elementos de musica nordestina nas tres pecas para viola e piano de cesar guerra-peixe-libre
TRANSCRIPT
-
Escola de Msica e Belas Artes do Paran
Ps-graduao em performance Msica de cmara e regncia coral
Rafael Ricardo Friesen
Elementos de msica nordestina nas Trs peas para viola e piano de Csar
Guerra-Peixe
Curitiba
2011
-
Rafael Ricardo Friesen
Elementos de msica nordestina nas Trs peas para viola e piano de Csar
Guerra-Peixe
Curitiba
2011
Monografia apresentada ao curso de ps-graduao em performance da Escola de Msica e Belas Artes do Paran como requerimento parcial para obteno do grau de Especialista.
rea de concentrao: Msica de CmaraOrientador: Prof. Dr. Ney Fialkow
-
Ao autor e consumador da f.
-
Agradecimentos
A Jav, por ser o motivo da existncia.
Tatiana, por ser meu suporte.
Ao Ney Fialkow, pelo bom encaminhamento.
Margareth Milani, por dispr-se to prontamente.
Ao Marcos Janzen, por enviar-me material de to longe.
Ao ogan Jony Vieira e ao babalorix Marco Boeing, por me receberem bem e
abrirem seus espaos.
Julia Benedini e Anelise Machado pela ajuda com a traduo.
-
Resumo
Esta monografia o resultado de uma pesquisa sobre elementos de msica
nordestina brasileira encontrados das Trs peas para viola e piano de Csar Guerra-
Peixe.
O trabalho consistiu em fazer uma reviso de literatura acerca da msica
nordestina e das Trs peas para viola e piano, bem como da biografia e de influncias
que cercearam a vida do compositor. Em seguida buscou-se identificar caractersticas da
msica da regio Nordeste do Brasil atravs de trabalhos escritos e audio sobre a
mesma. Posteriormente foi feita uma anlise das Trs peas, buscando relacionar as suas
caractersticas com aquelas da msica nordestina.
Palavras-chave: Csar Guerra-Peixe. Msica nordestina. Anlise. Piano. Viola.
-
Abstract
This paper is the result of a research of Northeastern Brazilian music elements
found on the Trs peas (Three pieces) for viola and piano by Csar Guerra-Peixe.
This work consisted of a literature review about the Northeastern music of Brazil
and from the Trs peas for viola and piano as well as the influences that surrounded the
composer's life. Next I sought to identify the characteristics in the Northeast region of
Brazil through literature and on listening. At last an analysis of Trs peas was done,
searching to relate its characteristics to those of Brazilian Northeastern music.
Keywords: Csar Guerra-Peixe. Northeastern music. Analysis. Piano. Viola.
-
Sumrio
..................................................................................................................1. Introduo 8
..................................................................................................2. Reviso de literatura 9
......................................................................................2.1. O Movimento Armorial 11
............................2.2. Localizao cronolgica das Trs peas para viola e piano 13
......................................................................3. Caractersticas da msica nordestina 16
..............................................................................................................3.1. Modos 16
............................................................................................................3.2. Melodia 19
................................................................................................................3.3. Ritmo 20
..........................................................................................................3.4. Harmonia 21
......................4. Elementos de msica nordestina nas Trs peas para viola e piano 22
............................................................4.1. Allegretto moderato, ou Baio de viola 22
.......................................................................4.2. Andantino, ou Reza-de-Defunto 29
.....................................................4.3. Allegretto, ou Toada de Jje ou Toque Jje 34
...............................................................................................5. Consideraes finais 46
-
1. Introduo
Em sua tese de mestrado Margareth Milani afirma que situar a obra de
um compositor brasileiro sob um ponto de vista cientfico, interpretativo e
performtico, resgatar a memria cultural deste msico e do pas (MILANI, p.
14). Executar essa tarefa com uma obra de um compositor que renovou a
corrente nacionalista (ibidem) um dos passos que podem ser dados.
Csar Guerra-Peixe um dos compositores que poderia receber mais
ateno dos pesquisadores, da literatura musical e de intrpretes. Pelos cargos
que ocupou, pelas obras que comps e por ter buscado apresentar elementos
que caracterizassem o nacional no em mbito que englobasse o pas
inteiro, mas uma poro importante dele seu nome poderia figurar com maior
frequncia nos meios de divulgao musical.
Na presente pesquisa tem-se por objetivo dar mais um passo na tarefa
de valorizar a msica nacional, especialmente a de Guerra-Peixe, indicando
quais elementos so comuns entre as Trs peas para viola e piano e a msica
nordestina caracterstica, especialmente aquela comum durante meados da
dcada de 1950, por ter sido prximo a este perodo que o compositor fez uma
imerso na cultura da regio.
Uma reviso de literatura foi feita e temas como a evoluo estilstica de
Guerra-Peixe, sua relao com os escritos de Mrio de Andrade, a estilizao
do folclore em suas obras e elementos biogrficos foram encontrados em
diversos autores. O envolvimento do compositor com o movimento armorial de
Ariano Suassuna foi brevemente apresentado, bem como a localizao
cronolgica das Trs peas para viola e piano.
Aps a reviso de literatura foram pesquisados modos, melodia, ritmo e
harmonia nordestinos. Em breve anlise das Trs peas foram pontuados
elementos comuns entre a msica nordestina e as obras em questo.
8
-
2. Reviso de literatura
Muito embora possa receber uma maior ateno, tanto a trajetria de
Csar Guerra-Peixe quanto parte de suas obras foram seriamente pesquisadas
por alguns autores. Sua habilidade composicional e a busca pela arte
nacionalista renderam-lhe reconhecimento, tornando-o objeto de estudo de
diversos pesquisadores. Boa parte dos trabalhos encontrados tem seu foco na
pesquisa feita pelo compositor no Nordeste do Brasil ou na sua evoluo
estilstica.
Antonio Emanuel Guerreiro de Faria Jr. associa a evoluo estilstica de
Guerra-Peixe com o pensamento de Mrio de Andrade (FARIA JR., 1997, p. 5).
Os textos deste foram citados pelo prprio compositor como sendo influncia
em seu trabalho. Faria Jr. cita o curriculum vitae do compositor (ibidem, p. 69) e
as palavras de Edino Krieger (ibidem, p. 85) para embasar a afirmao de que
Guerra-Peixe compunha sem copiar os temas folclricos, caracterstica
tambm encontrada no trabalho de Mozart Camargo Guarnieri (FIALKOW,
1995, p. 14). Em Guerra-Peixe: sua evoluo estilstica luz das teses
andradeanas o autor escreve que entre 2 de abril de 1949, data de concluso
da ltima pea dodecafnica, e junho deste mesmo ano, operou-se a mudana
de ordem esttica que encaminharia Guerra-Peixe para a Fase Nacional, e que
foi a definitiva at o final de seus dias. O ano considerado aquele no qual se
inicia a fase nacionalista do compositor este.
Faria Jr. menciona, tambm, que mesmo na fase dodecafnica de
Guerra-Peixe o compositor j buscava uma linguagem nacional, usando do
dodecafonismo apenas como ferramenta de composio. O autor diz que
os meios dos quais Guerra-Peixe se valia para tentar assegurar uma maior comunicabilidade, se aproximavam mais e mais da organizao de um cdigo especfico no necessariamente tonal , atonal , ou ser ia l que fundamentava sua comunicabilidade em referenciais estranhos ao dodecafonismo, a saber: a repetio de motivos e clulas; a fixao de elementos temticos atravs do ritmo; e o estabelecimento de pontos referenciais na harmonia como orientao para o ouvinte, sem que estes referenciais passassem por 'hierarquias' tipo Dominante-Tnica (FARIA JR., 1997, p. 21).
A estilizao do folclore na composio de Guerra-Peixe o ttulo
da dissertao de mestrado de Randolf Miguel. Ele aponta neste trabalho as
principais pesquisas realizadas por Guerra-Peixe, as principais obras com
temtica folclrica e demonstra processos de estilizao usados por este nas
suas composies. Alm das trs distintas fases composicionais de Guerra-
9
-
Peixe, amplamente aceitas1, inclusive pelo compositor, o autor da citada
dissertao defende o acrscimo de uma fase de transio, entre a fase
dodecafnica e a nacionalista (MIGUEL, 2006, p. 28). As Trs peas para viola
e piano enquadram-se cronologicamente nesta fase tida por experimental.
A influncia dos trabalhos de Mrio de Andrade sobre Guerra-Peixe
bastante aceita e citada em diversos trabalhos, como as dissertaes de
mestrado de Antonio Faria Jr. e Randolf Miguel. A busca do compositor por uma
arte caracteristicamente nacional foi norteada pelo trabalho do escritor.
Podemos citar Margareth Milani, em Preldios Tropicais de Guerra-Peixe: uma
anlise estrutural e sua projeo na concepo interpretativa da obra, onde ela
afirma que a leitura de Mrio de Andrade foi fundamental na trajetria de
Guerra-Peixe, pois calou os conflitos instalados no compositor quando adepto
da vertente dodecafnica(MILANI, 2008, p. 35).
Ao procurar uma fonte sobre a qual pudesse escrever msica
nacionalista, tendo uma crise prpria em sua forma de compor, Guerra-Peixe
deparou-se com o folclore nordestino. Isso ocorreu no apenas por um
processo de eliminao2, mas tambm devido insistncia de Mozart de
Arajo. Este estimulou o compositor a conhecer o que era feito na msica
popular de Pernambuco. A este amigo que o estimulou a visitar o Nordeste
Guerra-Peixe escreve uma carta reclamando da falta de execuo de
maracatus e frevos nos bailes, pois o estrangeirismo dos blues, swings, boleros
e rumbas vinha influenciando estes lugares. A pesquisa in loco sugerida pelo
amigo foi fundamental, pois Guerra-Peixe no desejava imitar outros
compositores, e tinha receio de fazer como outros que, ou imitavam Villa-
Lobos, ou faziam uso dos elementos da msica nordestina apenas de forma
superficial (FARIA JR., p. 26).
Mrio de Andrade acreditava que a msica brasileira tinha que ser
avaliada sob a tica do social. Nem os aspectos estticos nem os filosficos
deveriam ser considerados para se produzir msica caracteristicamente
brasileira. Ele acreditava que a msica brasileira, poca da escrita do Ensaio
sobre a msica brasileira, estava buscando nacionalizar a manifestao do
10
1 Faria Jr. (1997, p. 11) tambm corrobora as 3 fases distintas na produo de Guerra-Peixe.
2 O termo processo de eliminao usado aqui pelo fato de que outros compositores j vinham usando material do populrio brasileiro para compr obras nacionalistas, como, por exemplo, Villa-Lobos. Guerra-Peixe buscava algo que no tivesse sido usado ainda.
-
povo. As razes para isso, de acordo com este ensaio, estavam na msica
popular. Segundo o autor a msica popular brasileira a mais completa, mais
totalmente nacional, mais forte criao da nossa raa at agora(ANDRADE,
1972, p. s/n).
Embora defendesse a msica popular e o folclore como fonte, Mrio de
Andrade fazia diferenciao entre a msica do povo e a msica artstica3. Ele
dizia que msica artstica no fenmeno popular, porm desenvolvimento
deste(ibidem, p. s/n), e que essa msica deveria, sim, ter a harmonia baseada
nos conhecimentos histricos europeus, pois os processos harmnicos
populares brasileiros so pobres por demais. Andrade defendia a ideia de que
a msica artstica em pases onde a cultura aparece emprestada, como nas
Amricas, tanto as pessoas, como a arte nacionalista teriam 3 fases: da tese
nacional, do sentimento nacional e da inconscincia nacional. A ideia que
apenas nesta ltima a arte e o indivduo culto sentem o nacional como sendo
seu, de forma sincera e convicta.
Faria Jr. mencionou crer que o fato de Guerra-Peixe ter se envolvido
atravs de observao, estudo, leitura e conversas possivelmente tenha sido a
primeira fase proposta por Mrio de Andrade. O prprio compositor comenta,
em carta a Mozart de Arajo, que deveria compor sutes por algum tempo, para
explorar todos os ritmos ento aprendidos, para, depois de empreg-los muito
em sua forma elementar, usar de forma diluda este material. Novamente
citando Faria Jr., o que Guerra-Peixe buscou nesta fase de 'enculturao',
parece ter sido o domnio de uma tcnica prpria que lhe permitisse a
manipulao do material folclrico de maneira mais livre, mas sem perda das
caractersticas que o compositor considerava principais(FARIA JR., p. 39).
2.1. O Movimento Armorial
Ariano Suassuna foi fundador de um movimento denominado Armorial.
Este movimento teve apoio de alguns artistas e escritores do Nordeste
brasileiro e iniciou-se no meio universitrio, com apoio da Universidade Federal
de Pernambuco. Logo foi apoiado tambm pela Prefeitura de Recife e pela
Secretaria de Educao do Estado de Pernambuco. Foi lanado oficialmente
em 18 de outubro de 1970, com um concerto e uma exposio de artes
plsticas. A palavra armorial derivada de armadura, sendo esta ltima o
11
3 Em Ensaio sobre a msica brasileira no possvel encontrar o termo msica erudita. Em vez disso o autor usa o termo msica artstica.
-
conjunto de emblemas simblicos que distinguem uma famlia nobre ou uma
coletividade.
A proposta de Suassuna era que aquela arte que fosse capaz de extrair
do imaginrio sertanejo o seu material de trabalho seria uma arte armorial,
por utilizar material o mais puro possvel. Esta cultura sertaneja, fonte de toda
arte armorial, seria o que nos permitiria encontrar o que brasileiro em sua
mais profunda essncia, mostrando, inclusive, o sincretismo de portugueses,
espanhis, ndios e negros existente no Brasil. Claudia Leito, em seu livro Por
uma tica da esttica: uma reflexo acerca da tica Armorial Nordestina,
afirma que a elite brasileira subestimou a riqueza da arte sertaneja. Como
exemplo podemos citar o Quinteto Armorial, formado em 1970. Mesmo o grupo,
que se propunha a fazer msica sertaneja de raiz, teve dificuldades em aceitar
o desafinado caracterstico, ao passo que Suassuna o considerava puro,
primitivo, como uma beleza trgica causada pela mistura de canto indgena,
msica mourisco-ibria e canto gregoriano jesutico. Este teatrlogo chegou a
apresentar uma potica de dois cantadores nordestinos no Teatro Santa Izabel
no Recife, no ano de 1946, causando um escndalo. Claudia Leito considera
o Movimento Armorial to importante quanto a semana de 1922.
A proposta de Guerra-Peixe encaixava-se muito bem no Movimento
Armorial, pois ele j vinha desde muito antes pesquisando e escrevendo obras
nacionalistas com material coletado em pesquisas no Nordeste brasileiro,
sendo que teve obras gravadas pela Orquestra Armorial de Cmara e pelo
Quinteto Armorial. Ele e outros compositores como Jarbas Maciel, Capiba,
Cussy de Almeida e Clvis Pereira encontravam-se de 1969 a 1974,
convocados por Suassuna, para a pesquisa e elaborao dessa msica erudita
nordestina (ALOAN, 2008, p. 8).
Embora Guerra-Peixe j compusesse para os grupos do Movimento
Armorial sob encomenda de Ariano Suassuna, o compositor no foi
considerado, num primeiro momento, um artista realmente ligado s filosofias
do Movimento Armorial, tendo esse ttulo posteriormente (ibidem, p. 15).
Camargo Guarnieri tambm aderiu ao movimento mais tarde (NBREGA,
2007, p. s/n).
12
-
2.2. Localizao cronolgica das Trs peas para viola e piano
Guerra-Peixe foi um compositor que passou por trs fases estilsticas
diferentes (FARIA JR., p. 11), por esta razo o autor da presente pesquisa
optou por apresentar uma breve descrio de elementos que cercearam o
compositor em questo at a poca da composio das Trs peas para viola e
piano.
A admirao do compositor pelas ideias de Mrio de Andrade foi
externada inmeras vezes, tanto em textos quanto em entrevistas. O Ensaio
sobre a msica brasileira foi lido e relido no final da dcada de 1930, e o levou
a firmar convices e a ter inmeras experincias. Antonio Faria Jr. comenta
(ibidem, p. 5) sobre um documento manuscrito de Guerra-Peixe intitulado
Coisas boas que Mrio de Andrade escreveu, no qual est uma lista de
conceitos dos quais o compositor discordava com o musiclogo. No entanto
Guerra-Peixe afirmou, de forma bastante clara, que apenas os escritos de
Mrio de Andrade sobre as fases evolutivas j valem por tudo, por explicar o
mecanismo de criao no crebro de um compositor.
O compositor em questo, animado com as ideias encontradas no
ensaio de Mrio de Andrade, elegeu Newton Pdua como seu professor de
composio a partir de 1938. De acordo com seu curriculum vitae as obras
desta fase inicial, at o trmino do curso com este professor, mostram uma
vaga feio nacional, mas apenas na melodia. Desta primeira fase temos
apenas duas obras indicadas, a Sute Infantil n1 e o hino Fibra de Heri,
ambas de 1942. Talvez a razo seja porque o compositor, posteriormente,
rejeitou o que tinha feito em perodos anteriores de sua vida, inclusive
interditando a execuo de obras. Jos Maria Neves e Vasco Mariz comentam
sobre uma tendncia neoclssica com feio brasileira apenas na melodia das
obras de Guerra-Peixe nessa poca, e talvez por ainda no se considerar um
compositor maduro nesse perodo ele tenha optado por proibir a execuo de
tais obras.
A partir de 1944 passou a frequentar o curso particular de Koellreuter,
onde estudou Anlise, Histria Esttica da Msica, problemas de msica para
microfone, Harmonia Acstica e Tcnica dos doze sons (FARIA JR., p. 2).
Sendo aluno deste, Guerra-Peixe integra-se ao grupo Msica Viva, liderado
pelo seu mestre.
O curriculum vitae de Guerra-Peixe indica que no andante do Trio para
13
-
cordas, obra de 1945, o compositor j buscava contornos meldicos de carter
nacionalista, embora vagamente. Sobre esse assunto Faria Jr. levanta a
questo relativa procura da ditadura militar brasileira por elementos
progressistas. Se esta ditadura, iniciada em 1964, no aceitava tais
elementos, Guerra-Peixe poderia ter deixado indicado em seu curriculum vitae
que as melodias com sugestes modinha brasileira eram anteriores
implantao deste regime ditatorial. Assim o governo tenderia a entender que
compor de forma nacionalista no era uma ideia progressista. Infelizmente a
dvida sobre esse questionamento de Faria Jr. sempre permanecer, pois o
compositor veio a falecer em 1993, aos setenta e nove anos, sem responder tal
pergunta.
Antonio Faria Jr. afirma que o dodecafonismo de Guerra-Peixe tornou-se
pouco ortodoxo a partir de uma certa poca, pois ele considerava o sistema
apenas como processo, tanto que vem a deixar o grupo Msica Viva em 1949,
buscando por uma veia mais nacional. Ao que tudo indica ocorre por parte do
compositor uma tentativa de nacionalizar a tcnica dos doze sons. Algumas
dificuldades tcnicas impediram a execuo do Quarteto Mstico e apenas em
1946 surge a Sinfonia n1, escrita de forma mais acessvel.
As obras que utilizaram o dodecafonismo tambm foram rejeitadas em
perodo posterior pelo compositor (MIGUEL, p. 2).
Guerra-Peixe dizia acreditar ser o nico compositor que se livrou das
influncias de Villa-Lobos, que tambm cultivou a pesquisa pelo folclore
nacional (FARIA JR., p. 12).
Rosa Nepomuceno cita a simpatia do maestro com as ideias comunistas
do grande congresso da juventude comunista realizado em Praga, em 1948.
Ali foi ditada a regra nmero um do artista engajado: ele deveria se voltar para
a msica espontnea das massas e retrabalh-la com sua tcnica e
criatividade (NEPOMUCENO, 2001, p. 24). A autora afirma que houve uma
debandada do Msica Viva (idem), e que Guerra-Peixe passou a criticar
severamente a esttica dodecafnica, agindo de forma diferente de Edino
Krieger e Claudio Santoro. Estes mantiveram apoio a Koellreuter, apesar de
posies estticas diferentes (ibidem, p. 25).
No curriculum vitae do compositor encontramos que em 1949 o
compositor tem um perodo de crise em seu trabalho, pois no queria ser mais
um girando na rbita de Villa-Lobos, nem tinha certeza de que o chro teria
14
-
fora suficiente para resistir ao tempo (FARIA JR., p. 26). Como reparou que as
obras baseadas na msica nordestina eram pouco aprofundadas, e tambm
por insistncia de Mozart de Arajo, com quem travou calorosas discusses a
respeito do problema do carter na msica nacional, Guerra-Peixe enxergou no
Recife uma boa perspectiva.
Recm-casado o compositor mudou-se para Pernambuco em dezembro
de 1949, onde deixou-se ser enculturado, ou seja, sofrer influncia da cultura
naturalmente, atravs de diversos meios, como leitura, conversas e
observaes. Segundo Faria Jr. (p. 39), o que Guerra-Peixe buscou nesta fase
de 'enculturao', parece ter sido o domnio de uma tcnica prpria que lhe
permitisse a manipulao do material folclrico de maneira mais livre, mas sem
perda das caractersticas que o compositor considerava principais. Seu
perodo de pesquisa no Nordeste, resultou no livro Maracatus do Recife,
editado em 1955.
Como o compositor no buscava copiar o folclore, mas escrever moda
deste, trazendo seus elementos msica artstica, possvel que ele tenha
encontrado um problema apontado por Schoenberg em Style and Idea, de
1950, que era o da dicotomia entre a elaborao dos temas populares na
msica de concerto, que necessita de estruturas maiores. Talvez por conta
disso Mrio de Andrade sugira o uso de sutes, que seriam obras menores,
porm que no deixam de ser artsticas. Aparentemente Guerra-Peixe se utiliza
disso para desenvolver sua tcnica. Ele afirma ter precisado fazer um
artesanato nacional.
Entre o final de 1951 e abril de 1954 ocorre um hiato na produo de
Guerra-Peixe. Nesse perodo ele volta a se estabelecer em So Paulo e opta
por parar de compor por um tempo, para perder o vcio do
dodecafonismo (FARIA JR., p 59). Quando volta a trabalhar o folclore
nordestino, j neste estado, o compositor diz faz-lo de uma maneira mil vezes
melhor. nessas circunstncias que as Trs peas para viola e piano so
escritas, em 6 de janeiro de 1957 e dedicadas a Perez Dworecki.
15
-
3. Caractersticas da msica nordestina
A busca por uma identidade brasileira na msica artstica se tornou
mais evidente aps a virada do sculo4 (FIALKOW, 1995, p. 5). Nessa busca
por algo que fosse totalmente nacional alguns optaram por trabalhar com a arte
nordestina. Talvez o que mais tenha chamado a ateno daqueles que se
aprofundaram nessa pesquisa tenham sido o exotismo - para aqueles que
viviam longe da regio em questo - e a pureza desta arte sertaneja.
Naturalmente que puro precisa estar entre aspas, uma vez que o Brasil
foi construdo desde o ano 1500 com a miscigenao, no apenas racial, mas
de toda a cultura. Apesar disso a arte sertaneja manteve-se menos afetada
pela interferncia europeia posterior do que a arte dos principais centros
urbanos do pas. Por tal razo diversos interessados no assunto - como
Suassuna e o Movimento Armorial supracitado, alm de Guerra-Peixe -
voltaram seus olhos ao Nordeste brasileiro.
Mrio de Andrade identificou os elementos de uma cultura
verdadeiramente brasileira na msica popular, tanto rural quanto
urbana (ibidem, p. 9). Pelo fato de Csar Guerra-Peixe ter se baseado nessa
msica popular para retirar dela elementos para suas prprias composies o
objetivo deste captulo encontrar elementos que caracterizem a msica
nordestina.
3.1. Modos
Aparentemente incomodado com um trabalho de nio de Castro e
Freitas5 apresentado em Mesa Redonda do V Congresso Brasileiro de Folclore,
Guerra-Peixe escreve um artigo ao Jornal do Comrcio, contestando os
resultados apresentados por aquele (GUERRA-PEIXE, 1963, p. s/n6). De
acordo com Guerra-Peixe, Castro e Freitas declarou que a falta de
documentao indicando melodia e acompanhamento do folclore brasileiro
seria razo para afirmar que os tradicionais modos maior e menor seriam
predominantes neste folclore. A crtica de Guerra-Peixe ocorre sobre a
afirmao de Castro e Freitas de que apenas a existncia de documentao
16
4 A referncia da virada do sc. XIX para o sc. XX.
5 possvel que tenha havido um equvoco na publicao e o nome correto seja nio de Freitas e Castro, falecido em 1975.
6 Este e outros textos de Guerra-Peixe (1963 e 1985) no decorrer da presente pesquisa, bem como o de Ernani Aguiar, foram encontrados no site www.guerrapeixe.com. Este foi organizado pela Hlos Consultores Associados, e patrocinado pela Petrobrs e pela Lei de Incentivo Cultura.
-
provaria o uso de diversos modos na msica nordestina, enquanto que a falta
de dados no impede este fato7.
Sem negar que a documentao sobre o tema quase precria (idem)
Guerra-Peixe afirma a existncia do testemunho de diversos estudiosos bem
como de documentos publicados no primeiro volume de Melodias Registradas
por Meios No-Mecnicos (idem). De acordo com o compositor estes e outros
dados indicam a existncia de modos diferentes dos citados por Castro e
Freitas na msica folclrica.
Em A influncia africana na msica do Brasil, Guerra-Peixe afirma que
os modos mais recorrentes neste pas so dez: drico, frgio e ldio, seus
derivados hipodrico, hipofrgio e hipoldio, alm do modo maior europeu e
seus trs modos menores. Segundo o compositor, os modos de origem grega
esto, por exemplo, nos baies de Luiz Gonzaga, nos aboios, nos
'cabocolinhos', na dos violeiros (GUERRA-PEIXE, 1985, p. s/n), e os demais,
surgidos depois da Abertura dos Portos8, fazem-se presentes no frevo, no
pastoril e em mais algumas poucas manifestaes populares.
No mesmo texto o autor afirma ter encontrado nos xangs poucos
modos de uma nota, trs modos de duas notas, cinco de trs notas, seis de
quatro notas, sete de cinco notas9, seis de seis notas, trs de sete notas e
quatro de oito notas. Alm desses modos, nos maracatus o autor afirma ter
encontrados mais quatorze modos diferentes dos acima. O total de quarenta e
nove modos de origem africana apresentado por Guerra-Peixe no texto, sem
contar com os de reminiscncia europeia.
Em Cantoria Nordestina: Msica e palavra Elba Braga Ramalho afirma
que a presena dos jesutas no Nordeste brasileiro deixou marcas ainda vivas
nas representaes culturais daquele povo. Jos Siqueira concorda com essa
teoria, mas acrescenta o fator da acstica ao fato de encontrarmos trs modos
caractersticos na msica nordestina. O fator acstico indicado por Siqueira
baseia-se nas duas primeiras alteraes existentes na srie harmnica, como
17
7 Para exemplificar a crtica feita por Guerra-Peixe poderamos tomar a lei da gravidade, formulada por Isaac Newton. A gravidade sempre atuou sobre os corpos, independente da descoberta do fsico, ela no passou a ser atuante somente aps sua percepo. Da mesma forma a utilizao dos diversos modos poderia ocorrer independente da documentao destes.
8 A carta rgia escrita por Dom Joo, em 1808, autorizava a abertura dos portos do Brasil ao comrcio com naes amigas de Portugal.
9 O autor afirma que essas escalas pentatnicas nada tem a ver com a escala chinesa.
-
veremos melhor explanado mais abaixo.
Este ltimo autor apresenta trs modos bastante recorrentes na msica
nordestina. So eles:
a) I modo ou mixoldio:
b) II modo ou ldio:
c) III modo ou modo misto:
Este terceiro modo nada mais que a mescla dos dois primeiros, e,
segundo Jos Siqueira, deve ser considerado o modo nacional, por no ter
equivalente histrico com os modos eclesisticos.
Siqueira apresenta a srie harmnica como sendo a razo acstica pela
qual os modos tenham se fixado no populrio. As duas primeiras alteraes
encontradas na srie, se comparadas ao modo maior tradicional, so
justamente as notas alteradas encontradas nos modos acima:
Alm dos trs modos acima o mesmo autor ainda cita aqueles que
seriam como relativas, por iniciarem no VI grau dos recm citados modos:
a) I modo alterado ou frgio:
b) II modo alterado ou drico:
c) III modo alterado:
18
-
Embora seja possvel ter uma impresso de que os trs primeiros modos
sejam equivalentes do modo maior e os trs ltimos modos, equivalentes ao
modo menor, tal comparao deve ser evitada. Em Caboclinhos do Recife,
pgina 150, Guerra-Peixe afirma ter ouvido to somente melodias modais,
medievalmente, arcaicamente modais na concepo, ainda que
nacionalizadas. Portanto, apesar de tentadora, a comparao com os
tradicionais modos europeus deve ser evitada, para que no se saia do mbito
modal e acabe indo ao tonal. Jos Siqueira refora esse argumento, afirmando
que o sistema modal da msica folclrica brasileira acaba com princpios da
tonalidade clssica. Em O sistema modal na msica folclrica do Brasil afirma
que escalas maiores e menores, diatnicas ou cromticas so substitudas
pelos modos citados acima. Tambm afirma que as classificaes tradicionais
dos acordes desaparecem, e que devem ser chamados como acordes de 2
sons, acordes de 3 sons, etc, sendo possvel comear e terminar qualquer
msica com qualquer acorde. Alm disso, segundo este mesmo autor, as
cadncias harmnicas so suprimidas, e qualquer acorde servir para terminar
um membro de frase, uma frase ou um perodo. Por no haver mais a
tonalidade clssica tambm no ocorrem mais as modulaes, apenas
passagens de um modo a outro, denominadas transporte ou mudana.
Em A influncia africana na msica do Brasil Guerra-Peixe (1985, p. s/n)
afirma que uma escala uma sequencia de tons e semitons, mas modos so
maneiras meldicas.
Segundo Mrio de Andrade a riqueza dos modos brasileiros no se
restringe aos mencionados acima. Ao citar Eduardo Prado e Manuel Quirino ele
afirma que a utilizao das escalas hexacordais bem frequente, alm de
melodias que evitam sistematicamente a sensvel (ANDRADE, 1972, p. s/n).
3.2. Melodia
Quando escreve sobre melodia Mrio de Andrade utiliza o termo
serelepe como um dos adjetivos bastante comuns do carter da nossa lrica
popular, remetendo alegria das sonatas e tocatas do sc. XVIII italiano. Cita,
tambm, o apreo pela mediante como nota final das melodias, ao invs da
tnica usual da msica europeia.
O autor descreve a nossa linha meldica como sendo afeioada s
frases descendentes, caracterstica defendida tambm por Wagner Ribeiro em
19
-
Folclore musical: Histria da msica na Amrica. Ermelinda Paz (2002, p. 23)
cita Gerhard Kubic, quando este afirma que o movimento meldico
descendente caracterstica de quase toda msica africana, da qual a msica
brasileira possui descendncia, devido aos escravos trazidos para c. Para
defender a caracterstica do sentido descendente na melodia nordestina
Ermelinda Paz (ibidem, p. 28) cita Batista Siqueira, em Influncia Amerndia na
Msica Folclrica do Nordeste.
No artigo sobre rezas-de-defunto, Guerra-Peixe (1968, p. 242) apresenta
o fato de esse tipo de manifestao utilizar melodias em teras paralelas,
quando cantado pelo grupo de pessoas presentes no recinto onde um velrio
realizado - tambm chamados de sentinelas.
3.3. Ritmo
Mrio de Andrade acredita que o ritmo seja um dos pontos que provam a
riqueza do populrio brasileiro. Em Ensaio sobre a msica brasileira ele
apresenta trs verses escritas da melodia Pinio. O autor afirma ter verificado
variaes meldicas leves e rtmicas na mesma. Segundo o autor, um certo ad
libitum rtmico, devido dico, fator comum a qualquer cantiga, mas na
msica europeia e do centro mineiro-paulista, alm da zona tapuia, isso so
meras fatalidades (ANDRADE, p. s/n). No Nordeste brasileiro o mesmo deixa
de ser verdade, porque nestas zonas os cantadores se aproveitando dos
valores prosdicos da fala brasileira tiram dela elementos especficos
essenciais e imprescindveis de ritmo musical. E de melodia tambm (idem).
Mrio de Andrade diz que a msica nordestina muitas vezes apresenta um
ritmo to sutil que torna a grafia exata do mesmo quase impossvel. No canto
os nordestinos usam de um laisser aller10, uma liberdade rtmica contnua, de
feitios surpreendentes e muitssimas vezes de natureza exclusivamente
musical (idem).
Ainda sobre o ritmo, Mrio de Andrade afirma ser a sncopa uma das
constncias da msica brasileira, e que ela mais derivada dos portugueses
do que dos africanos. Em contraste com o mensuralismo europeu desses, o
brasileiro fez do ritmo uma coisa mais variada, mais livre e tambm um
elemento de expresso racial.
Wagner Ribeiro, em Folclore musical: Histria da msica na Amrica
20
10 Termo francs do capitalismo, que diz que o mercado deve funcionar livremente, sem interferncia. No contexto Mrio de Andrade usa essa expresso como indicativo de que h liberdade rtmica.
-
(1965, p. 31), cita que na msica brasileira ocorre a predominncia, mas no a
exclusividade, do compasso binrio, alm de sncopas integradas na melodia e
no primeiro tempo dos compassos binrios. O autor descreve a sncopa
brasileira como sendo muito sutil, e que ela frequentemente desaparece em
tercinas ou em trs notas iguais, acentuando ou no a segunda (ibidem, p. 31)
nota.
No mesmo texto possvel encontrar a informao de que a ausncia
de ritmo em msicas do Nordeste caracterstica marcante. Nestas msicas o
canto apresenta-se como uma conversa despreocupada.
As liberdades rtmicas permitem, inclusive, a oscilao do acento de tal
forma que se tenha a impresso de que duas frmulas rtmicas diferentes
estejam sendo executadas simultaneamente. Como exemplo podemos tomar
trs compassos 4/4 e quatro compassos 3/4. A acentuao oscilar, tendo o
tempo forte a cada trs tempos neste e a cada quatro tempos naquele, mas ao
fim dos compassos o primeiro tempo de ambos seria simultneo, como vemos
abaixo.
O executante pode desprezar o compasso, desde que no despreze o
tempo. Mrio de Andrade diz ser isso algo como o que os gregos faziam
ritmicamente11, diferente do que os europeus fizeram atravs do compasso.
3.4. Harmonia
Wagner Ribeiro, citando Lus Correia de Azevedo, apresenta a
informao de que no existe uma harmonia prpria da msica brasileira, que
so encontrados apenas processos que, por serem empregados, se tornaram
capazes de caracteriz-la (ibidem, p. 31). Jos Siqueira tambm embasa essa
afirmao ao afirmar, em O sistema modal na msica folclrica do Brasil, que a
nomenclatura tradicional de acordes no deve ser usada na msica do folclore
brasileiro, bem como as cadncias. Ele afirma que qualquer msica pode
comear e terminar com qualquer acorde.
21
11 De acordo com o texto os gregos faziam msica pela adio de pulsaes, ao invs de manter um nmero pr-definido de pulsaes que se repetem, como no compasso europeu.
-
4. Elementos de msica nordestina nas Trs peas para viola e piano
O objetivo do presente captulo fazer uma anlise das Trs peas para
viola e piano de Csar Guerra-Peixe, afim de apontar quais caractersticas
estas obras venham a ter em comum com a msica popular do nordeste do
Brasil.
4.1. Allegretto moderato, ou Baio de viola
A primeira das trs peas do ciclo estudado na presente pesquisa leva a
indicao de Allegretto moderato. Fernanda dos Santos menciona que esta
obra apresenta um ritmo bem marcado, semelhante ao galope de cavalos,
chamado de 'Baio de viola' (SANTOS, p. s/n).
Escrevendo sobre o baio, Lcia Gaspar apresenta a informao de que
o nome deste gnero musical derivado de baiano, e que era registrado desta
forma nas toadas de bumba-meu-boi. Ela cita Pereira da Costa, ao afirmar que
o baiano um misto de msica, poesia e dana, e que suas toadas so
acompanhadas por viola e pandeiro.
No mesmo texto encontramos que o primeiro registro da palavra baio
da dcada de 1920.
Jos Maria Tenorio Rocha cita Rossini Tavares de Lima para afirmar que
os cantadores nordestinos chamam de baio de viola ou ponteado parte
instrumental no incio de uma cantoria ou entre uma estrofe e outra. Segundo o
autor o instrumentista toca as cordas somente com um dedo para produzir suas
melodias.
Segundo Bredel e Cavazotti esta obra de Guerra-Peixe possui uma
estrutura que constitui introduo (c.121-2), parte A (c.3-6), parte B (c.7-10),
parte A' (c.11-15), parte B' (c.16-20) e coda (c.21-23).
Antonio Madureira13 foi o responsvel pela direo artstica, pesquisa e
texto de um CD chamado Iniciao aos instrumentos musicais do Nordeste.
Como sugere o ttulo, o disco contm gravaes de diversos instrumentos
caractersticos da regio, entre eles a viola. Na quinta faixa deste lbum o
violeiro, que busca demonstrar as particularidades sonoras de seu instrumento,
utiliza-se de um toque similar ao indicado abaixo (o exemplo est em r maior):
22
12 Entenda-se c. como abreviao para compasso
13 Antonio Madureira foi integrante do Quinteto Armorial, importante grupo do Movimento Armorial.
-
O mesmo ritmo usado por Guerra-Peixe na introduo da primeira das
Trs peas para viola e piano, como vemos abaixo no baixo e na pauta com a
clave de sol:
Esta clula rtmica do piano permanece por quase toda a pea, de forma
similar a um ostinato. Este toque14 comea a ser dissolvido somente a partir do
compasso 14, e ainda com uma reapresentao um pouco variada nos dois
ltimos compassos, como mostrado abaixo:
Alm da citada clula rtmica encontramos uma nota r bastante grave e
insistente na parte do piano, apresentada j na introduo.
Nos compassos 7 e 8 possvel notar um movimento descendente nas
notas mais graves, e isso se repete nos dois compassos seguintes para
somente ento encontrarmos, no compasso 11, a nota sol como sendo a mais
grave, conforme imagem abaixo:
23
14 Em Maracatus do Recife temos a informao de que o termo toque uma designao popular para o acompanhamento, especialmente seu ritmo.
-
Posteriormente, no compasso 15, o r grave volta, e mantm-se at o ltimo compasso, quando o piano retoma o toque inicial e termina bruscamente em duas notas sol:
possvel perceber duas caractersticas importantes. A primeira indica
que a parte do piano busca remeter o ouvinte ao toque da viola nordestina. A
segunda a intervalo de quarta justa entre as notas graves do piano. Pelo fato
de este instrumento imitar o toque do violeiro nesta obra, o autor da presente
pesquisa cogitou a possibilidade de as notas graves compostas para o piano
remeterem execuo de cordas soltas 15 na viola nordestina. No somente
pela altura das notas, mas tambm pelo fato de elas serem longas e
sustentadas pelo pedal do piano. Ao pesquisar o trabalho de autores como
24
15 O termo corda solta indica que a corda foi tangida sem que ela tenha sido pressionada pela mo que faz os acordes no brao do instrumento.
-
Jos Maria Rocha e Alceu Maynard Arajo foi possvel constatar dois sistemas
de afinao que coincidiam com o r sendo a nota mais grave da viola
nordestina e o sol a segunda nota mais grave.
O primeiro sistema de afinao denominado cana verde ou cururu,
e de acordo com Alceu Maynard de Arajo um sistema dos mais simples,
usado para a cantoria. Consiste nas seguintes notas:
O segundo sistema denominado oitavado, de guitarra ou ponteado
do Paran. Alceu Arajo menciona a existncia dessa afinao no litoral sul de
So Paulo e litoral norte do Paran. Usado em danas de fandango e romarias
para Iguape:
Analisando a partitura da viola foi possvel perceber que as nicas notas
mais longas que uma semnima surgem apenas nos trs ltimos compassos, e
o seguinte motivo rtmico aparece por quase toda a obra:
Abaixo vemos a parte da viola, onde podemos notar a quantidade de
aparies do motivo rtmico acima.
25
-
Aps a introduo do piano a viola comea seu tema causando alguma
dvida quanto ao modo utilizado. possvel reconhecer o r drico (ou II modo
alterado, sugerido por Jos Siqueira), se avaliarmos tendo em vista a nota
inicial do tema e o baixo do piano, como visto abaixo.
Como visto acima, possvel reconhecer o j mencionado II modo
alterado. Porm, se levarmos em conta a ltima nota da pea (indicada na
imagem abaixo), no caso um sol, o modo deixaria de ser o II modo alterado
(drico) e passaria a ser visto como o I modo, tambm conhecido como
mixoldio. Alm desse centro modal no final da obra, que na msica tonal
costuma ser parte importante da definio da tonalidade, na imagem acima
vemos a melodia da viola iniciando no segundo tempo do compasso,
considerado um tempo fraco, inclusive com indicao de arcada para cima16, e
repousando no terceiro tempo do compasso, que um tempo mais forte que o
segundo e o quarto, na nota sol.
26
16 As arcadas para cima costumam ser usadas em notas de menor acento, e as arcadas para baixo em notas mais acentuadas.
-
Em ambos os casos teramos um dos modos caractersticos da msica
nordestina nesse incio da obra.
Este modo inicial mantm-se at o compasso 7, onde a melodia da viola
passa por um d ldio, ou II modo, mas brevemente apenas, como vemos na
imagem abaixo. Nos dois primeiros tempos do compasso seguinte j possvel
reconhecer um l mixoldio, ou I modo, e nos dois ltimos tempos do mesmo
compasso encontramos d ldio, ou II modo. Esta situao relativa aos modos
usados nos compassos 7 e 8 repete-se nos dois compassos seguintes.
O compasso seguinte, ou seja, o de nmero 11, apresenta a viola
retomando o tema inicial, porm uma oitava acima e com a adio de uma nota
r em quase todos os momentos em que a melodia passa pelo r inicial, como
podemos notar na imagem abaixo. Alm disso o baixo do piano sol, portanto
27
-
apesar de termos aqui uma reexposio do tema inicial, o modo definitivamente
um sol mixoldio, ou I modo. A dvida deixada pelo compositor na exposio
sanada neste trecho da obra.
Alm desta questo referente ao modo do tema, a imagem acima nos
permite reconhecer algo que Bredel e Cavazotti chamam de melodia
'escondida' na mo direita do piano (2005, p. 70). A partir da metade do
compasso 11 as notas mais graves da mo direita do pianista, se tocadas
isoladamente, geram o seguinte desenho rtmico e meldico:
No compasso 16 a parte da viola apresenta r mixoldio, ou I modo, e no
compasso seguinte r drico, ou II modo alterado.
A partir do compasso 18 retoma-se a dvida inicial quanto ao modo, pois
as mesmas condies se repetem. Como j apresentado anteriormente, a
sensao de sol no I modo consolida-se apenas na coda, quando viola e piano
terminam a pea na nota sol ao invs da nota r.
28
-
4.2. Andantino, ou Reza-de-Defunto
A segunda das Trs peas para viola e piano leva como subttulo, em
algumas edies, a indicao de Reza-de-Defunto, que nada mais que uma
expresso popular para velrio.
Margareth Milani cita a Enciclopdia de Msica Popular Brasileira ao
afirmar que o costume de chorar os mortos herana portuguesa.
Durante velrios ocorrem canes que se utilizam de textos do
catolicismo. Por serem religiosas essas manifestaes levam o nome popular
de Reza-de-Defunto. O prprio Guerra-Peixe publicou uma pesquisa de 1952
sobre essa manifestao folclrica na Revista Brasileira de Folclore em 1968.
De acordo com essa publicao essa prtica mais comum no serto e no
agreste pernambucanos, at porque, na poca, a polcia proibia a prtica da
reza-de-defunto em Caruaru.
Em regra a Reza-de-Defunto puxada ou tirada isto , conduzida a
29
-
solo por um lder chamado rezad, rezadro ou rezadra e respondida pelo
cro de sentinelas, homens e mulheres que fazem sala rezando e cantando
geralmente a duas vozes, ou seja, em teras paralelas (GUERRA-PEIXE,
1968, p. 236), exceto quando a reza direta, ou seja, quando o canto
inteiramente coral. Independente do caso o lder responsvel por conduzir a
reza. Aquelas rezas que so de contedo mais dramtico ou religioso tendem a
ser cantadas sem o solista, e so qualificadas de rezas puxadas ou fortes.
No texto de Guerra-Peixe vemos que na voz popular Encelncia17 ()
o prprio morto(ibidem, p. 236). uma parte do rito que pode ser rezada do
incio da agonia at o final do amortalhamento e costuma ser cantada doze
vezes, podendo ter uma parada18 na stima vez.
De acordo com alguns informantes do autor da pesquisa supracitada,
durante a Novena, no ms de maio, so cantadas Excelncias em domiclio
que podem durar at 24 horas. A diferena que as rezas nesse caso so
outras daquelas cantadas para o defunto.
O Bendito usado mais amplamente, por isso tambm mais popular.
um cntico de pregao, jbilo, exaltao, em procisses, penitncias e
durante as secas, para chamar chuva. Como reza-de-defunto ele difere da
Excelncia no texto, e repetido sete vezes, via de regra.
A liturgia da reza-de-defunto, segundo Guerra-Peixe, severa, com uma
srie de ritos a serem considerados. Em princpio todos deveriam cantar, mas
aqueles que no o fazem costumam passar o tempo conversando sobre
assuntos diversos, at mesmo cmicos, pois a reunio, apesar da gravidade
do acontecimento, deixa todos vontade (ibidem, p. 238).
Em hiptese alguma um instrumento construdo pelo homem pode fazer
msica em uma reza-de-defunto, ela unicamente vocal, e raramente
melismtica. A parte coral caracterizada por uma intensidade relativamente
alta e expansiva, () quase sempre no registro agudo (ibidem, p. 242).
A impresso que Guerra-Peixe apresenta no texto, a de que nas rezas-
de-defunto ocorrem legatos eternos, sem muitas nuances e com pausas
curtssimas; o ritmo das melodias foge da exatido do tempo medido, mas varia
30
17 A transcrio utilizada por Guerra-Peixe nessa pesquisa foi literal, tal qual a pronncia do povo. No caso citado as palavras encelncia, encelena, incelncia, incelena, insalncia e insalena significam excelncia.
18 De acordo com o populrio essa parada deve ser breve, para que o Diabo no venha tentar o extinto.
-
pouco; o andamento lento causa sensao de permanente monotonia(ibidem,
p. 242). Alm disso ele reparou, na coletnea de rezas registradas, duas com
fragmentos de cantocho deformados e misturados com trechos de origem
popular. Apenas duas das rezas so em unssono, no restante o coral canta a
duas vozes, em teras paralelas, como no gymel19. Ao todo foram catalogadas
18 melodias modais, 13 tonais, 4 modais-tonais e uma imprecisa.
A obra para viola e piano aqui analisada tem Andantino por indicao,
sendo a semnima a aproximadamente 48 batidas por minuto no metrnomo. O
centro modal encontrado o de L. O tema apresentado pela viola comea na
tera do modo, e indica o uso, em primeiro momento, do modo elio, como
vemos abaixo.
Logo em seguida ocorre uma modulao, ou como sugerido por Jos
Siqueira, um transporte ou mudana. Este segundo tema inicia-se na stima
abaixada, na nota sol, indicando que o compositor optou por utilizar o I modo
indicado por Siqueira, tambm conhecido por mixoldio, como vemos abaixo.
Este segundo tema aparece duas vezes seguidas, com terminaes
diferentes e um pouco de variao. Na primeira, no compasso 6, a melodia
tende tera, mas segue em escala ascendente, para a retomada do segundo
tema, que nesta repetio variada termina no primeiro grau do modo.
A partir da anacruse do compasso 10 para o seguinte passamos a ter a
impresso de ouvir um modo jnico, mas essa sensao quebrada no
compasso 13, quando a nota r sustenido nos remete a um ldio, ou II modo,
de acordo com Jos Siqueira:
A retomada do I modo (mixoldio) ocorre j na sequencia, com a ltima
31
19 Gymel, ou cantus gemellus, era o nome dado adio de um canto diferente da melodia litrgica, como o cantus firmus do sc.XII. Diferente do dchant francs, o cantus gemellus ingls adicionava uma tera superior e outra inferior melodia. Posteriormente a tera inferior foi transposta uma oitava acima dando origem ao faux-bourdon, ou falso baixo.
-
nota do compasso 14 sendo sol natural. Isso segue at o compasso 16, onde
temos um trecho modulatrio, que termina no centro modal, como visto
abaixo.
Este trecho utiliza-se do I modo alterado, o que pode ser notado na
utilizao das notas si bemol e mi bemol, como indicado abaixo.
Do compasso 18 at o final do movimento encontramos apenas uma
pequena coda, que estabelece a tonalidade, e se utiliza de repeties de
clulas rtmicas curtas, tanto na parte do piano quanto na viola:
Podemos notar que neste movimento ele se utiliza da repetio e
variao de determinadas clulas rtmicas e meldicas. Nesta ltima coda tanto
a viola quanto o piano apresentam, cada um duas vezes, a clula rtmica
abaixo. Este trecho pode ser comparado com o canto responsorial, comum
entre a rezadra e os sentinelas durante os velrios populares, devido ao
fato de a clula rtmica em questo aparecer ora em um instrumento, ora em
outro. Diferente do canto responsorial dos sertanejos, neste trecho da obra
Guerra-Peixe no utiliza teras paralelas. A clula a seguinte:
Alm desta clula rtmica, outra bastante apresentada durante o
presente movimento a seguinte:
32
-
Esta geralmente usada com teras descendentes, como nos
compassos 5, 7 e 14, mostrados abaixo.
Embora as rezas-de-defunto sejam todas cantadas sem o
acompanhamento de nenhum instrumento, neste movimento o piano realiza o
acompanhamento harmnico. Em alguns compassos ele tambm apresenta
clulas rtmicas repetidas e variadas. Podemos reparar tal aspecto nos
compassos 9 e 10, que so repetidos uma vez e variados a partir do compasso
13:
Guerra-Peixe afirmava compor utilizando elementos da msica popular,
mas sem copiar seus temas. Ao observar a coleta de rezas feita pelo
compositor e publicada na Revista Brasileira de Folclore em 1968, foi possvel
observar que os temas desta pea no coincidem com nenhum dos temas
populares ali apresentados. Podemos afirmar que o compositor foi fiel sua
afirmao, pelo menos no que diz respeito ao mbito pesquisado.
Foi possvel observar, tambm, a grande quantidade de teras duplas
utilizadas nas melodias populares. Estas teras no foram incorporadas da
mesma forma pelo compositor, mas foram usadas melodicamente, como
indicado na imagem abaixo.
33
-
Ritmicamente, tanto as rezas coletadas, quanto esta obra, tem em
comum o uso de pequenas clulas repetidas. No artigo publicado na revista
acima citada, Guerra-Peixe afirma que determinadas rezas chegam a ser
repetidas doze vezes, portanto a reapario de determinadas clulas poderia
ser considerada uma meno a essas repeties constatadas pelo compositor
nas coletas in loco.
4.3. Allegretto, ou Toada de Jje ou Toque Jje
Em Maracatus do Recife Guerra-Peixe afirma que em sentido
absolutamente restrito, chama-se 'toada' ao texto de um cntico; 'msica', a
melodia sobre a qual se apoia a toada. Alargando o conceito, porm, 'toada'
indica o conjunto de ambas as partes, isto , texto e melodia. E desse modo,
comum os popu la res chamarem a compos io de ' toada de
Maracatu' (GUERRA-PEIXE, 1955, p. 49). O mesmo texto tambm apresenta
a informao de que h um acompanhamento de instrumentos de percusso,
denominado toque pelo povo.
O termo Jje um termo pejorativo usado para designar povos trazidos
como escravos de vrias regies da frica Central e frica Ocidental. Povos
yoruba, do Daom20, chamavam seus vizinhos de djedje, que significa
estrangeiro, estranho. Quando viram seus vizinhos inimigos chegando como
escravos muitos gritavam: Pow okan, djedje hum wa!, que significa: Olhem,
os jejes esto chegando!.
Uma toada de jje um canto do povo jje, msica usada no candombl
34
20 O Daom era um reino africano situado onde agora o Benin. Fundado no sculo XVII, permaneceu at final do sculo XIX, quando foi conquistado pela Frana.
-
e na umbanda. De acordo com Randolf Miguel, em A estilizao do folclore na
composio de Guerra-Peixe, o compositor visitou diversos terreiros de
xangs, durante seu perodo de pesquisas no nordeste brasileiro, e, portanto,
provvel que este movimento seja resultado destas visitas e pesquisas in loco.
No livro intitulado Folclore musical: Histria da msica na Amrica o
autor Wagner Ribeiro (1965, p. 110) afirma que as toadas dos xangs so os
fatores principais que levam os participantes deste tipo de culto mgico aos
fenmenos de possesso. A combinao dos ritmos usados pelos instrumentos
de percusso com as toadas repetidas indefinidamente so fatores que levam
os integrantes a um estado de hipnotismo.
Fernanda dos Santos menciona esta obra como sendo uma dana que
mistura elementos de origem afro (Je Je) com a toada tipicamente
brasileira (p. s/n).
O motivo rtmico a seguir utilizado durante quase toda a obra:
Este motivo utilizado tanto de forma integral quanto de forma variada,
apresentado tanto pela viola quanto pelo piano, tanto individualmente quanto
de forma responsorial. A utilizao frequente desta clula rtmica nos remete ao
som de uma batucada de candombl, de efeito hipntico.
Ernani Aguiar, em uma resenha do CD Tributo a Guerra-Peixe, comenta
que esta obra se utiliza no s de um ritmo dos xangs pernambucanos,
como tambm um chamado toque cego21 e um recitativo baseado em um
can to que faz o sacerdo te em de te rminados momentos das
cerimnias (AGUIAR, p. s/n).
A obra comea com o ritmo indicado acima sendo executado somente
pela viola, como podemos perceber abaixo.
35
21 Um pai-de-santo de Curitiba afirmou, em entrevista ao autor da presente pesquisa, que o toque do piano o lembrou um toque de outro orix, chamado Oxssi. Na umbanda este toque da nao Ktu, e no da nao Jje e a coleta in loco realizada pelo pesquisador resultou na seguinte clula rtmica:
-
A clula rtmica em questo um pouco variada pelo piano no compasso
3, e no compasso seguinte este ltimo instrumento passa a executar a clula
integralmente na regio grave, enquanto a mo direita do pianista executa a
harmonia.
A parte do piano mantm esse ritmo at o compasso 12 sem alteraes
que no sejam harmnicas. Nos quatro compassos seguintes ocorre uma
espcie de canto responsivo entre o piano e a viola, ainda no seu elemento
rtmico.
O fim destes quatro compassos delimita, tambm, o trmino da parte A.
As notas repetidas do piano, nos compassos 13 a 16, poderiam remeter
visualmente execuo dos tamboreiros dos xangs pernambucanos, uma vez
que os toques so feitos com ambas as mos? Uma resposta convincente para
esse assunto no foi encontrada, a pergunta mantm-se.
36
-
A partir do compasso 17 ocorre uma nova seo da obra. Ritmicamente
comeam a aparecer alteraes graduais como percebe-se nas partituras
acima e abaixo. possvel notar a dissoluo do elemento rtmico inicial. O
compositor usa as mesmas apresentaes responsivas, mas a partir deste
ponto a viola passa a reduzir a quantidade de tercinas de semicolcheias
substituindo-as por semicolcheias enquanto o piano apresenta apenas a
primeira metade da clula inicial e varia o terceiro tempo dos compassos.
Do compasso 21 ao 24 o piano responde imitando o que a viola faz
melodicamente. Por exceo de uma nica nota variada na viola (indicada na
partitura abaixo) todo o resto da melodia idntico.
A retransio para o toque apresentado no comeo tem seu incio no
37
-
compasso 25, visto acima, atravs da reapresentao da primeira metade da
clula rtmica inicial. Entre os compassos 25 e 33 estas tercinas vo sendo
reinseridas na obra pela viola, at a parte C (compasso 34), onde elas voltam a
ser o elemento rtmico mais efusivo.
Ao final dessa efuso de tercinas possvel notar a utilizao de
hemolas no final do respectivo trecho, dos compassos 45 a 47:
O toque inicial reaparece no compasso 48, na parte do piano. Aqui a
38
-
diferena est na densidade, uma vez que nesta reapresentao as notas so
executadas forte e em oitavas e acordes numa regio mdia e grave. Enquanto
isso a viola tem o tema meldico do compasso 4 transportado para outro centro
modal.
39
-
O toque usado permanece sendo apresentado pelo piano at o
compasso 57, quando a funo passa a ser da viola. No compasso 59, durante
o diminuendo que leva ao pianissimo final, o piano executa a primeira metade
da clula rtmica inicial, enquanto a parte da viola contm a segunda metade
da mesma clula.
Ao observar os modos utilizados nessa obra, podemos notar que a
harmonia inicial usada pela viola est centrada em sol, sem utilizao de tera,
40
-
como vemos na imagem abaixo.
O tema meldico da obra apresentado pela viola no compasso 4.
Diferente de outros modos usados at o presente momento nas Trs peas,
aqui o compositor utiliza uma melodia em mi elio. Embora este no seja um
dos seis modos propostos por Siqueira, o presente modo tambm plausvel,
uma vez que em A influncia africana na msica do Brasil Guerra-Peixe afirma
que, alm dos modos caractersticos, ele constatou a utilizao dos modos
europeus tradicionais na msica nacional.
O tema est dividido em duas partes, sendo que ambas terminam em
sol, nos compassos 8 e 12. Esta finalizao na tera do modo pode levar
sensao de um modo maior de sol, mas no podemos ignorar a afirmao de
Mrio de Andrade em Ensaio sobre a msica brasileira, onde ele afirma que
nossa meldica afeioa as frases descendentes (ANDRADE, p. s/n).
A repetio da nota si do piano nos compassos seguintes pode levar o
ouvinte impresso de uma relao do tipo dominante-tnica, uma vez que o
mi elio no dissipado.
41
-
Entre os compassos 13 e 24 apenas poucos elementos esto fora do
modo elio de mi. Algumas aparies do f natural no baixo do piano e duas
passagens cromticas na viola. Estas ocorrem entre os compassos 14 e 20, de
uma forma descontinuada. As notas d mais agudas no compasso 14 so o
incio desta passagem. Aps isso vemos d sustenido no compasso 15, r no
17, r sustenido no 19 e mi no 20.
A imagem abaixo indica, com setas, o cromatismo.
42
-
Tanto o incio quanto o fim da parte B apresentam o tema do compasso
17. A diferena encontra-se no fato de que nesta primeira apresentao deste
pequeno tema o final se d com uma nota mi longa, antes da retomada do
tema com variao, enquanto que a partir do compasso 31 a nota mi longa
retardada em um compasso, tendo algumas repeties curtas da mesma nota
antes, como pode-se notar na imagem abaixo.
A parte C, iniciada no compasso 34 ainda apresenta o modo elio,
porm transportado para o centro tonal de l. Este centro retorna para mi na
segunda metade do compasso 37, como indicado na imagem abaixo.
A soma dos arpejos da viola com a harmonia do piano, todos no
compasso 38, do a impresso de uma funo de dominante de sol maior.
Impresso essa reforada pelo arpejo da viola no compasso seguinte.
No quadragsimo compasso temos a mesma situao que no compasso
38, porm com uma resoluo em mi elio, causando a sensao de uma
cadncia de engano, como pode-se notar na figura abaixo.
43
-
Apenas no compasso 48 encontramos um modo mais caracterstico da
msica nordestina. A viola executa o tema inicial no II modo alterado, tambm
conhecido por drico. O centro tonal desta reexposio sol, como possvel
perceber na partitura abaixo.
Na ltima seo da obra a viola retoma o toque inicial usando, inclusive,
a mesma harmonia do incio, conforme vemos na imagem abaixo. A nica
alterao est na dinmica, que indica fortissimo neste trecho, enquanto que
no comeo da obra a indicao de forte.
Os dois ltimos compassos da obra deixam uma dvida no ouvinte.
Tanto o baixo do piano quanto o acorde da viola indicam sol, mas na mo
direita do pianista encontramos um mi menor. Esta situao leva o ouvinte a
questionar se ouviu mi elio por boa parte da obra ou se era sol jnico.
44
-
45
-
5. Consideraes finais
Embora tenha sido possvel encontrar algumas caractersticas comuns
msica nordestina e msica brasileira em geral, o compositor no deixou
indicao alguma sobre o timbre na partitura das Trs peas. Talvez seja
possvel notar, na execuo da viola, uma referncia sutil do anasalado
emoliente e o rachado discreto que Mrio de Andrade afirma serem
constantes na voz brasileira inclusive com algum cultivo. A percusso dos
tambores no candombl pode ser lembrada tambm atravs do bater dos
martelos do piano nas cordas, mas tambm sem nenhum tipo de afirmao por
parte do compositor.
Wagner Ribeiro, citando Lus Correia de Azevedo, nos informa que no
existe uma harmonia propriamente brasileira, apenas processos que se
tornaram capazes de caracterizar a msica brasileira, por serem empregados.
Jos Siqueira tambm afirma essa incapacidade de se avaliar a harmonia na
msica do Brasil ao afirmar que a nomenclatura tradicional deve ser evitada e
que qualquer acorde serve para comear ou terminar uma obra. Baseado nisso
foram evitadas anlises harmnicas, com poucas excees, estas estando
presentes apenas como meno.
No que tange ao ritmo foi possvel constatar a afirmao de Mrio de
Andrade de que os nordestinos usam elementos essenciais da prosdia da fala
na msica, e que uma certa liberdade rtmica contnua caracterstica comum
no canto dessa regio. Wagner Ribeiro apresenta a informao de que a
ausncia de ritmo uma caracterstica nordestina marcante, como se o canto
fosse uma conversa despreocupada.
Ao escrever sobre melodia Mrio de Andrade afirma a afeio desta a
uma linha descendente, e com apreo pela mediante como nota final.
No captulo anterior foi possvel constatar a utilizao de alguns destes
elementos comuns msica nordestina. Na primeira das Trs peas, um
Allegretto moderato tambm conhecido por baio de viola, a parte do piano
apresenta um ritmo marcado como o utilizado por cantadores nordestinos.
Alm do ritmo foi possvel notar a utilizao de duas notas graves e longas no
piano, r e sol. Estas notas so comuns a dois sistemas de afinao da viola
sertaneja, uma denominada cana verde ou cururu e a outra chamada de
oitavado ou de guitarra.
Neste Allegretto moderato foi possvel indicar a utilizao do II modo
46
-
alterado, do I modo e do II modo, tambm conhecidos como frgio, mixoldio e
ldio, respectivamente. Estes ocorrem em mais de um centro tonal, o que Jos
Siqueira denomina como transporte ou mudana.
A segunda pea, um Andantino tambm chamado de reza-de-defunto,
baseada no costume de origem portuguesa de se chorar os mortos, fato
mais comum no interior nordestino do que nas cidades maiores. Guerra-Peixe
chegou a publicar um artigo sobre o tema, que pde verificar in loco.
Nesta pea foi possvel encontrar os seguintes modos caractersticos da
msica nordestina: modo elio, I modo, II modo e I modo alterado.
As rezas-de-defunto so cantadas sem acompanhamento de
instrumento algum, com uma grande utilizao de teras por parte dos cantores
do coro de sentinelas. Na pea escrita por Guerra-Peixe a viola no toca sem
acompanhamento, a parte do piano tem a harmonia e apresenta alguns
padres rtmicos. As teras, comuns nas rezas cantadas, aparecem na parte da
viola de forma meldica.
Duas caractersticas comuns nos velrios nordestinos so a quantidade
de repeties das cantorias e a utilizao de canto responsorial. O compositor
em questo no faz tantas repeties como aquelas feitas pelos sertanejos,
mas pode-se notar uma pequena aluso a isto nas reaparies de algumas
clulas rtmicas. J o canto responsorial pode ser percebido no final da pea,
mas apenas no aspecto rtmico.
Guerra-Peixe publicou um artigo sobre as rezas-de-defunto onde
afirmou ter tido a sensao de que o ritmo das melodias fugia da exatido do
tempo medido. Na pea em questo isso no ocorre, uma vez que enquanto
um instrumento tem uma nota longa o outro executa algo mais rtmico,
evitando, assim, a sensao da perda de pulsao.
Na terceira das Trs peas para viola e piano, tambm conhecida como
toque Jje, o elemento mais caracterstico o ritmo. Durante grande parte da
obra possvel reconhecer uma mesma clula rtmica, repetida ou variada. De
acordo com Ernani Aguiar este ritmo usado denominado toque cego, e
utilizado em xangs pernambucanos de nao Jje. Aguiar tambm afirma, em
uma resenha de CD, que nesta obra a viola executa um canto sacerdotal
usado em determinados rituais. A presente pesquisa no foi capaz de encontrar
outra referncia que no esta sobre o assunto da melodia.
No que diz respeito aos modos utilizados esta a menos variada das
47
-
trs obras, pois Guerra-Peixe usou, em sua maioria, o modo elio, passando
apenas brevemente pelo II modo alterado, tambm conhecido como drico.
Em linhas gerais foi possvel constatar que o compositor em questo
utilizou-se de elementos caractersticos da msica nordestina, em especial os
modos e o ritmo. Tais elementos foram adaptados em obras de linguagem
erudita atravs de: mudanas de centros modais - que podem ser interpretados
como uma espcie de modulao, variaes rtmicas, utilizao de uma
estrutura mais comum s salas de concerto e mbitos de alturas similares s
dos sertanejos.
Pesquisar sobre o trabalho de msicos ptrios poderia se tornar um
dever em nossas universidades, pois isso poderia fomentar o conhecimento da
riqueza cultural dessa nao. Com maior desenvoltura poder-se-ia reduzir a
lacuna de conhecimento existente a respeito dessa cultura. Um exemplo dessa
lacuna apontado por Milani ao citar o ndice temtico de Griffiths na
Enciclopdia da msica do sculo XX (MILANI, 2008, p. 15). Neste ndice o
nico compositor brasileiro apresentado Heitor Villa-Lobos.
As Trs peas foram compostas em uma poca em que a msica
nordestina ainda no havia sido muito explorada como fonte de brasilidade, e
Guerra-Peixe realizou parte do trabalho de divulgao dessa riqueza. De forma
similar a presente pesquisa poder ser til para reduzir a lacuna de trabalhos
sobre a obra do compositor e suas fontes, bem como para propiciar uma
consequente interpretao mais apurada.
48
-
REFERNCIAS
AGUIAR, Ernani. Resenha. Disponvel em: . Acesso em 14 de fevereiro de 2011.
ALOAN, Rafael Borges. A organologia e a adaptao timbrstica na msica armorial. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2008.
ANDRADE, Mrio de. Ensaio sobre a msica brasileira. 3 ed. So Paulo: Vila Rica; Braslia: INL, 1972.
ARAJO, Alceu Mainard de. A viola cabocla. Disponvel em . Acesso em 17 de maro de 2011.
BLOOD, Brian. Music theory online: counterpoint. Disponvel em: . Acesso em 29 de dezembro de 2010.
BREDEL, Pierre; CAVAZOTTI, Andr. Trs peas de Csar Guerra-Peixe: uma abordagem fenomenolgica. Per Musi Revista Acadmica de Msica. Belo Horizonte: n 12, p. 65-81, 2005. Disponvel em: . Acesso em 02 de agosto de 2011.
Candombl Jeje. Disponvel em: . Acesso em 04 de janeiro de 2011.
Daom. Disponvel em: . Acesso em 04 de janeiro de 2011.
FARIA JR., Antonio Emanuel Guerreiro de. Guerra-Peixe: sua evoluo estilstica luz das teses andradeanas. Rio de Janeiro: UNI-RIO, CLA, 1997.
FIALKOW, Ney. The Ponteios of Camargo Guarnieri. Massachusetts, Peabody: JOHNS HOPKINS UNIVERSITY: 1995. 114f. Tese (Doctor of Musical Arts).
GASPAR, Lcia. Baio. Pesquisa Escolar On-line, Fundao Joaquim Nabuco, Recife. Disponvel em: . Acesso em 14 de maro de 2011.
______. Movimento Armorial. Pesquisa Escolar On-Line, Fundao Joaquim Nabuco, Recife. Disponvel em: . Acesso em 04 de outubro de 2010.
GUERRA-PEIXE, Csar. A influncia africana na msica do Brasil. Os afro-brasileiros. Fundao Joaquim Nabuco. Editora Massanga, 1985. Disponvel em: . Acesso em 14 de fevereiro de 2011.
______. Cabocolinhos do Recife. Revista brasileira de folclore. Rio de
49
-
Janeiro: Marques Saraiva, n 11, p. 135-158, 1965.
______. Escalas musicais do folclore brasileiro. Jornal do Comrcio. Rio de Janeiro, 1963. Disponvel em: . Acesso em 14 de fevereiro de 2011.
______. Maracatus do Recife. So Paulo: Ricordi, 1955.
______. Rezas-de-defunto. Revista brasileira de folclore. Rio de Janeiro: Marques Saraiva, n 22, p. 235-268, 1968.
______. Trs peas para viola e piano. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Msica- Banco de Partituras de Msica Brasileira, 2006.
IANS, Angela da. Nao Jeje no Brasil. 2008. Disponvel em: . Acesso em 04 de janeiro de 2011.
Laissez-faire. Disponvel em: . Acesso em 27 de dezembro de 2010.
LEITO, Claudia Sousa. Por uma tica da esttica: uma reflexo acerca da tica Armorial Nordestina. Fortaleza: UECE, 1997.
MADUREIRA, Antonio. Iniciao aos instrumentos musicais do nordeste. Antonio Madureira. Pernambuco: Ancestral. CD faixa 5 4' 09''.
MED, Bohumil. Teoria da msica. 4 ed. rev. e ampl. Braslia: Musimed, 1996.
MIGUEL, Randolf. A estilizao do folclore na composio de Guerra-Peixe. UNI-RIO, 2006.
MILANI, Margareth Maria. Preldios tropicais de Guerra-Peixe: uma anlise estrutural e sua projeo na concepo interpretativa da obra. Margareth Maria Milani. Salvador, 2008. 236f. Dissertao (Mestrado em Execuo Musical) - Universidade Federal da Bahia - Programa de Ps-graduao em Msica. 2008.
Movimento armorial. Disponvel em: . Acesso em 04 de outubro de 2010.
NEPOMUCENO, Rosa. Csar Guerra-Peixe. A msica sem fronteiras. Rio de Janeiro: Funarte, 2001.
NBREGA, Ariana Perazzo da. A msica no movimento armorial. In: Anais do XVII congresso da ANPPOM. So Paulo, 2007. Disponvel em: . Acesso em 7 de abril de 2011.
PAZ, Ermelinda A. O modalismo na msica brasileira. Braslia: Musimed, 2002.
50
-
RAMALHO, Elba Braga. Cantoria nordestina: msica e palavra. So Paulo: Terceira Margem, 2000.
RIBEIRO, Wagner. Histria da msica na Amrica. So Paulo: Coleo, 1965. (Folclore musical, v. 3).
ROCHA, Jos Maria Tenorio. Cantoria de viola: expresso de alegria e esperana do povo nordestino.
SANTOS, Fernanda dos. O processo criativo de Guerra-Peixe e Edino Krieger. Disponvel em: . Acesso em 14 de maro de 2011.
SIQUEIRA, Jos. O sistema modal na msica folclrica do Brasil. Joo Pessoa, [s.i.e.], 1981.
51