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Eixo: Formação Docente e Educação Inclusiva: saberes e práticas
CONTRIBUIÇÕES DA LINGUÍSTICA PARA O PROCESSO DE
ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇAS COM SÍNDROMES DE DOWN
Giulia CastellaniBoaretto1
Amanda Avelar Lima2
Carla Salati Almeida Ghirello-Pires3
Resumo: A literatura específica afirma que crianças e jovens com síndrome de Down
(SD) apresentam muitas dificuldades na linguagem oral e/ou escrita. Neste sentido,o
mediador assume papel fundamental frente ao processo de alfabetização, sendo ele o
responsável por tornar a aprendizagem significativa. Porém, sem o domínio das bases
da Linguística, professores, responsáveis por mediar o processo de alfabetização,
acabam solidificando antigas e errôneas tradições, reprovando os alunos, tachando-os de
incapazes. Muitas vezes, justificando o insucesso do seu aluno com síndrome de Down
pela sua condição biológica quando, na verdade, estão frente aos processos de aquisição
de linguagem escrita quetodas as crianças perpassam. Dessa forma, este trabalho tem
como objetivo apresentar dados referentesao processo de aquisição da linguagem
escrita, de três sujeitos com síndrome de Down, refletindo sobre as contribuições da
Linguística no entendimento do processo. A metodologia se baseouna realização de
atividades direcionadas, no período de 12 meses, no Laboratório de Estudo e Pesquisa
em Neurolinguística (LAPEN/UESB), estando os sujeitos matriculados na rede regular
de ensino e em diferentes etapas quanto ao processo de alfabetização. Aanálise das
produções se deu através de abordagem qualitativa. Constatou-se que todos os erros
cometidos pelos sujeitos com SD possuíam bases linguísticas possíveis de serem
compreendidas, evidenciando as potencialidades frente ao processo de alfabetização e
não apenas as dificuldades. Tem-se como premissa os ideais da teoria Histórico-cultural
e da Neurolinguística Discursiva, no que tange à compreensão de deficiência e
importância da mediação no desenvolvimento da linguagem
Palavras-chave: Alfabetização; Linguística; Síndrome de Down.
Introdução
1 Pedagoga, mestranda em Linguística pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (PPGLin/UESB), e-mail [email protected], autora. 2 Psicóloga, mestranda em Linguística pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (PPGLin/UESB), e-mail [email protected], co-autora. 3 Professora titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, lotada no Departamento de Estudos Linguísticos e Literários (DELL), docente do programa de Mestrado em Linguística (PPGLin/UESB), e-mail [email protected], orientadora.
Desde a antiguidade, filósofos e estudiosos investigam o funcionamento da
linguagem humana ou como poderiam defini-la, concordando quanto a sua importância
para os processos de comunicação dos homens em sociedade. Os textos egípcios, por
exemplo, atribuíram significativa relevância para a escrita e o papel, provas sólidas da
utilização de um sistema de língua (KRISTEVA, 1969).
Como afirma Cagliari (1999), a linguagem existe porque se uniu um significado
a um significante, sendo uma unidade de dupla face que está presente na fala, na escrita
e na leitura, contudo, se manifesta em cada um desses casos de forma distinta. Sem o
domínio das bases da Linguística, professores, responsáveis por mediar o ensino da
leitura e escrita, acabam solidificando antigas e errôneas tradições, reprovando os
alunos, tachando-os de incapazes. Muitas vezes, encaminham seus alunos para outros
profissionais, como médicos e psicólogos, em busca de um diagnóstico com relação a
algum transtorno ou dificuldade de aprendizagem, quando na verdade, estão frente aos
processos que podem ser compreendidos à luz dos estudos linguísticos.
No caso dos sujeitos com síndrome de Down, estudiosos afirmam que a
linguagem é a área que irão apresentar maiores atrasos e dificuldades (MILLER, 1987).
Contudo, tem-se, como pressuposto neste estudo, que sujeitos com alguma deficiência
passam pelas mesmas etapas que seus coetâneos, só que por caminhos diferentes, os
quais poderão ter um tempo diferenciado, necessitando de instrumentos diversificados
(VYGOTSKY, 1987).
Não descartando questões orgânicas envolvidas, no caso desses
sujeitos, existem dificuldades relatadas pela literatura que podem contribuir para as
dificuldades no processo de alfabetização, como: frequentes problemas de audição em
diferentes níveis; dificuldade no processamento da memória auditiva; déficit na
coordenação motora, que pode acometer a sincronia dos movimentos para a produção
oral, incluindo movimentos de articulação dos órgãos fonoarticulatórios; déficits
cognitivos; dentre outros. Mesmo considerando as questões orgânicas
existentes nos sujeitos com SD que podem convergir para dificuldades no processos de
alfabetização, temos como bases teóricas, a teoria Histórico-cultural e a
Neurolinguística Discursiva (ND), que consideram a plasticidade do sistema nervoso,
possibilitando que visualizemos a potencialidade do sujeito para aprender.
A plasticidade cerebral envolve
capacidades adaptativas dos sujeitos a mudanças, transformações, uma característica do
cérebro de conviver e se ajustar a novos aprendizados, modificando assim sua
organização estrutural e funcional. (SAMPAIO, 2016; KANDEL; 2002).
Para Scliar-Cabral (2013, p.42), a
capacidade para ler e escrever é exclusiva da espécie humana e se deve às seguintes
estruturas do sistema nervoso central
plasticidade dos neurônios para se reciclarem para novas
aprendizagens, inclusive as que vão de encontro à programação
biopsicológica;
dominância e especialização das várias áreas secundárias para a
linguagem verbal no hemisfério esquerdo e integração nas
áreas terciárias;
interconexão entre as várias áreas, mesmo distantes, inclusive as
que processam a significação, com as que processam em
paralelo a linguagem verbal;
processamento das variantes recebidas nas áreas primárias,
através do emparelhamento com formas invariantes mais
abstratas que os neurônios reconhecem nas áreas secundárias;
arquitetura neuronal capaz de processar formas sucessivamente
mais abstratas e complexas;
a função semiótica;
mecanismos de retroalimentação simultâneos para
autocorreção;
memória permanente para registro dos esquemas e padrões
aprendidos, o que garante o acionamento do conhecimento
prévio.
Tendo como pressuposto toda a organização do sistema nervoso central
necessária no que tange o processo de alfabetização, corroborando com as ideias de
Vygotsky (1987),acredita-seo papel do mediador é importante tendo em vista que ele
quem ajudará a criança a desenvolver relações funcionais da aprendizagem. Para este
autor, qualquer deficiência origina uma tendência ou estímulo para a formação da
compensação, isto é, a insuficiência de uma capacidade é compensada com o
desenvolvimento de outra. Tal compensação não é orgânica, mas correspondendo à
plasticidade dos processos de desenvolvimento.
Segundo Klein e Silva (2012), analisando sob a perspectiva da
teoria Histórico-cultural e com base nos postulados de Vigotski, a deficiência não deve
ser posta como algo pertinente exclusivamente à pessoa, mas uma condição que está
relacionada à toda uma estrutura social, regida pela propriedade privada e meios de
produção. Com base nessa reflexão, podemos elucidar a responsabilidade do outro
frente ao processo de inclusão da pessoa com deficiência, que deve, se amparando em
uma educação humanística, investir seu esforço para criação de instrumentos capazes de
oportunizar à quaisquer pessoas ampliação das suas capacidades, se constituindo, assim,
sujeitos ativos na sociedade.
Vygotsky (2001) comprovou, através de suas investigações, que a
linguagem escrita é mais abstrata que a falada, sendo produzida em situação na qual o
destinatário da linguagem ou se encontra totalmente ausente ou não está em contato
com aquele que escreve, um monólogo com uma folha em branco. Os signos da
linguagem escrita, para o autor, são assimilados pelo educando de modo consciente e
arbitrário, levando a criança a agir de modo mais intelectual, recorrendo a uma
capacidade maior de conexões cerebrais.
Apesar das peculiaridades que o sujeito com SD pode
apresentar, acredita-se que em processo de aquisição da leitura e escrita eles comentem
erros as mesmas explicações que sujeitos neurotípicos em processo de alfabetização,
diferenciando-se em alguns aspectos pelas diferenças orgânicas existentes que
influenciam o tempo e percursos necessários para o armazenamento dos novos
conhecimentos. Porém, ao aliar o desconhecimento do funcionamento da língua e
preconceito histórico estabelecido pela deficiência intelectual do sujeito, docentes
tendem a não visualizar as potencialidades apresentadas, não favorecendo o processo de
inclusão desse público alvo da educação especial na sociedade.
Ressalta-se, dessa forma, a necessidade de compreender
possíveis contribuições da Linguística, que podem favorecer o processo de alfabetização
de sujeitos com SD, desmistificando a ausência da capacidade.
A metodologia proposta se baseou em realização de
atividades de linguagem, que possibilitassem leitura e escrita com três sujeitos com SD,
com idades referentes à 8, 16 e 17 anos, sendo 2 meninas e 1 menino, em diferentes
etapas no processo de alfabetização. Foram utilizadas histórias infantis, relatos do
cotidiano, vídeos e músicas infantis, sendo os atendimentos registrados através de
gravações de vídeo, de áudio e registros no caderno de campo.
Os sujeitos investigados fazem parte
do grupo “Fala Down”, grupo integrante do Laboratório de Pesquisa e Estudo em
Neurolinguística (LAPEN), da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, residentes
da cidade de Vitória da Conquista. Foram realizados atendimentos semanais,
individualizados, com cada sujeito, com duração de 1h, e média de realização de 3
atividades por encontro, ao longo de 12 meses (abril/2016 a março/2017).
A partir dos registros
realizados, discute-se então as contribuições da Linguística para que o “erro” seja
compreendido enquanto parte do processode alfabetização.
A pessoa com síndrome de Down
No decorrer dos avanços das ciências envolvidas na área da saúde e
instrumentos tecnológicos, assim como, com a incorporação da ultrassonografia na
rotina obstétrica, passou a ser possível identificar, ainda durante os exames pré-natais,
na gestação, a síndrome de Down (SD). Como afirma o pesquisador Bunduki e seus
colaboradores (2001), são características observadas em ultrassonografias que
evidenciam a presença da síndrome de Down: fêmur curto, ossos do nariz curtos,
falange média do quinto dedo dos membros superiores ausente ou hipoplásica, úmero
curto, cistos de plexo coroide, intestino fetal hiperecogênico, aumento do ângulo ilíaco,
espessamento anormal da nuca, hipotonia pielocalicial renal e malformações estruturais,
em especial as cardíacas. No ano de 1838, Esquirol fez referência à síndrome
em um dicionário médico, como no livro de Chambers, datado em 1844, que descreve a
síndrome como “idiotia do tipo mongoloide”. Enquanto Seguin(1846-1866), referiu-se a
síndrome como um subtipo de cretinismo classificado como “cretinismo furácero”
(SCHWARTZMAN, 1999). No entanto, o reconhecimento desta síndrome
como uma manifestação clinica só ocorreu com o trabalho do médico Landon Down,
em 1865, influenciado pelos conceitos evolucionistas da época. Com base nas suas
observações, o médico conhecido como Dr. Down, afirmou a existência de raças
superiores a outras, sendo a deficiência mental característica das raças inferiores.
O trabalho desenvolvido por Down
possibilitou que muitos outros estudos começassem a ser desenvolvidos, buscando
conhecer a síndrome, suas características, limitações e potencialidades. Os termos e
conceitos utilizados para a síndrome de Down em diferentes épocas, perpassam por
gerações. Muitas vezes, através do senso comum, retira-sedesses termos suas
contextualizações, e palavras como “idiota” ou “mongoloide” são usados como
instrumentos de manifestações preconceituosas.
Caracterizada como uma condição genética, não como uma doença, essa
distinção se faz essencial, tendo em vista que o conceito de “doença” está ligado à uma
patologia, enquanto condição, definidapela forma de concebê-la pelo sujeito e por
aqueles que estão a sua volta. Os motivos ainda são desconhecidos, o que se sabe é que
durante o desenvolvimento das células do embrião são formados 47 cromossomos, no
lugar dos 46 que se formam, normalmente, gerando um excesso de material genético no
cromossomo 21, conhecida como Trissomia do 21. Essa alteração genética resulta em
características especificas no desenvolvimento do ser humano, que podem variar de
acordo a cada organismo, à cada estimulação social (GOLDERBERG, 2002).
Segundo Lambert e Rondall (1982), existem características físicas relacionadas
ao diagnóstico neo-natal como: cabeça menor que o normal; nariz pequeno, com a parte
superior achatada; olhos ligeiramente rasgados com prega de pele nos cantos anteriores;
a parte exterior da íris pode apresentar manchar de Bruschfiel; orelhas são pequenas, da
mesma forma como os lóbulos auriculares; a boca é relativamente pequena enquanto a
língua apresenta tamanho normal – fazendo com que a língua permaneça para fora da
boca; os dentes são pequenos; pescoço relativamente curto; as mãos são pequenas, com
dedos curtos; os pés podem apresentar um pequeno sulco entre os dedos e a planta do
pé; a pele pode parecer arroxeada e tende a se tornar seca; os cabelos, geralmente, são
mais finos e lisos.
Além das características físicas, existem questões fisiológicas comum às
pessoas com SD, como: prevalência de cardiopatia congénitas; obesidade; problemas
visuais; problemas auditivos; maior risco de sofrer com infecções; problemas
respiratórios; hipotonia generalizada; deficiência intelectual (LACERDA, 1997).
Quanto ao desenvolvimento motor, a hipotonia generalizada e reflexos
lentos, resultam em movimentos lentos, fazendo com que as crianças com SD demorem
mais para coordenar os mesmo movimentos quanto aos seus pares sem deficiência
(LATASH, TURBEY, 1996).
Os estudos envolvendo memória e SD também tem contribuído
para a compreensão da SD e na visualização das potencialidades do sujeito. A memória
desempenha um papel importante no desenvolvimento da inteligência. Para Escamilla
(1998), a memória da pessoa com SD pode estar classificada em: sensorial; mecânica;
memória lógica intelectual. Sendo a sensorial responsável pela capacidade da pessoa
reconhecer imagens correspondentes a cada um dos sentidos, enquanto a mecânica, uma
repetição de uma sequência de imagens sem correlação e a memória lógica intelectual,
sendo a que intervém da capacidade de armazenamento e reprodução dos
conhecimentos adquiridos, implicando na compreensão dos significados.
Mesmo sendo possível identificar um conjunto de características relacionadas à
síndrome de Down no que tange o desenvolvimento motor, cognitivo, fisiológico e
genético, é de comum acordo entre as mais distintas perspectivas de estudos, que o meio
que a criança com SD está inserida fará total diferença no seu desenvolvimento. A
condição orgânica poderá ou não ser salientada, a depender da forma que for vista. Se
pensarmos em termos deterministas, daremos ênfase nos aspectos biológicos, se
pensarmos enquanto condição, social e humana, buscaremos ressaltar a valorização da
individualidade do ser humano (CANGUILHEM, 2002).
Processo de alfabetização de sujeitos com síndrome de Down
A escrita surge na humanidade a partir de um sistema de contagem que era feito
com marcas em cajados ou ossos, usado para contar o gado e possibilitar registros que
pudessem representar a quantidade de animais ou produtos que eram negociados. Ser
alfabetizado, nessa forma primitiva de se compreender esse processo tão complexo,
significava ser capaz de ler o que os símbolos significavam e ser capaz de escrevê-los.
Como o sistema de escrita foi se expandido consideravelmente, aumentando a
quantidade de informações que eram necessárias para que alguém soubesse ler e
escrever, foi necessário que as pessoas deixassem de utilizar um sistema de símbolos
para representar as coisas e passassem a usar símbolos que representassem sons da fala.
O longo processo de invenção da escrita também inclui a invenção de regras de
alfabetização, ou seja, as regras que permitem ao leitor decifrar o que está escrito e
saber como o sistema de escrita funciona para usá-lo apropriadamente.
(CAGLIARI,1999). No século VX e XVI, com o
Renascimento, a preocupação com os leitores começou a alcançar novas proporções.
Nessa época surgem as gramáticas das línguas neolatinas, como consequência, fazendo
com que gramáticos se dedicassem à alfabetização, era preciso ensinar o povo a
escrever em línguas vernáculas, não mais predominando o latim (CAGLIARI,1999).
Começava assim a criação de cartilhas com objetivo de alfabetizar o povo.
João de Barros (1496-1571)
escreveu a primeira gramática portuguesa em 1540 e junto com ela publicou uma
cartilha visando orientar o processo de alfabetizar. Para se alfabetizar a partir dessa
proposta a pessoa deveria decorar todo o alfabeto, tendo o nome das letras como guia,
decorar palavras-chaves, e depois escrever e ler interpretando as sílabas da fala com a
correspondente forma de escrita. Um método considerado limitado já que se detinha a
decifração da escrita (CAGLIARI,1999). Desde então, uma
série de cartilhas foi elaborada visando orientar pais e professores como ensinarem as
crianças a lerem e escreverem. No Brasil, uma cartilha que ficou muito conhecida foi a
Cartilha maternal, elaborada por João de Deus (1930-1896), que apresentava uma
tendência a privilegiar à escrita em detrimento da leitura. Segundo Cagliari (1999), essa
cartilha teve uma influência direta nas propostas apresentadas posteriormente, que
podem ser demarcadas em alguns métodos e estratégias diferentes na forma de conduzir
o processo de alfabetização. Após a influência das cartilhas, na
história da alfabetização do Brasil, o principal propulsor das mudanças que vem
ocorrendo de forma constante quanto às concepções dos métodos é o fracasso da escola
em levar as crianças a dominarem os processos da língua escrita. (SOARES, 2016). Ou
seja, com relação à alfabetização de sujeitos neurotípicos já se pode perceber a
dificuldade das escolas de ensinarem o alunado a ler e escrever. Problematizar os
métodos, os materiais didáticos e estratégias pedagógicas, tornou-se fato sempre
presente em discussões acadêmicas entre os profissionais da área da educação. Não é
difícil imaginar que com relação aos alunos com síndrome de Down essa dificuldade se
intensifica ainda mais, já que exige que o professor não só possua conhecimentos sobre
as questões linguísticas que regem o processo de alfabetização, mas também
compreenda as limitações dos sujeitos com SD, buscando formas de intervir e contribuir
para a aquisição da leitura e escrita. Sabe-se que
por muito tempo os sujeitos com síndrome de Down foram considerados como
treináveis, cuja aprendizagem é fruto de um treinamento permanente, só aprendendo
pela mecanização constante (GONÇALVES, 1972). Contudo, estudos desenvolvidos a
partir da década de 80 começaram a ressaltar as possibilidades dos sujeitos com SD se
alfabetizarem, e além de decifrarem as os códigos da língua escrita, desenvolverem
relações funcionais de leitura e escrita. Em 1981, Lefevre, afirmou que por mais que
fosse um processo longo e inconstante, assim como as crianças normais, os downs
passariam pelas mesmas etapas. Uma série de estudos continuou a confirmar esses
pressupostos, na maioria das vezes questionando os níveis de abstração. Começa-se
assim acreditar nas potencialidades do sujeito e buscar formas de possibilitar a aquisição
da leitura e escrita.
Como afirma Soares (2016), aprender a escrita não é um processo natural, é uma
invenção cultural, a construção de uma visualização dos sons da fala.
Ao contrário de escritas logográficas ou ideográficas, que grafam os
significados – o conteúdo semântico da fala –, a escrita alfabética grafa os
significantes – os sons da fala–, decompondo-os em suas unidades mínimas,
os fonemas, que, embora sejam entidades abstratas, não observáveis
diretamente, não audíveis e não pronunciáveis isoladamente, se tornam, no
entanto, visíveis sob a forma de letras ou grafemas. (p.46)
Como a escrita envolve abstrações, é compreensível que os sujeitos com SD, que
possuem maiores comprometimento nessa área, não alcancem as mesmas etapas, nos
mesmos momentos, que seus coetâneos. Esse fato resulta que professores não
capacitados comparem seu desenvolvimento ao de crianças neurotípicas e mesmo que
cometam os mesmos erros durante o processo de alfabetização, não sejam
compreendidos e suas dificuldades sejam atribuídas à condição da síndrome de Down,
ressaltando mais uma vez limitações e não potencialidades.
Com base na compreensão exposta sobre a síndrome de
Down e o processo de alfabetização, apresentaremos dados obtidos nos atendimentos de
quatro sujeitos com SD, apontando as reflexões possibilitadas pelos estudos
linguísticos.
Dado 1
O primeiro sujeito, ST, é uma menina, possui 8 anos, está matriculada em uma
escola da rede privada, do município de Vitória da Conquista - BA. Em uma das
atividades realizadas, se propôs que STcantasse a música “O avião” de Toquinho,
apresentada inicialmente com apoio do clipe musical disposto na internet. Depois, a
mediadora realizou a leitura de um trecho da música com ST e ao final realizou a
pergunta “De qual objeto a música fala?” e ST respondeu “avião”. Quando passou para
a representação da escrita fez da seguinte forma (figura 1)
Figura 1 – AVIÃO
Fonte: banco de dados do LAPEN
Ao escrever “AFO” para representar a palavra “AVIÃO”, ST apresenta
processos linguísticos que fazem parte do processo de aquisição da linguagem escrita de
todas as crianças. Como posto por Moraes (2011), em um primeiro momento, em
línguas como o português, o espanhol, o francês e o catalão, as crianças tendem a crer
que precisam por uma letra para cada sílaba, para só depois se darem conta de que em
nosso sistema as letras substituem segmentos menores do que as palavras orais. Além
da representação de uma letra para cada sílaba, é possível ver que ST grafa “f” para a
silabada “vi”, apresentando um “erro” compreendido à luz dos processos fonológicos,
realizando troca de segmentos surdos e sonoros. Ou seja, ST elaborou uma hipóteses
que deve ser validade, já que demonstra que ela está começando associar valores
sonoros à possibilidades de escrita.
Dado 2
Em uma das atividades sobre o “Sítio do pica pau amarelo”, ao trabalharmos
com a letra da música da personagem “Cuca”, AB, uma jovem de 16 anos que gosta do
enredo do Sítio do Picapau Amarelo, com espontaneidade, tentou escrever o nome
“CUCA”, colocando o “U A” (figura 2). Segundo Cagliari (1999) este fato pode
acontecer no processo de aquisição da escrita, pois o estudante escreve apenas um dos
elementos da sílaba, de acordo a forma que analisa a fala, se repete a palavra da forma
“CUUUCAAA” acaba salientando as vogais e pode omitir na escrita a consoante.
Figura 2 - CUCA
Fonte: bando de dados do LAPEN
Mais uma vez, estamos diante de processos, que a partir da compreensão da
Linguística, no possibilitam compreender em qual etapa do processo AB se encontra.
Dado 3 – EU BRASIL
O sujeito JO antes de dar início ás atividades propostas contou que iria assistir
no dia do atendimento ao jogo do Brasil que passaria na televisão no período da noite.
Nesse momento, foi solicitado que JO escrevesse “Eu vou assistir o jogo do Brasil”. JO
possui 17 anos e começou a ser alfabetizado nos últimos três anos, conseguindo ler
algumas frases. Ao escrever, como podemos observar na Figura 2JO escreve “EU
BRASIL”, levando o estilo telegráfico, característica acentuada em sua oralidade, para o
registro da escrita.
Figura 3 – EU BRASIL
Fonte: banco de dados do LAPEN
Tendo como base as contribuições da Neurolinguística Discursiva (ND), o estilo
telegráfico deve ser entendido como construções intermediárias dos sujeitos, em
processo da internalização de processos psíquicos.
Conclusão
Os erros cometidos pelos três sujeitos com síndrome de Down, demonstraram
que eles passam pelas mesmas etapas que seus coetâneos, porém, como pode ser
observado, através da idade de cada um, levam mais tempo para superar as dificuldades,
exigindo um esforço maior do mediador do processo de aquisição da leitura e escrita.
Todos os erros encontrados possuem explicações embasadas em processos linguísticos.
O processo de alfabetização vai além do simples ato de decifrar letras e
não cometer erros ortográficos e, nesse sentido, reconhece-se que os três sujeitos ainda
estão em fase da aquisição da leitura e escrita e precisam de investimento para que
possam ter acesso aos conhecimentos produzidos pela humanidade.
Os erros apontam que os sujeitos são capazes de tomarem decisões, de
optar por uma, dentre tantas, opções. Por isso, ao invés de evidenciar como “erro” ou
“acerto”, vale-se mais investir na comparação com a ortografia esperada, possibilitando
que o próprio sujeito seja capaz de criar novas hipóteses a partir da comparação.
Ressalta-se, então, como fundamento da formação do mediador pedagógico, a
necessidade que os cursos de Pedagogia possibilitem conhecimentos do funcionamento
da língua, que perpassam pelas contribuições da Linguística.
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