educacao e psicoped - rumo a inclusao

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Educação e Psicopedagogia: Rumo à Inclusão 1 (Por: Mônica Pereira dos Santos) 2 Introdução Este capítulo visa informar a respeito das transformações por que vem passando a educação especial nas últimas 5 décadas, com ênfase especial na década de 90. Pretende-se mostrar o que o paradigma de Educação para Todos (firmado em Jomtiem, 1990) tem representado no que diz respeito à própria (re)conceituação da educação especial, bem como algumas implicações desta redefinição ao sistema educacional brasileiro e à Psicopedagogia. Iniciaremos com uma breve menção à evolução histórica da educação especial até 1990, quando ocorreu o primeiro evento internacional que formalizou a “Educação para Todos” como plataforma básica para os sistemas educacionais da comunidade mundial: a Conferência Mundial sobre Educação para Todos 3 . Em seguida, os aspectos relevantes ao tema deste capítulo, propostos na Declaração de Salamanca (1994), sobre a educação especial, serão apresentados e discutidos. Num terceiro momento, discutiremos as principais implicações educacionais trazidas pelo referido documento e seus respectivos reflexos ao fazer psicopedagógico. Por fim, nas considerações finais, serão levantados aspectos do contexto brasileiro a serem considerados na adoção e implementação do processo de inclusão, assim como avaliadas as perspectivas de novos papéis a serem assumidos (ou não) na prática psicopedagógica. Educação Especial até 1990 Já se afirmou inúmeras vezes (ver, por exemplo: Fish, 1985; Cole, 1990; Wedell, 1990) que a educação especial na maioria dos países tem, a grosso modo, seguido padrão semelhante em 1 Partes deste capítulo reproduzem artigo publicado no no. 22 da revista Integração (MEC/SEESP, dez. 1999) 2 PhD em Psicologia e Educação Especial pela Universidade de Londres. Pesquisadora e Professora Adjunta do Depto de Fundamentos da Educação e do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da UFRJ. 3 Cabe esclarecer que a “educação para todos”, enquanto um princípio, pode ser encontrada em vários documentos nacionais de diversos países, documentos estes anteriores à referida Declaração. No entanto, esta Declaração se constitui num marco na medida em que reúne, num só documento de representatividade internacional, várias das implicações teóricas e práticas (por exemplo, de reformas nos sistemas educacionais de ensino) que este princípio traz aos países que o admitem como plataforma de base de suas políticas educacionais. 1

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Educação especial em psicopedagogia.

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  • Educao e Psicopedagogia: Rumo Incluso1 (Por: Mnica Pereira dos Santos)2

    Introduo

    Este captulo visa informar a respeito das transformaes por que vem passando a educao

    especial nas ltimas 5 dcadas, com nfase especial na dcada de 90. Pretende-se mostrar o

    que o paradigma de Educao para Todos (firmado em Jomtiem, 1990) tem representado no

    que diz respeito prpria (re)conceituao da educao especial, bem como algumas

    implicaes desta redefinio ao sistema educacional brasileiro e Psicopedagogia.

    Iniciaremos com uma breve meno evoluo histrica da educao especial at 1990,

    quando ocorreu o primeiro evento internacional que formalizou a Educao para Todos

    como plataforma bsica para os sistemas educacionais da comunidade mundial: a Conferncia

    Mundial sobre Educao para Todos3.

    Em seguida, os aspectos relevantes ao tema deste captulo, propostos na Declarao de

    Salamanca (1994), sobre a educao especial, sero apresentados e discutidos. Num terceiro

    momento, discutiremos as principais implicaes educacionais trazidas pelo referido

    documento e seus respectivos reflexos ao fazer psicopedaggico. Por fim, nas consideraes

    finais, sero levantados aspectos do contexto brasileiro a serem considerados na adoo e

    implementao do processo de incluso, assim como avaliadas as perspectivas de novos

    papis a serem assumidos (ou no) na prtica psicopedaggica.

    Educao Especial at 1990

    J se afirmou inmeras vezes (ver, por exemplo: Fish, 1985; Cole, 1990; Wedell, 1990) que a

    educao especial na maioria dos pases tem, a grosso modo, seguido padro semelhante em

    1 Partes deste captulo reproduzem artigo publicado no no. 22 da revista Integrao (MEC/SEESP, dez. 1999) 2 PhD em Psicologia e Educao Especial pela Universidade de Londres. Pesquisadora e Professora Adjunta do Depto de Fundamentos da Educao e do Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Educao da UFRJ. 3 Cabe esclarecer que a educao para todos, enquanto um princpio, pode ser encontrada em vrios documentos nacionais de diversos pases, documentos estes anteriores referida Declarao. No entanto, esta Declarao se constitui num marco na medida em que rene, num s documento de representatividade internacional, vrias das implicaes tericas e prticas (por exemplo, de reformas nos sistemas educacionais de ensino) que este princpio traz aos pases que o admitem como plataforma de base de suas polticas educacionais.

    1

  • sua evoluo. Num primeiro momento, caracterizado pela segregao e excluso, a clientela

    simplesmente ignorada, evitada, abandonada ou encarcerada e muitas vezes assassinada.

    Num segundo, h uma modificao no olhar sobre a referida clientela, que agora passa a ser

    percebida como possuidora de certas capacidades, ainda que limitadas, como por exemplo, a

    de aprendizagem.

    Mesmo assim, ainda predomina um olhar de tutela, e a prtica correspondente no que diz

    respeito aos excepcionais (como chamados neste segundo momento), muito embora j no

    fosse mais a de rejeio e medo, ainda seria excludente, na medida em que se prope a

    proteg-los, utilizando-se, para tanto, de asilos e abrigos, dos quais estas pessoas raramente

    sairiam, e nos quais seriam submetidas a tratamentos e prticas, no mnimo, alienantes.

    Ocorre ento um terceiro momento, marcado pelo reconhecimento do valor humano destes

    indivduos, e como tal, o reconhecimento de seus direitos. Na maioria dos pases, este

    momento tem se acirrado em especial a partir da dcada de 60 do presente sculo.

    Este captulo pretende voltar sua ateno para o que vem acontecendo na histria da educao

    especial a partir deste terceiro momento (de aproximadamente 35 anos para c), uma vez que

    o que ocorreu at ento j vem sendo fartamente ilustrado e discutido na literatura (ver, por

    exemplo, Januzzi, 1985).

    Um ponto interessante a ser notado diz respeito ao fato de que a histria da educao especial

    na maioria dos pases vem registrando, salvo devidas excees, um certo atraso em relao ao

    desenvolvimento da histria geral, pelo menos no que se refere a estas mudanas de valores

    relativos aos direitos humanos. Vale ressaltar, como exemplo desta colocao, o fato de que,

    historicamente, a luta pela igualdade de valor entre seres humanos j havia iniciado, ainda que

    de forma no to explcita como se verifica hoje, muito antes (pensemos, por exemplo, na

    prpria Revoluo Francesa).

    De qualquer forma, parece correto afirmar que a partir dos anos 60 que a luta pelos Direitos

    Humanos se fortalece. Tal se verifica, entre outros motivos, pelo prprio crescimento dos

    movimentos das minorias (tnicas, sexuais, religiosas, etc). A tais fatores, podem ser

    associados:

    2

  • (a) o avano cientfico, cuja produo e disseminao de conhecimento vem no apenas

    promovendo a desmitificao de certos preconceitos fundados na ignorncia sobre as

    diferenas da espcie humana, como tambm alertando para a necessidade cada vez mais

    urgente de unio de povos em funo da defesa do planeta por motivos ecolgicos que

    hoje nos so bvios;

    (b) um crescente pensar de cunho sociolgico questionando consistentemente o significado e

    o sentido de prticas discriminatrias e clamando por um mundo democrtico;

    (c) o avano tecnolgico, principalmente no terreno das telecomunicaes, que por um lado

    tem gerado avanados equipamentos que auxiliam uma vida cada vez mais independente e

    vem aproximando ainda mais os povos e disseminando ainda mais rapidamente as

    informaes. Por outro lado, tem provocado a necessidade de uma fora de trabalho cada

    vez mais instruda e, se possvel, especializada, capaz de atender competitividade que o

    prprio progresso tecnolgico e os rumos econmicos, entre outros aspectos, tm imposto.

    Por mais paradoxais e contraditrios que possam parecer, todos esses aspectos vm se

    refletindo conjuntamente nos sistemas educacionais dos mais diversos pases, ainda que em

    alguns estes reflexos venham sendo observados mais tardiamente. O fato que tais reflexos

    geram conseqncias inevitveis educao especial.

    Por um lado, a humanidade prima pela igualdade de valor dos seres humanos, e como tal, pela

    garantia da igualdade de direitos entre os mesmos. Por outro lado, esta mesma humanidade j

    no mais comporta a existncia da ignorncia, seja porque esta pode torn-la dependente

    (incapacitada para desfrutar de seus direitos), seja porque ela a exclui de um ritmo de

    produo cada vez mais vital crescente competitividade, por lhe dificultar o exerccio pleno

    de um de seus deveres de cidad: o de uma humanidade trabalhadora, produtiva, participativa

    e contribuinte.

    Emerge, assim, a necessidade de indivduos-cidados, sabedores e conscientes de seus valores

    e de seus direitos e deveres. Cresce, portanto, a importncia da educao e, mais ainda, a

    importncia da insero de todos num programa educacional que pelo menos lhes tire da

    condio de ignorncia. Em conseqncia cresce, tambm, a necessidade de se planejar

    programas educacionais flexveis que possam abranger o mais variado tipo de alunado e que

    possa, ao mesmo tempo, oferecer o mesmo contedo curricular, sem perda da qualidade do

    ensino e da aprendizagem.

    3

  • 1990: Jomtiem

    nesse esprito, acreditando que a pobreza e a misria verificadas no mundo atual so

    produtos, em grande parte, da falta de conhecimento a respeito de seus deveres e direitos, e

    acreditando ainda que a prpria falta deste direito bsico que o da educao (e do acesso

    informao) constitui fonte de injustia social, que a Conferncia Mundial de Jomtiem sobre

    Educao Para Todos aconteceu, em 1990, e adotou como objetivo o oferecimento de

    educao para todos at o ano 20004.

    Entre os pontos principais de discusso na referida conferncia, destacou-se a necessidade de

    se prover maiores oportunidades de uma educao duradoura, que por sua vez implica em trs

    objetivos diretamente relacionados, e que traro conseqncias educao especial:

    1) estabelecimento de metas claras que aumentem o nmero de crianas freqentando a

    escola;

    2) tomada de providncias que assegurem a permanncia da criana na escola por um tempo

    longo o suficiente que lhe possibilite obter um real benefcio da escolarizao; e

    3) incio de reformas educacionais significativas que assegurem que a escola inclua em suas

    atividades, seus currculos, e atravs de seus professores, servios que efetivamente

    correspondam s necessidades de seus alunos, das famlias e das comunidades locais, e

    que correspondam s necessidades das naes de formarem cidados responsveis e

    instrudos.

    1994: Salamanca

    Uma conseqncia imediatamente visvel educao especial, resultante dos objetivos

    expostos acima, reside na ampliao do conceito de necessidades educacionais especiais. Uma

    outra se verifica na necessidade de incluso da prpria educao especial dentro desta

    estrutura de educao para todos, oficializada em Jomtiem. Entre outras coisas, o aspecto

    inovador da Declarao de Salamanca consiste na retomada de discusses sobre estas

    4 Segundo a prpria declarao de Jomtiem, a populao mundial de crianas em idade escolar aumentar de 508 milhes em 1980 para 724 milhes no ano 2000. Se, no ano 200, os ndices de matrcula continuarem os mesmo que em 1990, haver mais de 160 milhes de crianas sem acesso educao primria, meramente devido ao crescimento populacional (Fonte: UNESCO/Ministry of Education and Science of Spain, 1994, p. 17)

    4

  • conseqncias e no encaminhamento de diretrizes bsicas para a formulao e reforma de

    polticas e sistemas educacionais.

    Assim, conforme o seu prprio texto afirma (UNESCO/Ministry of Education and Science

    Spain, 1994), a conferncia de Salamanca

    Proporcionou uma oportunidade nica de colocao da educao especial dentro da estrutura de educao para todos firmada em 1990 (...) Ela promoveu uma plataforma que afirma o princpio e a discusso da prtica de garantia de incluso das crianas com necessidades educacionais especiais nestas iniciativas e a tomada de seus lugares de direito numa sociedade de aprendizagem. (p.15)

    No que diz respeito ao conceito de necessidades educacionais especiais, a Declarao afirma

    que:

    Durante os ltimos 15 ou 20 anos, tem se tornado claro que o conceito de necessidades educacionais especiais teve que ser ampliado para incluir todas as crianas que no estejam conseguindo se beneficiar com a escola, seja por que motivo for. (p.15)

    Desta maneira, o conceito de necessidades educacionais especiais passou a incluir, alm das

    crianas portadoras de deficincia, aquelas que estejam experimentando dificuldades

    temporrias ou permanentes na escola, as que estejam repetindo continuamente o ano escolar,

    as que sejam foradas a trabalhar, as que vivem nas ruas ou que moram distantes de qualquer

    escola, as que vivem em condies de extrema pobreza ou que sejam desnutridas, as que

    sejam vtimas de guerras e conflitos armados, as que sofrem de abusos contnuos fsicos,

    emocionais e sexuais, ou as que esto fora da escola, por qualquer motivo que seja.

    O acima exposto permite-nos realizar a seguinte trajetria no pensar:

    1) At aproximadamente trs dcadas atrs, o objeto-alvo da educao especial era as

    pessoas portadoras de deficincias;

    2) Neste sentido, a educao especial poderia ser predominantemente considerada em seu

    sentido prtico, de proviso de certos servios a uma certa clientela e, quase

    invariavelmente, em um determinado ambiente especial, mais propcio ao respectivo

    tratamento a ser dado sua clientela;

    3) O que, por sua vez, implicava na existncia de dois sistemas paralelos de educao: o

    regular e o especial;

    4) Dados os acontecimentos e progresso histricos de 30 anos para c (a saber: o

    fortalecimento de ideais democrticos e seus respectivos reflexos nas formulaes de

    polticas em diversos setores social, educacional, de sade, trabalho de vrios pases, e

    5

  • no planejamento e implementao das respectivas prticas sugeridas por tais polticas ou

    resultantes do processo histrico em direo a princpios igualitrios - , a especialidade

    da educao especial (parafraseando Carvalho, 1998) comea a ser colocada em questo;

    5) Em outras palavras, se o objeto-alvo da educao especial passou a ser to ampliado, a

    insistncia em sua definio em termos predominantemente to limitantes (a uma clientela

    especfica) no lhe permitiria mais dar conta de suas novas tarefas;

    6) Isso, sem contar que mesmo para algumas de suas velhas tarefas a educao especial j

    no vinha obtendo muito xito em prover respostas eficazes. A este respeito, no so

    poucas as pesquisas e documentrios que constatam que a existncia de um sistema

    paralelo de ensino no representa, necessariamente, uma proviso educacional de maior

    qualidade, muito menos garante a soluo dos problemas encaminhados s escolas e

    classes especiais. Tais concluses so colocadas com base em dados que mostram que o

    nvel de fracasso escolar verificado na clientela da educao especial quase to

    alarmante quanto o do alunado da educao regular. Estes estudos, em geral, apontam

    para a relatividade do conceito de necessidades educacionais especiais e para a

    necessidade de haver um ensino especializado que complemente a proviso educacional

    regular, fazendo, portanto, parte desta, e no constituindo-se num sistema parte, com

    instituies prprias que encarecem ainda mais os servios sem necessariamente melhorar

    a qualidade (ver, por exemplo: Booth, 1987; Cole, 1990; Mittler, 1993).

    7) Da mesma forma que a educao especial, a educao regular tambm sofre suas

    conseqncias: o aumento do contingente de fracassados e excludos apenas formaliza a

    constatao de sua ineficcia e amplia a obviedade da falcia dela ser um instrumento de

    justia e promoo social. Esta educao, portanto, tambm precisava ser revista.

    8) Com isto, o que esta nova concepo abrangente de necessidades educacionais especiais

    provoca, uma aproximao destes dois tipos de ensino, o regular e o especial, na medida

    em que esta nova definio implica que, potencialmente, todos ns possumos, ou

    podemos possuir, temporria ou permanentemente, necessidades educacionais especiais.

    E, se assim o , ento no h porque haver dois sistemas paralelos de ensino, mas sim um

    sistema nico, que seja capaz de prover educao para todo o seu alunado (por oposio a

    clientela), por mais especial que este possa ser ou estar.

    9) No se trata, portanto, nem de acabar com um, nem de acabar com outro sistema de

    ensino, mas sim de junt-los, unific-los num sistema educacional nico, que parta do

    mesmo princpio (de que todos os seres humanos possuem o mesmo valor, e os mesmos

    direitos), otimizando seus esforos e se utilizando de prticas diferenciadas, sempre que

    6

  • necessrio, para que tais direitos sejam garantidos. isto que significa, na prtica, incluir

    a educao especial na estrutura de educao para todos, conforme mencionado na

    Declarao de Salamanca.

    Implicaes Educacionais e Psicopedagogia

    E o que significa este pensar, no que diz respeito prtica educacional? Em primeiro lugar,

    significa reconhecer que, a exemplo do que diz a Declarao de Salamanca:

    Incluso e participao so essenciais dignidade humana e ao gozo e exerccio dos direitos humanos. No campo da educao, tal se reflete no desenvolvimento de estratgias que procuram proporcionar uma equalizao genuna de oportunidades. A experincia em muitos pases demonstra que a integrao das crianas e jovens com necessidades educacionais especiais mais eficazmente alcanada em escolas inclusivas que servem a todas as crianas de uma comunidade. (p.61)

    Em segundo lugar, significa entender do que se trata a escola inclusiva:

    O princpio fundamental da escola inclusiva o de que todas as crianas deveriam aprender juntas, independentemente de quaisquer dificuldades ou diferenas que possam ter. As escolas inclusivas devem reconhecer e responder s diversas necessidades de seus alunos, acomodando tanto estilos como ritmos diferentes de aprendizagem e assegurando uma educao de qualidade a todos atravs de currculo apropriado, modificaes organizacionais, estratgias de ensino, uso de recursos e parcerias com a comunidade (...) Dentro das escolas inclusivas, as crianas com necessidades educacionais especiais deveriam receber qualquer apoio extra que possam precisar, para que se lhes assegure uma educao efetiva (...) (p. 61)

    Em outras palavras, as implicaes consistem no reconhecimento da igualdade de valor entre

    seres humanos (Booth, 1981) e de direitos, e na conseqente tomada de atitudes, em todos os

    nveis, que reflitam uma coerncia entre o que se diz e o que se faz.

    No que diz respeito educao, e em termos governamentais, isto implicaria na reformulao

    de polticas educacionais e da implementao de projetos educacionais do sentido excludente

    ao sentido inclusivo. Uma grande questo que geralmente se coloca sobre este aspecto, em

    pases, regies ou localidades em que a educao especial j tenha se constitudo como um

    sistema paralelo de ensino, refere-se onerosidade financeira de tal reformulao. De fato,

    nenhum comeo fcil. Mas os esforos e investimentos demandados pelo movimento de

    advocacia de uma educao inclusiva s so onerosos quando vistos numa perspectiva

    7

  • imediatista. A longo prazo, o investimento compensa, como sugerem alguns autores (Jones,

    1983; Hadley & Wilkinson, 1995).

    Transformar, por exemplo, as escolas especiais atuais em centros de referncia de proviso de

    educao especial, cujo objetivo principal seja fornecer apoio tcnico e equipamentrio s

    escolas regulares, poderia provocar uma saudvel reformulao na estrutura bsica de

    educao especial tradicional (segregada).

    Na verdade, a educao especial no se restringe a escolas especiais. Estas so possveis

    provises oferecidas pela educao especial, da mesma forma que o seria uma sala regular

    com professores assistentes trabalhando os grupos de alunos junto ao professor regente.

    Assim, a educao especial muito mais do que as instituies em que ela oferecida. Ela

    tanto pode constituir um sistema paralelo de educao, quanto fazer parte do sistema regular

    de qualquer contexto educacional.

    Desta forma, nos casos em que tal tradio de ensino segregado no esteja ainda estabelecida,

    concentrar esforos e investimentos numa educao inclusiva, j de incio, seria de grande

    vantagem, alm de estar em conformidade com o que sugere a Declarao de Salamanca. E,

    nos casos em que a tradio inclua um sistema paralelo de ensino como palco de

    acontecimento da educao especial, o vantajosos seria, conforme sugere a mesma

    declarao, que os esforos e tcnicas gerados nesta instituio sejam socializados e

    democratizados ao ensino como um todo, de forma que a escola especial se transforme, acima

    de tudo, num centro de referncia e proviso tcnica e de gerao de conhecimentos a serem

    aplicados na educao regular, para onde iriam, em mdio e longo prazos, seus alunos.

    Feitas as consideraes acima, cabe ainda uma pergunta: que reflexos elas tm no fazer

    psicopedaggico? Muitos. Em primeiro lugar, o fato de que a educao especial passou a

    abranger uma clientela to mais ampla, que inclui tambm as pessoas (deficientes ou no)

    com dificuldades genricas de aprendizagem (em carter permanente ou temporrio), e que

    freqentemente so expostas ao fracasso escolar, impe Psicopedagogia um repensar de sua

    prpria existncia.

    Em segundo lugar, torna-se imperativo que a Psicopedagogia reveja seu papel remediativo: ou

    para somar esforos aos profissionais que tradicionalmente trabalham com portadores de

    8

  • deficincia, ou para abdicar de vez do exerccio deste papel para que os educadores especiais

    o assumam.

    Consideraes Finais

    Tal como os aspectos discutidos acima, outros aspectos tm sido levantados, exemplificando

    o receio que naes, governos e demais implicados possam ter quanto a este processo de

    transformao da educao em direo incluso. Por exemplo, existem preocupaes

    expressas a respeito do nvel de capacitao dos profissionais da educao regular e da

    educao especial, e a respeito da falta de investimento no assunto (Fulcher, 1989; Bennett &

    Cass, 1989; Bowers, 1993), e assim por diante.

    Tais preocupaes, ainda que altamente relevantes, muitas vezes acabam impedindo a

    implementao de programas educacionais inclusivos, ou, no mnimo, acabam sendo usadas

    como justificativas para a manuteno de sistemas paralelos de ensino, o que por sua vez

    refora uma certa contradio entre o que se verifica no discurso e na prtica.

    O Brasil no constitui exceo. Em seu texto legal, muito embora venha cada vez mais

    afirmando sua concordncia com uma linha inclusiva de educao (ver, por exemplo, o artigo

    208 de nossa carta Magna), na prtica verifica-se ainda uma grande discrepncia em relao

    ao que diz a lei ou ao que manifestam as falas de professores, e o que se verifica na prtica.

    A esse respeito, Santos (1995) realizou um estudo comparativo entre 4 pases europeus e uma

    capital do sudeste brasileiro (Vitria-ES). O estudo buscou investigar as discrepncias entre as

    polticas de integrao e as respectivas prticas de educao apresentadas pelos pases e

    capital brasileira, selecionados neste estudo. Em suas concluses, a autora conseguiu levantar,

    dentre os pases cujas prticas educacionais puderam ser consideradas como estando mais

    prximas a uma educao inclusiva. Alguns indicadores comuns que, no seu entender,

    poderiam oferecer ao contexto brasileiro uma probabilidade de sucesso de implementao de

    programas educacionais de cunho inclusivista (respeitando-se, obviamente, as peculiaridades

    do seu prprio contexto).

    Entre tais indicadores, ela destacou:

    1) sistemas descentralizados de formulao e implementao de polticas em geral, incluindo

    as respeitantes ao campo da educao, e caracterizado por um alto grau de consultoria aos

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  • imediatamente implicados, bem como um alto grau de iniciativas de sensibilizao de toda

    a populao sobre as questes implcitas ao assunto;

    2) liderana por parte dos governos no sentido de tomar a frente e propor iniciativas prticas

    para apreciao por e participao de todos os implicados;

    3) adoo de reformulao radical, mas gradual (com expectativas de mdio e longo prazo

    para resultados, e curto prazo para aes) e planejada;

    4) compromisso poltico de dar continuidade s propostas encaminhadas, realizando, para

    isso, esforos no sentido de garantir o financiamento necessrio realidade de cada

    localidade em particular, de forma contnua e consistente;

    5) uma postura firme, por parte de todos os implicados, e principalmente das instituies de

    ensino, a respeito da educao para todos e da incluso como princpios e processos

    bsicos e inquestionveis de suas propostas educacionais.

    Em outras palavras, os indicadores acima no constituem receitas prontas para que o Brasil

    simplesmente consiga seguir um rumo cada vez mais inclusivo. Por outro lado, a importncia

    dos indicadores levantados parece inegvel, o que os torna dignos, no mnimo, de

    considerao por qualquer contexto poltico-social que se proponha a seguir os ideais de um

    mundo inclusivo. At porque, em ltima instncia, do mundo que se fala quando se fala em

    incluso, e no apenas de uma determinada minoria pertencente a uma determinada

    sociedade. O movimento pela incluso, conforme discutido na primeira parte deste captulo,

    se refere a uma viso e perspectiva de mundo, e no meramente a uma luta por (e de) algumas

    minorias apenas.

    Assim sendo, no caso do Brasil os aspectos acima, se considerados e postos em prtica,

    poderiam assegurar uma maior garantia de que nos tornssemos na prtica um pas de linha

    mais inclusiva do que o somos no papel. Para tanto, deveramos continuar fortalecendo os

    nveis locais de deciso. Deveramos buscar eleger e vigiar candidatos polticos

    comprometidos com este ideal de mundo, de uma sociedade menos excludente e mais

    inclusiva, cujas propostas primem por setores bsicos que elevem o Brasil esta condio.

    Deveramos eleger lderes que tomassem iniciativas no sentido de motivar e conclamar os

    cidados a participarem de seus projetos; lderes comprometidos, acima de tudo, com a

    continuidade de projetos socialmente relevantes, tanto os iniciados por sua administrao

    quanto aqueles iniciados por administraes anteriores.

    10

  • preciso, ainda, que tenhamos uma perspectiva realista: no se muda atitudes da noite para o

    dia, sejam elas individuais ou coletivas. Principalmente quando consideramos que toda nossa

    tradio histrica tem sido em termos de omisso ou, quando posturas so tomadas, elas

    tenham se manifestado no sentido do preconceito. Acima de tudo, aqueles de ns que

    pertencemos aos privilegiados grupos que tm acesso ao saber e instruo e informao;

    aqueles de ns que tm a oportunidade de fazer uso de sua educao de uma forma crtica,

    tm, no mnimo, o compromisso moral de discutir e se posicionar, a favor ou contra, com e a

    respeito dos grupos imediatamente atingidos pela organizao de uma sociedade em termos

    da excluso. Pois atravs daqueles esclarecidos, em suas atuaes profissionais e pessoais,

    que condies podem ser pensadas, atitudes podem ser repensadas, e novas atitudes podem

    propostas e exemplificadas na prtica.

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