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ELIANA COSTA DA CRUZ DE NEGREIROS
MITOS E FORMAÇÃO CONTINUADA: OLHARES DE PROFESSORES SOBRE
INTERDISCIPLINARIDADE E CONTEXTUALIZAÇÃO
NA DIMENSÃO ESTÉTICA DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO
SÃO PAULO
2009
1
ELIANA COSTA DA CRUZ DE NEGREIROS
MITOS E FORMAÇÃO CONTINUADA: OLHARES DE PROFESSORES SOBRE
INTERDISCIPLINARIDADE E CONTEXTUALIZAÇÃO
NA DIMENSÃO ESTÉTICA DA EDUCAÇÃO
Dissertação apresentada ao Programa de
Mestrado em Educação da Universidade
Cidade de São Paulo, como exigência
parcial para a obtenção do título de Mestre
em Educação, sob a orientação da Profª.
Drª. Margaréte May Berkenbrock Rosito.
UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO
SÃO PAULO
2009
2
Ficha Elaborada pela Biblioteca Prof. Lúcio de Souza. UNICID
N385m
Negreiros, Eliana Costa da Cruz de. Mitos e formação continuada: olhares de professores sobre interdisciplinaridade e contextualização na dimensão estética da educação. / Eliana Costa da Cruz de Negreiros. --- São Paulo, 2009. 130 p.; anexos. Bibliografia Dissertação (Mestrado) – Universidade Cidade de São Paulo - Orientadora: Profª. Dra. Margaréte May Berkenbrock Rosito. 1. Formação continuada de professores. 2. Interdisciplinaridade. 3. Ensino médio. 4. Políticas públicas em educação. 5. História de vida - professores I. Rosito, Margaréte May. Berkenbrock II. Título.
371.12
3
____________________________________
____________________________________
____________________________________
COMISSÃO JULGADORA
4
Dedico este trabalho
À memória de meu pai e de minha mãe.
Ao meu marido Roberto e meu filho Fábio,
que, com paciência e amor, sempre me
apoiaram e acreditaram em mim.
À minha avó Lydia, que, aos oitenta e oito
anos, nos presenteia com lições de
coragem e persistência.
A todos os meus familiares e amigos.
5
AGRADECIMENTOS
À Professora Doutora Margaréte May Berkenbrock Rosito, orientadora desta
pesquisa, que com muita competência e afeto ajudou-me a trilhar o caminho da
investigação e do conhecimento e a desvelar a formação continuada na perspectiva
(auto) biográfica.
Ao Doutor Julio Gomes Almeida e ao Doutor Marcos Ferreira Santos,
membros da banca examinadora, pela atenção devotada a este trabalho.
Aos professores do Mestrado em Educação da Universidade Cidade de São
Paulo, que me auxiliaram no percurso da construção e desenvolvimento desta
pesquisa.
Ao Governo do Estado de São Paulo, pela concessão da Bolsa Mestrado,
motivadora para novos estudos e descobertas em prol da escola pública paulista.
A todos os colegas Supervisores de Ensino da Diretoria de Ensino Leste 5,
nos quais me espelhei para construir os referenciais do exercício da profissão.
Dentre eles, destaco a presença da Supervisora de Ensino Maria Clara Paes Tobo,
pela amizade construída tão recentemente, porém de imenso valor e reciprocidade.
Aos amigos mestrandos, pelos momentos de convivência e pela amizade
cultivada.
Ao colega Oswaldo Marques, incentivador de meu percurso enquanto
pesquisadora.
A minha querida amiga Ivany Theodósio Lerco Flygare, pela união em nossa
trajetória enquanto professora/mãe, diretora de escola/supervisora e
supervisora/supervisora. Neste Programa de Mestrado nos reencontramos como
colegas, percorrendo nossos caminhos com esforço e ajuda mútua.
A minha querida amiga Sonia Maria Brancaglion, também colega na trajetória
do Programa de Mestrado em Educação, pelo entusiasmo demonstrado desde o
processo seletivo até a conclusão do curso.
À Professora Alice do Céu Miguel Pereira, Diretora da E.E. “Loureiro Junior”,
pela autorização concedida para realização da pesquisa.
Às professoras Mirian Strutz e Tereza Telles pela gentil colaboração na
revisão deste trabalho e à professora Talita Rodrigues pela tradução do texto.
6
RESUMO
Este estudo apresenta como objeto de pesquisa a formação continuada de
professores e teve como objetivos identificar e estudar os olhares dos professores
do Ensino Médio sobre os conceitos de interdisciplinaridade e contextualização,
tendo como referência os conceitos trazidos pelo Programa “Ensino Médio em
Rede”, desenvolvido pela Secretaria de Estado da Educação de São Paulo nos
anos de 2004 a 2006. A revisão teórica sobre o tema tratado incluiu o estudo das
Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, promulgadas no ano de
1998. Para alcançar os objetivos do trabalho foi realizada uma pesquisa qualitativa,
acompanhada da realização de entrevistas narrativas com 05 (cinco) professores
que atuaram em 2008, no segmento do Ensino Médio, na Escola Estadual
“Professor Loureiro Júnior”. A partir do referencial de Lenoir (2007), Fazenda (2002),
Josso (2004), Ferreira-Santos (2008), Brandão (1986) e Freire (1992) investigamos
e analisamos os aspectos necessários sobre formação continuada, com particular
atenção ao pressuposto que, na escola, tal formação necessita ter como eixo
norteador o compromisso de olhar o passado e os saberes presentes nas histórias
de vida dos docentes, permitindo aos mesmos a reflexão e compreensão dos
resultados que suas ações produzem, enquanto sujeitos em sua singularidade. A
investigação buscou elementos para compreender as concepções dos professores
de Ensino Médio da rede pública estadual sobre os conceitos “interdisciplinaridade”
e “contextualização” e a relação entre a elaboração pessoal de tais conceitos com
suas histórias de vida, o que implicou na assunção de uma abordagem
mitohermenêutica, pela qual não se pretendeu a busca de uma verdade ou de
informações específicas, mas a construção de sentidos, a partir de inferências. A
análise privilegiou os mitos pessoais que emergiram nas narrativas dos sujeitos. Os
resultados das análises foram muito reveladores e apontaram um considerável
distanciamento entre o proposto no Programa “Ensino Médio em Rede”, como
política pública de formação de professores, e o que foi, de fato, compreendido
pelos professores, assinalando a necessidade de políticas educacionais
considerarem, no processo de formação de professores, a dimensão estética e a
sensibilidade, advindas das narrativas (auto) biográficas.
Palavras-chave: Ensino Médio, Histórias de Vida, Mitohermenêutica, Formação
Estética
7
ABSTRACT
This study represents as a research topic the teachers´ continued formation and had
as objective to identify and to study the high school teacher´s views about the
concept of interdisciplinary and contextualization, keeping like reference the concepts
brought by High School in Network - “Ensino Médio em Rede”- , developed by São
Paulo State Educational Department – Secretaria da Educação do Estado se São
Paulo - between 2004 and 2006. The theoretical review about the subject showed
included the study of High School National Curricular Guidelines, promulgated in the
year of 1998. To achieve the objectives of this research was realized a qualitative
research, with narrative interviews questioning 05 (five) teachers who taught in 2008,
in the High School segment, at “Teacher Loureiro Junior Public School”. From the
theoretical reference of Lenoir (2007), Fazenda (2002), Josso (2004), Ferreira-
Santos (2008), Brandão (1986) e Freire (1992) we investigated and analyzed the
necessary aspect about continued formation, with special attention to the assumption
that, in the school, such training needs to have as a guiding line the appointment of
to take a look at the past and look at the knowledge present in the teachers´ life
history, allowing the action produced by the results reflection and comprehension, as
subjects in your singularity. The research sought elements to understand the high
school teachers‟ conceptions (public school) about concepts “interdisciplinary” and
“contextualization” and the relation between the personal developments of such
concepts with the life story, which led an assumption of a mitohermenêutica
approach, for which not intended to search the truth or specific information, but the
meaning construction, from inferences. The analysis favored the personal myths that
emerge in the narratives of the person. The analysis results were really revealing and
mentioned a considerable distance between witch is proposed by “High School in
Network - “Ensino Médio em Rede”- , like public policies of teachers´ training, and
what was, in fact, understood by teachers, noting the need of educational policies
consider, in the teachers´ formation process, the esthetics dimension and the
sensitivity, obtained from the (self) biographical narratives.
Key words: high school, life stories, myth-hermeneutic, esthetics formation
8
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS
10
LISTA DE TABELAS 11
INTRODUÇÃO
APRESENTAÇÃO............................................................................................
12
1 O MITO, A MEMÓRIA E O CONHECIMENTO
20
1.1 Vivências pessoais e a pesquisa 22
1.2 Resgatando a história de vida do sujeito pesquisador 24
1.3 Sistematizando a história de vida: a tecedura da Colcha de Retalhos 34
1.4 Minha história de vida: o olho e a mão, uma construção de sensibilidade
37
1.5 O olhar e as mãos : ver e agir 42
2 FORMAÇÃO CONTINUADA E ENSINO MÉDIO NA CONTEMPORANEIDADE: 44
APÓIO TEÓRICO
2.1 – Palas Atená, saber e formação 44
2.2 – Cenários da Educação contemporânea
52
2.2.1- O Ensino Médio na contemporaneidade 55
2.2.2 – Princípios de Interdisciplinaridade e Contextualização na legislação 58
educacional: as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio
2.2.3 – Desafios dos profissionais da educação frente ao “novo” Ensino Médio 61
2.3 – Cenários da Educação no Brasil: o Programa “Ensino Médio em Rede” 63
2.4 – Interdisciplinaridade e Contextualização: olhares teóricos 70
3 MITOS E NARRATIVAS (AUTO) BIOGRÁFICAS: A DIMENSÃO 76
ESTÉTICA NA CONSTRUÇÃO DE OLHARES DOS PROFESSORES
DE ENSINO MÉDIO SOBRE INTERDISCIPLINARIDADE E CONTEXTUALIZAÇÃO
3.1 Um olhar sobre a escola pública na metrópole 76
3.2 Um olhar sobre os Olhares Mitológicos de professores 80
3.2.1 Ana, o mito de Eco e Narciso 82
3.2.2 Lílian, o mito de Ártemis 88
3.2.3 Renata, o mito do canto das sereias 95
3.2.4 Gabriel, o mito de Hermes
99
3.2.5 Silvia, o mito de Jurupari
105
3.2.6 Encontros estéticos mediados por Suely, o mito de Hersília
112
9
CONSIDERAÇÕES FINAIS
117
REFERÊNCIAS 121
ANEXOS 130
1. Roteiro de Entrevista 130
1.1 – Anexo I 131
1.2 – Anexo II 132
1.3 – Anexo III 133
1.4 – Anexo IV 134
1.5 – Anexo V 135
2. Transcrições das Entrevistas Narrativas
136
2.1 – Professora Ana 136
2.2 – Professora Lílian 139
2.3 – Professora Renata 144
2.4 – Professor Gabriel 147
2.5 – Professora Silvia 151
10
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Linha do Tempo ............................................................................... 35
Figura 2 – Meu Retalho .................................................................................. 37
11
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Número de escolas por segmento de ensino................................... 77
Tabela 2 – Características dos participantes...................................................... 80
12
INTRODUÇÃO
Neste estudo, focalizam-se os olhares de professores de Ensino Médio sobre
a formação continuada, a partir da compreensão dos conceitos dos termos
“Interdisciplinaridade” e “Contextualização”. As referências são os conceitos trazidos
pela formação continuada desenvolvida pela Secretaria de Estado da Educação de
São Paulo, denominada Programa “Ensino Médio em Rede”, que ocorreu durante os
anos de 2004 a 2006.
Os objetivos, neste trabalho, são: a identificação das diferentes visões
apresentadas por professores do Ensino Médio, sobre os conceitos de
“Interdisciplinaridade” e “Contextualização”; a compreensão da análise da relação
existente entre esses olhares e a trajetória vivida; o entendimento dos mitos
pessoais que emergem das narrativas (auto) biográficas, na participação em ações
de formação continuada.
A justificativa para a escolha do tema desta pesquisa está atrelada à
experiência vivida da pesquisadora que, na sua atuação como gestora escolar e,
posteriormente, Supervisora de Ensino, constatou dificuldades na percepção, por
parte dos professores, das evidências dessa efetiva reforma do “novo” Ensino
Médio, principalmente, quando relacionadas à prática docente em sala de aula.
A atuação da autora do trabalho, como supervisora, junto à Diretoria Leste 5,
contribuiu para a decisão de que o desenvolvimento da pesquisa dar-se-ia com os
professores que atuam no ensino regular de uma das escolas públicas estaduais
paulistas, jurisdicionadas à D.E. Leste 5, portanto, a escolha recaiu sobre a Escola
Estadual “Professor Loureiro Júnior”, pertencente à rede pública paulista.
O problema de pesquisa proposto foi: a indagação sobre a existência de
sentido, na formação continuada, considerando a visão que se tem sobre os
conceitos de “Interdisciplinaridade” e “Contextualização”. Esta indagação envolveu
professores da rede pública estadual paulista, participantes ou não do Programa de
Formação Continuada desenvolvido pela Secretaria de Estado da Educação de São
Paulo, denominado Programa “Ensino Médio em Rede”. O programa ocorreu
durante os anos de 2004 a 2006 e dos cinco professores entrevistados, três deles
participaram do Programa “Ensino Médio em Rede”. Todos atuavam no ano de 2008
no segmento de Ensino Médio da E.E. “Professor Loureiro Júnior”.
Para alcançar os objetivos do trabalho realizou-se uma pesquisa qualitativa,
visando à interpretação dos significados explícitos ou implícitos da legislação o que
13
implicou a assunção de uma abordagem hermenêutica, pela qual não se pretendeu
a busca de verdades ou de informações específicas do texto, mas a construção de
sentidos, a partir de inferências.
A pesquisa consistiu em trazer à tona as concepções dos cinco professores
que atuam no Ensino Médio da E.E. “Professor Loureiro Júnior”.
A referência teórica que embasou os conceitos de “Interdisciplinaridade” e de
“Contextualização” adveio do estudo das Diretrizes Curriculares Nacionais para o
Ensino Médio, promulgadas por meio do Parecer CNE/CEB nº. 15/98.
Considerou-se o pressuposto de que a concretização da reforma do Ensino
Médio exige como requisitos, para sua total realização, a revisão curricular e a
reconstrução da identidade das escolas (entendidas como espaços coletivos de
construção de propostas pedagógicas que pressupõem a formação em serviço).
Questões norteadoras propiciaram a emergência do estudo do tema da
pesquisa, entre elas, como estruturar uma escola capaz de atender às demandas da
sociedade e aos princípios legalmente instituídos e como vencer dificuldades e
desafios enfrentados pelas escolas, na concretização da nova concepção curricular
do Ensino Médio, proposta pelas Diretrizes Curriculares Nacionais.
Dentre as áreas de conhecimento que compõem o currículo dos cursos de
Ensino Médio, optou-se por investigar os olhares dos cinco professores, cuja
participação foi autorizada pela Diretora da escola, que atuam na área de
Linguagens e Códigos e suas Tecnologias – LCT, ministrando aulas nas disciplinas
de Português, Inglês e Educação Artística. Esta escolha se deve ao fato de que a
educação estética perpassa estas áreas do saber, em especial nas expressões
artísticas e poéticas, expressões da razão sensível.
O Plano de Gestão Quadrienal (Anos Base 2006-2009), os Anexos 2008 ao
Plano de Gestão Quadrienal e o Quadro Escolar /2008 (Q.E.) foram os documentos
oficiais utilizados para a coleta de dados sobre a E.E “Professor Loureiro Junior”.
Pretendeu-se identificar, na pesquisa realizada:
- as concepções dos professores de Ensino Médio da rede pública estadual
(Diretoria de Ensino Leste 5) sobre os conceitos “Interdisciplinaridade” e
“Contextualização”;
- a relação entre a elaboração pessoal de tais conceitos com suas histórias de vida,
extraindo o mito pessoal de cada sujeito entrevistado.
14
- as experiências que esses professores tiveram (em sua vida pessoal, nos
momentos de formação continuada e na sua trajetória profissional), relacionadas a
possíveis práticas interdisciplinares;
- as condições tidas como necessárias para o desenvolvimento de práticas
interdisciplinares, na visão dos professores.
A hipótese da pesquisa desenvolvida apóia-se na premissa de que os
professores que atuam no segmento do Ensino Médio da rede pública paulista não
têm clareza dos conceitos de “Interdisciplinaridade” e “Contextualização”, uma vez
que a construção de tais conceitos demanda uma ação de formação contínua que
possibilite a reflexão sobre esses temas, a qual não foi disponibilizada a todos os
professores da rede.
Os procedimentos propostos para a realização do trabalho foram vários. O
primeiro contato foi realizado com a Diretora da escola, para apresentação dos
objetivos da pesquisa e obtenção de permissão para entrada na Unidade Escolar e
realização das entrevistas.
Com a autorização da Direção, foi coletado o documento de autorização que,
após assinado, foi encaminhado ao Comitê de Ética da Universidade Cidade de São
Paulo para formalização da pesquisa.
As entrevistas junto aos professores da Escola Estadual “Professor Loureiro
Junior” ocorreram durante o mês de novembro de 2008.
Foi estabelecido um contato junto à Direção da escola, para agendamento da
data propícia à realização das entrevistas, objetivando não alterar drasticamente a
rotina da escola, sendo disponibilizado à pesquisadora o espaço da biblioteca
escolar.
Para a realização das entrevistas foram utilizados os seguintes materiais: um
gravador, o termo de consentimento dos sujeitos envolvidos e o roteiro de
entrevistas (Anexos I a V).
Durante a realização da entrevista, o espaço escolhido não foi utilizado pela
comunidade escolar, ocorrendo, portanto, a realização da coleta de dados sem
interferências do ambiente. Foram realizadas entrevistas individuais, sem limite de
tempo pré-estabelecido. As falas individuais foram gravadas e transcritas,
constituindo-se como a base da produção de informações para esta pesquisa.
Na apresentação aos professores, foram prestados esclarecimentos sobre os
objetivos da pesquisa, sua intencionalidade e sua relação com a história de vida da
pesquisadora.
15
Os professores envolvidos, após a apresentação formal da pesquisa, foram
estimulados a falarem sobre si: seu nome, sua formação inicial, a disciplina que
lecionam, há quanto tempo trabalham como docentes da rede pública paulista. Com
a intenção de identificar os professores participantes e preservar sua identidade,
foram designados nomes fictícios a cada um deles.
Sobre os métodos e o material do trabalho, enfatiza-se que, para o alcance dos
objetivos desta pesquisa, o procedimento planejado foi fundamental. Lênin (apud
MINAYO, 2004, p.22) enfatiza que o método é a alma da teoria pelo qual se constrói
o conhecimento científico. Minayo (2004, p. 22) ressalta que a metodologia é o
“caminho e o instrumental próprios de abordagem da realidade”.
Partimos do pressuposto de que uma das formas de compreender a percepção
do professor sobre a sua experiência é por meio de narrativas (auto) biográficas,
desenvolvidas a partir das histórias de vida, onde o sujeito realiza uma reflexão do
seu percurso formativo, buscando o autoconhecimento. Este pode levar à mudança
de quadros de referência e pode proporcionar o aperfeiçoamento da formação e da
prática do professor.
Na pesquisa, foi adotada a abordagem (auto) biográfica, na perspectiva de
Dominicé (2006), Pineau (1988; 2006) e Josso (2004). Na perspectiva de Josso
(2004), focaliza-se o paradigma experiencial da história de vida, na formação de
professores, como aproximações epistemológicas, teóricas e metodológicas da
pesquisa. A originalidade da metodologia de pesquisa-formação, em história de vida,
está na constante preocupação de que os autores dos relatos cheguem a uma
produção de conhecimento que faça sentido para eles, que se engajem, eles
próprios, num projeto de conhecimento que os institua como sujeitos.
O procedimento de história de vida proposto por Josso (2007) implica na
produção de relatos de vida centrados na reconstrução da história da formação de
alguém. É uma abordagem que alterna tempos de trabalho individual e tempos de
trabalho em grupo, articulados a uma leitura de relatos com olhares cruzados. A
construção da narrativa de formação, para Josso (2004), exige do aprendente uma
atividade psicossomática, pois pressupõe a narração de si mesmo, questionando as
suas identidades, a partir de vários níveis de atividades e de registros, sob o ângulo
da sua formação, por meio do recurso das recordações-referências, que balizam a
duração de uma vida. Por outro lado, a escuta das narrativas e o trabalho
cointerpretativo sobre os processos de formação exigem capacidades de
compreensão e de uso de referenciais de interpretação.
16
Segundo Josso (2004, p. 73), para que a pesquisa progrida, não basta que os
sujeitos discutam as suas opiniões momentâneas, como lhes é pedido que façam
numa entrevista. É ainda necessário que eles possam classificar as experiências (as
quais submetem os seus pontos de vista) e que sejam capazes de dar conta do seu
processo reflexivo sobre estas experiências. As narrativas, orais ou escritas, tentam
abarcar a globalidade da vida, tanto nos seus diversos aspectos como na sua
duração. Na maior parte das vezes, a história produzida pela narrativa limita-se a
uma abertura que visa fornecer material útil para um projeto específico.
Partindo inicialmente de uma pesquisa teórica, foram elaborados instrumentos
de coleta de dados, com a finalidade de identificar, como objetivo específico, as
concepções dos professores de Ensino Médio da rede pública estadual (Diretoria de
Ensino Leste 5) sobre os temas “Interdisciplinaridade” e “Contextualização”.
A investigação buscou elementos para compreender, não somente como os
professores apropriaram-se dos conceitos de “Interdisciplinaridade” e
“Contextualização”, mas também de que forma esses conceitos fazem parte de sua
formação docente (e de sua história de vida) e de que maneira, na concepção dos
professores, a formação e a trajetória vivida aparecem articuladas com o
aperfeiçoamento de suas práticas educativas.
A entrevista narrativa foi o procedimento utilizado para a coleta de dados,
adequado à pesquisa na abordagem (auto) biográfica. Classificada como método de
pesquisa qualitativa, busca elementos de análise nas histórias e narração de
acontecimentos informados pelos entrevistados acerca do campo de estudo.
A utilização da entrevista narrativa teve como o objetivo a produção de
histórias, com a finalidade de entender a natureza fundamental do mundo social, ao
nível da experiência subjetiva, dentro do seu ambiente natural, sem a precisão e a
frieza dos dados estatísticos, que são pouco significativos neste contexto.
Nesse sentido, a entrevista narrativa é adequada para estudos que buscam a
compreensão do percurso (auto) formativo, por meio do método da história de vida.
A entrevista narrativa rompe com o modelo de entrevista pergunta-resposta e propõe
a entrevista não estruturada.
O estudo de narrativas conquistou uma nova importância nos últimos anos.
Este renovado interesse em um tópico antigo–interesses com narrativas e
narratividade têm suas origens na Poética de Aristóteles, está relacionada
com a crescente consciência do papel que o contar histórias desempenha
na conformação de fenômenos sociais. No despertar desta nova
17
consciência, as narrativas se tornaram um método de pesquisa muito
difundido nas Ciências Sociais. A discussão sobre narrativas vai, contudo,
muito além de seu emprego como método de investigação. A narrativa
como uma forma discursiva, narrativas como história, e narrativas como
histórias de vida e histórias societais, foram abordadas por teóricos culturais
e literários, lingüistas, filósofos da história, psicólogos e antropólogos
(JOVCHELOVITCH & BAUER, 2002, p. 90).
Para tanto, a construção das questões que estruturaram a entrevista narrativa
realizada tomou como referência as seguintes fases, apoiadas na perspectiva de
Jovchelovitch e Bauer (Fases de desenvolvimento da entrevista narrativa):
Preparação - exploração do campo, Iniciação- formulação do tópico inicial para
narração; Narração Central - narração livre por parte dos sujeitos envolvidos; Fase
de perguntas - questões desencadeadoras pelo entrevistador; Fala conclusiva -
questões de elucidação pelo entrevistador.
O enfoque de análise, a partir dos dados coletados, pautado no referencial
mitohermenêutico, na perspectiva de Ferreira-Santos (2004, p. 05), configurou-se
como exercício de interpretação simbólica a partir de narrativas míticas que
possibilitariam construir sentidos para a existência humana e para o desvelamento
dos olhares dos professores de Ensino Médio sobre os conceitos de
“Interdisciplinaridade” e “Contextualização”.
Neste estudo, a perspectiva mitohermenêutica teve a finalidade de
compreender os sentidos e significados que são atribuídos pelos sujeitos-
educadores a respeito de seu processo (auto) formativo, se de autoria ou de
submissão, através do mito pessoal que fosse capaz de articular a ancestralidade
com o vivido, na contemporaneidade, e em busca de sentidos da estética para a
existência humana.
Por meio das narrativas coletadas, foram interpretados os olhares dos
professores do Ensino Médio frente ao desafio contemporâneo do desenvolvimento
de práticas interdisciplinares e contextualizadas, verificando os mitos pessoais que
emergiram no discurso dos sujeitos escolhidos, analisando-os em sua dimensão
(auto) biográfica e estética. Com base na perspectiva de Ferreira-Santos (2008), o
propósito reside na percepção da narrativa mítica presente nas narrativas dos
professores entrevistados.
O enfoque da análise dos dados teve, também, a conotação antropológica-
educacional, na perspectiva de Freire. Tal determinação de enfoque se aplica ao
18
tema deste estudo, como objeto material, na compreensão dos olhares dos
professores da rede estadual sobre “Contextualização” e “Interdisciplinaridade” por
meio da entrevista narrativa.
Na busca de mitos pessoais que emergiram das narrativas coletadas, partiu-se
da perspeciva de lidar com os professores em sua inteireza. Tal opção justifica-se
pelo fato de que mitos pessoais são recorrências da própria pessoa e que, ao
decidir por trilhar o caminho da análise mitohermenêutica, a eleição de um único
mito geral e comum a todos os participantes não poderia ser considerada, sob risco
de perda das características singulares e pessoais dos participantes.
A análise dos dados objetivou o resgate do percurso (auto) formativo dos
educadores, a consciência das influências de seus formadores em suas práticas e a
percepção de momentos sensíveis na trajetória pessoal e profissional. Assim,
aponta-se que, no espaço de formação continuada dos sujeitos, a abertura para a
narrativa (auto) biográfica aparece como um caminho que poderá levar à mudança
de quadros de referência e proporcionar melhoria à formação e à prática do
educador.
Em se tratando do aspecto educacional, o estudo realizado possui relevância
considerável, haja vista que muito se proclama sobre a necessidade de se acentuar,
na formação continuada de professores e na prática pedagógica, o rompimento dos
paradigmas sobre um modelo de currículo com um elenco prescritivo e conteudista
de disciplinas. A organização das disciplinas em áreas tem como base a reunião de
conhecimentos que compartilham objetos de estudo e, portanto, mais facilmente, se
comunicam, criando condições para que a prática escolar se desenvolva numa
perspectiva de interdisciplinaridade e de uma aprendizagem significativa, para a
superação de uma compreensão fragmentada da realidade.
Do ponto de vista pessoal, a presente pesquisa vem ao encontro dos desafios
vivenciados na trajetória profissional, como Supervisora de Ensino da Rede Pública
Estadual de São Paulo. Por meio da retomada da história de vida, surge o
nascedouro do problema de pesquisa e o seu significado, perante anseios pessoais.
Quanto ao alcance social, ressalta-se a demanda da sociedade por uma
escola pública que atenda às suas finalidades educacionais. O debate da nova
formulação curricular do Ensino Médio, atrelado à formação continuada dos
professores e à rediscussão das propostas pedagógicas, apresenta-se como
caminho para um ensino de maior qualidade e de uma escola muito mais equitativa.
19
A presente pesquisa ancora-se na análise de documentos legais referentes ao
Ensino Médio, identificando as formas de apresentação dos conceitos de
“Interdisciplinaridade” e de “Contextualização”, objetivando analisar o relato oral de
professores sobre seu olhar acerca destes conceitos, por meio das narrativas
coletadas. Estabelecem-se relações entre formação, aprendizagem e histórias de
vida, à luz de interpretações mitohermenêuticas. Os conceitos de
“Interdisciplinaridade” e “Contextualização”, presentes nas narrativas coletadas,
aparecem relacionados à mitologia, bem como à formação, aprendizagens e
histórias de vida, com o objetivo de contribuir para estudos na área da educação,
voltados a repensar a formação continuada de professores.
No capítulo 1, destacam-se as vivências pessoais da pesquisadora, as quais
desencadearam a formulação de uma pesquisa que buscou investigar o problema
identificado.
No capítulo 2, apresenta-se a revisão bibliográfica sobre o tema “Formação
Continuada” e sobre o Programa “Ensino Médio em Rede”, prática de formação
continuada destinada aos professores de Ensino Médio da rede pública do Estado
de São Paulo. São oferecidos, também, os referenciais teóricos e legais dos termos
“Interdisciplinaridade” e “Contextualização”.
No capítulo 3, descreve-se o cenário da pesquisa e os sujeitos envolvidos,
bem como o procedimento de coleta de dados. Os sujeitos envolvidos são
apresentados, neste mesmo capítulo, com descrição sucinta de suas principais
características (formação inicial, tempo de magistério, cursos realizados), bem como
a síntese das falas obtidas por meio das entrevistas realizadas, de acordo com o
roteiro de entrevista anexo. Foram analisados os relatos orais dos professores,
obtidos por meio da realização de entrevistas narrativas. O suporte teórico ancorou-
se na perspectiva da mitohermenêutica, relacionando as falas dos professores à
pesquisa desenvolvida sobre os diferentes olhares, em busca do sentido de uma
formação estética de professores.
20
1 O MITO, A MEMÓRIA E O CONHECIMENTO
Irmã de Cronos e de Okeanós, Mnemósina é a deusa titã, protetora dos
poetas. Eleita senhora do tempo, a memória constituía, entre o povo grego, a chave
de todo conhecimento e fonte da humanização. Possuído por Mnemósina, o poeta
descrevia a sociedade grega, recitando a genealogia dos deuses e dos homens.
Zeus e Mnemósina foram pais das nove Musas.
MNEMÓSINA, em grego MnηoσÚnη (Mnemosýne), prende-se ao verbo
μιμnÇsχein (mimnéskein) "lembrar-se de", donde Mnemósina é a
personificação da Memória. Amada por Zeus foi mãe das nove Musas
(BRANDÃO, 1986, p. 202).
De acordo com Brandão (1986, p. 203), após a derrota dos Titãs, os deuses
pediram a Zeus que criasse divindades capazes de cantar a grande vitória dos
Olímpicos. Então, Zeus partilhou o leito de Mnemósina durante nove noites
consecutivas e, no tempo devido, nasceram as nove Musas, cantoras divinas, cujos
coros e hinos alegram o coração de Zeus e de todos os Imortais.
A cada uma das nove filhas, foi destinado um ramo da Literatura, das Ciências
e das Artes: Calíope, deusa da poesia épica; Clio, musa da história; Euterpe, da
poesia lírica; Melpômene, da tragédia; Terpsícore, deusa do canto e da dança;
Érato, da poesia amorosa; Polímnia, musa da poesia sacra; Urânia, deusa da
astronomia; e por fim Tália, musa da comédia. Cada musa tinha como função
principal presidir o pensamento, sob todas as suas formas: sabedoria, eloqüência,
persuasão, história, matemática, astronomia.
O objeto investigado consistiu em relacionar vivências pessoais, exercício
contínuo de resgate de memórias, muitas vezes escondidas ou, até mesmo, já
esquecidas. É um exercício semelhante ao ato de garimpar anos vividos, ao ato de
encontrar pequenas peças originárias, até nos primórdios da vivência humana e uni-
las, de forma a atribuir sentido a um mosaico de experiências vividas, penetrando
numa região, na perspectiva de Ferreira-Santos (2001), "onde o sol nascente se
dissolve por inteiro na bruma infinita", em que um regime crepuscular de imagens
une a memória, o re-ligare e a esperança de um futuro na necessidade teanthrópica
da criação ; pois “o homem é, fundamentalmente, um esquecedor: daí a
necessidade das filhas de Mnemosyne para lembrá-lo: as musas”(ibidem, 2001).
21
O exercício de reflexão e escrita de minha história de vida possibilitou-me o
contato com a inteireza e beleza de meu viver, num diálogo com as musas, filhas de
Mnemosyne, que habitaram toda minha biografia e me fizeram lembrar o que foi, o
que é e, numa visão prospectiva, o que será essencial, num verdadeiro ensaio
estético.
[...] a noção de mito com a que trabalhamos é a de que se trata de uma
narrativa dinâmica de imagens e símbolos que articula o passado ancestral
ao presente vivido e abre possibilidades ao devir. Nesse sentido, mais
revela que compreende. Mais auxilia a compreensão do que explica [...]
(FERREIRA-SANTOS, 2008, p. 05).
A compreensão do mito, como narrativa da saga humana, articula o passado
ancestral com o presente, vislumbrando o futuro. Desse modo, a presença do mito,
como narrativa, encontra seu pressuposto na antropologia-filosófica: a compreensão
daquilo que não é possível explicar, mas é possível compreender os significados
que são atribuídos pelos sujeitos.
Para Cassirer (2005) o mito tem o mesmo estatuto epistemológico que as
Ciências, a religião, a arte – todas são linguagens simbólicas que o ser humano
dispõe para fazer avançar o conhecimento. Para evitar o questionamento sobre a
abordagem (auto) biográfica desta pesquisa, recomenda Comte: “Conhece a
História” (In: CASSIRER, 2005, p.115). E Cassirer (2005) acrescenta “Conhece-te a
ti mesmo para conhecer a história. O sentido precede o problema de
desenvolvimento histórico. Por outro lado, todas as obras humanas surgem em
condições históricas e sociais determinadas” (ibidem, 2005).
Ferreira-Santos (2008) cita Joseph Campbell, que esclarece que o mito se
estrutura em três fases, identificadas como “a saga do herói”: a partida (um fato
extraordinário provoca a partida), a realização (a conquista que pode ser de ordem
física ou espiritual) e o retorno (voltar à aldeia com o prêmio da conquista). O autor,
ao resgatar a história dos sujeitos que deram estatuto epistemológico ao mito,
relaciona à concepção de educação que envolve o “rito de iniciação”, no
desenvolvimento humano, e se articula aos processos simbólicos mais profundos da
arqueo-memória humana e de nossa paleo-psiquê, traduzidos na existência humana
e presentes, nas narrativas míticas.
A perspectiva da mitohermenêutica da História de Vida corresponde ao
movimento de penetrar nos subterrâneos da memória, não para explicar como essa
22
memória ainda atua no presente, mas com o intuito de compreender que os sentidos
e significados estão enraizados na memória de ser humano. O mito é uma narrativa
de modelo de compreensão do ser humano. Essa abordagem é importante para
mergulharmos em outras dimensões da formação, aprendizagem e do ser sujeito.
A amarração com o percurso (auto) formativo consiste em trazer à tona o rito
de iniciação que foi sucumbido na cultura ocidental moderna e provocou o
distanciamento do projeto de vida dos sujeitos e do conhecimento. O conhecimento
científico torna-se hegemônico e transforma o conteúdo das histórias de vida dos
sujeitos em senso comum, ignorando suas trajetórias, seus aprendizados, sua visão
do mundo, da vida, sua sensibilidade.
1.1 Vivências pessoais e a pesquisa
A escolha pelo Programa “Ensino Médio em Rede”, como referência de análise
neste trabalho acadêmico, está atrelada à minha história de vida. O início do curso,
em que participei como Supervisora de Ensino, coincidiu também com o início de
minha atuação nessa função.
O contato com o curso de Ensino Médio, em minha trajetória profissional,
ocorreu dois anos antes: quando assumi o cargo de Diretora de Escola, modificando
o rumo de minha vivência enquanto educadora, antes voltada à docência do Ensino
Fundamental I. Reconheço que, ao assumir a gestão de uma Unidade Escolar com
cerca de 1500 (mil e quinhentos) alunos, 25 (vinte e cinco) funcionários e uma
centena de professores, foi uma experiência única em minha vida. Hoje, identifico tal
desafio como um momento divisor de águas e encontro elementos para uma
reflexão fundamentada nos estudos de Josso (2004). Foi o período mais difícil que
enfrentei em minha carreira profissional, apesar de ser algo que queria muito
desenvolver. Acredito que, frente às inúmeras dificuldades que enfrentei, encontrei
forças e elementos para, dois anos depois, buscar a aprovação em um novo
Concurso Público, no cargo de Supervisor de Ensino.
A ampla delimitação de contextos e situações de vida, das mais diversas
atividades, de encontros que marcaram uma vida – as pessoas significativas
da família, os acontecimentos pessoais e sócio-históricos – começam a
desenhar os contornos da singularidade de um percurso de formação, e
começa a evidenciar aprendizagens; momentos-charneira e desafios que os
23
atravessavam; valores ou valorizações que orientaram escolhas, bem como
preocupações e temas recorrentes (JOSSO, 2004, p.64).
No período de atuação como Diretora de Escola, pude verificar que a maioria
dos professores de Ensino Médio encontrava dificuldades em seu trabalho,
apontadas por muitos como: despertar o interesse dos alunos, dominar a classe tida
como “indisciplinada”, estabelecer formas de trabalho coletivo com seus pares,
organizar situações de aprendizagens capazes de superar as dificuldades escolares
trazidas por seus alunos, desenvolver práticas interdisciplinares, superar a
organização disciplinar do currículo escolar e trabalhar com áreas do conhecimento,
entre outras.
O que me deixava mais intrigada era o fato de que grande parte da equipe
docente era constituída por professores efetivos, com uma considerável
“experiência” na função. Eram professores que participavam de cursos e orientações
técnicas oferecidas pela Diretoria de Ensino, nos moldes do proposto pela Secretaria
de Estado da Educação. O que acontecia então? Como, enquanto equipe gestora,
poderíamos organizar espaços para reflexão, por parte dos professores, de sua
própria prática, de seus saberes, dos conteúdos trabalhados nas ações de formação
continuada das quais participavam?
Os saberes da experiência são (...) aqueles que os professores produzem
no seu cotidiano docente, num processo permanente de reflexão sobre sua
prática, mediatizada pela de outrem – seus colegas de trabalho, os textos
produzidos por outros educadores (PIMENTA, 2002, p.20).
Tais questões, que me inquietavam como gestora escolar, passaram a ser,
parcialmente dirimidas na função de Supervisor de Ensino, quando tive a
oportunidade de participar do Programa “Ensino Médio em Rede”. Pude perceber
que o modelo de formação, preconizado pelo “Programa EMR”, estava pautado nas
premissas de que os professores são os sujeitos fundamentais no processo
educacional e de que a escola é um dos espaços mais adequados para que se
processe tal formação. Nesse sentido, a ênfase era de que nos Horários de
Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC‟s), realizados semanalmente, os professores,
sob a orientação dos Professores Coordenadores, pudessem entrar em contato com
referenciais teóricos do programa e pudessem discutir situações concretas do
contexto escolar onde atuavam. As atividades propostas enfatizavam a criação de
24
situações de discussão coletiva e registro das mesmas, enfatizando a necessidade
de que as reflexões individuais e coletivas estabelecessem relações com a prática
em sala de aula.
É no espaço concreto de cada escola, em torno dos problemas pedagógicos
ou educativos reais, que se desenvolve a verdadeira formação.
Universidades e especialistas externos são importantes no plano teórico e
metodológico. Mas todo esse conhecimento só terá eficácia se o professor
conseguir inseri-lo em sua dinâmica pessoal e articulá-lo com seu processo
de desenvolvimento [...] (NÓVOA, 2004 - Excerto presente no material
“Vivência Formativa - Tema 1 - Professor - Ensino Médio em Rede”, CENP,
2004, p. 20).
1. 2 Resgatando a história de vida do sujeito-pesquisador
Onde quer que eu vá levo em mim o meu passado, e um tanto quanto do
meu fim. Todos os instantes que vivi estão aqui, os que me lembro e os que
eu esqueci.
Arnaldo Antunes e Roberto de Carvalho
Em 2006, ao final do Programa EMR, senti que era hora de realizar um
aprofundamento teórico sobre as questões do curso. Interessei-me em realizar o
Programa de Mestrado em Educação da Universidade Cidade de São Paulo sendo
admitida no ano de 2007.
Ao cursar a disciplina “Interdisciplinaridade e Educação” os alunos foram
desafiados, pelas Professoras Célia Maria Hass e Margaréte May Berkenbrock
Rosito, a realizar a escrita de suas histórias de vida.
Confesso que, à primeira vista, tal proposta não me seduziu. O que teria para
escrever? Será que teria fatos significativos para narrar em minha trajetória pessoal
e profissional?
O exercício da escrita fez com que tais perguntas iniciais fossem logo
respondidas. Comecei a refletir sobre as dimensões da prática profissional que
exerci nas três funções desenvolvidas: o exercício da docência, como professora
dos anos iniciais do Ensino Fundamental, o desafio como gestora escolar na função
de Diretor de Escola e os anseios e expectativas como Supervisora de Ensino.
Escrever é um ato de extrema responsabilidade: é deixar uma marca, como
fincar um risco no tronco de uma árvore, marcar uma pedra ao longo de um
25
caminho, ou seja, algo que certamente ficará registrado em algum lugar e que
poderá ser revisitado para ser lembrado...
O que escrevi adveio das minhas lembranças, das minhas memórias. Porque
não tinha mais meus pais junto de mim, escrevi aquilo de que me lembrava, de que
recordava – alguns episódios, algum dia, me foram relatados, outros, eu guardei
comigo, até hoje.
Nasci em outubro de 1970 e sou a filha mais velha, tendo mais um irmão.
Perdi meu pai com seis anos de idade e minha mãe com vinte cinco.
Soube pela minha mãe que nossa família passou por grandes dificuldades,
quando meu pai teve que sofrer uma cirurgia muito séria: uma amputação na perna
esquerda, em virtude de um câncer no local. Não me lembro dessa fase, pois tinha
apenas três anos, mas recordo-me de que minha mãe contava que o levava sempre
ao hospital para fisioterapia. Nessa época morávamos numa vila, éramos vizinhos
de meus avôs maternos. Ai, eu brincava muito com meu primo, filho da irmã da
minha mãe. Na vila, tínhamos a oportunidade de andar de bicicleta, correr, pular
corda e jogar bola. Brincávamos arrancando folhinhas do jardim e imaginando fazer
remédios e poções mágicas.
Aos quatro anos, entrei na escola, no jardim da infância. Tenho boas
recordações desse espaço físico onde se encontrava a escola... Curiosamente, dois
anos depois de me efetivar como PEB I, na rede estadual, tomei a resolução de
remover-me para lá, de onde saí para ingressar no cargo de Diretor de Escola. Era
uma escola ampla, com um pátio arborizado. Quando estudava na pré-escola,
existiam grandes brinquedos de madeira, até mesmo um carrossel, onde
brincávamos todas as tardes. Lembro-me das atividades em sala de aula, da ênfase
nos exercícios preparatórios e de coordenação motora, no aprendizado das
primeiras vogais, e, principalmente, das lições de copiar com letra cursiva o meu
nome completo.
Na época em que eu estava cursando a pré-escola, nasceu meu irmão
Ricardo. Não me recordo dos detalhes deste fato. Tinha cinco anos e, em outubro,
completaria seis. Meu irmão nasceu em junho de 1976. Em julho do mesmo ano,
meu pai sofreu um acidente automobilístico, que resultou em sequelas graves. Em
dezembro, seria a minha formatura na pré-escola e, nessa época, ele estava
internado. Lembro-me de que, na festa, teria de usar um vestido azul e de que
minha avó passou uma noite inteira costurando o vestido que, por sinal, aparece nas
26
fotos que guardei como recordação. Meu pai não pode ir até a escola e, dias depois,
veio a falecer.
Considero este fato uma marca muito forte, em minha vida. Até hoje, me
questiono como seria, se tivesse convivido um tempo maior com meu pai. Qual o
curso que minha vida teria seguido? Quanto eu teria aprendido com ele? Lembro-
me, com clareza, das palavras de minha mãe contando sobre a partida de meu pai,
da mudança para a casa de minha avó, da forma inesperada com que a vida mudou
de direção. Aí, encontro o primeiro dado que fez com que eu me interessasse pelo
tema da interdisciplinaridade: a morte do meu pai fez com que fossem criadas linhas
fronteiriças, porém firmes, que separavam minha família (eu, minha mãe e meu
pequeno irmão) dos membros da família de meu pai. Não por culpa da minha mãe,
mas pelo próprio caminho imposto pela vida, onde a distância física prevaleceu
sobre o convívio: morávamos do outro lado da cidade, não tínhamos carro, as
distâncias eram enormes e as possibilidades de nos encontrarmos com os parentes
de meu pai eram ínfimas.
Furlanetto (2002, p. 165) aborda o conceito de fronteira, destacando que é
necessária a superação do simples conceito de linha divisória. A linha fronteiriça se
concretiza em diversas formas, muitas vezes, imperceptíveis ao olhar. Ao mesmo
tempo em que a fronteira promove a separação, possibilita a intersecção, a partir
das regiões fronteiriças que se estabelecem entre as duas regiões de ligação.
Aponta que Saiz (1998) entende que a fronteira constitui-se como um abrir-se para
fora que pode possibilitar a criação de novos espaços, e acredito que a realização
desta pesquisa de Mestrado, resgatando, profundamente, as minhas vivências,
enquadra-se na categoria de um novo espaço da minha própria vida, a ser
desvelado.
A morte de meu pai fez com que minha mãe desenvolvesse um
posicionamento de abertura para tudo e para todos, questionando a relatividade dos
fatos que a rodeavam. Era como uma grande esponja, capaz de absorver e captar
os sentimentos daqueles que a cercavam, de tomar para si os problemas dos outros,
de compartilhar as dores alheias, de transformar-se na grande amiga de toda a
família, a ponto de deixar de lado o que era importante para si, para fazer o bem ao
outro. Minha mãe tinha a capacidade de captar tudo o que acontecia conosco,
através de forte sensibilidade.
Na relação que estabeleci com a minha mãe, encontro uma das categorias
mais importantes para o desenvolvimento da interdisciplinaridade: a parceria.
27
Aprendi com ela estar atenta ao outro, desenvolver a sensibilidade para conviver
com o incerto, com o imprevisível e com o diferente, a respeitar as pessoas da forma
que são.
Todos tornam-se parceiros. Parceiros de quê? Da produção de um
conhecimento para uma escola melhor, produtora de homens mais felizes.
[...] Em síntese, numa sala de aula interdisciplinar há ritual de encontro – no
início, no meio, no fim (FAZENDA, 1991, p. 83).
Em 1977, depois da mudança para a casa de meus avôs, continuei estudando
na mesma escola. Na 1ª série, estudei com a professora Rita e, na 2ª, com a
professora Olívia. Posteriormente, tive a oportunidade de trabalhar com as duas.
Estudei nessa mesma escola até a 4ª série. Paralelamente, fazia um curso de
pintura em telas. Lembro-me que a Prof. Rita era uma excelente alfabetizadora,
extremamente organizada e centrada em sua atividade docente, dentro de um
modelo tradicional de ensino. Já Olívia era recém formada, trazia novas ideias,
novas formas de ensinar e fazia questão de manter com as crianças um vinculo
muito próximo. Hoje, sei que foi ela a professora que despertou em mim o
reconhecimento da importância de valorizar a afetividade junto aos alunos. Posso
afirmar que, na minha trajetória profissional, procurei manter um pouco das marcas
que as duas deixaram em mim (e que pude solidificar, ao me tornar uma colega de
profissão): o sentido da responsabilidade e a necessidade de manter, junto aos
alunos, um relacionamento de parceria. Curiosamente voltei, no transcorrer de
minha trajetória profissional, a encontrar-me com as duas, transformando-me de
aluna a parceira, na caminhada.
Pra ficar comigo corro, salto, me equilibro, entre minha neta e minha avó.
Fico firme, sigo adiante ante o perigo: vejo o que me aflige virar pó.
Arnaldo Antunes e Roberto de Carvalho
Neste exercício de resgatar minhas lembranças e compor a trajetória de
minha história de vida, concentro-me na figura da minha avó materna que, após
tantos desafios impostos pela vida, é uma figura ativa e aglutinadora da família, em
seus oitenta e sete anos de existência. Volto ao passado e reconheço a influência de
sua sabedoria em mim, que, hoje, represento a terceira geração da família. Minha
avó materna, filha de refugiados da Revolução Russa de 1917, sofreu muitas
privações em sua infância. Nascida no Rio Grande do Sul, era a filha mais velha das
28
irmãs mulheres e, com seis irmãos menores, auxiliava minha bisavó em todas as
tarefas domésticas. Não frequentou a escola por falta de oportunidade. Aprendeu a
ler e a escrever com seu avô materno. A escassez de oportunidades aliada, às suas
raízes culturais, fez com que ela desenvolvesse um espírito de abertura, voltado ao
relacionamento com as outras pessoas, ao aprendizado de ofícios e artes manuais,
de receitas e pratos culinários.
Lembro-me de que, desde muito pequena, contemplava minha avó dedicando-
se a elaborar receitas, em especial, balas de coco. Era a sua especialidade! Ficava
verdadeiramente encantada com a mistura de açúcar e leite de coco que, ao serem
colocados ao fogo, transformavam-se numa calda em ponto de fio, que era,
posteriormente, jogada na pedra de mármore da pia da cozinha. Eu olhava
fascinada e contava os minutos para que presenciasse o melhor do espetáculo: com
as mãos calejadas e resistentes ao calor, minha avó juntava aquela massa branca
disforme e quase endurecida e ia puxando-a devagar, por várias vezes, até que ela
se transformasse em cordões finos e cintilantes, que seriam cortados em pequenas
e deliciosas balinhas. Revisitando tal cena e revivendo a história de vida de minha
avó, descubro a semente dessa característica marcante que compõe o meu ser: o
olhar direcionado, a observação, como recurso de aprendizado.
Em 1981, iniciei a 5ª série, em outra escola onde, posteriormente, também vim
a trabalhar como professora estagiária. Lá, estudei até a 8ª série. Gostava muito das
aulas de Matemática, participava do coral da escola (nas aulas de Arte Musical) e
ficava encantada com as aulas de Educação Artística, principalmente, pela forma de
trabalho da professora Kazue e por sua postura enquanto educadora. Sempre gostei
de desenho e pintura. Sentia que naquele espaço poderia ter a oportunidade de me
expressar. Naquela época, não tinha facilidade para escrever: as redações eram
verdadeiras torturas, pois sempre partiam de um título que deveria ser desenvolvido.
Minha grande dúvida era: como sair do primeiro parágrafo e construir um texto com
o tenebroso “começo, meio e fim”? Hoje, entendo quais concepções sobre o uso da
língua eram valorizadas e como a metodologia de trabalho não era a mais
adequada. Independentemente desse fato, sempre gostei muito de ler, e isso
perdura até hoje.
Desde aquela época, já percebia como era importante o professor dominar o
conteúdo de sua disciplina e manter um relacionamento significativo com sua turma.
Sei que a escolha para desenvolver a minha profissão no campo da Educação
29
decorreu, em parte, dessas duas considerações que, enquanto aluna, eram
continuamente observadas.
No 2º grau, mudei novamente de escola. Minha mãe sempre desejou que eu
optasse por frequentar um curso técnico, na área de secretariado, pois, quando
jovem, havia estudado na Fundação Armando Álvares Penteado, escola tradicional
de São Paulo, que desenvolvia cursos na área administrativa. Estávamos no ano de
1985 e, contrariando suas intenções, decidi pela matrícula numa das escolas
públicas mais procuradas da região. Eu cursava a 1ª série, sendo que o primeiro ano
era desenvolvido, a partir de um currículo único, que, nos anos posteriores, era
aprofundado nas áreas de Humanas, Exatas ou Biológicas, conforme a opção do
aluno. A escola também oferecia a Habilitação Específica de 2º grau para o
Magistério na Pré-Escola. Ao concluir a 1ª série, fiquei dividida entre a área de
Exatas e o curso de Magistério, porém acabei escolhendo a segunda alternativa.
Tinha, como referência, uma prima mais velha que fazia o curso na mesma escola e
isso me incentivou.
Se durante o 1º grau tive poucas experiências diferenciadas, o mesmo não
aconteceu ao cursar o 2º grau. Encontro nesse fato o meu interesse em, hoje,
aprofundar meus estudos sobre o segmento do Ensino Médio.
A escola na qual frequentei o chamado 2º grau primava por atividades
diferenciadas e pela otimização na utilização dos espaços disponíveis. Possuía uma
biblioteca muito bem montada, com acervo de livros e jornais, onde uma funcionária
dava apoio aos alunos. Dispunha de laboratórios de Biologia e Física, sala de
Educação Física dotada de equipamentos destinados às aulas, sala de artes e
trabalhos diferenciados, da hemeroteca, construída nas aulas de História, a partir
dos fatos desencadeados pelo movimento, “Diretas Já”, que eclodia naquela época.
Anualmente, era realizada a “Semana Cultural”, com palestras sobre temas
específicos, dependendo da temática escolhida para aquele período letivo. Éramos
incentivados a participar de grupos de teatro, visitas culturais a museus, cinemas e
teatros, festivais de dança e oficinas sobre leitura e escrita, vivenciando experiências
estéticas capazes de provocar a “admiração, a [...] abertura para o desconhecido e o
transcendente, paradoxalmente revelador e determinador do destino pessoal”
(PERISSÉ, 2009, p. 48). Os professores, em sua maioria, demonstravam total
engajamento com essa proposta, porém o índice de retenção na 1ª série do 1º grau
era extremamente elevado: a escola selecionava alunos, por contínuas avaliações
do conteúdo ministrado, através de “Provões” semestrais. A direção da escola era,
30
ao mesmo tempo, temida e extremamente respeitada: Dona Áurea (a Diretora) e
Dona Vilma (sua assistente de direção) administravam a escola com pulso firme e de
forma impecável, desde a limpeza e organização do espaço escolar até o
atendimento aos pais em reuniões específicas.
Ensinamento e sentimento. [...] Há sentimento numa sala de aula arejada,
em móveis minimamente confortáveis, numa escola cuidada (num bairro
cuidado, numa cidade cuidada, num país cuidado.), há sentimento em cada
aspecto do espaço educacional” (PERISSÉ, 2009, p. 55).
Optar pelo Magistério foi uma decisão que se foi fortalecendo ao longo do
curso. É claro que algumas disciplinas tendiam a desenvolver atividades voltadas à
prática, mas com extremo viés tecnicista. Elaborávamos “Pastas de Datas
Comemorativas”, aprendíamos a melhor forma de elaborar cartazes e como
confeccionar materiais didáticos que serviriam de apoio às aulas (como a construção
de um “Cartaz de Pregas” que, confesso, nunca utilizei.
Em contrapartida, recordo-me das aulas de Didática, desenvolvidas pela Profª.
Lídia (onde debatíamos os casos observados nas situações de estágio), das aulas
de Literatura Infantil com o Prof. Antonio (que muito contribuíram, na minha prática
pedagógica, tendo em vista a minha adoração pelo trabalho com textos de gêneros
diversos), da Profª. Anita, de Língua Portuguesa (a quem devo o desenvolvimento
da capacidade de escrita).
Cursei toda a minha vida escolar na escola pública, no 1º e 2º Graus, sob a
vigência da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 5692/71. Mais tarde,
ao final do 2º grau, prestei vestibular e fui admitida na USP, onde fiz o curso de
Pedagogia, sendo que o primeiro ano, em 1988, foi concomitante com o último do
curso de Magistério: recordo-me, até hoje, da alegria que senti no dia em que soube
do resultado.
Lembro-me da aula inaugural, ministrada pelo Prof. Paulo Freire, organizada
orgulhosamente pelo Centro Acadêmico da Faculdade de Educação.
A Universidade possibilitou o contato com grandes mestres e hoje avalio como
a questão da maturidade tem um peso muito significativo. Éramos extremamente
jovens, e, como alunos, nossas experiências anteriores pouco nos remetiam ao
exercício da fala, explorando muito mais o da escuta. Vivíamos também uma época
de transição, onde o próprio currículo da Pedagogia, na USP, estava sendo
31
redefinido, almejando uma formação mais global, ministrada em quatro anos letivos.
Dessa forma, a FEUSP estruturava algumas disciplinas, trazendo profissionais de
outras faculdades, como no caso das disciplinas de Sociologia e de Economia da
Educação, o que, a meu ver, não surtia bons resultados, na medida em que nos
faltava o conhecimento prévio de assuntos que eram tratados com grande
profundidade.
Em contrapartida, tivemos a oportunidade de aprofundar o estudo na área de
temas educacionais e de entrar em contato com a leitura de textos de autores
consagrados. Parcerias teóricas eram estabelecidas nesse encontro vivo com
teóricos que hoje norteiam minhas práticas profissionais, já que na Universidade tive
o privilégio de ser aluna de grandes mestres. Sinto por ter tido a necessidade de
trabalhar, ao mesmo tempo em que estudava, e de residir distante da Universidade,
pois não pude participar de projetos mais amplos desenvolvidos por professores do
curso (como o caso do trabalho voltado à alfabetização dos funcionários da USP,
desenvolvido pela Profª. Stela Piconez). Trago marcas muito profundas, as quais
nasceram no curso de magistério e foram fortalecidas na Pedagogia: a luta de uma
educação de qualidade para todos, a busca de uma real aprendizagem, o respeito
pelo educando, a importância da relação professor-aluno, a necessidade de
profissionalização docente.
Em 1989, ao final do curso de magistério, comecei a atuar como estagiária na
escola pública onde havia estudado da 5ª a 8ª série: o trabalho consistia em dar
suporte aos professores nas tarefas diárias, bem como em substituí-los em suas
faltas. Aprendi muito com essa fase: deparava-me com a possibilidade de ministrar
aulas na ausência de professores titulares e aprendia muito nos momentos em que
auxiliava professores junto aos alunos com dificuldades de aprendizagem. O
encontro com a Literatura Infantil foi uma marca presente na minha atuação como
professora: em todas as oportunidades, procurava despertar junto aos alunos o
gosto pela leitura.
Em 1991, concluí o curso universitário e em 1992 ingressei como Professora
Efetiva na Rede Estadual de São Paulo. O concurso de provas e títulos ocorreu em
nível de Delegacia de Ensino e, dessa forma, continuei atuando na Região Leste,
onde residia. Nesse mesmo ano, fui contratada por uma escola tradicional de São
Paulo, localizada no bairro da Liberdade, para atuar como professora em período
diverso.
32
Ressalto que ter a minha própria classe era algo muito significativo: sabia que
poderia desenvolver o meu trabalho por um período específico, sem enfrentar os
contratempos pelos quais passei quando da época em que atuava como professora
substituta.
Semelhante à época onde era estagiária, construí relações de trabalho com
colegas que me auxiliaram na construção de meu “eu-educador”. Acredito que as
parcerias estabelecidas com colegas que atuavam na mesma série foram muito
significativas, na medida em que trocávamos experiências, partilhávamos
dificuldades, buscávamos novos caminhos. Sinto que o professor de classes comuns
tem, em suas mãos, maiores possibilidades de construir relações muito significativas
com os alunos, visto que permanece um tempo maior com as crianças, o que lhe
possibilita estreitar laços. Eis aí a mão do educador, que objetiva formar o aluno,
com um olhar dotado de sensibilidade.
Em 1994, minha mãe ficou muito doente, vitimada à semelhança de meu pai,
por um câncer muito severo, e, no ano seguinte, veio a falecer. Foi uma perda muito
sofrida para mim, pois a tinha não apenas como mãe, mas como uma verdadeira
amiga. Sofri muito e sofro ainda hoje. Saudades permanecem e marcam todos os
momentos de minha vida. Essa ausência fez com que eu me aproximasse e
vivenciasse o mesmo processo ao qual minha mãe se submeteu, quando passamos
pela morte de meu pai: aprendi a olhar a vida de outra forma, a dar um maior valor
às conquistas, a perceber os problemas do outro, a ser justa e lutar em prol de que
fossem minimizadas as injustiças e reconhecidas as diferenças...
Observar, perceber, sentir, olhar: encontro aqui muito do que marcará este
trabalho que tenho a oportunidade de desenvolver no curso de Mestrado em
Educação, movido por uma (auto) educação estética com diversas portas e janelas.
Dentre elas, a beleza, descoberta na tecedura do retalho, no contato com minha
orientadora, na análise documental realizada que deu amparo à apreciação das
narrativas sensíveis ouvidas, quando da entrevista com os professores da escola
escolhida...
Em 1996, me casei e, em 1998, nasceu meu filho. Nessa época, eu ainda
atuava como professora nas esferas pública e privada. Novas experiências que
enriqueceram minha vida até hoje: a relação matrimonial do dia-a-dia, os fatos novos
ligados à maternidade, convites a novos desafios.
Sinto que modifiquei muito o meu olhar, a partir de todos esses fatos que
aconteceram, com muita rapidez, na minha vida: foi um momento de repensar
33
valores e de me adaptar a mudanças. Percebo que minha visão, como docente, foi
refinada, na medida em que passei a contemplar os alunos de uma forma diferente:
percebia com mais facilidade os sentimentos e as emoções que tomavam conta dos
alunos. Acredito que aliei a experiência pessoal vivida às construções do meu fazer
docente, que iam se aprimorando e se fortalecendo com o passar do tempo, sempre
carregado de forte carga de afetividade.
Em 2002, fui aprovada no concurso público da rede estadual para o cargo de
Diretor de Escola, ingressando também numa escola do bairro. Deixei de ministrar
aulas na rede particular, desligando-me da sala de aula, pois entendia que uma nova
oportunidade se desvelava. Nessa época, concluía um curso de especialização
sobre a atuação docente, da pré-escola e 1ª a 4ª séries. Encontrei muitas
dificuldades para atuar no cargo de Diretor, em virtude da complexidade da função,
das exigências colocadas sobre a figura do gestor escolar, da diversidade de
atendimento (5ª a 8ª série e Ensino Médio, público com o qual antes não havia
atuado) e da falta de experiência na gestão escolar, principalmente na administração
dos conflitos.
Considero que esse foi o maior dos desafios, em minha vida profissional,
apesar de todas as dificuldades, compartilhei grandes aprendizados com minha
equipe gestora, com a qual, até hoje, estou unida por profundos laços de amizade.
Essa marca reforça, ainda mais, minha escolha pelo tema da interdisciplinaridade,
devido às atitudes que desenvolvi como gestora e devido à construção de parcerias,
tão significativas, com minha equipe de trabalho.
E por que aprofundar-me no Ensino Médio? Pelas dificuldades que observei,
como gestora escolar, no trabalho dos professores junto às turmas de Ensino Médio,
pela ausência de experiências voltadas ao trabalho interdisciplinar ocorridas no
interior da escola, pelos equívocos observados no trato com alunos, (principalmente
quanto às situações de indisciplina, que revelavam dificuldades dos professores em
se reconhecerem como sujeitos e em se sensibilizarem com seus alunos,
estabelecendo relações de parceria para a construção de rotinas de trabalho).
Em 2003, fui novamente aprovada em concurso público da rede estadual, para
o cargo de Supervisor de Ensino, no qual atuo. Ingressei na mesma Diretoria de
Ensino onde atuava como Diretora, o que foi muito importante, na medida em que
me ancorei na experiência de colegas que, anteriormente, tinham me acompanhado
e orientado durante a fase de gestora escolar.
34
A nova função contribuiu para ampliar meu olhar sobre o sistema educacional,
conhecendo de forma mais profunda a legislação educacional e sua aplicabilidade.
Estabeleci, dessa forma, uma significativa parceria junto à lei, que norteia meu fazer
enquanto Supervisora de Ensino. Sinto que o estudo da legislação educacional é
fator decisivo no desempenho desta função de supervisão, visto que, na lei,
encontro o subsídio necessário para auxiliar as rotinas das equipes que compõem o
meu setor de trabalho.
Ao participar de muitos momentos de formação, atuando como mediadora e
tutora de cursos de formação de gestores educacionais e de professores da rede,
presenciais e on-line, estabeleci contatos mais estreitos com a temática da formação
de professores.
Lamento, extremamente, em toda essa trajetória, não ter tido a oportunidade
de me aproximar antes e de forma tão compromissada com a esfera universitária.
Não que durante todo esse tempo tenha abandonado o estudo, sempre procurei
participar de encontros, de cursos de aprofundamento, de palestras e de discussões
que versavam sobre o tema educacional. Hoje, percebo o quanto é importante
estarmos continuamente aprendendo e questionando nossas próprias práticas
profissionais, pois é, dessa forma, que nos construímos enquanto sujeitos de nossa
própria existência.
1.3 Sistematizando a história de vida: a tecedura da Colcha de Retalhos
No percurso trilhado, ao frequentar as disciplinas do Programa de Mestrado em
Educação da Universidade Cidade de São Paulo, pude vivenciar situações
transformadoras, no contato com a minha história de vida e a de meus colegas, por
meio de um processo de descobertas e encontros.
A atividade de escrita da própria história foi aprofundada com a construção da
linha do tempo, sugerida pela Profª. Ecleide Furlanetto na disciplina “Formação de
professores: concepções e práticas”.
A partir do referencial de Josso (2004, p. 64), foram demarcados, numa linha
contínua, os momentos-charneira, ou seja, os acontecimentos que representavam
passagens, separavam, dividiam e articulavam as etapas da vida, como divisores de
águas.
35
Figura 1 - “LINHA DO TEMPO” produzida pela pesquisadora em atividade desenvolvida junto à disciplina “Formação de professores: concepções e práticas” (UNICID/2007).
A produção da narrativa escrita tinha sido um exercício solitário, seguido da
socialização oral junto aos colegas de classe. Era agora o momento de sintetizar, de
reunir todo esse conhecimento revelado pelo processo de caminhar para si, “na
tomada de consciência das situações, dos acontecimentos, dos encontros que
colocaram em questão ou fizeram evoluir nossos referenciais, da crise
epistemológica que eles provocaram, assim como os reajustamentos que tiveram de
ser feitos” (JOSSO, 2004, p. 77)
Nesse trabalho de rememoração, relembrando o escrito e retomando
lembranças registradas no texto produzido, emergiram, de forma visível, os eixos
“PERDA” E “BUSCA”. A cronologia imposta pela linha do tempo desvelou o que
antes não conseguia enxergar na narrativa escrita: o fato de ter vivenciado perdas
marcantes, doloridas, sufocantes, mas que impulsionavam à busca para sua
superação. Era como se o antes não havia terminado, enquanto que o novo ainda
não havia começado: no itinerário da vida, períodos dolorosos eram seguidos por
impulsos, à procura de momentos felizes e de realização, numa dialética entre o
conforto e a consternação.
Foi oferecida, também, a disciplina “Ética, Estética e Educação”, orientada pela
Dra. Margaréte May Berkenbrock Rosito. Como atividade de conclusão da disciplina,
36
fomos desafiados na produção da “Colcha de Retalhos”, tarefa que demandou, por
todo o semestre, o exercício de reflexão tomando por base dois procedimentos: o
resgate de memória e a história de vida em formação. Foi utilizado, como referência,
um quadro onde identificamos certos espaços, tais como: a vida familiar, a escolar, a
profissional, as relações interpessoais, a leitura de livros, os filmes assistidos e, até
mesmo, os deslocamentos geográficos. O Resgate de Memórias, com foco no
Ensino Superior, buscou identificar três cenas marcantes, enfatizando a relação com
o conhecimento, com o professor e consigo mesmo, em situações de autoria ou
submissão. De forma semelhante à da construção da linha do tempo, localizamos os
momentos “divisores de água” e a reflexão sobre a escrita, cuja forma usual foi
transformada em imagens, metáforas e símbolos da trajetória dos alunos, contada
em sala de aula, a partir de um retalho de tecido. (BERKENBROCK-ROSITO, 2008,
p. 87).
A atividade “colcha de retalhos” surgiu do filme Colcha de Retalhos [...].
Constitui-se em prática interdisciplinar e transdisciplinar, uma proposta de
formação pela pesquisa do si mesmo, utilizando a metodologia da pergunta,
um processo maiêutico, na visão da complexidade de Morin, Capra,
Maturana, Dussel e Jung, na interdisciplinaridade de Fazenda, tendo como
pilares os conceitos de atitude, parceria, abertura, auto-conhecimento e
pesquisa, de Freire: os de participação, autonomia e descentralização, de
Pineau, Josso e Nóvoa, e a metodologia da história de vida, para revisitar as
matrizes pedagógicas, de Furlanetto (BERKENBROCK-ROSITO, 2007, p.
295-296).
A partir da imagem que emergiu dessa produção (duas mãos unidas, onde
cada um dos dedos simboliza os momentos divisores de água que marcaram minha
história de vida), relaciono tal figura com momentos marcantes que vivi na esfera
pessoal. Destaco o aprendizado que obtive com minha avó e suas balas produzidas
com empenho, esforço e paciência. Enfatizo, ainda, a esperança em depositar
minhas aflições e expectativas nas mãos habilidosas de cirurgiões capazes de
intervir na doença que afligira meus pais. Transpondo para a esfera profissional,
essas mesmas mãos interligam-se à função que assumi, no cargo de Supervisor de
Ensino, caracterizadas pela intencionalidade de agir e operar no sistema
educacional, com vistas a atingir uma educação para todos, permeada pela ética e
pela sensibilidade.
37
Figura 2 - Fonte: Foto by Eliana Costa da Cruz de Negreiros
O olhar pintado no retalho representa o mergulho, enquanto pesquisadora, em
minha própria existência, nas experiências que vivi, nas vivências que construí, que
me ancoram e contraditoriamente, me impulsionam a refletir sobre minha
concepções, construídas por toda vida, aprofundadas, desconstruídas e
questionadas no processo de realização deste trabalho. Pintura que na infância
surge como técnica; olho, que por toda minha existência materializa-se por meio da
atitude de observação.
1.4 Minha história de vida: o olho e a mão, uma construção de sensibilidade
Não vês que o olho abraça a beleza do mundo inteiro? [...] É a janela do
corpo humano, por onde a alma especula e frui a beleza do mundo,
aceitando a prisão do corpo que sem esse poder seria em tormento. [...]
Quem acreditaria que um espaço tão reduzido seria capaz de absorver as
imagens do universo?
Leonardo da Vinci
Após a exposição dos resultados obtidos por meio das entrevistas narrativas
realizadas, é imperativo retomar minha história de vida presentificada na imagem
38
trazida pelo retalho tecido, durante a realização do curso de Mestrado em Educação,
na atividade “Colcha de Retalhos”.
Recupero o feitio da peça na qual tecido, linhas e tintas foram utilizados para
compor a figura, num exercício sensível de fruição estética do meu interior.
O olhar pintado no retalho pode ser, hermeneuticamente, interpretado como
meu mergulho, enquanto pesquisadora, em minha própria existência, nas
experiências que vivi, nas vivências que construí, as quais me ancoram e
contraditoriamente me impulsionam a refletir sobre minha concepções, construídas
por toda vida, aprofundadas, desconstruídas e questionadas, no processo de
realização deste trabalho. Pintura que, na infância, surge como técnica; olho que,
por toda minha existência, materializa-se por meio da atitude de observação.
As mãos tecidas no retalho advêm da reflexão realizada, a partir da construção
da linha do tempo. Cada um dos dedos simboliza um período de sete anos,
representados, dessa forma, na mão direita pela contagem cronológica do período
vivenciado, até o ingresso no Programa de Mestrado em Educação da Universidade
Cidade de São Paulo. Os fatos marcantes são simbolizados por marcas costuradas
aos dedos das mãos, com cores diferenciais, expressando momentos de alegria /
expectativa / intencionalidade (azuis – ingresso no curso de Magistério; efetivação
como professora na Rede Estadual de Ensino; nascimento do meu filho; ingresso
como Supervisora de Ensino), tristeza/refúgio (vermelhos – morte do meu pai, morte
da minha mãe, exercício no cargo de Diretor de Escola) e passagem (laranjas e
azuis - ingresso no Programa de Mestrado em Educação da UNICID e passagem
para outra fase – a mão esquerda). As mãos são presas pelos pulsos, com uma
costura firme que as une entre si e ao tecido. Hillman (1998, p. 129) explicita que
punho e dedos têm, respectivamente, o significado simbólico de força de vontade e
fantasia.
Às mãos pertencem duas funções espirituais distintas: criativa e autoritária,
a vara de condão e o cassetete [...]. Lembremos de que nossos dedos nos
permitem voar. Ate filogeneticamente nossas mãos são comparáveis às
asas dos pássaros. Darwin expressa a possibilidade ascensional das mãos
em fantasias literárias; Darwin considerava a verticalidade da raça humana
um resultado de suas mãos. Nós nos elevamos do chão bestial com nossas
mãos. Nelas repousa nossa liberdade; são nossas asas [...]. Nossas mãos
estão expostas a todos os perigos da vida diária. Elas são o nosso primeiro
contato com o concreto, são como nos defendemos, como nos
39
expressamos, aquilo que damos uns aos outros. Nelas está a nossa
sensibilidade. (HILLMAN, 1926, p. 125-133)
As expressões das mãos e do olho, registradas no retalho, construído a partir
da reflexão teórica de Josso (2004), retomam o exercício de minha profissão,
enquanto Supervisora de Ensino, dentro das atribuições inerentes ao cargo, em sua
função precipuamente pedagógica. Qual a contribuição que posso fornecer às
escolas que supervisiono? De que forma posso contribuir com a aprendizagem dos
alunos?
Vivemos num mundo multissemiótico, um mundo de cores, sons, imagens e
designs. Tecnologias da informação e da comunicação trazem formas diferenciadas
de linguagem, através de diferentes veículos culturais: cinema, teatro, museus,
obras de arte, poemas, cordel, histórias contadas através das gerações, permitindo
experiências estéticas diferenciadas. A arte, expressão da cultura, aparece como
instrumento de humanização da civilização tecnológica, através do viés da
sensibilidade, isto é, como instrumento de modificação do sujeito por meio de
processos estéticos. A escola, ensinando a usar e compreender diferentes
linguagens que circulam no mundo atual, cumpre sua função no processo de
humanização do sujeito. O contato com valores estéticos é a possibilidade de
vislumbrarmos projetos de vida humanizadores:
Acreditamos que educar o olho para enxergar as flores e o céu, assim como
educar a mão para cultivá-los (céu, flores e amigos) seja a divisa mais
importante no mundo da Cultura, no seu sentido mais agrário: rasgar o solo
árido, revolver a terra, plantar a semente, irrigar com um pouco de poesia e
partir para outros campos, pois o educador que aspira ser uma sombra do
didáskalos (o mestre autêntico de que nos fala o filósofo Georges Gusdorf)
não espera a pequena planta crescer. Terminado o plantio, segue para
outros campos, pois o trabalho é imenso e sementes existem várias
(FERREIRA-SANTOS, 2001).
A categoria que emergiu como articuladora deste trabalho, da elaboração do
projeto de pesquisa até os procedimentos de análise documental e coleta de dados,
foi o olhar.
Olhar é o verbo que designa a função atribuída ao olho, órgão da visão,
derivando do latim oculus. Também o seu objeto, o óculo (olho) é a janela redonda
que deixa a luminosidade passar.
40
Dentre os cinco sentidos, destaca-se a relevância da visão para a percepção
de mundo: sua hegemonia chega a arrefecer os demais sentidos. Embora possamos
considerar o corpo como um todo perceptivo, a visão é um dos sentidos que revela a
aptidão para o discernimento, buscando diferenças, resgatando memórias,
estabelecendo analogias, produzindo conhecimentos. Os olhos e o cérebro mantêm
relação intrínseca: o que os olhos vêem é transmitido ao cérebro, capaz de ler o
mundo de forma complexa.
Pesquisas realizadas no campo da educação, relativas ao processo de
alfabetização, registram que, ao ler, nossos olhos não deslizam linearmente sobre
um texto impresso: eles dão saltos, em uma velocidade de cerca de 200 graus por
segundo. Nesses saltos, ocorre uma espécie de adivinhação, uma conexão com as
referências que temos, uma vez que os olhos não estão de fato registrando tudo:
Portanto, que os olhos vêem depende muito do conhecimento que temos do
assunto. Quanto mais conhecimento se tem sobre o assunto mais rápido
pode-se ler [...] (OLIVEIRA, 2008, p. 96)
Buscando nas raízes da simbologia, encontramos diversos significados
atribuídos ao olho, órgão destinado à visão.
Para Bruce-Mitford (2001) o olho simboliza o sol, o “olho que tudo vê” de Deus,
a sentinela eterna, assim como o poder do mal / santuários budistas: olhos
representam a sabedoria e a onisciência.
No Antigo Egito, encontramos a figura do olho lunar - deus do céu Hórus, com
cabeça de falcão (filho de Ísis e Osíris), sendo que o olho direito representa o sol e o
olho esquerdo, a lua, o poder da luz.
Também a pintura islâmica do séc. XV, denominada olho da sabedoria, é uma
mandala, em forma de amêndoa, simbolizando o portal da alma, da verdade e da
sabedoria profundas.
O olho, como “janela da alma”, é o símbolo da consciência e percepção
individual do mundo. Deixando a luminosidade passar, a janela simboliza a luz da
verdade que entra na alma.
Fazenda (2002, p. 225) nos traz a metáfora do olhar. Como explicitar a questão
do olhar? Podemos, ao olhar numa única direção, promover uma interação entre
sujeito/objeto, imbuída de intencionalidade, em tempo único. Nosso olhar também
pode atingir um patamar transcendente, entre sujeito/sujeito, quando “desejos de
olhar” aparecem cooptados. Fazenda ressalta que olhamos em camadas:
41
primeiramente desdobramos o objeto visto numa camada superficial. É a dimensão
tempo, por meio da categoria espera, que vai permitir ao sujeito observador construir
uma relação de cumplicidade e confiabilidade que propiciará o desvelamento, o ato
de tirar os véus, mobilizando corpo, escrita, fala. O desdobramento do olhar depende
da virtude da espera. Pelo olhar se constrói a cosmovisão: o sujeito ergue-se como
realizador de sua própria história, como construtor de um novo mundo.
O olho é aquilo que foi comovido por um certo impacto do mundo, e que
restitui ao visível pelos traços da mão. [...] O olho vê o mundo, e o que falta
ao mundo para ser quadro, e o que falta ao quadro para ser ele mesmo, e,
na palheta, a cor que o quadro aguarda; e, uma vez feito, vê o quadro que
responde a todas essas faltas, e vê os quadros dos outros, as respostas
outras a outras feitas. (MERLEAU-PONTY, 1980, p.91)
O conceito de olhar abarca o conhecimento estético-visual: é pela
sensibilidade, pela capacidade de ser afetado por algo, que dialogamos com a
inquietude do inacabado. Reis (2005, p. 28), ao interpretar a obra Guernica (1937)
de Pablo Picasso, nos alerta para a educação do olhar, capaz de conduzir-nos ao
conhecimento sensível, exposto através da barbárie, em pólos dialéticos: terror e
beleza, exótico e vulgar, insanidade e lucidez, experiências sensíveis à espera de
serem reinventadas.
O percurso metodológico desta pesquisa, através da realização de entrevistas
e coleta de relatos junto a professores de Ensino Médio, procurou verificar de que
forma os conceitos de interdisciplinaridade e contextualização aparecem expressos
nos olhares dos docentes e em que sentido aparecem como uma possibilidade de
ação para humanização do sujeito. A investigação só pode ser compreendida, se
ancorada na reflexão sobre a função exercida pelo Supervisor de Ensino da rede
estadual paulista. Isto exige atentar para o risco do olhar supervisor prender-se
apenas à visão do todo, sem adotar ações pertinentes ao redirecionamento do que
foi detectado como incoerente.
A participação do Supervisor de Ensino e sua presença sistemática nas
escolas, auxiliando a direção num permanente diálogo, contribuem para a ocorrência
de um trabalho transparente, apoiado na legislação que deve mover-lhe a ação.
Bachelard possibilita relacionar a ação supervisora que considera apenas a
dimensão do olhar com a hegemonia da visão, que conduz ao vício da ocularidade,
fatalmente levando à consideração da escola, enquanto panorama de uma realidade
material (PESSANHA, 1988, p. 154). Ao olhar, sem buscar os pormenores da rotina
42
escolar, expressa nas relações das mais diferentes naturezas, corre-se o risco de
reduzir a ação supervisora ao mero controle e fiscalização: desconsidera-se, assim,
qualquer possibilidade de contribuição e integração entre escola e órgãos
superiores, no que tange ao aspecto pedagógico (razão precípua da existência da
função supervisora). Revelar o complexo por dentro da aparente unidade, conjugar
olhar e mão, na perspectiva de Bachelard, “a mão criadora, autônoma e feliz, que
sonha seus próprios sonhos e escapa à tirania da visão, enfrenta os desafios
concretos do mundo concreto” (Ibidem, p. 157). A mão, movida pela vontade e
imaginação, é uma proposta que ousa pensar a razão sensível, expressa na
comunhão do olho atento e vigilante com a mão feliz e criadora.
1. 5 O olhar e as mãos: ver e agir
Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde te amei! Eis que
habitavas dentro de mim e eu a procurava do lado de fora!
Santo Agostinho, Confissões X, 27,38
Mas, a lente colocada em contato com os olhos do educador, tende a
obscurecer a visão criadora e tolher a mão exemplar colocada a serviço de “forças
felizes”, descrita por Bachelard (PESSANHA, 1988, p. 154). Tende a ser translúcida
ao ponto de permitir a visão do disciplinar (do dizível e do visível), impedindo a
percepção do indisciplinar (que amplia o campo de visão ao permitir, além do dizível
e visível, o indizível e invisível). Permitir o invisível e o indizível significa oportunizar
a elaboração de um conjunto de imagens, tecidas na história de vida dos indivíduos,
em várias dimensões, ou seja, a visão de mundo presentificada num mito pessoal.
Perissé (2009, p. 21) apresenta a estética cristã de Santo Agostinho, visão
teológica da estética que tomamos emprestada para, em analogia, adotar um olhar
relacionando à formação do sujeito político e transformador, que não aceita a
agressividade, a apatia, o desencantamento. Sensibilidade do leitor de si mesmo,
que descobre a beleza em seu interior, busca o social e o cultural na autoria de si,
compreende a sociedade por meio de um exercício de fruição e contemplação. Da
visão estética chega-se a “uma cosmovisão, a uma hermenêutica geral, a uma
leitura interpretativa do mundo” (ibidem, p. 22).
O encontro estético influencia e impressiona. Abre os olhos e a inteligência.
Permite a emergência do belo, do respeito à dignidade humana, a favor da vida, não
da morte. Vislumbra a função precípua da escola em socializar o conhecimento
43
historicamente acumulado, onde os alunos conseguem estabelecer relações com o
cotidiano. Rejeita a educação bancária e preconiza a pedagogia da autonomia, na
perspectiva de Freire (1996). Educadores dotados de olhos e mãos de sensibilidade
(Ferreira-Santos, 2004) serão professores-artistas, os quais saberão conjugar paixão
(ideais arraigados a afetividade), pensamento (raciocínio e argumentação) e
imaginação (metáforas, histórias), somados a convicções éticas.
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2 FORMAÇÃO CONTINUADA E ENSINO MÉDIO NA CONTEMPORANEIDADE:
APOIO TEÓRICO
2.1 Palas Atená, saber e formação
Palas Atená (Minerva) era a deusa grega das artes e da sabedoria. Era filha de
Zeus e da deusa Métis, a reflexão personificada. Era padroeira das artes úteis e
ornamentais, tanto dos homens (na agricultura e na navegação) como das mulheres
(através da fiação, da tecelagem e dos trabalhos com agulha).
Foi a conselho de Urano e Géia que Zeus engoliu Métis, sua primeira esposa,
que dele estava grávida.
Métis é a "sabedoria, a prudência". O sânscrito tem mätih, e o latim, metïri,
"medir", no sentido físico e moral. Foi a primeira esposa ou amante de Zeus
e foi ela quem lhe deu uma droga, graças à qual Crono devolveu todos os
filhos que havia engolido (BRANDÃO, 1986, p. 266).
Urano e Géia tinham revelado a Zeus que Métis teria uma filha e mais tarde um
filho, o qual o destronaria como ele próprio fizera com o pai Crono. O rei dos deuses,
espantado com tal profecia, engoliu Métis para impedir o nascimento. Atená foi,
assim, gerada na cabeça do soberano do Olimpo.
Completada a gestação normal de Atená, Zeus começou a ter uma dor de
cabeça que por pouco não o enlouquecia. Desesperado e no limite, não sabendo de
que se tratava, ordenou a Hefesto, o deus das forjas, que lhe abrisse o crânio com
um machado. Mesmo a contragosto, com técnica e precisão, Hefesto desferrou-lhe o
machado de ouro certeiro. Executada a operação, saltou da cabeça do deus, pronta,
já adulta, vestida e armada com uma lança e a égide, dançando a pírrica (dança de
guerra, por excelência) a grande deusa Atená. “Engolindo a Métis, tornou-se o
detentor da sabedoria e da prudência: a marca é Atená, que lhe saiu das meninges”
(BRANDÃO, 1986, p. 162).
Deusa da fecundidade, deusa da vitória e deusa da sabedoria, Atená simboliza
a reflexão e a inteligência personificada. Brandão (1987, p. 31) aponta dois de seus
símbolos: a serpente, símbolo da sabedoria intuitiva e da vigilância protetora, e a ave
(a coruja).
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Antiga Grande Mãe minóica, proveniente de cultos ctônios, domínios da
serpente, elevou-se, com o sincretismo creto-micênico, a uma posição
dominante nos cultos urânios e olímpicos, domínios da ave, como deusa da
fecundidade e da sabedoria; virgem, protetora das crianças; guerreira,
inspiradora das artes e da paz. [...] A coruja, em grego glaÚξ (gláuks),
etimologicamente, "brilhante, cintilante", porque enxerga nas trevas; em
latim noctua, "ave da noite", era, como se viu, consagrada a Atená. Ave
noturna, relacionada, pois, com a lua, a coruja não suporta a luz do sol,
opondo-se, desse modo, à águia, que a recebe de olhos abertos. Deduz-se,
daí, que o mocho, em relação a Atená, é o símbolo do conhecimento
racional com a percepção da luz lunar por reflexo, opondo-se, destarte, ao
conhecimento intuitivo com a percepção direta da luz solar (IBIDEM, p.31-
32).
Como potência feminina, Atená tem os olhos de coruja, “deusa dos olhos
glaucos” (Ferreira-Santos, 2006) capazes de enxergar na escuridão o que se
esconde na penumbra e é dificil de ser visto. Deusa completa, pronta, determinada,
com objetivos claros e definidos: divindade que transmitiu à cidade de Atenas, pelos
lábios de Ésquilo, seu discurso de paz, de liberdade, de justiça e de democracia,
mestra das artes de tecer e bordar. Palas significa "a donzela": A poderosa filha
pediu ao pai, Zeus, para manter-se sempre virgem e, desta forma, impor-se com a
autoridade de quem não se deixa seduzir ou corromper. Pensar é atividade da
mente e as disputas de Atená aparecem objetivando a manutenção da ordem
(Cosmos) e a evolução do espírito humano. Sua luta correspondeu à garantia da
justiça, para a qual faz uso de sua lança e escudo.
Deusa guerreira, na medida em que defende "suas Acrópoles", deusa da
fertilidade do solo, enquanto Grande Mãe, Atená é antes do mais a deusa
da inteligência, da razão, do equilíbrio apolíneo, do espírito criativo e, como
tal, preside às artes, à literatura e à filosofia de modo particular, à música e
a toda e qualquer atividade do espírito. Deusa da paz é a boa conselheira
do povo e de seus dirigentes e, como Têmis, é a garante da justiça, tendo-
lhe sido mesmo atribuída a instituição do Areópago. Mentora do Estado, ela
é também no domínio das atividades práticas a guia das artes e da vida
especulativa. E é como deusa dessas atividades, com o título de 'Erg£nh
(Ergáne), "Obreira", que ela preside aos trabalhos femininos da fiação,
tecelagem e bordado. (BRANDÃO, 1987, p. 15)
46
Estabelecendo uma analogia entre a figura mítica de Palas Atená e os
programas de formação continuada propostos pelas políticas públicas de formação
de professores na história da educação brasileira, encontramos semelhanças
marcantes. O oráculo emite a profecia: Zeus toma a sua atitude, representando as
políticas públicas que aparecem como resposta às demandas da sociedade:
superação dos índices de repetência, da evasão escolar e da distorção idade-série
dos alunos; reversão de baixos índices divulgados a partir das avaliações externas;
revisão de metodologias e procedimentos tradicionais de alfabetização, entre tantas
outras.
Da cabeça de Zeus desponta Atená, a solução encontrada: programas de
formação continuada. Zeus, representando a figura do Estado, comete um ato
imprudente ao engolir Métis (a prudência), assim como o Estado, ao fornecer a
oportunidade, ao professores, do acesso ao conhecimento por meio de programas
de formação continuada. O conhecimento dota docentes de poder. Daí a dor de
cabeça que acomete Zeus: para tal imprudência, surgem programas pensados
dentro de referenciais pedagógicos, atrelados a questões focais e problemas
definidos, que já saem prontos da cabeça de seus idealizadores, representantes
políticos e ideológicos do momento histórico em questão. Para cada segmento
escolar surge um rol de saberes prontos, pré-definidos, escudo, lança e armadura,
capazes de dotar professores de armas para a superação dos desafios enfrentados
no cotidiano escolar.
Palas Atená aparece como luz e salvação, tanto para os professores quanto
para os propositores das políticas públicas. Entretanto, a ideia de que programas de
formação continuada, destinados aos educadores como pré-requisitos fundamentais
para a melhoria da qualidade do trabalho docente, domina o atual cenário educativo.
A partir de 1997, pós Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n°
9394/96, são publicados, pelo MEC, documentos institucionais como os Parâmetros
Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental (1ª a 4ª séries e 5ª a 8ª séries) e
as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM). Avaliações
externas dos sistemas de educação surgiram com a finalidade de verificar a
qualidade de ensino oferecido e os indicadores de baixo rendimento escolar dos
alunos impulsionaram políticas públicas a investir em programas de formação em
serviço, seja na esfera federal, estadual ou municipal.
47
A maioria dos programas da atualidade propõe a reflexão sobre a prática
educativa e o domínio, por parte dos professores, de novas abordagens, estratégias
e teorias de ensino.
De acordo com Fusari (1997), os programas de formação continuada inseriram
tendências e concepções em diferentes momentos. O autor categoriza cinco
períodos ao longo da história da educação brasileira: a Tendência Tradicional
(predominando até a década de 30); o Movimento Escolanovista (de 1930 a 1960); a
Pedagogia Tecnicista (que perdurou até a década de 70); o Período Crítico-
Reprodutivista (final dos anos 70) e a Tendência Crítica (surgida a partir de 1980).
Tais tendências influenciaram políticas públicas de investimento voltadas aos
profissionais da educação. Para o autor, a formação contínua vem sendo
compreendida como aquela que ocorre após a formação inicial (nas mais diferentes
modalidades: magistério, licenciatura e bacharelado), apresentando uma cisão entre
os diferentes momentos da vida profissional, como corrobora Alarcão,
A formação de professores [...] tem saltado de modelo em modelo, sem
avaliações consistentes e sistemáticas que permitam analisá-los nos seus
princípios, realizações, resultados e contextos. Tem oscilado ao sabor das
ondas, direcionando-se ora para o saber, ora para o saber-fazer, como se
estes dois elementos não estivessem interligados, e tem valorizado mais a
formação inicial ou a continuada como se as duas vertentes não
constituíssem momentos numa continuidade de percursos. (ALARCÃO,
2004, p.11)
Hypolitto (1999, p. 101) faz uma análise das terminologias utilizadas pelos
programas de formação dos profissionais da educação, apresentando os seguintes
termos:
a) reciclagem: surgido na década de 80, o dicionário Aurélio define reciclagem
como “atualização pedagógica, cultural, para se obterem os melhores resultados”.
Define a reutilização de materiais usados ou não degradáveis, sendo inadequado
aos fins educacionais.
b) treinamento: implica em ações de repetição mecânica, dependentes de
automatismos e não da reflexão com uso da inteligência. A inadequação do termo,
no caso da formação continuada, reside no fato de que traduz a ideia de atribuir ao
trabalho docente características meramente técnicas.
48
c) aperfeiçoamento: tem o sentido de tornar perfeito, completar o inacabado,
concluir ou adquirir maior grau de instrução. Atribui ao processo educativo a missão
de tornar o aprendiz perfeito e concluso.
d) atualização: o termo parte do pressuposto de que o conhecimento do
professor é desatualizado, necessitando dotá-lo de conteúdos atuais advindos de
pesquisas recentes. A atualização em si é primordial ao profissional, porém
equivocada quando apresentada como mera ilustração.
e) capacitação: terminologia surgida na década de 60, que significa conjunto de
ações (cursos, encontros, seminários) com o objetivo de desenvolver a qualificação
do professor. A autora reforça que a capacitação deve ir muito além de ação de
treinamento, permitindo a reflexão sobre certos conceitos que permitam a mudança
da prática pedagógica a partir da consciência do educador.
f) educação permanente, educação continuada, formação continuada: conceito
extremamente recente, “que vem sendo construído a partir da contribuição de
autores como Nóvoa (1995), Fusari (1994) e Freire (1995), os quais abordam a
terminologia de forma explicativa, e não conceitual” (HYPOLITTO, 1999, p.103).
Esta pesquisa não objetiva explorar em minúcias tais conceitos. Coloca, em
linhas gerais, cada um dos termos sem entrar na compreensão de cada um deles, o
que pode ter visões diferentes de acordo com autores estudados. Entretanto, para o
entendimento da proposta de formação continuada desenvolvida no Programa
Ensino Médio em Rede é necessário destacar que, dentre tais nomenclaturas, no
caso do estado de São Paulo, a rede vivenciou uma gama de momentos de
formação denominados Orientações Técnicas (OT‟s). Observa-se que nas décadas
de 50 a 70 predominou forte viés tecnicista por meio de treinamento de professores
para ministrar aulas, organizando racionalmente objetivos, estratégias, meios,
tecnologias e procedimentos de ensino. Decorrente desse fato emerge a ideia de
que era necessário dotar professores de conhecimentos capazes de fornecer-lhes
uma competência técnica voltada à tarefa de ministrar aulas. O treinamento, no
sentido técnico, objetivava corrigir desvios, ou solucionar falhas no desempenho dos
professores, comprovadas pelos fortes argumentos de que a formação inicial dos
docentes era precária e pela responsabilização dos professores pelo fracasso
escolar.
Tais terminologias têm aparecido atreladas às políticas públicas de educação
na forma de cursos, reuniões, jornadas pedagógicas, seminários, palestras, oficinas,
entre outras. Afastando os profissionais de seu local de trabalho, através da
49
convocação de representantes de cada unidade escolar, tendiam a incentivar o
repasse de informações quando do retorno dos chamados “multiplicadores” do
conhecimento transmitido.
Entretanto, Palas Atená é dotada de sabedoria. No reinado de Cécropes, o
primeiro rei da cidade de Atenas, a divindade disputou com Netuno a posse da
cidade. Os deuses decretaram que Atenas seria entregue a quem produzisse o
presente mais útil aos mortais. Atená, com um golpe de lança, fez nascer da terra
uma oliveira em flor, e Netuno, com um golpe do seu tridente, fez nascer um cavalo
alado e fogoso. Os deuses, que presidiram a este duelo, decidiram em favor de
Atená, já que a oliveira florida, além de muito bela, era o símbolo da paz. Assim, a
cidade nova da Ática foi chamada Atenas.
A útil árvore que fornece o alimento encontra-se fincada ao chão por meio de
suas raízes. O vínculo com a terra-mãe que nutre. O vínculo com nossas raízes,
com nossa própria vida ... Histórias de vida que nos constituem como sujeitos.
Em se tratando de formação de professores, numa concepção de processo,
todas as dimensões do sujeito necessitam ser consideradas: a esfera consciente,
representada pela razão, pelo conhecimento compartilhado nos momentos de
formação contínua, e também a dimensão inconsciente, onde figuram as emoções,
as percepções, as sensações, as intuições. O sujeito-professor é um adulto dotado
de um repertório de saberes e experiências que necessita ser valorizado.
Furlanetto (2003, p.20) aponta que os adultos aprendem diferencialmente das
crianças: são mobilizados por processos internos que deslocam seus referenciais e
desencadeiam processos de desenvolvimento. A autora encontra nos estudos de
Jung elementos que me permitem construir um referencial teórico para compreender
como se processa a aprendizagem dos adultos.
[...] a aprendizagem dos adultos está articulada às perguntas que cada um
vai se fazendo. Ela traduz-se em um movimento que mobiliza, faz buscar,
descobrir, desejar, crescer e procurar diálogos com quem também está em
busca de respostas para os temas que os inquietam. Ao percorrer este
caminho, o adulto vai se constituindo em um ser singular e único, registro
vivo de suas histórias de aprendizagem. O que parece mobilizar o adulto e
colocá-lo em movimento diz respeito aos desafios que ele enfrenta, os quais
podem se constelar no mundo externo, mas também podem emergir dos
espaços interiores (FURLANETTO, 2007, p.135).
50
Recorrendo à teoria desenvolvida por Tardif (2002, p. 36-39), encontramos
uma série de saberes que compõem o fazer-docente: saberes de formação
profissional, disciplinares, curriculares e experienciais. Para o autor, prática docente
e experiência são conceitos distintos. O autor aponta a importância de nos determos
no estudo deste último saber, pouco explorado e pesquisado. Experiência é
conceituada como sendo uma prática refletida. É uma situação ou um acontecimento
que, ao passar na vida, toca profundamente o sujeito, causando mudanças
significativas na sua postura frente à vida e à profissão. Os saberes experienciais
surgem como núcleo central do saber docente, a partir do qual os professores
estabelecem relações com sua própria prática (ibidem, p. 54). O autor acredita que é
impossível “ensinar” experiência a ninguém, pois ela seria uma construção pessoal
de cada sujeito. É diferente para cada um, pois não há situações que possam ser
consideradas idênticas.
A preocupação em definir o conceito de experiência docente também aparece
nos estudos desenvolvidos por Marin (1996, p. 154). A autora conceitua experiência
como um saber não conhecido, próprio da evolução da vida de cada sujeito. Para a
autora, à semelhança de Tardif, a formação de docentes deve considerar fortemente
esses saberes adquiridos nas experiências individuais, pois tudo o que cada um faz
contém uma dimensão de “saber”. Há um novo caráter contraditório em se pensar
em modelos de formação, pois há grandes alterações na evolução do mundo de
cada um. Marin fundamenta suas concepções a partir de sua experiência como
pesquisadora e propõe um novo paradigma de formação, voltado para a experiência,
a partir da recuperação das histórias de vida e profissão.
Precisamos adotar um paradigma com fundamento histórico e social para
embasar nossos cursos, buscando levantar a história de vida, o processo de
socialização, as expectativas, as crenças, os valores, as representações
que os alunos têm no início do curso como subsídio pra o nosso trabalho
[...]. Precisamos mudar, urgentemente, o paradigma de formação de
professores para incorporar uma concepção mais ecológica que permita a
articulação de vivência dos alunos com um projeto político pedagógico de
curso em que os desejos que temos em relação à formação de professores
se concretizem (MARIN, 1996, p. 163).
Ferry (1996, p. 75) ressalta a articulação entre a formação teórica e a
experiência, entendida como a prática de cada professor. As biografias escolares
51
e histórias de vida aparecem como elementos na formação dos sujeitos. Para o
autor, a experiência se dá na relação consigo, com o outro e com o mundo.
Formação profissional e a formação pessoal aparecem articuladas, sendo quase
que impossível promover a dissociação desses dois aspectos. Ser professor é
estar em relação com o outro. O desafio de formar um adulto professor aparece
além das disciplinas e dos conteúdos, pois os aspectos pessoais devem estar
presentes através da imagem que o professor tem do seu trabalho. A formação
pode ser entendida como a busca do sujeito em construir sua própria forma de se
exercer profissionalmente. O espaço de formação é visto como um espaço em
que pessoas possam pensar suas experiências de vida e articulá-las com sua
prática profissional, de forma refletida e apoiada em teorias. Ressalta a
importância de mediadores na formação de professores: leitura, cursos, roda de
discussão. O professor, dotado de recursos para utilizar ferramentas de formação
(mediadores) e engajado na busca do conhecimento, constrói sua própria
formação, entendida como é uma forma de desenvolvimento da pessoa. Nesse
sentido, quem coordena sua própria formação é o sujeito.
Qual é o lugar do formador? Após ter sido proferido pelo oráculo que, se
Zeus tivesse uma filha, ela se tornaria ainda mais poderosa que ele, Zeus tratou
de imprudentemente engolir Métis para impedir o nascimento. Atená, gerada na
cabeça do soberano do Olimpo, sai pronta, com a forma madura, revestida de
armadura completa. Deusa formada, com o perfeito contorno de deusa.
Como formar professores? Qual forma os programas de formação
continuada tentam imprimir nos educadores? E que formato utilizam?
Concordo com Ferry quando este indica um olhar sensível sobre esses dois
tipos de ação formativa, reconhecendo tanto a presença de mediadores externos
quanto o movimento individual que somente o sujeito é capaz de desenvolver,
com vistas a sua formação pessoal e profissional.
Josso (2004, p. 64) reforça o sentido da experiência como uma
aprendizagem sobre si mesmo a partir da construção, pelo sujeito de uma linha
do tempo e das experiências da vida traduzidas como marcas profundas e/ou
momentos de ruptura (às quais chama de movimentos charneira), que leva a
uma análise da postura existencial de cada um. Todo conhecimento é, antes,
autoconhecimento. Através da interpretação de seus momentos vividos, o sujeito
é capaz de reconhecer seu estilo de posicionamento perante os fatos da vida:
52
expectativa, refúgio, intencionalidade e desprendimento aparecem como fases
vivenciadas pelo sujeito na reflexão de seus momentos vividos.
A descoberta de “marcas formadoras” a partir da análise de experiências de
vida constitui-se como possibilidade, na área da educação, para compor
programas de formação de professores. É possibilidade para que o sujeito
analise a realidade sob as óticas objetiva e subjetiva, necessariamente
complementares. Trata-se de incluir a sensibilidade com vistas ao
reconhecimento da “estética de si” (AMORIM NETO, 2008), no paradigma de
formação de professores.
Para que o sujeito se constitua educador, é necessário que, ao longo do seu
processo de formação, não só acadêmico, ele tenha despertado para a
“estética de si”, no sentido de cultivar a contemplação de si mesmo, sua
história pessoal e familiar, seus momentos de crise, de transformação e
aprendizagem. Uma contemplação de si mesmo, não apenas uma fruição
arrebatadora, mas transformadora que o mobilize a revisitar áreas menos
maduras, para continuar a desenvolver-se e atingir níveis mais altos de
consciência. Contemplar a si mesmo para perceber os ícones e símbolos
emergidos das zonas de luz e também das sombras da experiência com as
figuras parentais, com os adultos significativos e mesmo com os pares, ao
longo do tempo. (IBIDEM, 2008, p.94)
2.2 Cenários da Educação contemporânea
Não se pode educar sem ao mesmo tempo ensinar; uma educação sem
aprendizagem é vazia e, portanto, degenera, com muita facilidade, em
retórica moral e emocional.
Hanna Harendt
No mundo contemporâneo, são crescentes as discussões acerca da educação
e da função da escola como instituição, circulando nas mais diferenciadas esferas da
sociedade.
O debate sobre a educação extrapolou os muros da escola, estendendo-se
para todos os meios do mundo cultural, centrando as preocupações em que sujeito a
escola pretende formar.
As demandas da sociedade atual demonstram a necessidade de uma escola
que atenda às suas finalidades, que não se limite apenas à expansão de seu
atendimento, mas que supere a dicotomia existente entre oferta e padrão de
53
qualidade. Espera-se da educação, na sociedade tecnológica e globalizada, a
construção de competências exigidas para o exercício da cidadania e para o
desenvolvimento das atividades produtivas.
De acordo com Martins (2002, p. 243), o termo educação é formado pela
derivação do verbo educar acrescido do sufixo “ção”, o que atribui à palavra o
sentido de “ação ou resultado dela”. Destaca que a palavra, de origem latina,
etimologicamente apresenta duplo sentido.
[...] educo-eduxi-eductum-educere, com o significado de fazer sair, lançar,
tirar para fora, trazer à luz, educar; e educo-educavi-educatum-educare,
referindo-se a criar, amamentar, sustentar, elevar, instruir, ensinar
(MARTINS, 2002, p.243)
Nesse sentido, surge o binômio que atribui à educação os duplos processos de
desenvolvimento e seus resultados (educere), e a intervenção educativa (educare).
Ora, a educação tem um fim em si mesma, não pode ser vista como um fim para se
chegar a algo: é permitir o desabrochar do potencial inerente à pessoa humana, por
meio de uma ação de partilha, de troca, de formação de consciências.
Retomando a trajetória etimológica das palavras, aquele que educa, o
educador, tem sua origem no latim.
[...] educatór-oris, isto é, na origem, o que cria, nutre, quem dá a alguém
todos os cuidados necessários ao pleno desenvolvimento de sua
personalidade. O verbo é educo-as-avi atum are: criar (uma criança), nutrir,
amamentar, cuidar, instruir, ensinar (HOUAISS, 2001, verbete educador).
Nosella (2005, p. 27) aponta que o conceito de educador construiu seu nicho
semântico desde os tempos míticos de Homero. Na Grécia antiga os primeiros
poetas gregos cantavam e contavam as biografias e feitos dos heróis. A mitologia
grega possibilita a compreensão do termo educador, como aquele que nutre e
acompanha o educando desde a infância até a idade adulta. O poema épico A Ilíada
apresenta o monólogo do cavaleiro Fênix, que rememora, já em idade avançada,
como educou o herói Aquiles nos primeiros anos de sua vida. No canto IX de A
Ilíada é apresentado outro educador, Pátroclo, que conduz o herói em tempos
juvenis. Ambos educadores, de origem nobre, porém socialmente inferiores ao
educando, mas dotados de respeito, reconhecimento e uma antiga grandeza
correspondente à nobreza espiritual despojada de apoio material. Educar
54
correspondia a despertar um movimento de cumplicidade de dentro do aluno para
sua expressão externa.
A função de professor é mais recente. Nos tempos antigos, não era
competência do educador ensinar a ler e a escrever, e sim a se comportar, falar
(oratória) e guerrear. A invenção do alfabeto possibilitou o aprendizado de uma ação
técnica, e a partir do ano 500 a.C. surgem espaços onde professores trabalhavam
no ensino da leitura, escrita, cálculos, canto, competências de natureza técnica
(NOSELLA, 2005, p. 32). O mestre proferia aos seus alunos ensinamentos em um
movimento unidirecional, extraindo de dentro de si um saber a ser socializado.
Professor “é aquele que professa uma crença, uma religião, aquele que dá aula
sobre algum assunto, aquele que transmite algum ensinamento a outra pessoa,
aquele que tem diploma de algum curso (HOUAISS, 2001, verbete professor).
Educar é uma função universal, exercida pela convivência familiar, pelas
nossas tradições históricas e culturais, pela linguagem, pelos hábitos e valores,
pelas inúmeras e variadas instituições que compõem a sociedade, entre elas a
escola.
Transmitir o saber historicamente acumulado contribuindo para o
desenvolvimento da sociedade, para a formação do cidadão, para o crescimento
profissional. Sou uma parte do todo. Minha pertença ao social não convive com a
exclusão, com a intolerância, com a intransigência. Busco atitudes em prol da
valorização da pessoa humana e das relações pessoais, das formas diferenciadas
de expressão da realidade e da afetividade, apreciando o belo, a arte, a potência da
criação.
Como pretendemos educar crianças, jovens e adultos no princípio do século
XXI?
Delors (1999, p. 89), ao compilar a obra “Educação: um tesouro a descobrir”,
relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século
XXI, coordenada pelo autor, aponta que o século XXI submeterá a educação a uma
dura obrigação de transmitir eficazmente “saberes e saber-fazer evolutivos,
adaptados à civilização cognitiva, pois são as bases das competências do futuro.”
Corresponderá, numa visão prospectiva, a dotar os indivíduos de mapas de um
mundo complexo e agitado, e de uma bússola que permita navegar através dele,
aproveitando e explorando do começo ao fim da vida todas as ocasiões de atualizar,
aprofundar e enriquecer os primeiros conhecimentos para se adaptar a um mundo
em mudança. A proposta é de que a educação deva se organizar em torno de quatro
55
aprendizagens fundamentais que, ao longo de toda vida, serão para cada individuo
os pilares do conhecimento: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver
juntos, com os outros, e aprender a ser.
A evolução rápida do mundo exige uma atualização contínua de saberes,
derrubando o mito de que a “bagagem inicial de conhecimentos basta para toda a
vida”. A educação tem por missão, por um lado, transmitir conhecimentos sobre a
diversidade da espécie humana e, por outro, levar as pessoas a tomar consciência
das semelhanças e interdependência entre todos os seres humanos do planeta. À
escola cabe aproveitar todas as ocasiões para essa dupla aprendizagem. O
confronto através do diálogo e da troca de argumentos é um dos instrumentos
indispensáveis à educação do Séc. XXI. Deve contribuir para o desenvolvimento
total da pessoa: espírito e corpo, inteligência, sensibilidade, sentido estético,
responsabilidade pessoal, espiritualidade. Todo ser humano tem o direito a uma
educação que lhe permita a elaboração de pensamentos autônomos e críticos e a
formulação de seus próprios juízos de valor, de modo a poder decidir, por si próprio,
como agir nas diferentes circunstâncias da vida como sujeitos responsáveis e justos.
Educar é auxiliar a formação e o desenvolvimento do ser humano, num processo de
sensibilização do ser. A condição para formação humana é a educação estética,
uma vez que a aprendizagem mobiliza afetos, emoções e relações com seus pares,
além das cognições e habilidades intelectuais.
2.2.1 O Ensino Médio na contemporaneidade
Observando os estudos e debates recentes, nota-se que o Ensino Médio tem
sido constantemente colocado em pauta nas discussões mundiais referentes a
políticas públicas com vistas à melhoria da qualidade e equidade na educação,
marcos de uma política em mudança.
No que se refere à realidade nacional, com a promulgação da Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional nº 9394/96, a Educação Básica passou a incorporar
o Ensino Médio, anteriormente tratado como um curso “complementar”, em termos
de legislação educacional, uma etapa de passagem entre o curso primário e a
formação superior. O artigo 21 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
LDBEN 9394/96, apresenta a forma de composição e organização da educação
escolar.
56
Art. 21. A educação escolar compõe-se de:
I - educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e
ensino médio;
II - educação superior.
Configurado como etapa final da Educação Básica, o discurso oficial preconiza
a progressiva universalização e gratuidade de Ensino Médio, revelando a
propositura de inclusão daqueles que antes não tinham acesso a esse nível de
ensino. Ao Ensino Médio é estabelecida uma nova identidade curricular, dotada de
duas grandes missões proclamadas: o desenvolvimento de uma formação geral e a
superação da dualidade histórica de uma formação de caráter propedêutico
(destinada a preparar o educando para o acesso aos níveis superiores de ensino) e
de uma formação de caráter técnico-profissionalizante, preconizadas pelas
legislações anteriores.
Respondendo à convocação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional nº 9394/96, numa tentativa em conciliar humanismo e tecnologia, foi
encaminhado pelo MEC, em 1997, à Câmara de Educação Básica, o documento
precursor do debate acerca das propostas curriculares e de sua implementação. Tal
documento culminou na publicação, em 1998, das Diretrizes Curriculares Nacionais
para o Ensino Médio (DCNEM).
Segundo Bueno,
As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio - DCNEM –
consubstanciam-se em um conjunto de definições doutrinárias sobre
princípios, fundamentos e procedimentos a serem observados na
organização pedagógica e curricular de cada unidade escolar integrante dos
diferentes sistemas de ensino. Como tal, não têm a mesma permanência da
lei por constituírem „indicações para um acordo de ações‟, mas são as
determinantes legais da ação pedagógica (IBIDEM, 2000, p. 07)
As Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio solicitam da escola o empenho
em organizar currículos inovadores, que conciliem o conhecimento dos princípios
científicos de produção moderna e o exercício da cidadania plena, a formação ética
e a autonomia intelectual. Apresentam princípios axiológicos, orientadores de
pensamentos e condutas, bem como princípios pedagógicos, com vista à construção
dos projetos pedagógicos pelos sistemas e instituições de ensino.
57
Os princípios axiológicos (...) são coerentes com a orientação da UNESCO
apresentada no relatório da Reunião Internacional sobre Educação para o
Século XXI. Esse documento apresenta as quatro grandes necessidades de
aprendizagem dos cidadãos do próximo milênio, às quais a educação deve
responder: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e
aprender a ser. Na reforma educacional brasileira, essa orientação se
objetiva nos seguintes princípios: a estética da sensibilidade, a política da
igualdade a ética da identidade. As novas formas de produção "pós-
industrial" valorizariam essas competências, introduzindo, no modo de
produzir e de educar, um humanismo que possibilitaria integrar a formação
para o trabalho num projeto mais ambicioso de desenvolvimento da pessoa
humana (RAMOS, 2007, p.05).
Um dos princípios filosóficos do Ensino Médio é a estética da sensibilidade,
estimulando a criatividade, o espírito inventivo, a curiosidade pelo inusitado, a
afetividade, favorecendo a constituição de identidades capazes de suportar a
inquietação, conviver com o incerto, o imprevisível e o diferente.
Entendendo que a educação se processa num cenário vivo e dinâmico, tais
princípios não são neutros. Ao contrário, baseiam-se numa certa forma de
compreender a sociedade e suas relações no momento contemporâneo. A formação
básica para o trabalho é defendida como necessária para se compreender a
tecnologia e a produção, com o propósito de preparar recursos humanos adequados
à realidade do mundo do trabalho.
Nesse sentido, o discurso legal das DCNEM, escrito ao final de 1997, é
permeado por ideologias legitimadoras de interesses sociais, entretanto a leitura do
documento se faz necessária por nos remeter a possíveis ações pedagógicas no
âmbito das unidades escolares.
Decorridos cerca de dez anos da apresentação das propostas, a escola ainda
se depara com as seguintes questões: Como estruturar uma escola capaz de
atender às demandas da sociedade e aos princípios legalmente instituídos? Como
vencer dificuldades e desafios enfrentados pelas escolas na concretização dessa
nova concepção curricular do Ensino Médio?
Atender à demanda social, composta por um segmento jovem cujos itinerários
de vida serão cada vez mais imprevisíveis, como consequência do processo de
globalização presente na sociedade, é o grande desafio do ensino médio no século
XXI.
58
2.2.2 Princípios de Interdisciplinaridade e Contextualização na legislação
educacional: as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio
A partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9394/96, os
currículos de Ensino Fundamental e Médio passaram a ser organizados a partir de
uma base nacional comum:
Art. 26. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base
nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e
estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas
características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e
da clientela.
Nesse sentido, o texto legal define ser competência dos sistemas de ensino e
às propostas pedagógicas de cada instituição de ensino a definição do currículo
escolar de acordo com as características de sua clientela.
Com a publicação do Parecer CNE/CEB Nº. 15/1998 e da Resolução CNE/CEB
Nº 03/1998, que dispõem sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino
Médio, as disciplinas escolares passaram a ser estruturadas em áreas de
conhecimento. Nesse sentido, foram agrupadas disciplinas que tinham como base a
reunião de conhecimentos que compartilham objetos de estudo semelhantes.
As áreas de conhecimento foram apresentadas da seguinte forma: Linguagens
e Códigos e suas Tecnologias – LCT- (englobando as disciplinas de Português,
Inglês, Educação Artística e Educação Física), Ciências da Natureza, Matemática e
suas Tecnologias – CNMT -(com as disciplinas de Matemática, Física, Química e
Biologia) e Ciências Humanas e suas Tecnologias – CHT- (envolvendo as disciplinas
de História e Geografia).
Em seu texto legal, as Diretrizes Curriculares Nacionais argumentam que essas
disciplinas escolares foram organizadas dessa forma por possibilitar uma maior
facilidade de comunicação entre si, criando condições para que a prática escolar se
desenvolva numa perspectiva de interdisciplinaridade e de uma aprendizagem
significativa, para a superação de uma compreensão fragmentada da realidade. As
tecnologias surgem como ferramentas e procedimentos de cada disciplina com a
finalidade de desenvolverem seus objetivos, não estando apenas ligadas ao mundo
tecnológico e ao uso de mídias educativas.
59
Os currículos escolares do Ensino Médio passaram a ser organizados em cinco
eixos:
- identidade, diversidade e autonomia (desenvolvidos a partir do trabalho junto
à comunidade e às necessidades do mundo social);
- interdisciplinaridade e contextualização, estruturas organizativas dos novos
currículos.
Interdisciplinaridade e contextualização aparecem como propostas de novos
recursos que permitirão a reorganização da experiência docente e a definição
coletiva do que e de como ensinar os alunos.
Interdisciplinaridade e Contextualização são recursos complementares
para ampliar as inúmeras interações entre as disciplinas [...]. Juntas elas se
comparam a um trançado cujos fios estão dados, mas cujo resultado final
pode ter infinitos padrões de entrelaçamento e muitas alternativas de
combinar cores e texturas. De forma alguma se espera que uma escola
esgote todas as possibilidades. Mas recomenda-se com veemência que ela
exerça o direito de escolher um desenho para seu trançado e por mais
simples que venha a ser ele expresse suas próprias decisões e resulte num
cesto generoso para acolher aquilo que a LDB recomenda em seu artigo 26:
as características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia
e da clientela (Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, 1998,
p. 116).
O discurso oficial, expresso através das DCNEM's, aponta para situações de
como a interdisciplinaridade deva ser aplicada. Não apresenta um conceito sobre o
termo, porém cita a necessidade de diferenciar disciplina, no sentido escolar, de
ciência ou corpo de conhecimentos. Enfatiza que a interdisciplinaridade deve ir além
da mera justaposição de disciplinas, definida como seleção de conhecimentos
ordenados e organizados, a serem apresentados ao aluno.
A partir da ideia de que todo conhecimento mantém um diálogo permanente
com outros conhecimentos, expresso através de questionamentos, confirmações,
negações, as DCNEM's consideram que algumas disciplinas se identificam e se
aproximam entre si. Outras se distanciam, por se diferenciarem em vários aspectos:
pelos métodos e procedimentos utilizados, pelo objeto que se pretende conhecer,
pelas habilidades que mobilizam naquele que investiga. Através dessa possibilidade
de relacionar as disciplinas em atividades ou projetos de estudo, capazes de evitar
que as disciplinas escolares deixem de manter sua individualidade, sem diluir-se em
60
generalidades, espera-se que os alunos aprendam a olhar para o mesmo objeto de
conhecimento sob perspectivas diferentes. Visão orgânica do conhecimento,
organizando e tratando os conteúdos do ensino e as situações de aprendizagem de
modo a destacar as múltiplas interações entre as disciplinas do currículo.
A contextualização presente nas DCNEM's aparece como a possibilidade de
estabelecer a interação entre as disciplinas nucleadas numa área e entre as próprias
áreas de conhecimento. A premissa defendida é a de que o conhecimento da
realidade mais próxima pode motivar o aluno a compreender formas mais complexas
da realidade, expressas nas relações que se desenvolvem em nível mais global. Pressupõe abertura e sensibilidade para identificar as relações que existem entre os
conteúdos do ensino e das situações de aprendizagem com os muitos contextos de
vida social e pessoal, de modo a estabelecer uma relação ativa entre o aluno e o
objeto do conhecimento e a desenvolver a capacidade de relacionar o aprendido
com o observado, a teoria com suas conseqüências e aplicações práticas.
Tufano (2002, p. 41) busca o significado do termo “contextualizar”, derivado do
latim contextu como ato de colocar alguém a par de alguma coisa, revelando tudo
aquilo que a princípio pode parecer óbvio, mas que deve ser analisado e estudado
em suas raízes.
Contextualizando tentamos colocar algo em sintonia com o tempo e com o
mundo, construímos bases sólidas para poder dissertar livremente sobre
algo, preparamos o solo para criar um ambiente favorável, amigável e
acolhedor para a construção do conhecimento. (TUFANO, 2002, p. 41)
Contextualizar o conteúdo que se quer aprendido significa compreender que
todo conhecimento pressupõe uma correlação entre sujeito e objeto. O tratamento
contextualizado dos conteúdos escolares aparece como recurso para retirar o aluno
da condição de expectador passivo, provocando aprendizagens significativas. A
linguagem surge como articuladora entre o modo de produção e o conhecimento, e
também como ferramenta na transposição didática que se processa nos meios
educativos. Compete à escola utilizar-se de diversos recursos pedagógicos, como
meio de levar o aluno a reconhecer diversas formas e estruturas da linguagem, bem
como os processos histórico-culturais que determinaram a construção do
conhecimento científico, com a clareza de que contextualizar constitui-se num ato
particular e situacional, relacionado ao conhecimento construído.
61
Machado (2004, p.145) defende a ideia de que, apesar de frequente, o termo
contextualização é inadequadamente utilizado em seu sentido etimológico, sendo
correta a expressão “contextuação”, a qual significa o enraizamento de uma
referência a um texto da qual foi extraída. Por analogia, contextuar tem o sentido de
estratégia fundamental para a construção de significados. Associar a vida a uma
densa teia de significações, tal qual um imenso texto, leva à tendência de relacionar
contextuação “a uma necessidade aparentemente consensual de aproximação entre
os temas escolares e a realidade extra escolar” (ibidem, 1999), muitas vezes
confundida com rótulos denominados “interdisciplinaridade, transdiscipinaridade ou
mesmo transversalidade”.
Vale ressaltar que o conceito de contextualização aparece vinculado a
discursos híbridos, transmitidos pelos documentos formulados pelas políticas
públicas de educação. Lopes (2002, p. 390) destaca a divulgação do termo pelo
MEC como princípio curricular central dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o
Ensino Médio, dentro de uma proposta de educar para a vida. A revolução do
ensino, traduzida numa proposta de “educação contextualizada”, recupera ideias do
progressivismo proposto por Dewey no movimento da Escola Nova. A autora alerta
que o conceito de contextualização, ligado a uma concepção mais ampla de
educação, tende a associar-se a princípios eficientistas: valorização de dimensões
econômicas (ligadas ao trabalho e produção) em detrimento a uma dimensão
cultural mais ampla. Dessa forma, a representação de um novo e revolucionário
ensino (voltado ao atendimento a demandas do mercado e do sistema produtivo)
desconsideraria o entendimento do currículo escolar como uma política cultural.
Entretanto, a exploração de tal sentido de contextualização não será desenvolvida
minuciosamente neste trabalho.
2.2.3 Desafios dos profissionais da educação frente ao “novo” Ensino Médio
A exigência interdisciplinar impõe que cada especialista transcenda a sua
própria especialidade, tomando consciência de seus próprios limites para
acolher a contribuição das outras disciplinas. Uma epistemologia da
complementaridade, ou melhor, da convergência, deve substituir a da
dissociação.
G.Gusdorf
62
Transformar a escola de forma a oferecer respostas às exigências do mundo
contemporâneo tem sido um desafio marcado pelo esforço em romper com antigos
paradigmas.
No século XIX, vivemos a especialização das Ciências e a consolidação de
diversas especialidades: eletromagnetismo, termodinâmica, mecânica, embriologia.
A especialização trouxe a precisão das formulações, o incremento quantitativo na
produção cientifica, porém, em contrapartida, a excessiva compartimentalização do
conhecimento.
As revoluções técnico-científicas que propiciaram a evolução da Ciência
Moderna,permitiram que o homem desenvolvesse a capacidade de investigar e
decifrar o mundo que o cerca, favorecendo o surgimento de conhecimentos cada vez
mais específicos.
O estudo de cada um dos ramos das Ciências trouxe grandes contribuições em
diferentes áreas de conhecimento, propiciando melhorias na qualidade de vida das
pessoas. Pesquisadores tenderam a isolar seus problemas de pesquisa, a fim de
torná-los mais precisos, permitindo resolvê-los de forma mais rápida e concisa. O
conhecimento humano, frente ao volume de descobertas de cada área da Ciência,
foi direcionado a especializações, culminando na fragmentação do saber em
disciplinas científicas, disciplinas estas que tenderam a aprofundar o conhecimento
de seus objetos de estudo.
Num mundo em constante transformação, como a escola se articula diante
desse contexto?
O mesmo movimento foi percebido no ambiente escolar: disciplinas escolares
que compuseram o currículo dos mais variados níveis de ensino foram cada vez
mais se especializando ao ponto de não permitirem o desenvolvimento de relações
entre si, afastando-se de sua realidade de produção. Trabalhadas de modo
estanque, favoreceram a formação de indivíduos dotados de uma visão de mundo
superficial e restrita. O discurso oficial presente nas políticas públicas de educação,
representando a aspiração à unidade do saber, impõe sua marca presente no
momento histórico de nossa atualidade.
Silva (1999, p. 67) aborda que uma das demandas a atingir a escola e os
docentes, a partir dos anos 60, foi o “movimento pela reunificação do conhecimento”.
[...] a crítica da disciplinarização do conhecimento questiona os docentes
sobre a necessidade de encontrarem abordagens de ensino que ofereçam
63
aos educandos uma visão mais ampla e global dos fenômenos estudados.
Não compete mais ao aluno efetuar a unidade do conhecimento mediante
unicamente seu próprio esforço: a escola, através de seus docentes, deve
oferecer aos alunos um conhecimento interdisciplinar, com a contribuição
das diferentes disciplinas para uma perspectiva globalizante. (IBIDEM, p.
67-68)
Frente ao desafio de superar a fragmentação do conhecimento, a proposta de
organização do currículo escolar do Ensino Médio em áreas de conhecimento traz a
tona o tema Interdisciplinaridade, amplamente discutido na esfera educacional e no
meio acadêmico.
Entretanto, sabemos que a Universidade, lócus responsável pela formação dos
professores, enfatiza uma perspectiva disciplinar, enquanto que as demandas
educacionais solicitam o trabalho interdisciplinar. Atrelado a esse fato, persiste uma
concepção “conteudista” em relação ao papel a ser desempenhado pela escola: o
Ensino Médio é visto predominantemente pelo seu caráter propedêutico.
É necessário que a escola, como instituição educativa, reverta tal situação,
deslocando a visão de currículo centrado nos conteúdos para o currículo centrado
no sujeito social, a partir da valorização da própria experiência, do trabalho realizado
coletivamente e em interação.
Para superação de tais entraves, a proposta de trabalho em áreas do
conhecimento apresenta-se como um recurso aos professores, na medida em que
favorece a articulação dos conteúdos, objetivando superar a fragmentação do saber.
Planos de Ensino precisam sem estruturados em função da aprendizagem dos
alunos. Atividades planejadas em cada disciplina escolar, pensadas, propostas e
articuladas pelos professores da área, poderiam contemplar questões pertinentes e
relevantes para a escola e para a sociedade contemporânea.
2.3 Cenários da Educação no Brasil: o Programa “Ensino Médio em Rede”
A aplicação dos princípios de interdisciplinaridade e contextualização,
presentes nos currículos de Ensino Médio, aparece na legislação de ensino como
proposta de novos recursos que permitiriam a reorganização da experiência docente
e a definição coletiva do que e de como ensinar os alunos.
O § 1º do artigo 36 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº
9394/96 estabelece que os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação do
64
curso de Ensino Médio serão organizados de tal forma que ao final de sua
escolarização o educando possa demonstrar: o domínio dos princípios científicos e
tecnológicos que presidem a produção moderna, o conhecimento das formas
contemporâneas de linguagem e o domínio dos conhecimentos de Filosofia e de
Sociologia necessários ao exercício da cidadania.
Art. 36. O currículo do ensino médio observará o disposto na Seção I deste
Capítulo e as seguintes diretrizes:
I - destacará a educação tecnológica básica, a compreensão do
significado da ciência, das letras e das artes; o processo histórico de
transformação da sociedade e da cultura; a língua portuguesa como
instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício da
cidadania;
II - adotará metodologias de ensino e de avaliação que estimulem a
iniciativa dos estudantes;
III - será incluída uma língua estrangeira moderna, como disciplina
obrigatória, escolhida pela comunidade escolar, e uma segunda, em caráter
optativo, dentro das disponibilidades da instituição.
IV – serão incluídas a Filosofia e a Sociologia como disciplinas
obrigatórias em todas as séries do ensino médio.
§ 1º Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão
organizados de tal forma que ao final do ensino médio o educando
demonstre:
I - domínio dos princípios científicos e tecnológicos que presidem a
produção moderna;
II - conhecimento das formas contemporâneas de linguagem.
No ano de 2000, em resposta às DCNEM‟s, O Conselho Estadual de Educação
de São Paulo - CEE/SP publicou as Diretrizes Curriculares para o sistema de ensino
do Estado de São Paulo - Ensino Fundamental e Médio, através da Indicação CEE
nº. 09/2000.
O objetivo primordial desta Indicação foi a publicação de diretrizes capazes de
orientar o Sistema de Ensino do Estado de São Paulo no processo de implantação
de um novo modelo educacional para o Ensino Médio.
A Indicação do Conselho Estadual de Educação do estado de São Paulo
aponta ser competência das escolas de ensino médio a oferta de uma formação
básica que alie informações e conteúdos disciplinares entre si, com valores e
atitudes (favorecendo o desenvolvimento de habilidades e o alcance de
65
competências importantes para a vida pessoal e social e para o trabalho). A
organização de conteúdos em áreas e projetos interdisciplinares melhor atenderia ao
objetivo de possibilitar uma visão articulada do conhecimento e propiciando o
diálogo permanente entre as diferentes áreas do saber.
Sugere que o tratamento dos conteúdos deva ser desenvolvido de modo
contextualizado, aproveitando sempre que possível as relações entre conteúdos e
contexto para dar novos significados ao aprendido, estimulando a iniciativa e a
autonomia intelectual do aluno.
Esta concepção de currículo envolve os conceitos de interdisciplinaridade e
contextualização. Todo conhecimento mantém um diálogo permanente com
outros conhecimentos. Algumas disciplinas identificam-se, outras
diferenciam-se, tanto relativamente ao tipo de conhecimento e aos métodos,
quanto ao objeto de conhecimento, ou mesmo às habilidades mobilizadas.
Nesse sentido, a interdisciplinaridade corresponde à possibilidade de
relacionar disciplinas próximas em atividades ou projetos de estudo,
pesquisa e ação, bem como à integração entre linguagens e procedimentos
diversos que permitam o tratamento de temas ou projetos complexos.
Desse modo, é possível a proposta de trabalhos interdisciplinares, não só
entre áreas de maior evidência de afinidade - artes e história, química e
biologia -, como também entre áreas aparentemente distantes - artes e
física, biologia e filosofia. O importante é haver um tema gerador, um
experimento, um plano de trabalho ou de ação para intervir na realidade, um
texto em multimídia etc. (Indicação CEE nº. 09/2000 – Diretrizes
Curriculares para o sistema de ensino do Estado de São Paulo, Ensino
Fundamental e Médio, 2000, p.139).
Mas será que professores que atuam no ensino básico dispõem de uma
formação capaz de entender o conceito de interdisciplinaridade e desenvolver
práticas pedagógicas interdisciplinares capazes de atender aos objetivos de tal
etapa de escolarização?
O discurso que circula na esfera educacional proclama que a mudança
introduzida a partir da publicação das DCNEM's se efetivaria a partir de fatores como
a revisão curricular, o rompimento com um elenco prescritivo e conteudista de
disciplinas e a reconstrução da identidade das escolas, entendidas como espaços
coletivos na construção de propostas pedagógicas que pressupõem a formação em
serviço.
66
Esforços no sentido de repensar a formação docente, nas dimensões inicial e
continuada, advêm da década de 90. Contudo, parece que pouco se avançou a esse
respeito, principalmente em relação à prática docente. Ainda é possível constatar
que professores mal-formados são injustamente apontados como únicos
responsáveis pelo fracasso escolar.
Programas de formação continuada de professores, decorrentes de políticas
públicas dos sistemas de ensino, procuraram superar déficits decorrentes da
formação superior, realizada em cursos de Licenciatura que se mostraram ineficazes
frente às demandas educativas. Buscaram, muitas vezes, dotar os docentes de
perícias específicas, capacitando-os, de forma técnica, para o enfrentamento de
problemas presentes nas salas de aula. O ensino era entendido como uma
intervenção tecnológica, e o professor, como um técnico especializado em aplicar
regras derivadas do conhecimento científico, descritas através de uma taxonomia de
objetivos de aprendizagem.
No estado de São Paulo, uma das demonstrações de políticas públicas
voltadas ao Ensino Médio foi o Plano de Investimentos/ Programa de Melhoria e
Expansão no Ensino Médio – PROMED. O Programa, desenvolvido a partir do ano
de 2001, caracterizou-se inicialmente pela destinação de recursos públicos para
compra de materiais permanentes (mobiliário e equipamentos) e acervo bibliográfico
para as escolas que ofereciam tais cursos.
A partir de 2004, o estado de São Paulo desenvolveu o “Ensino Médio em
Rede”, programa de formação continuada concebido e coordenado pela Secretaria
de Estado da Educação de São Paulo, por meio da Coordenadoria de Ensino e
Normas Pedagógicas - CENP. O público-alvo contava com Assistentes Técnico-
Pedagógicos (ATP‟s) que atuavam nas Diretorias de Ensino do estado de São
Paulo, Supervisores de Ensino, Professores Coordenadores (PC‟s) de escolas
públicas paulistas e professores de Educação Básica nível II que atuavam no Ensino
Médio regular. O programa também contou com o financiamento do PROMED, por
meio de convênio firmado entre a Secretaria de Estado da Educação (SEE), o
Ministério da Educação (MEC) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)
e teve a gestão da Fundação Vanzolini.
O “Ensino Médio em Rede” foi desenvolvido integrando encontros presenciais
que faziam uso dos ambientes de aprendizagem e os recursos virtuais
desenvolvidos em pólos regionais denominados “Rede do Saber”. Os meios
didáticos utilizados eram teleconferências, videoconferências e ferramentas web,
67
que propiciavam o contato virtual e on-line com os especialistas que coordenavam o
Programa, definindo o caráter do curso num modelo de formação à distância. O
público-alvo participava de encontros presenciais periódicos, em cada Diretoria de
Ensino, nos quais eram discutidos os temas apresentados nos materiais de apoio
desenvolvidos para o programa.
O Programa foi realizado em duas fases: a primeira, entre 2004 e 2005, teve o
seu conteúdo voltado para a contextualização da proposta de formação e para a
discussão das múltiplas representações dos sujeitos envolvidos na prática educativa.
Nessa primeira fase não ocorreu a participação direta de professores nos encontros
presenciais: competia ao Professor Coordenador o desenvolvimento de eixos
temáticos nos Horários de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC‟s), momentos
semanais de encontro entre docentes nas Unidades Escolares.
A segunda fase do Programa, desenvolvida em 2006, deu ênfase para o
desenvolvimento curricular das áreas de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias;
Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias; e Ciências Humanas e suas
Tecnologias. Dessa etapa participaram de encontros presenciais três professores
representantes de cada escola, um de cada área de conhecimento, indicados pela
Direção da escola. Os demais professores recebiam informações sobre o curso por
intermédio do professor coordenador e dos docentes designados “professores
representantes”.
Os objetivos do Programa “Ensino Médio em Rede” eram: o aprofundamento
das discussões sobre as especificidades curriculares do Ensino Médio; o
fortalecimento da integração entre os professores das áreas de conhecimento (a
partir de projetos temáticos e de uma perspectiva interdisciplinar); e o fornecimento
subsídios teórico-práticos para o trabalho pedagógico dos professores das diferentes
disciplinas e áreas do conhecimento.
O programa consistia numa formação continuada em serviço destinada a
docentes e professores coordenadores que atuavam nas escolas de Ensino Médio
públicas paulistas, pautada nos eixos “reflexão-na-ação”, “reflexão-sobre-a-ação” e
“reflexão-para-a-ação” e na ideia de professor reflexivo (SCHÖN, 2000) enfocando
as especificidades do currículo desse nível de ensino e proporcionando aos
professores subsídios necessários para uma análise da proposta pedagógica da
escola em que lecionavam e da suas próprias ações pedagógicas em sala de aula.
O “EMR” tratava de temas distintos:
Tema 1 – “A formação do professor no Programa Ensino Médio em Rede”.
68
Tema 2 – Professores e alunos: um encontro possível e necessário
Tema 3 – O currículo da escola média
Tema 4 – O projeto político – pedagógico da escola
Os conceitos de “Interdisciplinaridade e Contextualização”, no Programa
“Ensino Médio e Rede”, para a Secretaria de Estado da Educação do Estado de São
Paulo, eram desenvolvidos junto ao Tema 3, que enfocava o currículo. Tais
conceitos, juntamente com o conceito de Competências, eram compreendidos como
elementos estruturadores do currículo. Interdisciplinaridade buscaria a superação da
fragmentação do conhecimento, permitindo ao aluno a visão do todo.
Contextualização, como movimento de aproximar os educandos a diferentes
contextos de aprendizagem, relacionando-os. O Projeto buscava desenvolver
possibilidades de um trabalho interdisciplinar por áreas de conhecimento, definidas a
partir das diretrizes legais: Linguagens e Códigos e suas Tecnologias – LCT
(englobando as disciplinas de Português, Inglês, Educação Artística e Educação
Física), Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias – CNMT (com as
disciplinas de Matemática, Física, Química e Biologia) e Ciências Humanas e suas
Tecnologias – CHT (envolvendo as disciplinas de História e Geografia). O Programa
Ensino Médio em Rede teve como finalização a elaboração de sequências didáticas
com vistas à produção de artigos de opinião por parte dos alunos de professores
participantes.
Quanto aos conceitos desenvolvidos, em especial o de interdisciplinaridade, há
que se ressaltar que o Programa EMR deixou de aprofundar o estudo das teorias
que circulam no meio acadêmico. Inexistiu também a proposta de estudo das
Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio.
O modelo de formação desenvolvido pelo Programa estava pautado nas
premissas de que os professores são elementos fundamentais no processo
educacional e de que a escola é um dos espaços mais adequados para que se
processe tal formação. A presença de um professor representante frequentando as
videoconferências de formação objetivava ampliar as formas de participação da
escola nas discussões sobre o currículo oficial. Na escola, sob a coordenação do
Professor Coordenador, durante as HTPC‟s, o professor representante deveria
socializar suas aprendizagens e discussões, junto aos demais colegas da unidade
escolar.
Entretanto, é necessário ressaltar a dificuldade ainda existente em nossa
cultura escolar quanto à realização de trabalhos coletivos e quanto ao
69
posicionamento dos docentes como sujeitos coletivos. A proposta do Programa
EMR, ao atribuir ao professor coordenador e ao professor representante a
competência de multiplicar conhecimentos obtidos no curso esbarrava, em algumas
unidades escolares, em problemas ligados à organização de espaços coletivos e à
própria função precípua do Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo, como espaço
de discussão com finalidade pedagógica:
A existência de autênticos sujeitos nas unidades escolares só é possível
quando ocorre a re-humanização das relações entre as pessoas e, para
além do funcionário, surge a pessoa do educador. O surgimento da pessoa
pode acontecer em um clima próprio que é o comunitário, o coletivo, isto é,
um ambiente onde haja grupos de referência dos quais seja possível
participar e se desenvolva um sentido de “nós-ético” (SILVA, 1999, p.71).
Entendendo a tarefa docente como um trabalho coletivo e a possibilidade de
encontro com os pares como um momento que possibilita a partilha de ações
críticas, o curso “Ensino Médio em Rede” pode ser compreendido como uma ação
necessária, a qual focava o processo contínuo de formação docente imprescindível à
educação pública paulista, uma vez que um novo modelo de organização curricular
para o Ensino Médio foi proposto como política pública educacional. Tomando como
parâmetro a ideia fomentada pelo curso “Ensino Médio em Rede” de que a escola é
“lócus” de formação docente, a hipótese desta pesquisa apóia-se na premissa de
que a execução do curso, embora precursor nas discussões sobre os conceitos de
interdisciplinaridade e contextualização, esbarrou em sérias dificuldades, uma vez
em que a multiplicação das informações divulgadas ficava a cargo dos professores
coordenadores e dos professores representantes de cada uma das escolas públicas
de Ensino Médio, tendo em vista que lhes era atribuída a incumbência de
multiplicarem conhecimentos adquiridos nas videoconferências realizadas.
Embora o Programa EMR proclamasse a escola como espaço de formação, a
organização do curso já excluía da formação a totalidade dos professores que
ministravam aulas no Ensino Médio da rede pública estadual de ensino. Dessa
forma, alijados do material didático do curso e da oportunidade de participar
presencialmente de discussões junto aos especialistas do programa, restavam-lhes
os momentos de HTPC‟s para as reflexões sobre as temáticas abordadas.
Considerando que a formação continuada pressupõe uma relação entre os
sujeitos-aprendentes e o conhecimento transmitido, a hipótese inicial desta pesquisa
70
partiu do pressuposto de que a grande maioria dos professores que atuam no
segmento do Ensino Médio, na rede pública estadual paulista, não tem clareza dos
conceitos de interdisciplinaridade e contextualização. Ora, uma das únicas
oportunidades de discussão de tais conceitos deu-se por meio de um curso cuja
participação dos docentes foi excludente e seletiva, numa ótica de transmissão
generalista de conhecimentos.
Entendendo que uma formação continuada voltada à construção dos
complexos conceitos de interdisciplinaridade e contextualização demandaria uma
abordagem que considerasse mais além do que dotar professores de conhecimentos
sobre a temática abordada, julgo arriscado delegar à escola, apenas, a missão de
assumir a responsabilidade de ser o único espaço de formação continuada previsto
pelo Programa “Ensino Médio em Rede”, uma vez que o Estado não garantiu
condições mínimas ligadas ao acesso de todos os professores ao curso.
2.4 Interdisciplinaridade e Contextualização: olhares teóricos
Transformar a escola de forma a oferecer respostas às exigências do mundo
contemporâneo tem sido um desafio marcado pelo esforço em romper com antigos
paradigmas.
A intensa diferenciação nos saberes, nas linguagens e nos procedimentos
científicos deu origem à multiplicidade de disciplinas autônomas.
Santomé (1998, p.55) aponta que a disciplina é uma maneira de organizar e
delimitar um território de trabalho, sob um determinado ângulo de visão. Surge ai
uma imagem particular da realidade, correspondente ao recorte traduzido pelo
ângulo de seu objetivo de pesquisa. A compartimentação do conhecimento traz a
dificuldade crescente em delimitar as questões definidas como objeto deste ou
daquele campo de especialização do saber: quais as fronteiras existentes entre as
áreas de conhecimento?
A interdisciplinaridade, por sua vez, é um conceito que começa a ser
construído no século XX. Ao longo desse século, sobretudo a partir dos anos 60 e
70, o termo interdisciplinaridade surge ligado à finalidade de corrigir possíveis erros
de uma Ciência excessivamente compartimentada e sem comunicação
interdisciplinar (SANTOMÉ, 1998, p. 62). Até o presente momento, muito teóricos
debruçaram-se no estudo da temática, trazendo inúmeras contribuições.
71
Buscando a significação do termo “Interdisciplinaridade”, encontramos muitos
sentidos, relacionados a conceitos diversos. Tratando-se de uma palavra
considerada polissêmica, partimos do pressuposto de que seu uso deve ser aplicado
com ressalvas, evitando reducionismos ao ponto de considerar projetos tidos como
“interdisciplinares” por carregarem apenas a ideia de temas geradores, de integração
curricular ou de justaposição de disciplinas.
Fourez (2001) aponta que há meio século a palavra interdisciplinaridade
encontrava-se fora dos dicionários, e que, através de estudos ocorridos na década
de 70, passou a ser amplamente definida como “interação entre duas ou mais
disciplinas [...]”. Argumenta que uma definição tão geral como essa se mostra
insuficiente para pensarmos e fundamentarmos, hoje, práticas interdisciplinares.
Vale-se de um modelo epistemológico pra definir um referencial de noções, ligado à
interdisciplinaridade.
A organização dos saberes em disciplinas científicas, na visão de Fourez
(2001), constitui-se numa produção cultural de grande importância, ao
apresentarem-se como modos historicamente organizados de produzir
representações sobre o mundo. Tais saberes disciplinares são produzidos segundo
referenciais normatizados por uma comunidade científica especifica, de acordo com
o paradigma que sustenta tal disciplina. A aspiração da sociedade em ultrapassar a
fragmentação dos saberes disciplinares, no enfrentamento de situações-problema,
conduziria a abordagens interdisciplinares, apelando aos saberes especializados
das disciplinas científicas e construindo ilhas de racionalidade capazes de
comunicarem-se entre si. A prática interdisciplinar seria formalizada a partir da
construção e reconstrução de saberes formadores de ilhas de racionalidade, que se
comunicariam através da intersubjetividade, isto é, da criação de comunidades de
comunicação.
Para Lenoir (2007, p. 04) o termo interdisciplinaridade é um conceito recente,
originado a partir do desenvolvimento do pensamento científico, e que tomou forma
com a estruturação do saber científico em disciplinas, numa tentativa de substituir a
tendência à fragmentação do conhecimento. A partir da constatação de que os
movimentos sociais, na segunda metade do século XX, passam a questionar a
presença do homem no mundo, o tema interdisciplinaridade passa a ser discutido
nas esferas científica, prática, profissional e escolar.
72
A preocupação para com a unidade do saber releva de uma preocupação
trans-histórica [...], que remete à unidade do ser humano, à unidade do
universo cultural e ao sentido da vida [...]. (LENOIR, 2007, p.04)
Partindo de tradições culturais distintas, Lenoir (2007) apresenta três
interpretações da perspectiva interdisciplinar fundadas em lógicas distintas: a lógica
do sentido, da funcionalidade e da intencionalidade fenomenológica.
A lógica do sentido refere-se a uma interrogação epistemológica, de
questionamento das certezas que a ciência havia admitido até então e da expansão
no sentido de explorar as fronteiras das disciplinas científicas e suas zonas
intermediárias, com vistas à organização dos saberes científicos, evitando sua
fracionalização. O aprisionamento das disciplinas científicas em suas próprias
fronteiras seriam obstáculos à pesquisa de novos conhecimentos, e a prática
interdisciplinar tenderia à reflexão epistemológica sobre os saberes disciplinares em
interação, em direção ao saber-saber. O sujeito constitui-se através da apreensão do
conhecimento, por aquilo que conhece, por aquilo que sabe.
A lógica da funcionalidade apresenta-se interligada ao questionamento social:
na busca de um saber útil, integralizador dos saberes disciplinares, capaz de
fornecer resposta a problemas contemporâneos. Um saber-fazer que conclama o
saber-ser: a relação entre conhecimento e sujeito, que, por meio de suas
aprendizagens, desenvolve habilidades para intervir no mundo.
Lenoir (ibidem, p. 17) recorre a Palmade (1977, p. 287) e discute o termo
“Interdisciplinaridade de projeto”, contrário ao viés tecnicista, voltado a um
conhecimento extremamente útil, funcional, utilizável, operacional. As disciplinas
científicas devem servir de fundamento à interdisciplinaridade de projeto e esta deve
suscitar a pesquisa das relações entre as disciplinas.
Já a última lógica, a da intencionalidade fenomenológica, em ligação direta com
a atividade profissional cotidiana, representa as aspirações das sociedades
industriais marcada pelo fenômeno da globalização. Nesse caso, a
interdisciplinaridade se refere não a uma categoria de conhecimento, e sim a uma
categoria de ação: o olhar é dirigido para o sujeito (inserido numa realidade social e
política) e para sua subjetividade. Aparece em destaque a questão da
intencionalidade, da necessidade do (auto) conhecimento, do diálogo e da
intersubjetividade.
73
Lenoir (2007) aponta que a lógica brasileira corresponde à última dimensão
apresentada, colocando que, nesse caso, a metodologia do trabalho interdisciplinar
encontra como foco o docente e suas práticas, de modo a propiciar ao professor a
descoberta de si e das atitudes que compõem seu agir. Entretanto, ressalta que
tanto o ensino quanto a formação para e pela interdisciplinaridade devem se manter
indissociáveis dessas três dimensões, preservando-se a cultura que fundamenta
cada uma das representações apresentadas, evitando o nivelamento que uma
“internacionalização selvagem” poderia acarretar.
Quanto aos estudiosos brasileiros que se dedicam ao tema, destacam-se os
trabalhos surgidos a partir da década de 70, com Japiassú e Fazenda. Os dois
pesquisadores passam a desenvolver pesquisas, enfatizando que a setorização do
conhecimento não é capaz de resolver os problemas de nosso tempo.
Japiassú (1976, p.43) adota uma perspectiva que anuncia o protesto ao saber
fragmentado em migalhas, pulverizado numa multiplicidade crescente de
especialidades, em que cada uma das disciplinas fecha-se em si própria como que
para fugir ao verdadeiro conhecimento. Sua denúncia apresenta-se contra ao que
denomina esquizofrenia intelectual de uma universidade cada vez mais
compartimentada, dividida, subdividida, setorizada e subsetorizada, contrária à
sociedade dinâmica e concreta, onde a vida é percebida como um todo complexo e
indissociável.
No caso de Fazenda (1991;2002), sua pesquisa enfatiza a interdisciplinaridade
como categoria de ação, da atitude de conhecer cada vez mais e melhor. Da
reciprocidade que impulsiona a troca entre os pares idênticos, entre os anônimos e a
troca consigo. Do desafio ante o novo e do redimensionamento do velho. Da atitude
de responsabilidade, de humildade, de alegria, de encontro, enfim, de vida. A
interdisciplinaridade aparece como interação e interrelação entre as disciplinas
científicas, mediada pela intersubjetividade e sustentada na história de vida do
docente.
Ambos os autores denotam a intenção de rompimento com o saber
fragmentado. Romper, sobretudo, com paradigmas que sustentam práticas de
trabalho individualizado, com a supremacia de disciplinas tidas como mais
valorizadas no currículo escolar se sobrepondo a outras consideradas como menos
importantes. Encontrar as fronteiras que limitam o saber cultural e historicamente
construído, o espaço “entre” pessoas, “entre” áreas de conhecimento, “entre”
atitudes que sustentam práticas e relações que permeiam a tarefa educativa.
74
Jantsch e Bianchetti (2008, p. 15) resgatam a concepção de
interdisciplinaridade debatida no Congresso de Nice – França, em 1969, atrelada a
pressupostos da filosofia do sujeito, concordando com o aspecto de que a
fragmentação do conhecimento leva o homem a não ter domínio sobre o próprio
conhecimento produzido. Criticam, porém, o posicionamento radical defendido por
Japiassú, de que o conhecimento fragmentado passa a ser assumido como uma
patologia, uma doença que fatalmente compromete a produção do conhecimento:
A fragmentação do conhecimento – processo e produto, é, pressupõe-se,
um mal em si, só podendo ser superado pelo ato de vontade de um sujeito
(pensante) que, por opção/decisão, faz a cirurgia extirpadora dos tumores
(leia-se, entre outros, disciplinas) cancerígenos (IBIDEM, 2008, p. 16).
Para os autores, o processo de fragmentação do conhecimento e do trabalho
impôs-se historicamente, não sendo aceitável qualquer tipo de atitude de
lamentação sobre tal fato. Argumentam que a natureza dos objetos/problemas de
conhecimento determina as possibilidades de enfoques interdisciplinares: há
objetos/problemas que só se esgotam mediante buscas advindas da relação
interdisciplinar entre as ciências, enquanto outros aprofundam o conhecimento ao
serem esgotados em sua própria especificidade. Genérico e específico tramitariam
não numa dimensão excludente, e sim complementar.
Programas de formação continuada que consideram como ponto de partida a
experiência e a vivência pessoal possibilitam ao professor reconhecer-se como
sujeito da própria prática. Esse percurso tende a permitir ir além: reconhecer
também dicotomias presentes nos espaços escolares, conforme apontado por
Bochiniak (1992, p. 19), entre elas “teoria e prática, satisfação e obrigação, grupos
homogêneos e heterogêneos, especialidades e generalidades, reprodução e
produção do conhecimento”, e encontrar caminhos para o rompimento de barreiras.
Sair da conformidade e do discurso da denúncia das dificuldades e partir para
uma reflexão que se consolide no discurso anunciativo das possibilidades de
mudança.
A atitude interdisciplinar requer do professor uma integração entre as
diferentes áreas do conhecimento. E essa integração aponta para uma
postura de humildade e desprendimento em relação a sua e às demais
áreas do conhecimento. Uma postura de soberania perante a disciplina que
leciona, tornando-se indiferente às demais, dificultará a convivência com
75
seus pares na realização de projetos de trabalho em equipe (LAZZARIN,
2001).
As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, imbuídas dos
pressupostos interdisciplinaridade e contextualização, necessitam ser exploradas à
luz das teorias pedagógicas da contemporaneidade. Nesse sentido, o olhar docente
estará focado não apenas nas diretrizes trazidas pelo discurso oficial, mas também
para as múltiplas concepções acerca do tema interdisciplinaridade.
A pesquisa desenvolvida permitiu, enquanto pesquisadora, compreender que a
discussão sobre a interdisciplinaridade é bastante complexa, envolvendo tanto a
dimensão de sua possibilidade quanto a de seus limites e desafios. No tocante à
reforma do Ensino Médio, tendo em vista a proposta de currículo integrado em
áreas do conhecimento, a interdisciplinaridade é compreendida no texto das
Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio atrelada a argumentos em
favor de sua aplicação para a promoção de uma aprendizagem motivadora, onde
conteúdos são abordados de forma contextualizada de modo a possibilitar a
compreensão mais ampla da realidade. Entretanto, mesmo considerando que tal
tarefa, muito complexa, voltada a um trabalho verdadeiramente interdisciplinar seja
de realização extremamente difícil, o que é corroborado por Japiassu (1976, p.92),
percebo que tal discussão como necessária uma vez que é omitida nas DCNEM‟s.
Interdisciplinaridade e contextualização caminhando juntas podem possibilitar
às escolas a construção de uma trama com padrões e texturas únicos,
artesanalmente trançados, expressando sentimentos, memórias, trocas, parcerias
constituídas por equipes escolares comprometidas em recuperar o vivido de forma
diferente, ontem e hoje, com a perspectiva de um amanhã revelador de uma
educação de sensibilidade.
76
3 MITOS E NARRATIVAS (AUTO) BIOGRÁFICAS: A DIMENSÃO ESTÉTICA NA
CONSTRUÇÃO DE OLHARES DOS PROFESSORES DE ENSINO MÉDIO SOBRE
INTERDISCIPLINARIDADE E CONTEXTUALIZAÇÃO
3.1 Um olhar sobre a escola pública na metrópole
A Escola Estadual “Loureiro Junior” está localizada no bairro do Tatuapé, em
área comercial, próxima a duas grandes avenidas: Avenida Salim Maluf e Avenida
Alcântara Machado/ Radial Leste. No entorno da unidade escolar, podem ser
encontrados o Cemitério da Quarta Parada, a Radical Leste (Pista Municipal de
Bicicross), o Shopping Metrô Tatuapé, a Casa de Shows Cabral e a construção das
futuras instalações do SESC Belenzinho. Nas proximidades, existem as construções,
em andamento, da nova Ponte Estaiada do Tatuapé, no Complexo Viário Padre
Adelino. É uma escola localizada na grande metrópole que é a cidade de São Paulo,
o que impõe aos educadores uma tarefa complexa diante do cenário
contemporâneo.
A escola é jurisdicionada à D.E. Leste 5, diretoria que está localizada no
bairro da Mooca, na Zona Leste de São Paulo, e que coordena o trabalho de 76
(setenta e seis) escolas públicas a ela vinculadas. Tais unidades escolares estão
localizadas nos bairros Aricanduva, Água Rasa, Belém, Carrão, Parque São Lucas,
Tatuapé e Vila Maria.
A Diretoria de Ensino Leste 5 atende a uma demanda de alunos do Ensino
Fundamental (1ª a 8ª séries) e Médio (1º ao 3º anos), nas modalidades regular e
supletiva. Dentre as unidades escolares atendidas, 07 (sete) delas atuam
exclusivamente oferecendo cursos de Ensino Médio.
O quadro a seguir, por mim elaborado, apresenta o número de escolas
públicas, jurisdicionadas à Diretoria de Ensino Leste 5, por tipo de atendimento
oferecido. É necessário esclarecer que, em sua maioria, as escolas oferecem mais
de um segmento de ensino, conjugando a oferta de turmas de Ensino Fundamental
e Ensino Médio, nas modalidades de ensino regular e supletivo. Dessa forma, é
importante esclarecer que o número total de tipos de atendimento será superior,
divergente do número de escolas jurisdicionadas à Diretoria de Ensino, tendo em
vista a colocação acima prestada.
77
Tabela 1 – Número de escolas por segmento de ensino
Nº DE ESCOLAS TIPO DE ATENDIMENTO
36 ENSINO FUNDAMENTAL, CICLO
02 ENSINO FUNDAMENTAL, CICLO I e II:
06 ENSINO MÉDIO ( EXCLUSIVAS )
30 CICLO II e ENSINO MÉDIO
02 CICLO I, CICLO II e ENSINO MÉDIO
01 CEES – CENTRO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO SUPLETIVA
03 UNIDADES
VINCULADAS
FUNDAÇÃO CASA (antiga FEBEM)
22 EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS (EJA)
05 EJA - TELESSALA- “Telecurso 2000”.
02 CENTRO DE LÍNGUAS
A Escola Estadual “Professor Loureiro Júnior” oferece exclusivamente os
cursos do segmento do Ensino Médio, nas modalidades regular e supletiva, períodos
diurno e noturno. Está localizada na Zona Leste de São Paulo, no bairro do Tatuapé.
Esta escola é selecionada para a realização da pesquisa porque ela oferece cursos
do segmento pesquisado e porque parte dos professores que nela atuam realizaram
o “Programa Ensino Médio em Rede”.
Os registros históricos apontam que a escola foi criada pelo Decreto nº 50.537,
de 11/10/1968, tendo sido instalada em 01/03/1968, com o nome de Ginásio
Estadual do Alto da Mooca, funcionando no prédio do Grupo Escolar “Dr. Antonio de
Queiroz Telles”.
Pelo Decreto nº 52.582/70, a Escola Estadual “Professor Loureiro Junior” foi
transformada em Colégio Estadual. No dia 14/01/1971, o Diário Oficial do Estado
publicou na primeira página:
Ginásios Escolares recebem nomes de brasileiros ilustres:
O Governador Abreu Sodré assinou ontem um decreto dando a
denominação de Ginásio Estadual “Carlos de Moraes Andrade” ao 2º
Ginásio Estadual do Imirim e Ginásio Estadual “Prof. Loureiro Junior” ao
Ginásio Estadual do Alto da Mooca, ambos nesta capital. Nas justificativas
dos dois atos, lembra o Governador do Estado [...] quanto ao Professor
Loureiro Junior, a homenagem é justificada pelo fato de ter “dedicado toda
sua vida ao desenvolvimento e à cultura jurídica e política do Brasil, que
como homem público, professor e deputado deixou exemplos de
78
inquestionável brasilidade em obras de real significação para a ilustração
dos estudiosos e pesquisadores” (Plano de Gestão Quadrienal 2006-2009
da Escola Estadual “ Professor Loureiro Junior”, p. 02)
Em ato, publicado no DOE de 29/01/1976, o Colégio Estadual “Professor
Loureiro Junior” passou a denominar-se “Escola Estadual de Segundo Grau
Professor Loureiro Junior” e, em 1999, através do Decreto nº 44.449, de 24/11/99,
foi alterada a denominação para Escola Estadual “Professor Loureiro Junior”.
O prédio escolar é de porte médio, limpo e bem conservado, preocupação
estética da equipe gestora. O edifício possui vários espaços destinados às
atividades escolares: biblioteca, pátio, quadra de esportes, sala de informática, entre
outros. Percebe-se que tais ambientes são bem aproveitados, sendo utilizados pelos
professores de forma contínua, constituindo-se num espaço de intensas trocas
simbólicas na cultura material e imaterial. Ferreira-Santos (2005, p. 80) aponta que a
arquitetura simbólica dos prédios e patrimônios de uso social (suas disposições,
seus usos, seus símbolos, superfícies gastas) remete ao diálogo de ressonâncias
míticas.
O corpo docente é composto em sua maioria por professores titulares de cargo
efetivo. Há registros nos Planos de Gestão de que os professores demonstram
interesse na utilização de estratégias de ensino e recursos pedagógicos
diversificados. De acordo com o documento (p. 07), “integram a formação dos
professores os cursos de capacitação da Teia do Saber, Ensino Médio em Rede e
demais projetos da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo”.
Vale ressaltar trecho retirado do Plano de Gestão Quadrienal 2006-2009 da
Escola Estadual “Professor Loureiro Junior”:
A contextualização e a interdisciplinaridade são os elementos que
constituem a metodologia de trabalho desenvolvida pelo corpo docente.
Permeia a consciência do educador de que ele não é mais o único detentor
do conhecimento para ser um facilitador de aprendizagem. [...] São
características inerentes ao corpo docente: preocupação com sua formação
continuada, participação em orientações técnicas, assiduidade, criatividade,
desenvolvimentos de projetos disciplinares e interdisciplinares, empenho na
aplicação de novas tecnologias. (Plano de Gestão Quadrienal 2006-2009 da
Escola Estadual “Professor Loureiro Junior”, p. 07-08)
79
Em 90% dos casos, os alunos são provenientes de bairros distantes do
centro, localizados na periferia da Zona Leste de São Paulo, como Vila Matilde, Artur
Alvim, Guaianazes, Cidade Tiradentes, Itaquera, Penha, Ermelino Matarazzo, Poá e
outros. Em sua maioria, são paulistas, filhos de brasileiros nascidos nas mais
variadas regiões do país (oriundos do interior de São Paulo e da Região Nordeste).
A equipe gestora informou que os alunos costumam utilizar o trem como meio de
transporte, levando cerca de duas horas para chegar à escola e que, segundo
depoimento de pais e alunos, eles buscam uma escola melhor que a do seu bairro,
que é “toda quebrada - pichada – e com poucas aulas” (Suely, Professora
Coordenadora).
O Plano de Gestão Quadrienal registra que os estudantes:
[...] são filhos de pais que buscam um ensino de qualidade, com vistas a
uma formação integral e adequada à realidade da sociedade atual. Desse
modo, uma forte aliança se estabelece com uma parcela grande de pais e
corpo docente comprometido em busca de vencer desafios e contribuir na
formação de cidadãos críticos e atuantes (p. 08).
Os alunos do período noturno frequentam a escola após o trabalho.
A localização da escola, próxima a grandes e movimentadas avenidas, bem
como a variedade de meios de transporte, são elementos que facilitam o acesso ao
alunado.
No ano letivo de 2008, período em que foram realizadas a coleta de dados e
as entrevistas junto aos professores, a escola teve 27 (vinte e sete) salas em
funcionamento, sendo que 20 (vinte) delas funcionaram no período diurno – Ensino
Médio Regular - e 07 (sete) no período noturno - Ensino Médio Supletivo.
Trabalharam na escola cerca de 60 (sessenta) professores, atendendo a um
total de 1042 (um mil e quarenta e dois) alunos, dos quais 744 (setecentos e
quarenta e quatro) estudaram no período diurno e 298 (duzentos e noventa e oito)
no período noturno.
A biblioteca da Escola Estadual “Professor Loureiro Júnior” é um espaço
acolhedor, composto por mesas coletivas, estantes para guardar os livros, cadeiras
e escrivaninha destinada ao uso do funcionário responsável.
80
3.2 Um olhar sobre os Olhares Mitológicos dos professores
Entrevistaram-se cinco professores. Coletaram-se informações sobre os
participantes a partir de seus depoimentos sobre suas trajetórias de vida e sobre
suas impressões a respeito dos conceitos de interdisciplinaridade e de
contextualização.
Tabela 2 – Características dos participantes
Nome Sexo Formação
acadêmica
Disciplina
que leciona
Tempo de
atuação
como
docente
magistério
Tempo de
magistério
na Rede
Pública
Paulista
ANA Feminino Letras Inglês 18 anos 17 anos
LILIAN Feminino Letras Português 23 anos 14 anos
RENATA Feminino Letras Português 21 anos 21 anos
GABRIEL Masculino Administração
e Educação
Artística
Artes 07 anos 07 anos
SILVIA Feminino Letras Inglês 17 anos 10 anos
Na fase de preparação, foi explorada a vivência dos participantes, relacionadas
à formação continuada, enfatizando suas participações no “Programa Ensino Médio
em Rede”. Ressalta-se que, dos cinco professores entrevistados, apenas 03 (três),
tiveram a oportunidade de realizar o curso “Ensino Médio em Rede”. Isto não
impediu o curso do processo, em razão dos objetivos da pesquisa: o curso “Ensino
Médio em Rede” não era objeto de análise.
Na Iniciação, segunda fase do roteiro estabelecido, os participantes
apresentaram seus olhares sobre os conceitos de “interdisciplinaridade” e
“contextualização” no Ensino Médio.
Nas fases de Narração Central e de Perguntas, os participantes registraram o
seu processo de formação, resgatando tudo que pareceu marcante: as pessoas, os
professores, os livros que exerceram influências na escolha profissional, as relações
com o conhecimento, com os professores e consigo (se de autoria ou de
81
submissão). Os modelos que influenciam as suas práticas e a sua decisão
profissional foram também investigados.
Já na fase da Fala Conclusiva, os participantes se ativeram ao encerramento
de suas narrativas. Os professores refletiram sobre o momento de realização das
entrevistas, com destaque para o resgate do processo (auto) formativo, pelos
participantes. Houve também uma reflexão sobre o reconhecimento da
aprendizagem no resgate de episódios marcantes e sobre a importância do estudo
(auto) biográfico, para a compreensão dos conceitos de interdisciplinaridade e
contextualização no Ensino Médio.
A colaboração dos professores em conceder a entrevista e em despojar-se de
quaisquer sentimentos de embaraço possibilitou não somente a mera descrição de
falas apresentadas, mas uma jornada interpretativa de sentimentos, imagens
contadas, símbolos e mitos, numa perspectiva mitohermenêutica.
Após a realização das entrevistas, elas foram transcritas, com o objetivo de
localizar temáticas recorrentes nas falas dos sujeitos que fossem pertinentes ao
problema de pesquisa.
Dando continuidade ao processo de análise, recorreu-se à literatura, buscando
realizar a leitura de mitos que ajudassem na análise das falas dos professores. O
material de transcrição das entrevistas foi lido diversas vezes e, com base nele,
foram emergindo mitos pessoais, presentes na falas, que permitiram uma
interpretação com um enfoque hermenêutico. A leitura do material teve como foco
uma atitude compreensiva, com o objetivo de desvelar o sentido e significados
trazidos pelos docentes.
As narrativas obtidas revelaram a colaboração dos professores ouvidos na
pesquisa realizada. Foi possível observar certa heterogeneidade: alguns tiveram
mais facilidade em expor os laços biográficos que compõem sua história de vida.
De acordo com o referencial bibliográfico pesquisado, destacamos a
categorização de análise, dada por Josso (2006, p. 378), que enumera os principais
laços biográficos abordados em histórias de vida: laços de parentesco, laços
herdados por nascimento, laços de aliança, laços de lealdade, laços geracionais,
laços transgeracionais, laços profissionais, laços simbólicos e laços religiosos ou
espirituais. Citar os laços biográficos existentes, segundo Josso (2006), não é
suficiente. É preciso conhecer a forma como são “atados”, à semelhança de
verdadeiros nós.
82
Josso (2006) nos aponta que do trabalho de reconstrução da história de vida,
por meio de relatos orais ou escritos, emerge certo número de nós invisíveis. O
processo é pôr-se a caminho, nessa busca de compreensão de si, de componentes
de nossa história, de tomadas de consciência daquilo que nos move, nos interessa,
nos guia, nos atrai, trabalho (auto) biográfico propriamente dito.
Embora haja estudos teóricos sobre este assunto, houve unanimidade entre os
professores na alegação de que, nos programas de formação dos quais
participaram, não tiveram a oportunidade de explorar tais conhecimentos sobre sua
história de vida.
3.2.1 Ana, o mito de Eco e Narciso
A primeira professora ouvida foi Ana, professora de Inglês do Ensino Médio.
Ela registra que, na sua trajetória acadêmica, o nascedouro foi o curso de Letras,
realizado numa universidade privada da cidade de São Paulo e que sua trajetória
profissional foi marcada pelo seu grande interesse pelos cursos de formação
continuada dos quais teve oportunidade de participar:
Fiz letras na Universidade São Judas há muitos anos atrás e depois fui fazendo
alguns outros cursos para aperfeiçoar a língua inglesa, em instituições como PUC,
pois a universidade não dá essa noção para ser professor de inglês. Fiz o inglês oral
da PUC e fiz os outros cursos dados pelo Governo. Fiz alguns cursos de formação
continuada, mas nenhum específico para o ensino médio, não tendo tido
oportunidade de participar do programa Ensino Médio em Rede.
Inicia a narrativa reconhecendo como legítimos os cursos de formação que
frequentou. Ao relatar tais experiências, Ana resgatou emoções despertadas a partir
da vivência construída nos cursos de formação, expondo um sentimento de
satisfação em contar com tais recursos no seu fazer docente:
Não fiz nenhum curso só para o Ensino Médio: fiz o Curso “Reflexão sobre a
ação” na PUC, e quem fez esse curso hoje não tem dificuldades de
trabalhar com o caderninho. Adorei participar de cursos de formação
continuada, pois eles dão a noção da parte pedagógica mesmo, dos
objetivos dos PCN‟s, me servia para tudo, fazendo diferença na minha aula,
o que me auxiliou tanto na escola pública como na escola particular. Quem
fez esse curso não tem dificuldades de trabalhar com o caderninho. O
aluno tem todo um caminho para aprender língua, e o objetivo que está lá
83
na frente é que direciona esse caminho. Se tivesse a oportunidade faria
outros cursos.
Sua prática denota o ecoar de conceitos, metodologias e estratégias
adquiridos em tais experiências de formação.
Emergiu a figura de Eco: a ninfa dos bosques. Para a compreensão da
narrativa da professora Ana, é fundamental que se recorra ao mito de Eco e Narciso.
Eco era uma ninfa e vivia nos bosques e montes. Tinha um grande defeito:
falar demais e querer ter sempre a última palavra em uma discussão. Entre as
grandes apaixonadas pelo jovem Narciso estava a ninfa, Eco.
Brandão (1987, Vol. II, p. 177) relata que a deusa Hera, desconfiada, como
sempre, e com razão, das constantes "viagens" do esposo Zeus ao mundo dos
mortais, resolveu prendê-lo lá em cima. Desesperado, Zeus lembrou-se de Eco,
ninfa de uma tagarelice invencível. A esposa seria distraída pela ninfa e ele, Zeus,
poderia dar seus passeios, quase sempre com objetivos amorosos, pelo habitat das
encantadoras mortais…
A princípio tudo correu bem, mas a ciumenta Hera, "a defensora dos amores
legítimos", por fim, desconfiou e, sabedora da razão da loquacidade de Eco,
condenou-a a não mais falar: repetiria tão-somente os últimos sons das palavras que
ouvisse.
Por tentar enganar Hera, Eco foi condenada pela deusa a somente responder,
nunca falar em primeiro lugar.
Já o mito de Narciso é relatado por Berkenbrock-Rosito (2008), que resgata a
história da ninfa Liríope, a qual “foi banhar-se em um rio, que se sentiu atraído por
ela. Da relação dos dois nasceu uma criança muito bela chamada Narciso. Para se
tranquilizar quanto ao futuro do filho, procurou o oráculo Tirésias, que perdera a
visão e, por isso, era capaz de ver o que a maioria não via. Tirésias falou-lhe que
nada aconteceria a Narciso, se ele não visse a própria imagem. Narciso cresceu e,
por conta de sua beleza, despertava a atenção dos humanos e das ninfas que
conviviam com ele”.
Eco, apaixonada por Narciso, tentou conquistá-lo com palavras e frases
gentis, mas isso não era mais possível. Entre os dois não existiu comunicação.
Desesperada, a ninfa passou a viver em cavernas, seu corpo definhou, até
desaparecer, restando apenas seus ossos que se transformaram em rochedos:
84
Eco, com vergonha de ter sido rejeitada por Narciso, vai tornar-se insone, já
que as preocupações a mantêm acordada. Seu corpo esgotado perde sua
aparência física até desaparecer completamente dos olhares e se
metamorfosear em rochedo. Subsiste apenas a sua voz. (CARMÉ, 2008,
p.06)
Por sua insensibilidade com Eco e com as outras ninfas, Narciso foi
condenado a encontrar o amor e não ser correspondido. Isto acontece no dia em
que Narciso, ao ver a própria imagem refletida em uma fonte, se apaixona. Ao
descobrir que não era correspondido começou também a definhar, buscando, sem
conseguir, entrar em contato com quem via (no caso, ele próprio), chegando a
morrer. De acordo com a narrativa que no lugar de sua morte brotou uma flor, muito
bela, que recebeu o nome de Narciso.
No mito, revela-se que Eco não fala, Narciso não escuta, inexistindo diálogo
entre dois. Narciso caracteriza-se por não escutar. O significado da escuta extrapola
a capacidade auditiva, significando estar também aberto à fala do outro.
Tanto para Eco, quanto para Narciso, seu agir ingênuo e desprovido de
autocrítica é um obstáculo à relação comunicativa, o que leva ao desaparecimento
de qualquer forma de interação.
Em analogia ao mito de Eco e Narciso, percebe-se que Ana, ao resgatar a
relação que teve com seus professores à época do Ensino Médio e do Curso
Superior, reflete sobre sua postura enquanto professora:
Na faculdade eu me lembro de uma coisa que me mostrou que muitas
vezes nos cometemos erros, atrapalhando o aluno. Na faculdade eu tinha
uma professora de inglês que era surda que tinha a dicção já prejudicada e
isso prejudicava o aluno que estava na minha situação. Isso ajuda a
perceber que às vezes podemos prejudicar os alunos. Eu tinha vindo de
escola pública e desde o início queria ser professora de inglês e não tinha
tido a oportunidade de fazer cursos de inglês fora da escola. O fato de a
professora ouvir com aparelho e ter dificuldade de pronunciar as palavras,
até pelo volume da voz, me prejudicou muito e isso me mostrou que tipo de
professora eu seria: como eu poderia auxiliar o outro e como eu poderia até
destruir o sonho dos alunos. Esse foi um fato marcante. [...] Eu me lembro
daqueles professores que me atrapalharam, como o professor de
matemática que gritava quando eu ia até a lousa para aprender sistemas,
dizendo “deu galho no seu sistema!”.
85
A dicção (fala) da professora reflete a voz de Eco que não é ouvida; o
professor de Matemática, o diálogo interrompido. Os professores que Ana teve,
centrados em si próprios, fizeram-na considerar sua própria atuação em relação aos
seus alunos, direcionando seu fazer no sentido de não mais repetir tais falhas.
Eu acho importante que você reveja os fatos que aconteceram lá atrás e
direcione seu trabalho: no que foi bom para você e que fatos importantes
direcionem seu caminho mais certo. Resgatar o que o professor de
Matemática fez comigo é algo que faço sempre, para refletir que não devo
incentivar o erro, acho que a gente é fruto conseqüência daquilo que
aconteceu conosco [...].
Ana volta ao passado para tomá-lo, como referência, em sua atuação, no
presente, e localiza, nesse mesmo presente, o modelo que direcionará seu trabalho
futuro: o professor coordenador, conduzindo o caminho dos docentes, representa
Narciso admirado por Eco.
Ao citar que os alunos percorrem caminho determinado no aprendizado da
língua inglesa, Ana destacou que sua concepção de ensino/aprendizagem é
pautada em ideias organizadas e modelos pré-estabelecidos. Resgatando sua fala,
percebe-se que Ana citou, por diversas vezes, a existência de modelos que
direcionaram seu agir enquanto docente. Esse posicionamento de Ana foi
confirmado, no momento em que a entrevista atingiu a fase de Iniciação, onde ela
apresentou, seu olhar sobre os conceitos de “interdisciplinaridade” e
“contextualização”, no Ensino Médio:
Nesta escola, tive a oportunidade de trabalhar com os conceitos de
interdisciplinaridade e contextualização; o material está todo voltado para
isso. O “caderninho” (proposta curricular) tem propiciado atividades que
foram realizadas junto com o professores de geografia, de artes, com
português. O professor se ao apropriando desses conceitos melhoraria a
prática.
O excerto, acima apresentado, indica a relação estabelecida por Ana entre o
material (“caderninho”) da Proposta Curricular (implementada em 2008 no Estado
de São Paulo) e os conceitos de interdisciplinaridade e contextualização. Tanto ela,
como os demais professores, relatam, em suas falas, o trabalho com a nova
proposta curricular. Vale esclarecer que, a partir do ano de 2008, a Secretaria de
86
Estado da Educação de São Paulo adotou uma nova proposta curricular para as
séries do Ensino Fundamental e Ensino Médio. Composto por 76 livros, chamados
Cadernos do Professor, direcionados para todas as séries e disciplinas, o material,
dividido em bimestres letivos, contém a indicação dos conteúdos a serem
trabalhados pelos professores e das respectivas habilidades e competências a
serem desenvolvidas pelos alunos.
Ana complementa que, para realizar um trabalho que enfoque os conceitos de
interdisciplinaridade e contextualização, deva existir um ponto de partida, centrado
na atuação do professor coordenador:
Acho que o trabalho tem que começar de coordenação, que tem que
mostrar para gente como funciona isso, como você pode fazer isso, pois
muitas vezes a gente não faz, pois não sabe como se pode fazer esse
trabalho. Solitariamente os professores até fazem, mas quando a gente
percebe que há uma coordenação as coisas são melhores. Você só
aprende estudando sobre a interdisciplinaridade. Aqui na nossa escola o
trabalho vai muito bem, pois nos temos a Suely (Professora Coordenadora)
que nos ajuda muito. Por que na escola particular as coisas funcionam?
Porque sempre tem muita gente te cobrando, envolvido, te mostrando como
se faz. Aqui na escola a gente faz, tem professores bastante envolvidos, e a
gente vai perguntando e caminhando.
Ao se referir aos conceitos de interdisciplinaridade e contextualização, Ana os
vê como modelos eficazes que melhorariam a prática pedagógica e que deveriam
ser ensinados aos professores, através de uma metodologia centrada na repetição
de técnicas passíveis de serem aprendidas. Por esse motivo, depreende-se que Ana
não conseguiu apresentar um conceito próprio de interdisciplinaridade e
contextualização, uma vez que apresenta a necessidade de um interlocutor que
“mostre o caminho a ser percorrido” e, não um mediador que coordene uma prática
decorrente da ação de sujeitos coletivos.
Carmé (2008, p.1) aponta que o encontro formador/ “sujeito-se-formando”
revela histórias emaranhadas de formações identitárias profissionais, a desconstruir
e a produzir, num sistema de transmissão-construção de saberes por alternância e
que o engajamento, o compromisso, como obrigação de dar, de receber e de
devolver, constituem a garantia de um laço social sempre a reconstruir, a tecer. A
dialética engajamento/desengajamento é encarnada pelo personagem mítico Eco, a
partir de tomadas e de largadas, de apropriação e de renúncia, “sem que se possa
87
conceber a separação desses dois pólos emaranhados e co-existindo um para o
outro” (ibidem,p.01).
Mais uma vez a narrativa da professora se remete ao amor de Eco por Narciso:
a professora localiza a figura do professor coordenador como ponto de referência
para seu fazer-docente, assim como Eco idealizava Narciso. Porém, se entre
professor e coordenador se estabelece uma relação de via única, sem troca de
experiências, corre-se o risco de surgir um comportamento mais voltado à
dependência e à submissão do que à autoria e à construção de sua própria prática.
Neste caso, o professor tende a ecoar apenas modelos e ideias concebidas por
outrem, sem perceber a beleza própria de sua prática pedagógica. Eco, condenada
à dependência da palavra do outro, à heteronímia, é o ser fragilizado pela falta de
autoestima e ausência de discurso próprio, que ecoa apenas o que é proclamado
por terceiros. Nessa dependência reside a vulnerabilidade, ao buscar a aprovação
do outro.
Segundo Furlanetto (2001, p. 13), a escola é uma instituição onde existe muito
pouco diálogo e onde o discurso pedagógico contempla, na maioria das vezes,
monólogos que se justapõem, porém não se articulam. A comunicação entre os
pares exige o exercício de caminhar entre duas polaridades: o abandono do lugar de
Narciso, preso a sua própria imagem, e o de Eco, personagem também presente no
mito grego, incapaz de pronunciar suas próprias palavras, capaz somente de ecoar o
outro. Circulando por essas polaridades, ao invés de se fixar em uma delas, além de
ecoar apenas o professor coordenador, Ana poderia “olhar sua própria imagem,
perceber sua beleza, relacionar-se criativamente com o conhecimento e pronunciar
suas próprias palavras” (ibidem, p. 14).
Embora Eco tenha sido severamente punida, vimos com que tenacidade ela
resiste à amputação de uma parte dela mesma, esperando pacientemente e
espreitando a oportunidade de dizer com as palavras de Narciso palavras
que lhe permitam declarar-se, e com que presença de espírito ela aproveita
a oportunidade que se oferece a ela de poder personalizar o sentido de
suas respostas (CARMÉ, 2008, p.4).
Entretanto, mesmo que a narrativa de Ana aponte dependência e submissão às
ideias transmitidas pela Professora Coordenadora Suely, é impossível ouvir seu
ecoar sem considerar que ela carrega consigo aquilo que vivenciou e que imprimiu
marcas em sua história de vida:
88
Depois vi que o magistério era mesmo o meu caminho, é o que eu gosto de
fazer, senão já teria saído dele. Isso me serviu como lição de vida para
direcionar a vida dos meus filhos, o meu filho fez cursinho, hoje estuda na
USP, ele pode até falar: “minha mãe que me estimulou”, e sempre mostro a
importância de escolher a profissão porque você quer e não pela condição
que a vida te dá [...].
A consciência de engajamento/desengajamento emerge na dimensão estética
da educação: Ana tem de ser Eco para deixar emergir a beleza do trabalho de
Suely, a Professora Coordenadora. Tem de ser Narciso para, na inspiração de seu
trabalho, mostrar aos seus alunos a beleza e o sentimento de aprender uma nova
língua.
Ana deve alargar a sensibilidade, ao ponto de saber dimensionar a ação no
tempo vivido, “optando por uma visão visionária, por uma visão clarividente,
cuidando do sentimento não destituído de pensamento, abrindo roteiros não
rotineiros” (PERISSÉ, 2009), no exercício da docência.
3.2.2 Lilian, o mito de Ártemis:
Lilian, professora de Português da E.E. “Loureiro Junior”, em sua narrativa, nos
trouxe grande proximidade com a deusa Ártemis, acompanhada por crianças/jovens,
seus filhos/alunos, como a deusa seguida e admirada pelas Ninfas.
Para fundamentar tais reflexões, resgata-se a história da deusa Ártemis
(Diana).
Da união de Zeus com Leto, nasceram os gêmeos Ártemis (Diana) e Apolo,
frutos de uma gravidez penosa e um parto muito difícil.
Grávida de Zeus, e sentindo estar próxima a hora do parto, Leto buscou um
local onde os filhos poderiam nascer. Hera, porém, enciumada com o amor entre
Zeus e Leto, proibiu a terra de acolher a parturiente. Com medo da cólera da rainha
dos deuses, nenhuma região ousou recebê-la. Então, a Ilha de Ortígia, que não
estava fixada em parte alguma e não pertencia à Terra , não tendo o que temer ,
abrigou a amante de Zeus e, em Delos, abraçada a uma palmeira, Leto,
contorcendo-se em dores, esperou nove dias e nove noites pelo nascimento dos
gêmeos, pois Hera, prendera no Olimpo a deusa dos partos, Ilítia.
89
Brandão (1987, Vol. II, p. 58) aponta que Ilítia, “tendo cruzado a perna
esquerda sobre a direita, fechara o caminho” da parturiente. As outras deusas, tendo
à frente Atená, estiveram ao lado de Leto, mas nada podiam fazer, sem o
consentimento de Hera e a presença de Ilítia. Assim, decidiram enviar Íris,
mensageira, sobretudo das deusas, ao Olimpo com um presente "irrecusável" para
Hera, outros dizem que para Ilítia: um colar de fios de ouro entrelaçados e de âmbar
com mais de três metros de comprimento. Hera consentiu que Ilítia descesse até a
Ilha de Delos. De joelhos, junto à palmeira, Leto deu à luz, primeiro, Ártemis e,
depois, com a ajuda desta, Apolo. Vendo os sofrimentos por que passara sua mãe,
Ártemis jurou jamais casar-se.
Conforme Brandão,
O caráter virginal da deusa não a impedia de velar também sobre a
fecundidade feminina. Deusa dos partos eram-lhe consagradas, em
Bráuron, as vestes das que faleciam ao dar à luz. Com o título de JWUÔO-
CQÓCTOÇ (paidotróphos), "a que alimenta, a que educa a criança",
acompanhava particularmente as meninas em sua fase de crescimento. As
noivas, à véspera de seu casamento, ofereciam-lhe uma mecha de cabelo e
uma peça do enxoval, para implorar-lhe proteção e fertilidade. Por estar
ligada ao matrimônio, Ártemis é, por isso mesmo, uma portadora das
tochas, atributo duplamente seu, porque a deusa será identificada com
Hécate, com o epíteto de phosphóros, "a que transporta a luz", tornando-se
como aquela uma divindade infernal. Com o título de selasphóros, "que leva
a luz", será igualmente identificada com SelÇnh (Seléne), a Lua, a Φoi/bh
(Phoíbe), Febe, "a brilhante", como seu irmão Apolo é Φoïbo$ (Phoîbos),
Febo, "o brilhante". (BRANDÃO, 1987, Vol. II, p. 69)
Leto sempre foi muito amada pelos filhos, que sempre buscaram defendê-la e
vingar-lhe as injúrias sofridas.
Ártemis foi definida como uma "divindade do exterior", que vivia na natureza,
percorrendo campos e florestas, junto aos animais que neles habitam. Era
considerada a protetora das Amazonas, guerreiras caçadoras independentes do
jugo dos homens. Deusa da caça e da lua, é representada com vestido curto
pregueado, com os joelhos descobertos, à maneira das jovens espartanas. Como
Apolo, carregava o arco com o qual atirava setas temíveis e certeiras. Como deusa
da lua, empunhava tochas e, por vezes, em sua cabeça é representada a Lua
90
coroada de estrelas. Andava acompanhada pelas ninfas, percorrendo selvas e
montanhas.
[...] pode-se concluir que houve, na realidade, duas Ártemis: uma asiática,
cruel, bárbara, sanguinária, bem dentro dos padrões da mentalidade
religiosa de uma Grande Mãe oriental; outra européia, cretense, ocidental,
voltada, como se há de ver em seguida, para a fertilidade do solo e da
fecundidade humana, o que denuncia uma Grande Mãe creto-micênica,
quer dizer, minóica e helênica. A Ártemis ocidental estava, pois,
estreitamente vinculada ao mundo vegetal e à fertilidade da terra.
(BRANDÃO, 1987, Volume II, p. 68)
A narrativa de Lilian se aproxima do mito de Ártemis, na medida em que ela
apresenta, na entrevista realizada, fatos presentes em sua história de vida que
permitem aproximações com a história da deusa.
Na figura de Ártemis, a “saia curta cor de açafrão” conferia-lhe “a liberdade de
se conduzir segundo a sua própria conveniência” (ALVARENGA, 2007, p. 238).
Lilian, em sua narrativa, demonstrou ter pleno domínio do curso de sua vida, em
momentos de constante ir e vir, observar e atacar, acertar o alvo sem desviar-se do
seu foco. É a mesma atitude da deusa caçadora, dotada de “arco e flecha”, que
toma nas mãos seu destino e executa o movimento de avançar em sua carreira
profissional, recuando-a nos momentos de zelo e cuidado das filhas, retomando sua
estratégia, objetivando o alcance do cargo efetivo.
Depois de formada trabalhei na escola particular, até 1990; interrompi minha
atuação em alguns momentos, por exemplo, fiquei afastada quando minha
primeira filha nasceu, em 1994; voltei a lecionar na rede púbica; parei por
mais um tempo quando tive minha segunda filha, passando por várias
escolas até me efetivar.
De acordo com Brandão (1986), a deusa caçadora é o protótipo da divindade
que desconhece obstáculos. Embrenha-se nas florestas, segue em busca de sua
presa. Vigorosa e destemida, a irmã de Apolo traduz qualidades idealizadas por
mulheres ativas que não levam em conta as opiniões masculinas. (ibidem, 1987,
Volume III, p. 349). Um de seus maiores obstáculos, o do próprio nascimento,
aparece como um dos pontos de convergência com a marca familiar de Lilian, que
contou:
91
A família era grande e eu tenho uma sobrinha com um ano a menos que eu.
Tive uma fase em que eu não queria ir para a escola, pois eu perdi a
primeira série, quando descobri que era filha adotiva e dizia para minha mãe
que eu não precisava mais estudar e que ela não era minha mãe mesmo.
Tal passagem revelou o sofrimento vivenciado em sua infância, em analogia à
gestação e parto difíceis que trouxeram Ártemis e seu irmão gêmeo ao mundo. A
descoberta da condição de filha adotiva fez com que, por certo tempo, ela negasse
as orientações de sua mãe. A descoberta dessa condição teve de ser gestada em
seu interior e, em decorrência desse processo dolorido, nasce um profundo amor e
reconhecimento pela mãe (como de Ártemis e Apolo por Leto), o qual se estende em
direção às filhas e aos alunos:
Em minha vida pessoal, encontro marcas que me fizeram chegar a esse
ponto. Minha mãe, por exemplo, embora faça vinte e quatro anos que ela
tenha falecido, eu a vejo todos os dias comigo. Minha mãe era professora:
foi a primeira professora rural, em Minas Gerais, em Ouro Fino, numa
cidade minúscula. Ela dizia que ensinar é a coisa mais gratificante do
mundo: então, todas às vezes que eu vou dar aula, eu me lembro dela.
Outra marca muito forte são as minhas filhas: eu trato meus alunos como eu
gostaria que tratassem minhas filhas. Eu não agrido, paro, respiro, e digo
que da mesma forma que eu os respeito, eu exijo respeito por parte deles.
Eu trago minhas filhas para a sala de aula a todo tempo, trago para meus
alunos exemplos da minha vida, para que eles tenham como parâmetro
aquilo que eu vivenciei. [...] Quantas histórias vivas as mães e os avós têm
para contar... As marcas que vivi, estarei sempre passando para eles
(alunos).
A relação contígua com a sobrinha de mesma idade se aproxima da condição
de Ártemis, uma vez que Apolo e a irmã eram gêmeos. Conforme Brandão (1987,
Vol. II, p. 79), as mitologias e culturas primitivas sempre revelaram um interesse
muito grande pelo fenômeno dos gêmeos, uma vez que eles exprimem
simultaneamente uma intervenção do além e a dualidade de todo ser ou o dualismo
de suas tendências, espirituais e materiais. O autor afirma que os gêmeos
simbolizam as oposições internas do homem e a luta que o mesmo deverá
empreender para superá-las: necessidade de abnegação, de destruição, de
submissão e de renúncia de uma parte de si mesmo, com vistas ao triunfo da outra.
92
Quando eu voltei para a escola, aos sete anos, encontrei minha sobrinha,
mais nova, na mesma série, ai eu percebi o quanto era importante estudar.
Daí para frente eu não parei mais. Eu sempre me dediquei, era a primeira
aluna, não por cobranças, mas porque eu queria que fosse assim. Tanto é
que minha sobrinha começou a ficar para trás [...].
Lilian resgata suas lembranças do início da escolarização, na 1ª série, quando
deixa de estudar por um ano e retorna à escola, após seu insucesso. Ao encontrar
sua sobrinha, mais nova, toma a decisão de esforçar-se para superá-la. A sobrinha
representa uma parte de si mesma, em situação idêntica, como uma relação entre
irmãos. A figura da sobrinha a ajudou a descobrir suas potencialidades e a
reconciliar consigo, no momento em que vivia um processo de desagregação,
conforme apontado por Brandão (1986),
A polaridade dos gêmeos é que ela mantém em si mesma "a promessa da
descoberta, da compreensão de si mesmo, tanto quanto a ameaça da
alienação e da desagregação". Se para Otto Rank os gêmeos configuram a
temática da oposição entre Narciso e o Espelho, o ser e o não-ser, a vida e
a morte, para Bachelard o homem tem igualmente no espelho "a revelação
de sua identidade e de sua dualidade-revelação da realidade e da
idealidade". (BRANDÃO, 1987, Volume II, p. 80)
Em sua narrativa, Lilian revelou determinação no exercício de sua função
docente, preocupada com sua atuação educativa na formação do caráter de seus
alunos:
Eu me formei muito jovem, com 21 anos. Em alguns momentos eu estava
muito convicta do que queria, outros não. Eu fui ser professora porque
acreditava. Eu tive uma professora de Língua Portuguesa, de Técnica de
Redação, chamada Maria Carmela que me disse: “Você tem o dom da
oratória, sabe convencer as pessoas daquilo que você quer”. Minha mãe
sempre me dizia isso e apontava qualidades, mas eu precisei de alguém de
fora para me mostrar isso, habilidades que eu tinha, mas que minha mãe
apontava e eu não aceitava. Quando eu fui para a faculdade eu descobri
que era aquilo que eu queria: que iria aprender para ensinar alguém.
Ensinar é algo difícil: mostrar para os outros que eles estão certos ou
errados, é algo complicado. Você consegue mudar o mundo ou destruir o
mundo. O nosso poder é tão grande e as pessoas não percebem isso. Nós
(enquanto professores) estamos mexendo com a cabeça de adolescentes,
principalmente no Ensino Médio, e muitos não se dão conta do quanto
93
podemos ser manipuladores. O professor é egocêntrico, gosta de estar
sempre na frente de tudo. Escolhi essa profissão porque tenho nas mãos
um poder de mudança e cumpro meu papel enquanto cidadã. Mas é difícil
trabalhar em equipe, pois ora você brilha, ora o outro brilha, e às vezes
ninguém brilha, e é o momento de retomar.
Tal como a deusa Ártemis, que era seguida por suas ninfas, Lilian apontou
momentos em que era procurada por alunos e seus familiares, apresentando-se
como uma referência cujos conselhos eram seguidos:
Lembro de um aluno nosso, chamado Raul, que estava fazendo engenharia
na FAI e que fez apenas quatro meses, saiu da faculdade, e foi fazer
gastronomia. Esse aluno trouxe seu pai para conversar comigo, alegando
que eu era uma pessoa ponderada, e eu perguntei ao aluno se era isso que
ele queria e ele disse que sim. Eu disse ao pai que era melhor ele ser um
chefe de cozinha feliz do que um engenheiro frustrado, que iria vender
pastel na feira. Quando eu falo isso para os terceiros anos de agora, eles
dão risada, mas depois discutimos. Querendo ou não são marcas que
deixamos nos alunos e eu insisto no poder que o professor tem sobre os
alunos e muitas vezes não se dá conta.
A rigidez da razão é substituída pela estética do sabor. Ártemis simboliza a
“luta interior contra a violência, a brutalidade realidades impeditivas no
desenvolvimento das potencias inatas” (ALVARENGA, 2007, p. 239), em defesa
daqueles que se vêem esquecidos da busca de si mesmos.
A forma como Lilian conduz sua fala, novamente, aproxima-se da deusa
Ártemis, citada por Brandão (1987, Vol. II, p. 349), que, como deusa da caça e da
lua, a personificação da total independência do espírito feminino, capacita a mulher
a buscar seus objetivos em terreno de sua livre escolha. Esta deusa confere à
mulher uma habilidade inata para, através da competição, afastar de seu caminho
aqueles que desejam embargar-lhe os passos. Ao relatar sobre a liberdade de
atuação que vê no exercício de sua função na escola pública, Lilian comenta:
Sinto que a escola particular suga você demais, até pode pagar bem, mas
você não tem direito de vida: a rede pública dá mais liberdade de atuação.
Estudei nesta escola em que estou agora; conto com 14 anos de atuação
na rede pública.
94
Sobre os conceitos de interdisciplinaridade e contextualização, Lilian
argumentou:
Aqui na escola temos e não temos discutido a interdisciplinaridade. Sim,
temos discutido nos HTPC‟s onde nós “brincamos” de trocar figurinha. Há
alguns anos atrás era bonito falar: “Vamos fazer projetos interdisciplinares!”
e, no final, descobríamos que não tínhamos feito projeto nenhum, e sim
jogado uma série de informações no aluno e este tinha ficado perdido.
Desde que a Suely (Professora Coordenadora) está aqui, temos discutido
até que ponto temos desenvolvido a interdisciplinaridade de verdade e
descobrimos que podemos trabalhá-la a partir de um filme, um texto, e não
somente por um projeto gigantesco. O professor de Geografia trabalha um
filme e o professor de Português também discute. A contextualização
fazemos a partir dessa discussão, a gente conversa com o aluno, em todas
as aulas, o que o professor falou e trazido para o dia-a-dia, fazendo com
que o aluno trabalhe assuntos em diferentes disciplinas e assim acaba
fazendo a interdisciplinaridade.
Lilian olha para os conceitos de interdisciplinaridade e contextualização como
recursos facilitadores para trabalho integrado entre docentes, porém dependentes
do uso de uma linguagem comum. Para examinar a possibilidade de um trabalho
interdisciplinar e contextualizado, Lilian utiliza uma lente que a permite vislumbrar
ritos de fecundidade, representados por práticas pedagógicas comuns entre ela e
seus pares, bem como entre a sua e as demais disciplinas do currículo escolar.
Para mim a interdisciplinaridade e a contextualização melhoram a prática. O
aluno se vê de forma compartimentada, e sabemos que não é assim. Com a
contextualização ele percebe que não: o professor de Geografia ensinou a
professora de Português a ler mapas; em Português eu leio gráficos, não só
em Matemática. O aluno aprende através de relações entre tudo o que
estão aprendendo. O contato com os pares para desenvolver a
interdisciplinaridade é fundamental. O colega tem que estar disponível para.
Até o aluno questiona: “Mas o trabalho vai valer para todas as disciplinas?”.
Aí vamos explicando a contribuição de cada disciplina ao aluno. Os pares
têm que estar integrados, acabam falando a mesma língua. Mesmo que os
critérios e as posturas sejam diferentes, é importante mostrar ao aluno o
porquê desse trabalho, qual o seu objetivo.
Lilian procura relacionar-se com seus colegas, mostrando-lhes a importância
de dar à luz atitudes protagonistas, enquanto sujeitos de sua história de vida, bem
95
como estender tais atitudes à prática pedagógica, almejando vislumbrar novas
atitudes em seus alunos. Deusa determinada, de atitudes práticas e simples,
privilegia a relação com as pessoas, em detrimento da impessoalidade. Dotada de
autonomia, age como líder, “gosta que seus tutelados estejam adequados ao seu
modo de estar no mundo e também de aconselhá-los” (ALVARENGA, 2007, p. 248):
Sempre falo: “nós somos protagonistas da nossa vida e da nossa história,
daqui cinquenta anos alguém vai discutir o que fizemos e julgar se foi bom
ou ruim.” Tenho muitas experiências e trago todas elas para a sala de aula,
é claro que dentro de um contexto. [...] Para eu discutir com alguém eu
preciso saber sobre aquilo que estou falando e ter vivência daquilo: são as
benditas marcas, há 22 anos dando aula, eu tenho de ter aprendido alguma
coisa. Só conseguimos fazer isso sendo honestas, mostrando ao aluno que
você gosta daquilo que você faz, pois para ser professor hoje no nosso país
é muito fácil: se você é engenheiro tem direito de dar aulas de Matemática,
biólogo marinho pode dar aulas de Biologia, mas para ensinar Português
você tem que fazer Letras, você tem que gostar de dar aulas, tem que fazer
licenciatura.
Serena luz, Ártemis, seguida por uma corte de Ninfas, desperta em seus
seguidores o respeito à vida interior e aos limites da natureza humana, transmitindo
seus valores às futuras gerações.
3.2.3 Renata, o mito do canto das sereias
A terceira professora entrevistada foi Renata, que à semelhança das duas
primeiras, também cursou Letras em sua formação inicial. Relatou, inicialmente, seu
gosto pela leitura e destacou que, em sua trajetória de vinte e um anos de
magistério, sempre buscou freqüentar cursos, a título de aperfeiçoamento de sua
prática:
Durante esse tempo, fiz alguns cursos de formação continuada, como o
PEC, Teia do Saber (por três anos), Africanidades (no ano passado), fiz o
“Ensino Médio em Rede”, pela escola. Não fiz mais porque não surgiram
oportunidades. Acho muito importante participar de cursos, primeiro pela
troca de experiência, pois quando você está com outros professores, de
outras escolas, a troca é importantíssima: você troca o que sabe com os
outros colegas, descobre realidades que você não imagina, e se aprende
96
muito mais nesses cursos do que na formação inicial, como
aperfeiçoamento.
Estar com os outros professores e conhecer realidades de outras escolas
representam situações de partilha de espaços (auto) biográficos. Renata resgata a
possibilidade oportunizada pelo curso “Teia do Saber” de resgatar sua trajetória e
suas vivências, destacando que:
Cada história de vida marca a pessoa de alguma forma e acaba por
interferir na sua vida profissional, sempre. Conhecer a história de vida
melhoraria a prática pedagógica, pois a troca de experiência é sempre
importante, às vezes, ele (colega) tem uma história parecida com a sua e
você nem imaginava, e ele conseguiu superar algo e você pensa: “Nossa, é
possível fazer isso”. Às vezes o aluno tem uma vivência parecida e você
não sabe como chegar até o aluno.
A chance de, num programa de formação continuada, realizar um mergulho em
sua vivência dotou Renata de clareza, quanto à influência de uma de suas
professoras (do curso Ensino Médio), na determinação de sua escolha profissional:
Uma pessoa que influenciou minha escolha profissional foi uma professora
de literatura que tive, ainda no Ensino Médio, que tinha uma paixão tão
grande para ensinar para gente, que me fascinava, eu gostava de viajar nas
histórias. Eu gostava de ler, mas não me envolvia tanto. Com a paixão que
ela transmitia pra gente, eu comecei a descobrir o encanto pela literatura.
Ela vivia isso: chorava e se emocionava ao contar as histórias. Acho que
seu nome era Neide. Eu me descobri ali, onde tive o prazer de ler literatura,
e foi a partir disso que decidi fazer Letras. Antes eu lia qualquer coisa que
caía nas minhas mãos, mas, com ela, aprendi a ler livros literários, li até
Balzac, que eu nem imaginava que existia, por causa de um comentário que
ela fez. Fui até a biblioteca e peguei o livro e o livro é fascinante mesmo.
Com esse meu gosto eu acabei até influenciando alguns alunos. Depois de
um tempo, cheguei até a encontrar alunos que se tornaram professores
devido à influência que exerci sobre eles: eles me disseram que eram
professores porque eu ensinava com paixão. Acho que foi muito importante
a professora que eu tive e a professora que eu me tornei.
O choro representa a emoção sentida que comove o outro, ao ponto de
encantá-lo. Renata se vê seduzida pelo prazer da leitura, como os pescadores
seduzidos pelas sereias, através do canto que fascina. E esse fascínio é ampliado,
97
no decorrer de sua vida acadêmica, evidenciado pela sua afirmação: na faculdade
tinha ótimos professores e o que a fascinava era o conhecimento de seus
professores:
Eu pensava: como alguém pode guardar tanto. Agora, estimulo meus
alunos. Quando peço um livro para leitura, conto uma parte a história e isso
os estimula, deixando-os curiosos para continuar a leitura da obra.
Brandão (1987, Vol. III, p. 310) aborda o mito e a simbologia das sereias, meio
mulheres e meio pássaros ou com a cabeça e tronco de mulher e peixe da cintura
para baixo, que se tornaram demônios marinhos capazes de atrair e prender os
homens para devorá-los. Explica que, em sua etimologia, o termo SeirÇn(Seirén),
sereia, provém certamente de seir£ (seirá), "liame, nó, laço, cadeia". Hábeis
cantoras, cantavam para encantar, simbolizando a sedução mortal.
Mãe D‟água, mito representado na tradição africana impressa na cultura
brasileira, aparece na literatura, na obra “O tronco do Ipê”, de José de Alencar
(1871), onde a personagem Alice é levada pelo torvelinho de água, e Mário
"descendo a prumo ao fundo do abismo", luta imperiosamente para retirá-la:
O menino estorcia-se dentro d'água. Seu corpo parecia romper-se, como o
dorso da serpe quando se dilata para estringir a presa. A luta estava
indecisa. Às vezes acreditava-se que Mário ia triunfar, arrebatando a vítima
ao boqueirão; outras vezes o menino perdia a vantagem adquirida e
submergia-se ainda mais. Como era sublime essa cadeia humana que se
estendia desde a aba do rochedo até às profundezas do lago, com uma
ponta presa à vida, e outra já soldada à morte! Esses corações que se
faziam elos de uma corrente, grilhados pelo heroísmo, essa âncora
animada, sustendo uma existência prestes a naufragar, devia encher de
admiração e orgulho a criatura. (ALENCAR, 1962, p.99)
Sereia brasileira, Iara povoa o imaginário popular das comunidades ribeirinhas
dos igarapés. O mergulho, motivado pela sedução do canto e das lágrimas da
professora, conduzem à morte pela água ou ao renascimento de sua aluna?
O contato com a água comporta sempre uma regeneração: por um lado,
porque a dissolução é seguida de um "novo nascimento"; por outro lado,
porque a imersão fertiliza e multiplica o potencial da vida. (MIRCEA
ELIADE,1991,p.110)
98
Na certeza de que a vida é ampliada por meio do conhecimento e a morte, da
consciência ingênua, seu é saber fertilizado e multiplicado; o esforço de Renata fez
com que o valor do estudo fosse reconhecido pelas diferentes gerações de sua
família:
Na minha vida familiar não encontro nenhuma marca, pois meu pai era
analfabeto e minha mãe só tinha o ensino fundamental, então eles não me
incentivavam: o importante era trabalhar. Quando eu ficava lendo, diziam:
“Você vai ficar lendo para quê? Leitura não dá dinheiro”. E eu disse para
minha mãe que um dia iria dar. Quando eu me formei aquilo se reverteu:
eles ficaram muito orgulhosos, e aí mudou. O reconhecimento surgiu da
conquista realizada. Meu sobrinho fala todo orgulhoso: “minha tia é
professora”.
E a água, fonte de vida que jorra e multiplica, expande-se ao atingir seus
alunos, dando continuidade ao ciclo de encantamento:
No ano retrasado, tive um aluno da Suplência, com 70 anos de idade, que
valeu toda a minha carreira. Como eles (alunos) não liam, eu propus um
trabalho em grupo e disse que eles seriam obrigados a ler. No final do
trabalho, esse aluno veio me agradecer me disse: “Professora, com 70 anos
eu nunca tinha lido um livro na minha vida. Esse foi o primeiro e com ele
descobri o quanto é bom ler”. E ele me disse que iria continuar lendo, não
sei por quanto tempo e isso foi muito gratificante: marcar a vida de alguém.
Enxergar possibilidades de práticas interdisciplinares e contextualizadas, para
Renata, só é possível através da figura da Professora Coordenadora, que, tal qual
Mãe D‟água, pelo convencimento “acaba trazendo os outros professores” e atando
laços que amarram o trabalho de todos:
No “Ensino Médio em Rede”, participei das discussões sobre
interdisciplinaridade e contextualização. Aqui na escola temos discutido
muito sobre esses temas: normalmente montamos projetos aqui na escola e
usamos a interdisciplinaridade sempre, que é super importante, até por
conta da Coordenação, que auxilia bastante, vai amarrando nosso trabalho.
A Professora Coordenadora acaba trazendo os outros professores e aí
acaba funcionando por conta disso. Discutir sobre interdisciplinaridade e
contextualização melhora a prática dos professores, pois o professor tem a
tendência de se fechar na área dele, sabe, “eu sou de Português, deixo de
ensinar história, geografia, ciências”, mas não é nada disso. Quando você
99
discute tais conceitos, você passa a perceber que esses conhecimentos
fazem parte da outra disciplina e você começa ajudá-lo também, pois ele
passa a se interessar mais. E os outros professores que estão muito
fechados passam a se abrir mais, e isso é muito importante.
Renata enxerga áreas de conhecimento, antes compartimentadas, que agora,
interagem com outros saberes, surgindo espaços de intersecção entre disciplinas do
currículo escolar, por meio da comunidade de comunicação estabelecida entre seus
pares. Pescador e rede seduzidos pelo doce e atraente canto da sereia...
3.2.4 Gabriel, o mito de Hermes
Gabriel foi o quarto professor entrevistado, o único que possuía formação inicial
diferente das demais professoras que participaram da pesquisa:
Tenho formação em Administração de Empresas, dei aulas por quatro anos,
mas eu gostava mesmo de Arte. Em 2005 resolvi fazer um novo curso, de
Educação Artística. Estudei na UNICSUL fazendo a licenciatura, e ao
mesmo tempo fazia a formação de professores de Matemática. Já trabalho
há três anos com a disciplina de Educação Artística.
Durante a entrevista, Gabriel resgatou suas memórias da época em que
estudava, destacando-se como o único dos quatro filhos que teve interesse em
continuar os estudos. O inicio da atividade profissional, como office-boy, deu-se
muito cedo, por volta dos quinze anos. Quando vivenciou uma situação de
desemprego, aos fazer carreira na área administrativa, iniciou a atividade docente,
ministrando aulas de Matemática, em caráter provisório:
Eu fui dar aulas de Matemática e adorei. Percebi que eu sempre tive muito
medo dos professores de Matemática e a garotada não tinha esse medo.
Tínhamos um bom relacionamento e eu passei a ter um certo encantamento
por isso. Trabalhava à noite, a equipe da escola era muito boa e eu gostei.
Daí com o governo Covas, houve a exigência dos professores terem
formação pedagógica, num curso preparatório, pois eu lecionava em caráter
excepcional.
Diante do impedimento legal de atuar na esfera educacional, passou a
trabalhar com pintura decorativa de paredes e a criar técnicas de pintura, a partir de
100
conhecimentos adquiridos num curso técnico. Durante a realização de um trabalho,
num apartamento próximo à região do bairro Anália Franco (Zona Leste de São
Paulo), ouviu no rádio que uma universidade próxima oferecia o curso de
Licenciatura em Educação Artística e resolveu se inscrever.
Tal capacidade de lidar com problemas e superar obstáculos, demonstrada por
meio da narrativa de sua história de vida, permitiu aproximar Gabriel à figura mítica
de Hermes, o deus mensageiro. Maria Zélia de Alvarenga (2007, p. 266), ao citar as
principais características de Hermes, associa, à figura mítica, a característica da
mente aberta para considerar novas ideias e possibilidades: “a vida é uma sucessão
de planos e projetos. As dificuldades são estímulos para si. (ibidem, p. 266)
Filho de Zeus e de Maia, Hermes (Mercúrio) nasceu numa caverna do monte
Cilene, ao sul da Arcádia. Apesar de enfaixado e colocado no oco de um salgueiro
(árvore sagrada, símbolo da fecundidade e da imortalidade), o menino revelou uma
precocidade extraordinária, pois, no mesmo dia em que veio à luz, libertou-se das
faixas (demonstração clara de seu poder de ligar e desligar) viajou até a Tessália,
onde furtou uma parte do rebanho de Admeto, cujo guardião era Apolo.
Divindade complexa, com múltiplos atributos e funções, Hermes mensageiro,
filho de Zeus, é o dispensador de bens. Sua figura está ligada ao deus agrário,
protetor dos pastores nômades indo-europeus e dos rebanhos, com o epíteto de
Crióforo. Este deus é representado com um carneiro sobre os ombros. Alvarenga
(2007, p. 253) aponta que a marca característica dessa figura mítica é o movimento
e, em seu trajeto, “fatos e desafios repletos de potencialidades a serem atualizadas,
conteúdos a serem conscientizados, questões a serem analisadas e integradas, tal
como ocorre num processo de desenvolvimento, ou mais especificamente numa
linguagem junguiana, no processo de individuação” (ibidem, p. 253)
A mitologia grega destaca que Hermes regia as estradas, ao andar com incrível
velocidade, usando sandálias de ouro, e não se perdia na noite, por dominar as
trevas e conhecer perfeitamente o roteiro.
Para Mircea Eliade (1991, p. 109) destacam-se as faculdades "espirituais" do
deus: "Pois a sua astúcia e a sua inteligência prática, a sua inventibilidade (...), o seu
poder de tornar-se invisível e de viajar por toda parte em um piscar de olhos, já
anunciam os prestígios da sabedoria, principalmente o domínio das ciências ocultas,
que se tornarão mais tarde, na época helenística, as qualidades específicas desse
deus".
101
Exercendo a capacidade de olhar para si mesmo, Gabriel relata sua história de
vida que o põe em contato com a determinação de alargar seus horizontes,
querendo mais, ambicionando, ousando:
Meu pai e minha mãe eram semi-analfabetos. Meu pai tinha muita vontade
de estudar, mas meu avô não deixava, pela exigência do trabalho na roça.
Quando tinha um dinheiro comprava caderno e um lápis, mas quando meu
avô via, rasgava e jogava tudo fora para ele trabalhar na roça. Essa história
me marcou muito e me impulsionou a buscar o estudo e a estimular os
outros a estudar. Sempre tive muito respeito pela terceira idade, nunca
trabalhei com o EJA, mas tenho muito respeito pelos idosos, e ensino os
alunos a respeitarem seus avós, porque a gente vê tanta coisa ruim. Minha
vida foi sempre assim: sempre estive estudando ou fazendo alguma coisa
para dar aulas. Meus amigos não gostavam de estudar: eles perguntavam
“Você vai parar de estudar quando?”. Este ano que eu dei uma parada, pois
terminei a faculdade no ano passado, em 2007.
Gabriel conduz sua narrativa como o artista ancestral que reúne seus
materiais e com eles produz obras que se perpetuam pelos tempos. Consegue
reconhecer cada um dos elementos que, amalgamados, darão forma ao seu
pensamento, como ao relatar sobre a contribuição impar de cada um dos
professores no curso de Educação Artística:
Gosto de Matemática e de Arte: se eu tiver que optar por uma delas, minha
opção é a Arte. Na faculdade de Artes tive mais de um professor marcante:
o Paschoal, de teatro; a Solange, contadora de histórias; o Claudemir, de
multimídia, que abriu minha mente para outros trabalhos materializados; a
Sandra, mais da parte de didática; a Leda, de Psicologia. Traria do meu
curso o conhecimento das variadas linguagens (visual, música, cinema). A
faculdade me deu o alicerce para trabalhar com o lado da Arte, o
embasamento técnico da disciplina.
Sobre o fato de ter sido questionado sobre os conceitos de interdisciplinaridade
e contextualização, Gabriel novamente expõe o desenho mental que representa sua
compreensão sobre os temas:
Os conceitos de interdisciplinaridade e contextualização são discutidos nos
momentos de HTPC‟s. Falamos sobre a importância desses conceitos, de
como o aluno encaram e acabam tendo um interesse maior quando se
combinam as disciplinas, como um trabalho de mosaico que foi feito
102
englobando Arte, Matemática e História. Às vezes o trabalho passa
despercebido, mas as coisas não são soltas: existe uma ligação entre os
conhecimentos e conceitos e o quando o professor mostra essa ligação ao
aluno, aguça seu interesse. Uma disciplina depende da outra: até na cor,
para se chegar numa cor tem Matemática, para formar um mosaico, utiliza-
se as medidas e a forma. O conhecimento é único: todas as disciplinas são
importantes e não existem disciplinas mais importantes que outras. A Arte
não é uma disciplina secundária. Se eu achasse que a Arte é uma disciplina
secundária teria optado em ensinar Matemática. Gosto de Matemática, bem
mais de Arte, porque com a Arte posso ensinar Matemática. O trabalho com
interdisciplinaridade e contextualização coloca todas as disciplinas em
patamar de igualdade. É possível trabalhar com outras áreas de
conhecimento, fazendo-os perceber que através da ciência chegamos a
códigos, trabalhamos com linguagens, materializamos as ideias, tornamos
as ideias físicas. E também o oposto: desmaterializar para chegas as ideias.
Como pré-requisitos para o trabalho interdisciplinar temos: o bom
entendimento entre os professores (pares), a organização da escola
(horários quebrados não colaboram para isso), o trabalho de coordenação
(coordenador como articulador), o encontro dos professores nos HTPC‟s
(horários comuns).
Nada aparece de forma solta: Gabriel surge como Hermes em sua função de
transportar, de re-ligar, de unir os pedaços para materializar a mensagem que deve
ser transmitida. Clara é sua concepção sobre os conceitos de interdisciplinaridade e
contextualização, bem como seu entendimento sobre as condições necessárias para
que tais conceitos se processem no âmbito escolar. Ao citar que desenvolveu uma
atividade que resultou na figura de um mosaico, novamente, resgata o artista
ancestral que, através de sua obra, perpetua a cultura e a memória:
A palavra “mosaico” tem sido muitas vezes associada, etimologicamente, à
idéia de algo “feito por Moisés”, indicando seu caráter sagrado na tradição
judaico-cristã e seu auge no início da idade média em Bizâncio. No entanto,
este mesmo caráter sagrado se revela nas tradições mais ancestrais,
sobretudo, no mundo grego. Mosaico também pode ser interpretado como
aquilo que é “inspirado pelas Musas” (“musaicum”). Filhas de Mnemosine, a
deusa da Memória, e do próprio Zeus, são as musas as personificações das
artes... aquilo sempre a nos lembrar dos deuses (FERREIRA-SANTOS,
2009)
103
Recuperando pedaços da sua memória, consegue fazer algo novo, como
cimento, que faz o rejuntamento de pequenas peças de seu fazer – docente, ele
estabelece o diálogo entre professor e aluno:
Com relação ao relacionamento com os alunos, o meu modo de ser como
professor já trouxe do meu modo de ser na vida, desde a época de que era
professor de Matemática: como sou na vida, sou dentro da sala. Sempre fui
de bons amigos, imponho respeito pela amizade. Trouxe da minha vivência
pessoal e profissional, da época em que ensinava Matemática. Mas com a
faculdade de Artes tive um aprofundamento. Como obras marcantes
destaco as de Mondigliane, e sempre passo o filme “Mondigliane: paixão
pela vida” aos alunos, que tem uma história triste, mas dá uma outra visão,
pois os alunos estão sempre acostumados só com Van Gohg, Tarsila do
Amaral, Picasso, Almeida Júnior, e esse filme mostra o outro lado do artista,
conta uma história, mostra outros artistas, importante para o jovem se tocar.
Ao mesmo tempo em que passo o filme vou trabalhando alguns conceitos,
como o preconceito, a questão das drogas. Já na faculdade esse filme foi
marcante. Converso muito com os alunos sobre a necessidade de termos
esforço e perseverança. Eu me identifico mais com o Ensino Médio, pois
acho que eles são mais carentes: estão numa idade que eles se vêem mais
perdidos, não têm muito diálogo muito com os pais, mesmo na escola eles
não têm tanto contato e espaço com os professores, têm receio de se
aproximar, e é nessa brecha que eu me aproximo. Se eu noto que algum
aluno está triste, me aproximo. Mesmo os alunos que estão abaixo da
média, que não vão bem, sempre têm algum problema, seja ele familiar, ou
de relacionamento com os colegas. Uma “besteirinha”, para eles, é um
grande problema insolúvel, e para nós é um problema tão simples: é bater o
olho e um conselho já ajuda. Costumo sentar com os alunos, ao lado deles,
em pé de igualdade, orientando-os a dialogar com os pais. O ser humano
tem muita falta de diálogo. Esse problema trago por mim: eu sempre fui
muito tímido, tive problemas no campo profissional, quando trabalhava
ainda em empresa, pela comunicação que não se estabelecia. Dou espaço
para os alunos brincarem comigo, mas imponho respeito.
No diálogo estabelecido junto aos seus alunos, Gabriel consegue resgatar fatos
constituintes de sua própria história e colocá-los em ligação com a vida, com as
necessidades, com os anseios de seus alunos. Eterno questionador, ele contribui
para o bem comum ao mostrar-se inconformado com a situação dada. Mensageiro
que estende a mão e dá esperança àqueles mais necessitados:
104
Meu projeto inicial seria ensinar o povão, a classe popular, mais humilde, a
decorar a casa utilizando a cor, para destacar a importância que a cor tem
na vida da gente. Quando fiz um curso na Escola Paulista de Arte, achando
que com ele poderia dar aula, num dos semestres apresentei uma
monografia sobre a cor. O professor me elogiou muito pelo trabalho e fez
uma dedicatória para que eu nunca abandonasse esse sonho de levar a cor
para a vida do ser humano. Com os alunos eu trabalho esse tema, neste
ano ainda não trabalhei por conta da Proposta Curricular.
Nessa proposta de ação estética, conjuga circunstâncias desfavoráveis com
possibilidades concretas. Almeja desencadear processos de percepção, de
imaginação, de percepção da beleza da cor. Sensibilidade perante o belo, à
semelhança da estética cristã de Santo Agostinho, conforme nos apresenta Perissé
(2009) ao afirmar que:
Agostinho sabe-se fortemente atraído pela beleza. Sua sensibilidade às
cores é enorme. Refere-se à “regina colorum”, a luz, à rainha das cores,
como elemento dispersivo de suas atividades intelectuais e espirituais.
(PERISSÉ, p. 21)
Mas, para que consigamos agir concreta e criticamente, olho e mão devem
estar unidos, e Gabriel desperta, nos seus alunos, a percepção de que há sentido no
ato de apropriação da própria vivência:
Trabalhei a história de vida dos alunos a partir das atividades da Proposta
Curricular, que davam abertura para isso. Uma das atividades pedia para
escreverem o que viam no trajeto para a escola, numa primeira fase
relacionada à arte visual (grafite, mural de escola de samba). Depois foram
os sons, os sons que ouviam nesse trajeto. Daí percebi que a maioria ouvia
as conversas e os sons do trem, e que moravam muito longe da escola.
Essa valorização é muito importante, principalmente na participação da
comunidade na escola. A família precisa estar envolvida com a escola.
Gabriel, com sua sensibilidade, aproxima-se dos conceitos de
interdisciplinaridade e contextualização. Isso, certamente, deve-se à trajetória vivida,
encarnada por meio de seu mito pessoal de Hermes, conselheiro peregrino e
habitante dos caminhos. Mais ainda, como docente, resgata o sentido ético de seu
profissionalismo e de sua humanidade, em sintonia com seus pares:
105
Num momento de formação continuada junto aos outros professores, temos
espaço, nesta escola, para falar do aluno, surgindo a brecha de falarmos de
fatos pessoais, como a minha postura junto aos alunos. Qualquer ser
humano tem que aceitar e encarar a experiência vivida como aprendizado.
Todos têm na sua vida fatos positivos e negativos. O grande aprendizado é
tirar dos fatos negativos uma lição e trazer isso para os nossos alunos,
como um exemplo, para que eles não cometam os mesmos erros, e se eu
puder estar dividindo isso com os meus colegas, com os meus pares, é
ótimo, pois eles vão ter ao lado deles um exemplo vivo ao lado deles,
alguém que teve um aprendizado e está querendo expandir, e não guardar
somente para si. É muito egoísmo do ser humano guardar só para si
quando temos milhões e milhões de pessoas para dividir. Alguns alunos
sentem o professor muito afastado, com medo. Os alunos têm uma visão:
tem o professor que se aproxima mais e outros que se afastam. Esse
afastamento só prejudica o aprendizado dos alunos e o trabalho dos
docentes. Os professores precisam se aproximar entre si e dos seus alunos.
Eu sinto o meu trabalho facilitado com essa proximidade. Nunca tive
problema de um aluno ficar com nota vermelha comigo (porque fica) e
contestar, tanto na disciplina de Matemática quanto em Artes. Não tem bate-
boca por nota, eles se aproximam e dizem: “Eu errei!”. Tem diálogo, pelo
trabalho não entregue na data, pelo material não trazido. O professor acaba
conhecendo o aluno. Eles têm muitos problemas familiares. Adoro Paulo
Freire, foi um autor muito importante quando fiz a faculdade de Educação
Artística. Vygostsky também. Não tinha tido contato antes quando fiz
Administração. Também o autor Pedrosa, mineiro, que escreveu livros
fantásticos. É isso.
Educar pelo diálogo e declarar, com veemência, sua adoração pela pedagogia
de Paulo Freire. A finalização de sua narrativa não poderia ser melhor... “É isso!”
Simplesmente Gabriel, Hermes arauto de um novo tempo!
3.2.5 Silvia, o mito de Jurupari
A última professora entrevistada foi Sílvia, professora de Inglês da E.E.
“Loureiro Junior”, que iniciou sua fala, relatando sua formação acadêmica e
reconhecendo a influencia de sua professora de Inglês na escolha de sua carreira
profissional:
[...] fiz Letras, Português e Inglês, na Universidade Nove de Julho, e escolhi o curso
porque sempre quis, sempre gostei muito de Língua Portuguesa, depois caí no
106
Inglês, para completar o total de aulas, e acabei gostando. Fiz cursos na área e hoje
tenho mais habilidade com a Língua Inglesa. Isso porque tive uma professora na 5ª
série que eu admirava muito, porque ela falava muito bem, e me recordo até do
nome dela: Maria de Lourdes. Ela marcou demais a minha profissão; embora o
campo da educação seja difícil, eu não me arrependo e faria novamente.
A professora faz escolhas e toma decisões. Os seguintes princípios
aparecem, de forma pulsante, na narrativa de Sílvia: persistência, coragem,
vencimento da insegurança e do medo. Observa-se a figura da guerreira que luta
com todas as suas forças, na defesa dos ideais nos quais ela acredita, movida pela
vontade de vencer o medo e de suprir suas necessidades. Seu desejo de superação
é tão forte, que ela projeta suas realizações e conquistas, como uma bandeira de
luta pelo reconhecimento do papel desempenhado pela mulher, em nossa
sociedade, extrapolando o terreno da conquista pessoal:
A necessidade fez com que eu corresse atrás, estudasse, deixasse a
insegurança e o medo. Um professor da faculdade dizia: “Medo é pêlo
enraizado. Tem que arrancar esse pêlo”. Eu me lembro disso até hoje e isso
marcou muito a minha formação, os desafios. O próprio Ensino Médio, eu
saí da faculdade e peguei o Ensino Médio. Hoje eu trabalho também com o
fundamental, mas eu consigo me entender melhor com o médio, com os
alunos e com o conteúdo. [...] Tive muito apoio da minha irmã, pois minha
mãe não valorizava tanto os estudos, entendia que as mulheres deviam se
dedicar apenas aos afazeres domésticos. Eu já trabalhava desde os
quatorze anos, em escritório, tinha meu emprego, mas eu fui estudar porque
eu quis, pelo meu esforço próprio eu que paguei a minha faculdade, com
muita dificuldade. Minha irmã foi uma pessoa que me apoiou muito. Depois
que eu me formei, todos ficaram muito orgulhosos, pois eu fui a única dos
oito irmãos que terminou a faculdade na época.
Encontro na mitologia ameríndia a figura de Jurupari, o mito que fundamenta a
história de vida da professora Silvia.
Jurupari é um personagem que aparece em inúmeras lendas amazônicas. Em
algumas histórias, é retratado como um herói que trouxe ordem ao mundo, em
outras, aparece como um temível demônio. Às vezes, chamado de "filho do Sol",
outras vezes, de "filho do Trovão". O fato é que Jurupari está presente na mitologia
de diversos povos indígenas, notadamente, na mitologia daqueles povos que vivem
na região de fronteira entre Brasil e Colômbia. Jurupari, uma derivação da palavra
“Juruparipindi”, de origem Tupi, que significa “Demônio da Floresta”.
107
Willis (2007) descreve que a característica da mitologia ameríndia, como uma
espécie da carta sagrada que preserva a atual ordem social, manifesta-se por meio
de mitos sobre as diferenças entre homens e mulheres, frequentemente associando
as mulheres com a fertilidade natural, o caos e a ignorância, e os homens com a
fertilidade cultural, a ordem e o conhecimento sagrado:
Un mito muy extendido desde la Amazonia hasta la Tierra del Fuego, con
numerosas variantes, explica que, en sus orígens, el mundo estaba
dominado por las mujeres, no por los hombres. Según los tupis de Brasil, el
sol se enfadó tanto por el dominio femenino que decidió invertir la situación
y tomar por compañera a una mujer perfecta. En primer lugar, hizo que una
virgen llamada Ceucy quedara encinta de la savia de un árbol cucura y que
diera a luz un niño, Jurupari, que ordenó que celebrasen fiestas
regularmente para conmemorar su monopolio del conocimiento y el poder y
que prohibiesen la participación de las mujeres, bajo pena de muerte.
Como precedente de tal castigo, Jurupari preparó la muerte de su propia
madre y aún segue buscando a la mujer perfecta, digna de ser la esposa del
sol. (IBIDEM, 2007, p. 262)
Willis (2007) aponta o mito indígena e ele é corroborado pelo escritor indígena
Maximiano José Roberto, filho de uma índia do povo Tariana. Por deter grande
conhecimento da cultura da região, foi informante de vários etnógrafos da época,
coletou as narrativas de Jurupari e montou uma história épica, considerada por
estudiosos de hoje como uma das grandes obras da literatura indígena.
Conta o mito que, como tantos heróis divinos, Jurupari era filho de uma virgem.
No começo do mundo, uma estranha epidemia atingiu os índios da Serra de
Tenuiana. Morreram quase todos os homens. Sobreviveram as mulheres e alguns
velhos. Para evitar a extinção daquele povo, um velho pajé - nascido da união de
uma índia com o rei dos pássaros jacami - fecundou a todas as mulheres da aldeia,
com sua mágica. Depois disso, ele mergulhou num lago onde uma estrela
costumava se banhar, e desapareceu. Dez luas depois, todas as mulheres deram à
luz. Entre os recém-nascidos, havia uma menina que foi chamada Seuci. A menina
era de uma beleza esplendorosa. Seuci comeu uma fruta do mato chamada puçá e
não se deu conta de que o sumo da fruta escorreu-lhe por entre as partes íntimas,
fecundando-a. Após comer as frutas, sentiu-se diferente. Examinou-se e viu que não
era mais virgem. Estava grávida. Dez luas depois, nasceu um menino forte e belo,
que se parecia com o Sol. Foi batizado com o nome de Jurupari. Os índios elegeram
108
a criança como seu líder. Naquela época eram as mulheres que mandavam nos
homens e que governavam. Elas discutiam a melhor hora para entregar os símbolos
de chefe a Jurupari e quando se deram conta, a criança havia sumido. Procuraram
por Jurupari, mas nada encontraram. Dos mais altos morros da serra, ouviam-se
murmúrios de criança. A infeliz Seuci permaneceu na mais alta montanha, chorando
a perda de seu filho. À noite, ela dormia e ao acordar pela manhã sentia que seus
seios estavam vazios. Era Jurupari que vinha junto dela se amamentar. Depois de
15 anos, Jurupari voltou a sua aldeia. Ele revelou a todos que recebera uma missão
do Sol: reformar os usos e costumes dos povos da terra. Jurupari assumiu a
liderança da sua tribo e virou o jogo de poder entre homens e mulheres,
estabelecendo as regras que hoje valem para os índios e definiu quais eram os
atributos de cada um. Instituiu as festas, os ritos iniciatórios, as dietas sagradas e as
purificações; no plano prático, legislou desde regras para a guerra até condutas
morais cotidianas. Era extremamente severo, não havia perdão para as faltas nem
súplica possível. Gostava de guerreiros fortes e corajosos e, nas mulheres, admirava
a capacidade de gerar muitos filhos. Os rituais a Jurupari eram proibidos às
mulheres, e essas pagavam com a morte a desobediência, tanto que, quando sua
própria mãe espiou um ritual exclusivo dos homens, foi transformada em pedra
(extraído de http://www.iande.art.br/boletim011.htm, acesso em 15/07/2009).
A relação estabelecida, entre a história de vida de Sílvia e a lenda de Jurupari,
emergiu da forte presença de termos como “luta”/“sobreviver”/“briga”, os quais
demonstram o esforço e sacrifício, na narrativa da professora, em garantir até
mesmo sua própria sobrevivência.
Fiz vários cursos, como a Teia do Saber e o curso da Cultura Inglesa. Acho
importantíssimo participar de cursos, pois nós, professores, que
trabalhamos na rede estadual não temos muito tempo para nos aperfeiçoar:
trabalhamos manhã, tarde e noite, para sobreviver. Restam-nos os sábados,
para fazer uma pós. Eu acho que o Estado deveria abrir um campo para o
professor se especializar, é isso que nós estamos precisando. Essa briga
por salário, eu até concordo, mas eu gostaria que nossa briga fosse para
nossa especialização, para a nossa função de trabalho, uma briga para que
a especialização fizesse parte do horário de trabalho [...] Esse resgate está
sendo muito significativo: gostei muito do que passei, das minhas
dificuldades, o que eu passei, as lembranças me fizeram voltar ao passado,
as minhas conquistas, o convite da minha formatura que eu entreguei para
109
minha irmã, a faculdade que fiz com sacrifício quando fiquei desempregada,
e isso me dá muito orgulho.
Em sua história, há uma verdadeira batalha por fazer valer sua vontade de
estudar e formar-se professora, derrubando valores familiares que colocavam a
figura da mulher atrelada às tarefas exclusivamente domésticas.
Tive muito apoio da minha irmã, pois minha mãe não valorizava tanto os
estudos, entendia que as mulheres deviam se dedicar apenas aos afazeres
domésticos. Eu já trabalhava desde os catorze anos, em escritório, tinha
meu emprego, mas eu fui estudar porque eu quis, pelo meu esforço próprio
eu que paguei a minha faculdade, com muita dificuldade. Minha irmã foi
uma pessoa que me apoiou muito. Depois que eu me formei, todos ficaram
muito orgulhosos, pois eu fui a única dos oito irmãos que terminou a
faculdade na época.
Os professores que Sílvia teve em sua escolarização são o Sol de Jurupari:
deles a professora recebe a missão de vencer seus próprios limites e impor a
organização de sua própria vida, num exercício de “caminhar para si” (JOSSO,
2004), tomando em suas mãos seu projeto de vida.
Na faculdade, eu me recordo de outra professora de Português, de
gramática, muito boa, que aí eu confirmei a minha certeza em fazer Letras.
Por ironia do destino, eu fiz Letras para dar aula de Português e de
Literatura, eu dizia que não queria dar aulas de Inglês. Aí eu fui para essa
escola particular dar aulas de Português e a dona da escola me disse que
tinha duas aulinhas de Inglês e que não compensaria contatar outro
professor, oferecendo essas aulas para mim. Eu fui tão covarde na época
que disse que não. Eu não fui capaz, estava insegura. Quando eu ingressei
no Estado, eu substituí uma professora de Português, em licença médica,
por trinta dias. Ao final desse período, o Diretor da escola me disse que
tinha sorte e me ofereceu outra substituição, pelo ano inteiro (estávamos no
mês de março), só que de Inglês. Aí eu pensei: não posso rejeitar
novamente. Vou ficar desempregada, sem nenhuma aula? Aceitei e logo de
cara tive que enfrentar os terceiros anos do Ensino Médio. Pensei: o que
vou fazer? Comecei fazer cursos, estudar, e hoje gosto mais de Inglês.
Rejeitei duas aulas e tive que pegar vinte. A necessidade fez com que eu
corresse atrás, estudasse, deixasse a insegurança e o medo. Um professor
da faculdade dizia: “Medo é pêlo enraizado. Tem que arrancar esse pêlo”.
Eu me lembro disso até hoje e isso marcou muito a minha formação, os
110
desafios. O próprio Ensino Médio, eu saí da faculdade e peguei o Ensino
Médio. Hoje eu trabalho também com o fundamental, mas eu consigo me
entender melhor com o médio, com os alunos e com o conteúdo.
Assim como Jurupari recebe a missão do Sol de organizar e reformar os usos
e costumes dos povos da terra, Sílvia assume a liderança da sua própria existência
e “vira o jogo” de poder entre homens e mulheres, busca a justiça necessária aos
mais desfavorecidos, reconhece a fortaleza existente na humildade do sertanejo,
assume o desejo de melhorar o mundo, movida pela paixão estética de suas
experiências com as mais diferentes expressões artísticas que a conduziram à
autonomia e emancipação.
Eu sou apaixonada por Fernando Pessoa: “tudo vale a pena quando a alma
não é pequena”. Fernando Pessoa é para mim uma referência na Literatura
Portuguesa. Um livro que me marcou muito e que eu recomendo sempre
aos meus alunos é Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Um filme que tem
uma parte que eu gosto é o da Guerra de Canudos, de Euclides da Cunha,
que ele fala: “O sertanejo é antes de tudo um forte”. Quer dizer, você que se
sofre, mas que não se pode desistir (persistência). O que um líder faz?
Antonio Conselheiro: era um líder ou um louco? Ele levou muita gente,
embora elas morressem, e isso foi de uma coragem...
Como conjugar tais características de Sílvia com o trabalho desenvolvido na
esfera escolar? A própria professora reconhece, como válida, a perspectiva de
Pineau (2004), autor que defende a seguinte concepção: na articulação do presente
e do passado, reconhecidos no percurso formativo do sujeito, o docente pode
reconhecer aquilo que o afeta e a forma pela qual é afetado, aprendendo, com seu
próprio percurso (autoformação), com livros e modelos de professores
(heteroformação), com o ambiente (eco-formação) e com o outro (co-formação)
Sempre gostei muito de História: tive um professor que era ótimo. A única
matéria com a qual eu não dava muito bem era Matemática: eu sempre tive
muita dificuldade, e vencia dificuldade com muito empenho. Ciências eu
gostava muito. Na minha época tinha um bom relacionamento com os
professores, embora na minha época os professores fossem muito
distantes, e isso era comum. Hoje essa distância me incomodaria, pois hoje
o aluno é diferente: os alunos são questionadores, e isso é positivo, pois o
ser humano é questionador[...]. Não tive nenhum espaço, em programas de
formação, ou mesmo no âmbito da unidade escolar, para discussão da
111
história de vida pessoal. Acredito que essa discussão ajudaria muito, pois,
pelo que conversamos podemos descobrir aquilo que gostamos. Numa
conversa, um colega pode dizer que fez a faculdade e caiu na educação e
isso é uma coisa gravíssima: nós mexemos com vidas. Há dias que
chegamos na sala de aula com problemas, mas quando isso ocorre eu
respiro fundo e penso: nós somos os educadores. E você, às vezes,
ouvindo o aluno, taxado com impossível, pode até ajudá-lo, através de uma
conversa. É conhecer um pouquinho da vida de cada aluno. Conhecer a
história de vida de todos é difícil. Abrir esse espaço, conhecer um
pouquinho da vida de cada professor, porque ele chegou até aqui, é
importantíssimo. Nós não podemos desistir da educação. Essa pesquisa
que você esta fazendo com a gente, o que te levou, o que te marcou...
Sílvia enxerga a possibilidade do trabalho interdisciplinar e contextualizado
por meio da co-formação: junto com seus pares, na realização de atividades
comuns, capazes de integrar disciplinas e no trabalho coletivo desenvolvido junto
aos demais professores.
Quanto ao “Ensino Médio em Rede”, lembro de comentários superficiais nos
HTPC‟s, não de forma profunda. Os conceitos de interdisciplinaridade e
contextualização também foram trabalhados de forma superficial. Porém,
nesta escola, aqui nós discutimos bastante nos HTPC‟s. Para um trabalho
interdisciplinar, discutimos que o trabalho não pode ser individual, e sim
deve ser em grupo. Nós procuramos fazer atividades integrando Artes,
Geografia, Inglês, mais em projetos. Isso melhora bastante a prática,
atingindo o aluno, deixando de se importar apenas com a sua disciplina,
aprendendo a trabalhar em grupo, socializando os conhecimentos. Eles (os
alunos) são muito individuais e a vida não é individual. Para um trabalho
interdisciplinar é muito importante que os HTPC‟s sejam voltados a explicar
como se dá esse trabalho, pois ainda há professores que resistem, que
acham que o trabalho deve ser tradicional, abrir mais questões, espaço para
discussão, para troca de ideias para trabalhar juntos, a serem levadas aos
alunos para que eles entendam a proposta e encarem com mais seriedade.
E cursos, o Estado deveria fornecer mais cursos. Toda mudança é radical e
temos que acompanhar a modernidade: nosso aluno é novo, não é da
época de 40 anos atrás.
Como os demais professores anteriormente ouvidos, Sílvia legitima, em sua
narrativa, a figura do professor coordenador como mediador de trabalho pedagógico
que atua na promoção de momentos de troca e partilha de ideias. O herói Jurupari,
112
que trouxe ordem ao mundo, inspira o desejo de Sílvia de vislumbrar, no espaço
escolar, sobretudo, nos HTPC‟s, a ordem escolar, com o objetivo de que tais
momentos possibilitem a experiência estética de contato com o outro, na criação de
sentidos para a modernidade que desponta na esfera educativa.
3.2.6 Encontros estéticos mediados por Suely, o mito de Hersília
No exercício de desvelar as narrativas dos professores da E.E. “Loureiro
Junior” percebe-se que o grupo de professores reconhece que a professora Suely
exerce o pape central no processo de articulação do trabalho pedagógico. A
legalidade de sua função de Professora Coordenadora convive com a legitimidade
do reconhecimento de sua capacidade por parte dos professores que coordena.
Legalidade e legitimidade são critérios que possibilitam a analogia da figura de Suely
com o mito de Hersília, que na perspectiva de Brandão (2008, p. 161) relacionado ao
verbo horiri, presente horior, “excitar, estimular, exortar, conciliar”.
Conta Brandão (ibidem p. 162) que Hersília foi uma das sabinas raptadas pelos
romanos durante os jugos solenes oferecidos pelo fundador de Roma às nações
vizinha, tornado-se depois uma heroína romana. De família nobre, era esposa de
Hostílio e, durante a guerra sangrenta que se seguiu entre sabinos e romanos, a
jovem se houve com grande coragem e prudência e conseguiu, por fim, conciliar,
para sempre, os inimigos, conseguindo, assim, formar um único povo. Uma variante,
relatada por Ovídio, aponta Hersília como esposa de Rômulo, a quem concedeu dois
filhos: Prima, uma menina, e Aólio/Avílio, um menino.
Tomando-se a dimensão conciliatória de Hersília, percebe-se que Suely
dispensa aos seus professores um olhar que revela a sua capacidade de
compreendê-los, a ponto de atendê-los em seus anseios, necessidades e
possibilidades de melhoria de suas atuações. É possível que se diga que, tomada
por um olhar estético, Suely detém a abertura e o acolhimento necessários para
prenunciar e intuir a herança mítica, sugerida pelos seus professores, sensibilidade
alargada por uma “visão clarividente” trazida por Perissé (2009, p. 56).
Sua presença é valorizada pelos docentes, corroborada pela fala de Gabriel.
Sua chegada à escola desestabiliza, excita, estimula a discussão.
Desde que a Suely (Professora Coordenadora) está aqui, temos discutido
até que ponto temos desenvolvido a interdisciplinaridade de verdade e
113
descobrimos que podemos trabalhá-la a partir de um filme, um texto, e não
somente por um projeto gigantesco (Lilian).
A professora Ana, nos desafios do trabalho cotidiano, é acolhida, ajudada e
conduzida pela coordenadora, que age como uma Hercília solícita. Tal solicitude
desperta a consideração na “condição humana de existir junto com o outro, a nossa
humanidade” (BOARETO, 2003, p. 31) no mundo partilhado com os outros.
Acho que o trabalho tem que começar de coordenação, que tem que
mostrar para gente como funciona isso, como você pode fazer isso, pois
muitas vezes a gente não faz, pois não sabe como se pode fazer esse
trabalho. Solitariamente os professores até fazem, mas quando a gente
percebe que há uma coordenação as coisas são melhores. Você só
aprende estudando sobre a interdisciplinaridade. Aqui na nossa escola o
trabalho vai muito bem, pois nos temos a Suely que nos ajuda muito. Por
que na escola particular as coisas funcionam? Porque sempre tem muita
gente te cobrando, envolvido, te mostrando como se faz. Aqui na escola a
gente faz, tem professores bastante envolvidos, e a gente vai perguntando e
caminhando (Ana).
O professor Gabriel refere-se às virtudes da Professora Coordenadora,
alegando que ela ensina, estimula e, sobretudo, desperta o gosto e o prazer de
educar, por meio de sua atuação, recuperando os sentidos e significados atribuídos
à formação continuada, que revela a relação consigo, com o outro e com o
conhecimento.
Na escola participo dos HTPC‟s com a Suely, Professora Coordenadora.
Aqui os HTPC‟s são ótimos, a gente aprende muito, a direção da escola
também é muito atuante. Nos momentos de formação continuada junto aos
outros professores, temos espaço, nesta escola, para falar do aluno,
surgindo a brecha de falarmos de fatos pessoais, como a minha postura
junto aos alunos. Qualquer ser humano tem que aceitar e encarar a
experiência vivida como aprendizado. Todos têm na sua vida fatos positivos
e negativos. O grande aprendizado é tirar dos fatos negativos uma lição e
trazer isso para os nossos alunos, como um exemplo, para que eles não
cometam os mesmos erros, e se eu puder estar dividindo isso com os meus
colegas, com os meus pares, é ótimo, pois eles vão ter ao lado deles um
exemplo vivo ao lado deles, alguém que teve um aprendizado e está
querendo expandir, e não guardar somente para si. (Gabriel).
114
Depreende-se que Suely sabe encontrar o ponto de equilíbrio de sua
intervenção, como mediadora do percurso formativo de seu grupo. Suely constrói
interações de sensibilidade por meio do olhar atento às condições e possibilidades
de seu grupo de professores.
No “Ensino Médio em Rede”, participei das discussões sobre
interdisciplinaridade e contextualização. Aqui na escola temos discutido
muito sobre esses temas: normalmente montamos projetos aqui na escola e
usamos a interdisciplinaridade sempre, que é super importante, até por
conta da Coordenação, que auxilia bastante, vai amarrando nosso trabalho.
A Professora Coordenadora acaba trazendo os outros professores e aí
acaba funcionando por conta disso. Discutir sobre interdisciplinaridade e
contextualização melhora a prática dos professores, pois o professor tem a
tendência de se fechar na área dele, sabe, “eu sou de Português, deixo de
ensinar história, geografia, ciências”, mas não é nada disso. Quando você
discute tais conceitos, você passa a perceber que esses conhecimentos
fazem parte da outra disciplina e você começa ajudá-lo também, pois ele
passa a se interessar mais. E os outros professores que estão muito
fechados passam a se abrir mais, e isso é muito importante. Como pré-
requisito para o trabalho seria o fato dos professores estarem dispostos, o
que falta muito, é ter um mediador, senão não tem como, se não tiver
alguém que direcione, que puxe os outros, que coordene, pois cada um
tende a falar que vai somente fazer a sua parte e o que sei e isso somente,
não resolve. Se ficar somente por conta apenas dos professores, não
resolve (Renata).
E, para que Hersília possa “excitar, estimular, exortar, conciliar”, o encontro
com o conhecimento sensível, ela necessita responder aos anseios da professora
Sílvia, que, em sua fala, reivindica espaços nos quais suas narrativas (auto)
biográficas possam ser ouvidas por seus pares.
Não tive nenhum espaço, em programas de formação, ou mesmo no âmbito
da unidade escolar, para discussão da história de vida pessoal. Acredito
que essa discussão ajudaria muito, pois, pelo que conversamos podemos
descobrir aquilo que gostamos. Numa conversa, um colega pode dizer que
fez a faculdade e caiu na educação e isso é uma coisa gravíssima: nós
mexemos com vidas. Há dias que chegamos na sala de aula com
problemas, mas quando isso ocorre eu respiro fundo e penso: nós somos os
educadores. E você, às vezes, ouvindo o aluno, taxado com impossível,
pode até ajudá-lo, através de uma conversa. É conhecer um pouquinho da
115
vida de cada aluno. Conhecer a história de vida de todos é difícil. Abrir esse
espaço, conhecer um pouquinho da vida de cada professor, porque ele
chegou até aqui, é importantíssimo. Nós não podemos desistir da educação.
Essa pesquisa que você esta fazendo com a gente, o que te levou, o que te
marcou... (Sílvia)
O mito de Hersília atribuído à Suely, Professora Coordenadora da E.E.
“Loureiro Junior”, interpretado por meio das narrativas dos professores, confirma
que, na figura do professor coordenador da rede púbica estadual, encontra-se uma
possibilidade concreta de formação continuada no espaço escola. Entretanto, há
que se conclamarem condições para que tal formação abarque encontros éticos e
estéticos, os quais possibilitem aos professores o processo de conscientização a
partir do movimento de tomar em suas mãos o curso de sua própria história.
É por meio da consciência despertada pela reflexão sobre sua própria história,
que o sujeito tem condição de promover a transformação. Freire (1992) aponta que é
na educabilidade do ser humano, que se funda na sua natureza inacabada e da qual
se tornou consciente, que o sujeito se faz um ser ético, um ser de opção, de decisão.
A ética e a estética são intrínsecas à vivência da afetividade que perpassa os
caminhos da ação pedagógica.
Nas narrativas dos professores da E.E. “Loureiro Junior” torna-se perceptível
o belo, existente na arte do contar a sua própria história. A linguagem deixa escapar
a verdade. Lilian cita Sagarana, evocando Guimarães Rosa e a mescla do real, o
imaginário e o lendário em suas obras. Solange encanta-se por Vidas Secas, tocada
pelas condições desfavoráveis da vida do sertanejo, decritas por Graciliano Ramos.
Encanta-se, ainda, por Fernando Pessoa, pois “tudo vale a pena quando a alma não
é pequena”. Gabriel encanta-se com Mondigliani e sua triste história, expondo aos
seus alunos uma outra visão, em contradição ao tradicional trabalho com Van Gohg,
Tarsila do Amaral, Picasso, Almeida Júnior. Já, Renata resgata o encanto na
releitura de Dom Casmurro, que despertou a sua paixão por Machado de Assis.
Estes são exemplos de empatias que provocam o heróico deslocamento de si
para a obra e o retorno para a aldeia de aprofundamento em si próprio: “Não me
confundo com a obra, mas eu e ela estamos dentro. Eu dentro dela. Ela dentro de
mim. Os limites não desaparecem, mas se flexibilizam. A emoção me move” (ibidem,
2009, p.49).
Abordar os conceitos de interdisciplinaridade e contextualização, numa
dimensão estética, implicando na relação do conhecimento historicamente produzido
116
com a vivência do sujeito aprendente: o belo emerge, na utilização dos mitos, como
fonte para a interpretação das narrativas, no exercício de imaginação/estética
(ingenuidade X criticidade).
Pensar a formação continuada numa dimensão estética significa permitir que
no espaço escolar se faça a analogia com os mitos e que se reconheçam as
histórias de vida, como condição de promover encontros estéticos entre professores
e coordenador, entre supervisor e equipe escolar.
Pensemos, então, o que os mitos pessoais contidos, na narrativa dos sujeitos
envolvidos na pesquisa, trouxeram para a reflexão da dimensão estética, como
proposta de formação continuada. As relações estabelecidas entre as histórias de
vida dos professores e seus mitos pessoais permitiram vislumbrar várias
subjetividades e várias identidades, que lhes dão a característica da singularidade.
Uma pluralidade (formação religiosa, política, familiar, técnica, social), tecendo a
singularidade apoiada na premissa de que de ser singular.
O mito de Palas Atená surge na dimensão estética da justiça que reside no
direito de dotar a escola para o desenvolvimento de espaços de formação (auto)
biográficos.
Tais espaços possibilitam formações profissionais, sob a ótica da dimensão
estética. Alvarenga (2007) contribui com a questão ao afirmar que “Atená simboliza,
mais que tudo, a criação psíquica, a síntese por reflexão, a inteligência socializada.
A possibilidade de humanização do arquétipo se dará ao cabo de longa evolução,
reflexo da própria evolução da consciência humana. Da deusa primordial, selvagem,
à deusa da justiça e sabedoria, muitos elementos da sua rica personalidade foram
integrados numa harmoniosa síntese” (ibidem, p. 272).
117
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O mito de Héstia traz a deusa da lareira que aquece, ilumina, nutre, centra e
foca. Ela zela pelo que faz parte da identidade, e, ao mesmo tempo, abre espaço
para o novo. Na perspectiva de Alvarenga (2007, p. 141), “foi escolhida por Apolo
para ser a guardiã da imagem do Paládio, pois é a que tudo vê, a que tudo ilumina”.
Héstia protege e garante a intimidade da família em casa.
O mito Héstia emergiu da interpretação das narrativas dos professores como
o mito pessoal da pesquisadora, a jornada de uma heroína, advindo da função como
Supervisora de Ensino da rede estadual pública paulista.
A realização desta pesquisa foi um exercício de descoberta que demandou
empenho pessoal, muitas vezes, tomado por sensações de ansiedade por querer
encontrar significados, acompanhados de grande alegria e satisfação, quando estes
emergiam das narrativas. Os professores ouvidos autorizaram a penetração em
espaços não visitados e a exposição de assuntos que rotineiramente não são
partilhados no universo escolar.
A jornada interpretativa iniciou-se com a escrita da história de vida da
pesquisadora, um processo de construção de autoria, na atribuição de sentidos e
significados das vivências pessoais, investigadas e transformadas em experiências
de vida.
Esse caminhar para si, nas palavras de Josso (2002), constituiu-se em
encontro estético, ao contemplar o aspecto formativo da pesquisa, na abordagem
(auto) biográfica. Foi utilizado o método de história de vida, tanto para coleta de
dados deste estudo como para investigação dos momentos charneiras da
pesquisadora, na perspectiva do paradigma experiencial de Josso, unindo teoria e
prática, visando à compreensão de que não há pesquisa distante de nossa História
de Vida. Toda pesquisa é um momento de formação de ser pesquisador e
profissional da educação.
No trilhar do caminho da mitohermenêutica, nas palavras de Paulo Freire, o
medo foi aliado da ousadia. Como prêmio, a experiência de ter sentido à flor da pele
a experiência da saga humana, presente nas narrativas míticas. A apropriação dos
mitos permitiu a construção de um repertório que, antes, não fazia parte da
experiência como pessoa e profissional.
118
A compreensão do mito pessoal da pesquisadora, entrelaçado ao mito pessoal
dos professores entrevistados, demonstrou, nesse entrecruzar, que todo mito conta
a história de nossos esforços em busca do sentido de humanidade nas relações.
A pesquisa realizada trouxe contribuições para o campo de formação de
professores, tendo em vista a obtenção de resultados descritos a seguir.
Foram realizadas entrevistas narrativas com cinco professores da EE “Loureiro
Júnior”; todos atuantes no curso de Ensino Médio, na área de Linguagens e Códigos
e suas Tecnologias – LCT, ministrando aulas nas disciplinas de Português, Inglês e
Educação Artística. Considerando os resultados da análise destas entrevistas,
conclui-se que os objetivos deste trabalho de pesquisa foram atingidos.
Nas entrevistas realizadas, as narrativas manifestam a posição dos
professores, quando eles afirmam que, nos programas de formação dos quais
participaram, não tiveram a oportunidade de explorar os conhecimentos sobre a
metodologia de pesquisa relacionada com “a história de vida”.
A partir das entrevistas, percebe-se que os professores legitimam a figura do
professor coordenador, como mediador do trabalho pedagógico, e, como pessoa
atuante na promoção de momentos de troca e de partilha de ideias.
Sobre a identificação das diferentes visões apresentadas por professores do
Ensino Médio, em relação aos conceitos de “Interdisciplinaridade” e
“Contextualização”, é possível que se conclua, a partir das entrevistas narrativas,
que ainda existem muitos pontos obscuros na percepção dos vínculos entre tais
conceitos e sua aplicação prática:
Ana vê a Interdisciplinaridade e a Contextualização como modelos eficazes que
melhorariam a prática pedagógica e que deveriam ser ensinados aos professores,
através de uma metodologia centrada na repetição de técnicas passíveis de serem
aprendidas, portanto, depreende-se que não houve a possibilidade de apresentação
de um conceito próprio.
Lilian olha para os conceitos de “Interdisciplinaridade” e “Contextualização”,
como recursos facilitadores para o trabalho integrado entre docentes, porém
dependentes do uso de uma linguagem comum.
Renata enxerga possibilidades de práticas interdisciplinares e contextualizadas,
apenas, através da figura da Professora Coordenadora que, pelo convencimento,
motivaria todos os professores e a realizarem um trabalho coletivo.
Gabriel adere às práticas de “Interdisciplinaridade” e de “Contextualização”,
alegando que a discussão sobre tais conceitos acontece nos HTPCs. De acordo com
119
o entrevistado, o interesse do aluno aumenta, quando se combinam as disciplinas.
Clara é a sua concepção sobre os conceitos de “Interdisciplinaridade” e
“Contextualização”, bem como seu entendimento sobre as condições necessárias
para que tais conceitos se processem no âmbito escolar.
Sílvia enxerga a possibilidade de êxito, no trabalho interdisciplinar e
contextualizado, por meio da co-formação, junto com seus pares, na realização de
atividades comuns, capazes de integrar disciplinas e no trabalho coletivo
desenvolvido junto aos professores da escola. Ela concorda que o trabalho
pedagógico não pode ser individual e que a integração das disciplinas é fundamental
no processo pedagógico.
A hipótese da pesquisa desenvolvida está apoiada na premissa de que os
professores que atuam, no segmento do Ensino Médio da rede pública paulista, não
têm clareza dos conceitos de “Interdisciplinaridade” e de “Contextualização”. Isto se
deve ao fato de que a construção de tais conceitos demanda uma ação de formação
contínua que possibilite a reflexão sobre estes temas. Esta formação contínua não
foi disponibilizada a todos os professores da rede, por isso, é possível que se
conclua que a solução está em se colocar no processo de busca de compreensão
de si mesmo, de componentes da própria história, de tomadas de consciência
daquilo que move o ser humano, que interessa, que guia, que atrai o homem.
Com as entrevistas narrativas realizadas e analisadas, com o conhecimento
das experiências profissionais e pessoais dos sujeitos pesquisados, foi possível
identificar, conforme se pretendia, que as histórias de vida são fundamentais para a
percepção da existência. Existe uma forte relação entre os processos de elaboração
pessoal e as possíveis práticas interdisciplinares, conquistados com “o mergulho na
memória”.
Como foi possível verificar na apresentação dos mitos pessoais, a
compreensão restrita do conceito de “Interdisciplinaridade”, atrelada a conteúdos de
diferentes disciplinas escolares relacionados entre si, emerge nos depoimentos dos
professores entrevistados, o que vem a confirmar a hipótese inicial: boa parte dos
problemas de compreensão da abordagem interdisciplinar envolve aspectos da
formação docente.
As Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio de 1998, que propuseram a
reforma curricular do Ensino Médio e os seus eixos norteadores – a
“Contextualização” e a “Interdisciplinaridade” – não aparecem como objeto de
discussão no interior da escola, o que nos leva a inferir que a maioria dos
120
professores não tem conhecimento do texto legal. Por não terem sido incorporadas
nas discussões, observa-se a dissociação entre o exposto pela legislação e o
praticado nas escolas. A lei traz em si a idealização de determinada situação em prol
do “bem de todos”, sendo que toda lei mal interpretada ou mal entendida leva a
distorções na ação proclamada. Ausentes do espaço escolar as Diretrizes
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio legitimam uma barreira invisível que
deixa o professor à parte da construção de práticas curriculares nas escolas,
situação que pode ser lida como decorrente do fato de o professor não se perceber
como sujeito de autonomia.
É possível concluir que a vida pessoal e a vida profissional não habitam
territórios distintos. Cabe a nós escrevermos nossa história. Nessa jornada, ao
conjugar a mão justa de Atená, presente nos programas de formação continuada,
com o olhar atento de Héstia, emerge a possibilidade de uma educação de
sensibilidade que objetive considerar a identidade cultural das escolas e a
subjetividade contida nas histórias de vida dos sujeitos envolvidos no processo
educacional.
121
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WILLIS, Roy. Mitologia del mundo. Espanha: Evergreen, 2007.
130
ROTEIRO DE ENTREVISTA
A entrevista narrativa tem como objetivo evitar o discurso na terceira pessoa,
ou seja, a pessoa falar de si própria como se tratasse de outra pessoa, onde a
pessoa não se sente tocada pela sua própria história que relata, expressando-se
uma maneira desabitada e mecânica.
A narrativa possibilita a pessoa falar do sua vivência como se ela pertencesse
ao passado, entretanto possibilita a tomada de consciência de acontecimentos que
ainda são atuais.
As questões emergiram durante o desenvolvimento da narrativa, muito
embora foram apresentadas, ao Comitê de Ética da Universidade Cidade de São
Paulo, questões direcionadoras que nortearam as entrevistas realizadas, de acordo
com o tema da pesquisa.
A entrevista narrativa foi desenvolvida seguindo as fases descritas nos
Anexos I a V, tomando como suporte teórico a perspectiva de Jovchelovitch e Bauer.
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ANEXO I – PREPARAÇÃO
Preparação
- exploração do campo
- identificação dos sujeitos envolvidos
Qual o seu nome e sua formação
acadêmica?
Quando iniciou a docência?
Há quanto tempo atua na rede pública
estadual paulista?
E no segmento escolar Ensino Médio?
Participou de programas de formação
continuada? Quais?
Você acha que é importante participar
de programas de formação continuada?
Por quê?
Você participou do programa de
formação “Ensino Médio em Rede”?
Você teve a experiência de participar
de discussões de Interdisciplinaridade
em outros programas de formação ou
em outras escolas de Ensino Médio?
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ANEXO II – INICIAÇÃO
Iniciação
- formulação do tópico inicial para
narração
Como vocês têm discutido o conceito
de “interdisciplinaridade” e
“contextualização” no Ensino Médio?
Você acha que esses conceitos
“interdisciplinaridade” e
“contextualização” melhoram a escola
do Ensino Médio e a prática dos
professores? Por quê?
Você sente que a interdisciplinaridade e
a contextualização no Ensino Médio é
levada em consideração pela escola e
professores?
Quais são as sugestões que você tem a
dar para melhorar as possibilidades de
vislumbrar o desenvolvimento de
práticas pedagógicas que contemplem
os elementos “interdisciplinaridade” e
“contextualização”?
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ANEXO III – NARRAÇÃO CENTRAL
Narração Central
- narração livre por parte dos sujeitos
envolvidos
Como foi o seu processo de formação
de professor?
Você poderia relacionar tal processo
resgatando episódios marcantes,
reconhecer as pessoas, professores,
livros que influenciaram na sua escolha
profissional, refletir a sua relação com o
conhecimento, professor e consigo
mesmo (se de autoria ou de
submissão) e os modelos que
influenciam suas práticas e sua decisão
profissional?
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ANEXO IV – FASE DE PERGUNTAS
Fase de perguntas
- questões desencadeadoras pelo
entrevistador
Como foi a sua relação com as
disciplinas?
Como foi a sua relação com o
professor?
Quais episódios você considera como
marcantes na sua formação: os
momentos divisores de água, na
trajetória na vida – familiar, escolar,
acadêmica, profissional?
Você vê alguma relação desses fatos
na sua maneira de ser pessoa e
professor no Ensino Médio?
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ANEXO V – FALA CONCLUSIVA
Fala conclusiva
- questões de elucidação pelo
entrevistador
O que significou para você o resgate do
processo (auto) formativo no contar
como reconheceu que aprendeu
resgatar episódios marcantes,
reconhecer as pessoas, professores,
livros que influenciaram a sua escolha
profissional, refletir a sua relação com o
conhecimento, professor e consigo
mesmo se de autoria ou não,ou seja, o
que significou perceber que a trajetória
pessoal e profissional não são distantes
que influenciam os modelos de práticas
e a decisão profissional ?
Você considera o estudo (auto)
biográfico importante para a
compreensão da Interdisciplinaridade e
Contextualização no Ensino Médio?
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UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO – UNICID PROGRAMA DE MESTRADO EM EDUCAÇAO
SUJEITO 1 – PROFESSORA ANA: Meu nome é Ana, eu fiz letras na Universidade São Judas há muitos anos atrás e depois fui fazendo alguns outros cursos para aperfeiçoar a língua inglesa, em instituições como PUC, pois a universidade não dá essa noção para ser professor de inglês. Fiz o inglês oral da PUC e fiz os outros cursos dados pelo Governo. Comecei a atuar com cerca de 22 anos de idade, o curso de letras dava a licenciatura curta e logo após a conclusão de meu curso de licenciatura curta comecei a dar aulas no supletivo de ensino médio, sem terminar o curso, com autorização, numa escola particular. Comecei a lecionar numa escola particular pequena e posteriormente passei a atuar na rede pública, desde 1991. Dava algumas aulas na rede pública, interrompia minha atuação na rede pública em alguns períodos, como na época em que meus filhos nasceram e em outros momentos quando apareciam chances de atuar em escolas particulares, optando por uma remuneração melhor. Há 03 (três) anos “efetivei-me” na rede pública estadual. Fiz alguns cursos de formação continuada, mas nenhum específico para o ensino médio, não tendo tido oportunidade de participar do programa ensino médio em rede. Não fiz nenhum curso só para o Ensino Médio: fiz o Curso “Reflexão sobre a ação” na PUC, e quem fez esse curso hoje não tem dificuldades de trabalhar com o caderninho. Adorei participar de cursos de formação continuada, pois eles dão a noção da parte pedagógica mesmo, dos objetivos dos PCN‟s, me servia para tudo, fazendo diferença na minha aula, o que me auxiliou tanto na escola pública como na escola particular. Quem fez esse curso não tem dificuldades de trabalhar com o caderninho. O aluno tem todo um caminho para aprender língua, e o objetivo que está lá na frente é que direciona esse caminho. Se tivesse a oportunidade faria outros cursos. Nesta escola, tive a oportunidade de trabalhar com os conceitos de interdisciplinaridade e contextualização; o material está todo voltado para isso. O caderninho (proposta curricular) tem propiciado atividades que foram realizadas junto com o professores de geografia, de artes, com português. O professor se ao apropriando desses conceitos melhoraria a prática. Acho que o trabalho tem que começar de coordenação, que tem que mostrar para gente como funciona isso, como você pode fazer isso, pois muitas vezes a gente não faz, pois não sabe como se pode fazer esse trabalho. Solitariamente os professores até fazem, mas quando a gente percebe que há uma coordenação as coisas são melhores. Você só aprende estudando sobre a interdisciplinaridade. Aqui na nossa escola o trabalho vai muito bem, pois nos temos a Sônia que nos ajuda muito. Por que na escola particular as coisas funcionam? Porque sempre tem muita gente te cobrando, envolvido, te mostrando como se faz. Aqui na escola a gente faz, tem professores bastante envolvidos, e a gente vai perguntando e caminhando.
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Na faculdade eu me lembro de uma coisa que me mostrou que muitas vezes nos cometemos erros, atrapalhando o aluno. Na faculdade eu tinha uma professora de inglês que era surda que tinha a dicção já prejudicada e isso prejudicava o aluno que estava na minha situação. Isso ajuda a perceber que às vezes podemos prejudicar os alunos. Eu tinha vindo de escola pública e desde o início queria ser professora de inglês e não tinha tido a oportunidade de fazer cursos de inglês fora da escola. O fato de a professora ouvir com aparelho e ter dificuldade de pronunciar as palavras, até pelo volume da voz, me prejudicou muito e isso me mostrou que tipo de professora eu seria: como eu poderia auxiliar o outro e como eu poderia até destruir o sonho dos alunos. Esse foi um fato marcante. Na época em que cursei o meu ensino médio me lembro que as coisas não eram muito diferentes do que e agora; eu não me lembro de nenhuma atividade especial, sinto que hoje às vezes a gente programa muitas atividades que os alunos não percebem isso, como eu também não percebia. Lembro do professores de antigamente, lembro do professor de ciências que usava terno, pois ele era como um advogado. Hoje os professores estão de tênis e jeans, que eles eram vistos de forma diferente, que tinham uma postura diferente. Em relação ao que tinha que aprender na escola eu não me lembro. Mas não foi isso que me fez ser professora, não me lembro especificamente dos professores quem me ajudaram a aprender: eu me lembro daqueles professores que me atrapalharam, como o professor de matemática que gritava quando eu ia até a lousa para aprender sistemas, dizendo “deu galho no seu sistema!”; as disciplinas escolares direcionaram a minha escolha, eu era péssima em matemática, não conseguia tirar nota, e adorava escrever, tinha o meu caderninho, meu diário, o meu caderninho de redação, e já gostava de inglês, tive que aprender inglês sozinha, depois de casada, aprendi inglês aqui nos país, não tenho vergonha de dizer que nunca viajei aos Estados Unidos, os alunos ate perguntam, mas eu digo que é possível aprender inglês aqui, ainda mais hoje, como acesso a internet, ou como eu fiz, em aulas particulares, estudando muito. Na minha vida familiar, meus pais nunca incentivaram a gente a fazer nada, talvez o meu sonho fosse algo maior, mas eu e minha irmã tínhamos que optar por algo possível: a condição familiar que tínhamos não nos possibilitava algo, além disso. Minha irmã saiu do magistério, foi atuar na área do direto tributário, e eu quando tive oportunidade fui estudar inglês. Ou escolhíamos algo que estivesse dentro da possibilidade de fazer sozinhas ou não fazíamos nada. Depois eu vi que o magistério era mesmo o meu caminho, é o que eu gosto de fazer, senão já teria saído dele. Isso me serviu como lição de vida para direcionar a vida dos meus filhos, o meu filho fez cursinho, hoje estuda na USP, ele pode até falar: “minha mãe que me estimulou”, e sempre mostro a importância de escolher a profissão porque você quer e não pela condição que a vida te dá, mas antigamente era diferente. Para mim era a opção que eu tinha naquele momento. Eu acho importante que você reveja os fatos que aconteceram lá atrás e direcione seu trabalho: no que foi bom para você e que fatos importantes direcionem seu caminho mais certo. Resgatar o que o professor de Matemática fez comigo é algo que faço sempre, para refletir que não devo incentivar o erro, acho que a gente é fruto conseqüência daquilo que aconteceu conosco, mas não me lembro de ter refletido sobre isso em cursos de formação. Recordo-me que na PUC tivemos uma atividade para refletir sobre um professor que foi marcante em nossa formação, para saber se alguma coisa que esse professor marcante auxiliou na minha formação. Na
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escola, é importante considerar esses aspectos, pois trazer isso para os colegas, relatar fatos, pode direcionar o trabalho conjunto.
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UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO – UNICID PROGRAMA DE MESTRADO EM EDUCAÇAO
SUJEITO 2 – PROFESSORA LILIAN: Meu nome é Lilian, na minha formação acadêmica eu fiz Letras, na Universidade São Francisco. Embora seja habilitada também em Inglês não gosto de Inglês, é uma área que não me atrai. Adoro a Língua Portuguesa, decidi ser professora de Português. Iniciei a docência em 1986, pois ainda quando estava estudando fui convidada pelo Reitor da Universidade para dar aulas de reforço para meus colegas, pois eu era uma aluna de destaque em Língua Portuguesa, já dava aulas de Gramática valendo como estágio. Depois de formada trabalhei na escola particular, ate 1990, interrompi minha atuação em alguns momentos, por exemplo, fiquei afastada quando minha primeira filha nasceu, em 1994, voltei a lecionar na rede púbica, parei por mais um tempo quando tive minha segunda filha, passando por varias escolas até me efetivar. Sinto que a escola particular suga você demais, até pode pagar bem, mas você não tem direito de vida: a rede pública dá mais liberdade de atuação. Estudei nesta escola em que estou agora; conto com 14 anos de atuação na rede pública. Em outra escola em que atuei até tive que pegar duas aulinhas de Inglês, mas fiz de tudo para largar, porque acredito que quando você está em sala de aula você não só precisa ter o domínio da matéria, mas precisa mostrar ao aluno que aquilo que você faz, você gosta, até para segurar a classe. Fiz cursos de formação continuada, como o Circuito Gestão, que adorei fazer, pois o aprender é diferente: dizemos que trocamos figurinhas, mas na verdade trocamos maneiras diferentes de falar a mesma coisa. Não adiantava eu ter a visão que era a mesma visão de todo mundo, mas a forma como eu aplicava podia estar distorcida ou enganada, ou eu não chegava nos resultados propostos. Fiz o Ensino Médio em Rede até o ano retrasado e pela Prefeitura de São Paulo fiz o curso “Letramento” e o curso “Leitura e Escrita não é só Português”, onde nesse curso nós revemos que a leitura e a escrita é competência apenas da Língua Portuguesa, mas que compete a todas as matérias, muitas vezes o aluno não sabe interpretar um desenho ou ler um mapa, ele não conhece os termos técnicos que você está usando porque muitas vezes ele não foi ensinado para isso. Embora fosse um curso destinado ao Ensino Fundamental, eu o utilizei também no Ensino Médio. Fiz aquele curso do Museu da Língua Portuguesa, junto com a Fundação Roberto Marinho, que mostrava o papel da Historia, da Geografia e o quanto era importante que o professor estivesse envolvido com a linguagem, não somente a área de Linguagens e Códigos, com Historia, Geografia, o quanto era importante os professores estarem envolvidos com as disciplinas. Muitas vezes o professor de outras áreas pergunta: “Mas eu vou ter que corrigir a redação dissertação do meu aluno?” Ele pode não possuir os critérios normativos da língua, mas sabe verificar os critérios e argumentos trazidos pelo aluno. A Nova Proposta Curricular e o Jornal têm mostrado isso, o papel da linguagem. Muitas vezes o professor de outra área
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fala que não sabe. O professor ainda está acostumado que leitura e escrita é competência somente do professor de Português. O “Ensino Médio em Rede” trabalhava isso conosco: todo mundo tem que trabalhar junto, Português, Geografia, o professor estar inserido nesse contexto. Aqui na escola temos e não temos discutido a interdisciplinaridade. Sim, temos discutido nos HTPC‟s onde nós “brincamos” de trocar figurinha. Há alguns anos atrás era bonito falar: “Vamos fazer projetos interdisciplinares!” e, no final, descobríamos que não tínhamos feito projeto nenhum, e sim jogado uma série de informações no aluno e este tinha ficado perdido. Desde que a Suely (Professora Coordenadora) está aqui, temos discutido até que ponto temos desenvolvido a interdisciplinaridade de verdade e descobrimos que podemos trabalhá-la a partir de um filme, um texto, e não somente por um projeto gigantesco. O professor de Geografia trabalha um filme e o professor de Português também discute. A contextualização fazemos a partir dessa discussão, a gente conversa com o aluno, em todas as aulas, o que o professor falou e trazido para o dia-a-dia, fazendo com que o aluno trabalhe assuntos em diferentes disciplinas e assim acaba fazendo a interdisciplinaridade. Para mim a interdisciplinaridade e a contextualização melhoram a prática. O aluno se vê de forma compartimentada, e sabemos que não é assim. Com a contextualização ele percebe que não: o professor de Geografia ensinou a professora de Português a ler mapas; em Português eu leio gráficos, não só em Matemática. O aluno aprende através de relações entre tudo o que estão aprendendo. O contato com os pares para desenvolver a interdisciplinaridade é fundamental. O colega tem que estar disponível para. Até o aluno questiona: “Mas o trabalho vai valer para todas as disciplinas?”. Aí vamos explicando a contribuição de cada disciplina ao aluno. Os pares têm que estar integrados, acabam falando a mesma língua. Mesmo que os critérios e as posturas sejam diferentes, é importante mostrar ao aluno o porquê desse trabalho, qual o seu objetivo. Eu me formei muito jovem, com 21 anos. Em alguns momentos eu estava muito convicta do que queria, outros não. Eu fui ser professora porque acreditava. Eu tive uma professora de Língua Portuguesa, de Técnica de Redação, chamada Maria Carmela que me disse: “Você tem o dom da oratória, sabe convencer as pessoas daquilo que você quer”. Minha mãe sempre me dizia isso e apontava qualidades, mas eu precisei de alguém de fora para me mostrar isso, habilidades que eu tinha, mas que minha mãe apontava e eu não aceitava. Quando eu fui para a faculdade eu descobri que era aquilo que eu queria: que iria aprender para ensinar alguém. Ensinar é algo difícil: mostrar para os outros que eles estão certos ou errados, é algo complicado. Você consegue mudar o mundo ou destruir o mundo. O nosso poder é tão grande e as pessoas não percebem isso. Nós (enquanto professores) estamos mexendo com a cabeça de adolescentes, principalmente no Ensino Médio, e muitos não se dão conta do quanto podemos ser manipuladores. O professor é egocêntrico, gosta de estar sempre na frente de tudo. Escolhi essa profissão porque tenho nas mãos um poder de mudança e cumpro meu papel enquanto cidadã. Mas é difícil trabalhar em equipe, pois ora você brilha, ora o outro brilha, e às vezes ninguém brilha, e é o momento de retomar. Com exceção de Física e Química, minha relação com as disciplinas era excelente. Como aluna eu sempre gostei de ler, adorava estudar, chegava em casa e estudava através da brincadeira, fazia um baú antigo de lousinha e repetia todos os dias a
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lição aprendida na escola e fazia minha lição de casa assim. Falo que criei um método de estudar através do lúdico, e isso hoje passo para meus alunos e para minhas filhas.. A família era grande e eu tenho uma sobrinha com um ano a menos que eu. Tive uma fase em que eu não queria ir para a escola, pois eu perdi a primeira série, quando descobri que era filha adotiva e dizia para minha mãe que eu não precisava mais estudar e que ela não era minha mãe mesmo. Quando eu voltei para a escola, aos sete anos, encontrei minha sobrinha, mais nova, na mesma série, ai eu percebi o quanto era importante estudar. Daí para frente eu não parei mais. Eu sempre me dediquei, era a primeira aluna, não por cobranças, mas porque eu queria que fosse assim. Tanto é que minha sobrinha começou a ficar para trás. Meu horário de estudo passou a ser sagrado: e é isso que eu passo para eles (alunos). Cada um tem de descobrir a habilidade que possui: se para a informática, dedicando-se a ler, estudar, fazer pesquisa; mexer na internet, buscar resumos de contos, como Sagarana, para estudar e criar seu próprio caminho. Acho que Física e Química são o trauma de todo aluno que sai do Ensino Fundamental, pois nessa etapa o estudo está mais ligado as ciências naturais, e no Ensino Médio é somente cálculo. Na minha época fazíamos a área de exatas, humanas e biomédicas; mesmo assim eu reconhecia as questões da área de exatas e dava conta das provas. É importante a maneira como se cria o conhecimento. Com a minha filha de 18 anos eu criei com ela sistematicamente um sistema de estudo e, por mérito dela, sem fazer cursinho, entrou na USP. O aluno tem de entender isso: não importa ter o melhor professor do mundo, se ele (aluno) não construir seu conhecimento não vai para frente. Não há Universidade, não há curso que coloque você onde você não consegue chegar. Nós é que construímos nosso conhecimento. O papel do professor hoje mudou: antigamente, o aluno tinha outra postura em sala de aula, de mais respeito para com o professor. Hoje, o aluno não tem compromisso nenhum, não tem compromisso com ele, não tem compromisso com o estudo dele e não tem compromisso com o professor. Então acho que o Ensino Médio hoje em dia ele tem o papel de resgatar esse compromisso para que o aluno chegue lá na frente e Proposta, da forma com que ela está, está fazendo com que o professor dialogue mais, discuta mais com o aluno, despertando o interesse de uma forma nova. O aluno constrói o conhecimento dele ao longo do curso. Se ele não construir, ninguém o fará por ele. Em minha vida pessoal, encontro marcas que me fizeram chegar a esse ponto. Minha mãe, por exemplo, embora faça vinte e quatro anos que ela tenha falecido, eu a vejo todos os dias comigo. Minha mãe era professora: foi a primeira professora rural, em Minas Gerais, em Ouro Fino, numa cidade minúscula. Ela dizia que ensinar é a coisa mais gratificante do mundo: então, todas às vezes que eu vou dar aula, eu me lembro dela. Outra marca muito forte são as minhas filhas: eu trato meus alunos como eu gostaria que tratassem minhas filhas. Eu não agrido, paro, respiro, e digo que da mesma forma que eu os respeito, eu exijo respeito por parte deles. Eu trago minhas filhas para a sala de aula a todo tempo, trago para meus alunos exemplos da minha vida, para que eles tenham como parâmetro aquilo que eu vivenciei. Trago muito do meu cotidiano, como quando leio alguma coisa, quando faço algum curso, como uma vez em que uma contadora de histórias num curso contou a história das “Mil e uma noites”, e daí montei um projeto. O aluno para, ouve, e isso motiva. Eu tenho marcas profundas, como o projeto de Literatura de Cordel, em que levei os alunos ao SESC. Eu me recordo de uma senhorinha, aluna do EJA, que na visita ao SESC fez uma aula de xilogravura, e, com lágrimas nos olhos, me disse: “Professora, a primeira vez que eu tive contato com xilogravura foi quando eu tinha três anos de idade. A senhora me fez voltar no tempo”. Todas às vezes que eu falo de xilogravura eu conto essa minha vivência para os alunos; são marcas que não dá
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para o professor não trazer para a sala de aula. Experiências você tem que trazer para o aluno, ai você contextualiza: “por que eu tenho que estudar tudo isso?”. O “Ensino Médio em Rede” discutia muito o Protagonismo Juvenil. Sempre falo: “nós somos protagonistas da nossa vida e da nossa história, daqui cinquenta anos alguém vai discutir o que fizemos e julgar se foi bom ou ruim”. Tenho muitas experiências e trago todas elas para a sala de aula, é claro que dentro de um contexto. Eu não sei jogar para o aluno o conceito de Modernismo, em Literatura, sem explicar o contexto histórico: disse a eles que nasci em 1965 e vivi na época da ditadura militar.Quantas histórias vivas as mães e os avós têm para contar... As marcas que vivi estarei sempre passando para eles (alunos). Para eu discutir com alguém eu preciso saber sobre aquilo que estou falando e ter vivência daquilo: são as benditas marcas, há 22 anos dando aula, eu tenho de ter aprendido alguma coisa. Só conseguimos fazer isso sendo honestas, mostrando ao aluno que você gosta daquilo que você faz, pois para ser professor hoje no nosso país é muito fácil: se você é engenheiro tem direito de dar aulas de Matemática, biólogo marinho pode dar aulas de Biologia, mas para ensinar Português você tem que fazer Letras, você tem que gostar de dar aulas, tem que fazer licenciatura. Os professores vem e vão, mas quem fica é aquele que se dedicou, que sabe que seu salário é baixo, sabe que vai levar trabalho para casa. Sua escolha profissional tem de pesar os prós e contras. Os alunos, no terceiro ano do Ensino Médio, estão às portas do mercado profissional e nossa experiência pode auxiliá-los. Lembro de um aluno nosso, chamado Raul, que estava fazendo engenharia na FAI e que fez apenas quatro messes, saiu da faculdade, e foi fazer gastronomia. Esse aluno trouxe seu pai para conversar comigo, alegando que eu era uma pessoa ponderada, e eu perguntei ao aluno se era isso que ele queria e ele disse que sim. Eu disse ao pai que era melhor ele ser um chefe de cozinha feliz do que um engenheiro frustrado, que iria vender pastel na feira. Quando eu falo isso para os terceiros anos de agora, eles dão risada, mas depois discutimos. Querendo ou não são marcas que deixamos nos alunos e eu insisto no poder que o professor tem sobre os alunos e muitas vezes não se dá conta. Resgatar as histórias de vida no coletivo, entre os professores, é importante, mas nem todos os professores se dão conta disso: alguns professores têm receio de mostrar quem verdadeiramente são. A grande maioria de nós tem medo de mostrar seu lado pessoal. Quando estamos abertos a fazer algo, fazemos. Não vejo hoje o grupo docente tendo essa disponibilidade de falar de si, é complicado quando você conta quem você é, pois as pessoas vão julgar quem você é: sempre olham você com um olhar errado. Agora, todos foram almoçar, mas eu não fui. Se eu não desse essa entrevista a você eu não iria me sentir bem: se eu não fizesse a entrevista eu iria me sentir frustrada, pois porque outros fizeram e eu não pude fazer. Eu não sou diferente de ninguém e às vezes é mais difícil dizer isso do que assumir as diferenças. Não vejo as pessoas disponíveis para isso. Acredito que a maioria ainda é fechada e tem dificuldades. Tivemos uma atividade com psicólogos aqui na escola, num âmbito pequeno, onde interagimos com colegas. É difícil ser avaliado pelo outro, principalmente pelos colegas. O aluno não, ele sempre percebe seu professor. Esse momento da entrevista foi mais uma marca, uma experiência nova, muito legal quando você se predispõe a fazer, por não ter sido imposto. O ser humano é curioso: dar a entrevista para você, nesse momento, foi prazeroso, por retomar quanta coisa eu já fiz e quanta coisa estou fazendo, quantas coisas eu deixei de fazer. O ser humano tem necessidade de falar. Eu estou passando por um processo de parar e pensar, pesar os prós e contras, vou ter que tomar uma decisão no ano
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que vem, pois no próximo ano não sei se vou conciliar o horário do Estado com a Prefeitura. Essa entrevista foi o momento de voltar para dentro de mim. Pensei que talvez essa entrevista seja a possibilidade de ter uma resposta. Acredito que nada acontece por acaso, tudo tem um porquê, tudo tem um objetivo e uma meta, são momentos que você guarda ou não: o que vou guardar daqui? Eu tive um momento de parar, pensar e mim, e refletir se sou uma boa profissional. No início da entrevista eu poderia até responder que não, mas agora, avaliando tudo que fiz, sei que sou uma boa profissional, posso não ser a melhor de todas, mas também não sou a pior. Eu tenho um caminho que eu acho que descobri qual é. Talvez eu chegue lá na frente. Obrigada!
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UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO – UNICID PROGRAMA DE MESTRADO EM EDUCAÇAO
SUJEITO 3 – PROFESSORA RENATA: Meu nome é Renata, fiz faculdade na Universidade São Judas, no curso de Letras. Na verdade, minha primeira opção seria Psicologia, mas como eu tinha de estudar à noite para trabalhar, cursei minha segunda opção, que era Letras. Depois que eu comecei a fazer o curso, me identifiquei, pois sempre gostei muito de ler. Fiz Português e Inglês. Já no quarto ano da faculdade, comecei a lecionar, como professora, a titulo de experiência, porque não existiam muitos professores na rede, e acabei ficando, depois que comecei, fiquei 11(onze) anos na mesma escola, na área de Português. Inglês não é meu forte, quando precisa, eu trabalho. Neste ano “me efetivei”, e é o que eu gosto. Totalizo 21(vinte e um) anos de rede pública. Durante esse tempo, fiz alguns cursos de formação continuada, como o PEC, Teia do Saber (por três anos), Africanidades (no ano passado), fiz o “Ensino Médio em Rede”, pela escola. Não fiz mais porque não surgiram oportunidades. Acho muito importante participar de cursos, primeiro pela troca de experiência, pois quando você está com outros professores, de outras escolas, a troca é importantíssima: você troca o que sabe com os outros colegas, descobre realidades que você não imagina, e se aprende muitos mais nesses cursos do que na formação inicial, como aperfeiçoamento. No “Ensino Médio em Rede”, participei das discussões sobre interdisciplinaridade e contextualização. Aqui na escola temos discutido muito sobre esses temas: normalmente montamos projetos aqui na escola e usamos a interdisciplinaridade sempre, que é super importante, até por conta da Coordenação, que auxilia bastante, vai amarrando nosso trabalho. A Professora Coordenadora acaba trazendo os outros professores e aí acaba funcionando por conta disso. Discutir sobre interdisciplinaridade e contextualização melhora a prática dos professores, pois o professor tem a tendência de se fechar na área dele, sabe, “eu sou de Português, deixo de ensinar história, geografia, ciências”, mas não é nada disso. Quando você discute tais conceitos, você passa a perceber que esses conhecimentos fazem parte da outra disciplina e você começa ajudá-lo também, pois ele passa a se interessar mais. E os outros professores que estão muito fechados passam a se abrir mais, e isso é muito importante. Como pré-requisito para o trabalho seria o fato dos professores estarem dispostos, o que falta muito, é ter um mediador, senão não tem como, se não tiver alguém que direcione, que puxe os outros, que coordene, pois cada um tende a falar que vai somente fazer a sua parte e o que sei e isso somente, não resolve. Se ficar somente por conta apenas dos professores, não resolve. Uma pessoa que influenciou minha escolha profissional foi uma professora de literatura que tive, ainda no Ensino Médio, que tinha uma paixão tão grande para ensinar para gente, que me fascinava, eu gostava de viajar nas histórias. Eu gostava de ler, mas não me envolvia tanto. Com a paixão que ela transmitia pra gente, eu comecei a descobrir o encanto pela literatura. Ela vivia isso: chorava e se emocionava ao contar as histórias. Acho que seu nome era Neide. Eu me descobri ali, onde tive o prazer de ler literatura, e foi a partir disso que decidi fazer Letras.
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Antes eu lia qualquer coisa que caía nas minhas mãos, mas, com ela, aprendi a ler livros literários, li até Balzac, que eu nem imaginava que existia, por causa de um comentário que ela fez. Fui até a biblioteca e peguei o livro e o livro é fascinante mesmo. Com esse meu gosto eu acabei até influenciando alguns alunos. Depois de um tempo, cheguei até a encontrar alunos que se tornaram professores devido à influência que exerci sobre eles: eles me disseram que eram professores porque eu ensinava com paixão. Acho que foi muito importante a professora que eu tive e a professora que eu me tornei. Outro livro que me influenciou foi Dom Casmurro, de Machado de Assis, que eu li na oitava série e achei horrível, muito difícil. Mas a partir de uma releitura, onde essa mesma professora me mostrou a importância, mudou totalmente a minha visão. E hoje, quando peço para meu aluno ler, tento mostrar a mesma coisa. Sou apaixonada por Machado de Assis. Na minha vida familiar não encontro nenhuma marca, pois meu pai era analfabeto e minha mãe só tinha o ensino fundamental, então eles não me incentivavam: o importante era trabalhar. Quando eu ficava lendo, diziam: “Você vai ficar lendo para quê? Leitura não dá dinheiro”. E eu disse para minha mãe que um dia iria dar. Quando eu me formei aquilo se reverteu: eles ficaram muito orgulhosos, e aí mudou. O reconhecimento surgiu da conquista realizada. Meu sobrinho fala todo orgulhoso: “minha tia é professora”. Ao mudar de escola, sentimos a diferença de clientela. Outros alunos, realidades diferentes. Posso pedir mais leituras. Como aluna, não era uma excelente aluna: sempre tive que trabalhar e estudar à noite, até mesmo no Ensino Médio, e era difícil. Eu sempre tive dificuldade em Exatas. Sofri muito. No Ensino Médio, a área de exatas era meu sofrimento. Eu não conseguia acompanhar de jeito nenhum. Tive até aulas particulares, com colegas de classe, amigos, primos. Em humanas eu ia melhor. Na faculdade era uma das melhores da classe, em literatura, apesar de ter um professor muito exigente. Recordo que em uma prova ele até me questionou por ter tirado uma nota 9,0, mas eu expliquei que fazia anotações de suas aulas no caderno e na prova eu escrevi aquilo que ele pediu. Na faculdade tinha ótimos professores, era obrigada a ler muito (o que eu gostava) e o que me fascinava era o conhecimento que os professores tinham. Eu pensava: como alguém pode guardar tanto. Agora, estimulo meus alunos. Quando peço um livro para leitura, conto uma parte a história e isso os estimula, deixando-os curiosos para continuar a leitura da obra. No ano retrasado, tive um aluno da Suplência, com 70 anos de idade, que valeu toda a minha carreira. Como eles (alunos) não liam, eu propus um trabalho em grupo e disse que eles seriam obrigados a ler. No final do trabalho, esse aluno veio me agradecer me disse: “Professora, com 70 anos eu nunca tinha lido um livro na minha vida. Esse foi o primeiro e com ele descobri o quanto é bom ler”. E ele me disse que iria continuar lendo, não sei por quanto tempo e isso foi muito gratificante: marcar a vida de alguém. Nos programas de formação continuada tive a oportunidade de fazer um resgate da minha trajetória e das minhas vivências ao fazer o curso Teia do Saber. Cada história de vida marca a pessoa de alguma forma e acaba por interferir na sua vida profissional, sempre. Conhecer a história de vida melhoraria a prática pedagógica, pois a troca de experiência é sempre importante, às vezes, ele (colega) tem uma
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história parecida com a sua e você nem imaginava, e ele conseguiu superar algo e você pensa: “Nossa, é possível fazer isso”. Às vezes o aluno tem uma vivência parecida e você não sabe como chegar até o aluno. Essa conversa significou relembrar coisas que há muito tempo não pensava: lembrei do meu ensino médio, o que me motivou seguir o curso, de alguns livros lidos.
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SUJEITO 4 – PROFESSOR GABRIEL: Meu nome é Gabriel, tenho formação em Administração de Empresas, dei aulas por quatro anos, mas eu gostava mesmo de Arte. Em 2005 resolvi fazer um novo curso, de Educação Artística. Estudei na UNICSUL fazendo a licenciatura, e ao mesmo tempo fazia a formação de professores de Matemática. Já trabalho há três anos com a disciplina de Educação Artística. Eu gosto de trabalhar com todas as idades, mas dou preferência pelo Ensino Médio. Nunca participei de programas de formação continuada, pois não sou professor efetivo. Na escola participo dos HTPC‟s com a Suely, Professora Coordenadora. Aqui os HTPC‟s são ótimos, a gente aprende muito, a direção da escola também é muito atuante. Já participei de Orientação Técnica na Diretoria de Ensino, no ano retrasado. Não participei do Programa Ensino Médio em Rede. Os conceitos de interdisciplinaridade e contextualização são discutidos nos momentos de HTPC‟s. Falamos sobre a importância desses conceitos, de como o aluno encaram e acabam tendo um interesse maior quando se combinam as disciplinas, como um trabalho de mosaico que foi feito englobando Arte, Matemática e História. Às vezes o trabalho passa despercebido, mas as coisas não são soltas: existe uma ligação entre os conhecimentos e conceitos e o quando o professor mostra essa ligação ao aluno, aguça seu interesse. Uma disciplina depende da outra: até na cor, para se chegar numa cor tem Matemática, para formar um mosaico, utiliza-se as medidas e a forma. O conhecimento é único: todas as disciplinas são importantes e não existem disciplinas mais importantes que outras. A Arte não é uma disciplina secundária. Se eu achasse que a Arte é uma disciplina secundária teria optado em ensinar Matemática. Gosto de Matemática, bem mais de Arte, porque com a Arte posso ensinar Matemática. O trabalho com interdisciplinaridade e contextualização coloca todas as disciplinas em patamar de igualdade. É possível trabalhar com outras áreas de conhecimento, fazendo-os perceber que através da ciência chegamos a códigos, trabalhamos com linguagens, materializamos as ideias, tornamos as ideias físicas. E também o oposto: desmaterializar para chegas as ideias. Como pré-requisitos para o trabalho interdisciplinar temos: o bom entendimento entre os professores (pares), a organização da escola (horários quebrados não colaboram para isso), o trabalho de coordenação (coordenador como articulador), o encontro dos professores nos HTPC‟s (horários comuns). Quando eu estudava era um aluno muito esforçado, gostava de ir à escola, numa época de escola rígida devido ao período militar. Éramos quatro irmãos e fui o único que se interessou em continuar os estudos. Fiz Administração, comecei a trabalhar muito cedo, com quase 15 anos, como office-boy, sempre buscando serviço na área administrativa, depois ingressei numa instituição financeira, onde fiquei por quase dez anos. Foi na época do Collor, trabalhava na área de exportação. Depois desse período, fiquei desempregado. Foi quando uma amiga me disse: “Por que você não vai dar aula?”. Essa amiga já trabalhava numa escola estadual. Eu fui dar aulas de Matemática e adorei. Percebi que eu sempre tive muito medo dos professores de
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Matemática e a garotada não tinha esse medo. Tínhamos um bom relacionamento e eu passei a ter um certo encantamento por isso. Trabalhava à noite, a equipe da escola era muito boa e eu gostei. Daí com o governo Covas, houve a exigência dos professores terem formação pedagógica, num curso preparatório, pois eu lecionava em caráter excepcional. Daí eu comecei a trabalhar com pintura decorativa de paredes, aprendi as técnicas, e esse interesse começou quando eu era pequeno: ajudava meu pai a pintar a casa, dos meus irmãos eu era o que ajudava mais. Nunca tinha feito nenhum curso de desenho. Recordo-me do meu professor de desenho da oitava série que pediu para nós fazermos um desenho abstrato e isso marcou para mim. Comecei a fazer trabalhos de pintura decorativa de paredes, todos elogiavam. Como eu gostava do abstrato, criei técnicas de pintura, esquematizei cursos, comecei a mandar currículo para algumas escolas. Fiz um curso de pintura abstrata no SENAC, até um dia que, fazendo um trabalho num apartamento próximo do Anália Franco ouvi no rádio que a UNICSUL estava com um curso de Educação Artística e resolvi me inscrever. No curso comecei a fazer estágio e gostei. Gosto de Matemática e de Arte: se eu tiver que optar por uma delas, minha opção é a Arte. Na faculdade de Artes tive mais de um professor marcante: o Paschoal, de teatro; a Solange, contadora de histórias; o Claudemir, de multimídia, que abriu minha mente para outros trabalhos materializados; a Sandra, mais da parte de didática; a Leda, de Psicologia. Traria do meu curso o conhecimento das variadas linguagens (visual, música, cinema). A faculdade me deu o alicerce para trabalhar com o lado da Arte, o embasamento técnico da disciplina. O estágio também foi muito importante, bem rígido, com muitas horas e em diferentes etapas: educação infantil, ensino fundamental, médio, escola da família. Com relação ao relacionamento com os alunos, o meu modo de ser como professor já trouxe do meu modo de ser na vida, desde a época de que era professor de Matemática: como sou na vida, sou dentro da sala. Sempre fui de bons amigos, imponho respeito pela amizade. Trouxe da minha vivência pessoal e profissional, da época em que ensinava Matemática. Mas com a faculdade de Artes tive um aprofundamento. Como obras marcantes destaco as de Mondigliane, e sempre passo o filme “Mondigliane: paixão pela vida” aos alunos, que tem uma história triste, mas dá uma outra visão, pois os alunos estão sempre acostumados só com Van Gohg, Tarsila do Amaral, Picasso, Almeida Júnior, e esse filme mostra o outro lado do artista, conta uma história, mostra outros artistas, importante para o jovem se tocar. Ao mesmo tempo em que passo o filme vou trabalhando alguns conceitos, como o preconceito, a questão das drogas. Já na faculdade esse filme foi marcante. Um livro que destaco é "Da cor à cor inesistente", de Israel Pedrosa, um autor brasileiro. É um livro caro, que tem vários efeitos e é sobre a cor; quando vi me apaixonei. Tudo que acontece na minha vida tem uma história. Na época que vi esse livro pela primeira vez estava fazendo um trabalho no bairro do Tatuapé, num prédio luxuoso, e a família tinha tido a perda de um filho, e eu acabei pegando amizade com eles. Ia todos os dias e quando acabei o trabalho, além de me pagar, a mãe do rapaz me deu também o dinheiro para comprar o livro. Meu projeto inicial seria ensinar o povão, a classe popular, mais humilde, a decorar a casa utilizando a cor, para destacar a importância que a cor tem na vida da gente. Quando fiz um curso na Escola Paulista de Arte, achando que com ele poderia dar aula, num dos semestres apresentei uma monografia sobre a cor. O professor me elogiou muito pelo trabalho e fez uma dedicatória para que eu nunca abandonasse
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esse sonho de levar a cor para a vida do ser humano. Com os alunos eu trabalho esse tema, neste ano ainda não trabalhei por conta da Proposta Curricular. Meu pai e minha mãe eram semi-analfabetos. Meu pai tinha muita vontade de estudar, mas meu avô não deixava, pela exigência do trabalho na roça. Quando tinha um dinheiro comprava caderno e um lápis, mas quando meu avô via, rasgava e jogava tudo fora para ele trabalhar na roça. Essa história me marcou muito e me impulsionou a buscar o estudo e a estimular os outros a estudar. Sempre tive muito respeito pela terceira idade, nunca trabalhei com o EJA, mas tenho muito respeito pelos idosos, e ensino os alunos a respeitarem seus avós, porque a gente vê tanta coisa ruim. Minha vida foi sempre assim: sempre estive estudando ou fazendo alguma coisa para dar aulas. Meus amigos não gostavam de estudar: eles perguntavam “Você vai parar de estudar quando?”. Este ano que eu dei uma parada, pois terminei a faculdade no ano passado, em 2007. Só, mas eu estou morrendo de vontade de retornar. Ingressando na rede, eu espero, quero poder voltar. Matemática e Ciências sempre gostei muito. Sempre tive um pouco de dificuldade em Português, mas também sempre fui um aluno esforçado e conseguia passar acima da média. Converso muito com os alunos sobre a necessidade de termos esforço e perseverança. Eu me identifico mais com o Ensino Médio, pois acho que eles são mais carentes: estão numa idade que eles se vêem mais perdidos, não têm muito diálogo muito com os pais, mesmo na escola eles não têm tanto contato e espaço com os professores, têm receio de se aproximar, e é nessa brecha que eu me aproximo. Se eu noto que algum aluno está triste, me aproximo. Mesmo os alunos que estão abaixo da média, que não vão bem, sempre têm algum problema, seja ele familiar, ou de relacionamento com os colegas. Uma “besteirinha”, para eles, é um grande problema insolúvel, e para nós é um problema tão simples: é bater o olho e um conselho já ajuda. Costumo sentar com os alunos, ao lado deles, em pé de igualdade, orientando-os a dialogar com os pais. O ser humano tem muita falta de diálogo. Esse problema trago por mim: eu sempre fui muito tímido, tive problemas no campo profissional, quando trabalhava ainda em empresa, pela comunicação que não se estabelecia. Dou espaço para os alunos brincarem comigo, mas imponho respeito. Na hora da explicação da matéria não, mas em outros momentos, se alguém olhar, fica difícil diferenciar quem é o professor e quem é o educando, até pela altura deles. É como eu digo a eles: aprendi muito na faculdade isso. Eu também estou aberto à aprendizagem: eu também não sei tudo. Eu também aprendo com eles, eu passo o que sei, assim como eles aprendem comigo. O dia-a-dia é uma aprendizagem: aprendo com o trabalho que eles trazem, com a história de vida deles, porque os alunos desta escola são de longe, não têm a vida fácil, vêm de trem. Amadurecem muito cedo, mas também eles não podem esquecer-se de ver o colorido da vida. Adorei essa proposta nova de Artes, acredito que é um grande passo para colocar a Arte em pé de igualdade com as outras disciplinas: agora a disciplina tem um conteúdo, é possível avaliar o aluno. Costumo devolver todos os trabalhos, fazemos concursos internos dos melhores trabalhos, estimulando a todos, porque todos são capazes. Daí vem a auto-confiança e o reconhecimento de sua capacidade. Trabalhei a história de vida dos alunos a partir das atividades da Proposta Curricular, que davam abertura para isso. Uma das atividades pedia para escreverem o que viam no trajeto para a escola, numa primeira fase relacionada à arte visual (grafite, mural de escola de samba). Depois foram os sons, os sons que ouviam nesse trajeto. Daí percebi que a maioria ouvia as conversas e os sons do trem, e que
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moravam muito longe da escola. Essa valorização é muito importante, principalmente na participação da comunidade na escola. A família precisa estar envolvida com a escola. Nos momentos de formação continuada junto aos outros professores, temos espaço, nesta escola, para falar do aluno, surgindo a brecha de falarmos de fatos pessoais, como a minha postura junto aos alunos. Qualquer ser humano tem que aceitar e encarar a experiência vivida como aprendizado. Todos têm na sua vida fatos positivos e negativos. O grande aprendizado é tirar dos fatos negativos uma lição e trazer isso para os nossos alunos, como um exemplo, para que eles não cometam os mesmos erros, e se eu puder estar dividindo isso com os meus colegas, com os meus pares, é ótimo, pois eles vão ter ao lado deles um exemplo vivo ao lado deles, alguém que teve um aprendizado e está querendo expandir, e não guardar somente para si. É muito egoísmo do ser humano guardar só para si quando temos milhões e milhões de pessoas para dividir. Alguns alunos sentem o professor muito afastado, com medo. Os alunos têm uma visão: tem o professor que se aproxima mais e outros que se afastam. Esse afastamento só prejudica o aprendizado dos alunos e o trabalho dos docentes. Os professores precisam se aproximar entre si e dos seus alunos. Eu sinto o meu trabalho facilitado com essa proximidade. Nunca tive problema de um aluno ficar com nota vermelha comigo (porque fica) e contestar, tanto na disciplina de Matemática quanto em Artes. Não tem bate-boca por nota, eles se aproximam e dizem: “Eu errei !”. Tem diálogo, pelo trabalho não entregue na data, pelo material não trazido. O professor acaba conhecendo o aluno. Eles têm muitos problemas familiares. Adoro Paulo Freire, foi um autor muito importante quando fiz a faculdade de Educação Artística. Vygostsky também. Não tinha tido contato antes quando fiz Administração. Também o autor Pedrosa, mineiro, que escreveu livros fantásticos. É isso.
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SUJEITO 5 – PROFESSORA SILVIA: Meu nome é Sílvia; fiz Letras, Português e Inglês, na Universidade Nove de Julho, e escolhi o curso porque sempre quis, sempre gostei muito de Língua Portuguesa, depois caí no Inglês, para completar o total de aulas, e acabei gostando. Fiz cursos na área e hoje tenho mais habilidade com a Língua Inglesa. Isso porque tive uma professora na 5ª série que eu admirava muito, porque ela falava muito bem, e me recordo até do nome dela: Maria de Lourdes. Ela marcou demais a minha profissão; embora o campo da educação seja difícil, eu não me arrependo e faria novamente. Logo depois da faculdade, em 1990, iniciei a docência na rede particular e em 1998 na rede pública. Na rede pública atuo há 10 anos, mas faz 17 anos que leciono no Ensino Médio. Fiz vários cursos, como a Teia do Saber e o curso da Cultura Inglesa. Acho importantíssimo participar de cursos, pois nós, professores, que trabalhamos na rede estadual não temos muito tempo para nos aperfeiçoar: trabalhamos manhã, tarde e noite, para sobreviver. Restam-nos os sábados, para fazer uma pós. Eu acho que o Estado deveria abrir um campo para o professor se especializar, é isso que nós estamos precisando. Essa briga por salário, eu até concordo, mas eu gostaria que nossa briga fosse para nossa especialização, para a nossa função de trabalho, uma briga para que a especialização fizesse parte do horário de trabalho. Quanto ao “Ensino Médio em Rede”, lembro de comentários superficiais nos HTPC‟s, não de forma profunda. Os conceitos de interdisciplinaridade e contextualização também foram trabalhados de forma superficial. Porém, nesta escola, aqui nós discutimos bastante nos HTPC‟s. Para um trabalho interdisciplinar, discutimos que o trabalho não pode ser individual, e sim deve ser em grupo. Nós procuramos fazer atividades integrando Artes, Geografia, Inglês, mais em projetos. Isso melhora bastante a prática, atingindo o aluno, deixando de se importar apenas com a sua disciplina, aprendendo a trabalhar em grupo, socializando os conhecimentos. Eles (os alunos) são muito individuais e a vida não é individual. Para um trabalho interdisciplinar é muito importante que os HTPC‟s sejam voltados a explicar como se dá esse trabalho, pois ainda há professores que resistem, que acham que o trabalho deve ser tradicional, abrir mais questões, espaço para discussão, para troca de ideias para trabalhar juntos, a serem levadas aos alunos para que eles entendam a proposta e encarem com mais seriedade. E cursos, o Estado deveria fornecer mais cursos. Toda mudança é radical e temos que acompanhar a modernidade: nosso aluno é novo, não é da época de 40 anos atrás. Na faculdade, eu me recordo de outra professora de Português, de gramática, muito boa, que aí eu confirmei a minha certeza em fazer Letras. Por ironia do destino, eu fiz Letras para dar aula de Português e de Literatura, eu dizia que não queria dar aulas de Inglês. Aí eu fui para essa escola particular dar aulas de Português e a dona da escola me disse que tinha duas aulinhas de Inglês e que não compensaria contatar outro professor, oferecendo essas aulas para mim. Eu fui tão covarde na época que disse que não. Eu não fui capaz, estava insegura. Quando eu ingressei
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no Estado, eu substituí uma professora de Português, em licença médica, por trinta dias. Ao final desse período, o Diretor da escola me disse que tinha sorte e me ofereceu outra substituição, pelo ano inteiro (estávamos no mês de março), só que de Inglês. Aí eu pensei: não posso rejeitar novamente. Vou ficar desempregada, sem nenhuma aula? Aceitei e logo de cara tive que enfrentar os terceiros anos do Ensino Médio. Pensei: o que vou fazer? Comecei fazer cursos, estudar, e hoje gosto mais de Inglês. Rejeitei duas aulas e tive que pegar vinte. A necessidade fez com que eu corresse atrás, estudasse, deixasse a insegurança e o medo. Um professor da faculdade dizia: “Medo é pêlo enraizado. Tem que arrancar esse pêlo”. Eu me lembro disso até hoje e isso marcou muito a minha formação, os desafios. O próprio Ensino Médio, eu saí da faculdade e peguei o Ensino Médio. Hoje eu trabalho também com o fundamental, mas eu consigo me entender melhor com o médio, com os alunos e com o conteúdo. Quando eu fui estudar Inglês fiz Cultura Inglesa e aulas com uma professora particular. O que me encantou foi o método dessa professora, a conversação, a forma como ela explica que eu me identifiquei mais, a didática que ela utiliza. Ela é extremamente inteligente, bem mais jovem que eu, e ela me trata assim: “Olha, você não fez a lição!”. Eu acho aquilo legal, ela cobra do aluno. Você, quando vira aluno, também tem suas recaídas. Mas foi com ela que eu aprendi Inglês: eu me identifiquei muito com o método dela. Tive muito apoio da minha irmã, pois minha mãe não valorizava tanto os estudos, entendia que as mulheres deviam se dedicar apenas aos afazeres domésticos. Eu já trabalhava desde os quatorze anos, em escritório, tinha meu emprego, mas eu fui estudar porque eu quis, pelo meu esforço próprio eu que paguei a minha faculdade, com muita dificuldade. Minha irmã foi uma pessoa que me apoiou muito. Depois que eu me formei, todos ficaram muito orgulhosos, pois eu fui a única dos oito irmãos que terminou a faculdade na época. Eu sou apaixonada por Fernando Pessoa: “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. Fernando Pessoa é para mim uma referência na Literatura Portuguesa. Um livro que me marcou muito e que eu recomendo sempre aos meus alunos é Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Um filme que tem uma parte que eu gosto é o da Guerra de canudos, de Euclides da Cunha, que ele fala: “O sertanejo é antes de tudo um forte”. Quer dizer, você que se sofre, mas que não se pode desistir (persistência). O que um líder faz? Antonio Conselheiro: era um líder ou um louco? Ele levou muita gente, embora elas morressem, e isso foi de uma coragem... Sempre gostei muito de História: tive um professor que era ótimo. A única matéria com a qual eu não dava muito bem era Matemática: eu sempre tive muita dificuldade, e vencia dificuldade com muito empenho. Ciências eu gostava muito. Na minha época tinha um bom relacionamento com os professores, embora na minha época os professores fossem muito distantes, e isso era comum. Hoje essa distância me incomodaria, pois hoje o aluno é diferente: os alunos são questionadores, e isso é positivo, pois o ser humano é questionador. Não tive nenhum espaço, em programas de formação, ou mesmo no âmbito da unidade escolar, para discussão da história de vida pessoal. Acredito que essa discussão ajudaria muito, pois, pelo que conversamos podemos descobrir aquilo que gostamos. Numa conversa, um colega pode dizer que fez a faculdade e caiu na educação e isso é uma coisa gravíssima: nós mexemos com vidas. Há dias que
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chegamos na sala de aula com problemas, mas quando isso ocorre eu respiro fundo e penso: nós somos os educadores. E você, às vezes, ouvindo o aluno, taxado com impossível, pode até ajudá-lo, através de uma conversa. É conhecer um pouquinho da vida de cada aluno. Conhecer a história de vida de todos é difícil. Abrir esse espaço, conhecer um pouquinho da vida de cada professor, porque ele chegou até aqui, é importantíssimo. Nós não podemos desistir da educação. Essa pesquisa que você esta fazendo com a gente, o que te levou, o que te marcou... Esse resgate está sendo muito significativo: gostei muito do que passei, das minhas dificuldades, o que eu passei, as lembranças me fizeram voltar ao passado, as minhas conquistas, o convite da minha formatura que eu entreguei para minha irmã, a faculdade que fiz com sacrifício quando fiquei desempregada, e isso me dá muito orgulho.