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Eixo: Formação Docente e Educação Inclusiva: saberes e práticas CONTRIBUIÇÕES DA LINGUÍSTICA PARA O PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇAS COM SÍNDROMES DE DOWN Giulia CastellaniBoaretto1 Amanda Avelar Lima2 Carla Salati Almeida Ghirello-Pires3 Resumo: A literatura específica afirma que crianças e jovens com síndrome de Down (SD) apresentam muitas dificuldades na linguagem oral e/ou escrita. Neste sentido,o mediador assume papel fundamental frente ao processo de alfabetização, sendo ele o responsável por tornar a aprendizagem significativa. Porém, sem o domínio das bases da Linguística, professores, responsáveis por mediar o processo de alfabetização, acabam solidificando antigas e errôneas tradições, reprovando os alunos, tachando-os de incapazes. Muitas vezes, justificando o insucesso do seu aluno com síndrome de Down pela sua condição biológica quando, na verdade, estão frente aos processos de aquisição de linguagem escrita quetodas as crianças perpassam. Dessa forma, este trabalho tem como objetivo apresentar dados referentesao processo de aquisição da linguagem escrita, de três sujeitos com síndrome de Down, refletindo sobre as contribuições da Linguística no entendimento do processo. A metodologia se baseouna realização de atividades direcionadas, no período de 12 meses, no Laboratório de Estudo e Pesquisa em Neurolinguística (LAPEN/UESB), estando os sujeitos matriculados na rede regular de ensino e em diferentes etapas quanto ao processo de alfabetização. Aanálise das produções se deu através de abordagem qualitativa. Constatou-se que todos os erros cometidos pelos sujeitos com SD possuíam bases linguísticas possíveis de serem compreendidas, evidenciando as potencialidades frente ao processo de alfabetização e não apenas as dificuldades. Tem-se como premissa os ideais da teoria Histórico-cultural e da Neurolinguística Discursiva, no que tange à compreensão de deficiência e importância da mediação no desenvolvimento da linguagem Palavras-chave: Alfabetização; Linguística; Síndrome de Down. Introdução 1 Pedagoga, mestranda em Linguística pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (PPGLin/UESB), e-mail [email protected], autora. 2 Psicóloga, mestranda em Linguística pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (PPGLin/UESB), e-mail [email protected], co-autora. 3 Professora titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, lotada no Departamento de Estudos Linguísticos e Literários (DELL), docente do programa de Mestrado em Linguística (PPGLin/UESB), e-mail [email protected], orientadora.

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Eixo: Formação Docente e Educação Inclusiva: saberes e práticas

CONTRIBUIÇÕES DA LINGUÍSTICA PARA O PROCESSO DE

ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇAS COM SÍNDROMES DE DOWN

Giulia CastellaniBoaretto1

Amanda Avelar Lima2

Carla Salati Almeida Ghirello-Pires3

Resumo: A literatura específica afirma que crianças e jovens com síndrome de Down

(SD) apresentam muitas dificuldades na linguagem oral e/ou escrita. Neste sentido,o

mediador assume papel fundamental frente ao processo de alfabetização, sendo ele o

responsável por tornar a aprendizagem significativa. Porém, sem o domínio das bases

da Linguística, professores, responsáveis por mediar o processo de alfabetização,

acabam solidificando antigas e errôneas tradições, reprovando os alunos, tachando-os de

incapazes. Muitas vezes, justificando o insucesso do seu aluno com síndrome de Down

pela sua condição biológica quando, na verdade, estão frente aos processos de aquisição

de linguagem escrita quetodas as crianças perpassam. Dessa forma, este trabalho tem

como objetivo apresentar dados referentesao processo de aquisição da linguagem

escrita, de três sujeitos com síndrome de Down, refletindo sobre as contribuições da

Linguística no entendimento do processo. A metodologia se baseouna realização de

atividades direcionadas, no período de 12 meses, no Laboratório de Estudo e Pesquisa

em Neurolinguística (LAPEN/UESB), estando os sujeitos matriculados na rede regular

de ensino e em diferentes etapas quanto ao processo de alfabetização. Aanálise das

produções se deu através de abordagem qualitativa. Constatou-se que todos os erros

cometidos pelos sujeitos com SD possuíam bases linguísticas possíveis de serem

compreendidas, evidenciando as potencialidades frente ao processo de alfabetização e

não apenas as dificuldades. Tem-se como premissa os ideais da teoria Histórico-cultural

e da Neurolinguística Discursiva, no que tange à compreensão de deficiência e

importância da mediação no desenvolvimento da linguagem

Palavras-chave: Alfabetização; Linguística; Síndrome de Down.

Introdução

1 Pedagoga, mestranda em Linguística pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (PPGLin/UESB), e-mail [email protected], autora. 2 Psicóloga, mestranda em Linguística pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (PPGLin/UESB), e-mail [email protected], co-autora. 3 Professora titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, lotada no Departamento de Estudos Linguísticos e Literários (DELL), docente do programa de Mestrado em Linguística (PPGLin/UESB), e-mail [email protected], orientadora.

Desde a antiguidade, filósofos e estudiosos investigam o funcionamento da

linguagem humana ou como poderiam defini-la, concordando quanto a sua importância

para os processos de comunicação dos homens em sociedade. Os textos egípcios, por

exemplo, atribuíram significativa relevância para a escrita e o papel, provas sólidas da

utilização de um sistema de língua (KRISTEVA, 1969).

Como afirma Cagliari (1999), a linguagem existe porque se uniu um significado

a um significante, sendo uma unidade de dupla face que está presente na fala, na escrita

e na leitura, contudo, se manifesta em cada um desses casos de forma distinta. Sem o

domínio das bases da Linguística, professores, responsáveis por mediar o ensino da

leitura e escrita, acabam solidificando antigas e errôneas tradições, reprovando os

alunos, tachando-os de incapazes. Muitas vezes, encaminham seus alunos para outros

profissionais, como médicos e psicólogos, em busca de um diagnóstico com relação a

algum transtorno ou dificuldade de aprendizagem, quando na verdade, estão frente aos

processos que podem ser compreendidos à luz dos estudos linguísticos.

No caso dos sujeitos com síndrome de Down, estudiosos afirmam que a

linguagem é a área que irão apresentar maiores atrasos e dificuldades (MILLER, 1987).

Contudo, tem-se, como pressuposto neste estudo, que sujeitos com alguma deficiência

passam pelas mesmas etapas que seus coetâneos, só que por caminhos diferentes, os

quais poderão ter um tempo diferenciado, necessitando de instrumentos diversificados

(VYGOTSKY, 1987).

Não descartando questões orgânicas envolvidas, no caso desses

sujeitos, existem dificuldades relatadas pela literatura que podem contribuir para as

dificuldades no processo de alfabetização, como: frequentes problemas de audição em

diferentes níveis; dificuldade no processamento da memória auditiva; déficit na

coordenação motora, que pode acometer a sincronia dos movimentos para a produção

oral, incluindo movimentos de articulação dos órgãos fonoarticulatórios; déficits

cognitivos; dentre outros. Mesmo considerando as questões orgânicas

existentes nos sujeitos com SD que podem convergir para dificuldades no processos de

alfabetização, temos como bases teóricas, a teoria Histórico-cultural e a

Neurolinguística Discursiva (ND), que consideram a plasticidade do sistema nervoso,

possibilitando que visualizemos a potencialidade do sujeito para aprender.

A plasticidade cerebral envolve

capacidades adaptativas dos sujeitos a mudanças, transformações, uma característica do

cérebro de conviver e se ajustar a novos aprendizados, modificando assim sua

organização estrutural e funcional. (SAMPAIO, 2016; KANDEL; 2002).

Para Scliar-Cabral (2013, p.42), a

capacidade para ler e escrever é exclusiva da espécie humana e se deve às seguintes

estruturas do sistema nervoso central

plasticidade dos neurônios para se reciclarem para novas

aprendizagens, inclusive as que vão de encontro à programação

biopsicológica;

dominância e especialização das várias áreas secundárias para a

linguagem verbal no hemisfério esquerdo e integração nas

áreas terciárias;

interconexão entre as várias áreas, mesmo distantes, inclusive as

que processam a significação, com as que processam em

paralelo a linguagem verbal;

processamento das variantes recebidas nas áreas primárias,

através do emparelhamento com formas invariantes mais

abstratas que os neurônios reconhecem nas áreas secundárias;

arquitetura neuronal capaz de processar formas sucessivamente

mais abstratas e complexas;

a função semiótica;

mecanismos de retroalimentação simultâneos para

autocorreção;

memória permanente para registro dos esquemas e padrões

aprendidos, o que garante o acionamento do conhecimento

prévio.

Tendo como pressuposto toda a organização do sistema nervoso central

necessária no que tange o processo de alfabetização, corroborando com as ideias de

Vygotsky (1987),acredita-seo papel do mediador é importante tendo em vista que ele

quem ajudará a criança a desenvolver relações funcionais da aprendizagem. Para este

autor, qualquer deficiência origina uma tendência ou estímulo para a formação da

compensação, isto é, a insuficiência de uma capacidade é compensada com o

desenvolvimento de outra. Tal compensação não é orgânica, mas correspondendo à

plasticidade dos processos de desenvolvimento.

Segundo Klein e Silva (2012), analisando sob a perspectiva da

teoria Histórico-cultural e com base nos postulados de Vigotski, a deficiência não deve

ser posta como algo pertinente exclusivamente à pessoa, mas uma condição que está

relacionada à toda uma estrutura social, regida pela propriedade privada e meios de

produção. Com base nessa reflexão, podemos elucidar a responsabilidade do outro

frente ao processo de inclusão da pessoa com deficiência, que deve, se amparando em

uma educação humanística, investir seu esforço para criação de instrumentos capazes de

oportunizar à quaisquer pessoas ampliação das suas capacidades, se constituindo, assim,

sujeitos ativos na sociedade.

Vygotsky (2001) comprovou, através de suas investigações, que a

linguagem escrita é mais abstrata que a falada, sendo produzida em situação na qual o

destinatário da linguagem ou se encontra totalmente ausente ou não está em contato

com aquele que escreve, um monólogo com uma folha em branco. Os signos da

linguagem escrita, para o autor, são assimilados pelo educando de modo consciente e

arbitrário, levando a criança a agir de modo mais intelectual, recorrendo a uma

capacidade maior de conexões cerebrais.

Apesar das peculiaridades que o sujeito com SD pode

apresentar, acredita-se que em processo de aquisição da leitura e escrita eles comentem

erros as mesmas explicações que sujeitos neurotípicos em processo de alfabetização,

diferenciando-se em alguns aspectos pelas diferenças orgânicas existentes que

influenciam o tempo e percursos necessários para o armazenamento dos novos

conhecimentos. Porém, ao aliar o desconhecimento do funcionamento da língua e

preconceito histórico estabelecido pela deficiência intelectual do sujeito, docentes

tendem a não visualizar as potencialidades apresentadas, não favorecendo o processo de

inclusão desse público alvo da educação especial na sociedade.

Ressalta-se, dessa forma, a necessidade de compreender

possíveis contribuições da Linguística, que podem favorecer o processo de alfabetização

de sujeitos com SD, desmistificando a ausência da capacidade.

A metodologia proposta se baseou em realização de

atividades de linguagem, que possibilitassem leitura e escrita com três sujeitos com SD,

com idades referentes à 8, 16 e 17 anos, sendo 2 meninas e 1 menino, em diferentes

etapas no processo de alfabetização. Foram utilizadas histórias infantis, relatos do

cotidiano, vídeos e músicas infantis, sendo os atendimentos registrados através de

gravações de vídeo, de áudio e registros no caderno de campo.

Os sujeitos investigados fazem parte

do grupo “Fala Down”, grupo integrante do Laboratório de Pesquisa e Estudo em

Neurolinguística (LAPEN), da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, residentes

da cidade de Vitória da Conquista. Foram realizados atendimentos semanais,

individualizados, com cada sujeito, com duração de 1h, e média de realização de 3

atividades por encontro, ao longo de 12 meses (abril/2016 a março/2017).

A partir dos registros

realizados, discute-se então as contribuições da Linguística para que o “erro” seja

compreendido enquanto parte do processode alfabetização.

A pessoa com síndrome de Down

No decorrer dos avanços das ciências envolvidas na área da saúde e

instrumentos tecnológicos, assim como, com a incorporação da ultrassonografia na

rotina obstétrica, passou a ser possível identificar, ainda durante os exames pré-natais,

na gestação, a síndrome de Down (SD). Como afirma o pesquisador Bunduki e seus

colaboradores (2001), são características observadas em ultrassonografias que

evidenciam a presença da síndrome de Down: fêmur curto, ossos do nariz curtos,

falange média do quinto dedo dos membros superiores ausente ou hipoplásica, úmero

curto, cistos de plexo coroide, intestino fetal hiperecogênico, aumento do ângulo ilíaco,

espessamento anormal da nuca, hipotonia pielocalicial renal e malformações estruturais,

em especial as cardíacas. No ano de 1838, Esquirol fez referência à síndrome

em um dicionário médico, como no livro de Chambers, datado em 1844, que descreve a

síndrome como “idiotia do tipo mongoloide”. Enquanto Seguin(1846-1866), referiu-se a

síndrome como um subtipo de cretinismo classificado como “cretinismo furácero”

(SCHWARTZMAN, 1999). No entanto, o reconhecimento desta síndrome

como uma manifestação clinica só ocorreu com o trabalho do médico Landon Down,

em 1865, influenciado pelos conceitos evolucionistas da época. Com base nas suas

observações, o médico conhecido como Dr. Down, afirmou a existência de raças

superiores a outras, sendo a deficiência mental característica das raças inferiores.

O trabalho desenvolvido por Down

possibilitou que muitos outros estudos começassem a ser desenvolvidos, buscando

conhecer a síndrome, suas características, limitações e potencialidades. Os termos e

conceitos utilizados para a síndrome de Down em diferentes épocas, perpassam por

gerações. Muitas vezes, através do senso comum, retira-sedesses termos suas

contextualizações, e palavras como “idiota” ou “mongoloide” são usados como

instrumentos de manifestações preconceituosas.

Caracterizada como uma condição genética, não como uma doença, essa

distinção se faz essencial, tendo em vista que o conceito de “doença” está ligado à uma

patologia, enquanto condição, definidapela forma de concebê-la pelo sujeito e por

aqueles que estão a sua volta. Os motivos ainda são desconhecidos, o que se sabe é que

durante o desenvolvimento das células do embrião são formados 47 cromossomos, no

lugar dos 46 que se formam, normalmente, gerando um excesso de material genético no

cromossomo 21, conhecida como Trissomia do 21. Essa alteração genética resulta em

características especificas no desenvolvimento do ser humano, que podem variar de

acordo a cada organismo, à cada estimulação social (GOLDERBERG, 2002).

Segundo Lambert e Rondall (1982), existem características físicas relacionadas

ao diagnóstico neo-natal como: cabeça menor que o normal; nariz pequeno, com a parte

superior achatada; olhos ligeiramente rasgados com prega de pele nos cantos anteriores;

a parte exterior da íris pode apresentar manchar de Bruschfiel; orelhas são pequenas, da

mesma forma como os lóbulos auriculares; a boca é relativamente pequena enquanto a

língua apresenta tamanho normal – fazendo com que a língua permaneça para fora da

boca; os dentes são pequenos; pescoço relativamente curto; as mãos são pequenas, com

dedos curtos; os pés podem apresentar um pequeno sulco entre os dedos e a planta do

pé; a pele pode parecer arroxeada e tende a se tornar seca; os cabelos, geralmente, são

mais finos e lisos.

Além das características físicas, existem questões fisiológicas comum às

pessoas com SD, como: prevalência de cardiopatia congénitas; obesidade; problemas

visuais; problemas auditivos; maior risco de sofrer com infecções; problemas

respiratórios; hipotonia generalizada; deficiência intelectual (LACERDA, 1997).

Quanto ao desenvolvimento motor, a hipotonia generalizada e reflexos

lentos, resultam em movimentos lentos, fazendo com que as crianças com SD demorem

mais para coordenar os mesmo movimentos quanto aos seus pares sem deficiência

(LATASH, TURBEY, 1996).

Os estudos envolvendo memória e SD também tem contribuído

para a compreensão da SD e na visualização das potencialidades do sujeito. A memória

desempenha um papel importante no desenvolvimento da inteligência. Para Escamilla

(1998), a memória da pessoa com SD pode estar classificada em: sensorial; mecânica;

memória lógica intelectual. Sendo a sensorial responsável pela capacidade da pessoa

reconhecer imagens correspondentes a cada um dos sentidos, enquanto a mecânica, uma

repetição de uma sequência de imagens sem correlação e a memória lógica intelectual,

sendo a que intervém da capacidade de armazenamento e reprodução dos

conhecimentos adquiridos, implicando na compreensão dos significados.

Mesmo sendo possível identificar um conjunto de características relacionadas à

síndrome de Down no que tange o desenvolvimento motor, cognitivo, fisiológico e

genético, é de comum acordo entre as mais distintas perspectivas de estudos, que o meio

que a criança com SD está inserida fará total diferença no seu desenvolvimento. A

condição orgânica poderá ou não ser salientada, a depender da forma que for vista. Se

pensarmos em termos deterministas, daremos ênfase nos aspectos biológicos, se

pensarmos enquanto condição, social e humana, buscaremos ressaltar a valorização da

individualidade do ser humano (CANGUILHEM, 2002).

Processo de alfabetização de sujeitos com síndrome de Down

A escrita surge na humanidade a partir de um sistema de contagem que era feito

com marcas em cajados ou ossos, usado para contar o gado e possibilitar registros que

pudessem representar a quantidade de animais ou produtos que eram negociados. Ser

alfabetizado, nessa forma primitiva de se compreender esse processo tão complexo,

significava ser capaz de ler o que os símbolos significavam e ser capaz de escrevê-los.

Como o sistema de escrita foi se expandido consideravelmente, aumentando a

quantidade de informações que eram necessárias para que alguém soubesse ler e

escrever, foi necessário que as pessoas deixassem de utilizar um sistema de símbolos

para representar as coisas e passassem a usar símbolos que representassem sons da fala.

O longo processo de invenção da escrita também inclui a invenção de regras de

alfabetização, ou seja, as regras que permitem ao leitor decifrar o que está escrito e

saber como o sistema de escrita funciona para usá-lo apropriadamente.

(CAGLIARI,1999). No século VX e XVI, com o

Renascimento, a preocupação com os leitores começou a alcançar novas proporções.

Nessa época surgem as gramáticas das línguas neolatinas, como consequência, fazendo

com que gramáticos se dedicassem à alfabetização, era preciso ensinar o povo a

escrever em línguas vernáculas, não mais predominando o latim (CAGLIARI,1999).

Começava assim a criação de cartilhas com objetivo de alfabetizar o povo.

João de Barros (1496-1571)

escreveu a primeira gramática portuguesa em 1540 e junto com ela publicou uma

cartilha visando orientar o processo de alfabetizar. Para se alfabetizar a partir dessa

proposta a pessoa deveria decorar todo o alfabeto, tendo o nome das letras como guia,

decorar palavras-chaves, e depois escrever e ler interpretando as sílabas da fala com a

correspondente forma de escrita. Um método considerado limitado já que se detinha a

decifração da escrita (CAGLIARI,1999). Desde então, uma

série de cartilhas foi elaborada visando orientar pais e professores como ensinarem as

crianças a lerem e escreverem. No Brasil, uma cartilha que ficou muito conhecida foi a

Cartilha maternal, elaborada por João de Deus (1930-1896), que apresentava uma

tendência a privilegiar à escrita em detrimento da leitura. Segundo Cagliari (1999), essa

cartilha teve uma influência direta nas propostas apresentadas posteriormente, que

podem ser demarcadas em alguns métodos e estratégias diferentes na forma de conduzir

o processo de alfabetização. Após a influência das cartilhas, na

história da alfabetização do Brasil, o principal propulsor das mudanças que vem

ocorrendo de forma constante quanto às concepções dos métodos é o fracasso da escola

em levar as crianças a dominarem os processos da língua escrita. (SOARES, 2016). Ou

seja, com relação à alfabetização de sujeitos neurotípicos já se pode perceber a

dificuldade das escolas de ensinarem o alunado a ler e escrever. Problematizar os

métodos, os materiais didáticos e estratégias pedagógicas, tornou-se fato sempre

presente em discussões acadêmicas entre os profissionais da área da educação. Não é

difícil imaginar que com relação aos alunos com síndrome de Down essa dificuldade se

intensifica ainda mais, já que exige que o professor não só possua conhecimentos sobre

as questões linguísticas que regem o processo de alfabetização, mas também

compreenda as limitações dos sujeitos com SD, buscando formas de intervir e contribuir

para a aquisição da leitura e escrita. Sabe-se que

por muito tempo os sujeitos com síndrome de Down foram considerados como

treináveis, cuja aprendizagem é fruto de um treinamento permanente, só aprendendo

pela mecanização constante (GONÇALVES, 1972). Contudo, estudos desenvolvidos a

partir da década de 80 começaram a ressaltar as possibilidades dos sujeitos com SD se

alfabetizarem, e além de decifrarem as os códigos da língua escrita, desenvolverem

relações funcionais de leitura e escrita. Em 1981, Lefevre, afirmou que por mais que

fosse um processo longo e inconstante, assim como as crianças normais, os downs

passariam pelas mesmas etapas. Uma série de estudos continuou a confirmar esses

pressupostos, na maioria das vezes questionando os níveis de abstração. Começa-se

assim acreditar nas potencialidades do sujeito e buscar formas de possibilitar a aquisição

da leitura e escrita.

Como afirma Soares (2016), aprender a escrita não é um processo natural, é uma

invenção cultural, a construção de uma visualização dos sons da fala.

Ao contrário de escritas logográficas ou ideográficas, que grafam os

significados – o conteúdo semântico da fala –, a escrita alfabética grafa os

significantes – os sons da fala–, decompondo-os em suas unidades mínimas,

os fonemas, que, embora sejam entidades abstratas, não observáveis

diretamente, não audíveis e não pronunciáveis isoladamente, se tornam, no

entanto, visíveis sob a forma de letras ou grafemas. (p.46)

Como a escrita envolve abstrações, é compreensível que os sujeitos com SD, que

possuem maiores comprometimento nessa área, não alcancem as mesmas etapas, nos

mesmos momentos, que seus coetâneos. Esse fato resulta que professores não

capacitados comparem seu desenvolvimento ao de crianças neurotípicas e mesmo que

cometam os mesmos erros durante o processo de alfabetização, não sejam

compreendidos e suas dificuldades sejam atribuídas à condição da síndrome de Down,

ressaltando mais uma vez limitações e não potencialidades.

Com base na compreensão exposta sobre a síndrome de

Down e o processo de alfabetização, apresentaremos dados obtidos nos atendimentos de

quatro sujeitos com SD, apontando as reflexões possibilitadas pelos estudos

linguísticos.

Dado 1

O primeiro sujeito, ST, é uma menina, possui 8 anos, está matriculada em uma

escola da rede privada, do município de Vitória da Conquista - BA. Em uma das

atividades realizadas, se propôs que STcantasse a música “O avião” de Toquinho,

apresentada inicialmente com apoio do clipe musical disposto na internet. Depois, a

mediadora realizou a leitura de um trecho da música com ST e ao final realizou a

pergunta “De qual objeto a música fala?” e ST respondeu “avião”. Quando passou para

a representação da escrita fez da seguinte forma (figura 1)

Figura 1 – AVIÃO

Fonte: banco de dados do LAPEN

Ao escrever “AFO” para representar a palavra “AVIÃO”, ST apresenta

processos linguísticos que fazem parte do processo de aquisição da linguagem escrita de

todas as crianças. Como posto por Moraes (2011), em um primeiro momento, em

línguas como o português, o espanhol, o francês e o catalão, as crianças tendem a crer

que precisam por uma letra para cada sílaba, para só depois se darem conta de que em

nosso sistema as letras substituem segmentos menores do que as palavras orais. Além

da representação de uma letra para cada sílaba, é possível ver que ST grafa “f” para a

silabada “vi”, apresentando um “erro” compreendido à luz dos processos fonológicos,

realizando troca de segmentos surdos e sonoros. Ou seja, ST elaborou uma hipóteses

que deve ser validade, já que demonstra que ela está começando associar valores

sonoros à possibilidades de escrita.

Dado 2

Em uma das atividades sobre o “Sítio do pica pau amarelo”, ao trabalharmos

com a letra da música da personagem “Cuca”, AB, uma jovem de 16 anos que gosta do

enredo do Sítio do Picapau Amarelo, com espontaneidade, tentou escrever o nome

“CUCA”, colocando o “U A” (figura 2). Segundo Cagliari (1999) este fato pode

acontecer no processo de aquisição da escrita, pois o estudante escreve apenas um dos

elementos da sílaba, de acordo a forma que analisa a fala, se repete a palavra da forma

“CUUUCAAA” acaba salientando as vogais e pode omitir na escrita a consoante.

Figura 2 - CUCA

Fonte: bando de dados do LAPEN

Mais uma vez, estamos diante de processos, que a partir da compreensão da

Linguística, no possibilitam compreender em qual etapa do processo AB se encontra.

Dado 3 – EU BRASIL

O sujeito JO antes de dar início ás atividades propostas contou que iria assistir

no dia do atendimento ao jogo do Brasil que passaria na televisão no período da noite.

Nesse momento, foi solicitado que JO escrevesse “Eu vou assistir o jogo do Brasil”. JO

possui 17 anos e começou a ser alfabetizado nos últimos três anos, conseguindo ler

algumas frases. Ao escrever, como podemos observar na Figura 2JO escreve “EU

BRASIL”, levando o estilo telegráfico, característica acentuada em sua oralidade, para o

registro da escrita.

Figura 3 – EU BRASIL

Fonte: banco de dados do LAPEN

Tendo como base as contribuições da Neurolinguística Discursiva (ND), o estilo

telegráfico deve ser entendido como construções intermediárias dos sujeitos, em

processo da internalização de processos psíquicos.

Conclusão

Os erros cometidos pelos três sujeitos com síndrome de Down, demonstraram

que eles passam pelas mesmas etapas que seus coetâneos, porém, como pode ser

observado, através da idade de cada um, levam mais tempo para superar as dificuldades,

exigindo um esforço maior do mediador do processo de aquisição da leitura e escrita.

Todos os erros encontrados possuem explicações embasadas em processos linguísticos.

O processo de alfabetização vai além do simples ato de decifrar letras e

não cometer erros ortográficos e, nesse sentido, reconhece-se que os três sujeitos ainda

estão em fase da aquisição da leitura e escrita e precisam de investimento para que

possam ter acesso aos conhecimentos produzidos pela humanidade.

Os erros apontam que os sujeitos são capazes de tomarem decisões, de

optar por uma, dentre tantas, opções. Por isso, ao invés de evidenciar como “erro” ou

“acerto”, vale-se mais investir na comparação com a ortografia esperada, possibilitando

que o próprio sujeito seja capaz de criar novas hipóteses a partir da comparação.

Ressalta-se, então, como fundamento da formação do mediador pedagógico, a

necessidade que os cursos de Pedagogia possibilitem conhecimentos do funcionamento

da língua, que perpassam pelas contribuições da Linguística.

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