer do imaginário mítico e são
também produto de um dado contexto sócio-cultural, valemo-nos
da mitanálise, o modelo hermenêutico de Gilbert Durand, para
detetar sobretudo os traços míticos, eventualmente presentes,
mesmo que degradados, nos textos educativos da tradição
cultural ocidental. Embora a mitanálise pretenda estabelecer as
mitografias culturais e identificar os grandes mitos diretores
presentes no imaginário social e histórico, ela não exclui,
entretanto, a análise semântica dos conteúdos mítico-simbólicos e
metafóricos, fazendo apelo ao conjunto da produção literária,
artística, política e histórica e, na ocorrência, educativa.
O nosso trabalho de desvendamento dos elementos míticos
eventualmente presentes nos textos educativos procura explicar o
sentido oculto destes a partir do seu sentido aparente e, nesse
sentido, vem a ser uma hermenêutica restauradora porquanto visa
uma recoleção dos traços míticos latentes e degradados nas pro-
fundezas dos textos, para lhes restaurar como que as formas
Educação, Cultura e Imaginário
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originais, quer se trate das figuras míticas de Hermes, de Prome-
teu ou de Ártemis, mesmo sabendo que essas formas estão
sempre expostas à usura e à derivação (Durand, 1996a). Por
outras palavras, mesmo quando os traços míticos não são tão
visíveis, eles estão lá, pela simples razão de que um mito nunca
desaparece, apenas se esconde à espera de uma palingenese
(Durand, 1996a: 101). Com efeito, pode-se dizer que graças à
natureza do mito, mesmo ao nível do imaginário social, há sem-
pre a possibilidade de desvendar os traços míticos nos textos
educativos da tradição cultural à semelhança da arqueologia que
remove a patina ideológica para encontrar em profundidade um
certo número de motivos míticos que remetem para as “estruturas
antropológicas do imaginário” (Durand, 1984).
O nosso objetivo é distinguir, por um lado, o modo como as
figuras do imaginário educacional (metáforas, figuras míticas,
traços míticos), predominantemente oriundas da imaginação cria-
dora, se plasmam nos textos da tradição educativa ocidental e
mesmo nas práticas pedagógicas, e, por outro lado, o modo como
essas mesmas figuras formam a Bildung humana compreendida
como aquele ato de cada um esculpir a estátua que traz dentro de
si, de modo a tornar-se aquilo que é, tal como nos ensinou Ploti-
no, Píndaro, e, depois deles, Friedrich Nietzsche na sua Gaia
Ciência. Por conseguinte, este imperativo exige, pois, uma abor-
dagem imaginativa do ato de ensinar e de aprender, não já tanto
com a urgência de fazer “cabeças bem feitas” (Montaigne), mas
antes de levar cada um a conciliar o seu lado imaginativo e
romântico (o seu lado noturno, como diria Gilbert Durand) com o
lado logocêntrico do espírito (o lado diurno, na terminologia
durandiana), tal como tem sublinhado Kieran Egan, nomeada-
mente em Imagination in Teaching and Learning (2005).
Do exposto, depreende-se que as funções-chave que poderão
ser assinaladas ao Imaginário Educacional, mediante uma Peda-
gogia do Imaginário, têm necessariamente de contemplar os dois
modos atrás mencionados, as figuras mítico-simbólicas dos tex-
tos, e essas mesmas figuras enquanto instauradoras de uma
Bildung con-formadora do homo viator (Gabriel Marcel) ou
mesmo do homo smbolicus (Ernst Cassirer). Podemos recensear
oito funções do Imaginário Educacional:
1. Aplicar uma hermenêutica simbólica – a Mitanáli-
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
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se – adequada aos textos, particularmente da tradição
educativa ocidental, com o objetivo de neles recen-
sear as metáforas, mitos (figuras e traços) e utopias
que reflitam maior interesse para a Filosofia da Edu-
cação, História da Educação e História das Ideias
Educativas (Araújo, 2006: 147-154);
2. Ensinar o espírito romântico, que sobretudo reco-
nhece e afirma a importância da imaginação na
constituição intelectual, assim como declara que o
conflito entre a razão e a imaginação é irreal, que a
dicotomização das duas leva a uma conceção impró-
pria da forma como os seres humanos compreendem
o mundo e as próprias experiências (Egan, 2001: 83-
84; 81-102);
3. Defender que os educadores não podem existir
sem os deuses no sentido que Neil Postman usa a
palavra, isto é, como uma grande narrativa, quase
como sinónimo de mito (Joseph Campbell e Rolo
May): “uma narrativa que possui credibilidade, com-
plexidade e poder simbólico suficientes para permitir
que o indivíduo organize a vida em função dela. […]
Sem uma narrativa, a vida não faz sentido. Sem sen-
tido, não há finalidade para a aprendizagem. Sem
uma finalidade, as escolas tornam-se casas de cor-
recção, não de atenção” (2002: 20-22);
4. Evidenciar a importância (na linha de Bachelard e
da tradição romântica de um Novalis, Jean-Paul
Richter, Coleridge, Wordsworth, Baudelaire) de se
sonhar e pensar os devaneios e sonhar e pensar os
pensamentos, abrindo as portas para aquilo que
António Damásio (1995) e Daniel Goleman (1997)
chamaram de inteligência emocional;
5. Realçar a importância de uma educação com sím-
bolos, assim como uma educação e pedagogia dos
símbolos (Reboul, 1992: 191-219);
6. Enfatizar a importância do papel de Pedagogia do
Imaginário, como uma pedagogia aberta às figuras
do imaginário educacional (metáforas, mitos e uto-
pias), na formação de docentes e de alunos
Educação, Cultura e Imaginário
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imaginativos (no sentido que Baudelaire atribuía a
esse termo) (Teixeira, 2006: 215-227; Jean, 1991;
Duborgel, 1995: 298-300);
7. Assinalar uma retórica, porque os “tropoi” corres-
pondem sempre a “topoi” (lugares físico-psíquicos),
específica do Imaginário Educacional, muito particu-
larmente da metáfora (luz, hortícola, modelagem,
percurso-deslocação, alimentação, enchimento…),
representando especialmente esta figura um dos
grandes “schèmes” do Imaginário, e da alegoria
(Hameline, 1986, 1981: 121-132; Charbonnel, 1991,
1991a, 1993, 1997: 59-70; Reboul, 1991: 9-25, 1984.
1991a);
8. Conciliar o sonho (alma imaginante – regime
noturno do imaginário) com a racionalidade dita
”objetiva” (regime diurno do imaginário), através
das metáforas, das utopias, dos mitos, dos Bildungs-
roman e da atividade lúdica: as imagens e os
conceitos, duas linhas divergentes da vida espiritual
(Bachelard), devem ser pensadas e trabalhadas,
numa espécie de “coincidentia oppositorum”, pelo
imaginário educacional sob o signo de um “Novo
Espírito Pedagógico” (N. E. P.). Este N. E.P. inaugu-
rado por Gaston Bachelard e continuado por Georges
Jean e por Bruno Duborgel, aponta para a formação
do conhecimento objetivo e para a construção do
psiquismo imaginante, destina o sujeito da educação
a uma dupla ‘plenitude’ e convida-o para uma cria-
ção dupla do seu eu e do mundo. Assim, “nos
antípodas de uma pedagogia iconoclasta, ele redes-
cobre a imaginação enquanto ‘faculdade de sobre-
humanidade’ e designa a imagem como ‘promoção
do ser’ (Duborgel, 1995: 309 e 317)
Na impossibilidade de exemplificarmos todas as figuras do
Imaginário educacional, contentamo-nos tão-somente por, pri-
meiro trazer para a colação a imagem arquetípica de criança que
os mitos comportam e, por último, falar da metáfora da modela-
gem que é uma das mais atuantes do discurso educativo.
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
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2. Infância dos deuses e imagem arquetípica de Criança
A nossa demanda sobre a dimensão mítico-ideológica do
discurso educativo leva-nos à deteção de traços míticos que per-
mitem identificar com mais profundidade o ideologema do
homem novo, que faz da educação um meio de regeneração da
sociedade e construção de uma sociedade nova. Enfim, “um
mundo novo de homens novos”, o que faz da criança “progenito-
ra e mestre da humanidade” (Montessori, 1931 e 1972: 12).
As representações da imagem arquetípica da Criança reme-
tem para os atributos das divindades mitológicas. Os traços
míticos, mesmo que espartilhados pelo peso da capa da racionali-
dade do discurso, sempre povoaram as diversas narrativas e
representações educativas, sempre nos olharam, sempre nos fala-
ram. A única coisa que reclamam é serem ouvidos, mas para que
isso aconteça é necessário que haja alguém disposto a ouvi-los,
para melhor os compreender (Kerényi, 1993: 15). Neste contexto,
lembra James Hillman (1982) que os deuses e as deusas, enquan-
to metáforas da psique humana, da nossa alma “malhada”
(Gilbert Durand), não podem mais voltar, pela simples razão de
que nunca partiram do palco das nossas vidas e também, acres-
centamos nós, dos nossos discursos, especialmente daquele que
nos ocupa – o discurso educativo:
O nosso objectivo não é venerar os deuses gregos, ou os de uma outra cultura politeísta. Nós não fazemos reviver uma fé
extinta. A fé em Deus, ou na vida ou na morte de Deus não é o
nosso fim. Psicologicamente os deuses nunca morreram; o
objectivo da psicologia arquetipal não é o renascimento da reli-gião, mas a sobrevivência da alma. [...] Em psicologia os
deuses não são nem objectos de crença, nem interlocutores
directos. Eles são mais qualificativos do que substantivos; a experiência politeísta confronta-se com as existências qualifi-
cadas pelas presenças arquetipais e reconhece as faces dos
deuses nessas qualificações (Hillman, 1982: 29 e 47).
Jung descreve as facetas da Criança arquetipal, inspirando-se
nas narrativas mitológicas sobre a infância dos deuses e heróis da
mitologia universal, nomeadamente da grega, embora a riqueza
dessas figuras míticas possa com rigor ser estudada e compreen-
dida à luz do par fundador “senex-puer” como, aliás, o sugere
Educação, Cultura e Imaginário
20
James Hillman (1967: 301-360). Na verdade, as qualidades ar-
quetípicas da Criança revelam-se através das infâncias de
Hermes, de Apolo, de Ártemis, de Dioniso e de Zeus, não pelo
seu caráter biográfico, mas pela sua expressão da “essência” dos
deuses, que, como lembra Homero, não envelhecem, não mor-
rem, porque são eternos (Kerényi, 1993: 44).
Os atributos de Hermes
Hermes, filho de Zeus e de Maia (a filha de Atlas) indica a
boa direção aos viandantes e peregrinos e protege-os com a sua
presença (guia (deus) dos viandantes e dos peregrinos, deus pro-
tetor dos caminhos); mensageiro de Zeus; é benfeitor dos homens
e, sobretudo, dos heróis (Perseu e Héracles); protege as casas
contra os perigos do exterior (deus protetor dos lares); dada a sua
facilidade de percorrer os três níveis cósmicos, acompanha (con-
duz) as almas dos mortos ao Reino de Hades (o “Guia das
Almas”: Hermes o “psicopompo”); evocado e adorado nas
regiões fortemente dependentes da criação de rebanhos (é um
deus pastoril); como deus veloz e móvel teve o privilégio de ser o
fundador da Troca entre os homens (deus do comércio) e o deus
do estádio e da palestra (no sentido grego do termo); funda a ins-
tituição nada honrosa do roubo (deus dos ladrões) pelo facto de
ter roubado ao seu irmão Apolo doze vacas, cem jumentas e um
touro; como deus benfeitor é também o deus da sorte, do encon-
tro de pessoas e de coisas ou de objetos; pelas suas qualidades de
orador e de retórica tornou-se o deus da eloquência e o patrono
dos oradores e, por extensão, o deus das atividades racionais (o
deus da escola e da instrução). Destes atributos, aquele que
melhor dá conta da natureza de Hermes é o de “mensageiro” (o
“guia das almas” - Seelenführer) ao serviço da vontade de Zeus
(Kerényi, 1976).
Os atributos de Apolo
Apolo, filho de Zeus e de Leto (a filha dos Titãs Céu e Febe),
protege, à semelhança de Hermes, os rebanhos e os seus redis
(deus pastoril), e os pastores (o deus dos pastores); protege tam-
bém, à semelhança de Hermes, o viandante terrestre e marítimo
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
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(lembre-se que os golfinhos são-lhe consagrados), sendo igual-
mente o benfeitor dos homens. Por isso mesmo não se estranha
também que ele, enquanto deus das entradas, vigie e proteja a
entrada das habitações e, por conseguinte, o grupo familiar.
Assim como protege os humanos, de igual forma protege a corça,
o cisne e o golfinho e domina os animais selvagens, de que são
exemplo os leões e os lobos (deus dos animais); as dores cruéis e
a impureza são-lhe repelentes, pelo que é o deus da cura (ele foi
antes do seu filho Asclépio o primeiro médico dos deuses e dos
seres) e da purificação da alma. Walter Otto diz que ele é “o mais
espiritual de todos os deuses”, pois o seu fogo sagrado é o mais
puro de todos os fogos. Nesta linha da pureza é o deus da lonjura
(deus do arco, sendo este símbolo da distância superior), e do
afastamento superior, pelo que também se apresenta como deus
do encantamento e da inspiração profética, musical (a língua e o
conhecimento) e poética. É um deus que manifesta uma inclina-
ção pela alta espiritualidade, simbolizada pela clarividência, que
o leva a fundar a lei, a ordem estabelecida e a justa medida. Daí
falar-se do espírito apolíneo como algo de clarividente, luminoso
e de lúcido. Finalmente, um deus com todos estes atributos diur-
nos, simbolizando a suprema espiritualização, não podia deixar
de ser o deus solar e da luz (não esquecendo que ele matou em
Delfos, com as suas flechas, um dragão – símbolo ctoniano por
excelência – o dragão Píton): enquanto vencedor das poderosas
forças ctonianas e sombrias da terra, simboliza a luz no seu
esplendor e correlativamente é um dos símbolos mais representa-
tivos quer da ascensão humana, quer da pureza, assim como do
seu ensinamento (Kerényi, 1953).
Os atributos de Ártemis
Ártemis, filha de Zeus e de Leto, é protetora da castidade
(virgem assumida); deusa da caça e, por extensão, deusa do mun-
do animal, particularmente dos animais selvagens (tanto os
massacrava como os protegia); deusa do reino vegetal ou da terra
(responsável pela fertilidade dos campos, por isso também deusa
da fertilidade); deusa do nascimento e do crescimento. Como
corolário destes atributos, Ártemis assume-se como um tipo de
deusa infernal e lunar e representante da liberdade feminina: “a
Educação, Cultura e Imaginário
22
livre natureza com o seu esplendor e a sua selvajaria” (Otto,
1993: 99). De realçar, ainda, o caráter fortemente ambivalente da
sua natureza, característica muito comum a todos os deuses, pois
tanto protegia os animais, homens e mulheres como os massacra-
va; tanto era virgem e tinha horror do amor sensual, humano,
como protegia as mulheres grávidas ou lhes dava a morte; obses-
sivamente casta (aspeto dominador e castrador da mãe) e
voluptuosa (a companhia dos animais selvagens que simbolizam
o mundo instintivo): “dona dos bosques e das montanhas, caçado-
ra acompanhada de leões, mas também soberana pacífica que
recebe as homenagens das cidades que ela protege” (Humbert,
1951: 185; Otto, 1995: 101-105).
Os atributos de Dioniso
Dioniso, filho de Zeus e de Sémélé (filha de Cadmos e de
Harmonia), é também conhecido pelos nomes “o do mar”, “o do
lago”, “aquele que nasceu no lago”. É considerado o deus da
humidade e o deus de toda a vegetação, a cuja renovação se asso-
cia a procriação e a fecundidade animal e humana (Hillman,
1978: 93; Otto, 1969: 180-189), mas é celebrado sobretudo como
deus da vinha e do vinho (Otto, 1969: 152-160). Decorrente deste
atributo, um dos seus epítetos mais correntes é o de “polygethes”
(aquele que provoca uma intensa alegria), devido à sua “energia
vivaz indestrutível” (Hillman, 1977: 52), ou, então, por represen-
tar simplesmente uma “imagem arquetípica da vida indestrutível”
(Kerényi, 1996). Walter Otto (1995: 121-122) descreve ainda
Dioniso como “o deus da aparição, do olhar povoado de espíritos
que provoca o desequilíbrio”, cujo símbolo é a máscara que, em
todos os povos, significa a aparição direta dos espíritos misterio-
sos.
Os atributos de Zeus Zeus, o filho mais novo do Titã Cronos e de Reia, é a “maior
criança” entre as crianças divinas (Kérenyi, 1993:89). Etimologi-
camente, o seu nome designa o “céu luminoso” (o que
simbolicamente significa o reino do espírito), e, sendo “o pai dos
deuses e dos homens” como se pode ler na Ilíada (I, 544), é por
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
23
inerência o guardião e o protetor da ordem material, social e
moral, bem como da justiça quer no Olimpo, quer entre os
homens. Ele é o deus dos fenómenos atmosféricos (ou das mani-
festações celestes), pois é o deus da luz, do céu claro, do
relâmpago e das faíscas. Sendo o deus do clima, é também o deus
da produtividade agrícola e dos trabalhos da agricultura. Decor-
rente deste atributo, assume-se igualmente como o conservador
das “dispensas” familiares e, por extensão, é o protetor da casa e
do lar propriamente dito. Ele é deus da purificação porque elimi-
na a “impureza” e tranquiliza aquele que ela oprime. Finalmente,
ainda que menos especializado que Apolo, Zeus é o deus da adi-
vinhação, pois não só controla as previsões dos fenómenos
atmosféricos (visto ser ele o seu causador!), como também inter-
preta os sonhos (uma espécie de psicanalista divino!); decifra o
sentido esotérico das palavras e, finalmente, lê ou decifra o voo
dos pássaros.
A análise descritiva das infâncias de Hermes, Apolo, Árte-
mis, Dioniso e Zeus põe em evidência o abandono ao qual a
“Criança divina” está exposta. Exemplo flagrante de abandono
versus solidão é a infância de Dioniso: um deus criança órfão de
mãe, com um pai ausente, e sempre perseguido. Ainda que não
possamos considerar Zeus na categoria de órfão de pai no sentido
estrito do termo, o facto é que, na prática, o foi: Cronos, devido à
ação de Reia, estava ausente, pois caso não o estivesse devorá-lo-
ia o que seria ainda mais trágico. Quer Dioniso, quer Zeus conse-
guiram sobreviver, de um modo ou de outro, pela ação zeladora
das suas amas naturais ou sobrenaturais, cuja presença no mito
exprime à vez o estado solitário da criança divina, e o facto de,
apesar de tudo, no mundo originário [originel] ela estar em casa.
É uma situação com duas faces: a de um órfão, e simultaneamen-
te a de uma criança amada pelos deuses (Kerényi, 1993: 47;
Hillman, 1978: 94).
No tocante a Hermes, a Apolo e à sua irmã Ártemis, ainda
que aparentemente as coisas se tenham passado de outra maneira,
o tema do abandono e da solidão não deixa, contudo, de estar
presente. Só que, neste cenário, a tónica da solidão e do abandono
aparece do lado das suas progenitoras: Leto viu-se, como se sabe,
Educação, Cultura e Imaginário
24
obrigada a fazer uma espécie de volta ao mundo, até ter encon-
trado um lugar que a acolhesse – a pequena ilha de Delos (Ilha da
Aparição); enquanto que Maia, pelo seu lado, se viu obrigada a
gerar sozinha, durante a noite em que os deuses e os homens
dormiam, o seu filho Hermes numa caverna situada algures no
monte Cilene, ao sul da Arcádia, logo afastada do Olimpo. Os
sentimentos da solidão e de abandono experienciados por Maia
encontram-se, contudo, atenuados em Leto, pois esta, durante as
dores de parto e do nascimento de Apolo, teve, segundo Kerényi
(1952: 133), a companhia das deusas Dione, Reia, Témis, entre
outras (exceto obviamente de Hera).
Podemos pois dizer que a infância dos deuses gregos reflete
as características principais da Criança arquetipal e, como tal, os
mitos que narram as suas infâncias ensinam-nos pedagogicamen-
te a melhor compreender a natureza da Infância universal e
intemporal, ou seja, imbuída do seu sentido paradigmático e a-
histórico. É pois nesta perspetiva que podemos retirar ensinamen-
tos valiosos, na base da relação entre a natureza arquetipal da
Criança e a mitologia da Infância, para melhor entendermos o
sentido arqueológico-teleológico da nossa própria infância. Com
isto, queremos tão simplesmente dizer que a densidade mítico-
simbólica da Criança, com as facetas acima mencionadas, é por si
só reveladora do caráter redentor e salvífico da Criança enquanto
“mensagem de renascimento espiritual do homem” (Silva, 1988:
127-149).
3. A educação como modelagem
Nanine Charbonnel (1991-1993) defende que o discurso
sobre a educação é de natureza metafórica e bulefórica e situa-se
no domínio da semântica da metáfora. A este respeito, a autora
defende que o discurso sobre educação não se distingue, muitas
vezes, do género de discurso que é feito de forma pedagógica. A
sua posição é sustentada pelo corpus textual que a autora anali-
sou, com o objetivo de recensear e de estudar as metáforas de
“enchimento”, de “alimentação” e de “modelagem” nos textos de
autores que trataram a educação quer do ponto de vista teórico,
quer do ponto de vista prático ou, então, mesmo de ambos.
Assim, e independentemente das posições que caracterizam a
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
25
atitude do educador ou do pedagogo, aquilo que há de comum
entre eles é o facto de ambos não escaparem, seja através do seu
discurso, seja através da sua prática, à influência do metafórico e
do bulefórico: “É quando se trata de aconselhar, de prescrever, de
dar os bons preceitos, que a metáfora floresce” (1991 (T.2): 87).
Por outras palavras, tudo parece apontar para que os textos que
falam de educação espelham uma aliança estreita entre o bulefó-
rico e o metafórico. O que significa, portanto, que as metáforas
em educação, sejam elas “hortícolas”, de “modelagem” ou de
outro tipo, revestem, ora explicitamente, ora implicitamente, um
caráter prescritivo.
A este propósito, a autora, quando se trata da temática do
conselho e da prescrição em educação, chama a atenção para um
aspeto importante, que é precisamente a questão da “imitação”
(Charbonnel, 1999: 55-57). Esta nem sempre consiste em seguir
aquele que dá o conselho, mas sobretudo aquele em nome de
quem é dado o conselho: “O único porta-conselho, em última
instância, é o verdadeiro mestre, quer dizer aquele que se pode
imitar” (1991 (T. 2): 86). Intimamente ligada à imitação do
modelo encontra-se um dos traços distintivos da metáfora que é a
“similitude”: “ela é o fruto da imitação de um modelo, e nesta
imitação há níveis que podem ser transpostos graças ao desejo de
se aproximar o mais possível do modelo. A emulação é simulta-
neamente o desejo de igualar o modelo, e o desejo de igualar os
rivais que têm também o desejo de igualar o modelo” (1991 (T.
1): 123).
É pois esta característica que nos permite distinguir a compa-
ração entre entidades homogéneas (ela é bela como a sua irmã) e
a similitude entre entidades heterogéneas (ela é bela como uma
rosa, é uma verdadeira rosa). Assim, é o “ver como” da similitude
(“Calias forte como um rochedo”) que nos faz melhor compreen-
der o movimento da metáfora que parte do nível da linguagem –
gramática, linguística: distinção gramatical entre metáfora [a
criança é uma planta] e comparação [a criança é como uma plan-
ta] – até ao nível do pensamento (aproximação dos significados:
relação abstrato/concreto e concreto/abstrato). É portanto neste
nível que Charbonnel fala dos seus regimes semânticos (RS) dos
enunciados metafóricos (ou similitudinais): RS expressivo, RS
praxiológico (incita/apela a uma praxis) e RS cognitivo (1991 (T.
Educação, Cultura e Imaginário
26
2): 128-177). Dos regimes focados, interessa-nos destacar o RS
praxiológico porque é aquele que, segundo a autora, melhor dá
conta da natureza metafórica e bulefórica do discurso sobre edu-
cação: neste regime os enunciados metafóricos prescrevem ou
incitam a uma prática condensada na fórmula “fazer Fazer”. As-
sociados a este RS, podemos distinguir três tipos de injunção
veiculados pelos enunciados similitudinais no discurso sobre
educação: tipo I – refere-se à ação ligada ao tempo, ou considera-
da como não tendo qualquer relação com o outro; tipo II – tu
deves agir bem em relação ao outro que é também do mesmo;
tipo III – tu deves, para melhor agir, reconhecer que existe do
próprio (1991 (T. 2): 164-177):
Nós acreditamos poder dizer que, na sua grande maioria, os
enunciados de metáfora ou de similitudo no discurso sobre a educação devem ser encarados como provenientes de um regi-
me semântico que não é nem expressivo (ou não somente
expressivo), nem cognitivo, mas de um outro tipo que nós vamos chamar praxiológico. Nós entendemo-lo como os seus
enunciados a) fossem meramente indicativos e aparentemente
descritivos, são, contudo, prescritivos, injuntivos, b) e prescri-tivos em relação a uma ‘praxis’, quer dizer, no sentido mais
lato do termo, aquilo que num comportamento, num conjunto
de atitudes e de sentimentos, pode ser o objecto de enunciados
normativos. Com todo o rigor, ser-nos-ia necessário chamar ao regime praxiológico de praxio-prescritivo. Nós renunciamos a
esta terminologia em virtude do seu peso lexical (1991 (T. 2):
143).
Nanine Charbonnel estuda as metáforas do “enchimento”, da
“alimentação” e do “modelo” de acordo com os três tipos de
injunção atrás referidos e, como tal, não é nossa intenção repeti-la
(1991 (T. 2): 179-251, 1993 (T. 3): 5-55; Hameline, 1986: 145-
158). No entanto, e dado o relevo que a metáfora da modelagem
assume no regime semântico praxiológico, iremos dedicar-lhe
uma atenção particular. Nunca é de mais recordar que os
enunciados metafóricos que nos falam do par modelo-
modelagem, além de exprimirem, mediante um ato linguístico,
um sentimento, um estado de alma, eles fazem outra coisa:
“apelando a um elemento que permita a comparação (sempre
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
27
heterogéneo) e valorizado (como no regime semântico
expressivo)” eles “ordenam expressamente ao leitor, ao
interlocutor, qualquer coisa que deverá fazer na praxis
extralinguística. Dizer: ‘A criança é uma planta que tem muita
necessidade de sol’ (Michelet) é ordenar expressamente ao pai
que deve dar carinho à criança” (Charbonnel, 1999: 35). No caso
específico da metáfora da modelagem, a injunção deveria ser do
tipo “Tu deves formar a criança segundo um modelo” (1993 (T.
3): 10)
A metáfora da plasticidade no pensamento educacional gira
em torno do par modelo-modelagem, em que o educador, à seme-
lhança do oleiro e do padeiro, modela o caráter, senão mesmo a
alma, do seu público (Hameline, 1986: 145-147). Assim, a figura
central da metáfora da modelação é o sujeito maleável (o schème
metafórico do sujeito maleável), que, por extensão, trata da
maleabilidade total do homem: “O schème [o itálico é nosso],
cognitivo e moral, impõe atribuir a um único dos parceiros da
interface didáctica, a qualidade de actor. O sujeito da educação é
sem dúvida um submisso, objeto maleável nas mãos de quem o
trabalha para lhe conferir forma humana” (1986: 145).
A metáfora da modelagem, num primeiro momento, não visa
a fabricação ontológica dos sujeitos, mas antes a sua criação
mediante as virtudes do artista. Por outro lado, faz do uso do
modelo a via privilegiada (Charbonnel, 1993 (t. 3): 9-20). Este
modelo pode ser exterior ao artista, ao criador como pode preci-
samente coincidir com o sujeito criador. Por outras palavras,
trata-se aqui de modelar o outro, por exemplo a criança, não já
sobre um modelo exterior, mas sobre si-mesmo como é o caso da
criação do homem feito à imagem e à semelhança de Deus.
Vemos, assim, que este tipo de metáfora possui uma relação dire-
ta com o tema da criação da humanidade, tal como ela parece
narrada nas diferentes religiões, nomeadamente no Livro do
Génesis, e na tradição mítica ocidental e oriental (veja-se os
mitos antropogónicos).
A metáfora da modelagem, encarada sob o ângulo da cria-
ção, representa um primeiro nível da formação entendido como
ato de um criador sobre uma matéria amorfa (que vai desde a
areia, a lama, a terra, a cera, o gesso, o marfim, passando pela
argila, entre outros materiais), ou, então, a modelagem de uma
Educação, Cultura e Imaginário
28
forma de acordo com a vontade exclusiva do seu autor: “A metá-
fora da modelagem é lida como pretendendo dar uma
aproximação representativa da essência da situação da educação,
tornando-se por isso escandalosa: a criança é encarada como
reduzida à matéria; à qual se acrescenta uma crítica não menos
violenta que é a da moldagem que aniquilaria as autonomias e
destruiria as diferenças” (Charbonnel, 1993 (T. 3): 26).
Num segundo momento, a metáfora da modelagem assume-
se como um ato de esculpização, o que significa uma maneira
mais subtil de encarar a formação do outro (Fabre, 1994: 19-39).
Aqui já não se trata tanto de esculpir o outro a partir do exterior,
mas, e sobretudo, levar o outro a esculpir por si-mesmo a sua
própria estátua. É nesta perspetiva que se poderá compreender o
tema da “forma interior”, reclamada por Fichte ou por Humboldt,
e que ela assuma a sua máxima expressão no género do Bildung-
sroman, o “romance de formação”, de que o Wilhelm Meister de
Goethe representa ainda o principal paradigma (Charbonnel,
1987). De um modo geral, o “romance de formação” exprime
uma aliança entre a crença na modelagem exterior (realizada si-
multaneamente pelos mestres, pelas circunstancias e pelas
experiências) com uma forma interior, individual, preexistente:
No Bildungsroman não se trata de uma educação indeterminada
e indiscriminada; trata-se de um processo de formação em que
os momentos, as etapas, os degraus e mesmo o ritmo são fixa-dos a priori, como os estádios da consciência de si na
Fenomenologia do Espírito. A progressão da aprendizagem da
vida adquire aí um carácter totalmente necessário; ainda que fosse necessário precisar que se trata mais de uma experiência
do ‘mundo’ e da ordem do mundo que da ‘vida’ (Berman,
1983: 153).
Mais, podemos dizer que aquilo que caracteriza o “romance
de formação” é uma espécie de escultura de si em contacto com o
mundo e com a vida e vice-versa, pois a formação e a iniciação
interessam mais do que a informação no sentido tradicional do
termo. Assim, o itinerário iniciático proposto neste tipo de
romance assemelha-se ao convite de uma viagem, também ela
imaginária, comportando uma série de obstáculos que é
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
29
necessário ultrapassar, porém “o mais temível é o último de
todos, a provação suprema da morte” (Berman, 1983: 402). E é
portanto aqui que nos cruzamos com a função eufemizante da
imaginação, pois esta “não é um simples ópio negativo, máscara
que a consciência ergue face à horrenda figura da morte, mas
pelo contrário dinamismo prospectivo que, através de todas as
estruturas do projecto imaginário, tenta melhorar a situação do
homem no mundo” (Durand, 1979: 121-122). Será pois em nome
deste projeto que somos convidados à viagem e, por conseguinte,
ao devaneio poético que se pretende dinâmico para nos impelir
em direção a um “algures”, a um “mundo outro”, a uma “cidade
ideal” (Roger Mucchielli), enfim a um “mundo novo”, e aqui nos
deparamos com uma das facetas mais relevantes do imaginário
educacional, que é aquela referente às utopias educativas
(Drouin-Hans, 2004; Araújo & Araújo, 2007).
Conclusão
O imaginário que designamos de educacional recorre aos
símbolos, aos mitos, às metáforas, às utopias para melhor se dar a
ver e a entender. Na sua base encontra-se tanto a imaginação
reprodutiva como a produtiva ou criativa que trabalham em
ordem a confecionar as imagens que povoam de um modo latente
e muito menos patente o imaginário. Dizemos que essas imagens
– as do jardineiro-planta, do oleiro-estátua, da luz, do percurso,
da navegação, do novo, entre outras – se encontram de um modo
geral latentes pois o Imaginário Educacional é um imaginário
degradado, isto é, espartilhado por uma retórica racionalizadora
que faz com que ele não possua a riqueza semântica própria das
grandes metáforas vivas, dos grandes símbolos, dos mitos. Por
isso, este Imaginário tende necessariamente para a univocidade,
cedendo lugar, a maioria das vezes, a um discurso concetualizado
e, consequentemente, empobrecido do ponto de vista mítico-
simbólico. Dai a necessidade de uma hermenêutica adequada a
este tipo de imaginário, que nós, na linha de Gilbert Durand,
designamos de Mitanálise (Araújo & Silva, 2003: 339-364;
Durand, 2000).
A necessidade da aplicação deste modelo hermenêutico não
se limita tão-somente a recolher e a tipificar o feixe de figuras
Educação, Cultura e Imaginário
30
presentes nos textos da tradição educativa ocidental (revista
pedagógicas, declarações políticas, textos oficiais, jornais, dou-
trinas educativas, obras de grandes teóricos da educação,
literatura com reflexo educacional …) de modo a constituir um
mero catálogo. Essa hermenêutica, como ato interpretativo que é,
visa restaurar o sentido existencial veiculado pela tradição das
grandes imagens pregnantes simbolicamente de modo a restituir
de novo o olhar oximorónico à comunidade dos educadores. Uma
comunidade (gemeinschaft) que se pretende, por um lado, que
seja simultaneamente uma fraternidade iniciática e um encontro
de discípulos de Hermes, e que, por outro, não esqueça que Alu-
nos e Mestres devem em conjunto cultivar uma racionalidade
crítica imaginativa e uma imaginação dotada de uma racionalida-
de crítica sob o signo da divindade romana Jano (Janus) – o deus
bifronte.
E não podíamos terminar sem dizer, na companhia de Carlos
Drummond de Andrade, que o Mestre verdadeiramente imagina-
tivo é todo aquele que “Teve todas as visões antes da gente. /Viu
as coisas que são e as que serão”, assumindo-se desse modo
como aquele guia (Seelenfuhrer – Kerenyi, 1944) que convida os
seus discípulos a acompanhá-lo numa viagem iniciática de modo
a virem, um dia, a descobrir uma educação humanista não icono-
clasta e remitologizadora.
Referências
DURAND, Gilbert (1996a). Pérennité, Dérivations et Usure du
Mythe. In Champs de l’imaginaire. Edition de Danièle
Chauvin. Grenoble: Ellug.
WUNENBURGER, Jean-Jacques (2005). Création artistique et
mythique. In Questions de Mythocritique. Dictionnaire. Edi-
tion de Danièle Chauvin; André Siganos et Philippe Walter.
Paris : Imago, pp. 79-82.
MONTESSORI, M. (1931). L’Enfant Nouveau, La Nouvelle
Éducation, 96, 102-110.
MONTESSORI, M. (1972). L’Enfant. Paris : Desclée de Brower.
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
31
II A fabricação do humano a partir do
Imaginário Educacional 2
Alberto Filipe Araújo
Joaquim Machado de Araújo
Introdução
Pinóquio deseja ser um rapazinho de verdade e, a partir de
certa altura, tudo faz para escapar à sua condição de boneco de
madeira ainda que animado. Num tempo em que autores, como é
o caso de Neil Postman, anunciam O Desaparecimento da Infân-
cia (1982), revisitar As Aventuras de Pinóquio aparece como uma
tarefa significativa no quadro da filosofia do imaginário educa-
cional onde a literatura, a pedagogia e a filosofia desempenham
um papel hermeneuticamente estimulante. A este respeito, con-
vém não esquecer o alerta de Philippe Meirieu para “o bom uso
da literatura em pedagogia” ao ponto de afirmar que o estudo
pedagógico dos textos literários se afirma como um exercício
essencial na formação dos educadores.
Neste estudo falaremos, num primeiro momento, do velho
Pinóquio de madeira tal como nos conta o autor de As Aventuras
de Pinóquio. História de um Boneco (1883), onde nos deparamos
com um modelo de fabricação tradicional; num segundo momen-
to, inspirados no filme Inteligência Artificial (2001), de Steven
Spielberg, falaremos de um Pinóquio ciborgue, para, na última
parte, e numa perspetiva crítica, refletirmos sobre um Pinóquio
outro, ou seja, um romântico resistente quer ao modelo de fabri-
cação artificial em madeira, em que Pinóquio estava sempre
sujeito à vontade do Outro, quer a um organismo cibernético com
2 Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT –
Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projecto PEst-
OE/CED/UI1661/2011 do CIEd.
Educação, Cultura e Imaginário
32
implantes biónicos ou robóticos (lembrando aqui o caso de
David, a criança androide do filme Inteligência Artificial).
Assim, nesta última parte, voltaremos ao sonho de Pinóquio de
ser um rapazinho como deve ser, o que repõe os temas da hetero-
nomia e autonomia, da inteligência artificial e emocional, do
livre-arbítrio, dos sentimentos, tais como a solidão, o amor, entre
outros.
Pinóquio como humano conduz-nos necessariamente a ir
mais longe na compreensão do Mesmo e do Outro, na compreen-
são das contradições mais profundas da condição humana: temor-
esperança, finitude-infinitude, amor-ódio, medo-coragem, crença-
não crença, paz-violência, educar para a liberdade e autonomia e
vertigem pela dominação e modelação. Por isso, torna-se impor-
tante captar, através do caso singular de Pinóquio, a
universalidade da condição humana e aquilo que a sua figura lite-
rária e arquetípica do imaginário infantojuvenil contribui para
uma educação resistente à nova ordem e ao fascínio da Tecnopo-
lia escrita por Neil Postman (1992).
Por fim, nós somos daqueles que pensam que ainda é possí-
vel ajudar a Criança que habita o público infantojuvenil a escapar
ao apelo alucinado que toda a parafernália da tecnopolia atual
exerce no seu imaginário, ao ponto de ele se transformar num
mero ciborgue e reencontrar a sua condição humana cada vez
mais ameaçada, lembrando aqui a obra de GüntherAnders, intitu-
lada lúcida e profeticamente A Obsolescência do Homem, para
quem o Homem se torna obsoleto, na sua qualidade de ser tecno-
lógico já desatualizado ou impotente, face ao desenvolvimento
ultraperformativo tecnológico cada vez mais totalitário.
1. Era uma vez um boneco de madeira de nome Pinóquio
filho de Gepeto
Pinóquio é o personagem emblemático d’As Aventuras de
Pinóquio (em italiano Le avventure di Pinocchio. Storia di un
burattino), um romance escrito pelo italiano Carlo Collodi em
Florença no ano de 1881 e publicado, dois anos depois, com ilus-
trações de Enrico Mazzanti, em 1883. Trata-se de um clássico da
literatura infantojuvenil que narra a vida de uma criatura desde o
seu fabrico, uma marionete de madeira destinada a ser manipula-
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
33
da por Gepeto em mercados e feiras, até ocorrer, depois de ter
vivido muitas peripécias, a sua transformação, graças aos poderes
mágicos da fada, num belo e alegre rapazinho.
O destino de Pinóquio era de ser apenas, e tão-somente, um
boneco de madeira manipulado por Gepeto para entreter e fazer
rir especialmente o público infantil e de assim lhe servir de sus-
tento:
Pensei em construir – diz Gepeto ao mestre António – um belo
boneco de madeira; mas um boneco maravilhoso, que saiba
dançar, fazer esgrima e dar saltos mortais. Quero correr mundo com esse boneco, para granjear um naco de pão e um copo de
vinho (Collodi, 2004: 10).
Gepeto estava de facto obstinado em esculpir um belo bone-
co de madeira que se destinasse a um uso lúdico: “Assim que
entrou em casa, Gepeto agarrou logo nas ferramentas e pôs-se a
esculpir e a construir o seu boneco” (2004: 13), ao qual deu o
nome de Pinóquio. Não se tratava de um boneco qualquer, sem
vida à espera que o manuseassem; antes pelo contrário, pois, mal
Gepeto lhe acabou os pés, ele “começou a andar sozinho e a cor-
rer pelo quarto; até que, escapulindo pela porta, saltou para a rua
e começou a fugir” (2004: 17). E o Grilo-Falante enfatizava a
pena que o boneco lhe inspirava pelo facto de ser de madeira: “ –
Pobre Pinóquio, fazes-me mesmo pena. – Porque é que faço
pena? – Porque és um boneco, e o pior é que tens uma cabeça de
pau” (2004: 21)
Pinóquio assumia-se desde o seu “nascimento” como filho de
Gepeto. Logo nas primeiras páginas das Aventuras ele designa-o
de pai (2004: 24-25), já mesmo antes era o próprio Gepeto a
assumir essa mesma condição: “ – Que garoto tão malandro!
Ainda não estás acabado de fazer e já começas a faltar ao respeito
ao teu pai” (2004: 16). Pinóquio, ainda que sem disso tivesse
consciência, estava “talhado”3, não para ser uma simples e vulgar
marionete nas mãos do seu construtor-artesão (2004: 13-18), mas
antes para ser um “herói” que almejava viver entre os homens
3 Jogamos aqui com o duplo significado da palavra: o artesão/escultor
que talha/esculpe a madeira para lhe dar forma e o sentido que aponta para os
verbos predestinar e predispor.
Educação, Cultura e Imaginário
34
como um rapaz de verdade. Consegue-o graças quer à proteção
da Fada azul-turquesa, quer às suas boas-ações como veremos na
nossa última parte.
2. Era uma vez um ciborgue de nome David filho do deus
da Tecnologia4.
Se nascesse hoje, moldado pelas Novas Tecnologias da
Informação e da Comunicação (NTICs)5, Pinóquio dificilmente
seria de madeira e para não estar “out”, e na qualidade de aspiran-
te a tecnófilo irrepreensível, seria um ciborgue ultraperformativo
4 Neil Postman toma deus como sinónimo de uma grande narrativa
credível, complexa e dotada de um poder simbólico tal que permita a cada
sujeito organizar a sua vida em função dela: “Sem uma narrativa, a vida não
faz sentido. Sem sentido não há finalidade para a aprendizagem” (2002: 22).
Ainda que o deus tecnológico pertença à categoria daqueles que falham (2002:
54-68), o autor dedica-lhe, contudo, uma atenção particular afirmando que ele
“oferece um vislumbre do Paraíso” (2002: 24) e que somente oferece poder,
enquanto a ciência oferece simultaneamente ciência e poder. A tese do autor é
que a crença tecnológica, que oferece eficiência, padronização e otimização,
substituiu a crença religiosa tradicional na medida em que a maioria das
pessoas transferiu a sua crença no divino para a divina tecnologia. Daqui resulta que confia no seu poder e nas suas promessas, e, quando não a possui
ou lhes é negado o seu acesso, sente-se frustrada, desorientada e mesmo
despojada. Pelo contrário, o sujeito na posse da tecnologia mais performativa
sente-se radiante, encantado ao ponto de tudo alterar na sua vida para a servir
como se um deus (leia-se ídolo) se tratasse. Por outras palavras, a adoração
tecnológica substituiu paulatinamente, e mesmo de forma insidiosa, a crença
religiosa, satisfazendo quase de forma paradoxal as suas necessidades e
cumprindo as suas funções, nomeadamente a função de religar. 5 As chamadas Novas Tecnologias de Informação e Comunicação
(NTICs), além da robótica e protética, redes neurais, nanotecnologia,
manipulação genética e vida artificial, são um cântico da sereia, isto é, uma espécie de voz de Mefisto do Fausto de Goethe (1806-1833) que, ao
possibilitarem o surgimento da “sociedade da informação”, mesmo de uma
“sociedade do conhecimento” em que este escorre através das redes
telemáticas, destroçam as defesas tradicionais (Postman, 1994: 69-85). Por
outras palavras, estas defesas são o sinónimo de humanitude (Albert Jacquard)
e, quando estas são alienadas pela húbris tecnológica que escapa, à semelhança
de Frankenstein, ao seu criador, é a própria ideia e vivência de humanidade
que desaparece como muito lucidamente o viu Günther Anders em
Obsolescência do homem (2002-2011).
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
35
dotado de um cérebro altamente sofisticado à semelhança de
David que, na Inteligência Artificial de Steven Spielberg (2001),
reedita, na sua condição de androide em forma de uma criança, o
desejo de Pinóquio de tornar-se, também ele, um menino de ver-
dade com o auxílio da Fada Azul, na linha d’As Aventuras de
Pinóquio que ele tinha ouvido da boca da sua mãe adotiva
(Mónica Swinton)6. Pinóquio androide com cérebro robótico
seria certamente um fã da internet alta velocidade com os seus
streaming e podcasting, do messenger, do facebook, do skype, de
blogs e do twitter para comunicar com os seus amigos Arlequim,
Palito e mesmo com a Fada e o seu pai Gepeto. Igualmente troca-
ria de boa vontade o “País da Brincadeira” pelas tecnologias
digitais de captação e tratamento de imagens e de sons e pelas
tecnologias de acesso remoto (sem fio ou wireless), pois estas
traziam-lhe, a três dimensões, simplesmente o “País da Brinca-
deira” onde todas as semanas são constituídas por seis sábados e
um domingo e onde todos vivem felizes, e já não teria mais a
maçada de se deslocar numa carruagem puxada por burrinhos,
nem despegar-se da cadeira que o posiciona e o liga, senão mes-
mo que o acorrenta prometeicamente ao ecrã.
Pinóquio hoje seria um David filho de uma “tecnopolia” que
serve um deus que não fala de justiça, de bondade, de misericór-
dia e de graça, mas sim um deus que se exprime através da
eficácia, da precisão e da objetividade que exclui o universo
moral: “O pecado e o mal desaparecem porque não podem ser
medidos nem objetivados e, portanto, é impossível serem tratados
pelos peritos” (1994: 85). O olhar de Neil Postman na Tecnopolia
6 Mas infelizmente tal não acontece (estando o clímax da desilusão
desesperante e da impotência total da realização do desejo simbolizada no
momento em que a Fada Azul se desintegra no fundo do mar), sendo antes reconfortado por androides altamente performativos que lhe permitirão viver
um dia com Mónica depois de a clonarem a partir de uma madeixa do seu
cabelo. Daqui constata-se, entre outras ilações, que mesmo um ser mecânico
altamente aperfeiçoado, dotado de uma inteligência artificial ao serviço de um
projeto específico, criado pelo Professor Hobby, pode desejar tornar-se um
menino de verdade. A assunção deste desejo coloca complexas questões, desde
as filosóficas até às cosmológicas, não sendo a menor delas a natureza e os
limites da técnica, ainda que altamente performativa, e o fascínio que a
condição humana, mesmo que na sua finitude mais tangível, desperta em
androides que quase que sentem e vivem essa mesma condição.
Educação, Cultura e Imaginário
36
(1992) explica como a cultura se rende à Tecnologia e fala de
“defesas destroçadas” (1994: 69-85)7. Na verdade, a Nova Atlân-
tida (1627) de Francis Bacon prefigura bem a Tecnopolia (1992)
desenhada por Neil Postman, só que enquanto a primeira faz a
apologia do par ciência-tecnologia ao serviço de um cultura da
razão, do progresso infindo, da perfetibilidade humana e de uma
felicidade na terra, a segunda desmistifica a tecnologia por ela
abrir as portas não só à desumanização da sociedade e à perca da
identidade cultural, como também pelo facto de a cultura se ren-
der à tecnologia e, muito especialmente, às novas tecnologias
sempre reféns do mito de Fausto (Dabezies, 1988):
A tecnopolia é um estado de cultura e também um estado men-
tal. Consiste na deificação da tecnologia, o que significa que a
cultura procura a sua credibilidade e descobre as suas satisfa-ções na tecnologia e recebe dela as suas ordens. Isto exige o
desenvolvimento de um novo tipo de ordem social e essa
necessidade conduz à rápida dissolução de muito daquilo que
está associado às crenças tradicionais: os que sentem mais à vontade na tecnologia são os que estão convencidos de que o
progresso técnico é a suprema realização da humanidade e o
instrumento pelo qual os nossos dilemas mais profundos podem ser resolvidos. Também acreditam que a informação é uma
bênção pura, que, através da sua produção e disseminação con-
tínua e incontrolada, oferece uma acrescida liberdade,
7Aparentemente parece que o contributo de Postman não tem grande
coisa a ver com o do António Nóvoa, porém ambos convergem, ainda que por
caminhos diversos, na defesa de uma maior aprendizagem, de uma sociedade
mais crítica e na defesa da comunicação interdisciplinar como uma mais-valia
em direção a uma reforma do pensamento e de uma “cabeça bem-feita” para
evocarmos aqui as preocupações de Edgar Morin (2002). Na perspetiva de Neil Postman, quando uma sociedade é vencida pela informação gerada pela
tecnologia cai num logro trágico de tentar “empregar a própria tecnologia
como um meio de lhe fornecer uma orientação clara e um propósito humano”
(1994: 70), e aí cai na armadilha clássica de estar convidando o lobo para
dentro do próprio rebanho. Expliquemo-nos, quando as instituições sociais
enfraquecem e declinam nas suas funções tradicionais de organizarem, por
exemplo, perceções e juízos, a burocracia tecnológica, que faz o papel de lobo,
torna-se implacável “em controlar a informação e assim prover-se de
inteligência e ordem” (1994: 85).
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
37
criatividade e paz de espírito. O facto de a informação não rea-
lizar nada destas coisas – antes pelo contrário - parece alterar
pouco as opiniões, pois tais crenças inamovíveis são um produ-to inevitável da estrutura da tecnologia. Em particular, a
tecnopolia floresce quando as defesas contra a informação
caem por terra (1994: 69).
Neste contexto, Pinóquio hoje jamais poderia ser um simples
boneco de madeira, ainda que bem articulado, mas antes uma
espécie de ciborgue com os seus implantes biónicos ou robóticos.
Um androide, qual organismo cibernético performativo, que mui-
to provavelmente desconheceria os temas do livre-arbítrio, do
sentido da existência, o uso da tecnologia avançada para fins tota-
litários e bélicos, entre outros. Quanto às suas experiências de
aprendizagem e existenciais, o Pinóquio de hoje seria um conver-
tido ao culto Todo-Poderoso das Novas Tecnologias e na quali-
dade de ciborgue, não entenderia nem os pedidos, nem os
sensatos conselhos de Gepeto, do Grilo-Falante e da Fada Azul
ao velho Pinóquio de madeira, entre os quais que deveria ser
bondoso e estudar na escola para se transformar num “rapaz
como deve ser”. O Pinóquio ciborgue acharia todo o conjunto de
conselhos saído da boca de um Grilo-Falante, por exemplo, sim-
plesmente ininteligível. Estudar numa escola? Para quê? Se
poderia ficar em qualquer lugar ligado, via world wide web, a
programas científicos ou comunicar por videoconferência, se
poderia, ao simples alcance de um clique, entrar em laboratórios,
museus e bibliotecas virtuais. Tornar-se humano e bondoso, para
quê? se o mundo humano está hoje ajoelhado e rendido ao “deus
da Tecnologia” (Neil Postman), aceitando, em troca dos seus ser-
viços, esvaziar-se da sua humanidade, tal como o mito de
Frankenstein nos ensinou (Shelley, 2012; Lecercle, 1988): ao
humano não sucederia, como queria Platão no final do seu Protá-
goras, um humano mais justo, melhor e mais sábio, mas apenas
ficaria o vazio da Criatura, o desnorte de um Golem (Meyrink,
1969)!
Para evitar que uma catástrofe tão monumental se reproduza,
podemos fazer apelo, lembrando aqui Neil Postmam, aos deuses
que servem e aqui devemos saber fazer apelo à resistência român-
tica que rejeita tanto a sua natureza de boneco de madeira que
Educação, Cultura e Imaginário
38
reserva sempre uma ligação com a vida vegetal8, como uma natu-
reza robótica dotada de uma inteligência artificial recordando
aqui todo o universo do filme de Steven Spielberg (2001) em que
David, como se disse, era um androide quase humano com órgãos
artificiais e membros protésicos, sendo mesmo capaz de reprodu-
zir (não ousamos dizer exprimir) emoções. Assim, Pinóquio,
como escreve Collodi, apenas quer ser um rapazinho como deve
ser; e aqui antes do “deve ser” (abordagem ético-social e cultural)
encontra-se a dimensão antropológica, o que significa o retorno
ao humano demasiado humano.
3. Pinóquio teima em ser apenas um rapaz como deve ser
Sugerindo ser um admirador do País de Cocanha, terra mito-
lógica de liberdade onde não havia trabalho e o alimento era
abundante, o nosso pequeno boneco de madeira é geneticamente
hedonista porque o seu ofício predileto era “ – O de comer, beber,
dormir, divertir-se e levar vida de vadio de manhã à noite” (Col-
lodi, 2004: 21). Neste sentido, Pinóquio é mais filho da
mentalidade pós-moderna do que a do seu criador que encarava e
defendia a virtude do trabalho, entre outras típicas da sociedade
burguesa italiana moderna, como, por exemplo, a do estudo e que
implicava já a glorificação do papel da Escola. Pinóquio não nas-
ceu para trabalhar, era aquilo que poderíamos chamar um
preguiçoso nato. Se com este ideal de vida ainda poderia ser um
boneco de madeira e comportar-se como tal, já seria pouco vero-
símil que fosse um ciborgue do tipo David da Inteligência
Artificial de Spielberg criado por uma qualquer Cybertronics e
programado para obedecer sempre a seu pai de modo a propor-
cionar-lhe alegrias e sorrisos.
Pinóquio não quis continuar a ser um boneco de madeira e
pensamos que a condição de ciborgue não o atrairia pelas razões
inerentes não só ao seu “nascimento” mas também à sua própria
história de vida. Daí que ele tenha acabado por escolher, ainda
8 Sobre a relação do ser humano com a vida vegetal, particularmente com
a árvore, leia-se Carl Gustav Jung, Les Racines de la conscience, p. 407, 423-
424 (nota 28) e 520-521. É uma passagem onde fica bem patente que a árvore
representa “in concreto a vida do homem” (1995: 424 (nota 28)).
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
39
que de um modo atribulado e nem sempre consciente, a condição
mais difícil de todas – a de ser humano! Ser humano implica
decidir, ser responsável, assumir a sua autonomia e viver, para o
melhor ou para o pior, a sua liberdade. Pinóquio ousou escolher o
caminho da humanidade e, por conseguinte, rejeitar a sua condi-
ção de manipulado pelas circunstâncias, pelos caprichos, pelos
colegas, pelo Outro de um modo geral.
Numa palavra, podemos então afirmar que foi Pinóquio
quem escolheu transformar-se num menino que cuida agora amo-
rosamente de seu pai e teve graça aos olhos da Fada que, como
recompensa, transforma-o “num rapaz como todos os outros”
(Collodi, 2004: 206).
3.1. Pinóquio não quer ser mais um boneco de madeira
Pinóquio não quer continuar a ser um boneco de madeira
como, aliás, a sua história nos conta:
– Porque os bonecos nunca crescem. Nascem bonecos, crescem
bonecos e bonecos morrem.
– Oh, estou farto de ser sempre boneco! – gritou Pinóquio, dando um murro na cabeça. Acho que já é tempo de também eu
ser um homem. (Collodi, 2004: 116).
– Eu vou estudar, vou trabalhar, vou fazer tudo o que me disse-res, porque afinal já estou farto da vida de boneco e quero
transformar-me num rapaz custe o que custar. Prometeste-me,
não é verdade? [disse Pinóquio] – Prometi, e agora depende só de ti (Collodi, 2004: 118).
Mas muitas peripécias e provações tiveram que ocorrer para
que ele, como nos é narrado no último capítulo, deixasse de ser
um mero boneco de madeira e se transformasse num rapaz como
todos os outros:
E dormindo, pareceu-lhe ver em sonhos a Fada muito linda e
sorridente, que depois de lhe dar um beijo lhe disse assim: – Muito bem, Pinóquio! Como recompensa pelo teu bom cora-
ção, perdoo-te todas as travessuras que fizeste até hoje. Os
meninos que cuidam amorosamente dos pais nas suas desgraças
Educação, Cultura e Imaginário
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e doenças são sempre merecedores de grande louvor e de muito
afecto, mesmo que não possam ser considerados modelos de
obediência e de bom comportamento. Ganha juízo para o futuro e serás feliz.
Neste ponto o sonho terminou, e Pinóquio acordou de olhos
arregalados. Agora imaginem qual não foi o seu espanto quan-
do, ao acordar, percebeu que já não era um boneco de madeira e que se transformara num rapaz como todos os outros (Collo-
di, 2004: 206).
Depois foi-se ver ao espelho, e pareceu-lhe que era outro. Já
não viu reflectida a imagem habitual do boneco de madeira,
mas sim a imagem viva e inteligente de um belo rapazinho de cabelos castanhos e olhos azuis, com um ar de Páscoa alegre e
festiva (Collodi, 2004: 206-207).
– Satisfaz a minha curiosidade, paizinho: como se explica toda
esta mudança repentina? – perguntou-lhe Pinóquio, saltando-
lhe ao pescoço e cobrindo-o de beijos.
– Esta mudança repentina na nossa casa é tudo mérito teu – disse Gepeto.
– Mérito meu, porquê?
– Porque quando os meninos eram maus e se tornam bons, têm a virtude de fazer com que até no seio das suas famílias tudo
adquira um aspecto novo e sorridente (Collodi, 2004: 207).
Assiste-se assim a uma trans-formação de Pinóquio desenro-
lada no quadro de uma iniciação que é crucial nos ritos de
passagem ao longo das suas aventuras. Daí o seu parentesco com
o género de “romance de formação” cujo espírito pode ser con-
densado nas seguintes palavras de Georges Gusdorf:
A intenção educativa em vez de se projetar sobre o plano do
discurso, organiza-se segundo um eixo cronológico, marcado
pelas experiências de uma vida. O Bildungsroman traça um iti-nerário iniciático onde a formação, a constituição das estruturas
do ser, interessa mais do que a informação no sentido restrito
do termo. A iniciação não se termina de uma só vez, uma vida comporta uma série de limiares, transpostos uns atrás dos
outros, o mais temível é o último de todos, a provação suprema
da morte (1993: 850; Bancaud-Menen, 1998; Berman, 1983:
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
41
141-159; Cohn-Plouchart, 1990: 157-169; Gennari, 1997;
Moretti, 1999).
A narrativa de Pinóquio, ao contrário de “alguns deuses que
falham” (Postman, 2002: 35-77) que corroem os símbolos e os
deixam exaustos (1994: 146-159)9, permite uma abordagem de
cariz mitológico, em que o cenário iniciático desempenha um
papel decisivo na sua transformação num rapaz a sério. Este
cenário iniciático é constituído por três momentos: o encontro de
Pinóquio com a serpente (uma grande Serpente); a sua transfor-
mação num “burrinho a sério” e a sua devoração por Átila, o
terrível tubarão (Araújo, Araújo & Ribeiro, 2012). Deste modo,
não é de descurar a “eficácia simbólica” das Aventuras de Pinó-
quio que é de outra ordem daquilo que hoje se designa por
“tecnologias de aprendizagem”. Deste modo, percebe-se que essa
eficácia gera uma narrativa pregnante simbolicamente e, conse-
quentemente, instauradora de uma visão do mundo, diríamos
resistente a uma mudança na tradição entendida como “o reco-
nhecimento da autoridade dos símbolos e a relevância das
narrativas que lhes deram o ser” (Postman, 1994: 151-152).
3.2. Pinóquio não tem vocação para ciborgue
Guia Boni explica por que as etiquetas de autómato, de
máquina e de androide não se aplicam ao nosso Pinóquio:
9 Mas o que entende Postman pela “exaustão dos símbolos”? A sua
resposta é significativa: “ Os símbolos que retiram o seu significado de
contextos tradicionais religiosos ou nacionais devem assim ser tornados
impotentes o mais depressa possível – isto é, esvaziados das conotações sagradas ou mesmo sérias" (1994: 147). Faz parte da natureza da “tecnopolia”
banalizar os símbolos culturais significativos, na medida em que, por um lado,
os símbolos não são inexauríveis e, por outro, “quanto mais frequentemente
forem usados, menos potente é o seu significado” (1994: 147). A este respeito,
Gilbert Durand já nos tinha alertado que o uso e o abuso dos símbolos pelas
revoluções gráfica e tecnológica contribuiriam inevitavelmente para o
empobrecimento do imaginário com as consequências que ele próprio esboçou
(1969: 15-45). O que se pretende, pois, dizer é que as referidas revoluções
banalizaram a produção das imagens visuais, símbolos e ícones de diferentes
culturas ao ponto dos “símbolos religiosos e nacionais tornarem-se lugares-
comuns, gerando indiferença, se não necessariamente desprezo” (1994: 147).
Educação, Cultura e Imaginário
42
A mão humana do Gepeto que fabrica da madeira uma mario-
nete não é a mão de um criador demiúrgico, nem a mão de um artista imitando o real, mas a de um humilde artesão que tem
como único desejo ter que comer e que beber até à saciedade.
[...] Pinóquio não entra, portanto, na categoria de autómato, da máquina, do androide porque ele não nasce de um espírito cria-
do que quer ultrapassar a natureza e o/os deus/es, como
Pigmalião que cria Galateia (Ovide, X, 235-268), ou o Being
imaginado por Mary Shelley no Frankenstein ou o Prometeu moderno (Shelley, 1831) (2010: 269-270).
Pinóquio inscreve-se numa espécie de narrativa ideo-
simbólica que lhe fornece um significado ainda moderno e tradi-
cional caraterizado pelo gesto e pela voz humanos muito longe
dos efeitos transmutadores de uma pós-modernidade envolta
numa rede interativa tecnologicamente avançada onde o destino
humano seja pura e simplesmente substituído por uma espécie de
destino digital. Daí que possamos dizer com Neil Postman:
Neste vazio entra a história da tecnopolia, que, com a sua ênfa-
se no progresso sem limites, direitos sem responsabilidade e
tecnologia sem custo, não tem um suporte moral. Em seu lugar coloca a eficácia, o interesse e o avanço económico, prometen-
do o céu na terra através das conveniências do progresso
tecnológico. Põe de lado todas as narrativas e símbolos tradi-
cionais que sugerem estabilidade e ordem, e em seu lugar fala de capacidade, de perícia técnica e do êxtase do consumo
(1994: 158).
Neste contexto, face à desmitologização criada pelo avanço
da tecnopolia resta-nos opor o património da simbologia tradicio-
nal no qual Pinóquio tem o seu lugar na qualidade de “resistente
romântico” (1994: 160-175). Um resistente (natureza – utopia –
princípio de prazer – rebeldia - consagração da infância) que não
aceitou, apesar de todas as peripécias, obstáculos, percalços, ilu-
sões, alegrias e tristezas, seguir de modo coerente, continuado e
persistente os conselhos de Gepeto, do Grilo-Falante e da linda
menina dos cabelos azul-turquesa (Fada), a fim de se tornar num
“rapaz como deve ser” (cultura – distopia – princípio de realidade
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
43
– submissão - desaparecimento da infância) como aliás Pinóquio
almejava (Collodi, 2004: 115-118).
Pela sua própria natureza orgânica Pinóquio, uma metáfora
anunciadora da futura criança em que ele se tornará, funciona
mais à semelhança de um sistema mecânico, ainda que em madei-
ra, do que propriamente como um sistema tecnologicamente
avançado fabricado por uma Cybertronics para usar aqui o nome
da empresa do filme Inteligência Artificial. A sua natureza é dis-
tinta de uma máquina dotada de uma inteligência artificial com
sentimentos que poderão ser ativados por uma qualquer Monica
Swinton. Tanto mais que a fabricação tradicional e a ativação
performativa indicam orientações e destinos diferentes para aque-
les seres que são fruto ora da fabricação, ora da ativação
tecnológica sofisticadamente complexa.
Pinóquio é o irmão dos fantoches do teatrinho (Collodi,
2004: 41-43), não é irmão de Joe, uma espécie de sósia de David
no filme Inteligência Artificial, e isso faz a diferença ainda que
Pinóquio e David desejem ambos tornar-se uma criança de ver-
dade. Porém, enquanto Pinóquio o consegue sob a proteção da
Fada, David sabe pelo Professor Hobby que não é possível que
ele se torne numa criança de verdade… e termina aqui tragica-
mente aquilo que os une, ou seja, o desejo de ambos
transformarem-se em rapazinhos.
3.3. Pinóquio apenas quer ser um “rapazinho como deve
ser”
Tendo em conta o até aqui exposto, percebe-se que Philippe
Meirieu tenha escrito um texto muito sugestivo – Pinóquio, ou as
facetas imprevistas de uma marioneta impertinente (1996: 28-33)
–, que lhe serve de pretexto para discutir a natureza do ato educa-
tivo em torno de ideologemas (Araújo & Silva, 2003: 353) como
fabricação, formação, decisão, ação, imposição, modelagem,
manipulação, mesmidade e alteridade:
Mas Pinóquio não era tão ridículo como isso quando era uma marioneta. Ele tinha simplesmente dificuldade em viver, em
“encontrar o seu caminho" ou, como se diz por vezes, a “afir-
mar-se como eu" como se deveria dizer. Porque "afirmar-se
Educação, Cultura e Imaginário
44
como eu” não é fácil, sobretudo quando se é uma mera mario-
neta, um objeto fabricado na mão do homem e que tem a
vocação, precisamente, de ser manipulado. [...] Mas na realida-de todas essas manipulações [refere-se à manipulação da
Raposa e do Gato, do diretor do circo, da Fada, etc] não têm
grande importância. No fundo elas só são possíveis porque
Pinóquio é de algum modo manipulado a partir do interior. Pri-sioneiro dele próprio. Encerrado num dilema infernal que o faz
sempre prometer e nunca cumprir, um dilema que o proíbe pre-
cisamente de "afirmar-se como eu": "Dar prazer ao outro ou dar-se prazer a si próprio” (Meirieu, 1996: 30-31).
Finalmente, o sentido educacional do “afirmar-se como um
eu” ganha uma espessura antropo-ontológica e ética pelo “segun-
do nascimento” de Pinóquio que nos é ilustrado pelo ritual
iniciático da sua devoração pelo Tubarão (Araújo & Araújo,
2010. 66-80). Quando Pinóquio salva Gepeto de morrer prisionei-
ro nas entranhas do Tubarão assiste-se a uma mudança de registo:
a marioneta transforma-se num ser com vontade própria e com
uma consciência ética (Boni, 2010: 269-282). Nas palavras de
Meirieu, já não se trata de alguém dependente (ainda que ora
dócil, ora revoltado), já não se trata de alguém cedendo à excita-
ção do momento ou à ilusão vã da liberdade e do prazer (veja-se a
Terra da Brincadeira), mas de um ser em vias de cumprir a sua
humanidade: “Vem comigo e não tenhas medo”, replicou Pinó-
quio a Gepeto no interior do Tubarão. Pinóquio com este gesto
evidencia a sua vontade de mudar, deixando para trás o seu com-
portamento de marioneta com os seus queixumes, recriminações
e acusações:
Ele ousa fazer um gesto que provém de algures, quer dizer, do seu íntimo, [um gesto] que provém dele… um gesto que não é
ditado pelos outros, um gesto que ele ainda nunca fizera e que
ele não sabe fazer, mas um gesto que é preciso que ele faça para aprender precisamente a fazer… Resumindo, um gesto em
que "ele se afirme” (Meirieu, 1996: 32).
Com a assunção de tal gesto de afirmação de si, Pinóquio
reconcilia-se com a humanidade que em si agora irrompe e com
ela assiste-se concomitantemente ao nascimento da liberdade de
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
45
escolher e construir o seu destino: “Que cómico que eu era,
quando era boneco! E que contente estou agora por me ter trans-
formado num rapazinho como deve ser!” (Collodi, 2004: 208).
Com esta liberdade, Pinóquio poderá escapar ou mesmo recusar
deixar-se modelar ou mesmo fabricar nas mãos de um educador.
“Fabricar um homem”, tal como o mito de Frankenstein também
nos ensinou, dá que pensar, pois estamos sempre predispostos,
ainda que animados (quantas vezes!) das melhores intenções de
que o inferno está cheio, a fazê-lo quando nos lançamos na aven-
tura educativa.
A este respeito, importa retomar duas perguntas colocadas
por Philippe Meirieu no seu Frankenstein pédagogue (2006):
“Pode-se abandonar toda a veleidade de “fazer” o outro, e se sim,
não se cairá na impotência ou no fatalismo? Por outras palavras,
pode-se ser educador sem se ser Frankenstein?” (2006: 14).
Porém, quando se fala de educar o outro, o significado da apren-
dizagem não deverá andar longe e, como tal, se não há
aprendizagens ingénuas, pois elas contribuem sempre para a
construção de narrativas que governam a nossa visão do mundo,
devemos, na linha de um Edgar Morin (2002a), abalançarmo-nos
para lidarmos com “os sete saberes” para uma educação ainda
com futuro quer face às incertezas atuais, quer face à crescente
desmotivação de estar na Escola, como alerta a obra de Neil
Postman (1995), intitulada profeticamente O Fim da Educação.
Redefinindo o Valor da Escola.
Conclusão
Neste artigo, problematizamos a aventura da educação como
trans-formação do outro, independentemente de se tratar de peda-
ço precioso de mármore (Pigmalião), de um vulgar pedaço de
madeira (Pinóquio), ou simplesmente de um pedaço de terra ver-
melha (Golem). Como diz Meirieu, o desafio do educador vem a
ser “aceder ao segredo da fabricação do humano” (1996: 34).
Este segredo, assim o pensamos, leva a que a criança, à
semelhança de Pinóquio, abandone a sua velha natureza, “o velho
Pinóquio de madeira” (Collodi, 2004: 207), e se perceba já como
um outro e este outro não era mais “a imagem habitual do boneco
de madeira, mas sim a imagem viva e inteligente de um belo
Educação, Cultura e Imaginário
46
rapazinho de cabelos castanhos e olhos azuis, com um ar de Pás-
coa alegre e festiva” (2004: 207; Ricoeur, 1990). Não é este,
portanto, o ideal de todo o ato de educar? Aquele ideal que visa
trans-formar (Umbildung, Sola, 2003) todo o educando, na pers-
petiva do educere, numa imagem viva e inteligente de ser
humano (Wunenburger, 1993: 59-69).
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A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
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III Dédalo e o Labirinto.
A figura simbólica do labirinto como
emblema de educação 10
Alberto Filipe Araújo
Joaquim Machado de Araújo
Introdução
As orientações hermenêutico-simbólicas de natureza mitoló-
gica (história da mitologia), religiosa (história das religiões) ou
literária (literatura universal), da figura simbólica do labirinto
fazem dele um complexo mítico-simbólico extremamente preg-
nante quer do imaginário mítico, quer do imaginário educacional
como, aliás, sugere o estudo Federico Gómez R. de Castro,
sugestivamente intitulado “Navegar no Labirinto” (2002: 495-
517).
Neste texto partimos dos olhares de Gilbet Durand e de Gas-
ton Bachelard, o primeiro sobre a figura mítica de Dédalo como
construtor do labirinto e o segundo sobre a simbólica propria-
mente dita do labirinto, e interrogamo-nos se Dédalo não será
uma derivação ou usura do mito de Prometeu, para terminarmos
problematizando, primeiro, a figura simbólica do labirinto como
emblema de educação enquanto transmutação espiritual e, depois,
o papel do mestre no processo educativo concebido como viagem
iniciática.
10 Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT –
Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projecto PEst-
OE/CED/UI1661/2011 do CIEd.
Educação, Cultura e Imaginário
50
1. O olhar durandiano sobre Dédalo e a construção do
labirinto
Em maio de 1984, Gilbert Durand assinala as Permanences
& Métamorphoses du Labyrinthe11
, começando por dizer que o
labirinto é, não um “mito”, mas um mitema12
que, aparecendo
nos mitos de Dédalo e do Minotauro, significa um fragmento
significativo do mito (Claude Lévi-Strauss). Por contraposição ao
mito, que obedece a uma ordem estrita das suas sequências, o
mitema denota uma flexibilidade semântica. Assim, o labirinto de
Creta, independentemente da sua forma circular, espiral, quadra-
da ou cruciforme, de ter sido inspirado por um túmulo real
egípcio, e de ter representado apenas um mero incidente na gesta
de Dédalo, chamou a atenção de Durand pelo facto deste ter pres-
sentido “que o Labirinto ultrapassa muito a astúcia lendária do
arquitecto ateniense” (1985: 9).
Durand parte de uma pista segura que é a de que “o Labirinto
aparece mais frequentemente como um objecto ligado à reflexão
urbanística”, de que “o Labirinto está do lado da construção
arquitectural, fortaleza-prisão do Minotauro como Biblioteca de
Babel ou megapolis aterrorizadora”(1985: 10). Com o objetivo de
circunscrever com mais precisão o sentido do objeto labiríntico, o
autor vai efetuar, de acordo com o seu método conhecido pelo
nome de estruturalismo figurativo, uma leitura diacrónica da len-
da (mitemas) que, por sua vez, será alinhada sob uma sequência
de séries sincrónicas (mitologemas), que coloca respetivamente
sob o signo do fogo (metais, fogo, cinzas incandescentes)13
, da
11 Em 2002, Gilbert Durand retoma na sua globalidade esta conferência –
que proferiu no quadro do Festival do Labirinto, realizado em Paris, Colóquio
de Maio de 1984, no Centro Cultural da Fundação Calouste Gulbenkain – no
capítulo “Polysémie de l’objet symbolique. Le vase de verre et le labyrinthe”, publicado na sua obra Mythe, thèmes et variations.
12 A nosso ver, trata-se mais de um mitologema. 13 Dédalo é ateniense, e a raiz do seu nome (daidalon) quer dizer
artefacto, fabricação hábil. Dédalo é o artesão ateniense astucioso e ágil. Ele é
filho de Méton (o homem da métis (astúcia) e de Métiadousa (aquela que
agrada à Métis, mãe de Atenas). Manifesta-se como metalúrgico, fundidor e
ourives, esculpindo, em Atenas, uma espécie de autómatos – os famosos
xoanon – que imitam fielmente a vida, inventa o tratamento do metal pelo fogo
através da técnica do Sphyrelaton, aprendida dos hititas e dos egípcios e ligada
à estatuária de bronze da Antiga Grécia, que consistia em revestir modelos de
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
51
terra (madeira, terra, pedras, peles e couros)14
, do ar (asas e dan-
ça)15
e da água (as termas)16
e faz culminar no aparecimento de
madeira, de pequenas dimensões, com laminas, fossem elas de bronze, prata
ou de ouro, marteladas. Tendo assassinado por inveja o seu sobrinho Talo, que
era seu aprendiz, pelo facto deste, por excesso de métis, o ter ultrapassado,
Dédalo teve que fugir para Creta. 14 Em Creta, refugiando-se na corte do rei Minos que o protege, Dédalo
fabricou uma série de daidalon (afirmando-se como engenheiro mecânico e
arquitecto de talento): o coro (choron) para Ariadne (filha do rei Minos), que
tanto podia ser um lugar arquitectonicamente belo afecto à dança (obra de
arquitecto), como um baixo-relevo esculpido, em mármore branco, que
representaria um coro de dança (obra de escultor), embora também pudesse ter
sido um conjunto de danças e de cânticos idealizados por Dédalo para Ariad-ne; um autómato que é a vaca de madeira e de couro que permitirá à rainha
Parsífae (mulher do rei Minos) copular, e assim consumar a sua paixão
culposa, com o belo touro branco que Posídon, deus do mar, tinha oferecido a
Minos, e que este, em vez de o ter sacrificado em sua honra, guardou-o, devido
à sua beleza, no seu rebanho, tendo sacrificado outro touro em seu lugar; o
Labirinto, feito a pedido do rei traído, para aprisionar o Minotauro (touro de
Minos) nascido do copulamento perverso, ou seja, dos amores zoófilos de
Parsífae e do touro branco de Poseídon. 15 O Dédalo da 2ª sequência é o arquitecto ambíguo, pois é complacente e
cúmplice com a traição de Parsífae; complacente e cúmplice do rei Minos e
com a sua punição real que aprisionava o Minotauro, como se de um “tesouro real” se tratasse na fortaleza-prisão enigmática; complacente e cúmplice de
Teseu, futuro rei de Atenas, pois inventa para ele, como traçando o plano do
labirinto, a Dança de Délos, em que os dançarinos estão ligados ao poste cen-
tral por um fio que guia e organiza a dança, que anuncia o “fio de Ariadne”
pelo qual a filha de Minos, apaixonada por Teseu, trai seus pais porque, graças
à ajuda de Ariadne, o herói viola o segredo real e mata o Minotauro (o filho de
Parsífae). É esta terceira complacência que, segundo Gilbert Durand, se
inaugura a terceira sequência do mito: o rei Minos, dando-se conta da traição
do se protegido ateniense, aprisiona este e o seu filho Ícaro no Labirinto.
Dédalo acaba, na companhia de Ícaro, por fugir do Labirinto graças a umas
asas por si inventadas. Por esta invenção, Dédalo torna-se eólico e, por consequência, engenheiro aeronáutico.
16 Dédalo fugiu para a Sicília, mais precisamente para Camicos, onde
reina o rei Cocalos. Aí, já na qualidade de engenheiro hidráulico, inventa as
termas de Selinonte onde mata Minos, o seu antigo benfeitor, num banho de
água fervente pela troca de canalizações, visto que este, perseguindo-o desde a
sua fuga, se encontrava no reino de Cocalos para reclamar a sua morte,
embora, noutras versões, o rei Minos terá sido fervido, a pedido de Dédalo,
pelas filhas do rei Cocalos que, pretextando um banho quente nas termas de
Selinonte, o matam num banho de água fervente, tal era o seu desejo de
salvarem Dédalo devido às obras-primas com que ele enriqueceu a Sicília.
Educação, Cultura e Imaginário
52
Dédalo como verdadeiramente politécnico, “cuja métis rasga
habilmente os segredos de todas as máquinas e utensílios mecâ-
nicos”: embora o hábil artesão domine o fogo, a terra, o ar e a
água, “é realmente na sequência ‘terra’ que se situa o objeto do
nosso estudo: o Labirinto é o emblema da construção terrestre”
(1985: 10).
Ao conjunto das sequências mitémicas organizadas sob uma
série de mitologemas, Gilbert Durand chama lenda de Dédalo,
mito de Dédalo (no sentido amplo: Frontisi-Ducroux, 2000: 23)
ou gesta de Dédalo. Por outras palavras, o autor procura uma via
média (o estruturalismo figurativo) que reconcilie a análise filo-
lógica exigente de Françoise Frintisi (2000) e o método de
amplificação do devaneio poético e da psicologia de profundida-
des junguiana e, claro está, os estudos temáticos de Manuel Lima
de Freitas (1975) e de Paolo Santarcangeli (1974).
Esta leitura diacrónica é completada com o estudo sincrónico
das sequências descritas. Este estudo é desenvolvido sob o signo
dos efeitos perversos que não estavam previstos17
e que levam
Durand a concluir que há como que uma espécie de desconfiança
face à métis de Dédalo e que esta ambiguidade se reflete na figura
do Labirinto: simultaneamente tesouro, cofre-forte do poder polí-
tico e prisão da qual se é obrigado a fugir, a tal ponto que o
“arquitecto da prisão se torna o próprio prisioneiro do seu inven-
to” (1985: 11). Afirma Durand que esta ambiguidade revela que a
lenda dedaliana é dupla, senão mesmo contraditória, porquanto
existe um “lado de Minos” – o lado o Labirinto, espaço tenebro-
so, sinuoso e temível, situado sob o signo da gravidade e dos
17 Embora seja certo que o assassínio de Talos fosse já um prenúncio, é
no cenário cretense, em que os actos de Dédalo não merecem a protecção e a confiança que Minos lhe depositou, que esses efeitos se quadruplicam: pela
complacência mecânica de Dédalo, Parsífae copula com o Touro de Posídon,
originando um monstro: o Minotauro (meio homem, meio touro); pela
complacência artesanal de Dédalo, Teseu domina o segredo de sair vivo da
prisão/tesouro do rei Minos; Teseu, ajudado por Ariadne, abandona-a à sua
sorte; graças à sua engenhosidade eólica, Dédalo escapa-se, com as asas por si
criadas, do Labirinto com o seu filho Ícaro que acaba por morrer, devido ao
derretimento da cera que ligava as suas asas, por ter voado muito perto do sol;
finalmente, a morte atroz de Minos que acaba por morrer afogado na água
fervente das termas de Selinonte devido à astúcia do seu protegido.
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
53
constrangimentos terrestres18
– e um “lado da métis” – o lado do
antilabirinto, onde se colocam o par Teseu-Ariadne19
–, e que o
Labirinto “do lado ctoniano de Minos” não é ordenado, pelo que
triunfa a sua faceta aérea ou solar que é representada por Teseu,
por Ariadne e por Dédalo. Numa palavra, eles “excluem-se do
labirinto stricto sensu” (1985: 11). Deste modo, Gilbert Durand
conclui que “o sentido e o afecto do labirinto são diametralmente
diferentes conforme a morfogenia se faça ‘do lado de Minos’ ou
‘do lado de Teseu’” (1985: 11).
Finalmente, o autor salienta que a história do Labirinto dei-
xa-se apreender por três “bacias semânticas” com orientações
claramente divergentes, pois a imagem labiríntica é moldada pela
natureza de cada “bacia semântica”:
1ª) a “bacia semântica” triunfalista, que caracteriza o ideal
clássico e representa as certezas tecnológicas vitoriosas
do Segundo Império (Napoleão III: 1851-1870) –
“mestre de si e do universo” (1985: 11) –, corresponde
à invenção da perspetiva e ao domínio da linha única e
contínua em que o labirinto representa já um percurso
dominado senão mesmo domesticado: é a cidade, com
suas ruas direcionadas, seus palácios e suas estações de
caminho de ferro, por oposição ao campo que é o lugar
18 “Este labirinto é realmente este ‘primeiro sofrimento’ que assinala
Bachelard e que está ligado à nossa penosa condição terrestre” (1985: 11). O
arquitecto Dédalo é descendente da deusa Gaia (Terra), o touro é um animal de
Poseídon e de Afrodite devido ao seu aspecto telúrico, sensorial e sensual. O
Minotauro, que evoca o nome do marido traído e do amante teriomórfico,
devora todos os 9 anos 14 jovens atenienses. Por este acto sacrificial, o
Minotauro, simbolizando os apetites ctónicos e selvagens, devora “as subtilidades aéreas dos filhos de Métis-Atenas” (1985: 11);
19 O ateniense Teseu veio concretizar a astúcia da evasão. Dédalo
também é descendente de Erecteu (serpente e vento ligeiro), é inventor da
dança, que anuncia a evasão, pelo fio astucioso que ela desenha, e inventor das
asas artificiais que lhe permitem escapar-se verticalmente em direcção ao sol:
“Todas estas engenhosidades desmentem, reduzem a força telúrica do labirinto
e do seu hóspede monstruoso. Dédalo aqui é aliado do futuro rei de Atenas que
mata o monstro ctoniano, aliado de Ariadne que vence o Labirinto, aliado em
suma da Métis ateniense contra os confrangimentos da condição terrestre”
(1985: 11).
Educação, Cultura e Imaginário
54
“confuso dos lobos, da fome e os salteadores” (1985:
11);
2ª) a “bacia semântica” ecologista, antiurbanista, antissocial
da Naturphilosophie e do romantismo em geral, muito
diferentemente da imagem labiríntica, corresponde à
ineficácia da astúcia politécnica em já dominar as
construções nas cidades, e que se traduz, por conse-
quência, numa explosão, que tem muito de irracional,
face aos receios e medos causados pelo crescimento
desordenado, poluído, caótico e “tentacular” da mega-
polis na sequência da 1ª Revolução Industria,
resultando daqui que os olhares se viram para a Natu-
reza, encarada no prolongamento do Primeiro
Romantismo, nomeadamente com Rousseau, e a sua
nostalgia reativa-se face à “ao desespero do labirinto e
a caricatura monstruosa do sonho urbanístico” (1985:
12), assim como se desperta “no desencanto dos
homens todo o poder temível do Minotauro” (1985:
12);
3ª) a “bacia semântica” sisifiana ou situacionista da Moder-
nidade, que aceita com uma felicidade desesperada a
desordem labiríntica e a “deriva”, corresponde à sedu-
ção pelo Minotauro, à recusa de um Dédalo feliz a
fugir do labirinto, lembrando o tema da “prisão feliz”
de Stendhdal, de um Teseu tolerante que brinda com o
Minotauro, e à sedução da “deriva”, dos imprevistos e
das complicações, que a cidade suscita, advindo a sal-
vação de fissuras que se entreabrem, e o labirinto
torna-se novamente objeto de charme “mesmo nas suas
partes mais obscuras e subterrâneas” (1985: 12), como
é o caso das “catacumbas” de Paris que exercem um
fascínio enorme sobre a população.
Assim, a complexidade que o labirinto representa muda de
afeto e de sentido de acordo com a “bacia semântica” sob a qual é
perspetivada: “Nas épocas e períodos sociais em que triunfa a
ordem urbana e a razão, o labirinto – rejeitado do lado da selva
obscura – é ele mesmo domesticado e utilizado como um jogo de
ar livre. Pelo contrário, quando a cidade se torna ameaçadora por
um urbanismo que ela não controla mais, é ela que se torna prisão
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
55
do Minotauro, desordem do artefacto, debandada do aprendiz de
feiticeiro faustiano, oposta à ordem da natureza. Enfim uma ter-
ceira solução intervém quando, numa cidade irremediavelmente
anárquica e uma natureza civilizadamente poluída, se trata de
encontrar a felicidade nos crematórios” (1985: 12). Várias solu-
ções que podem ser deslindadas, por quais “fios de Ariadne”, a
partir das imagens de sentido e de afetividade condensadas no
labirinto enquanto objeto polissémico aberto à imaginação.
2. Bachelard e a simbólica do labirinto
Em La terre et les rêveries du repos (1948), Gaston Bache-
lard afirma que a noção de labirinto tanto pertence à vida noturna
como à vida diurna, mas aquilo que o diurno nos ensina esconde
realidades oníricas profundas: “o labirinto, o desfiladeiro, o cor-
redor estreito correspondem a experiências oníricas muito
comuns e das mais impregnadas de sentido” (1992: 230). Assim,
importa fazer uma arqueologia psicológica desta noção, visto
que, por um lado, ela mantém uma relação estreita com o psi-
quismo noturno e subterrâneo, e que, por outro, a experiência
imaginada do labirinto é devedora de um dos princípios da ima-
ginação segundo o qual “a imagem não tem dimensões
estabelecidas; a imagem pode passar sem dificuldade do grande
ao pequeno” (1992: 226). A isto deve igualmente acrescentar-se
que o arquétipo do labirinto muito tem a ganhar se for explicado
à luz da grande dialética da imaginação material: dureza e mole-
za. Estas imagens extremas, diz-nos Bachelard, “enquadram
todos os valores simbólicos do labirinto” (1992: 228).
As angústias do labirinto, que vivenciamos nos sonhos,
advêm das experiências diurnas daquele viajante que não encon-
tra o seu caminho numa encruzilhada, caminhar num bosque
sombrio ou numa gruta escura, ou daqueloutro que se perde numa
grande cidade. A experiencia labiríntica, enquanto experiência de
angústia primitiva, suscita um conjunto de emoções profundas e
primeiras, de que a angústia labiríntica é exemplo e que advém
do estado de alma daquele que se perde ou se sente perdido:
Todo o labirinto tem uma dimensão inconsciente que nos é necessário caracterizar. Todo o embaraço tem uma dimensão
Educação, Cultura e Imaginário
56
angustiada, uma profundidade. É esta dimensão angustiada que
nos deve revelar as imagens tão numerosas e tão monótonas
dos subterrâneos e dos labirintos. [...] É esta situação típica de estar perdido que nós revivemos no sonho labiríntico. Perder-
se, com todas emoções que tal implica, é portanto uma situação
manifestamente arcaica (1992: 211-212).
Neste contexto, o labirinto aparece como um arquétipo, no
sentido que lhe confere Jung, porque o sentimento de estar perdi-
do é, como já se disse, “uma situação manifestamente arcaica”
que resume uma experiência ancestral do homem diante de uma
situação típica. É um arquétipo vivido pesadamente nos sonhos
porque o sonho labiríntico exprime a infelicidade de estar perdido
e torna aquele que sonha prisioneiro de uma hesitação asfixiante
no meio de um caminho único. O típico deste sonho é o seu
sofrimento intrínseco, pois ele parece acumular “a angústia de um
passado de sofrimento e de ansiedade num futuro infeliz. O ser
sente-se preso entre um passado bloqueado e um futuro entupido.
Ele está prisioneiro num caminho” (1992: 213).
Os traços relevantes do sonho labiríntico são a fissura e len-
tidão. Pela fissura desliza lentamente, porque o movimento
subterrâneo é curvo e difícil, para uma sequência de “portas
entreabertas” que é nisso que consiste, para Bachelard, o sonho
labiríntico: “Não há sonho labiríntico rápido. O labirinto é um
fenómeno psíquico da viscosidade” (1992: 217). Isso acontece,
porque o sonho labiríntico desenrola-se como se tudo ocorresse
no interior de uma massa pastosa e, por conseguinte, dolorosa
porque debaixo da terra todo o caminho é tortuoso: “esta é uma
lei de todas as metáforas do caminhar subterrâneo” (1992: 250).
Deste modo, o labirinto20
condensa em si uma experiência origi-
nária, ancestral do sofrimento: “o labirinto é um sofrimento
primeiro, um sofrimento de infância. É um traumatismo do nas-
cimento? É, pelo contrário, como nós achamos, um dos mais
claros traços de um arcaísmo psíquico?” (1992: 218).
A entrada real ou onírica num labirinto representa sempre
uma iniciação – recorde-se Teseu e o labirinto de Cnossos cons-
20 Nós preferíamos que o labirinto fosse denominado imagem arquetípica
e posteriormente como símbolo.
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
57
truído por Dédalo – e toda a iniciação é uma prova de solidão
como atestam os trabalhos de Mircea Eliade e Karl Kérenyi:
“Não existe maior solidão que a solidão do sonho labiríntico”
(1992: 225). Esta solidão faz-nos pensar na solidão do cárcere
que é sempre um pesadelo, não admirando, assim, que exista uma
estreita relação entre o labirinto e o cárcere: “O cárcere é um
pesadelo e o pesadelo é um cárcere. O labirinto é um cárcere
comprido e o corredor dos sonhos é um sonhador que se desliza e
se estende” (1992: 226). Deste modo, não surpreende que a aven-
tura labiríntica diurna retome as impressões do sonho labiríntico.
Este é um tipo de experiência em que existe uma nítida interces-
são entre a consciência onírica e a consciência diurna ou, nos
termos de Bachelard, clara. E não é uma das funções dos mitos
realizar esta unidade?21
O labirinto apela à transformação íntima das imagens e estas
só excecionalmente é que são frias, daí Bachelard poder afirmar
que “Não existe onirismo profundo do frio e enquanto o labirinto
é um sonho profundo, não existe labirinto frio. O labirinto frio, o
labirinto duro são produtos oníricos mais ou menos simplificados
pelas actividades intelectuais” (1992: 247). Daqui o autor poder
concluir que o ser labiríntico, por maiores que sejam os seus tor-
mentos, não pode não deixar de experimentar o bem-estar do
calor que o labirinto, como sonho profundo, exala o liberta.
A partir das imagens particulares ligadas ao labirinto (o des-
filadeiro, o esgoto, a gruta, a mina, o estômago, os intestinos, a
lama subterrânea, a onda negra, entre outras, apontam para a
21
Agora percebe-se melhor por é que as imagens literárias, que
exprimem o arquétipo do labirinto, se formam numa zona intermediária em
que se unem as experiências do sonho e as experiências da vida diurna. Para
melhor especificar a justeza da sua análise fenomenológica, Bachelard escolhe dois exemplos opostos de labirintos literários, ainda que recordando que entre
eles se pode encontrar labirintos intermediários que reflectem a acção sintética
da imaginação (1992: 233): um labirinto duro retirado de uma obra de Huys-
mans e um labirinto mole, em que tudo é facilidade, retirado duma obra de
Gérard Nerval. A primeira espécie de labirinto é própria do devaneio
petrificante, pois o labirinto que aparece é constituído por muros petrificados e
por isso agride e fere: é um “labirinto vazio que não cessa de ferir” (1992: 231,
1976: 205-232); enquanto a segunda espécie de labirinto, o mole, têm-se a
sensação de que se abafa: é um “labirinto sempre cheio e sem dor” (1992: 231,
1976: 100-102 e 105-133).
Educação, Cultura e Imaginário
58
maternidade da terra), Bachelard pretende estabelecer a “lei do
isomorfismo das imagens da profundidade” porque está persua-
dido que “nós somos verticalmente isomorfos às grandes imagens
da profundidade” (1992: 260). Com esse intuito retém quatro
imagens: 1) a caverna, que evoca a terra, os antros, o covil, as
grutas, os poços, as minas; 2) a casa, que evoca o solo, a descida,
o segredo, o escondido, o esconderijo, o cárcere e o túmulo; 3) o
“interior” das coisa (procede da mesma dialética do aparente e do
escondido), que evoca os devaneios que amontoam segredos
poderosos e substâncias condensadas, o sonho da substância pro-
funda imbuído de “valores infernais”, a substância das
profundidades benéficas, o mal como primeira substância, o sen-
tido do perigo – “Toda a intimidade é então perigosa” (1992:
258) –; e 4) o ventre (uma pobre imagem para as intimidades
fáceis), que evoca poder de aprofundamento, o corpo como
esconderijo. Convergindo estas imagens de um modo regular
para significações oníricas que se aparentam, elas pretendem sig-
nificar que nós somos orientados por “um verdadeiro sentido de
aprofundamento?” (1992: 259). Afirma Bachelard: “Nós somos
seres profundos. Escondemo-nos sob as superfícies, sob as apa-
rências, sob as máscaras, mas não nos escondemos somente aos
outros, escondemo-nos a nós mesmos. E a profundidade é em
nós, no estilo de Jean Wahl, uma trans-descendência” (1992:
260). Neste sentido, penetrar no labirinto, descer por nós mes-
mos, meditação mergulhante são modos de descer no nosso
próprio mistério.
3. Será Dédalo um novo Prometeu?
Dédalo (personifica o trabalho e a indústria engenhosa) é
ateniense de descendência real pelo lado materno – Alcipe (neta
de Cecropes) – e pelo lado paterno – Métion (o homem da métis,
o trabalhador cujas mãos são hábeis) ou Eupalamos (habilidade
manual) descendentes de Ericteu, o que o torna primo de Teseu.
Em Atenas, Dédalo é sobretudo considerado como o precursor
dos escultores (as xoana: estátuas esculpidas em madeira ou
revestidas de metal cuja principal característica era o movimento
de tal forma que pareciam vivas), e como um inventor talentoso
(a cola, a broca, o fio de prumo, etc. (Pottier, 1892: 7-8). Ciumen-
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
59
to e invejoso do seu sobrinho Talos, possuidor duma métis (inte-
ligência prática) muito apurada e que terá inventado a serra,
empurra-o do alto da Acrópole, sendo condenado ao exílio por
Areópago, vindo depois a refugiar-se em Creta na corte do rei
Minos e a fugir para a corte do rei Cocalos em Camicos (hoje
Agrigento) na Sicília.
Todavia, importa sublinhar as várias facetas da métis de
Dédalo: em Atenas aparece como escultor renomado e inventor;
em Creta afirma-se como arquiteto do labirinto e como inventor
da vaca em madeira revestida de couro, do fio de Ariadne, e das
asas que lhe permitem escapar de Creta levando consigo o seu
filho Ícaro. Podemos pois dizer, com Frontisi-Ducroux, que
Dédalo representa o protótipo de artista e de artesão (nomeada-
mente da técnica de ourivesaria), criador das primeiras imagens
divinas, inventor de instrumentos técnicos indispensáveis quer à
escultura, quer à construção, arquiteto e engenheiro reputado
(2000: 18):
Dédalo não é um herói de um grande mito cosmológico, ele é
somente o centro dum conjunto lendário múltiplo com compo-
nentes míticas. Pelo seu nome, ele está ligado às imagens de fabrico artesanal e artística. É um inventor fértil em recursos,
um criador que coloca o prazer de imaginar e de construir à
frente da preocupação moral (Peyronie, 1988a: 421).
Dédalo aparece assim como uma personagem mítica, visto
que a sua história, situando-se no “Tempo dos homens” (P.
Vidal-Naquet), não cabe dentro da categoria mítica no sentido
restrito que damos a Prometeu, por mais que as suas invenções de
artesão talentoso fossem importantes aos olhos dos atenienses da
época (Frontisi-Ducroux, 2000: 23). O mito de Prometeu, ao con-
trário da história lendária de Dédalo, representa um passo
decisivo para a afirmação e o reconhecimento da cultura humana
contra os deuses, por isso é um mito tanto antropogónico como
de “origem” projetado in illo tempore (Mircea Eliade), ou seja,
inscrito num “Tempo dos deuses” (P. Vidal Naquet) que é sem-
pre um tempo originário ou primordial.
Se a relação entre Dédalo e Prometeu não se faz por ambos
serem figuras da mesma ordem de grandeza mítica, ela faz-se,
Educação, Cultura e Imaginário
60
contudo, através de um tema nevrálgico que é comum a ambas, a
saber: a técnica. A este respeito, ouçamos a voz avisada de Fran-
çoise Frontisi-Ducroux que na sua monografia dedicada a
Dédalo, enquanto artesão da Grécia antiga, afirma:
A pluralidade das divindades técnicas – Atenas, Hefaístos,
Prometeu – e os heróis providos do título de ‘primeiro inven-tor’ – Dédalo, Palamedes, Epeios – revela sobre o plano
religioso uma verdadeira sacralização da função técnica. A um
outro nível de pensamento, o interesse pela tecnologia é mani-festo em toda a Antiguidade, assim como a consciência do
papel representado pelo desenvolvimento técnico no progresso
cultural da humanidade (2000: 24).
É então pelo lado da técnica que Dédalo se aparenta a Pro-
meteu, cujo nome indica reflexão, sabedoria e previdência.
Contudo, podemos salientar que Dédalo, em traços gerais, encar-
na a filosofia subjacente ao mito de Prometeu que, segundo
Gilbert Durand, define sempre “uma ideologia racionalista,
humanista, progressista, cientista e, por vezes, socialista” (1998:
101)22
. Explica Durand que Dédalo, à semelhança de Prometeu,
exprime a fé no homem (o homem ao lado dos Titãs) contra a fé
nos deuses (Zeus do lado dos Olímpicos). Esta fé compreende
dois elementos: o luciferiano (luz-razão-ciência) e o demiúrgico
(a técnica como instrumento de transformação das condições da
existência humana). São pois estes dois elementos que nos pare-
cem caracterizar o Prometeu de Ésquilo que “celebra o progresso
e a grandeza do homem num Prometeu iniciador da civilização,
das artes e das técnicas” (Trousson, 1988: 1189).
A traição de Dédalo ao seu protetor Minos de Creta é do tipo
tecnocrático e hábil, e neste sentido assemelha-se à desobediência
ou à transgressão de Prometeu que é da mesma natureza, todavia
as finalidades, como sabemos, são manifestamente diversas: um
transgrediu a ordem social para servir Parsífae-Ariadne-Teseu,
outro transgrediu a ordem natural para servir a humanidade. Pro-
meteu, devido ao seu nobre objetivo, assume-se como um
22 Ver também Eschyle, Prométhée enchaîné, V. 254, V. 441-505; Hé-
siode, Théogonie, V. 507-616, Les Travaux et les jours, V. 42-105; Séchan,
1951; Trousson, 1976; Trousson, 1988: 1187-1200.
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
61
benfeitor da humanidade, daí ele ser social ainda que solitário.
Por sua vez, Dédalo, ainda que solitário, serve apenas os seus
interesses pessoais que podem, em determinados momentos,
coincidir com os interesses de atores que, por circunstâncias
diversas, lhe estão próximos: Talos, Minos, Parsífae, Ariadne,
Teseu, Ícaro e Cocalos.
4. A figura simbólica do labirinto como emblema de edu-
cação enquanto transmutação espiritual
A iniciação, enquanto experiência arquetipal típica de toda a
existência humana autêntica, não é exclusiva do homem tradicio-
nal, pois está sempre ao alcance do homem de hoje reativar, em
determinadas condições existenciais e em determinadas etapas da
vida, o seu esquema arcaico. Compete assim a uma pedagogia
remitologizadora ensinar a reativar este esquema arcaico da ini-
ciação de forma a que o sujeito possa ultrapassar as suas crises
existenciais num esforço de recuperar novamente a confiança
perdida na vida, a sua vocação, o seu destino, enfim aprender a
olhar a morte como um “novo nascimento”.
A iniciação visa pois realizar o desejo da transmutação espi-
ritual sentida pelo ser humano de todos os tempos e de todas as
culturas. Ele sente o apelo da mudança e da transformação, é
habitado, diríamos, por uma nostalgia de uma renovação iniciáti-
ca, para se tornar um homem mais realizado, logo mais
verdadeiro o que significa mais espiritual: “Aquilo que se sonha e
espera nesses momentos de crise total, é de obter uma renovação
definitiva e total, é de obter uma renovatio que possa transmutar
a existência. É numa tal renovatio que culmina toda a conversão
religiosa autêntica” (Eliade, 1976: 282).
A este respeito, Mircea Eliade diz-nos que o homem moder-
no, independentemente da sua crença, experiencia, em
determinados momentos da sua existência, uma nostalgia por
uma renovação de tipo iniciático. Esta renovação possui como
principal objetivo encontrar “um sentido positivo da morte, de
aceitar a morte como um rito de passagem a um estádio de ser
superior”, porquanto “a iniciação confere à morte uma função
positiva: a de preparar um ‘novo nascimento’, puramente espiri-
tual, o acesso a um modo de ser que escape à acção devastadora
Educação, Cultura e Imaginário
62
do Tempo” (1976: 282). É precisamente esta capacidade que a
iniciação tem em eufemizar a morte e de ultrapassar as garras do
tempo, que leva Eliade, por um lado, a afirmar que valorização
religiosa da morte ritual ajudou a superar o medo da morte física
e a fortalecer a crença da imortalidade espiritual do ser humano e,
por outro, Gilbert Durand a afirmar que compete à função eufe-
mizante da imaginação combater o tempo e doar um sentido à
morte:
Longe de defender o tempo, a memória, como o imaginário
ergue-se contra as figuras do tempo, e assegura ao ser, contra a dissolução do futuro, a continuidade da consciência e a possibi-
lidade de voltar, de regressar, além das necessidades do
destino. [...] A vocação do espírito é insubordinação à existên-cia e à morte, e a função fantástica manifesta-se como a patroa
desta revolta. [...] O sentido supremo da função fantástica, diri-
gido contra o destino mortal, é portanto o eufemismo. Quer dizer que existe no homem um poder de melhorar o mundo.
Mas esta melhoria não é, de modo algum, uma vã especulação
‘objectiva’, visto que a realidade que emerge à sua medida é a
criação, a transformação do mundo da morte e das coisas, assimilando-o à verdade e à vida. [...] Luta contra a podridão,
exorcismo da morte e da decomposição temporal, tal nos no
parece realmente, no seu conjunto, ser a função eufemizante da imaginação (1992: 468-472).
Deste modo, a caminhada heroica, que reveste os contornos
de uma aventura arquetípica, de Teseu, com os ritos de iniciação
que lhe estão associados, não terá como último, ou mesmo pri-
meiro, objetivo o “de domesticar o tempo e a morte e de
assegurar ao longo da vida, aos indivíduos e à sociedade, a pere-
nidade e a esperança” (Durand, 1992: 471)? Todavia, cabe a cada
ser humano, tal como o fez Teseu, saber encontrar o seu centro de
liberdade, de vocação e de destino, e a partir daí ser capaz de agir
por si na linha de cada um, como diz Píndaro, “tornar-se naquilo
que é” de acordo com o ideal de humanidade, com as imagens
que a suportam, que cada sujeito transporta.
Por fim, o desiderato de toda a educação, que se pretende
iniciática, deveria, seguindo os ensinamentos do labirinto, criar
condições para que o ser humano aprenda a aprender, e a melhor
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
63
compreender, a profundidade que é. Somente a compreensão do
sentido de profundidade que a imagem matricial do labirinto
comporta poderá ajudar o ser humano a romper com as máscaras
sob as quais cada um se esconde aos outros e a si mesmo. Torna-
se pois tão importante como urgente romper esse muro que impe-
de cada um de aceder “à consciência do infra-eu, espécie de
cogito subterrâneo, de um subsolo em nós, o fundo do sem fun-
do” (Bachelard, 1986: 260). E como a profundidade habita cada
um e nele permanece, como um apelo constante e incontornável
mediante o símbolo autêntico do labirinto, o ser humano necessi-
ta, mais do que nunca, de uma educação que tenha como
principal missão despertá-lo e sensibilizá-lo, através da função
eufemizante da imaginação, para os insondáveis caminhos da
trans-descendência, na feliz expressão de Gaston Bachelard
(1986: 260), e para a necessidade existencial, ética e estética de
opor o mito da Fénix renascida à degradação do tempo e da
“podridão” da morte!
5. O caminho e o mestre
A gesta de Teseu descreve uma viagem iniciática que, con-
duzindo ao re-nascimento, comporta um ensinamento sobre o
mistério do amor e da morte: “a iniciação comporta sempre uma
ruptura nítida com um estado anterior, uma passagem árdua
seguida de uma união com o ‘desconhecido tornado conhecido’”
(Christinger, 1981: 79 e 86). Para o êxito da viagem iniciática de
Teseu num outro mundo proporcionado pelo labirinto muito con-
tribui a ajuda de Ariadne, mesmo que o herói não se tenha
querido unir a ela. É ela que lhe fornece o fio que, na volta, lhe
permitirá reconstituir o percurso de ida e evitar a perda, porquan-
to para re-nascer espiritualmente é preciso não apenas penetrar no
labirinto, por definição um lugar obscuro, mas igualmente dele
sair em seguida e, neste percurso, deixar que se opere uma cria-
ção que vai culminar no re-nascimento de “um homem
verdadeiro”(Christinger, 1981: 99).
É a Teseu que cabe a vitória sobre o Minotauro, mas é o fio
de Ariadne que lhe permite penetrar no mundo desconhecido sem
perder a ligação com o mundo conhecido e evitar a perda que
redundaria em morte fatal. É de Ariadne que ele recebe a chave
Educação, Cultura e Imaginário
64
do êxito no labirinto, no caso, o fio. Mas o fio não é o caminho, o
curriculum. É apenas um artefacto sócio-cultural que assinala o
percurso, a trajetória a seguir no caminho de regresso. É uma
espécie de auxiliar de memória do itinerário a seguir.
Este papel adjuvante de Ariadne sugere, assim, de forma
indireta o arquétipo divino, na figura do mestre. Na verdade,
sugere a figura do mestre no processo educativo do ser humano,
não na sua função de guia nem de acompanhante, não na sua fun-
ção de modelo de conduta nem de assistente no “parto” do
verdadeiro conhecimento, mas na função mais modesta de pro-
porcionador do instrumento de salvação, cujo desdobramento
compete ao educando enquanto autor do seu próprio destino.
Neste aspeto, o “ensino” de Ariadne sugere a técnica necessária
para um percurso bem sucedido e vem a ser a humanização de
um modo possível da magistralidade divina, mas a mediação
entre o potencial discípulo e a verdade é assegurada não já pelo
mestre mas pela própria viagem iniciática para cujo êxito contri-
bui a mediação do fio que o mestre propicia.
Neste sentido, a ação de “ensinar” do mestre, encontrando
legitimidade ética numa experiência religiosa originária, apresen-
ta-se na sua versão secularizada imbuída da certeza coletiva da
necessidade proporcionar às novas gerações todo o património
“construído” pela humanidade e do qual conserva memória, exi-
gindo do educando/iniciando esforço pessoal e o favor divino.
Contudo, esta legitimidade ética está eticamente limitada, por-
quanto a autoridade do mestre se circunscreve à ação mediadora
da “doutrina” coletivamente conservada e da qual ele é mediador,
intérprete, guarda, mas jamais “dono” e, por isso, de modo algum
fonte da verdade (Moscato, ano: 409-410). Neste aspecto, a
magistralidade humana acolhe a subjetividade do educan-
do/iniciando e o seu poder para empreender o percurso e dar-se o
destino. Neste aspeto, o limite ontológico da subjetividade pes-
soal, mesmo podendo quebrar e fazer falir o processo educativo,
permite à educação cumprir-se ao permitir o cumprimento do
destino, através da “promoção das forças psicológicas (inteligên-
cia, vontade, consciência ética) graças às quais o ‘Conhece-te a ti
mesmo’ vem a ser patroneamento [padronanza] do destino pes-
soal” (Moscato, ano: 416).
A função do mestre não é, entretanto, a de tudo “dar” ao ini-
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
65
ciante, mas levá-lo à disposição de tudo “descobrir”, de enfrentar
as dificuldades, os obstáculos e os riscos. O espírito do iniciante
é, por isso, a curiosidade, da qual nasce a motivação (Castro,
2002: 513), o seu estado é a vigia, a sua forma de inteligência é,
ao lado do conhecimento teórico-conceptual, a astúcia – Metis,
em grego, primeira mulher de Zeus, a quem ele devorou para a
integrar nos seus poderes e poder assim prever os enganos dos
outros deuses – e o seu recurso é a memória, de que o labirinto é
exercício – a memória de palavras, de imagens, de olores, de
sabores e de tato.
Em todo o caso, à imagem de Ariadne, o mestre não deixa de
ser figura adjuvante da viagem iniciática e, deste modo, a relação
magistral e educativa vem a ser uma forma de solidariedade amo-
rável e expressão do vínculo da corresponsabilidade que a viagem
em comum comporta.
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Educação, Cultura e Imaginário
68
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
69
IV Os contos dos Irmãos Grimm e o seu
poder questionador 23
Fernando Azevedo
Introdução
Os contos dos Irmãos Grimm fazem hoje parte do património
da nossa cultura: são conhecidos pelas crianças, são recontados
por elas, são reescritos e reinterpretados por escritores e
ilustradores e por toda uma indústria cultural que os introduziu já
no domínio da cultura popular (Storey, 2003).
1. A especificidade dos textos e o seu funcionamento
pragmático
Os textos que servem de suporte a esta análise hermenêutica
possuem, em termos ontológicos, determinadas especificidades,
as quais, articuladas com o seu funcionamento pragmático,
requerem uma cuidadosa atenção.
Trata-se, com efeito, de relatos pouco extensos, com um
reduzido elenco de personagens, escassamente caraterizadas, um
esquema temporal restrito e uma ação condensada (Reis e Lopes,
1998: 78-82). Além disso, estes contos foram, na origem,
recolhidos junto de comunidades que os transmitiam oralmente
de geração em geração e cujo público-alvo, em primeira
instância, não eram as crianças, mas os adultos (Reinstein, 1983).
Por estas razões – a sua natureza ontológica, mas também a sua
ligação a uma arte da oralidade e da memória – , estes textos
mostram-se fruto de saberes considerados fundacionais ou
primordiais, saberes que, interconectando-se intimamente com os
códigos ideológicos e culturais das comunidades, enfaticamente
23 Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT –
Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT-unidade 317).
Educação, Cultura e Imaginário
70
sublinham determinadas verdades axiológicas e/ou simbólicas,
cuja origem, coletiva e indeterminada, se esgota na memória do
tempo. Assim, eles comportam, ainda hoje, passados 200 anos
após a sua difusão, junto do público leitor, uma importante e não
negligenciável capacidade perlocutiva, fortemente correlacionada
com uma determinada dimensão ética ou educativa.
2. Algumas linhas ideológico-temáticas relevantes
presentes nos contos
Os contos dos Irmãos Grimm, publicados em 1812, são
constituídos por uma série de textos que têm sido objeto, ao
longo dos tempos, de uma atenção diversificada sob múltiplos
prismas. Maria Tatar (1992; 2003), por exemplo, enfatiza nestes
textos as dimensões mais obscuras da realidade humana (a
violência, a crueldade, a morte). Outros autores têm analisado as
influências desta espécie de meta-narrativa nas escritas
contemporâneas em várias línguas e culturas (Haase, 1993;
Cortez, 2001), bem como noutros suportes semióticos (Rankin,
2007). Natividade Pires (2013) sublinha o impacto dos contos no
imaginário das crianças, em particular no que respeita aos papéis
sociais das personagens ao nível do género e do poder.
Neste capítulo, argumentamos que uma das linhas de força
exibidas por alguns destes contos reside na atenção concedida aos
mais fracos ou aqueles que factual e simbolicamente não parecem
ser possuidores de voz ou de capacidade de ação. Nesta nossa
argumentação socorremo-nos de princípios como os defendidos
por Jack Zipes (1994) ou Jane E. Kelley (2008), segundo os quais
os contos de fadas, dando a ler valores e condutas para os
costumes, exibem sempre, ainda que, muitas vezes, apenas de
modo indireto ou oblíquo, determinadas relações de poder. Com
efeito, os textos selecionados neste artigo mostram-nos que
aqueles que não são detentores de poder conseguem sempre
alcançar uma certa ordem simbólica, desde que, manifestando
sempre uma autoconfiança e uma capacidade de perseverança, a
que se associam princípios éticos de retidão e de solidariedade,
realizem um determinado esforço, superando um conjunto de
provas ou de obstáculos. Como explicitamente assinala Jack
Zipes (2009), estes textos permitem-nos materializar realidades
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
71
que compensam o desgaste do quotidiano, possibilitando uma
reflexão crítica acerca do mesmo e uma regeneração espiritual.
Esta é, com muita frequência, a sua ideologia, um discurso que,
como afirmou Christian Zimmer (1974: 138), não tem corpo nem
rosto, mas que está lá e se deteta quando o texto é atentamente
perscrutado sob a perspetiva de uma literacia crítica (Morgan,
1997; Comber, 1992; 2001). Nesta ótica, os textos da literatura
infantil, como demonstrou Jack Zipes (1986), contêm um não
negligenciável poder subversivo.
Esta dimensão de resistência ativa, a que se associa a
capacidade de explicitação de outros pontos de vista alternativos
face a um determinado estado de coisas existente, é detetável
numa pluralidade de textos, sendo particularmente visível em
certas formas breves da narrativa que comummente articulam
dimensões comunitárias, gnosiológicas e axiológicas.
3. Observação de alguns textos
Em A Gata Borralheira, por exemplo, narra-se a história de
uma jovem, que, reprimida, desprezada e humilhada pela família
mais próxima, consegue, graças à intervenção do sobrenatural,
representado nas ações da fada madrinha, emancipar-se e ganhar
voz.
Se na versão de Charles Perrault, esta é uma jovem passiva,
dependente e incapaz de protagonizar um grito de revolta contra
as humilhações da madrasta e das meias-irmãs – ela não possui
agência ou voz, como sublinha Linda T. Parsons (2004: 144) – ,
na versão dos Irmãos Grimm, a Gata Borralheira assume as
rédeas do seu destino e manifesta uma capacidade de agir e de
ludibriar, inclusivamente, o próprio universo masculino24
.
24 Note-se que o Príncipe, ludibriado duas vezes pela Gata Borralheira e
duas vezes pelas meias-irmãs, só consegue solucionar situações de tensão pela
força e quando ajudado por objetos ou seres externos: ajudado pelo pai da Gata
Borralheira e pelo machado, destrói o pombal e derruba a pereira (numa tenta-
tiva infrutífera de desvendar a entidade da menina do baile) e, só quando
alertado pelas pombas, descobre que levava para o palácio a noiva errada.
Também ao contrário da voz paterna, inaudível e totalmente manipulada pela
voz da madrasta, a Gata Borralheira mostra-se capaz de agir e de alcançar a
sua emancipação.
Educação, Cultura e Imaginário
72
Ainda que a casa onde ela vive surja como um espaço íntimo
e afastado do mundo exterior, no qual ela experimenta as
frustrações, humilhações e sacrifícios causados pelos seres que
lhe estão mais próximos (a madrasta e as meias-irmãs), nota-se
que é ainda num espaço fechado, mas de explícita exposição
pública (o baile no castelo do príncipe), que a personagem, graças
a um isomorfismo imaginário, mostrará, com todo o seu
esplendor, a sua essência. A crença no maravilhoso e a sua
aceitação possibilitam, pois, que a personagem, alcançando o
contato e o casamento com o príncipe, se emancipe e readquira a
voz que os outros lhe usurparam.
Em A Serpente Branca, o serviçal, que fora injustamente
acusado de roubar o anel da Rainha e, por essa razão, condenado
à morte, consegue, graças ao poder que lhe advém de ter acedido
a um objeto mágico, reservado apenas a uma elite, salvar a sua
vida. Este jovem, criado do Rei, manifestará, ao longo da
narrativa, um comportamento justo e solidário para com os
demais e alcançará, no final, o poder, ao casar-se com a princesa.
É, a nosso ver, significativo que, no seu percurso de vida, o
jovem criado encontre nos animais toda a ajuda e solidariedade, e
nos homens, desprezo, ameaças várias e humilhações: só após um
percurso iniciático, cheio de provas superadas, é que o jovem
criado pode transcender a sua condição e viver em segurança, e
em amor, até ao fim dos seus dias.
Também em O Ganso de Ouro, é o filho mais novo de três,
desprezado pela família, e significativamente apelidado de
“Parvo” ou de “João Bobo”, consoante as versões em língua
portuguesa, que alcançará o sucesso e o poder. De facto, é este
que, mostrando possuir um coração puro e solidário para quem
tem necessidade, consegue fazer rir a princesa e, depois de
superadas uma série de provas exigidas pelo Rei, obter a sua mão
em casamento, expressão simbólica do acesso ao Poder e à
Autoridade. É relevante que os detentores do poder factual,
mesmo depois de superadas com sucesso as provas exigidas aos
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
73
candidatos, manifestem grande dificuldade em cumprir a palavra
dada e façam novas e inusitadas exigências25
.
Nesse ícone universal, que é O Capuchinho Vermelho26
, co-
mo lhe chamou Sandra L. Beckett (2008), a voz familiar
dominante é a das mulheres, embora o texto, cumprindo também
as suas funções axiológicas e de ligação a um saber comunitário,
reposicione o discurso sob a voz patriarcal. À voz masculina está
reservado um papel duplo de agressão e de salvação (Azevedo,
2008).
Assistimos, neste conto, a uma violação ostensiva da ordem
patriarcal dominante: trata-se, com efeito, de um texto onde se
mostra uma geração de mulheres educadoras (avó e mãe) que
parece ter prescindido ou, pelo menos, que não concede valor ou
importância aos homens. As mulheres desta narrativa, em par-
ticular as mais novas, aquelas que se encontram em fase de
aquisição do poder e do conhecimento, mostram-se ousadas, ao
ponto de a resolução da história, pelo menos na versão de Charles
Perrault, se fazer pela punição das mesmas, isto é, pelo seu
desaparecimento/morte. Além disso, vivendo num agrupamento
monofamiliar isolado (a avó vive na floresta, fora da comunidade,
num território que simbolicamente é o lugar do Outro), as
mulheres desta narrativa parecem tornar-se presas relativamente
fáceis e potencialmente passíveis de destruição (a avó e a
menina) ou de anulação (a mãe) por parte de um ser que,
ostensivamente marcado pela sua animalidade, se dá a ler como
explicitamente agressivo, astuto e predador (o lobo). A resolução
do conflito e a reposição da ordem inicial é significativamente
operada, na versão dos Irmãos Grimm, através do poder
masculino, representado pelo caçador e pelos seus adereços (o
machado ou a espingarda).
Todavia, como temos vindo a salientar, estes textos, embora
mantendo, pelo seu próprio funcionamento semântico-
pragmático, articulações profundas com as dimensões ideológicas
25 Por este meio, o conto não deixa de tecer uma subtil e impiedosa críti-
ca a determinados atores, comportando uma importante capacidade
modelizadora. 26 Ana Isabel Gouveia Boura (2011) assinala a multiplicidade das inicia-
tivas de transmodalização e transdiegetização que o texto matricial tem sofrido
desde a sua publicação, em 1697, por Charles Perrault.
Educação, Cultura e Imaginário
74
predominantes nas comunidades de produção, não deixam de
exibir, ainda que, de formas mais ou menos veladas, uma não
negligenciável capacidade questionadora.
Por exemplo, no conto O Polegarzinho, é o filho mais novo
da família, considerado por todos como pouco inteligente e com
uma saúde delicada, que, com grande argúcia e coragem, salva,
em diversos momentos, os restantes irmãos do abandono a que
foram votados pelos progenitores e do destino trágico que sobre
eles pesa ao terem-se recolhido, na sua fuga pela floresta, na casa
de um ogre. É, além disso, esta personagem que, apropriando-se,
por um golpe de sorte, das famosas botas das Sete Léguas –
objeto mágico, por excelência –, obtém, dos que o rodeiam e que
são, factualmente, detentores do poder, fama, reconhecimento,
riqueza e capacidade de influência.
Conclusão
Os textos analisados, ao longo deste artigo, mostram-nos
que, apresentando determinados modelos do mundo, a literatura
comporta uma não negligenciável capacidade de suscitar efeitos
perlocutivos (Sutherland, 1985). Os contos dos Irmãos Grimm,
pela sua ação condensada e pela novidade de que são portadores,
interrogam mundos existentes e práticas dominantes, ensinando
os seus leitores a acreditaram no poder da palavra e na
capacidade desta em transformar o mundo.
Graças a estes textos, os leitores, que se iniciam nas
aventuras nos bosques da ficção, têm a oportunidade de conhecer
uma paleta multicolor da realidade humana. Interrogando
indiretamente a semiosfera, estes textos proporcionam aos seus
leitores a possibilidade de refletirem, de dialogarem, de
questionarem, de pensarem, de debaterem determinados estados
de coisas, buscando criativamente soluções para os desafios que
potencialmente poderão vir a enfrentar no mundo empírico e
histórico-factual em que se situam.
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A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
77
V
Educação, Democracia e Imaginário 27
Alberto Filipe Araújo
Joaquim Machado de Araújo
Neste capítulo pretende-se cruzar a perspetiva das ideias
educativas e do imaginário educacional com a história cultural e
contribuir para um novo olhar sobre o par educação-democracia.
A exposição articula-se em torno de quatro eixos: no primeiro,
relaciona-se História cultural e ideias educativas; no segundo,
explicita-se a mitanálise como modelo de abordagem das ideias
educativas; no terceiro, ilustra-se esta abordagem no que respeita
às ideias de progresso, educabilidade e democracia; no quarto,
afirma-se a educação da pessoa e do cidadão, porquanto a
educação tem a virtude de criar o homem novo e uma cidade
nova. Com efeito, a modernidade tem concebido a educação
como um segundo nascimento, onde se joga o indivíduo, na sua
singularidade, e a sociedade, enquanto corpo.
1. História cultural e ideias educativas
A perspetiva totalizante da “nova” História Cultural leva-a a
privilegiar temas como as mentalidades, a cultura material, os
sentimentos, as emoções, o imaginário, as representações e as
imagens mentais, entre outros. Ela atribui papel fundamental à
imaginação na reconstrução histórica e é sensível ao simbolismo
e a temas do imaginário, mesmo que social, utopia e mitos. Neste
ponto, a “nova” História Cultural associa-se à crítica de Michel
27 Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT –
Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projecto PEst-
OE/CED/UI1661/2011 do CIEd.
Educação, Cultura e Imaginário
78
Foucault aos historiadores pela sua ideia empobrecida do real que
excluía aquilo que era imaginado.
A afirmação da dimensão sócio-cultural estimula o estudo do
imaginário e a interpretação hermenêutica das representações e
construções sociais e convida a pensar as “ideias educativas”, e
consequentemente a sua história, a partir das suas características
próprias e acompanhando o processo da sua construção,
reconstrução, transmissão e receção através do tempo e do
espaço. De entre as “ideias educativas” destacamos as ideias de
progresso, de homem novo, de educabilidade, de democracia, de
perfetibilidade, de formação, de razão, de natureza.
Estas ideias, ainda que sujeitas à validade da coerência e da
plausibilidade da interpretação histórica, à construção e
tratamento de dados, à produção de hipóteses, à crítica e
verificação de resultados, à validade da adequação entre o
discurso do saber e o seu objeto, são sempre uma narrativa, a
partir de figuras quer da retórica (alegoria, metáfora, etc.), quer
do imaginário no sentido que Gilbert Durand e Jean-Jacques
Wunenburger lhe atribuem, que constroem o “enredo” dos
discursos, práticas discursivas e textos que tratam da educação.
2. Mitanálise das ideias educativas
A consideração da história como uma narrativa com
“enredo”, permite desvendar na história das ideias educativas as
“estruturas antropológicas do imaginário” (Durand, 1984), com a
sua gramática e leis próprias, e evidenciar-lhe a seiva simbólica
que está para além do registo discursivo da metáfora e remete
para aquilo que a tradição do “Círculo de Eranos” (Jung, Mircea
Eliade, Gilbert Durand, entre outros) designa de imaginário
mítico (com os seus símbolos) e mesmo para o imaginário
arquetipal (arquétipos – imagens arquetípicas).
A educação é qualquer coisa que se imagina (Daniel
Hameline) e pode pensar-se através de metáforas e das ideias
educativas entendidas como modalidades do imaginário
educacional. O imaginário educacional é sempre um imaginário
bidimensional que, por sua vez, articula as dimensões semântica
(ideologias, utopias, metáforas) e pré-semântica (mitos e
símbolos): uma modalidade de imaginário que é simultaneamente
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
79
sociocultural e mítico-simbólico, pois as ideias educativas são
devedoras quer de um tempo-espaço sócio-histórico, quer de um
semantismo ora utópico, ora mítico ou mesmo pelos dois registos
em simultâneo.
Enquanto complexo significante de energias semânticas e
mobilizador de ideias-força (imaginário social e cultural), as
ideias educativas dão-se a conhecer num primeiro momento pelo
jogo metafórico, bulefórico, ideológico e utópico (domínio do
imaginário social e cultural). Num segundo momento, abrem-se
ao mito (por mais degradado que este se apresente – Sironneau,
1993), porquanto o imaginário sociocultural é incessantemente
irrigado por um fluxo de imagens arquetípicas provenientes
daquilo que Gilbert Durand designa de “Nível Fundador”.
Tomamos a mitanálise como um método hermenêutico que
visa identificar, mediante o ideologema, os traços míticos
presentes, ainda que de modo difuso, nos textos mais
ideologizados. A nossa opção pela mitanálise, ganha se nos
ativermos à dupla dimensão do discurso educativo e,
particularmente, das ideias educativas. Esta dupla dimensão
articula, por um lado, uma semântica imanente ao discurso
educativo com uma gramática que lhe é própria (Reboul, 1984) e,
por outro lado, todo o seu cortejo de metáforas, de imagens
(míticas, poéticas) e analogias (Charbonnel, 1988 e 1991-1993,
Hameline, 1986, Duborgel, 1983).
A mitanálise está, deste modo, mais preocupada em exumar
as imagens, os temas, os traços mítico-simbólicos e metafóricos
que se abrigam ou se manifestam no pensamento educativo, do
que em estudar as suas próprias figuras discursivas, as suas
“estruturas conceptuais” e os seus “campos histórico-
problemáticos”. No entanto, tal não significa que as figuras
discursivas e os “campos histórico-problemáticos” não sejam
devidamente considerados pela atitude mitanalítica, pois quer as
figuras, quer os campos são a condição necessária, ainda que não
suficiente, para se fazer uma espécie e “arqueologia” das ideias
educativas como, por exemplo, as ideias do progresso, da
educabilidade e da democracia e que Daniel Hameline designa de
“lugares comuns” (1986a: 24-40).
Estas ideias ou “lugares comuns” caracterizam-se sempre por
dois tipos de registo: o “histórico-problemático”, pois as Ideias
Educação, Cultura e Imaginário
80
Educativas não constituem um objeto separado da história, e o
mítico-simbólico, dado que essas mesmas Ideias reenviam a um
Imaginário diurno ou noturno (Durand, 1984).
3. As ideias de progresso, educabilidade e democracia
Naquilo que se refere à ideia de progresso (com a ideia de
perfetibilidade que lhe está associada), Hameline diz-nos que este
lugar comum caracterizou o século XIX educativo e que ele
“funda uma tripla crença [aspetos messiânico, científico-
industrial e otimista] através da qual o século XIX progressista
mobiliza por conta da aventura humana um imaginário religioso
que permanece ainda poderosamente apelativo” (Hameline,
1986a: 26). A função de um exercício mitanalítico, aplicado a
uma ideia desta grandeza e com a sua espessura semântica, é a de
se interrogar, por um lado, sobre a sua génese e evolução,
passando pelas suas implicações sócio-culturais e hermenêuticas
no interior da História das Ideias Educativas, e, por outro lado,
questionar-se sobre a sua dimensão não-semântica, isto é, sobre o
seu lado simbólico e mítico. A tarefa da mitanálise consiste,
então, em identificar o caudal mitogénico que a alimentou, isto é,
fazer uma espécie de recenseamento de símbolos fortes e
pregnantes que a habitam (lembrando aqui a “pregnância
simbólica” de Ernst Cassirer), como, por exemplo, os da “luz”, o
“sol”, “claridade” “árvore” o “milagre” científico (mito de
Prometeu), a imagem da “infância” imaculada, etc.
Ligada a esta crença no progresso indefinido da natureza
humana encontra-se, como não podia deixar de ser, a ideia de
educabilidade que acredita que essa mesma natureza é
naturalmente boa e por isso não pode deixar de ser perfetível.
Como, aliás, o próprio Hameline salienta, afirmar este “lugar
comum”, encarar o poder da educação como “verdade
fundadora” significa que a “dinâmica do progresso é bem a
regra do fenómeno humano seja qual for a perspectiva sob a
qual se encara” (1986a: 31). Se acreditarmos no poder
transformador da educação, então, e lembrando Rousseau,
acreditamos igualmente que é pelo seu intermédio que os
homens, tornados artificialmente maus, voltarão novamente ao
estado primigénio de bondade natural. Assim sendo, fica
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
81
legitimada a intervenção dos homens na formação dos outros
como se tratando de algo tão necessário como viável. Parece-nos,
assim, que esta intervenção, ao repousar firmemente na crença de
que o ser humano é natural e infinitamente perfetível, como
defende Condorcet, só se credibiliza, racionalizando (recalcando)
as suas raízes míticas, consubstanciada nas doutrinas educativas
centradas num logos pedagógico. Por isso, tende a esquecer, de
modo mais ou menos inconsciente, o halo mítico que lhe confere
a sua auréola de sucesso, de permanência numa História das
Ideias Educativas, como são, entre outros, os seguintes atributos
de forte pendor mítico: a crença na bondade, a felicidade e a
perfetibilidade primigénias do homem (os atributos próprios do
andrógino, do homem antes da “queda”: mitos adâmico e da
androginia humana).
Se a intervenção na formação do Outro é, então, possível e
desejável, parece-nos, pois, que ela se deve estender ao maior
número de pessoas possível. O que significa, por outras palavras,
que a instrução-educação se deve afirmar como uma causa de
toda a sociedade, além de servir para caucionar o princípio de
igualdade entre os cidadãos e as regras do consenso nacional e
social. E ao fazê-lo está a afirmar a terceira ideia educativa – a
ideia de democracia – que consagra o princípio de igualdade
(política, económica, social e cívica) entre os cidadãos:
Auxiliar do progresso, chamada a espectaculares
melhoramentos, a escola é abundantemente apresentada como o
meio da democracia, e esta última, aos olhos dos modernos, assegura a emancipação dos povos face às tiranias antagonistas
e complementares que os ameaçam, em primeiro lugar o
retorno em força dos despotismos com o seu cortejo regressivo de injustiças e de intolerâncias, depois o extravasamento
socialista ou libertário cujas sirenes não deixam as massas
insensíveis, quando lhes prometem, num hoje muito pouco
satisfatório, os “amanhãs que cantam” (1986a: 37).
Do ponto de vista mitanalítico, podemos salientar que esta
ideia, muito ligada à ideia de progresso com a mitologia que lhe
é própria, traz com ela não só o desejo de formar “homens novos”
(leia-se o mitologema do “homem novo” – Araújo, 1997), como
Educação, Cultura e Imaginário
82
também o desejo de instaurar uma nova “Idade do Ouro”
(Gusdorf, 1985: 8-23), isto é, uma sociedade mais perfeita porque
mais justa e mais feliz. Por outras palavras, a ideia democrática
pretende formar uma “humanidade nova” (Baczko, 1980: 89-132)
numa “sociedade nova” redentarizada pela ação educativa. Deste
modo, esta ideia evoca, à semelhança da ideologia marxista-
leninista, a “raça de ouro” (Hesíodo), a “Idade do Ouro”
(Ovídio), a felicidade, a igualdade e a justiça originárias. Numa
palavra, a democracia evoca a “nostalgia do paraíso” (Mircea
Eliade), a nostalgia de um “Tempo” em que os homens agiam de
boa fé e praticavam a justiça próxima do modelo da justiça
divina.
4. Para uma educação da pessoa e do cidadão
As ideias educativas deverão ser pensadas em função da
ideia de “formação do homem” no sentido da tradição alemã da
Bildung: a formação visa “uma mutação ontológica do regime
existência” (Mircea Eliade) e o homem não é outro de que o ani-
mal symbolicum (Ernst Cassirer). Sendo o conceito de Bildung
inseparável da noção de símbolo, e dizendo-se este em alemão
Sinnbild, podemos dizer que o destino do humano é dar sentido à
trama das imagens que vai sucessivamente tecendo ao longo da
sua experiência humana. Este dar sentido às imagens, sejam elas
poéticas, oníricas ou cósmicas recupera no plano individual toda
a energia que a ideia educativa de formação veicula em ordem a
um “mais ser”.
Este “mais ser” define já o ideal de educação que retoma a
tradição grega antiga consubstanciada na máxima “Tornar-se
naquilo que é” de Píndaro: educar consiste pois em modelar o
sujeito de acordo com uma forma que, por sua vez, se plasma
num conjunto variado de ideias educativas. Este ideal educativo,
que aponta para a ideia de forma, cristaliza todas as dimensões
ontológicas, epistemológicas, éticas e estéticas da educação (Fa-
bre, 1994). Depreende-se daqui que se recusa a metáfora da
modelagem, que, em nome de um molde/modelo exterior,
legitima o autoritarismo e a uniformização da pedagogia da
conformidade, para melhor se enfatizar a necessidade de cada um
se modelar de acordo com a imagem interior de humanidade que
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
83
traz dentro de si.
Por intermédio de educação entendida como Bildung, cada
ser atualiza ou configura em si, a “imagem tipificadora,
generativa que nos permite produzir, por nós próprios, a nossa
figura humana. Tornar-se homem exige, assim, um poder
imaginativo, um poder de criação de imagens, uma capacidade de
adequar-se às formas que servem a cada ser de giroscópio para
configurar a mesma humanidade” (Wunenburger, 1993: 63).
Esta conceção de educação incorpora os “poderes da
imagem” (Huyghe, 1965), denuncia a impossibilidade de pensar
uma educação sem símbolos e sem mitos e afirma a necessidade
de uma pedagogia própria para estas “formas simbólicas”, de
uma pedagogia do imaginário, que não é uma pedagogia do
irreal, mas antes “treino dinâmico da percepção e da consciência
do real por todas as faculdades do ser, permitindo-lhe não limitar
as suas relações com o mundo e a percepção imediata que ele
possui dele”. Esta pedagogia “só tem sentido na medida em que
ela convida o indivíduo para todas as explorações práticas e
novas do mundo exterior e interior à consciência” (Jean, 1991).
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A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
85
VI O Tema do “Homem Novo”
na Demopedia Republicana:
o caso de João de Barros 28
Alberto Filipe Araújo
“Ser republicano é contribuir para a
criação de uma humanidade nova” (Sebastião de Magalhães Lima)
“Fazer uma nação de homens livres e
não um rebanho de escravos, tal será o nosso empenho, tal deve ser o empenho
de todos os sinceros patriotas”
(s.a. [Programa da Educação Nacional], 1911: 179).
Introdução
Em Nacionalização do Ensino João de Barros escreve que
“Novos de espírito ou de idade foram todos aqueles que na vida
criaram progresso. Novos foram em Portugal, todos os homens
que pela sua Pátria abriram grandes e belos horizontes” (1911:
251). Foi a leitura desta passagem, denominada por nós de ideo-
logema, visto tratar-se de uma passagem substantiva reenviando
simultaneamente para os imaginários social e mítico, que nos
incitou a tratarmos do tema do “homem novo” em João de Bar-
ros. É verdade que este tema tornou-se explicitamente obsessivo
nos textos e projetos da época revolucionária, tal como eles foram
apresentados por Bronislaw Baczko (2000), e que, por extensão,
não deixou de estar igualmente presente no republicanismo em
28 Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT –
Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projecto PEst-
OE/CED/UI1661/2011 do CIEd.
Educação, Cultura e Imaginário
86
Portugal, como Fernando Catroga o mostrou na sua obra O
Republicanismo em Portugal (1991 (2º Vol.): 449-464).
A novidade deste estudo, ainda quer retomando a nossa Tese
de Doutoramento intitulada justamente O “Homem Novo” no
Discurso Pedagógico de João de Barros defendida em 1994 e
efetivamente publicada em 1997, radica em que, contrariamente à
abordagem marcadamente culturalista de Fernando Catroga, nós
sublinhamos que as figuras míticas de Prometeu, de Anteu e do
Andrógino não são apenas alegorias ilustrativas do republicanis-
mo, mas antes figuras fundadoras e instauradoras do sentido
histórico-político como o pretende Gilbert Durand.
Na época, o nosso estudo produzido, no âmbito da Filosofia
da Educação e da tradição do Círculo de Eranos, que somente
procurava ilustrar, na linha de Jean-Pierre Sironneau, a importan-
te relação ideologia-mito em que os textos de João de Barros
serviram apenas de pretexto hermenêutico, foi rapidamente con-
siderado um estudo historiográfico discutível criticado por certos
epígonos positivistas da nossa academia. Todavia, ainda que pou-
co e mal compreendidos, nunca abandonamos a nossa intuição de
base que consistia precisamente em nos interrogarmos sobre
aquilo que faz com que a aura do “homem novo” irradie de forma
tão potente como luminosa o seu cântico a que nenhum sujeito
parece ser indiferente. È pois assim que neste contexto, que afir-
mamos hoje, ainda que de um modo mais conciso, a nossa
primeira intuição, a saber: é a seiva mítica que irriga o tema do
“homem novo” que lhe confere o seu carisma não só universal
como também atemporal e não os factos históricos singulares e
irreversíveis como, aliás, pretende a tradição historicista.
Neste capítulo, trataremos numa primeira parte o tema do
homem novo num duplo registo: o social e o mítico; e numa
segunda parte trataremos do “cidadão republicano” de João de
Barros no cruzamento dos imaginários mítico e social, para con-
cluirmos que a nossa abordagem mitanalítica ocupa um lugar
metodológico importante na compreensão das ideias educativas
mobilizadoras do imaginário social.
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
87
1. O tema do “homem novo”
Ainda que o tema do “homem novo” nos apareça revestido
de uma roupagem histórico-culturalista que exerce uma atração
irresistível, mesmo incontornável, nos mais variados quadrantes
ideo-políticos desde a revolução francesa, passando pelo republi-
canismo português, até às ideologias do nacional-socialismo e do
comunismo, com os respetivos projetos pedagógicos que lhe
estão associados, o facto é que nos devemos interrogar sobre o
tipo de fundo mítico que vivifica o “homem novo” enquanto figu-
ra marcante dos imaginários social e mítico. Seja esta figura
considerada um “tema” (Raymond Trousson), uma “ideia-
imagem utópica” (Bronislaw Baczko), um “mitologema” (Gilbert
Durand) ou um “ideologema” (Alberto Filipe Araújo), o certo é
que ela ocupa no imaginário coletivo, nomeadamente nos textos e
discursos educativos e pedagógicos, um lugar de destaque que
merece ser analisado. Todavia, antes de avançarmos, importa que
façamos a seguinte observação: tratando nós de textos fortemente
ideologizados, em que os traços míticos se encontram já forte-
mente degradados, como se estivessem apertados por uma
espécie de espartilho racional, não captamos o tema do “homem
novo”, que é o caso que nos ocupa, sob a sua forma de “mitolo-
gema” (Gilbert Durand), mas sim sob a sua forma de
“ideologema” visto que, enquanto estrutura semântica de sentido,
veicula sob uma forma racionalizada quer aspetos ideologizados,
quer traços míticos fortemente degradados, isto é, latentes. Por
isso, afirmamos que todo o “ideologema”, ao postular uma her-
menêutica que pode ser tanto de orientação culturalista como de
orientação mítico-simbólica, desemboca num “conflito de inter-
pretações” (Paul Ricoeur) onde se coloca, entre outros problemas
delicados, a questão da “prova” hermenêutica e da sua conse-
quente legitimação (Paul Ricoeur, Umberto Eco, Karl Popper,
entre outros). Por último, uma palavra para afirmarmos sem
rodeios que a nossa posição hermenêutica é decidamente mítico-
simbólica, tal posição significa que nós recusamos, por um lado,
“impor à imaginação significações tipificadas pela interpretação”,
pois tal procedimento é “pensar alegoricamente e retirar-lhe todo
o poder” (Hillman, 1982: 134), e, por outro, procuramos, na linha
da hermenêutica simbólica, o sentido escondido do texto sob uma
forma latente, que normalmente corresponde à sua dimensão
Educação, Cultura e Imaginário
88
simbólica mais pregnante, no seu sentido aparente, ou seja, paten-
te que assume normalmente figuras da retórica, de que a metáfora
e a alegoria são exemplos
Decorre assim da posição agora enunciada que para nós, ao
contrário da tradição historicista e culturalista, que é aquela que
domina o espaço académico-científico português, defendemos, na
linha do Círculo de Eranos (Durand, 1982: 243-277) que as figu-
ras míticas não são meros passatempos alegóricos, mas antes,
como o defende, aliás, Walter F. Otto o mito no início significa a
palavra verdadeira, o discurso sobre aquilo que é (1987: 59-79),
James Hillman, pelo seu lado, diz-nos que as figuras míticas
(formas imaginais divinas), enquanto universais personificados,
eram criaturas vivas, dinâmicas e evocadoras das dominantes
mais profundas da alma que sintetizavam os conteúdos da imagi-
nação em vez de os analisar pela linguagem. Essas figuras
“representam os universais sob os quais se podia reagrupar todos
os aspectos do saber e da natureza” (1977: 149, 139). Resumindo,
contrariamente àqueles que encaram as figuras míticas como
meras alegorias, nós contrapomos a autenticidade interior das
figuras míticas, com a “pregnância simbólica” (Ernst Cassirer)
que as sustenta. Questão antiga, que data já do Concílio de Niceia
em 787 em que os iconoclastas ganharam, pois conseguiram
impor a linha oficial e ortodoxa da Igreja romana ao “despoten-
cializarem” a realidade divina ou arquetipal das imagens para lhe
atribuírem um poder meramente alegórico em que as imagens
apenas representam, apenas significam e apenas demonstram as
ideias abstratas que elas encerram: “Elas tornaram-se representa-
ções cessando de ser presentificações, presenças do poder divino”
(Hillman, 1982: 133).
1.1 Contornos pedagógicos e imaginário social
No quadro do imaginário social, o tema do “homem novo”
ocupa um lugar privilegiado visto que ele se encontra no cruza-
mento dos enjeux sociopolíticos e pedagógicos do imaginário
revolucionário seja ele de cariz mais ou menos totalitário ou mais
ou menos democrático. Deste modo, afirmamos que o núcleo
original da formação e da irradiação, diríamos o seu tempo forte
ou mesmo quente, do tema do “homem novo” deve ser procurado
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
89
na época das Luzes, nomeadamente nos textos e projetos da épo-
ca revolucionária, como: os de Mirabeau, Talleyrand, Condorcet,
Barère, Lakanal, entre outros (Baczko, 2000).
O tema do “homem novo”, senão mesmo de um “povo
novo”, faz parte da paisagem revolucionária das Luzes e, por
conseguinte, é encarado como uma figura mítica entrosado no
imaginário social, particularmente a partir da Revolução France-
sa, como sublinham Mona Ozouf, Antoine Baecque e Bronislaw
Baczko. Trata-se realmente de uma “ideia-imagem utópica” sobre
a qual
se cristalizam as esperanças pedagógicas das elites revolucioná-
rias e que se instala de forma durável sobre o horizonte das expectativas. Assim, assiste-se durante a Revolução ao encon-
tro, senão mesmo à fusão, de dois sonhos sociais. Por um lado,
é o sonho de uma sociedade pedagógica que exerceria as suas funções através de todas as suas instituições e tornar-se-ia glo-
balmente uma escola gigantesca. Por outro lado, é o sonho de
uma pedagogia social informada e incansável, criadora de um universo educativo que englobaria o povo-aluno, senão mesmo
o povo-criança (Baczko, 2000: 21).
O “cidadão republicano”, que é sempre pensado como
"homem novo", não é uma novidade na tradição republicana por-
tuguesa, nomeadamente no pensamento ideo-pedagógico de João
de Barros. A ideia de "cidadão", versus "homem novo", inscreve-
se na tradição iluminista da Revolução Francesa e, por conse-
guinte, carece de um novo figurino educacional que o preparasse
integralmente, isto é que o preparasse física, moral e cognitiva-
mente para a tarefa de construir uma "sociedade nova". É
conhecido, como sublinha Bronislaw Baczko, que a educação
republicana, encarada como uma `"educação nova", se quiser
regenerar a sociedade tem que visar todas as facetas do sujeito:
desde a dimensão física à moral. Se a condição necessária para
aceder ao estatuto de cidadão é a de aprender a "ler, a escrever e a
contar" (a instrução salvífica), ela, contudo, não é suficiente, pois
os "verdadeiros republicanos" carecem de ser moldados pelas
virtudes republicanas ou, então, pelos novos costumes instituídos
pela "nova educação" que se reclama dos valores revolucionários,
Educação, Cultura e Imaginário
90
de que a trilogia "liberdade, igualdade e fraternidade” é exemplo
(1980: 99). Neste contexto Bronislaw Baczko (1980: 89-132) diz-
nos que o “homem novo” é uma das ideias-imagens mais estimu-
lantes que caracteriza a utopia pedagógica das Luzes e,
consequentemente, da Revolução francesa que deve, em matéria
de educação, “apagar o passado, inventar o futuro", para usarmos
uma expressão do próprio autor, para fundar uma “Cidade Nova",
uma “Cidade regenerada", enquanto utopia da Cidade Ideal, po-
voada por “homens novos" instruidos e educados por
formadores/professores escolhidos “entre os mais capazes, os
mais patriotas e os mais devotados" aos quais se passava um cer-
tificado de civismo (1980: 102-126).
Se Baczko nos diz que o sonho de formar o “homem novo"
resume bem o ideal pedagógico da Revolução francesa, também
Mona Ozouf, no seu L'Homme Régénéré, onde consagra um capí-
tulo à formação do “homem novo" no quadro da Revolução
francesa (1989: 116-157), refere que, com a ideia de “ homem
novo " se toca num sonho central dessa mesma Revolução, visto
que é esta mesma ambição que lhe confere um “carácter premo-
nitório, anunciador de revoluções futuras". Se o “homem novo" é
fruto de uma revolução radical, que pressupõe obrigatoriamente
uma regeneração radical, então ele aparece como “homem cria-
do" no sentido que lhe atribui Ozouf quando refere que a
“regeneração era para ontem". Se, pelo contrário, o “homem no-
vo" é fruto de uma revolução, ainda que radical mas incapaz de
purificar o “povo impuro" de uma só vez, então ele aparece como
“homem formado" no sentido que lhe confere Ozouf quando sa-
lienta que a “regeneração era para amanhã". O que está, pois,
aqui em causa são duas maneiras diferentes de representar o
“homem novo": a primeira (a regeneração instantânea que aposta
na rutura violenta), otimista, via o “homem novo" como um pro-
duto puro (sempre em contacto com o “prestígio das origens" e
por isso mesmo não degeneraria) saído da visão miraculosa da
Revolução ou, então, da graça revolucionária; a segunda (a rege-
neração “trabalhada" que aposta na continuidade e no poder de
transformação da educação), pessimista, encarava o “homem no-
vo" como um produto sempre passível de se degenerar, dado
estar exposto aos agentes do passado (1989: 145 e 146-157).
Na mesma linha, Antoine de Baecque (1988: 193-208)
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
91
também sustenta que a linguagem antropológica do século XVIII
se encontra imbuída de imagens relativas ao sonho do "homem
novo" livre e regenerado que se contrapõe ao homem antigo e
corrompido. Por seu lado, recenseia quatro cenários, durante o
ano de 1789, onde o tema do “homem novo" aparece: o primeiro
refere-se aos escritos que saúdam a abertura dos “Estados Ge-
rais"; o segundo aparece na literatura que comenta e celebra a
tomada da Bastilha; o terceiro centra-se no grande debate sobre a
Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão ; o
quarto refere-se aos panfletos de dezembro de 1789 e janeiro de
1790, que fazem uma espécie de balanço do primeiro ano da Re-
volução: “As quatro visões principais do 'homem novo', em 1789,
são simultaneamente complementares e ambíguas: o homem fu-
turo, idealizado no início do ano, torna-se o homem forte, viril,
preparado para o sacrifício em julho, ou para ser moldado por
uma educação escolhida expressa amplamente aquando do debate
sobre a Declaração dos Direitos" (1988: 202).
Constatamos, assim, que no âmbito da Revolução se desen-
volveram duas conceções de “homem novo": a primeira, filiada
na linha instantânea e otimista, apresentava o homem como ime-
diatamente regenerado; a segunda, filiada na linha da maturação
progressiva e pessimista, acreditava na regeneração progressiva
do homem mediante a educação (visa o inculcamento dos valores
e das virtudes) e a instrução (visa a trilogia do saber ler-escrever-
contar). Neste contexto, seguindo a tese avisada de Fernando
Catroga, o republicanismo portugués filia-se nesta última linha,
pois não era intenção dos seus ideólogos, ou seja da vanguarda
esclarecida do movimiento republicano (Júlio de Matos, Teófilo
Braga, Teixeira Bastos, Miguel Bombarda, Carrilho Videira,
Elias Garcia, Jacinto Nunes, Manuel Emídio Garcia, entre muitos
outros) provocar uma rutura radical, mas tão-somente regenerar a
sociedade em três direções:
1ª) opor à influencia clerical-jesuítica uma legislação anticle-
rical moldada pela mundividência científica de índole positivista
e pela moral republicana social e cívica;
2ª) opor a uma restrição de liberdades políticas a consagraç-
ão das liberdades públicas mediante uma legislação específica;
3ª) opor ao obscurantismo monárquico-clerical uma legislaç-
ão educativa innovadora e transformadora das mentalidades em
Educação, Cultura e Imaginário
92
ordem à formação do cidadão republicano (veja-se a Reforma do
Ensino de 1911, muito particularmente o seu preâmbulo). Procu-
rava-se pois consagrar “o culto da Liberdade dentro da Ordem,
como único meio de realizar o verdadeiro Progresso e a verdadei-
ra Justiça” (s.a., 1911: 179), não esquecendo a importância do
Trabalho. Deste modo, percebe-se da consagração da divisa
“ordem e trabalho” que não era a vertente da “rutura” que era
privilegiada pela grande maioria dos republicanos, mas sim a
ideia de regeneração e de ressurgimento:
Sugere-se, assim, que a revolução não foi pensada tanto como a
irrupção de uma originalidade radical na história portuguesa,
mas mais como a revivescência de uma grandeza que, pelos erros dos governantes e pela nociva influência da Igreja, há
muito havia sido interrompida. Tratava-se, por isso, de fazer
emergir uma realidade digna dos melhores momentos do nosso
passado, base historicista que fundamentava, igualmente, os limites do ideal revolucionário. E será dentro deste contexto
que se tem de interpretar o significado da promessa segundo a
qual a República iria fazer ‘revivescer’, ‘ressurgir’, ‘renascer’, ‘regenerar’ a sociedade portuguesa e fundar uma ‘Pátria Nova’
e ‘redimida’ (Catroga, 1991 (2º Vol.): 451).
Assim, o nosso republicanismo, “inseparável das ideias de
evolução, de regeneração, de redenção” (Catroga, 1991 (2º Vol.):
450), abre o caminho à formação de novos cidadãos, mediante o
ensino primário e a educação moral e cívica nas escolas primárias
(Pintassilgo, 1998), quais “homens novos”, num tempo de matu-
ração médio e longo que é o tempo natural de uma educação que
se afirma como republicana (João de Barros). Uma educação
filiada no ideário positivista, nas ideias de progresso e de perfeti-
bilidade progressiva do homem e na crença no poder da razão em
iluminar as mentes obscurecidas.
1.2 Contornos mítico-simbólicos e imaginário mítico
O tema (Raymon Trousson) do “homem novo” converte-se
em mitologema (Gilbert Durand) quando inscrito nos chamados
mitos diretores da humanidade. Ele é correlato do mito de Prome-
teu virado para um futuro anunciador de uma “humanidade nova”
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
93
emancipada de um Olimpo vigilante e opressor, e da antiga figura
mítica do andrógino, que simboliza a perfeição no estado originá-
rio, enquanto antepassado mítico da humanidade, como o
Banquete de Platão e o próprio livro do Génesis o mostra. Neste
contexto, importa realçar a solidariedade profunda que existe, em
toda a mitologia do tempo, entre um imaginário escatológico cujo
símbolo seria o da Cidade Ideal (Roger Mucchielli), de que Jeru-
salém Celeste é o paradigma na nossa civilização judaico-cristã e
a Atlântida na tradição cultural grega, e um imaginário arqueoló-
gico cujo símbolo seria o mito do Paraíso ilustrado, também na
nossa tradição judaico-cristã, pelo Éden bíblico. Por outras pala-
vras, o tema do “homem novo” recebe precisamente a sua força
mítica devido ao facto de assentar numa tensão virada para o
futuro (uma esperança de uma “humanidade nova” projetada num
futuro indeterminado e a utopia da realização do Paraíso aqui na
terra) e numa nostalgia do paraíso virada para um passado lon-
gínquo (uma espécie de Idade de Ouro de que falam Hesíodo,
Ovídio e Virgílio).
O agora exposto abre-nos uma via prometedora, visto que
nós pensamos, desde os anos 80, que o charme, diríamos mesmos
o destino, da ideia educativa do “homem novo” se deixa tanto
subsumir pela tradição sociocultural, filosófica e política (o
domínio do imaginário social), quanto pela sua “pregnância sim-
bólica” (Ernst Cassirer) cujas estruturas míticas antropogónicas
desempenham um papel importante, senão mesmo decisivo na
afirmação ideológica dessa mesma ideia (domínio do imaginário
mítico). Trata-se, pois, de uma ideia que pode ser encarada simu-
taneamente como”tema” (Raymond Trousson) e como “ideia-
imagem utópica” (Bronislaw Baczko), mesmo como mitologema
(Jung-Karl Kérenyi-Gilbert Durand), segundo as diferentes pers-
petivas hermenêuticas. Pelo nosso lado, privilegiamos antes a
noção de “ideologema”, ainda que não excluindo os aspetos dos
conceitos referidos, porque se trata de um campo semântico onde
se articulam as imagens míticas com as ideias-força do discurso e
das suas ações.
Esta noção apresenta-se como realmente heurística porque,
tratando de uma noção de interface, articula duas dimensões do
imaginário humano e, como tal, tem em conta as especificidades
de uma ideia educativa pregnante na história das ideias educati-
Educação, Cultura e Imaginário
94
vas que, no nosso caso, dá pelo nome de “homem novo”. Deste
modo, e a fim de melhor compreendermos o fascínio que esta
ideia exerce ao longo da história cultural, sociopolítica e educati-
va, constatamos que ela, apesar da sua derivação e usura que
sofre no seu decurso histórico, exprime de um modo permanente
as preocupações fundamentais da natureza humana, entre outras,
aquelas que exprimem a ideia de “integralidade”, de “mudança”,
de “novidade radical”, de “tempo novo”, de “mundo novo”, de
“novo nascimento”, de “cidade nova”, de “luz”1, etc. Em resumo,
uma preocupação que se exprime por um desejo de novidade, um
desejo de se tornar outro, um desejo, enfim, enraizado profunda-
mente na natureza humana e que Jung diria no seu “inconsciente
coletivo” ou na sua “psyché coletiva”, de modo a tornar-se uma
espécie de “homo viator” (Gabriel Marcel) em direção a um futu-
ro radioso e instalado numa Nova Jerusalém social, justa e
solidária:
A utopia, como o mito da Idade de Ouro, pensa o homem atra-vés da ordem social que o modela para o subordinar ao seu
sonho de perfeição. Os projectos da nova sociedade de que ele
actualiza a lógica totalizante e a nostalgia de uma existência
puramente colectiva atribuem à figura do homem novo uma coerência perfeita. Figura simultaneamente moderna e mítica,
ele exprime os traços impessoais de uma sociedade depois do
homem e de uma ordem mítica antes do indivíduo. Ele nega a História em que ele sublinha a imperfeição e a cultura indivi-
dualista que ele pretende ultrapassar graças ao milagre de uma
fé colectiva sem espiritualidade (Reszler, 1981: 143-144).
O « homem novo » é devedor, como já o dissemos, simulta-
neamente do imaginário social (Paul Ricœur, Bronislaw Baczko)
e o do imaginário mítico (Gilbert Durand) e, por conseguinte,
este dupla pertença faz com que ele se torne uma ideia complexa
e difícil para interpretar tanto do ponto de vista do registo mítico,
quanto do ponto de vista do registo cultural. Trata-se pois aqui de
uma figura mítica obsessiva quer da história “histórica”, quer da
história da “memória coletiva” (James Hillman) e universal da
humanidade, revestindo a forma de Novo Adão, do mito da Idade
de Ouro, e mesmo da utopia da Cidade Ideal. Em resumo, trata-se
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
95
de uma figura de esperança laicizada: “A história do homem
novo acompanha portanto, sem nunca a cruzar, a história do
homem de sempre” (Reszler, 1981: 157).
No quadro do imaginário mítico, o “homem novo” torna-se
mitologema com as suas raízes simbólicas que advêm de uma
espécie de “memória coletiva” que é sempre uma memória mítica
(Hillman, 1977: 132-142), enquanto Jung empregaria antes o
conceito de “inconsciente coletivo” e Gilbert Durand o conceito
de “inconsciente específico” para escapar à noção polémica jun-
guiana de “inconsciente coletivo”. Os mitos radicam pois numa
espécie de um fundo imemorial, que é mais um sem fundo, uni-
versal que os alimenta pelo intermédio das figuras arquetípicas
quer sob a forma de grandes símbolos primários (e nós pensamos
em Paul Ricoeur), ora revestindo a forma de deuses ou deusas
míticas enquanto universais personificados:
Essas figuras, outrora deuses providos de atributos específicos,
tornaram-se hoje arquetípicas; a criança divina, a menina per-
sonificando a anima (koré), o mago, o senex [e o puer]. […] é no mito que se descobre os arquétipos ou universais da psique
inconsciente. Os mitos são universali fantastici, dizia Giambat-
tista Vico, e eles podem modificar a ordem da imaginação.
Tornam-se os novos universais imaginais de uma psicologia arquetípica. Além disso, esses universais não são apenas meros
nomina [no original] porque o mito é um a priori dado com a
própria alma (Hillman, 1977: 148).
A este respeito, importa igualmente destacar que os mitos
onde o mitologema do “homem novo” é visível fazem parte das
chamadas estruturas antropogónicas, ou seja, aquelas que expri-
mem a criação de um ser humano que se pretende mais integral,
mais perfeito, mais completo, com exceção do mito das “primei-
ras raças” de Hesíodo em que há uma decadência ontológica.
Como exemplo de alguns mitos filiados nessas estruturas, para
além do já citado mito das “primeiras raças”, temos o caso do
mito do andrógino que encarna a totalidade, símbolo de perfei-
ção: “Criação nova, o homem novo é num primeiro momento o
homem integral, o homem antes da queda” (Reszler, 1981: 145);
Prometeu na versão de Ésquilo; e o mito de Deucalião e Pirra. A
Educação, Cultura e Imaginário
96
este respeito, também podemos referir o mito da Idade de Ouro
que representa simultaneamente o arquétipo da harmonia vivida e
a natureza originária do homem, visto que se trata de uma nova
criação, mesmo radical, de um homem novo: “Poder-se-á pergun-
tar, com efeito, como o homem actual – o homem decadente
fragmentário e desumanizado – seria capaz de pensar o homem
integral do futuro se do transfundo da sua memória não surgisse a
imagem de um ser primordial vivendo no seio de uma comunida-
de harmoniosa” (1981: 143).
Do exposto, reteremos os mitos de Prometeu e do Andrógino
por serem aqueles que, ainda que de uma forma degradada, ou
seja latente, diríamos mesmo dramaticamente latente, espreitam,
ao nível de algumas das suas características, nos interstícios do
ideologema do “homem novo” presente nos textos pedagógicos
de João de Barros. Neste contexto, importa pois realçar:
- a figura mítica de Prometeu2
encarna o espírito das Lu-
zes, não só porque consagra o poder do homem face aos
deuses, como também simboliza o progressismo mo-
derno com a ideia de Perfetibilidade — modificação
secularizada da ideia cristã de perfeição — que lhe está
associada. Assim, a antropología iluminista, ao aceitar
como um dos seus pressupostos principais que o ser
humano é um ente infinitamente perfetível, depositava
no par instrução-educação uma tal esperança que acre-
ditava que esse mesmo par fosse capaz de abolir a
supremacia dos deuses (leia-se também Ancien Régime
, ignorância obscurantista, tirania, desigualdades so-
ciais,...) e que, no seu lugar, surgiria um “homem
novo", uma espécie de “super-homem" autodivinizado
dotado de todas aquelas qualidades que tornaram possí-
vel a vida na terra;
- a figura mítica do andrógino3 reenvía para as caracterís-
ticas de plenitude, de completude e de integralidade
bem presentes no ideologema do “homem novo”, pois o
cidadão que a tradição jacobina visava formar era real-
mente um “homem novo” completo ou integral,
produto, por sua vez, de uma educação geral e integral.
A formação deste tipo de “homem novo” é correlata da
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
97
crença de que o ser humano não pode deixar de ser per-
fetível (Rousseau, Lessing, Condorcet), bem como da
ideia de “homem regenerado” (Mona Ozouf). Deste
modo, o “homem novo” é já um “homem total” e, como
tal, aponta, desde logo, para o tema do “homem pri-
mordial”. Assim, este cruzamento conduz-nos ao mito
da androginia humana que é uma expressão da totalida-
de (coincidencia dos contrários), de autonomía e de
força, enfim é manifestamente o símbolo da perfeição
das origens e de um estado primordial não condiciona-
do.
Cremos que não se trata de uma simples coincidência que
este mitologema apareça nos grandes mitos diretores ou fundado-
res do imaginário mítico da humanidade. Ele traz em si uma aura
e um brilho de tal modo irradiantes que ele, por um lado, afirma-
se incontornável e recorrente no imaginário social e, por outro
lado, como um ideologema tal como nós o havemos concebido:
ou seja como uma representação semântica pregnante e mobiliza-
dora de crenças e de afetos que articula, ao nível do imaginário
sociocultural, as dimensões ideológica (as ideias-força), utópica
(as ideias-imagem) e mítica (mitos, mitologemas, estruturas míti-
cas). Por intermédio do ideologema nós estamos melhor
colocados para compreender a relação ideologia-mito no domínio
da educação onde os traços míticos aparecem frequentemente
degradados porque latentes em virtude de estarem longe da rique-
za semântica do sentido figurado (Sironneau, 2005: 183-192). A
este respeito, Jean-Pierre Sironneau salienta que as ideologías
políticas - ele refere as do nacional-socialismo e do comunismo
onde se pode também acrescentar a ideología republicana - po-
dem ser encaradas como um sucedâneo das atitudes e dos
comportamentos religiosos tradicionais. Nesta linha, Mona Ozouf
fala de “religiões revolucionárias”, Raymon Aron fala de “religi-
ões seculares”, e Sironneau fala de “religiões políticas” para
designar
os ‘equivalentes funcionais’ das religiões explicáveis por um processo de deslocação e de perversão do sagrado próprio da
nossa modernidade. […] a ideología política tende a substituir
as antigas visões do mundo que eram de natureza religiosa. Em
Educação, Cultura e Imaginário
98
resumo, a política usurpa as funções e os papeis que eram es-
pecíficamente religiosos; ela torna-se política da salvação e,
como tal, revolucionária; porque a salvação não é mais orienta-da para um além, mas para uma transformação da sociedade
terrestre, para a instauração, depois da transformação do mundo
presente, de um mundo novo de justiça e de felicidade; o con-
ceito de ‘religião política’ designa portanto a transferência de um certo número de aspirações, de desejos, de comportamentos
da esfera religiosa para a esfera política (1990: 125-126).
De acordo com este último autor, as ideologías políticas mo-
dernas de um modo ou de outro abrigam uma estrutura
milenarista, a qual polariza de modo incontornável o imaginário
social. O cenário milenarista, que é comum a todos os movimen-
tos escatológicos, caracteriza-se por um estado de pureza e de
perfeição originais (estado paradisíaco) seguido de um estado de
decadencia ou de degenerescência (queda, perda, caos original)
caracterizado por toda a espécie de confrontos e conflitos, o qual
pode ser suspenso, poque se acredita que um estado semelhante
não pode durar sempre, pela chegada de um Messias, Rei, Herói,
Salvador, ou mesmo de um chefe político, para establecer, me-
diante uma rutura mais ou menos violenta, uma espécie de reino
de Deus sobre a terra, uma nova Idade do Ouro, enfim establecer
de novo um reino milenário (a Terra sem mal ou a Terra prome-
tida). O cenário milenarista traz consigo a ideia de um “homem
novo” num “mundo novo” imaculado dos pecados das injustiças,
violências e iniquidades próprias de um “mundo velho” decaden-
te e insensato. O seu sucesso, e o seu poder de atração, resulta da
conjugação de duas estruturas míticas da temporalidade (“prestí-
gio das origens” - mitos cosmogónicos), de que o mito da Idade
do Ouro e o mito do Paraíso são meras modalidades, com a estru-
tura mítica do “fim dos tempos” (mitos escatológicos) em que se
espera um mundo perfeito num futuro mais ou menos longínquo.
Em resumo, todo o milenarismo não representa um começo ab-
soluto radical, mas também sob um certo prisma não deixa de ser
começo, visto que ele é também recomeço em virtude de apelar,
sob a influencia da “nostalgia do Paraíso” (Mircea Eliade), para a
restauração da pureza original. O cenário agora descrito, lembra
Jean-Pierre Sironneau, é passível também de se encontrar em
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
99
muitas ideologías: “na origem teria existido um estado de harmo-
nia, brevemente seguido por um estado de degenerescência feito
de violências e de injustiças, mas este estado conhecerá um fim:
uma revolução violenta debe intervir e restaurará a harmonia per-
dida” (2005: 188, 183-192)
Tendo em conta o exposto, podemos agora questionar-nos
sobre o tipo de imaginário mítico que corre nas veias do “homem
novo”, ainda que sob a forma de cidadão, presente na obra peda-
gógica de João de Barros
2. O « cidadão republicano » de João de Barros no cru-
zamento dos imaginários social e mítico
O ideal de um cidadão português republicano (racional,
livre, anticlerical, democrático…), à semelhança do sonho revo-
lucionário francês da criação do “homem novo” surgido na era
revolucionária de setecentos, é habitado pelo “mítico original” e
pelas “experiências do segundo nascimento” (Ozouf, 1989: 117,
1988: 821). Este segundo nascimento tinha a ver, como se sabe,
com o “homem regenerado”, que não é outra coisa que o “homem
integral”, a formação de um cidadão perfeito almejado pela
demopedia republicana. Esta visava então a formação de um
cidadão completo, dos pontos de vista físico, moral e cognitivo,
que contribuísse para a construção de um “Portugal Novo”, de
uma “Pátria Nova”, enfim de uma “Nova Era” inaugurada pela
“Bendita Revolução” republicana. Resumindo, esperava-se que
ele operasse uma espécie de milagre de construir uma “sociedade
nova”:
Para regenerar a nação, a educação nova deve apodera-se do homem integral, tanto do homem físico como do homem moral.
A finalidade da educação é dupla: por um lado, por assim dizer,
técnica, por outro lado moral. É preciso ensinar o povo a ler, a
escrever e a contar. Mas é preciso sobretudo que a educação nova forme novos costumes, que ela produza verdadeiros repu-
blicanos (Baczko, 1980: 99).
O novo cidadão formado pela ideia-imagem utópica das
Luzes da integralidade versus totalidade, ocupa um lugar de elei-
Educação, Cultura e Imaginário
100
ção na Cidade regenerada resgatado ao obscurantismo monárqui-
co e jesuítico pela instrução e pela educação: “as pedagogias das
Luzes veiculam o sonho de produzir homens novos, livres enfim
de preconceitos, aperfeiçoados à medida do seu tempo, modela-
dos por uma educação que disporia de capacidades formadoras
quase ilimitadas” (1980: 91). Este sonho tinha, portanto, em vista
regenerar física e moralmente o futuro republicano para que se
assumisse como um ser livre de preconceitos religiosos e ator
privilegiado da Cidade utópica porque forte, trabalhador, disci-
plinado. Mas para que este ser emergisse tornava-se necessário
destruir o passado e inventar o futuro e neste ato de invenção
cabia aos novos formadores, aos novos professores, uma grande
parte da tarefa, a de formar “homens novos”, o que já pressupu-
nha a resolução de um problema prévio, o da sua própria
formação.
A formação de um “homem novo” para um “Portugal Novo”
(António, 1910: 1), que viesse habitar o “tão anunciado e tão pre-
ciso Portugal novo” (Barros: s.d. – 1914?: 125), numa “nova era”
(Junior (?), 1910: 1) e para a “glória da Pátria nova” (Barros,
1914: 17), preocupou quer os ideólogos e políticos republicanos,
quer os pedagogos republicanos, que com os seus textos, com a
sua ação doutrinadora, com a sua prática pedagógica não cessa-
ram de contribuir para a formação de um novo cidadão que o
regime republicano se propõe formar mediante a instrução e a
educação: iluminando a primeira a inteligência e a segunda for-
mando o caráter. A este respeito, veja-se, por exemplo, o discurso
de António José d’Almeida na Câmara dos Deputados em 1907,
onde aproveitou para desferir um golpe contra o obscurantismo
monárquico, para referir que com a “República e com a Liberda-
de está sempre a instrução”, tendo também afirmado que a
criação duma “Pátria Nova” (1907: 259), livre e redimida das
trevas da ignorância monárquica, depende da educação do povo
mediante uma sólida instrução, pois sem ela a educação moral
não tem lugar, porquanto “ a instrução das primeiras letras, indis-
pensável e fundamental é, portanto, a base da arquitectura moral
do homem” (1907: 262).
Os partidários republicanos, fossem eles ideólogos, políticos
ou pedagogos, acreditavam que a formação de novos cidadãos
exigiria necessariamente um processo demopédico (o par instru-
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
101
ção-educação) de “longa duração”, pois só assim, mediante um
exercício educativo de paciência enquadrado por uma “Escola
Nova”, é que se poderiam transformar os cidadãos “impuros” em
cidadãos republicanos e patriotas exemplares, além de conscien-
tes dos seus direitos e deveres numa “Pátria Nova”, numa “Pátria
Livre”, enfim num “Portugal Novo”.
Foi, pois, com este intuito que o programa federalista de
1886, continuado neste aspeto pelo último programa oficial do
Partido Republicano elaborado em 1891, sublinha a necessidade
do “ensino elementar obrigatório, secular e gratuito”, da demo-
cratização e laicização da escola, bem como da consolidação das
liberdades essenciais (Catroga, 1988 (1º): 394-95). Não admira
que esta estratégia de secularização fosse apoiada e continuada
pelos teóricos mais representativos do republicanismo, entre os
quais, Manuel Emídio Garcia (1880, 1881), Teixeira Bastos
(1879, 1880, 1892) e Teófilo Braga (1879; 1880-81, 1882), não
esquecendo as Orações de Sapiência de Bernardino Machado
(1904), de José de Mattos Sobral Cid (1907) e de Sidónio Pais
(1908). Não podemos também esquecer os esforços da Liga
Nacional de Instrução - aparecida em 1907, e influenciada pela
Ligue d’Enseignement de Jean Macée (1886), com os seus prin-
cípios de obrigatoriedade e gratuitidade, apoiada por Borges
Grainha, Consiglieri Pedroso, Tomás Cabreira e Rui Teles - ten-
do como objetivos principais o combate ao analfabetismo, a
criação de uma verdadeira educação cívica e social e a renovação
da pátria, dando-lhe uma “alma nova” por intermédio da instru-
ção e da educação (Liga Nacional de Instrução Primária e
Popular, 1909a: III-IV). Devemos lembrar também o papel
importante da Associação das Escolas Móveis pelo Método de
João de Deus fundada por Casimiro Freire (1882): “Secularizar a
sociedade e secularizar a escola é tudo um e o mesmo problema”
(Machado, 1983 [1904]: 14). O efeito secularizador alcançava-se
por uma estratégia multifacetada que passava, como já vimos,
pelo combate ao analfabetismo, e pela instauração de educação
moral, cívica e patriótica em ordem à renovação de uma Pátria
decadente, dando-lhe uma “alma nova” por intermédio da instru-
ção e da educação (Catroga, 1991 (2º Vol.): 379-440). A este
respeito, julgamos elucidativo referir um extrato do relatório
apresentado ao Congresso de 1908 por Borges Grainha, o qual,
Educação, Cultura e Imaginário
102
na nossa opinião, sintetiza bem o espírito da Liga Nacional de
Instrução:
Daqui se conclui que, sendo este espírito (o espírito jesuítico-
inquisitorial) que a pseudo Companhia de Jesus e o falso Santo Ofício, mancomunados, nos inocularam uma causa inicial e
fundamental do nosso atraso intelectual e, portanto, do nosso
analfabetismo, um dos meios de remover este será fazer todos os esforços por expungir aquele, incutindo nas gerações novas
um espírito de crítica e investigação e do civismo independente
e nobre… Ou nos instruímos ou morremos como nação. É urgente e patriótico que se capacitem bem destas ideias todos
os portugueses desde os da mais alta magistratura ao da mais
baixa categoria social” (1909: 8).
Todos estes autores depositavam uma crença intangível nos
Progressos do Espírito Humano, para utilizarmos um título
emblemático de Teixeira Bastos, e, por extensão, no inevitável
progresso social e moral realizado pelo advento do regime repu-
blicano devedor quer dos postulados da antropologia iluminista,
quer da capacidade redentora e transformadora do par instrução-
educação enquanto agente do progresso e de perfetibilidade do
“Novo Portugal”, da “Nova Pátria” a construir. Daí que uma das
primeiras preocupações dos republicanos foi terem criado legisla-
ção atinente à "coisa educativa" logo nos primeiros anos, da qual
destacamos o decreto de 24 de outubro de 1910 que extingue a
doutrina cristã nas escolas primárias e normais primárias - ao
qual vai estar ligado o debate na Constituinte sobre a problemáti-
ca do ensino neutro e do ensino laico que ocupou a sessão n° 31
de 26 de julho de 1911 (Debate, 1911. cols. 15-17 e 23-24 e
Catroga, 1991 (2°): Cap. IV da II Parte e Cap. 1 da III parte) -, o
decreto de 20 de abril de 1911 em que consagra a separação da
Igreja e do Estado; a importante Reforma de 29 de março de 1911
consagrada ao Ensino Infantil, Primário, Normal, para já não
falar dos textos legais produzidos relativos aos outros graus de
ensino (secundário, profissional, artístico, educação física e supe-
rior).
Dos textos citados, interessa-nos sobretudo, pelo seu valor
doutrinário naquilo que diz respeito à formação do "homem
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
103
novo", o referente à Reforma do Ensino Infantil, Primário e
Normal de 1911, bem como a Reforma do Ensino Industrial e
Comercial de 1918. No preâmbulo da Reforma de 1911 sobres-
saem as teses e as preocupações republicanas face às questões
educativas que Fernando Catroga sintetiza do seguinte modo:
a educação e ensino republicanos tinham por objecto não só a
razão, mas também os sentimentos e o próprio corpo. Isto é,
para regenerar a sociedade e refundar o Estado-Nação, a nova educação teria de incidir sobre todas as facetas da personalida-
de humana, disciplinando tanto o corpo — pelos exercícios
físicos, jogos e higiene —, como a racionalidade — pela ins-
trução prática e teórica —, e a moralidade, mediante o fomento dos sentimentos de altruísmo e de solidariedade colectiva"
(1991 (2° vol.): 457).
Não deixa, aliás, de ser sintomática a frase de abertura com
que o texto da Reforma se inicia: "O homem vale, sobretudo, pela
educação que possui, porque só ela é capaz de desenvolver har-
monicamente as suas faculdades, de maneira a elevarem-se-lhe ao
máximo em proveito dele e dos outros" (Reforma, 1911: 3). É-o,
na medida em que evidencia até que ponto os nossos republica-
nos, de acordo com um dos principais postulados da antropologia
iluminista de que o ser humano é um ente infinitamente perfetí-
vel, acreditavam no poder transformador da escola e, por
conseguinte, no milagre que a aprendizagem do alfabeto e a prá-
tica das virtudes cívicas operariam junto das "novas gerações":
"saber ler; conhecer de maneira elementar, ao menos, esse alfabe-
to maravilhoso, onde se estratifica a notícia dos acontecimentos e
se agita a opinião dos homens". Os principais objetivos que os
seus autores tinham em mente eram, entre outros, os de combater
o analfabetismo, a afirmação da neutralidade da escola face à
religião com a criação de uma nova moral solidária nacionaliza-
dora e patriótica, a escolarização obrigatória e gratuita das
crianças e a formação e estatuto dos professores. Nas palavras de
Rómulo de Carvalho, os republicanos concentraram os seus
esforços e atenção nos problemas crónicos do nosso ensino: "o
analfabetismo, o insuficiente número de escolas primárias, a defi-
ciente preparação pedagógica e científica dos professores desse
Educação, Cultura e Imaginário
104
mesmo grau de ensino e a sua mísera situação económica" (1986:
656; Sampaio, 1975: 10-19; Bárbara, 1979: 95-115; Nóvoa,
1987: 533 e seg(s) e 1988: 29-60).
Ainda que em muitos dos seus aspetos tenha sido uma conti-
nuação da Reforma de 1901, a Reforma de 1911 permite-nos
idealizar que tipo de cidadão a escola republicana, qual "oficina
em que se fabrica o cidadão" na feliz expressão de César da Sil-
va, tinha intenção de construir:
Portugal precisa de fazer cidadãos, essa matéria-prima de todas
as pátrias. [...] Portugal só pode ser forte e altivo no dia em que, por todos os pontos do seu território, pulule uma colmeia
humana, laboriosa e pacífica, no equilíbrio conjugado da força
dos seus músculos, da seiva do seu cérebro e dos preceitos da sua moral (Reforma, 1911: 3).
Na escola primária devia-se "formar a alma da pátria repu-
blicana" de acordo com a mundividência laica republicana, com a
sua moral social e com a sua educação moral, cívica e patriótica.
Por isso, o ensino nas escolas públicas deve ser neutro de acordo
com o espírito da própria Reforma, ainda que João de Barros
tivesse preferido o termo laico (1914: 19-30):
A religião foi banida da escola. Quem quiser que a dê á criança
no recanto do lar […]. A moral das escolas, depois que a Repú-blica se fundou, só tem por base os preceitos que regulam a
justiça entre os homens e a dignidade dos cidadãos […] A esco-
la vai ser neutra. Nem a favor de Deus, nem contra Deus. Dela
se banirão todas as religiões, menos a religião do dever, que será o culto eterno desta nova igreja cívica do Povo (Reforma,
1911: 4).
Porém, para que esta "religião do dever" fosse concretizada,
tornava-se indispensável a participação ativa e empenhada dos
professores, porquanto na "escola primária não se ministra apenas
educação, pelo facto de se facultar a sua base essencial: a instru-
ção. Ministra-se também educação directamente, nas suas
consequências e resultados, fornecendo à criança, pela prelecção,
pelo conselho e pelo exemplo, as noções morais do carácter".
Numa palavra, deles dependia a nobre tarefa, na qualidade de
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
105
"guias supremos da consciência dos povos", do ensino do "abe"
como "fundamento lógico do carácter" das futuras gerações
racionalistas laicas e anticlericais, "homens novos" de um "Por-
tugal Novo", ou de uma "Pátria Nova". Compreende-se, assim,
que o legislador tenha exigido que "o professor seja competente e
cumpra rigorosamente os seus deveres “e que não se receie que
“entre o que ele prega e o que ele faz, o aluno possa descobrir
desconexão ou incoerência” (1911: 4).
A missão evangelizadora, por parte dos novos apóstolos, não
podia esquecer nem que a República "libertou a criança portu-
guesa, subtraindo-a à influência jesuítica" e que a quer
"emancipar definitivamente de todos os falsos dogmas, sejam os
de moral ou de ciência, para que o seu espírito floresça na auto-
nomia regrada que é a força das civilizações", nem que "todo o
português, da geração que começa" seja "um patriota e um cida-
dão" e para isso o futuro cidadão só seria republicano, logo um
"homem novo", se fosse patriota: "ao terminar o seu curso obri-
gatório, — lê-se no preâmbulo da Reforma de 1911 — o jovem
português amará, dum amor consciente e raciocinado, a região
onde nasceu, pátria em que vive, a humanidade a que pertence"
(1911: 3).
Os mesmos valores e objetivos se nos deparam na Reforma
do Ensino Industrial e Comercial de 1918, essencial também para
melhor percebermos o figurino do "homem novo" (Catroga, 1991
(2º Vol.): 449-464) forjado pela mundividência republicana. No
relatório que antecede o articulado pode ler-se o seguinte:
O valor dum povo, o seguro caminhar na senda do progresso, a intensa vibração de patriotismo, a harmonia de intuitos capaz
de conduzir à finalidade histórica duma raça, têm uma e só ori-
gem, um e só fundamento, imutável através dos tempos,
constante em todas as civilizações: o ensino. Transformar a massa ignara da plebe, a alma desvairada da multidão, as pai-
xões denegrindo incultas glebas, criando homens conscientes
do seu fim social, fazendo nascer sentimentos orientados na conquista do bem comum, e descobrir os belos campos onde
floresce a cultura, são esses os escopos da política: o direito e o
progresso... O progresso tem a sua origem no cidadão e na comunidade. O cidadão vale tanto mais quanto melhor apresta-
do se encontra para a luta pela vida, isto é, quanto maior for o
Educação, Cultura e Imaginário
106
grau do seu desenvolvimento profissional e quanto mais sólida
for a sua disciplina social" (Reforma, 1918: 2067).
O apelo ao patriotismo, ao amor da terra, ao orgulho da raça
e ao enaltecimento das glórias passadas, é uma constante, ao lon-
go do relatório, como se verifica com a passagem que se segue:
De toda a parte se levanta o clamor de que é preciso edificar
um Portugal novo, um Portugal que represente no futuro um
papel digno dos brilhantes feitos do nosso passado. A força da tradição dia a dia se demonstra por factos evidentes; a onda de
sentimento, de amor pela nossa terra, e o mais acendrado
patriotismo a todos abrasa no comum desejo e no comum sen-tir, de que é forçoso enveredar por caminhos que conduzam
adias de maior prosperidade […] É preciso ser-se patriota e não
se pode ser patriota sem amor à tradição" (1918: 2068-69).
Neste sentido o relatório atribui importância ao sentimento
mediado pela arte, pela crença e pelo patriotismo, o qual, para ser
conhecido, carecia da figura do mestre, na qualidade de arauto do
ensino e de "apóstolo da religião social" (1918: 2067). A este
respeito, António Nóvoa salienta em A República e a Escola, Das
Intenções Generosas ao Desengano das Realidades (1988: 29-60)
– que se ouvia por todo o lado (desde a classe política aos peda-
gogos, passando pela Liga Nacional de Instrução e Revistas
Escolares) glorificar o professor primário enquanto "obreiro do
futuro", "apóstolo", "sacerdote do ensino", "evangelizador",
"árbitro dos destinos morais da Pátria", dada a sua importância na
formação de cidadãos imbuídos de um "espírito novo, livre e
democrático". Podemos, pois, afirmar que havia uma forte con-
sonância de opiniões dos mais variados quadrantes sobre a falta
que o professor primário, na qualidade de “obreiro da civiliza-
ção” (Oliveira, 1913: 145) fazia à Pátria:
Mas para que essa reforma seja proveitosa e fecunda, preciso é que um exército, levando por arma a sabedoria, a dedicação, o
amor pelos pequeninos e o espírito de sacrifício pela pátria que
nele confia, saiba lutar e combater, destruir e construir, rasgar a sombra e erguer nas mãos puríssimas a hóstia bendita da ins-
trução […] Preciso é que o mestre-escola, convencido de que a
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
107
pátria só dele depende porque só ele forma cidadãos livres, cor-
responda ao afecto com que a república vai tratá-lo, velando
pelo futuro dessa mesma República, fortalecendo-a com gera-ções conscientes e educadas" (s.a., 1911a: 165).
Esta visão do professor como "sacerdote", "guia supremo da
consciência dos povos", "apóstolo" laico da Escola, enquanto
"igreja cívica do povo", reflete a crença muito partilhada pelos
nossos republicanos que viam no professor um modelo de virtu-
des cívicas conforme apontava o decreto que extinguiu o ensino
da doutrina cristã ao salientar que "o ensino moral nas escolas
primárias e normais primárias" passava a ser feito "sem auxílio do
livro, intuitivamente, pelo exemplo da compostura, bondade e
método de trabalho do professor" (Extinção, 1910: 153). É, por-
tanto, sobre estes formadores ideais que recai o "dever
sacratíssimo" de formar os futuros cidadão republicanos dotados
de uma forte e profunda consciência para que, na opinião de uma
das revistas mais influentes da época, "dêem honra e renome
imortal à pátria sagrada da República, a Portugal, enfim" (Júnior
(?), 1910: 1).
2.1 O imaginário social do “cidadão republicano”
Se a tradição iluminista francesa, nomeadamente a sua ver-
tente educacional (e pensamos, por exemplo, em Condorcet)
influenciou o pensamento pedagógico republicano português
(1870-1926), não é de estranhar que os textos de João de Barros,
como um dos seus representantes mais significativos, também
reflitam essa mesma influência. Por outras palavras, o ideal de
cidadania, agora proposto, é fruto dos intensos debates ideo-
pedagógicos travados ao longo desse "tempo quente" que foi o
período republicano, prenhe, como o disse António Nóvoa, de
intenções generosas, ainda que tenha terminado num amargo
desengano (1988: 29-60).
Não admira que os escritos pedagógicos e João de Barros
(2004a) tivessem funcionado como uma espécie de arautos e de
guias para uma revolução pedagógica republicana orientada pelos
critérios nacionalista e patriótico: "As nossas tradições são admi-
ráveis. O nosso povo é corajoso, honesto e trabalhador. Nada nos
Educação, Cultura e Imaginário
108
falta para realizarmos aqui um tipo perfeito de cidadão. Mas fique
desde hoje consignado que ele exige e reclama o esforço de nós
todos, e o mais fervoroso, ardente e sincero culto pela Pátria!"
(1979: 42). Mas a formação de um "novo tipo de cidadão" (1919:
741) só se faz na longa duração da "demopedia republicana"
(Catroga, 1991 (2º Vol.): 377-464), o que pressupõe já uma
"escola laica" e uma "educação moral, cívica e patriótica" que
seja complementar da primeira: a primeira ensina o alfabeto e
treina o intelecto, enquanto a segunda forma o caráter nas virtu-
des republicanas (Barros, 1979: 24-29).
Quanto ao ensino do alfabeto, João de Barros, desde a pri-
meira hora, insistiu, em conferências, intervenções e escritos,
para a necessidade imperiosa da República lutar contra o flagelo
do analfabetismo e, para o debelar, o pedagogo contava com o
papel chave do ensino primário, encarado como
ensino fundamental para todos os cidadãos, a sua carta de guia,
aquele de que todos os homens carecem para obter o direito de
cidade, o direito de colaborar na vida pública do país – pois lhes fornece a habilitação literária e científica absolutamente
indispensáveis ao exercício consciente dessa actividade (1911a:
IV).
Este ensino tinha dois objetivos. O primeiro era fornecer aos
educandos uma primeira base de cultura, identificada com o saber
ler, escrever e contar: "Sem ela [a instrução] não há um homem
que se possa considerar completo. E não há, por conseguinte, o
homem completo do mundo moderno – isto é, o cidadão!" (1979:
25-26). O segundo objetivo era preparar a criança – o futuro
"cidadão duma democracia" (1922: 1), o "super-homem da demo-
cracia" (1919: 734) – para um "trabalho digno, que
definitivamente o sagre cidadão, com a posse perfeita duma pro-
fissão, dum ofício" (s.d. (1914?): 113). Por outras palavras, a fim
de diminuir o analfabetismo, o pedagogo contava com a ação da
Escola Primária. A ela competia fornecer aos educandos uma
primeira base de cultura identificada com o saber ler, escrever e
contar e uma revigorização dos corpos e dos espíritos mediante as
educações física e do raciocínio.
Para atingir estes objetivos, João de Barros preconiza o uso
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
109
da Cartilha Maternal de João de Deus. Esta defesa reside no fac-
to do seu método, ou a arte de leitura proposto, por um lado, ser
orientado por critérios nacionalizadores adaptados à raça portu-
guesa, e, por outro, assentar numa base intuitiva defendida pelos
pedagogos da época: “Eu não duvido em afirmar que aprender
pelo seu método de leitura, é para a criança, um motivo de não
ser triste. É não ser brutalizada, violentada na sua evolução men-
tal" (Barros, s.d. (1914?): 137; 1911: 91-113). Ainda que pense
que o ensino da leitura e da escrita seja apenas um meio e não um
fim, João de Barros sublinha, contudo, que aqueles que "desejam
criar uma educação geral, integral... crêem que o melhor auxiliar
para ela é, por enquanto, o saber ler e escrever" (1911: 237). Por
isso, não é de estranhar que tenha proposto em 1910, aquando da
sua passagem pela Direção Geral de Instrução Primária, ao então
Ministro do Interior António José d'Almeida, um "professor
móvel por cada concelho", assim como "bibliotecas ambulantes"
que são como uma espécie de guardiãs do ensino desse tipo de
professores: "as guardas fieis da semente que eles lançaram nos
cérebros incultos dos educandos". No entanto, para que o quadro
fique completo, João de Barros acrescenta as "conferências ins-
trutivas que o mestre pode e deve fazer; conferências que deverão
ter sobretudo como fim ensinar a compreender melhor a vida
ambiente e a melhor aproveitá-la" (s.d. (1914?): 113-114). Assim
se compreende o grande elogio que lhe merece o sistema de
Escolas Móveis pelo Método João de Deus e, consequentemente,
os seus professores, na sua qualidade de "apóstolos" porque,
segundo ele, "são afáveis, discretos e quase sempre sem fortuna...
mas basta o evangelho da Cartilha Maternal para que um mesmo
credo os irmane e um mesmo ideal os guie” (Barros, 1911: 117-
130). Porém, isso não chega, visto que para ele a importância de
aprender a ler só se compreende se devidamente incentivada e
apoiada, isto é, acompanhada pela ação das Bibliotecas Populares
Móveis, porquanto o povo "não só precisa de saber ler, como ter
que ler" (1911: 128). Como se depreende do exposto; o ensino
primário foi, como não podia deixar de ser num país de maioria
analfabeta, a grande cruzada e aposta de João de Barros, porquan-
to ele é a condição necessária para uma educação cívica: “De
resto, para que o sentimento cívico se torne uma realidade, um
dos mais importantes factores é, sem dúvida alguma, o respeito e
Educação, Cultura e Imaginário
110
a paixão pela língua pátria. Como obtê-lo, sem saber ler e escre-
ver?” (1979: 26).
Embora o ensino primário constituísse a sua prioridade e o
seu centro de interesse, tal não significava que o ensino infantil e
o profissional não lhe fossem igualmente queridos. A prova está
no grande elogio, por si feito, ao modelo de Jardim-Escola de
João de Deus Ramos que ele reconhece como sendo de uma
grande ajuda para minorar, senão mesmo para resolver, os mais "angustiosos problemas das democracias
" que ele identificou com
a imperiosa necessidade de “preparar para o trabalho, para a dis-
ciplina social, para a cultura do espírito, as crianças do povo,
futuros cidadãos, futuros trabalhadores, futuros homens de ener-
gia, de pensamento e de patriotismo" (Barros, 1919: 738, 1933:
3-21). Quanto ao ensino profissional, de que a Escola-Oficina n°
1 é o modelo a seguir, não só visava tornar um cidadão útil, forta-
lecer a consciência do trabalho, a capacidade de realização ou de
iniciativa, como é igualmente indispensável "para formar e forta-
lecer o sentimento cívico" (s.d. (1914?): 102), em ordem a incutir
no futuro trabalhador um "patriotismo de acção" (1979: 32): "A
escola primária de hoje, aquela que nós organizámos segundo o
ideal entrevisto pela Revolução, essa pequena escola será, desde a
primeira hora, profissional" (1979: 31 e 30-34, s.d. (1914?): 147-
157 e 97-105).
O autor considerava estes níveis de ensino – o infantil, o
primário e o profissional elos fundamentais para a construção de
uma República que, por um lado, ansiava e precisava de formar
"bons patriotas", "futuros e bons cidadãos" para uma República e
que, por outro, necessitava que as crianças aprendessem "a ser
cidadãos úteis, consciências fortes, inteligências sadias" (s.d.
(1914?): 121-187). No entanto, a Escola republicana, para atingir
esta finalidade, não podia esquecer a formação dos professores e
a sua lealdade aos princípios ideo-políticos e educativos do novo
regime, daí ser importante que os atores educativos compreen-
dessem a importância das virtudes cívicas, "os sentimentos de
ternura e de afeição pelo progresso e pela beleza da sua pátria, tão
absolutamente necessários para formar cidadãos" (Barros, s.d.
(1914?): 26).
Quanto à "educação moral, cívica e patriótica
", ela é outra
face da cruzada do pedagogo republicano, pois visa incutir nas
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
111
"gerações novas" os novos valores republicanos e laicos, tais
como os do "patriotismo", do "trabalho", da "energia", do "cará-
ter", do "amor à humanidade", da "crença no progresso", além do
"culto da árvore", aliás intimamente ligado ao "culto da bandeira
e do hino", e o culto dos "grandes homens" de que Luís de
Camões é exemplo (Braga, 1880: 1-9; Catroga, 1991 (1º Vol.):
44-46; Santos, 1932: 261-336):
Educação laica – educação para todo o povo, para todos os
crentes de todas as religiões, para todos os fiéis de todos os cul-
tos, para todos os espíritos e para todas as almas, pondo acima das suas divergências de fé uma fé maior na realização dum
ideal superior: - o orgulho, que ao homem deve ser dado, da
sua própria humanidade (Barros, 1914: 24).
A educação na Escola Primária tem de ser laica, afirma-o
claramente João de Barros, pois só a ela lhe cabe "formar uma
alma, preparar uma inteligência, orientar uma consciência"
(1914: 22). Por outras palavras, a educação laica, uma delimita-
ção do termo neutro, visa “criar a consciência de amanhã, a força
e a tranquilidade do Porvir, e a glória de Pátria Nova, dignificada
pela República!" (1914: 17), ou seja, visa formar o caráter das
"novas gerações" que terá na "moral da energia" o seu fundamen-
to mais sólido: esta moral é definida como aquela que tem por
"base o esforço, a acção, o trabalho, a realização das nossas ideias
e dos nossos desejos pelo aproveitamento e intensificação das
nossas faculdades" (1979: 26, s.d. (1914?): 48). O que o autor
pretende com esta moral é que as crianças do Portugal republica-
no fortaleçam a sua vontade, isto é, possuam “uma energia
persistente e nobre" (1979: 27), para fazerem face aos grandes
desafios de criar uma "Pátria Nova". Contudo, a "moral da ener-
gia" para se enraizar na alma coletiva do "Portugal Novo" carece
de uma prática pedagógica que “abrangerá a cultura de todas as
modalidades do organismo humano" (1979: 28): a inteligência, a
sensibilidade, que segundo Barros é a "base primordial de todas
as morais", e a educação física. Vemos, assim, que a "moral da
energia", que visa, como já dissemos, desenvolver na criança
portuguesa a qualidade da "vontade, a energia consciente e tenaz"
(1979: 28), se quiser alcançar o seu objetivo não pode deixar de
Educação, Cultura e Imaginário
112
apoiar-se quer na educação intelectual, quer na educação da sen-
sibilidade.
A "moral da energia" é uma moral cívica e patriótica que
procura inocular nas consciências das "novas gerações” o respeito
pela lei e a noção de igualdade, pois sem a introjeção desses sen-
timentos cívicos "nenhum homem poderá afirmar que é um bom
cidadão" (1979: 30). A estes sentimentos acrescentem-se os
patrióticos, alicerçados no "respeito e amor da língua pátria"
(1916: 72), que não esquecem a arte e a beleza da terra pátria
(1979: 35-36). Por isso é que João de Barros defende uma "forte
educação patriótica" (1979: 37), intimamente ligada ao ensino de
solidariedade ("essa grande virtude das democracias" – 1979: 35),
e identificada como de "educação nacionalizadora" (1979: 36-
39). Vemos, assim, que a figura do "cidadão republicano" de Bar-
ros vai paulatinamente adquirindo forma através de uma
"educação integral", que se reclamava dos princípios da higiene
do corpo e da higiene da alma ou do espírito, para formar um
cidadão com uma mens sana in corpore sano. Se a higiene do
corpo visa o equilíbrio orgânico deste dotando o "futuro cidadão"
de músculos, de nervos e de sangue, já a higiene espiritual,
transmitida pela educação estética, "deve ensinar à criança... um
desejo de perfeição formal que seja o início e a garantia duma
grande aspiração de perfeição interior" (1914: 36). Com estes
princípios, o que se procurava era dotar as "novas gerações" de
uma “preparação geral e integral", de tal modo que elas fossem
capazes de desenvolver harmoniosamente todas as "suas faculda-
des e todas as suas energias" (1908: 170). Porém, não se julgue
que essa "preparação geral e integral" seja algo de simples, por-
quanto o "cidadão republicano", como "produto complexo,
resultante de mil esforços e de mil influências benéficas", só se
pode realmente afirmar como tal, se, para além de trabalhar pelo
seu país e de amar a sua pátria, constituir também "uma força de
acção, de pensamento, de dedicação" (1979: 25). Ora, para se
atingir esse ideal de cidadão, João de Barros apela ao poder toni-
ficador da "moral da energia" e do poder formador da "educação
laica". Esta ensinará
o respeito por todas as opiniões religiosas, a tolerância — a liberdade de consciência, enfim; mas, ao mesmo tempo, inspi-
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
113
ra-se essa educação nas descobertas da ciência, nas conquistas,
no desenvolvimento e no progresso da inteligência humana.
Ensina-se — e eis aí a grandeza e a nobreza da educação laica, da moral laica — ensina-se o poder do homem, o seu esforço
extraordinário e tenaz através dos séculos, e todas aquelas qua-
lidades de idealismo, de bondade, de altruísmo, de
solidariedade que têm melhorado — lentamente, sem dúvida, mas seguramente — as condições da vida sobre a Terra (1914:
25).
Através do binómio instrução-educação e por intermédio dos
mestres e da inoculação paulatina da nova moral laica e republi-
cana, o nosso pedagogo republicano pretendia formar gerações
republicanas “fortes de alma e de corpo”, de acordo com um figu-
rino de cidadania moldado pelos valores políticos e morais da
Nova República. Assim, o futuro cidadão republicano tinha de
ser o "homem completo do mundo moderno”; “bom”; "alegre";
"livre"; "otimista"; "progressista"; um "tipo perfeito"; um "produ-
to complexo, resultante de mil esforços e de mil influências
benéficas"; um "futuro trabalhador"; um "futuro homem de ener-
gia, de pensamento e de patriotismo”; um cidadão útil dotado de
uma consciência forte e de uma inteligência sadia e com qualida-
des elevadas, como as de idealismo, de bondade, de altruísmo e
de solidariedade, enfim um "homem novo" para os novos tempos
republicanos (Araújo, 1996: 465-477; Fernandes, s.d. (1971?):
17-37).
2.2 O imaginário mítico do “cidadão republicano”
Influenciados por Gilbert Durand (1979 e 1996) e por Jean-
Pierre Sironneau (1993), temos vindo, desde os anos noventa, a
aperfeiçoar a Mitanálise como um modelo hermenêutico passível
de dar conta dos traços míticos enraizados nos interstícios de tex-
tos marcadamente ideológicos, de que os textos ideo-pedagógicos
são exemplo. Na verdade o modelo mitanalítico, apesar das suas
limitações, tem-se revelado pertinente no tocante a captar a “pre-
sa mítica" (Gilbert Durand) que se encontra quase sempre latente
nos textos de caráter pedagógico que nos ocupam.
Educação, Cultura e Imaginário
114
Daí que, na esteira do nosso trabalho intitulado O “Homem
Novo" no Discurso Pedagógico de João de Barros. Ensaio de
Mitanálise e de Mitocrítica em Educação (1997), tentaremos
agora, à luz dos procedimentos mitanalíticos, perceber até que
ponto o mito de Prometeu contaminou o imaginário ideo-
pedagógico de João de Barros e perceber também como o mito do
andrógino vivifica o ideologema do “homem novo”.
Por isso, é que achamos importante colocar a questão, num
primeiro momento, se o "novo cidadão" versus "homem novo"
republicano, tal como ele foi desenhado e pensado por João de
Barros, é contaminado, ou modelado, por um imaginário de fei-
ção sócio-histórica, isto é, de tipo “prometeico historicista"
(Brun, 1999: 14-20), e também se ele reflete as orientações do
mito do andrógino como um mito que representa a totalidade e a
novidade radical (Libis, 1980), para, num segundo momento, nos
interrogarmos se é o imaginário mítico prometeico e androgínico
de feição arquetipal, (isto é, de cunho meta-histórico) que condi-
ciona em última instância o figurino do “cidadão republicano"
idealizado por João de Barros.
A tese que defendemos salienta que o sucesso do tema do
"homem novo" na tradição pedagógica republicana, nomeada-
mente o contributo da obra e as intervenções de João de Barros,
deve-se, por um lado, à sua inscrição no imaginário ideo-
pedagógico republicano do seu tempo, e, por outro, também se
deve ao facto desse mesmo imaginário reenviar para o imaginário
mítico (Araújo, 1997: 119-179). A este respeito, e já antes de nós,
Fernando Catroga, ainda que num registo marcadamente cultura-
lista, escrevia, no seu Republicanismo em Portugal, que
Prometeu, enquanto herói mítico cantado por João de Barros
(1944), era "o arquétipo exemplar do humanismo republicano, ao
convidar à revolta contra a escravidão em nome de uma liberdade
de espírito que iluminava a futura e definitiva libertação humana"
(1991 (2º Vol.): 464; 449-464). Nós, pelo nosso lado, devedores
da tradição remitologizadora durandiana, pensamos que é o ima-
ginário mítico prometeico que vivifica o imaginário ideo-
pedagógico e não o contrário:
Interessar-se pelos mitos, não é somente explorar a própria substância do imaginário humano, é também preparar-se para
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
115
compreender melhor a história, porque, segundo a expressão de
Gilbert Durand, o mito é um `módulo da história' e os móbeis
do homem comprometido na história são, mais frequentemente do que se pensa, de ordem mítica, estranhamente mítica (Wal-
ter, 2002:12; Wunenburger, 2002: 67-78).
Podemos, portanto, afirmar que o imaginário mítico, e em
particular o prometeico, confere ao imaginário ideo-pedagógico,
de per se mais empobrecido do ponto de vista da "pregnância
simbólica" (Ernst Cassirer), uma espessura e uma áurea de tal
forma apelativa e evocativa que, sob o charme da revolta de Pro-
meteu face aos deuses, não podia deixar indiferentes os
pedagogos republicanos da época:
Educar! Quem terá a consciência perfeita desta palavra forte,
do acto criador e profundo que ela representa? E de que serve
tê-la, essa consciência, para os que não sintam, não adivinhem toda a amplitude, toda a beleza da expressão vasta e do acto
nobre? De que serve – se não sentirem o frémito divino do
artista que em vez de moldar o barro ou de talhar o mármore,
em vez de curvar o ritmo rebelde à sua emoção inquieta, ou de esculpir numa luminosa e clara imagem o seu pensamento,
molda, esculpe, abrange e domina a matéria palpitante, a maté-
ria prenhe de todas as possibilidades, de todas as prováveis realizações, que é uma alma de criança! (1908: 9);
Os jesuítas e a Inquisição, fazendo perder ao povo português a
confiança na sua energia, a alegria do seu triunfo — e, mais ainda do que tudo isso — aquela luminosa certeza do esforço
do homem, no valor do homem em face dos deuses e de Deus,
em face da Natureza e das suas inclemências e dores, que é a característica suprema de toda a renascença (1916: 135-136).
Se a revolta prometeica é um dos traços distintivos do mito,
também não são menos importantes as facetas do titã que repre-
sentam o princípio de intelectualização e as suas virtudes
filantrópicas. Por outras palavras, foi devido ao ato de revolta de
Prometeu que o homem adquiriu o estatuto de ser consciente e
autónomo face aos deuses do Olimpo. A obra de João de Barros é
de tal modo rica em passagens que entronizam as características
do mito de Prometeu (Duchemin, 2000; Séchan, 1951), que se
Educação, Cultura e Imaginário
116
torna complicado no presente artigo dar de todas elas uma pano-
râmica exaustiva. Contudo, não gostaríamos de terminar sem
recordar a visita que João de Barros fez ao Colégio de Bedales
(Petersfield — Inglaterra). O autor, depois da visita efetuada,
escreveu que ficou com a impressão de não sair de uma mera
escola, mas sim de um “atelier de um escultor prometeico, amas-
sando nas suas mãos vigorosas, para criar obras de beleza e de
força, o dócil, o macio, o dúctil, mas o tão melindroso, tão friável
barro humano!” (1908: 99). Se acrescentarmos, que o cidadão
republicano é também ele fruto das mãos de Prometeu e da sua
consequente sedução, então podemos dizer, com Barros, que é o
par Inteligência-Razão (1911a: III) que confere sentido à obra
educativa republicana que se quer patriótica, cívica, solidária e
confiante no poder de iniciativa, na audácia e "no poder ilimitado
do cérebro humano" (1916:187).
Quanto à presença do mito do andrógino, tendo já em conta
as características apontadas anteriormente (ver 1.2.), ele emerge
através da ideia-força de cidadão que é um homem completo,
perfeito, harmónico e integral. A ideia de completude, de tornar o
aluno apto para a “luta da vida”, é recorrente no discurso pedagó-
gico de João de Barros, aliás, uma característica que exprime bem
a “totalidade” que anima o mito do andrógino: “Ora foi esse crité-
rio, o de dar ao aluno todas as possibilidades de vir a ser
integralmente e completamente um homem, que me guiou sem-
pre, mesmo em tudo o que dizia respeito à minha especialidade!”
(1908: 142). Outra característica do mito – a da perfeição – tam-
bém é recorrente no pensamento do nosso pedagogo, eis um
exemplo retirado do seu texto Educação e Democracia (1916?):
“O nosso povo é corajoso, honesto e trabalhador. Nada nos falta
para realizarmos aqui um tipo perfeito de cidadão” (1979: 42).
Por fim, a ideia de que o que o cidadão “precisa viver integral-
mente para ser feliz” (1908: 40), pois só assim é que alcançará a
harmonia, a alegria da vida e mesmo a própria beleza. Trata-se,
pois aqui de realizar um “destino melhor” (s.d. - 1914?: 150) em
escolas modelo, de que colégio de Bedales é um bom exemplo,
aptas a formarem o futuro cidadão dotado de uma “preparação
geral e integral – no sentido de procurarem desenvolver-lhe har-
monicamente todas as suas faculdades e todas as suas energias”
(1908: 170).
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
117
Dos ideologemas atrás expostos constata-se que as caracte-
rísticas gerais do mito do andrógino, ora patentemente, ora
latentemente, não deixam de apalavrar o ideário republicano, pois
este tinha uma necessidade vital de se afirmar não só como uma
ideologia redentora do género humano, como sendo também
aquela capaz de “revivescer”, de “ressurgir”, de “renascer” e de
“regenerar” a sociedade portuguesa de oitocentos: “É verdade
que a necessidade de se educar um ‘homem novo’ e de construir
um ‘mundo novo’ é correlata da própria ideia de regeneração”
(Catroga, 1991 (2º Vol.): 454). Procurava assim, numa linha mar-
cadamente messiânica, restaurar uma espécie de novo Éden na
terra, uma nova “Idade de Ouro” (Gusdorf, 1985: 8-23) confor-
mada pelos novos valores republicanos do progresso, do
otimismo, da laicização, da perfetibilidade, da educação, da feli-
cidade, da solidariedade, da ciência, da liberdade e da igualdade.
Era pois a tarefa demopédica de formar o cidadão republicano
que estava em jogo e este, como sinónimo de “homem novo” e de
“homem total”, desejar-se-ia que fosse perfeito, integral, harmo-
nioso e completo, pois só assim alcançaria “a consciência total do
mundo” (Barros, s.d. – 1914?: 189). Estas qualidades correspon-
dem miticamente às do mito do andrógino que é outra maneira de
falar do “homem primordial”, o homem mítico por excelência,
aquele que habitava, segundo o Génesis, no Éden …
Aquilo que vimos dizendo é já uma abordagem mitanalítica
do imaginário social republicano em que a ideia educativa de
“homem novo” aparece como uma das mais mobilizadoras e mais
marcantes do pensamento pedagógico republicano, pois
pretendia-se que ele habitasse, na qualidade de “super-homem”
da democracia (Barros, 1919: 734), a “Cidade ideal” (Roger
Muchielli) da República onde as
Almas de prodígio [refere-se às crianças que nunca hesitam e que por isso mesmo são a esperança] […] vão sair vitoriosas do
combate em que fomos vencidos; vão erguer muito mais alto
do que nós aquele facho simbólico que, de geração para gera-
ção, resplandece, marcando com a projecção da sua luz irradiante, os limites, cada vez mais largos, que podem conhe-
cer e abranger a inteligência e a energia do homem” (Barros,
s.d. - 1914?: 189).
Educação, Cultura e Imaginário
118
Por último, o cidadão republicano (leia-se “homem novo”)
idealizado por João de Barros inscreve-se, por um lado, na tradi-
ção ideo-cultural e pedagógico-política do seu tempo filiada nos
postulados das Luzes, e, por outro, inscreve-se na tradição mítica
ancestral, de que os mitos de Prometeu e do Andrógino são bons
exemplos, dota a ideia educativa de “homem novo” de uma
“pregnância simbólica” (Cassirer) incontornável numa História
das Ideias Educativas que recusa atribuir às vozes míticas um
mero papel alegórico, mas, antes pelo contrário, lhes confere uma
autoridade primeira sobre o discurso pedagógico, ainda que reco-
nhecendo que essas vozes aparecem degradadas, quer sob a sua
forma de derivação e de usura (Durand, 1996: 81-107), no seio
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VII Analfabetismo e Cidadania na
1ª República. As Perspetivas de Adolfo Coelho e João de Barros 29
Joaquim Machado de Araújo
Alberto Filipe Araújo
Os elevados índices de analfabetismo no início do século XX
fazem da alfabetização da população um importante objecivo
político da 1ª República e fazem sonhar com a generalização da
instrução primária. Este sonho esbarra no entanto com uma
realidade económica que obriga a dispositivos que se mostrem
rápidos, baratos e exequíveis, como os utilizados pela Associação
de Escolas Móveis pelo método João de Deus. Contudo, seja
pelos seus pressupostos redutores e voluntaristas seja pela própria
racionalidade que ostraciza os analfabetos e lhes não reconhece
lugar de cidadania, o debate centra-se em torno das conceções de
educação e instrução e faz emergir uma tensão entre uma
Educação Republicana (1916), defendida por João de Barros
(1881-1960) para a formação de um “homem novo” para uma
pátria “nova” (Araújo, 2003), e uma Pedagogia do Povo
Português (1898) mobilizadora dos Elementos Tradicionais da
Educação (1883) e realçada por Adolfo Coelho (1847-1919).
Enfim, uma tensão entre conceções de educação que tomam a
aprendizagem da leitura e da escrita como instrumentos de
cultura e afirmam a necessidade de uma educação moral, estética
e física como meio para fazer do aprendiz das primeiras letras um
29 Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT –
Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projecto PEst-
OE/CED/UI1661/2011 do CIEd.
Educação, Cultura e Imaginário
126
cidadão de um Portugal que, querendo sair da “decadência”, está
a precisar de “regeneração”.
1. O analfabetismo como problema e a escola primária
como solução
Segundo a estimativa de João de Barros, nos finais da
Monarquia a taxa de analfabetismo rondava os 80% e em 1916
estaria entre os 65% e os 67%, o que para ele era inquietante.
Para obstar a que semelhante "praga", para usar uma expressão
querida ao ideário pedagógico republicano, aumentasse e,
sobretudo, para que ela fosse combatida, era preciso tomar
medidas. Procuravam-se para isso razões explicativas do
analfabetismo e soluções para o problema.
João de Barros propõe a criação de escolas primária e supe-
rior, de escolas profissionais, de um bom ensino técnico, que as
Escolas Normais fossem dotadas com laboratórios e gabinetes
devidamente equipados, além de que o Estado não se deve
esquecer nem do ensino da ginástica, nem do ensino artístico.
Pois, o que está em causa é a preparação mental, moral e física
das "novas gerações" (1916: 12), para um "Portugal Novo", para
uma "Pátria Nova" (1914: 17), isto é, das crianças enquanto
símbolo de Futuro. Assim, para que esta preparação fosse
possível, torna-se importante repensar o papel da Escola
Primária, que, para João de Barros, possui um tríplice fim: o de
fornecer aos educandos uma primeira base de cultura identificada
com o saber ler, escrever e contar; uma vigorização dos corpo e
dos espíritos mediante a educação física e a educação do
raciocínio e, finalmente, prepará-los para uma "existência de
trabalho digno, que definitivamente o sagre cidadão, com a posse
perfeita duma profissão, dum ofício" (s.d.: 112).
Para este fervoroso patriota republicano, a aprendizagem da
língua materna e a aprendizagem profissional dar-se-iam as mãos
na construção do patriotismo, a primeira para criar um
patriotismo de pensamento, a segunda para criar um patriotismo
de ação.
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
127
2. Instrução, política e economia
A solução para erradicar o analfabetismo estaria sobretudo
no ensino primário. Contudo, ela contrastava com a apatia da
população em relação à difusão do ensino elementar e da
alfabetização, que está na base do aparecimento de várias
medidas administrativas para combater o analfabetismo –
«serviço militar mais longo, não concessão de passaportes,
proibição de emigrar, proibição de casar até aos 23 anos, criação
de um selo (imposto) do analfabeto» (Nóvoa, 1988) – cujo
fundamento era que o não leitor é “uma espécie de tristíssimo
pária, sem pátria, incapaz de preencher lugar no mecanismo da
divisão do trabalho social sem faculdade de formular um juízo”
ou “um animal de forma humana”, um idiota (ignorante mas
também estúpido), como figura no censo de 1864.
A razão para a apatia estaria, segundo os entusiastas da
instrução primária, na má qualidade do ensino e a solução estaria
no aumento do número de escolas, no seu melhor
apetrechamento, em programas de ensino mais completos, na
formação de mais e melhores professores e na atribuição de mais
verbas para alimentação e vestuário para as crianças pobres (Ra-
mos, 1993).
Contudo, estas medidas seriam um verdadeiro sorvedouro do
dinheiro dos cofres públicos. O problema passava a ser pensado
também na sua dimensão económico-financeira. Ensinar barrigas
vazias a ler? Para quê? Não seria prioritário o investimento
noutros setores que não a educação? Qual o ensino que ajuda
mais o povo a melhorar a sua condição económica: o das
primeiras letras ou o ensino profissional?
3. As Escolas Móveis e a Cartilha Maternal
A verdade é que a instrução primária era ainda uma miragem
para muitos. Por isso, para aqueles que não tinham acesso à
escola ou não estavam já em idade escolar propunha-se a
promoção de cursos noturnos, cursos de adultos e bibliotecas
populares. Esta proposta foi acarinhada e implementada pela
Associação de Escolas Móveis pelo método João de Deus,
fundada em 1882 por Casimiro Freire e que, em 1908, por
Educação, Cultura e Imaginário
128
proposta de João de Deus Ramos (filho do Poeta-Educador de
São Bartolomeu de Messines), passou a designar-se "Associação
de Escolas Móveis pelo Método João de Deus, Bibliotecas
Ambulantes e Jardins Escolas ".
O espírito que movia as Escolas Móveis era, para usarmos a
expressão de Adolfo Coelho, “derramar, a plenos jorros, a luz do
alfabeto”. Este seria um instrumento importante para o
desenvolvimento de uma educação nacionalizadora compatível
com os ideais da República, que João de Barros considera fator
de educação cívica, até porque, segundo proclama este autor 2º
Congresso Pedagógico da Liga Nacional de Instrução, promovido
em abril de 1909, a Cartilha Maternal faz de "João de Deus o
único educador nacional" (Cf. 1911: 91-113). Na sua opinião, o
método ou a arte de leitura proposto pela Cartilha, além de ser
orientado por critérios nacionalizadores adaptados à raça
portuguesa, assenta numa base intuitiva, característica
reconhecida, como ele próprio afirma, pela moderna pedagogia
que ele, aliás, prova conhecer nos seus trabalhos: "eu — diz João
de Barros — não duvido em afirmar que aprender pelo seu
método de leitura, é para a criança, um motivo de não ser triste. É
não ser brutalizada, violentada na sua evolução mental" (1908:
137). Para além da dimensão intuitiva, o ensino da leitura
veiculado pela Cartilha Maternal é racional porquanto respeita a
"iniciativa e a lógica da criança", estimula "o interesse do aluno,
jogando sempre sobre palavras conhecidas, quer dizer,
satisfazendo o seu instinto de concretização" e, finalmente, o
ensino da leitura, aliás como o próprio adjetivo maternal já
indica, deve ser feito no ambiente familiar e, se possível, pelas
mães, porque se são elas que "nos ensinam a falar.... deviam
[também] ensinar-nos a ler" (1911: 105).
4. Uma alfabetização rápida, barata e exequível
As Escolas Móveis tiveram o mérito de alertar a população
para a necessidade de erradicar o analfabetismo, contribuindo
assim para uma maior procura da educação. Para além de roupa
para três ou quatro meses, a modesta bagagem dos “apóstolos da
Instrução popular” – que provêm das mais diversas profissões,
são sóbrios, têm parca remuneração, mas grande e devotado amor
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
129
à profissão e ao método de leitura de João de Deus – inclui, se-
gundo João de Barros (1911), apenas dois folhetos, a Cartilha
Maternal e os Deveres dos Filhos.
O combate ao analfabetismo era necessário e urgente, como
defende João de Barros quando diz que é preciso "combater o
analfabetismo em Portugal, de modo rápido, barato e
imediatamente exequível" (s.d.: 113). E privilegia nesse combate
as Escolas Móveis porque os cursos de alfabetização ministrados
por elas eram sempre acompanhados por palestras cívicas. Assim,
elas seriam o único meio eficaz de reduzir drasticamente o
analfabetismo, além de constituir "uma bela tentativa de
educação republicana" (s.d.: 118). Por isso, aquando da sua
passagem, em 1910, pela Direção Geral de Instrução Primária,
João de Barros propôs, ao então Ministro do Interior António
José d'Almeida, que "com um professor móvel por cada concelho
– o que corresponderá a uma despesa pequeníssima para o estado
–, a diminuição da percentagem de analfabetos seria enorme
dentro de pouco tempo”. Acrescenta ele: “quando falo de
professores móveis, lembro-me logo das suas indispensáveis
auxiliares: — as bibliotecas ambulantes, que são, por assim dizer,
os continuadores do seu ensino, as guardas fieis da semente que
eles lançaram nos cérebros incultos dos educandos”. De igual
modo, “não me esqueço também das conferências instrutivas que
o mestre pode e deve fazer, conferências que deverão ter
sobretudo como fim ensinar a compreender melhor a vida
ambiente e a melhor aproveitá-la" (s.d.: 113-114). Como se
depreende desta passagem, a importância de aprender a ler só se
compreende se fosse devidamente sustentada, isto é,
acompanhada pela ação das Bibliotecas Populares Móveis,
porquanto o povo "não só precisa de saber ler, como ter que ler"
(1911: 128), e, sobretudo, se os referidos professores móveis,
autênticos apóstolos da Instrução Popular, fossem cidadãos
comprometidos com os valores republicanos já apontados.
Os pressupostos redutores e voluntaristas da conceção das
Escolas Móveis na sua ação de fazer jorrar a luz do alfabeto
explicam as duras críticas do professorado primário, veiculadas
pelas suas organizações associativas ou pelos seus órgãos de
classe. Na verdade, como observa António Nóvoa (1988), os seus
pressupostos “restringem as aprendizagens escolares à
Educação, Cultura e Imaginário
130
alfabetização, abrindo um precedente de que o Estado Novo se
apropriará abusivamente em 1931 para criar os postos de ensino”
e, ao mesmo tempo, “valorizam na contratação do pessoal
docente a lealdade política e ideológica em detrimento de
critérios técnicos e profissionais”.
É ainda de salientar que a visão reducionista do Estado Novo
sobre o ensino e das aprendizagens, limitadas quase
exclusivamente ao ler, escrever e contar, pode muito bem ter-se
inspirado em João de Barros que, em 1916, reconhecia, “com
sinceridade e sem vergonha, que a obra republicana em matéria
de educação e de instrução é ainda hoje deficientíssima”,
acrescentando que “podia-se ao menos ter feito o que Basílio
Teles preconizou com a lucidez e a visão excecional que
caracterizam o seu espírito: - limitar a obra educativa republicana
dos primeiros tempos à extinção do analfabetismo, fechando
todas as escolas que não fossem primárias, e limitando-se estas,
por sua vez, ao ensino das primeiras letras”.
5. Para o questionamento da racionalidade da
alfabetização
Por seu lado, Adolfo Coelho, mesmos não querendo
examinar os resultados da ação das Escolas Móveis, faz notar que
a mesma se insere ainda na “convicção» de que o analfabetismo é
em si um grande mal, que urge extirpar, como se ler, escrever e
contar fossem “o passaporte para o país da ciência, do
patriotismo e de todas as outras virtudes, assim como da
capacidade prática» (1916).
Esta crítica de Adolfo Coelho insere-se numa linha de
pensamento que, à época, começava já a pôr em causa que à
abertura de uma escola correspondesse o fecho de uma prisão,
como proclamava Vítor Hugo, rompendo assim com um discurso
iluminista herdado da Revolução Francesa. Adolfo Coelho
propõe que antes se examine “que efeito produzem na vida dos
povos e dos indivíduos por si sós aquelas artes de ler e escrever
ou a sua ignorância”. Lembra como a cultura se desenvolveu
notavelmente nos povos sem escrita, pela “instrução oral
transmitida e desenvolvida através dos séculos”, e cujos
conhecimentos estavam sempre à disposição do seu possuidor
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
131
porque presente na memória. Conclui ele que o maior valor
atribuído à leitura e à escrita e o tratamento com desprezo dos
povos sem escrita – “os povos que não seguiram a rotina de fixar
as suas ideias no papel” – advém do “erro de crer que os meios de
conhecer constituem o próprio conhecimento”. E a verdade é que
a observação da humanidade, na sua totalidade, não fundamenta,
a “crença ferrenha na leitura e na escrita” porque há povos sem
escrita a terem arte delicada, nobre arquitetura, cantos imortais
dos seus poetas e extenso comércio (1916).
Adolfo Coelho realça ainda a boa memória de pessoas que
desconhecem as “artes de ler e escrever” e evidencia que esta
ignorância não impediu que entre os nossos primeiros reis, que
antecederam D. Dinis, houvesse “hábeis políticos, diplomatas,
guerreiros”, querendo com isto dizer que o facto de não
possuírem tais artes não significa falta de inteligência ou
capacidade de ajuizar acerca das coisas que estavam relacionadas
com os seus interesses e de realizar bem os atos da sua ocupação.
Após mostrar como o desenvolvimento da cultura humana e
a educação em especial não estão necessariamente ligadas à
influência da alfabetização, este autor procura averiguar o que é
que o ABC tem dado por si só ou ainda quando compreendido
num quadro mais largo de ensino escolar. Limitando o seu estudo
a três exemplos coletivos, nacionais, de alfabetização
generalizada – dois do passado (a China e o Império Romano) e
um da época (a Alemanha) –, mostra que o conhecimento da
leitura e da escrita, e até uma instrução escolar bastante
desenvolvida e totalmente generalizada a todo um povo, é
insuficiente para arrancar parte considerável do mesmo a
condições de grande atraso moral e intelectual e não constitui
obstáculo ao aumento da criminalidade.
6. Educação e instrução
A explanação dos argumentos de Adolfo Coelho não permite
afirmar que ele se opõe à escolarização e não vê nela qualquer
utilidade. Mas permite evidenciar a sua perceção de que não é
exclusiva do alfabetizado, nem portanto do escolarizado, a
condição de racionalidade (Magalhães 1994a). Na verdade, ele
questiona a alfabetização como estratégia única da instrução
Educação, Cultura e Imaginário
132
popular e distingue educação e instrução: enquanto a educação é
“transmissora dos elementos de cultura e formadora dos espíritos
para o progresso desta” (1910), a instrução resulta de se ter
querido “fazer compartilhar o povo, dentro dos limites possíveis
da moderna cultura” e, por isso, é uma construção social:
“inventou-se [...] a chamada instrução primária ou popular, em
que a arte de ler, escrever e contar tem a primazia, se não
constitui por completo aquela instrução” (1993b).
A procura de instrução por parte dos filhos do povo é
descrita no seu estudo Para a História da Instrução Popular
(1895), que faz parte de um plano de estudos sobre a educação
primária em Portugal até ao séc. XVIII, gizado pelo autor e
explicado no Inquérito Relativo à Instrução Primária anterior à
Reforma Pombalina. Aí traça um esboço da história da tendência
“ascensional” ou de “capilaridade social” manifestada pelo povo
para fazer os filhos saírem da sua humilde condição e subirem na
escala social, mostra as insuficiências e os retrocessos da
instrução popular em Portugal e procura destacar o que, durante o
Antigo Regime se fez pela instrução do povo, a maioria da
população, mesmo antes do impulso que a mesma sofreu com o
movimento reformista do século XVI, até à ação do Marquês de
Pombal. Alerta, porém, que a instrução primária oficial, criada
pela carta de lei de 6 de novembro de 1772 relativa aos estudos
menores, cujo núcleo essencial era ler, escrever e contar, não era
ainda o ensino popular, mas como a admissão nas escolas criadas
não dependia de condições de classe, estava dado o passo na
instrução do povo, apesar do princípio de que “ler e escrever são
instrumentos de que pode fazer-se bom ou mau uso e não
constituem verdadeiros elementos de educação” (Coelho, 1973).
Em bom rigor, também João de Barros não pertence ao
grupo daqueles que pensam que os problemas educativos da
pedagogia republicana se reduzem à mera extinção do
analfabetismo. Tanto assim que, num artigo intitulado "Saber
ler", publicado na Pátria em abril de 1910 e reproduzido na sua
Nacionalização do Ensino, afirma: "Claro que todos aqueles que
hoje procuram em Portugal dar maior extensão ao ensino da
leitura e da escrita, sabem que este ensino é apenas um meio, e
nunca um fim; quero dizer, desejam também criar uma educação
geral, integral, mas crêem que o melhor auxiliar para ela é, por
A. F. Araújo, F. Azevedo, J. Machado de Araújo
133
enquanto, o saber ler e escrever" (1911: 237). Em sua opinião,
para ser patriótica, a educação escolar deve ser completada com
“a educação do carácter, da vontade, da energia” (1914:49),
sendo que a “moral da energia” é a moral do esforço, da vontade
e do trabalho. Enfim, a educação escolar deve "formar uma alma,
preparar uma inteligência, orientar uma consciência" e fazê-lo é
um "trabalho de fé, uma função criadora" (1914: 22).
De facto, quer para João de Barros quer para Adolfo Coelho
não estava em causa a necessidade e o valor da instrução escolar
para o progresso do país, mesmo quando Adolfo Coelho enfatiza
a possibilidade de um analfabeto enriquecer ou até subir alto na
escala social, ou do não escolarizado desempenhar cargos de
governação. Ele sabe que só a nação que tenha um nível geral
intelectual mais elevado tem possibilidades de vencer a mais
fraca: “Na luta das nações a vitória cabe hoje sempre só à força
moral e intelectual”. Tanto assim que defende que toda a política
de instrução deve cuidar que a cada membro das novas gerações
se ministre a educação de que ele é suscetível e, para isso, deve-
se organizar, na medida do possível, uma seleção escolar segura,
sobre a base de uma distribuição suficiente do ensino nos seus
diversos graus.
Contudo, Adolfo Coelho preconiza uma educação moral que,
mesmo em contexto escolar, especialmente na instrução primária
ou popular, se baseie no material pedagógico do povo – Os
elementos tradicionais da educação (1883). Segundo ele, a
educação moral dá-se no momento mesmo em que a ação se
refere, se pratica, e defende que o preceito se aplique numa forma
viva, porquanto o poder da forma proverbial não estaria ainda
enfraquecido e impor-se-ia como “a expressão de uma autoridade
não individual, mas social, porque o provérbio pertence a todos”.
A educação moral incluiria o exemplo e os provérbios; a
educação estética mobilizaria os contos tradicionais, “cujo
interesse geral humano nem o espaço nem o tempo
enfraquecem”, e as rimas tradicionais; a educação física servir-se-
ia dos jogos tradicionais, extremamente variados, ricos de
movimentos, cheios de vida, suscitadores não só das forças
físicas, mas ainda das forças intelectuais.
Defende Adolfo Coelho que os métodos a introduzir na
escola devem observar a excelência das práticas populares
Educação, Cultura e Imaginário
134
tradicionais, tornando assim mais leve o trabalho da criança e
atraindo-a ao mesmo tempo que evitarão a imposição corruptora
de “todos os germes perniciosos da infantilidade”.
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