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1 EDUCAÇÃO E SOCIEDADE: UMA VISÃO CRÍTICA AMPARADA EM ROUSSEAU 1 CLAUDIO MANO Pesquisador do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF. Aluno do Curso de Filosofia da UFJF. [email protected] RESUMO Partindo da constatação, de que apesar dos efetivos esforços envidados à educação em nosso país, a qualidade do material humano obtido ao término desse processo, persiste em mostrar-se muito aquém do desejável, o estudo que se segue, busca apontar algumas contradições implícitas a nossa sociedade, de modo a tentar indicar algumas das causas desse descompasso. Embora cada uma delas separadamente, não vá por si só parecer tão danosa, em seu conjunto elas impedem que na prática obtenhamos em nosso convívio, aquele cidadão que desejamos, ou seja: Um homem independente e que saiba cuidar de si mesmo, para que a partir daí, unido por um vínculo indissociável à sociedade onde nasceu, possa então contribuir efetivamente para a sua manutenção e prosperidade. PALAVRAS-CHAVE: Educação, Sociedade, Cidadania. RÈSUMÉ Malgré de constant efforts déployés pour l'éducation au Brésil, la qualité de la formation du matériel humain est bien en dessous de ce qui est souhaitable. L'étude qui suit cherche à montrer quelques-unes des contradictions propres a notre société pour essayer d'indiquer les principales causes de ces problèmes. Prise séparément ces motifs ne semble pas très mauvais, mais ensemble, ils empêchent d'avoir un vrai citoyen, c'est-à-dire: un homme 1 Monografia apresentada ao Curso de Bacharelado em Filosofia do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora, em Novembro de 2010, sob a orientação do prof. Mário José dos Santos.

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EDUCAÇÃO E SOCIEDADE: UMA VISÃO CRÍTICA AMPARADA EM

ROUSSEAU 1

CLAUDIO MANO Pesquisador do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF.

Aluno do Curso de Filosofia da UFJF. [email protected]

RESUMO

Partindo da constatação, de que apesar dos efetivos esforços envidados à educação em nosso país, a qualidade do

material humano obtido ao término desse processo, persiste em mostrar-se muito aquém do desejável, o estudo

que se segue, busca apontar algumas contradições implícitas a nossa sociedade, de modo a tentar indicar algumas

das causas desse descompasso. Embora cada uma delas separadamente, não vá por si só parecer tão danosa, em

seu conjunto elas impedem que na prática obtenhamos em nosso convívio, aquele cidadão que desejamos, ou

seja: Um homem independente e que saiba cuidar de si mesmo, para que a partir daí, unido por um vínculo

indissociável à sociedade onde nasceu, possa então contribuir efetivamente para a sua manutenção e

prosperidade.

PALAVRAS-CHAVE : Educação, Sociedade, Cidadania.

RÈSUMÉ

Malgré de constant efforts déployés pour l'éducation au Brésil, la qualité de la formation du matériel humain est

bien en dessous de ce qui est souhaitable. L'étude qui suit cherche à montrer quelques-unes des contradictions

propres a notre société pour essayer d'indiquer les principales causes de ces problèmes. Prise séparément ces

motifs ne semble pas très mauvais, mais ensemble, ils empêchent d'avoir un vrai citoyen, c'est-à-dire: un homme

1 Monografia apresentada ao Curso de Bacharelado em Filosofia do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora, em Novembro de 2010, sob a orientação do prof. Mário José dos Santos.

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indépendant qui conduit son propre destin avec un lien indissociable de la société où il vit pour contribuer

effectivement à son fonctionnement.

MOTS-CLÉS: Éducation, Société, Citoyenneté

Em alguns momentos no decorrer de nossas vidas, nos damos conta de que nada mais somos que sobreviventes. Os perigos que superamos, em sua grande maioria, não se apresentam à nossa consciência em sua real dimensão. Mais que acidentes, doenças e vícios, eles se constituem das nossas companhias, nos ideais e valores que professam, e que por sua proximidade, fortemente nos influenciam, quer seja para o bem quanto para o mal. Essa Monografia, antes de ser o marco que distingue o estudante graduando do estudante bacharel, tem seu maior significado na simples possibilidade de poder ter sido empreendida, pois, uma vez que não agimos sozinhos no mundo, isso indica que, quer seja pela sorte, quer seja por colaborarmos com ela, tivemos ao nosso lado as pessoas certas, que de alguma forma contribuíram para pavimentar o caminho que nos levou a enfrentar e superar este desafio. Dentre elas, o lugar de destaque pertence à Izabel, que participa comigo não só desse projeto, mas de todos aqueles em que nos envolvemos nos últimos 30 anos, e quem sem dúvida é a minha melhor influência. Se as palavras que escrevo soam compreensíveis aos que as lêem, isso se deve à paciência e aos ensinamentos do Prof. Mário José dos Santos, que além de me auxiliar desde os primeiros textos em que me empenhei, deu-me a honra de ser meu orientador nesta Monografia. Também gostaria de lembrar o Prof. Ricardo Vélez Rodriguez, que por seus incentivos a meus textos anteriores, me levou a persistir na produção de novos. Certamente cometo injustiças ao não citar nominalmente outros professores do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Juiz de Fora, mas gostaria de deixar registrada a minha satisfação, por encontrar em um mesmo ambiente profissional, a rara combinação de pessoas de tão elevado gabarito e dedicação.

A tese de que a educação é um fator determinante na formação e no progresso de um

povo, não é nova, na verdade é consenso universal. Em nosso país, é inegável que

paralelamente à ênfase dada ao discurso político, recursos financeiros e humanos têm sido

efetivamente aplicados de forma crescente nessa rubrica. Paradoxalmente, entretanto, no que

toca a qualidade do homem que o processo educacional entrega à sociedade, os resultados são

pífios. Os jornais nos mostram constantemente escândalos de todo o tipo envolvendo o meio

político, o que nos faz seriamente questionar o preparo que seus integrantes receberam. Ao

mesmo tempo em que governos fazem publicidade de novas rodovias e hospitais, dando ao

povo uma idéia de progresso e bem estar, os motoristas vêem suas vidas e patrimônio

destruídos em estradas deterioradas e, a população em geral, quando necessita dos serviços de

saúde, os encontra depauperados. Esse descompasso sugere, senão uma falta de ética no poder

executivo, pelo menos uma incompetência generalizada em seu quadro administrativo, o que

em nosso entendimento, poderia ter sido evitado por intermédio de uma boa educação. E

quanto ao conjunto da sociedade? Crianças são arremessadas pelas janelas e estupradas por

familiares, vemos uma televisão que privilegia o grotesco em detrimento da cultura, enfim,

nosso cotidiano se encontra pleno de indicações que a educação falhou em seu propósito, ou

seja, prover harmonia e prosperidade a uma nação. A seguir, nosso texto trata dos objetivos e

limites da educação como ferramenta de construção social.

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1 – Introdução

Em nossa empreitada, buscaremos principalmente em Jean-Jacques Rousseau (1712-

1778), o apoio de que necessitamos. O filosofo genebrino, desenvolve uma antropologia a

partir de um hipotético “estado de natureza”, onde o homem, despido de qualquer vestígio de

maldade, vive em plena liberdade. Nesse ambiente suas preocupações restringem-se àquelas

de atender suas necessidades básicas, e na verdade, essa ocupação lhe toma quase a totalidade

de seu tempo, enquanto que o restante é destinado ao ócio. Como possui toda a força e

habilidade que a tarefa exige, e conta com a natureza como provedor, pouca ou mesmo

nenhuma necessidade tem de ajuda de seus semelhantes, aos quais encontra ocasionalmente,

como por exemplo, para acasalar-se.

Seus semelhantes, embora não fossem para ele o que são para nós, e com eles não houvesse

um convívio muito maior do que com os outros animais, não foram esquecidos em suas

observações. As conformidades que o tempo pode lhe mostrar entre sua fêmea e ele mesmo

fizeram julgar sobre as que ele não percebia; vendo que todos se comportavam como ele se

comportaria em tais circunstâncias, concluiu que a maneira de pensar e de sentir de todos era

inteiramente conforme a sua, e essa importante verdade, estabelecida em seu espírito, o fez

adotar, por um pressentimento quase tão seguro e mais imediato que a dialética, as melhores

regras de conduta que, para sua vantagem e segurança, convinha manter com eles2.

Assim foi, segundo nosso Filósofo, a alvorada do convívio social. Mas essa

aproximação, não se deu ao mesmo tempo nem do mesmo modo para todos os povos.

Rousseau destaca a influência do clima na formação do homem. A fartura ou escassez de

alimentos, as temperaturas extremas ou amenas, as vicissitudes impostas pelo relevo, são

fatores que influenciam tanto a vontade de associação, quanto o formato social resultante. Em

função dessas observações, Claude Lévi-Strauss, considera Rousseau o pai da etnologia

moderna3.

Temos então, que a primeira união entre os homens se dá em função de “costumes e

características, e não por regulamentos e leis”4. Daí então inferirmos, que a educação surge

como resultado do desejo de manutenção de uma rotina, primeiro sob o manto da tradição, e

2 ROUSSEAU Jean-Jacques, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, (Tradução de Paulo Neves), Porto Alegre, LP&M, 2008, p 82 3 STAROBINSK Jean, Histoire de la philosophie II v2, Paris, Gallimard, 1973, p 703 4 ROUSSEAU, Discurso da desigualdade, op. cit. p 86

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posteriormente como preparo ao convívio social, que lado a lado com o desenvolvimento do

intelecto humano, torna-se cada vez mais complexo com o decorrer do tempo.

2 – O homem em Rousseau

No séc XVIII temos o ápice do iluminismo. O conhecimento científico predomina e se

expande, enquanto que os “relatos de viagens” evidenciam a diversidade humana. Descrições

de terras distantes, de culturas bizarras, e até mesmo de povos selvagens que vivem ainda bem

próximos de um “estado de natureza”, se multiplicam. Rousseau, atento observador da

realidade de seu tempo, passa então a considerar que práticas da sociedade civilizada, que não

são compartilhadas por todas as culturas, ou mesmo não encontram uma contra-partida na

“vida natural”, são criadas a partir do ingresso do homem na vida em sociedade, e assim não

são inatas à espécie:

Depois de ter comparado vários povos e suas organizações (...) pude ver e destaquei como

artificial tudo aquilo que presente em um povo faltava a outro, estando em um estado se

ausentava em outro, e não considerei como parte incontestavelmente humana, aquilo que não

fosse comum a todos5.

Ora, podemos até assumir que existem características naturais humanas que se impõem ao seu

comportamento, como por exemplo, suas reações aos comandos dos sentidos. Já o que não é

fruto da natureza humana, ou seja, tudo aquilo que não pode ser percebido e vivenciado por

todos, trata-se então de simples convenção, e assim pode muito bem ser modificado. Dessa

forma, se considerarmos a tendência ao grupamento social como sendo “natural” ao homem,

uma vez que é um padrão sobre a terra, certamente a forma de organização, que se mostra

particular a cada povo, provavelmente é passível de modificações.

O homem quando nasce, se apresenta à sociedade da mesma forma como se apresenta

ao “estado de natureza”: puro, sem pecados, sem preferências, ou seja, ele pode ser modelado.

Ele nasce com a capacidade de aprender, mas nada sabe. “Ele não nasce um francês”; “ele se

torna um francês” a partir de uma construção intelectual e moral, pelo aprendizado da língua,

pela assimilação das tradições. Em sendo assim, não será possível pela educação formar um

homem que venha a modificar a sociedade, minimizando os sofrimentos e injustiças que lhe

são comuns? Na verdade essas transformações sociais estão em pleno curso, mas não de

acordo com um plano, e sim o fruto do acaso:

5 ROUSSEAU, Émile, apud CRÉPON Marc, Les géographies de l’esprit, Paris, Payot & Rivages, 1996, p 107

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Hoje em dia não existem mais os Franceses, Alemães, Espanhóis, ou mesmo Ingleses. Todos

são Europeus. Todos tem os mesmo gostos, as mesmas paixões, os mesmos modos, porque

nenhum recebeu sua formação a partir de uma instituição particular à sua nacionalidade6.

Assim Rousseau chega a uma idéia original; que além da educação que visa a formar o

homem, ou seja, uma educação que se baseia em sua natureza e busca fornecer-lhe uma

compreensão de si próprio e do mundo que o cerca, a educação também pode ser em função

das exigências de uma específica sociedade, e assim tem por finalidade formar o cidadão.

3 – A educação do homem

Em Émile7 Rousseau nos apresenta seu projeto de educação. Seu objetivo não é

oferecer uma metodologia que vise a preencher o jovem com conhecimentos e lhe inculcar

comportamentos, e sim, dar uma orientação de como formar o homem que mantendo sua

independência e suas opiniões, será capaz de conviver em uma sociedade hostil a essa

postura. Considerando o conflito entre as necessidades da natureza e as sociais, Rousseau

desenvolve a idéia da “educação negativa”: “Ela consiste em dar à natureza o tempo

suficiente para que faça prevalecer seus próprios princípios, de fazer entender suas lições, de

modo a diminuir os efeitos nefastos”8 que um contato inevitável com a sociedade produzirão.

Nesse método, a criança aprende por sua própria experiência, a natureza é o grande

professor. O objetivo é que não se formem vínculos precoces entre a criança e o país onde

vive, ou mesmo que os valores da sociedade, a grande maioria fruto exclusivo de

preconceitos, se imponham ao seu comportamento, sobrepondo-se a sua vontade ainda não

formada. Quando não estamos sendo submetidos a forças externas, o costume termina e o

natural desponta, assim, nossa natureza se mostra quando agimos sem a influência da opinião

adquirida pelo hábito9. Nesse ambiente, a função do preceptor deixa de ser a de fornecer

respostas e indicar caminhos, mas sim de orientar o jovem em sua própria busca, de forma

que com o tempo, ele se torne seu próprio guia.

Dentro da proposta acima apresentada, o ambiente cosmopolita de um grande centro

urbano, como Paris, se mostra inadequado ao nosso Filósofo, que escolhe o campo como

lugar ideal para a formação inicial de seu pupilo. Nesse ponto vale ressaltar, que apesar de

6 ROUSSEAU, Considerations sur le governement de Pologne, apud, CRÉPON, Les géographies op. cit. p 117 7 ROUSSEAU Jean Jacques, Émile, Paris, Flamarion, 1996 8 CRÉPON, Les géographies, op. cit. p 101 9 ROUSSEAU, Émile, op. cit. p 38

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Rousseau ver na sociedade a fonte de todos os males que afligem o homem, ele não acredita

que este seja um mal que possa ser evitado:

(...) na minha opinião, a sociedade é natural à espécie humana, assim como a decrepitude ao

indivíduo, e que os povos precisam de artes, leis e governos assim como os velhos precisam

de muletas. A única diferença é que o estado de velhice decorre apenas da natureza do

homem, enquanto o da sociedade decorre da natureza do gênero humano, (...) com a ajuda de

algumas circunstâncias exteriores (...)10,

que poderão vir a acelerar ou retardar o processo. Não se pode evitar que o jovem venha a ter

contato com o que pode desvirtuá-lo, deve-se porém adiar ao máximo esse encontro de modo

que quando ocorra, já se tenha nele desenvolvido suficiente discernimento para saber lidar por

si só com a situação.

Rousseau nos diz que a educação busca formar a razão. Pelo uso da razão,

iremos regular nossos atos, discernir o bem do mal. Mas antes de tê-la formado, não a

possuímos, e por isso é inútil exigi-la das crianças. Por isso, não cabe censurá-la por agir mal,

mas sim criar um ambiente onde ela possa agir livremente sem perigo para si própria11, mas

quando inevitável intervir, que seja com o uso da força12 – não da violência ou da autoridade,

pois a força se constitui de uma realidade muito além de seu poder e assim não pode ser

questionada. Vale notar que nesse caso, a força não é o puro e simples exercício da

superioridade física, mas principalmente a irreversibilidade das decisões tomadas pelo tutor,

ou seja, um não jamais poderá ser negociado a se tornar um sim. As crianças – como os

animais – precisam reconhecer quem as “alimenta”, não podem existir fontes alternativas, daí

surge o vínculo de necessidade e respeito.

Já a violência, é o uso da força física desmedida, guiada pela frustração ou pela raiva,

que acaba por perder seu foco no limite a ser estabelecido ao comportamento infantil. Esta

tem um efeito colateral irreversível, pois condiciona ao medo das conseqüências no agir, e

assim acovarda. A submissão à autoridade absoluta, por outro lado, uma vez assimilado como

padrão de relacionamento, acaba por deixar a criança ao sabor da opinião dos outros. Em

ambos os casos, sempre haverá espaço na alma do jovem aluno para o rancor: “é da natureza

humana suportar pacientemente a necessidade das coisas, mas não a má vontade dos

outros”13. Portanto, temos que para Rousseau, o relacionamento do mestre com o aluno deve

10 ROUSSEAU, Discurso da desigualdade, “carta ao Sr Philopolis”, op. cit. p 165 11 ROUSSEAU, Émile, op. cit. p 79 12 Ibid, p 109 13 Ibid, p 110

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ser tal “que a criança (...) sinta a sua fraqueza, mas não a sofra (...) que ela dependa, mas não

obedeça (...) que ela solicite, e que não mande”14.

O compromisso com a experiência é outro fator preponderante na educação

propugnada pelo Filósofo genebrino. O conhecimento deve ser construído, e não recebido: Ao

invés de explicar a seu aluno de onde provem os alimentos, deixe que ele trabalhe no campo.

Ao experimentar o trabalho, ele aprenderá também que a dependência entre os homens – as

relações sociais – mais que uma necessidade moral, é em função da utilidade que proporciona;

“uma hora de atividade no trabalho lhe valerá muito mais que um dia inteiro de

explicações”15. A experiência também é importante, na visão do Filósofo, pois permite que a

totalidade dos conhecimentos obtidos sejam correlacionados e assim permaneçam na

memória. O encadeamento entre todas elas, é que passa a lhes conferir sentido16.

Em nosso entendimento, Rousseau nos dá subsídios à formação do homem

livre. Mas sua liberdade não implica em se desvincular da sociedade, muito pelo contrário, ela

se dá em seu interior, justamente em função de seu posicionamento crítico. O treinamento –

educação – frutuoso confere ao individuo a habilidade de julgar para além dos preconceitos,

de compreender a paixão sem se entregar cegamente a ela, e assim exercer uma característica

humana, que segundo Rousseau lhe é inata, mas que requer cuidados para ser desenvolvida: o

sentido de justiça. Mas o que acontece ao ser humano quando o objetivo da educação não é

sua autonomia e sim sua submissão à sociedade?

A seguir, tentaremos abordar outra forma de integrar o individuo em seu meio social.

Agora serão os costumes que, herdados de nossos antepassados, irão nortear nossa inserção na

sociedade. Se por um lado isso nos possibilita compartilhar os valores que nos integram ao

grupo, por outro, se não formos amparados pelo exercício do juízo, poderemos acabar nos

transformando em reféns de regras que somente repetimos, ao invés de as defendermos.

4 – A herança social

Aristóteles nos diz que o “legislador deve acima de tudo, dirigir sua atenção à

educação dos jovens (...) o cidadão deve ser moldado para adotar a forma de governo na qual

ele vive”17, de modo que o estado se perpetue. Vale notar, entretanto, que ele considerava que

a manutenção da ordem – da Pólis – era a priori um objetivo comum a ser alcançado, e daí “a

14 Ibid, p 100 15 Ibid, p 240 16 Ibid, p 228 17 ARISTÓTELES, Politics, London, William Benton, 1952, VIII – 1, 1137ª [10]

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educação dever ser a mesma para todos”18 e assim, definida em lei. Vale ainda lembrar, que

somente uma elite, os cidadãos, eram reconhecidos pelo estado, os demais – os escravos –

simplesmente não eram considerados como “Homens”. No decorrer desse segmento, a

exemplo de Aristóteles, estaremos sempre considerando uma sociedade formada

exclusivamente por senhores.

O Homem possui uma qualidade que os animais não possuem, pois embora receba

dotes naturais e também seja influenciado pelo hábito, ele “faz muitas coisas contra o hábito

ou a natureza, se um princípio racional assim o persuadir”19. Temos portanto, que Aristóteles

busca através do poder do estado, formar homens que o fortaleçam, de modo a preservar a

maneira de ser que caracteriza a identidade da Pólis. Mas que estado é esse? Será o mesmo,

que alguns anos antes sentenciou Sócrates a morte? Um lugar onde a opinião e o hábito

prevalecem sobre a razão? Em nossa avaliação, certamente não. Daí surge a necessidade de se

formar homens, que educados na perspectiva de serem governados quando jovens, possam

também, eles mesmos, tornar-se governantes quando chegada a idade adequada; “uma cidade

só pode ser virtuosa quando os cidadãos que dividem o governo, o são”20, e segundo

Aristóteles, é pela educação que construiremos esse homem.

Aristóteles nos leva a conceber uma sociedade de iguais em torno do ideal da Pólis e

reafirmada em função da educação; mas como “a igualdade consiste em tratamento similar a

pessoas similares”21, temos sua possibilidade de concretude limitada à prevalência da

comunhão do sentimento primordial em relação ao estado, que se enraíza na sociedade como

que um hábito, e que se renova e intensifica com o passar das gerações.

Essa sociedade, que na prática designa diferentes posições e responsabilidades a seus

constituintes – uma hierarquia de poder – apresenta uma arquitetura social diferente daquela

apresentada por Platão na “República”. Neste último, prevalece uma elite dirigente que se

destaca não só pela autoridade dos cargos, mas por serem detentores de qualidades que faltam

aos demais. Com a proposta aristotélica, nos distanciamos do projeto platônico, que faz de um

individuo – o rei filósofo – o porta voz da verdade, e encontramos no consenso em torno do

objetivo maior de todos os cidadãos – a Pólis – a direção a ser seguida.

Nesse ponto, gostaríamos de expandir um pouco nosso horizonte de trabalho, para

refletir sobre as implicações que entendemos consequentes à posição que observamos em

Aristóteles. Se chamarmos o procedimento que busca estabelecer o consenso de democracia, e

18 Ibid, 1137ª [20] 19 Ibid, VII – 13, 1132b [5] 20 Ibid, 1132ª [30] 21 Ibid, VII 14, 1132b [25]

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o meio pelo qual ele é aferido, de voto, temos que sua eficácia se restringe a como dar

andamento a um projeto que a priori já está acordado – a Pólis – e assim efetivamente nunca

poderá haver vencedores ou vencidos no processo democrático, uma vez que o próprio tema

fundamental que sucinta a questão, não está em julgamento.

Vejamos um exemplo para o que foi sugerido acima: Por conveniência, homens

constroem suas casas umas próximas às outras. Por tradição, uma arquitetura e uma

proposição urbana se impõe. Do convívio surge que interesses comuns – como a limpeza –

conduzem à soluções comuns, e de modo a auferir dos bônus que a integração de forças

resulta, cada um se compromete a arcar com o ônus decorrente. Mas em um determinado

momento surgirá um impasse: será necessário revitalizar o pavimento da rua, ou a fachada dos

prédios, de modo a preservar a urbanidade? Uns serão contra, outros a favor, e após a

explanação racional e fundamentada das necessidades, o voto decide qual alternativa

prevalece.

Seja qual for a alternativa escolhida, o objetivo principal – o acordo social – que é

anterior a própria necessidade de manutenção, mas do qual ela é decorrência, foi alcançado.

Nenhum direito foi tolhido e nenhum ônus estabelecido que não fosse de antemão aceito por

todos como necessário ao objetivo de todos. Ai, em nosso entendimento, reside a democracia.

Mas se a alternativa em questão fosse criar facilidades adicionais, de forma que tanto as

condições iniciais fossem perdidas como os custos e benefícios distribuídos de forma

desigual, o resultado da votação de tal proposta, teria como resultado tão somente a submissão

de uma minoria à vontade da maioria, ou, dependendo da própria distribuição dos votos –

mais de uma alternativa – da imensa maioria por uma minoria. Em qualquer dos casos, o

processo torná-se uma fraude, pois em nosso entendimento, não é o voto que confere

legitimidade à escolha, e sim o compromisso de todos em torno do ideal comum.

De nossa análise resulta que a democracia somente é aplicável à “ajustes finos”;

interesses notadamente distintos, quando arbitrados segundo essa técnica, por fugirem ao

espírito que fundamenta o dever comum, conduzem inevitavelmente ao engodo. Não passam

de uma justificativa para a prática de arbitrariedades. Da mesma forma, se pelo voto

escolhemos um representante, ele deve ser tal que qualquer um que for escolhido leve a tarefa

a bom termo, e de acordo com o que qualquer outro por si só faria na mesma situação.

Se entregar ao capricho de uma vontade alienígena, que não representa o compromisso

com o bem estar individual, que é o desejo primário de todos os signatários do compromisso

com o bem comum, mesmo que consumado por meio do voto, é apenas loucura da parte de

quem se submete, e um simples ardil daqueles que propõem tal alternativa. Chegar a se

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defrontar com tal proposta, já é indicativo da ruptura do acordo social original. Isso expõe

uma falha do sistema educacional, em prover o estado, com cidadãos compromissados em dar

continuidade a uma ordem que privilegia o espírito fundador da sociedade.

Com o exposto acima, nosso objetivo é enfatizar a importância que conferimos ao

“desejo comum”, como elemento catalisador das vontades individuais. Acreditamos também,

que ele só pode frutificar dentro de um grupo homogêneo, pois somente nessa circunstância

faz sentido tentar se preservar um estado de coisas que nos foi herdado. Por outro lado,

certamente não acreditamos que o objetivo de uma sociedade seja a estagnação, pois como Sir

Francis Bacon (1561-1626) nos diz, “a perpetuidade através da geração, é comum aos

animais; mas memória, mérito e trabalho honrado são características do homem”22, ou seja,

existe uma dinâmica social inerente a própria atividade humana. Mas entendemos esse

movimento como inscrito na história, alheio à vontade individual, o que faz com que as

atualizações no âmago dos ideais que aglutinam a sociedade sejam graduais e imperceptíveis.

Utilizando o conceito de democracia que apresentamos, temos que todas as questões

postas na pauta de discussão por uma sociedade precisam estar balizadas pelo interesse

comum. O acordo deve se situar sempre em torno da seleção da melhor alternativa possível, e

por isso em sintonia com a verdade. Mas o que é verdade? Desde a modernidade, ela nos é

dada pela ciência. A ciência é o veículo das transformações, pois ela pode, por meio das

demonstrações, provar a teoria na prática, fazendo assim prevalecer a sua verdade de forma

irrefutável sobre qualquer outra. Além disso, a ciência não se sustenta em dogmas ou

vontades pessoais. Dessa forma todo o seu conhecimento se sujeita à crítica e a possibilidade

de refutação, e assim pode ser substituído sem o menor remorso; até pelo contrário, com a

satisfação de ter seus rumos ajustados em acordo com a emergência da verdade. Essa postura

confere à ciência tanto sua força quanto sua credibilidade.

Mas como é impraticável que todos repitam por si mesmos as experiências que

confirmam as teorias, de modo a certificá-las, acaba-se por acreditar sem provas. Somos

convidados a confiar irrestritamente naqueles que falam em nome da ciência, e daí a

necessidade de um rigor moral absoluto por parte desses e também das instituições que lhes

dão sustentação. Por isso inclusive, devemos estar sempre atentos à aproximação entre

política – governo – e ciência; pois para que não se incorra em riscos de se corromper a

verdade que permeia a sociedade, temos de exigir dos políticos o mesmo valor moral que

atribuímos ao cientista.

22 BACON Francis, Of Parents and Children, Man and Society, London, William Benton, 1963, p5

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A situação descrita acima nos leva a um paradoxo, pois a ciência que visa por

intermédio do conhecimento conferir autonomia aos indivíduos, acaba por conduzir a vasta

maioria da sociedade à passiva submissão, que tanto incomoda as mentes mais esclarecidas.

As causas em disputa passam a ter um votante que detém muitas “procurações”, pois

acostumando-se a praticar um julgamento apenas parcial, temos que os homens tornam-se

presa fácil à interesses contrários aos seus próprios, sempre que apresentados por vozes

dignas de “confiança”. Michael Faraday (1791-1867) nos diz: “A sociedade de uma forma

geral, não é apenas ignorante à educação do julgamento, mas também o é de sua própria

ignorância”23.

O célebre cientista defende a idéia de que a origem de nossos erros de julgamento, não

decorre de informações falsas, mas sim de informações insuficientes24. A informação

insuficiente é, em nosso entendimento, a mãe da “opinião geral”, via de regra, irreflexiva. Ela

favorece o surgimento de um sentimento imponderado, que ao disseminar-se pela sociedade,

acaba por se firmar como verdade, ou quem sabe, como esperança: “O veneno do

descontentamento” tem seu melhor antídoto no conduzir os homens de esperança em

esperança25. Temos então, que atrofiados no exercício do julgamento autônomo, os homens

acabam por se habituar às suas circunstâncias; mas os hábitos podem ser mudados:

Assim, já que o hábito é o principal magistrado da vida do homem, façamos com todos os

meios que ele obtenha bons hábitos. (...) Certamente o hábito é mais bem assimilado quando

começa na infância; e a isso chamamos educação, que nada mais é na verdade, que um hábito

primeiro26,

Voltamos então ao nosso tema principal; mas antes de abordar nosso próximo tópico, a

educação do cidadão, achamos por bem frisar alguns conceitos já apresentados, e que se

fazem essenciais para a compreensão do restante de nosso trabalho.

5 – Síntese das idéias já apresentadas

1- A educação que permite conduzir à reflexão, ou seja, à capacidade do pensamento

crítico, é aquela que não impõe à criança os dogmas da sociedade antes que os próprios

valores envolvidos, a partir da experiência e do avançar da idade, já tenham sido por ela

23 FARADAY Michael, Observations on Mental Education, Man and Society, London, William Benton, 1963, p214 24 Ibid, p211 25 BACON, Of sedition and Troubles, op. cit. p16 26 BACON, Of Custom and Education, op. cit. p19

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apreendidos. Dessa forma temos que a compreensão dos significados deve anteceder a

submissão às palavras, o que nos remete a “educação negativa” propugnada por Rousseau.

2- Em contra partida, a educação que preenche o jovem com um conteúdo que ele

repete mais não compreende, o alija para sempre de qualquer possibilidade de realização

pessoal plena e mesmo de uma participação efetiva na sociedade, pois “a falta de pensar

durante a infância, oculta essa faculdade durante o resto da vida”27. Quem é educado assim,

acaba por apoiar vontades que não são suas, por motivos que não são seus. Nele prevalece a

incapacidade – que lhe foi inoculada – de se apropriar de todas as informações necessárias ao

bom julgamento.

3- A partir da modernidade, a prova científica se impõe como paradigma da verdade.

Como efeito colateral, cedemos a priori nossa capacidade de julgamento àqueles que detém

esse monopólio. Portanto, se nos cabe algo a decidir, é somente o referendar entre as

alternativas que nos são oferecidas; elas tornam-se legítimas, não por refletirem nossos

anseios, mas sim por desembocarem inevitavelmente na “verdade”.

4- Interesses que se sustentam em fundamentos contraditórios, não podem ter seu

conflito resolvido por meio da aferição da vontade majoritária – o voto, sob pena de impor

inevitavelmente à submissão os que por princípio buscavam um acordo. Não fosse essa

violência por si só intolerável, na verdade o que se suprime é a possibilidade de liberdade para

todos; pois ao se estabelecer um arcabouço jurídico-policial com vistas a constranger à

obediência, temos que essas medidas acabam por aplicar-se indiscriminadamente ao conjunto

da sociedade.

5- Para se evitar um antagonismo destrutivo, a sociedade deve lutar para preservar os

valores que em primeiro lugar a constituiu. Essa idéia, que já transparece em Aristóteles e é

explícita em Rousseau, deriva da constatação que as mesmas leis não podem convir a povos

que possuem costumes diferentes28. Concluímos assim, que uma sociedade que perca suas

referências de costume, inevitavelmente entrará em conflito com sua própria legislação, ou

seja, consigo mesma. Dai a importância que atribuímos à crença nos valores inatos à

sociedade; que inicialmente constituídos em função dos interesses comuns, que se afirmam

em cada sociedade, só se mantém íntegros em conseqüência de uma intenção, que encontra na

educação sua forma mais eficaz de perpetuação.

27 ROUSSEAU, Émile, op. cit. p 146 28 ROUSSEAU Jean Jacques, O Contrato Social, Porto Alegre, LP&M, 2008, p 62

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6 – A educação do cidadão

O cidadão tem objetivos e necessidades diversos do homem “natural”. Enquanto o

último tem em si mesmo sua maior preocupação – ele é o centro de todo seu interesse –, o

primeiro é tão somente uma fração de um corpo social sem o qual sua existência não tem

nenhum significado29. Esse vínculo, estabelecido ao nascer, será reforçado desde o mais tenro

contato com a sociedade por um processo que chamamos de educação, e somente será

quebrado pela morte:

Uma criança, ao abrir seus olhos, deve ver sua pátria, e até sua morte, nada mais ver que a ela.

Todo verdadeiro republicano suga juntamente com o leite de sua mãe, o amor por sua pátria,

ou seja, suas leis e sua liberdade30.

Rousseau observa que aos vinte anos, um Polonês não deve ser nada mais nada menos que um

Polonês31, ou seja, que independente de qualquer habilidade, profissão ou situação social que

o venham a caracterizar enquanto individuo, ele se destaca quando colocado sobre o mosaico

das nacionalidades como detentor de qualidades que somente encontram correspondência em

seus concidadãos.

A importância dessa formação é tamanha, que Rousseau, em suas “Considerações

sobre o governo da Polônia”, ao tentar por em prática o ideário desenvolvido em seu

“Contrato Social”, destaca que essa tarefa transcende a pura intuição paterna do que tange a

melhor formação para seus filhos, e assim “a lei deve regular o conteúdo, a ordem, e a forma

de seus estudos”32. Por outro lado, nesse mesmo texto, ele insiste em sua tese de que “a boa

educação deve ser a educação negativa”, que já apresentamos, e que nos parece certamente

muito adequada a formação do homem; mas como implementá-la em relação à construção do

cidadão?

Segundo Rousseau, para que a educação do cidadão cumpra seus objetivos, o processo

didático deve ser simples; não deve aborrecer o aluno com coisas que ele ainda não

compreenda, e deve ter na ênfase do relacionamento social sua pedra angular. Assim, os pais

que o preferirem, até mesmo podem assumir parte da tarefa educacional, mas o aprendizado

dos valores comuns à nacionalidade e cidadania, deverá sempre ser exercitado em comum:

Não se deve permitir que brinquem – os jovens – separadamente de acordo com suas

vontades, mas sempre juntos e em público, de modo que sempre tenham um objetivo comum a

29 ROUSSEAU, Émile, op. cit. p 39 30 ROUSSEAU Jean Jacques, Considérations sur le gouvernement de Pologne, Oeuvres completes t. III, Paris, Gallimard, 1964 p 966 31 Ibid, pág 966 32 Ibid, pág 966

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que todos aspirem, e lhes inspire competição e empenho. Pais que prefiram a educação

doméstica, e que educarão seus filhos sob seu olhar, devem entretanto, enviá-los a esses

exercícios. Sua instrução pode ser doméstica e particular, mas seus jogos devem sempre ser

públicos e comuns a todos; porque não se trata de apenas mantê-los ocupados, de dar-lhes uma

constituição robusta, de os tornar ágeis e musculosos, mas de os acostumar desde cedo às

regras, à igualdade, à fraternidade, à competição, a viver sob os olhos de seus concidadãos e a

desejar a aprovação pública33.

A aprovação pública. Esse é, em nossa avaliação, o desejo que lançado como semente

no âmago da subjetividade do individuo em formação, ao germinar e prosperar, o enlaça

perpetuamente à sua comunidade. Os costumes, as leis e as virtudes morais que nos ensinam,

tornam-se tão somente os meios para alcançá-la. Temos assim que, para consolidar o

ambiente social exigido pela cidadania, qualquer outro meio artificial será inútil:

Proibir as coisas que não se deve fazer é um expediente ineficiente e vão, a não ser que

comecemos por fazê-las desprezadas e odiadas, pois jamais a desaprovação da lei é eficaz, a

não ser que apoiada pelo julgamento – do público34.

Em nosso entendimento, é justamente também nesse ponto, que reside a diferença

fundamental entre a educação do homem e do cidadão. No primeiro será encorajada a

autonomia e uma compreensão abrangente e não preconceituosa do mundo, que lhe permite

uma visão crítica inclusive em relação à sociedade onde nasceu. Já no segundo teremos que o

compromisso com seus concidadãos, ao nortear todos os aspectos de sua vida, se por um lado

faz prevalecer a harmonia social, por outro limita sua possibilidade de percepção da realidade.

Forçado a combater a natureza ou as instituições sociais, é necessário optar entre formar um

homem ou um cidadão: pois não se pode obter os dois ao mesmo tempo35.

Temos portanto, que as leis e virtudes que nos são ensinadas, antes de se constituírem

um fim em si mesmas, são na verdade um legado, que uma vez assimilado, torná-se o meio de

que dispomos para alcançarmos o reconhecimento e sermos aceitos em nossa comunidade.

Sob esse aspecto, é razoável supor, que quanto mais complexas e numerosas forem as regras

básicas que codificam os valores de uma sociedade – sua constituição – mais difícil será sua

apreensão por parte dos futuros cidadãos, e sem seu perfeito domínio, o efetivo ingresso na

sociedade lhes é permanentemente vedado.

Em aprendendo a ler, ele deve ler sobre as coisas de seu país; que aos dez anos, ele conheça

todos os seus produtos, aos doze, todas as suas províncias, estradas e cidades, que aos quinze

ele saiba toda a sua história, e aos dezesseis, todas as suas leis36. 33 Ibid, p 968 34 Ibid, p 965 35 ROUSSEAU, Émile, op. cit. p 38

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Entendemos que na medida em que o número dos que faltam com as características e

comportamento inerente ao cidadão for superior a capacidade da sociedade de neutralizá-los –

banimento – a degradação do tecido social é inevitável e irreversível.

Na sociedade contemporânea em que vivemos, vemos que toda a ênfase na educação

do jovem é dada em função da formação técnica, visando sua inserção profissional. É como se

a possibilidade de obtenção de emprego esgotasse toda sua obrigação e perspectiva de

participação em face a seu meio social. Da mesma forma, o dever da sociedade em relação a

seus membros, acaba por se restringir em assegurar acesso aos meios de subsistência, quer

seja pelo acesso ao trabalho, ou pelo puro e simples assistencialismo. A vergonha pelo

fracasso ou o erro, que era a marca indelével que a todo custo deveria ser evitada, é soterrada

por multas, processos infindáveis, punições desmedidas e atenuantes de toda espécie. O

vínculo com os princípios fundadores foi perdido. Assim, entendemos que nenhum esforço,

por mais recursos que se dedique à tarefa, terá êxito na formação de verdadeiros cidadãos.

Vale destacar, que ao seguirmos as pegadas de Rousseau em sua busca por uma

sociedade mais justa e coerente, longe de sermos levados cegamente rumo a uma utopia,

acreditamos que nossa meta é simplesmente a cidade de “Genève”; a cidade da qual ele

mesmo se orgulhava de ser cidadão. Entendemos boa parte do esforço de nosso Filósofo,

como sendo a tentativa de disseminar a idéia do governo dos cidadãos – que tem como

modelo sua cidade natal – pela Europa, que em seu tempo encontrava-se plena de monarquias

autoritárias que impediam o povo de participar nas decisões que envolviam seu próprio

destino.

7 – A tolerância: sua importância e significado

A sociedade contemporânea, que tem na globalização seu novo paradigma, ignora em

tese e impede na prática, qualquer manifestação do pensamento cujos valores não se

comuniquem obrigatoriamente com todos os demais por ela já homologados. Termos como

sustentabilidade, que agregam em um macro sentido o compromisso de desenvolvimento

econômico, respeito ao meio ambiente, à diversidade cultural além de justiça social, tomam

não só o espaço que lhes é conferido pela mídia, como também permanecem indistintamente

ecoando por nossas cabeças, como que acolhidas ingenuamente pelo super-ego freudiano;

mas seu significado efetivo em nosso dia a dia, ainda nos remete à uma incógnita.

36 ROUSSEAU, gouvernement de Pologne, op. cit. p 966

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A “diversidade” desponta como uma palavra chave: Representa uma mistura de

interesses, culturas, crenças e mesmo valores éticos e morais, muitas das vezes conflitantes,

que agora precisam, mais que conviver respeitosamente e em harmonia, coexistir em um

mesmo tempo e espaço. Nesse ambiente a palavra “tolerância”, ganha o sentido de andar lado

a lado com o “diferente”, mesmo até com o desagradável e indesejado, e torná-se uma virtude

obrigatória à civilidade. Mas será o significado que lhe vemos atribuído, compatível ao

conferido por John Locke (1632-1704) em sua famosa “carta sobre a tolerância”37?

Locke visa principalmente o âmbito religioso. Ele defende que os indivíduos têm o

direito de professar a fé na religião de sua preferência, e que ninguém, nenhuma outra

instituição religiosa ou mesmo o governo civil, tem o direito de lhe causar qualquer tipo de

entrave. Mas além disso, nós acreditamos, seus ensinamentos permitem-nos fundamentar não

somente o direito de se possuir, mas também de se preservar as crenças que conferem

identidade aos grupos sociais de uma forma geral.

Em seu tempo, nosso Filósofo constata que os homens em nome de Cristo agem sem

piedade. Perseguem e destroem seus companheiros no intuito de impedir “vícios” que bem

poderiam ser comparados às suas próprias ações salvadoras38. Ele também observa que

existem perseguições em função de divergências políticas, e defende que não se deve utilizar

a crença em Deus como argumento de sustentação a um governo civil e seus interesses

particulares39. A lei civil se refere a uma ordem que visa manter, com justiça, o direito à vida,

à liberdade e à propriedade dos que constituem a sociedade. Já o poder da religião, consiste

em uma conversão interior, em uma fé, e não em uma manifestação exterior para ser

ostentada40. Assim, a lei civil pode até impor um comportamento ao cidadão, mas jamais

persuadir o surgimento da fé, que deriva de uma iluminação interior.

Locke observa que o que vale para os homens também se manifesta nas nações, que

acabam por tentar impingir umas às outras sua própria fé como sendo a única verdadeira –

uma salvação imposta pela força. Assim o autor conclui que os poderes civis devem se ater às

coisas “mundanas” e jamais se imiscuir em assuntos do mundo espiritual41.

Para Locke, a igreja é uma associação voluntária de homens livres que compartilham

uma crença em comum; de como obter a salvação de suas almas42. Sob esse aspecto, ela não é

algo hereditário – passado obrigatoriamente de pai para filho – mas sim um compromisso que

37 LOCKE John, A Letter Concerning Toleration, London, William Benton, 1952 38 Ibid, p 1 39 Ibid, p 2 40 Ibid, p 3 41 Ibid, p 4 42 Ibid, p 4

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se assume perante si mesmo e a igreja da qual se deseja participar. Se em determinado

momento, descobre-se que aquela doutrina não é efetivamente a mais adequada, uma vez que

a adesão se deu livremente, assim também ela pode ser quebrada, estando ao homem

assegurado o livre acesso à busca do caminho de sua salvação.

Mas a igreja, como qualquer outra associação constituída por homens, estabelece

regras que permite a sua coesão e perpetuidade em torno da crença original que os reuniu.

Como a adesão à igreja é voluntária, ninguém se submete a ela por imposição, ou seja, as

regras ao refletirem a maneira desejada de se agir, antes de serem um fardo para seus adeptos,

na verdade é uma garantia de que influências externas não infiltrarão valores incompatíveis e

contrários ao espírito fundador da associação.

Mas aqueles que tendo optado por fazerem parte, insistirem em não agir de acordo

com os preceitos estabelecidos, devem ser eliminados do grupo – pela excomunhão – ou seja,

se a tolerância implica em respeito aos demais grupos, ela não pode ser justificativa à

descaracterização da própria comunidade em que escolhemos viver. Locke insiste no ponto de

que por detrás de toda a diversidade de costumes e crenças, cabe somente ao indivíduo

escolher aquele que mais lhe serve. Ninguém pode escolher por ele, mesmo porque, somente a

ele caberá o ônus de qualquer escolha equivocada43.

Nosso Filósofo faz uma clara distinção entre o mundano, que explicita a

particularidade das coisas, e o espiritual, onde residem as crenças que nos conduzem e nos

unem: “Eu posso ser curado da doença por medicamentos nos quais não tenho fé, mas não

posso ser salvo por uma religião na qual não acredito”44. Para Locke, a obediência do homem

é em primeiro lugar em relação a Deus, somente depois, à lei civil. Desse modo, se o governo

age de acordo com esse princípio – aderência às leis de Deus – dificilmente o homem se

insurgirá contra seus atos, por considerá-los arbitrários ou fora da lei45.

Temos então, que Locke mantém uma postura pragmática em relação à tolerância que

ele prega e reverencia: 1- Qualquer prática que não se pretenda impor aos outros, deve ser

tolerada. 2- A igreja que associa a fé e obediência de seu grupo a uma nação estrangeira, não

deverá ser tolerada46. 3- Aqueles que pelo ateísmo, causam danos às religiões, não devem ser

tolerados47.

43 Ibid, p 9 44 Ibid, p 10 45 Ibid, p 16 46 Ibid, p 18 47 Ibid, p 18

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Na visão de Locke, tanto o estrangeiro, que impõe valores alienígenas à sociedade

como um todo, quanto o ateu, que menospreza e agride todas as crenças ao postulá-las

desprovidas de sentido, não podem ser tolerados; para ele, se abrir ao estrangeiro ou dar

espaço ao ateu é como cometer um suicídio social. Da mesma forma, é imprescindível à

sociedade possibilitar espaços distintos e invioláveis para que as manifestações particulares de

fé, oriundas dos diversos grupos independentes que a compõe, possam materializar-se sem o

risco de se imporem umas às outras. Entendemos que essa estratégia, amparada no exercício

da tolerância, permite acomodar mesmo as mais insólitas minorias, e até mesmo em seu

momento extremo, resguardar o direito à individualidade em todos os seus aspectos.

Em nosso estudo, postulamos que existe uma crença primordial que amalgama as

sociedades, que como identificamos em Rousseau, mantém coesos aqueles que em primeiro

lugar se haviam unido em torno da utilidade comum, consolidando-a em uma “vontade geral”.

Entendemos da leitura de Locke, que ele também reconhece esse espírito fundador, não

apenas na comunidade eminentemente religiosa, como também na sociedade civil. Esta

última, ao privilegiar o sentido de pertença a uma comunidade – o que hoje chamamos de

nacionalidade, abre espaço para que um certo grau de inadequação dos indivíduos à

homogeneidade social seja exteriorizado nos limites de subgrupos; distintos em propósitos –

religiosos, políticos, profissionais – mas coesos em relação aos princípios gerais de uma

específica sociedade, sem os quais todos se esfacelariam.

Do exposto acima, tolerância surge não como o ato de se fechar os olhos ao que nos

ofende, muito menos o de abrir mão de nossas crenças pelo receio de constranger quem quer

que seja. Tolerância pressupõe a força necessária para que um grupo – ou mesmo um

indivíduo – mantenha-se livre de qualquer interferência, interna ou externa, que o ameace, ao

mesmo tempo em que renuncia usá-la para submeter quem quer que seja.

A sociedade contemporânea inaugura, com o advento da tirania do politicamente

correto, o desvirtuamento do significado do termo tolerância. Assim, travestida em

resignação, ela passa a ser, nos moldes que John Locke veementemente repudiava, a simples

disseminação forçada de uma crença majoritária, que acaba por implicar na adoção de um

comportamento padronizado e inquestionável imposto a todos.

Ao finalizar esse segmento, gostaríamos de salientar que Locke via na educação uma

forma efetiva de se atuar sobre a sociedade. Ele parte da premissa, como nos lembra Paulo

Clinger, que “a mente da criança é como uma tabula rasa”48, portanto totalmente permeável.

48 CLINGER Paulo, A Dialética da Liberdade em Locke, Londrina, Eduel, 2003, p 43

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Ora, se “a convivência no estado de sociedade requer dos indivíduos compreensão, tolerância,

(...) a única via para se atingir este estágio é o da educação”49. Um detalhamento do processo

educacional, como sugerido por Locke, foge ao escopo de nosso trabalho; o que nos importa

nesse momento é, sob a autoridade desse Filósofo, reafirmar a importância do processo em si

para a formação e estabilidade de uma sociedade.

Vale entretanto notar que Rousseau, aquele que escolhemos como nosso

principal orientador, embora concorde com Locke quanto à possibilidade de moldar o jovem

aluno – “Nós nascemos capazes de aprender, mas não sabemos nada”50 – discorda do mesmo

quanto a forma de o educar. Para o Filósofo genebrino, como já expusemos, a educação deve

ser negativa, e tem por objetivo justamente formar a razão. Já o Filósofo inglês, vê as crianças

como pequenos adultos, a quem devemos transmitir o quanto mais cedo possível, os valores e

regras da sociedade; visão que ainda vicejava à época de Rousseau e que permanece vigorosa

até os dias de hoje:

Argumentar com as crianças era a grande máxima de Locke; e que continua em voga em

nossos dias; seu sucesso não me parece no entanto, forte o suficiente para garantir-lhe crédito;

e para mim, não vejo nada de mais tolas que essas crianças com quem se busca tanto discutir.

Das faculdades do homem, a razão nada mais é que o conjunto de todas; é aquela que se

desenvolve com maior dificuldade e mais tardiamente; e é justamente esta, que querem utilizar

para desenvolver as primeiras! O objetivo máximo de uma boa educação é constituir um

homem razoável – sensato –: e se pretende educar uma criança pelo uso da razão! Isso é

começar pelo fim, é querer fazer da obra concluída o instrumento para sua confecção.51

Em nosso entendimento, da mesma forma que “tolerância”, “educação” ganha no

mundo contemporâneo um sentido degenerado: prevalece em seu núcleo a idéia de se

conformar o indivíduo, não ao comportamento virtuoso em torno de ideais tradicionais

consagrados – a educação do cidadão –, nem de dotá-lo da postura crítica em relação a esses

valores – a educação do homem –, mas sim de enraizar a resignação às limitações artificiais

que lhe são impostas no decorrer de seu próprio aprendizado – a educação do escravo –.

8 – A Educação do Escravo

Como já mencionamos, a sociedade contemporânea cultua a diversidade como

símbolo de igualdade entre seus constituintes, e assim, qualquer tipo de atitude ou proposta

49 Ibid, p 46 50 ROUSSEAU, Émile, op. cit. p 68 51 Ibid, p 106

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que sugira uma diferenciação entre indivíduos ou categorias de indivíduos – profissões,

crenças, raças, etc – é drasticamente reprimida, inclusive com o uso da força da lei. Mas será

que por detrás dessa massa pasteurizada ainda permanecem particularidades que limitam e

delimitam a possibilidade de convivência e participação social de cada um?

Não devemos nos esquecer, que não apenas no nível local – município, estado, país –

mas também em nível global, é o trabalho o principal fator de inserção do homem na

sociedade. Serão todas as formas de trabalho indistintamente reconhecidas como a

materialização do valor e da dignidade de quem as pratica? Existirão atividades tão

entediantes – ou mesmo degradantes – que, justamente por necessárias, implicam em uma

seleção arbitrária e impositiva para serem levadas a termo? Será que em pleno século XXI,

ainda convivemos com aquele que trabalha contra a sua vontade e aptidão natural, movido

exclusivamente pela necessidade de sobrevivência e medo das conseqüências de sua inação,

ou seja, o escravo? Se sim, como distingui-los dos verdadeiros cidadãos, se é que eles ainda

existem?

A história nos sugere que a escravidão é uma instituição tão antiga quanto o próprio

grupamento social humano. Entre os antigos gregos, todo o trabalho manual era reservado aos

escravos, permitindo a seus senhores o ócio necessário ao desenvolvimento da mente e do

corpo. Não é objeto desse estudo, uma elaboração detalhada sobre as causas e conseqüências

dessa prática, que em nossos dias é tida como abominável e injustificável sob quaisquer

aspectos. Intuímos, entretanto, que apesar de formalmente banida, a escravidão esteja

associada à causa de muitos dos males que afligem a nossa sociedade.

A seguir apresentamos algumas definições que se fazem necessárias a uma clara

compreensão de nosso texto:

1- Escravo: Um ser humano destituído da força necessária a fazer prevalecer sua

própria vontade. Essa força se constitui, não somente dos meios físicos – força bruta, armas,

etc. – como também de meios intelectuais. Estes últimos se manifestam em sua capacidade de

discernir e optar pelo que lhe é mais vantajoso, ou mesmo, em não o sendo, por ser condizente

com sua convicção moral, objeto de sua livre escolha. Dentro de nossa definição, ao escravo a

priori é vedada a livre escolha, quer ele tenha consciência disso ou não.

2- Escravidão: Processo no qual alguém produz não só sua subsistência, mas se vê sob

a imposição de contribuir para a subsistência de outros. Sob esse aspecto, nossa leitura do

mecanismo da mais-valia identificada por Marx, antes de ser uma novidade que explicita o

cerne do sistema capitalista, nada mais é que o tradicional processo de escravidão sob nova

roupagem; ampliado em sua força por meio do recurso tecnológico. Vale notar que por meios

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de subsistência, não entendemos exclusivamente os alimentos e o atendimento de

necessidades básicas, mas também todo o aparato necessário à vida em meio à sociedade.

Quais seriam as qualidades desejáveis a um escravo? Como o objetivo fundamental do

escravo é a submissão a uma vontade alheia, a obediência nos parece ser uma virtude

essencial a sua personalidade. Certamente pela força podemos obter a concordância dos

indivíduos; mas somente dentro de determinadas circunstâncias e por um determinado prazo

de tempo. Na medida em que este se prolonga, o custo de submetê-los torna-se por demais

oneroso e até mesmo insustentável, como nos lembra Rousseau: “O mais forte nunca é

bastante forte para ser sempre o senhor se não transformar sua força em direito e a obediência

em dever”52.

Freud (1856-1939), em seu admirável texto “A civilização e seus descontentes”53, nos

remete à idéia de que a repressão comportamental que a sociedade impõe ao individuo, acaba

por se incorporar em seu super-ego. Assim, se em um primeiro momento, por força da

necessidade de obtermos a aprovação da sociedade, agimos em acordo com seus preceitos,

quando certos de não sermos observados, podemos agir de forma diversa, pois estaremos

livres do repudio e da punição. Mas quando a autoridade é internalizada pelo super-ego, já

não existe mais diferença entre agir e pensar em agir. A culpa permanece independente de

qualquer imputação externa; o super-ego é inflexível, sua crítica permanente é muito mais

dura que qualquer admoestação que o mundo externo nos possa oferecer. O pai da psicanálise

também acredita, que da mesma forma que o individuo, a própria sociedade desenvolve um

super-ego, que irá influenciar sua evolução enquanto cultura. Mas na medida em que a cultura

une os homens, ela também aumenta a vigilância de uns sobre os outros e da sociedade sobre

todos. Isso somente faz exacerbar o processo de formação de culpa, que acompanhando o

continuo processo de desenvolvimento da humanidade, faz nosso psicanalista prever que

inevitavelmente o limite do suportável será ultrapassado.

Ora, existirá melhor escravo do que aquele que se enreda em grilhões psicológicos e

assim dispensa o uso de chibatas, correntes e prisões? Acreditamos que não. Mas será que

podemos efetivamente entender o mecanismo psicológico identificado por Freud como

aplicável à transmissão e à implantação de valores no ambiente social em que vivemos?

A segunda observação de Freud (1923) foi que, em grande parte, as imagens dos pais

introjetadas para formar o superego são as dos superegos dos pais. Isto é, em geral acontece

que os pais, ao educar os filhos, tendem a discipliná-los tal qual o foram por seus próprios pais

52 ROUSSEAU, O Contrato Social, op. cit. p26 53 FREUD Sigmund, Civilization And Its Discontents, London, William Benton, 1952

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durante a infância. Suas exigências morais, particulares, adquiridas na infância, eles as

aplicam aos filhos, cujos superegos, em conseqüência, refletem ou se assemelham aos

superegos dos pais. Esta característica tem uma conseqüência social importante, como Freud

(1923) salientou. Acarreta a perpetuação do código moral de uma sociedade e é em parte,

responsável pelo conservadorismo e pela relutância em mudar demonstradas pelas estruturas

sociais54.

Bem, nesse ponto podemos voltar à nossa reflexão original: Existe uma mensagem – o

que Rousseau identifica como “vontade geral”, Freud a percebe como “código moral” – que é

repassada continuamente no seio da sociedade, e é o que lhe confere tanto seu formato quanto

a sua coesão. Vemos que essa mensagem tem sua maior eficiência quando passada de pai para

filho no seio da família, ou seja, os valores familiares ecoam os valores da sociedade como

um todo. Mas o que acontece se em determinado momento enfraquecemos esse fluxo vital de

informação, delegando a membros estranhos à família a educação de nossos filhos?

Rousseau já nos alertava para os riscos de se entregar as crianças aos empregados:

“eles lhes são cem vezes mais perigosos e funestos que as próprias doenças”55. Em sua visão,

tudo aquilo do qual necessitamos quando adultos, e que não possuímos ao nascer, nos será

fornecido pela educação56, e nos diz, que ao atribuir um preceptor ao filho, o pai o faz ser

educado por um serviçal; daí nada mais natural, quando torna-se adulto, que passe a agir

como tal. Em verdade nosso Filósofo via os professores da mesma forma negativa com que

Platão via os sofistas; para o Filósofo genebrino “existem ocupações tão nobres que ao fazê-

las por dinheiro, nos tornamos indignos de exercê-las”57.

Se voltarmos às nossas definições de escravo e escravidão, veremos que o serviçal a

quem Rousseau se refere, não passa de um escravo. Se olharmos a nossa volta, entre nossos

amigos, parentes e mesmo desconhecidos, sejam eles humildes ou mais abastados, veremos

que via de regra as crianças são entregues para serem criadas e educadas por estranhos. Estes

o fazem profissionalmente, e na grande maioria das vezes, em acordo com técnicas

pedagógicas e conteúdos didáticos que não são definidos pelos pais, mas sim por um governo.

Para que o ensino retenha algum vínculo ou compromisso com a tradição familiar de

uma específica comunidade, será preciso então que a vontade do governo se confunda com a

vontade dos cidadãos, ou seja, esteja em acordo com a vontade geral. Temos portanto que

nossos filhos são educados por “escravos” e que o conteúdo pragmático desse ensinamento,

54 BRENNER Charles, Noções Básicas de Psicanálise, Rio de Janeiro, Imago, 1987, p 128 55 ROUSSEAU, Émile, op. cit. p 75 56 Ibid, p 37 57 Ibid, p 52

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embora fuja ao nosso controle imediato, deve ser compatível com o que nós mesmos lhes

transmitiríamos pessoalmente.

Quando um estado engloba uma multiplicidade de culturas, quer seja por sua extensão

territorial, ou mesmo em função da origem diversa de sua população, inevitavelmente uma

vontade particular acaba por prevalecer em lugar da crença original. Sob essa circunstância,

temos então que necessariamente a opinião majoritária se sobrepõe à vontade geral, e a partir

desse momento, as leis não representam mais os nossos desejos e sim nossas obrigações.

Nessa comunidade artificial desprovida de um sentimento fundador comum a todos seus

participantes, acaba por prevalecer exclusivamente o conflito de interesses. Nesse ambiente, a

educação assume a tarefa de introgetar novos valores, e tentar fixá-los em nossas mentes

como se fossem os herdados de nossos antepassados.

Nesse último caso, vemos nossas crenças condenadas ao esmaecimento, esmagadas

que são pelo arbítrio exercido pela vontade do estado; que se vê legitimado, uma vez que

exerce seu poder em nome de uma maioria. Assim, somos obrigados a aceitar em nosso

convívio, como naturais, crenças, práticas e valores que não o são. Que quando muito

deveriam ser tolerados; isso quando praticados em um espaço distinto daquele onde

exercemos o nosso dia a dia. Quem se resigna por não ter meios para se defender, não passa

de um escravo. Assim caímos em um circulo vicioso: escravos que tem seus filhos educados

por escravos para serem escravos.

Vale notar, que apesar da padronização do processo educacional no mundo

contemporâneo, onde prevalece o estado como agente regulador, aqueles cujos interesses se

aproximam dos motivos particulares que agora regem a sociedade, certamente são

beneficiados em relação aos demais. Assim, as diferenças naturais entre os homens são

potencializadas. Em decorrência disso, a possibilidade de cidadania que sob a luz da vontade

geral era implícita à participação na sociedade, agora, como tudo o mais, passa a depender da

forma como se está nela inserido.

9 – A educação pelas leis

Como vimos no segmento anterior, a educação, que se dá tanto no âmbito familiar

quanto no social, acaba por ter nesse último sua expressão mais evidente; dado o vigor da

intervenção do estado, enquanto que o primeiro – embora não menos importante – permanece

subliminar em meio à convivência diária. Como nos assinala Montesquieu (1689-1755), cada

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tipo de governo estabelece um conjunto de leis que visam especificamente formatá-la58 – a

educação – e assim preservar a legitimidade e continuidade de seus específicos interesses.

O cenário anterior à modernidade industrial, onde os filhos aprendiam dos pais a

profissão que exerceriam no decorrer de suas vidas59, aos poucos é substituído pela incerteza

da avaliação escolar. O desenvolvimento de habilidades no seio familiar, mais que conferir

um meio de sobrevivência, possibilitava a formação do sentimento de independência –

segurança em si mesmo e em seu oficio – e dignidade. Mas por outro lado, confirmava uma

ligação utilitária à sua comunidade, algo absolutamente esquecido em uma sociedade vitima

da globalização, onde adquirimos nos mercados alimentos que antes eram produzidos em

nossa região por nossos vizinhos. Agora esses produtos provêm de qualquer local do mundo;

o que torna parte de nossa comunidade obsoleta e desnecessária.

Esse contexto é extremado pelo ensino obrigatório, que justamente priva o aluno da

oportunidade de identificar de pronto seu próprio valor, pois condena todos, indistintamente, a

uma formação comum e a buscar por seus destinos, inevitavelmente, em um ambiente

desconhecido. Nessa empreitada suas armas se constituirão tão somente, como nos observa

Rousseau, em um “talento padronizado”. Assim, “aquele que não encontra circunstâncias

favoráveis para usá-las, perecera na miséria como se não as tivesse”60.

No mundo contemporâneo, já não bastassem todas essas incertezas, a volta ao lar – ou

à falta dele – que é inevitável ao final de cada jornada escolar, verga o jovem sob o peso de

sua família e de sua comunidade; pois por mais forte que as leis o determinem e os

professores se esforcem, lá ainda se respira resquícios de um ar outrora impregnado de

ancestralidade. Nosso jovem vive assim, imerso em um mar de contradições. Seu desempenho

é medido por sua conformidade à ordem social, mas ela por si só não lhe garante uma posição

na sociedade.

Se as leis destinadas a regular o ingresso na vida social se mostram insuficientes para

garantir tal inserção, como esperar do jovem, reconhecimento e obediência a todas as outras?

Se os valores assimilados de sua família não encontram correspondência no convívio com

seus concidadãos, como compreendê-los e respeitá-los? Reformulemos a primeira pergunta:

Se a pré-condição ao reconhecimento social é a educação, que abre as portas ao mercado de

trabalho, por que, cumpridas as mesmas exigências, vemos uns recompensados e outros não?

Nesse ambiente repleto de contradições, o homem, que via de regra prefere o certo ao

58 MONTESQUIEU Charles De, The Spirit of Laws, London, William Benton, 1952, IV, 1 59 ROUSSEAU, Émile, op. cit. p 254 60 Ibid, p 255

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duvidoso e impreciso, acaba por aderir a um código virtual na representação da realidade que

o cerca, fazendo-a mais palatável. Dessa forma, favelas se transformam em comunidades; ruas

limpas e arborizadas em redutos da burguesia exploradora, e assim por diante.

Nesse ponto, precisamos introduzir mais um conceito, de modo a não confundir nosso

leitor: o mal. Nos ensina a boa prática acadêmica que diante de tal proposição, deveríamos

buscar uma fundamentação em pensadores já consagrados. Mas não é o que faremos.

Primeiro, porque a complexidade do tema nos conduziria para longe do objetivo desse

trabalho e do espaço disponível que temos para apresentá-lo. Segundo, porque nos limites de

nosso estudo, o mal não se configura como algo metafísico: ele se apresenta tão somente

como uma inadequação ao cotidiano, ou seja, se manifesta sempre que adotamos um

comportamento diferente daquele – previsível – que nos é exigido pela sociedade.

Vejamos um exemplo: Na escola a criança aprende o valor da matemática e das

ciências como pré-requisito a qualquer expectativa de futuro. Também é apresentada as

formas de postura denominadas “éticas” – como não mentir, e hoje, dentre outras, a ecologia

– e que agindo fora delas, estará irremediavelmente condenada à execração social. Já em casa,

ela se depara com o predomínio da força física – necessária ao desempenho do trabalho dos

pais – ou mesmo da prática de uma esperteza que arranha a desonestidade, como formas

válidas de sobrevivência e ascensão social.

Da mesma forma, caso utilize no ambiente escolar os conhecimentos da reserva de

valores de sua comunidade particular, poderá estar ofendendo ou agredindo. Pela inadequação

de suas atitudes estará fazendo o mal. Sob esse aspecto, a ignorância, tal como

contextualizada por Faraday61, não passa de uma inadequação entre o conhecimento

verdadeiro e a prática, que não consegue abarcá-lo: assim qualquer ação pode tornar-se a

encarnação do mal. Não importa a intenção de quem a pratica, nem mesmo o efetivo dano

social causado, mas sim a percepção de quem a sofre ou presencia, em função de enquadrá-la

ou não em acordo com a legislação.

Ao longo da história, a sociedade humana sempre recorreu às leis para lidar com o

problema da inadequação às expectativas formadas pelas normas sociais, ou seja, com o mal.

Em nossos dias não é diferente. Como em tese, o que não é proibido em lei é permitido, a

cada manifestação do mal, uma nova lei é constituída no intuito de prevenir sua repetição,

numa escalada tal, que tendemos ao dia em que tudo será proibido, e a partir daí, só será

permitido fazer o que a lei determinar. Aos infratores aplica-se o rigor crescente das

61 pág 9 desse trabalho

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penalidades, e como o medo da punição passa a ser considerado como sendo a persuasão

fundamental e irrefutável, acaba que toda a sociedade se vê submetida a ele.

Os livros de Rousseau, “Émile” e “O Contrato Social”, também foram considerados

“inadequados” quando de sua publicação em 1762, e foram proibidos. Nosso Filósofo,

condenado à prisão, teve de partir da França e se refugiar em Genebra. Sua postura contrária

às monarquias que comandavam a Europa, bem como sua posição crítica em relação à igreja,

foram as causas principais de seu exílio. Em função desses eventos, verificamos que sua

influência sobre as obras escritas ainda no séc XVIII, são reduzidas, mas como exceção a essa

regra, podemos citar Cesare Beccaria (1738-1794), um dos poucos entre seus contemporâneos

que levou em conta as teses do autor do “Contrato Social” em seu trabalho62.

Em 1764 Beccaria publica seu “pequeno” grande livro, “Dos Delitos e das Penas”,

onde o autor propugna que é necessário haver uma coerência entre ambos, além de sustentar

que o que importa no que se refere ao delito, não é a intenção de quem o pratica, mas sim o

dano efetivo causado ao bem público. Radicalmente contrário à prática da tortura –

corriqueira à época – e a pena de morte, nosso jurista inaugura uma nova visão política; das

leis como garantia dos direitos do cidadão e não como simples instrumento de opressão a

serviço do estado.

Ao contrário da prática em efeito na sociedade em que vivemos, Beccaria nos ensina

que proibir não impede que os delitos ocorram, e que na verdade, essa atitude só faz aumentá-

los63: “inúteis todas as leis que se opõem aos naturais sentimentos dos homens”64. “As leis

inúteis (...) transmitem seu próprio desalento às leis mais salutares, que nós vemos mais como

um obstáculo a superar do que como o depósito do bem público”65. Para prevenir delitos, ele

nos preconiza menos leis, mantendo-se apenas aquelas que se fazem efetivamente necessárias

ao bem público, e que por sua vez, devem ser claras e simples66.

O pensador Italiano nos diz ainda, que quando o código das leis não é acessível a

todos os cidadãos, “abre-se uma porta para aquela tirania que sempre rodeia todas as

fronteiras da liberdade política”67, pois ao invés de um temor às leis, acaba-se por desenvolver

uma respeitosa submissão à autoridade68, o que em nosso entendimento, franqueia tanto a

passagem do pusilânime, quanto a da corrupção. Para finalizar essa síntese do pensamento do 62 BERNARDI Bruno, Lire le Contrat Social, artigo publicado em : Le nouvel Observateur (hors-série Rousseau), Paris, Août 2010, p 63 63 BECCARIA Cesare, Dos delitos e das Penas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, p 154 64 Ibid p 102 65 Ibid p 137 66 Ibid p 155 67 Ibid p 83 68 Ibid p 159

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Jurista que na Itália, recebe fortes influências do Filósofo exilado em Genebra, temos a

seguinte citação que nos remete de volta à própria tese que defendemos: “Não existe

liberdade, toda vez que as leis permitem que o homem deixe de ser pessoa e se torne coisa”,

possibilitando assim a transformação do “cidadão em animal de carga”69.

Partindo da assertiva de Beccaria, que “o homem esclarecido é o maior bem que o

soberano pode fornecer a uma nação”70, ou seja, que está na possibilidade da ação do estado

regular a boa formação de seus integrantes, podemos nos indagar se o estado no qual vivemos

usa sua força em acordo a esse fim. Certamente a reposta a essa questão poderia se desdobrar

em um livro, mas mantendo o foco no objeto desse segmento, é fácil verificar que uma das

diretivas fundamentais que o jurista Italiano propugna em seu tratado, não se cumpre em

nossas escolas: Quem de nós conhece todas as leis as quais estamos submetidos?

Quando as leis possuem um compromisso direto com a vontade de um povo, ou seja,

apenas descrevem uma “vontade geral” que praticamos voluntária e cotidianamente, as

chances de praticarmos o mal em função de um equívoco, ou mesmo por desconhecê-las, são

bem pequenas. Mas a partir do momento em que as leis perdem esse sentido e passam a impor

regras e comportamentos arbitrários, se confirma a condição que Beccaria reprova: quanto

mais leis, mais chances de praticarmos o mal. Se não pela própria falta de alternativa às ações

que nos são cerceadas, pela pura e simples ignorância de que elas existem. Se no primeiro

caso o estado atribui má-fé ao nosso comportamento, já no segundo, a própria lei nos revela o

grau a que foi elevada nossa subserviência: desconhecer a lei não é desculpa para não cumpri-

la!

Rousseau nos ensina que um jovem aos 16 anos, deveria conhecer todas as leis de seu

país71. Paradoxalmente, as leis que regulam o aprendizado das crianças no nosso, e que

deveriam ter como objetivo, prepará-las para serem bons cidadãos, ignoram completamente

esse aspecto. No ano de 2008, os nossos deputados federais produziram 1.841 projetos de lei,

em 2009 foram em número de 2.148 e que até outubro de 2010 já haviam mais 1.10872.

Mesmo que uma boa parte deles não venha a ser confirmada em lei, fica patente a

impossibilidade de preparar o cidadão, para que uma vez lançado na sociedade, saiba a

diferença entre o bem e o mal, que é em última análise determinado pelas leis. Mas então,

qual o objetivo da educação? Qual a eficácia do que se ensina em nossas escolas?

69 Ibid p 105 70 Ibid p 158 71 ver pág 13 desse trabalho 72 Câmera Federal do Brasil, http://www2.camera.gov.br em 29/10/2010

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Não cuidamos a contento da educação para a cidadania, que deve ocorrer nas quatro primeiras

séries do primeiro grau. Os esforços da última década foram envidados para que o dinheiro

não faltasse às escolas públicas, para compra de merenda escolar e para a distribuição de

material didático (em boa medida preparado para destruir qualquer sentimento de brasilidade,

pois foi viciado (...) com o vírus que destrói os valores tradicionais (...))73.

Novamente, as leis nos comprimem. Definem verbas a serem aplicadas, como se

dinheiro pudesse, por uma fórmula mágica, se transformar em seja lá o que for, sem a

necessária intervenção comprometida de homens que sabem o que fazer e porque fazê-lo.

Justamente o tipo de indivíduo que a educação que damos às nossas crianças – em nosso

entendimento – nega à sociedade; ao aliená-lo desde o primeiro instante, de um vínculo

umbilical ao interesse comum que entrelaça o cidadão à sua pátria, da qual sua própria família

e comunidade, são o elo mais forte.

Em uma sociedade formada sob a égide da fragmentação dos valores sociais,

esmagados que são sob o peso de uma infinidade de leis vinculadas a interesses particulares,

mas de aplicação irrestrita a todos, a vontade geral perde qualquer possibilidade de

correspondência com a aspiração nacional; que deve ser sua decorrência natural. Esta última

pode até ser lida, pode ser ouvida em discursos, pode mesmo ser apresentada em comerciais

no rádio e na televisão, mas quanto a ser vivenciada no íntimo de cada um, não vemos

nenhuma chance.

10 – Conclusão

Nesse momento, podemos nos voltar à pergunta que inicialmente nos trouxe até aqui.

Por que a educação em nosso país, apesar dos indiscutíveis esforços que lhe são envidados,

permanece fornecendo à sociedade cidadãos de qualidade muito aquém daquela necessária ao

cumprimento de seu objetivo primeiro: Formar homens que saibam cuidar de si mesmos, para

que a partir daí, unidos por um vínculo indissociável à sociedade onde nasceram, possam

então contribuir efetivamente para sua manutenção e prosperidade.

Em primeiro lugar, podemos apontar que em nosso país – em nosso entendimento –

não existe uma única “sociedade”. Somos o resultado do encontro de diversas culturas. Somos

mantidos apartados por distâncias geográficas expressivas, por circunstâncias climáticas das

73 VÉLEZ Ricardo, “Brasil um país dividido”, http://www.ecsbdefesa.com.br/defesa/fts/BRASILPD.pdf em 29/10/2010

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mais diversas; na verdade, convivemos com todos aqueles ingredientes que Rousseau nos

ensina, são os fatores determinantes à constituição das diversas nacionalidades.

Nossa associação nunca se deu em torno de uma utilidade recíproca, foi desde seu

nascimento, fruto exclusivo de interesses alienígenas. Dessa forma, nossas leis não tiveram a

oportunidade de se desenvolver em acordo com nossos costumes, prevaleceu justamente o

contrário. Ao ingressar nessa nova pátria, cada um se submeteu a uma lei que pertencia à

outra. Isso sem falar daqueles que não vieram por vontade própria, ou seja, os escravos

trazidos da áfrica; e mesmo os índios, que apesar de habitantes da terra, foram na verdade

sub-julgados pela força a uma relação social completamente estranha a sua tradição.

Esse tipo de construção, não possibilitou a oportunidade da manifestação autônoma

dos diversos componentes culturais, como sendo contribuintes de um desejo nacional mais

amplo e compartilhado por todos. Dada essa multiplicidade de interesses, e sob o medo de

esfacelamento, o poder central oriundo já de nossos primórdios, cuidou de cada vez mais se

fortalecer, justamente as custas de fechar os olhos às diferenças irreconciliáveis entre os

diferentes grupos sociais que constituem a nação, ou melhor, de jogá-los uns contra os outros.

Como resultado, temos uma ferrenha disputa por um espaço público, único e limitado, e

sempre atrelado ao arbítrio estatal.

A falta de um denominador comum faz explodir os interesses particulares, que

esquálidos cidadãos comuns, enfraquecidos de representatividade, buscam através da

participação em toda a sorte de associações de classe, cobrar a sua parte no grande butim.

Reafirmamos, essas associações não tem nada a ver com a fé em uma crença fundadora, não

configuram uma busca pela salvação da alma em torno do sagrado, e muito menos formam

um acordo em torno de valores pertinentes ao espírito nacional. São simples manifestações

desesperadas de quem busca sobreviver em meio ao despotismo desenfreado; onde prevalece

o mais forte. O mais forte é o que detém a autoridade e poder do estado; é aquele que se não

pode ser vencido, pode ao menos ser adulado e cooptado.

Em segundo lugar, o predomínio exclusivo da metodologia “positiva” de ensino, ao

contrário da preconizada por Rousseau, tende a construir indivíduos crentes nas palavras e

não nos seus significados; o que nos dias atuais, os faz presa fácil dos jargões publicitários, e

inquestionavelmente submissos ao arauto da vontade majoritária, via de regra um locutor

amparado integralmente no politicamente correto; que nem sempre é correlato à realidade.

Uma de suas máximas é de que somos todos iguais. Destituídos desde a tenra infância

do senso crítico que permite formar julgamentos, os homens ignoram o sentido da igualdade

formal – somos todos seres humanos, detentores do mesmo direito à vida, submetidos às

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mesmas leis, etc. – que se constitui em igualdade material por obra e graça do esforço

exclusivo de nossos pais – não de nosso país – e assim identificam somente a igualdade de

resultados, o que os leva a prostrarem-se diante de uma indignação generalizada, face à

constatação de que ela – a igualdade – de fato não existe.

A escola, difusora privilegiada dos valores defendidos pelo estado, ao divulgá-los

prioritariamente, acaba por sufocar nos jovens qualquer possibilidade de satisfação fora do

padrão de excelência que lhes é exigido. Pior, como o currículo escolar é o mesmo para todos,

um mesmo objetivo é dividido por entre capacidades extremamente distintas, quer seja do

ponto de vista cultural e econômico, ou mesmo das habilidades específica de cada um.

Assim cria-se uma ordem de expectativas por funções – engenheiro, médico, etc. – e

por cargos – o concurso público como acesso à segurança econômica – que condena a imensa

maioria a receber a pecha de incompetente, uma vez que poucos poderão vir a se tornar

funcionários públicos. Da mesma forma, o curso superior – ou técnico – não é garantia de

emprego digno e de estabilidade. Toda uma variedade de ocupações tradicionais é relegada ao

terceiro plano, são indignas, revelam quase que uma falha de caráter de quem as exerce. A

exceção é quando associadas a específicos grupos “desfavorecidos”, quando então são

enobrecidas em sua simplicidade, utilidade social e valor cultural.

O significado da amizade, da honestidade, do compromisso com a palavra dada, a

delicadeza no falar e agir que caracterizam a civilidade, o respeito ao próximo, a submissão –

não à pessoa, mas ao saber – a nossos mestres, tudo é secundário quando comparado ao valor

da “nova cidadania”, que implica em direitos de resultado que são assegurados por lei. Mas o

que fazer quando se constata que a lei é insuficiente, e que mesmo o esforço tende a não ser

reconhecido e recompensado? O que resta àqueles que, pelos mais variados motivos, veem

suas perspectivas de felicidade sistematicamente obscurecidas; aos que falta a esperança?

Nesse caso, estamos diante da inadequação do homem à sociedade em que vive, e

como vimos, nessa situação, não importa o que faça, sempre fará o mal. Quando é assim, até o

mais primário dos destituídos de juízo, optará pela atitude que lhe trouxer a maior vantagem

imediata, não importa as conseqüências, pois a culpa, esta já lhe está assegurada. Enquanto os

governos continuamente prometem miríades de realizações futuras, e nos sufocam com

imagens otimistas dos resultados já obtidos, para aqueles que estão fora da fotografia, e que

convivem frente a frente com a injustiça, essa mensagem é vazia.

Em nosso entendimento, a desintegração do vínculo do individuo a sua sociedade, não

se dá exclusivamente em função do aspecto da frustração profissional e econômica, embora

este seja certamente muito importante. O processo educacional, no qual valores espirituais são

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substituídos pelo desejo de um êxito material duvidoso – embora dado como certo – contribui

de forma relevante para desenvolver no intimo do cidadão, aquela inadequação crônica,

aquela culpa permanente tão bem identificada por Freud.

Para finalizar, gostaríamos de assinalar que o mesmo erro que estamos cometendo na

educação de nossas crianças, o estamos repetindo em relação as nossas máquinas. As

primeiras, esvaziadas da capacidade de reflexão que não alcançaram, acabam por

comportarem-se de forma inadequada no mundo real e dinâmico que as cerca, e que sempre

exige um posicionamento; tornam-se más, e assim, são capazes de todas as atrocidades que as

oportunidades vantajosas lhes cobrem ao longo de suas vidas. Em função disso o ambiente em

que vivemos torna-se cada vez mais precário e inseguro, ou seja, impróprio ao exercício da

plena liberdade.

Quanto às segundas, destituídas por natureza da capacidade de juízo, aprendem desde

cedo a multar nossos carros, a observar nossos rostos nos mais diversos ambientes a procura

de sinais que revelem nossas más intenções, escutam nossas conversas a procura de provas

contra nossos crimes, enfim, as estamos ensinando para que no devido tempo, em nome da

inadequação incorrigível que demonstramos, suprimam de uma vez por todas a causa de

tantos enganos: a nossa liberdade.

11 – BIBLIOGRAFIA

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