elizabete cruz - o homem que amava demais texto

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  • Elizabete Cruz

    O LIVRO EST MORTO!......O LIVRO NUNCA ESTEVE TO VIVO!

    O HOmem que AmAvA demAis

  • Agradeo a todos que, de alguma forma, contriburam para que este livro existisse.

  • O Homem que Amava demais Elizabete Cruz

    I 7

    Prlogo

    O cu estava limpo, e as estrelas quase podiam ser contadas. Um ambiente atpico para uma noite de Dezembro, mas no entanto agradvel. L dentro, dentro da casa do seu amigo, a msica convidava toda a gente a divertir-se, mas ela estava ali. Fitava o cu, incessantemente, tentando a todo o custo passar despercebida. Olhou para o relgio: eram 23h30. Devia estar feliz, era suposto estar. Mas no estava.

    Esperava-o. Sabia que a qualquer instante ele estaria ali, consigo, naquela varanda, debaixo daquele luar. O seu temperamento no o deixaria fazer o contrrio, tinha de ser o mesmo controlador de sempre. No se enganou, ele apareceu.

    - Que ests aqui a fazer? - ouviu a sua voz grave dirigir-se-lhe, e encarou-o com o olhar.

    - Precisamos de falar - os olhos dela estavam isentos de compaixo - hoje o ltimo dia do ano. No queria ter esta conversa contigo hoje, mas se h melhor altura para mudar, sem dvida o dia de hoje.

    - Que queres dizer com isso? - o semblante dele ganhou um ar nervoso.

    -Hojevouprumfimnanossarelao-comoolhar,impediu-ode ripostar - preciso da liberdade que tu me tiraste.

    - Continuo sem te entender - o nervosismo passou a uma intensa inquietao.

    - No entendes? Durante todos estes meses fui subjugada tua tirania, ao teu controlo e tua vontade. Chega! Estou a colocar um pontofinalemtudoisto!Amanh,amanhserumanonovo!

    - No me podes fazer isto! No podes! No entendes? Eu morro sem ti

    - No sejas ridculo. De repente, ele pareceu controlar-se e consequentemente tomar

    o controlo da situao. - Se me deixares, eu mato-me. Ela j esperava aquilo. Sempre o mesmo prepotente, o mesmo

    idiota que achava que podia ter tudo custa de meia dzia de palavras. Daquela vez enganava-se! Ela no se renderia! Sem lhe dar qualquer resposta, abandonou-o e voltou para dentro de casa. Sentiu uma

  • O Homem que Amava demais Elizabete Cruz

    8 I

    pontinha de felicidade, minscula, mas no queria partilh-la com ningum. Era a sua liberdade, a sua quase esquecida liberdade, queria goz-la sozinha.

    Resolveu sair da festa por uns instantes, deixar os seus amigos alheios a tudo o que se estava a passar e caminhar. Estava uma noite perfeita, pensava. Nada lhe podia estragar aquela bela noite, que se mostrara to favorvel para ela dar um passo em frente na sua vida. No entanto, quando ouviu um carro atrs de si, a andar a velocidade excessiva, teve a certeza de que todos os seus planos para aquela noite acabariamporficarestragados.

    Tudo aconteceu muito depressa. O carro passou por si a uma grande velocidade, provocando uma aragem incomodativa na sua passagem, e seguiu at ao cruzamento mais frente, que se podia ver do local onde ela estava. O motorista do carro que se dirigia para o mesmo cruzamento, na direco perpendicular, no o viu, e o embate foi estrondoso.

    - Meu Deus! Ele est naquele carro! - seriam remorsos, aquilo que estava a sentir?

    Correu para l, to depressa que j nem sabia se as pernas lhe estavam realmente a doer de tanto se esforar. Tinha que chegar l o mais rapidamente possvel para ter a certeza de que ele estava bem. Idiotice a sua como podia ele estar bem? O carro dele tinha sido empurrado pelo que circulava na direco perpendicular, e fora embater com violncia num muro, depois de ter capotado. A parte da frente do carro ardia, mas ele no fazia qualquer esforo para se mover. Quandoelachegousuficientementeperto,viuasmltiplasferidasnacabea, de onde saa imenso sangue.

    - Tens de sair daqui - gritou - o carro vai explodir. Ele olhou-a, quase indiferente. Sabia que o carro ia explodir,

    mas, por qualquermotivo que no identificava, as suas pernas noestavam motivadas para o tirar dali. Tentou os braos tambm no mostraram qualquer vontade de se moverem. Ao se aperceber do que se passava, percebeu qual era o seu destino.

    - No me consigo mexer - disse, o mais alto que a voz lhe permitiu - acho que parti a coluna.

    Viu o terror nos olhos dela, juntamente com a certeza de que ele ia morrer. Se me deixares, eu mato-me, era o que soava constantemente na cabea dela. Ele no podia fazer aquilo! No podia matar-se por ela!

  • O Homem que Amava demais Elizabete Cruz

    I 9

    - Tenta mexer-te por favor! - o desespero chegou ao auge, e as lgrimas fugiam-lhe descontroladamente pelos olhos.

    - Estou paralisado, meu amor. Vou morrer aqui - as palavras soaram-lhe to aterradoras - desculpa.

    - No, tu no vais morrer! Eu vou tirar-te daqui! O fogo continuava a lavrar, e ela sabia que no tinha muito

    maistempoparaconseguiroimpossvel.Dejoelhos,enfiouosbraospelo vidro e agarrou-o pelos ombros, puxando at onde a adrenalina lhe permitiu. No surtiu efeito. Olhou em volta, em busca de algum que a pudesse ajudar, mas ningum parecia estar em casa. Maldita noite de Ano Novo! Observou ento o outro carro, em busca de sinais, mas o outro condutor, se estava vivo, estaria certamente tambm muito mal.

    -Ouve-meInsouve-me! -asuavoz fracaera insuficientepara lhe despertar a ateno - H algo que preciso que tu faas, algo questupodesfazer-elafinalmentedesviouasuaatenoparaaspalavras dele - sabes que h muito tempo que procuro o meu pai. Encontrei uma pista, uma pista que me pode levar a ele. Procura em minha casa, no meu computador.

    - Tu vais fazer isso, tu no vais morrer, tu vais fazer isso! - a todo o custo, ela tentava convencer-se dessa mentira.

    - Sai daqui Ins, o carro vai explodir. Sai! - No saio! No instante seguinte, ela sentiu umas mos fortes puxarem-na

    para trs. Colidiu com o cho com violncia, e o corpo masculino que a puxara caiu ao seu lado. Levantou a cabea a tempo de assistir ao pior pesadelo da sua vida: com estrondo, o carro explodiu. Uma lngua de fogo subiu ao cu, e vrias peas do carro espalharam-se por toda a rua. Imaginou-o l dentro, a arder, a sentir a sua pele a ser arrancada pelo fogo. O cheiro a carne queimada trouxe-lhe nuseas, e ela escondeu o rosto no peito do seu irmo, que a salvara daquela morte.

    - Desculpa - sussurrou, para ningum. De repente, soaram as doze badaladas. Momentaneamente, o

    cu encheu-se de luz, graas ao fogo-de-artifcio. O ano novo acabara de comear.

  • O Homem que Amava demais Elizabete Cruz

    I 11

    Captulo UmRedeno

    De onde vir todo este calor? No conseguia entender como de repente tudo se tornara to quente. E de onde vinha aquele barulho? Olhou em volta, muito atentamente, sem no entanto conseguir discernir a fonte daquele rudo ensurdecedor. E doa, doa muito, como se lhe estivessem a arrancar a pele. Tentou levantar um brao, com a inteno de descobrir porque lhe doa tanto, mas no conseguia mexer o brao, ele prprio recusava-se a facilitar o movimento. Toda a foraquedemoveuparaoseumembrosuperiornofoisuficienteparao fazer sair da sua teimosia, e ele permaneceu quieto. E de repente, percebeu porque lhe doa: tudo estava a arder, todo o seu corpo ardia e ela no conseguia mover-se da dor que o fogo lhe provocava. Percebeu o barulho, um murmrio quase inaudvel que subiu de tom e se transformou numa temerosa voz masculina.

    - Sofre o que eu sofri. A culpa tua - dizia a voz, vezes e vezes sem conta.

    Ento abriu os olhos, e pde vislumbrar a doce face do seu irmo, Francisco, que lhe acariciava suavemente os cabelos enquanto ela dormia com a cabea pousada nas suas pernas. Francisco possua uns dceis olhos castanhos, transparentes para o interior da sua alma, portadores de uma enorme calma. Depois daquele maldito sonho, foi a melhor viso de que se achou merecedora.

    Tinham passado apenas umas horas depois do fatdico acidente que vitimara Carlos e pusera o outro condutor numa cadeira de rodas, paralisado dos membros inferiores. Depois de comunicado o acidente polcia, Ins viu-se obrigada a contar os factos tal como os presenciara, aps isso Francisco trouxe-a para casa e esforou-se para a fazer dormir. Esforo em vo, j que de cada vez que Ins fechava os olhos sentia-se novamente a arder, e aquela voz dorida berrava-lhe ao corao que a culpa era sua. E, depois de sonhar uma e outra vez, ela prpria se ia convencendo dessa verdade. Ela provocara aquilo, ela fechara-lhe a porta na cara e ignorara quando ele lhe dissera que morreriaseelafizesseaquilo.Eeleestavamorto,talcomogarantira.

    - Como ests? - perguntou Francisco, quando viu a irm acordar.

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    12 I

    - Nunca poderei estar bem. Ele morreu, bem na minha frente. Morreu s minhas mos.

    - No penses assim. No eras tu que ias a conduzir, no foste tu quem provocou o acidente. Ele morreu porque foi irresponsvel.

    Ele no sabia, ningum sabia como ela se sentia, porque pura esimplesmentenoconheciamtodaahistria.Mas,sepodiaconfiarem algum para libertar as suas mgoas, esse algum seria o seu irmo. Ento, lavada em lgrimas, Ins foi contando ao irmo o que a atormentava e a culpa que carregava consigo. De cada vez que pensava naquela conversa que tivera com Carlos sentia-se ainda mais culpada, tendo perfeita noo que se no tivesse decidido acabar a relao ele ainda estaria vivo. Como podia a responsabilidade daquela morte no ser dela? Nada do que lhe dissessem era capaz de contra-argumentar contra a sua conscincia pesada.

    Francisco, surpreendido por saber que Ins terminara o namoro com Carlos, no foi capaz de atribuir as culpas sua irm. O destino no algo que se possa mudar, se era suposto Carlos morrer naquela noite, naquele acidente, ento ele morreria, quer Ins tivesse acabado o namoro ou no.

    - Eu s quero morrer - lamuriou Ins. No querendo propriamente magoar a irm, Francisco no se

    impediu de dar uma leve palmada na cabea, por forma a mostrar a sua indignao. Ela nem reagiu.

    - No digas asneiras Ins! A culpa no foi tua! - Se ele me amava e morreu porque eu no soube aproveitar

    esse amor, porque mereo eu viver? Ele morreu e eu vivo qual a justia disso? - na voz de Ins despontava o desespero - Ele estava ao meu alcance, ardeu e desapareceu. Eu mereo desaparecer com ele.

    Pousando calmamente a cabea de Ins na almofada, Francisco levantou-se e pegou nos calmantes que a me tinha deixado em cima da cmoda. Forou Ins a tomar um e, a seguir, esperou que ela adormecesse para sucumbir ao cansao a seu lado.

    - No tens o direito de viver, morri por ti e tu nada mereces. S te desejo que ardas no fogo do inferno, esse o prmio que levas de mim.

    Mais uma vez Ins acordou e viu que continuava no seu escuro quarto.Oseuirmodormiaaseulado,eelaficoualiviadapornooter acordado. O sol aparecera h poucas horas, mas na sua casa parecia

  • O Homem que Amava demais Elizabete Cruz

    I 13

    que ainda toda a gente dormia. O mais silenciosamente que conseguia, retirou-se de debaixo do lenol e calou os chinelos que tinha ao lado da cama, em cima da carpete. Dirigiu-se cozinha e encheu um copo com gua da torneira, levando-o de seguida boca para beber.

    Nem um dia passara desde o acidente, mas Ins sentia que no conseguia viver com aquele tormento. As memrias no a deixavam dormir, aquela voz amedrontava os seus sonhos e convencia-a de que era um monstro. E pior que isso, ela comeava a sentir-se como tal. Achava que merecia morrer, tal como ele morrera, tal como a voz lhe dizia.Eafinal,quelhecustavaacabarcomasuavida?Narealidade,nada. S estaria a fazer a justia que nunca existiria, j que nenhuma prova a condenava como assassina. Mas ela sabia que o era, e devia punir-se por tal.

    Lembrava-sedetervistoameaafiarasfacasnodiaanterior,por isso elas estariam perfeitas para o que ela pretendia. Escolheu uma das maiores, uma de talhante, cuja lmina a convidava a no ter medo. O que estava prestes a fazer no era nem de perto doloroso como morrer pelo fogo, mas era suficiente para expurgar os seuspecados. Com os olhos rasos de lgrimas, deixou-se escorregar, com as costas encostadas parede, at ao cho. Olhou o seu brao branco e descortinou facilmente as suas veias mais salientes, local onde direccionaria o golpe. Queria tanto comear no ano novo uma novavida,queamelhorformadeofazereradefinitivamenteacabarcom a anterior. Observou a lmina, brilhante, que silenciosamente a convencia a lev-la conhecer a sua pele. Podia jurar, conseguia veraquelafiguraassustadora,aarder,aacus-la,na lmina.Talvezestivesse a cometer um erro, mas como podia viver com aquilo? bvio, no podia. O que podia era acabar com tudo aquilo. E, expulsando todas as rstias de medo, encostou a lmina veia e pressionou at sentir dor. As primeiras gotas de sangue trouxeram-lhe receio, mas no podia parar. No mereces viver. Vais arder no fogo do inferno. O fogo a esperava, tal como ela merecia, e a ideia f-la deslizar verticalmente a lmina at ter um corte suficientemente grande para a fazer esvair-se.

    Corriam grossos fios de sangue pelos seus braos, quemaliciosamente iam banhando o cho da cozinha. Doa, doa muito sentir a pele ser rasgada em duas, mas pelo menos a sua alma sentia-se mais leve. Talvez fosse porque estava a morrer, e tendo perfeita noo disso j nada lhe importava. Queria fazer o mesmo ao outro brao,

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    masas forasno foramsuficientespara sequerpegara faca comamo enfraquecida. Deixou-a cair ruidosamente e, em plena harmonia consigo prpria, deixou-se ser embalada por aquela voz. Estava cada vez mais fraca, e sabia que em poucos minutos a sua vida passaria a ser uma memria das pessoas que a amavam. Lembrou-se ento que nem se tinha despedido delas, que nem sequer tinha pensado no sofrimento delas aquando da sua partida! Talvez elas no merecessem, e ela fosse apenas uma egosta. Uma egosta assassina que retirara duas vidas e destrura a vida de muitas outras pessoas.

    A cozinha estava a andar roda, e a dor parecia estar a passar. A morte de Carlos estava prestes a ser vingada, e nada podia trazer Ins de volta vida. Aceitando o destino que ela prpria traara, fechou os olhos e esperou que a morte viesse. Foi ento que ouviu passos atabalhoados, vindos no sabia bem de onde. Viu a expresso aterrorizada de Francisco e, no momento seguinte, embateu com fora contra o cho.

    O seu brao tinha um profundo golpe, com uns dez centmetros de comprimento, do qual j no brotava sangue. Mas continuava a doer, doa muito, como se essa dor mostrasse que ainda assim ela no merecia perdo. Da ferida comeava a irradiar calor, que em pouco tempo se transformou numa longa e viva chama e que queimou todo o membro superior. Mais uma vez, parecia que a pele lhe era arrancada fora, enquanto aquele cheiro nauseabundo lhe assaltava o nariz. Vai ser este o meu inferno, pensava ela, com as lgrimas a atingirem-lhe os olhos.

    - Descansa minha querida, a festa acabou de comear - ouviu aquela maldita voz dizer-lhe.

    Instantaneamente, sentiu algum a deferir-lhe um corte no outro brao, semno entanto ver quemofizera.O sangue fugiu-lhedescontroladamente, como se ele prprio desprezasse a dona daquele corpo. Um e outro corte foram feitos no seu corpo, e muitos outros se lhe seguiram, at que a dor se tornou insuportvel. Depois disso, tudo ardeu.

    Ins acordou aos berros, numa cama de hospital, tresloucada e sem noo da realidade. Berrou at que a dor lhe passasse, mas a voz esgotou-se-lhe antes de conseguir essa proeza. Continuava a doer imenso, s no sabia o qu, j que os cortes no estavam l e o fogo no

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    a cercava. Observou as enfermeiras que entretanto tinham corrido para

    ela e se preparavam para lhe injectar um calmante, caso ela no tomasse conscincia do que se estava a passar. Observou os seus pais e o seu irmo, que a olhavam com o olhar triste, mas sobretudo surpreendido. No sabia onde estava, no fazia ideia do que se tinha passado nem de como tinha ido ali parar. O seu brao estava envolto em ligas e compressas, para curar algo que ela desconhecia. E ento tudofezsentido:aquelecorte,deondesarafogo,foraelaqueofizerapropositadamente. A sua inteno era morrer, mas por algum motivo nem esse desejo o destino lhe dera o prazer de saborear. Continuava a viver e a sonhar.

    A sua me abraou-a, encostando a cara molhada pelas lgrimas pelesecadafilha.AseguiroseupaieFranciscorepetiramoacto,ambos no mesmo estado de desespero. Queriam saber porque tinha Ins cometido tal actode loucura, quemotivo seria suficientementeforte para a convencer a destruir a sua prpria vida?! Ela no sabia responder, naquele momento s sentiu que o devia ter feito, que devia fazer justia com as prprias mos, com as mos assassinas que tinham levado Carlos morte.

    - Espero que desta vez entendas o que te quis dizer - disse Francisco, quando os pais no estavam a ouvir - o Carlos morreu porque o destino assim o quis. Nada poderia ter sido mudado, nem por ti nem por ningum, porque no somos ns que o controlamos. Mas a tua morte no estava nos desgnios do destino, e por isso tu hoje acordaste. V se entendes que tu deves estar viva, e o Carlos deve estar morto.

    Um estranho arrepio percorreu a espinha de Ins, no com o temor de ser enfrentada tantas vezes com a realidade da morte de Carlos, mas pela verdade que tudo o que o seu irmo dizia encerrava. Estava viva. No sabia como, mas estava. E naquele momento s conseguia agradecer por no ter conseguido terminar com tudo, por ter a oportunidade de ouvir o seu irmo dizer-lhe aquelas palavras de incentivo. Mas aquela voz ela ainda continuava l, encarcerada no fundo da alma de Ins, numa jaula com a chave perdida, e ia continuar a atorment-la.

    Apesar de precisar de descansar, Ins temia fechar os olhos e voltar a arder, enquanto ouvia dizer que o seu inferno ia ser aquela dor e sofrimento. Obviamente, quando a enfermeira lhe deu o

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    calmante,poucosminutosforamsuficientesparaqueelafechasseosolhos e casse no sono. No conseguiu sentir tranquilidade, o sono foi demasiado atribulado, mas no sonhou com chamas e sangue. Mas Carlos continuava l, dentro do seu inconsciente, e Ins s desejava tir-lo de l.

    Aofimdealgunsdias,Inspdesairevoltarparacasa,apenas

    com a recomendao de voltar para consultas com o psiclogo do hospital. Quando pisou o cho da cozinha, conseguiu vislumbrar o sangue que j tinha sido limpo, e que ainda assim brilhava aos seus olhos. Podia ter morrido ali, e na altura parecia o mais correcto, mas agora que tudo estava mais calmo a recordao do acto deixava-a assustada. Se era capaz de repetir? Duvidava disso. No o faria, no depois de ter visto o desgosto que provocaria aos que a amavam. Se Carlos estava morto e no se importava com mais nada, porque haveria ela de se importar?

    - Parece que o funeral do Carlos amanh - disse Francisco - queres ir l?

    - No h nada do Carlos que eu possa ver a no ser um monte de ossos carbonizados com restos de pele derretida em cima - respondeu Ins.

    - No podes v-lo, mas pelo menos pode senti-lo. - Eu sinto-o demasiado, sabes? Todas as vezes que adormeo,

    ele est l, ele assusta-me, ele diz-me que vou arder no inferno, tal comoele.Eunooquerosentirmaisqueisto-osolhosdeInsficaramrasos de lgrimas.

    Francisco abraou a irm, abraou-a com tanta fora que podia sentir o seu corao bater desenfreadamente. Queria tanto que a sua irm tivesse paz, que deixasse de se culpar por uma morte que no causara! V-la ali, banhada em sangue, no seu prprio sangue, causou-lhe um sentimento de perda to grande que pensou que o seu mundo ia desabar. Ia perd-la pela segunda vez, a sua irmzinha mais nova, mas mais uma vez roubara-a da morte no ltimo instante. Ins, a sua irm trs anos mais nova, era a mulher que mais amava, em conjunto com a sua me, e naquele momento tinha a certeza que no estava a cumprir o seu papel de protector. Oh, era melhor continuar abraado a ela, assim apertadinho, para ter a certeza que ela continuava bem viva junto de si.

    No dia seguinte, os amigos de Ins foram visit-la. Tinham

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    tomado conhecimento da sua tentativa de suicdio, e o choque apoderara-se de todos eles. Depois de perder Carlos, no podiam suportar a dor de perder mais um amigo, e por isso estavam ali, para dar o seu apoio quela pessoa que estava to perdida por causa de um sonho que a endoidecia. Estavam todos de preto, de rostos melanclicos carregados de revolta e desgosto, os olhos no cho, pesados de tristeza. Iam para o funeral de Carlos.

    As caras desgostosas deixaram Ins pesarosa e com vontade de se suprimir a si prpria. No podia ver todo aquele sofrimento, era como sevisseoreflexodoseuprpriodesespero.Secalhar,secomparecesseao funeral, podia banir aquele sonho que lhe jurava vingana. Talvez fosseo suficientepara terpaz.Talvez assimpudesse realmenteprumpontofinalemtudo,despedir-seconvenientementeeprparatrsdas costas. No era a nica que sofria e que chorava, outros sentiam o mesmo e no entanto estariam presentes para se despedirem de Carlos.

    Resolveu tirar um dos vestidos pretos que tinha no guarda-vestidos,quelheficavapelosjoelhoselhetapavaopescoo,evesti-lo,juntamente com as meias de vidro e as botas de cano alto igualmente negras. Apanhou o cabelo liso e comprido num rabo-de-cavalo e colocou uns ganchos de lado para prender as pontas soltas. Observou-se ao espelho, e o fantasma que viu pareceu-lhe no to horrvel depois de mais bem vestido. Colocou base na pele clara, para disfarar as noites mal dormidas, e preparou-se para sair. Se era para dizer definitivamenteadeusaCarlos,entof-lo-iacomoumapessoadignae no como um traste.

    No funeral, o ambiente era pesaroso, como no se podia esperar outra coisa. Muitos amigos comuns de Carlos e Ins marcaram presena no funeral, alguns nem acreditando no propsito que os levara ali. Aproveitando sempre para observar o cho, Ins assistiu missa junto dos pais e de Francisco. No queria cruzar o olhar com o da me de Carlos, com medo de sentir dio por lhe ter tirado o nico filho.Alis,noeraapenasonicofilho:Carloseraonicoparenteprximo daquela mulher. Pais j no os tinha, e o pai de Carlos sabe-se l onde andaria. Dizia-se que tinha ido trabalhar para o estrangeiro eporlficara,semnuncatervistoofilhoqueemPortugaldeixara.Ofilhoqueoprocuraraequemorreraantesdeoconseguirencontrar.Ele pediu-me para o encontrar, talvez devesse faz-lo, recordou Ins. Mas como poderia encontr-lo? No o conhecia, no sabia o seu

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    18 I

    nome, nem sequer uma foto tinha. E se o encontrasse, o que lhe faria? Dizia-lhequetinhaumfilhoemPortugalquemorreraporsuacausa?Era s isso que Carlos queria? No fazia sentido

    Ins nem deu pela missa a passar, e quando deu por si estava em frente ao caixodemadeira clara, cobertodefloresde todos ostipos. Tambm ela tinha uma, uma rosa vermelha, igual s que ele lhe costumava oferecer, que colocou em cima do caixo junto das outras. O caixo estava fechado, como j era expectvel, e Ins imaginava o que estaria l dentro. No sentia nada, sabia que Carlos no estava ali, apenasficarapara trsummontedeossoscarbonizados,eportantono encontrou a paz que procurava.

    - Desculpa - disse, beijando depois a mo e pousando-a em cima do caixo.

    Virou costas, sem dizer uma palavra, e dirigiu-se para a porta do cemitrio. No queria mais ver aquele cenrio, j gravara o suficiente namente. Nada tinhamelhorado, antes pelo contrrio: acoragem que a tinha levado at ali desvanecera-se, dando lugar quele horrvel sentimento de culpa. Meteu-se dentro do carro e esperou que os seus pais e o irmo voltassem para a levarem para casa. Eles, ao aperceberem-se da ausncia de Ins, apareceram no carro pouco tempo depois.

    - Falei com a me do Carlos - disse Francisco, suavemente - ela gostava que tivesses ido falar com ela. Ela no te culpa

    - Culpo-me eu - cortou Ins. No banco da frente, os pais de Ins abanavam tristonhamente a

    cabea,cadavezmaispreocupadoscomoestadodafilha. - No havia nada que pudesses fazer. A autpsia revelou

    um corte na medula espinal, logo ele estava tetraplgico. No o ias conseguir tirar do carro, nem que puxasses at no poderes mais.

    - Eu puxei at no poder mais, e apesar de saber que no me ia adiantar de nada puxar ainda mais, tambm sei que fui eu quem o empurrou para aquele carro.

    - No eras tu que estavas naquele volante - Era eu que estava a conduzir a sua mente. Francisco no contra-argumentou, sabia que qualquer tentativa

    era desnecessria. Talvez o psiclogo conseguisse chegar mais fundo na mente da irm, acalm-la e libert-la daquilo que a assustava. Da sua parte, no sabia o que poderia fazer, no conseguia dar mais de si.

  • O Homem que Amava demais Elizabete Cruz

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    Quando chegou a casa, Ins s queria refugiar-se no seu quarto e no ser incomodada. Estava to cansada de tudo, queria tanto conseguir apagar a sua memria! Queria dormir at que tudo aquilo melhorasse, at que pudesse sair rua e no ver o preto, em perfeita conjugao com os semblantes carregados de tristeza. Queria tanto que aqueles sonhos desaparecessem, e tudo no passasse de uma m fase. Queria tanto tanta coisa!

    - Bem - disse para si prpria - posso comear por tentar dormir. Sim, parecia-lhe uma boa ideia. Pousar a cabea, tentar apagar

    e aproveitar os poucos minutos antes de voltar a ter aqueles malditos sonhos.Afinal,quandoacabariameles?Durariamparasempre?No,no podiam, ou ela endoideceria.

    Viu a caixa de comprimidos para dormir que o irmo deixara ali para ela tomar. Certamente tomaria um. Despiu-se ento, e foi tomar um rpido banho. A seguir, pegou num comprimido e meteu boca, engolindo-o a seguir com gua. Voltou a observar a caixa: ainda tinha tantos, e s com um no conseguiria dormir. Tomou mais dois e, sem pensar nas consequncias, tomou mais trs. Queria tanto dormir, que nem se apercebeu que aqueles comprimidos eram fortes, e que estava a cometer um erro. Deitou-se e aconchegou-se nos seus lenis, paraficarquentinha.E,antesquesentissenecessidadedesemoverdasua posio, adormeceu.

    No percebeu por quanto tempo esteve a dormir, mas pareceu-lhe muito tempo. E tinha-lhe sabido to bem! Nem rstia de sonhos de pessoas a arderem enquanto a tentavam levar para o Inferno! Quando abriu os olhos no percebeu, mas pouco depois chegou concluso que aquele no era o seu quarto. No entanto, tinha a certeza de que em algum dia j tinha acordado ali.

    Sentou-se na cama. Francisco estava sentado numa cadeira, beira da sua mesa, e nem conseguia olh-la nos olhos. Ins no precisou de ver muito mais para perceber que estava novamente no hospital, e o motivo pelo qual ali tinha acordado.

    - Francisco - balbuciou. -Nomedigasnada,asrio.Snoacreditoqueofizeste

    novamente! E sem esperar resposta, visivelmente chateado, o rapaz

    levantou-se e foi-se embora. Ins no se lembrava de alguma vez ter visto o seu irmo to chateado consigo.

  • O Homem que Amava demais Elizabete Cruz

    20 I

    - Mas eu s queria dormir - disse para si prpria, sentindo-se ridcula.

    - Fale-me daquela noite - pediu o jovem psiclogo. Ins observava aquele homem, impecvel dentro do seu fato

    negro, com a barba feita e o cabelo penteado da maneira mais formal possvel.Algumlhemandaraconfiarnaquelehomem,maselanovia motivos para o fazer. Diziam que ele a poderia ajudar, para lhe contar tudo, mas ele continuava a ser um desconhecido. Bem, tentaria esforar-se.

    - Ns discutimos, eu terminei o namoro. Ele disse que se eu levasse a ideia avante ele matar-se-ia, e eu ignorei-o. Mais tarde ele estava a arder minha frente, e eu no consegui salv-lo. Foi o que aconteceu naquela noite.

    -Edesdeentotemtidoossonhos-Insconfirmoucomumaceno de cabea - fale-me deles.

    - Toda a vez que adormeo tenho esse sonho. Uma voz fala comigo, eu acho que o Carlos, e diz-me que eu vou arder no fogo do inferno, que a culpa toda minha, que eu mereo um castigo. E tudo arde minha volta, sinto o cheiro a carne queimada e a pele a ser arrancada pelo fogo. Depois de ter feito isto - levantou o brao ainda envolto em compressas - comeou a aparecer tambm sangue no sonho. Sinto a pele a abrir, e revivo a cena vezes sem conta. Acordo sempre sobressaltada - de cada vez que recordava o sonho, Ins sentia um arrepio na espinha que no conseguia evitar.

    O psiclogo ouvia atentamente, e os seus olhos demonstravam que a sua mente estava pensativa.

    - Tem de se abstrair da ideia de que a culpa foi sua. Tem de encontrar a paz dentro de si. S assim se conseguir livrar desse sonho.

    - E como posso fazer isso? - indagou Ins, farta de ouvir sempre o mesmo.

    - Porque se tentou suicidar duas vezes? - No se responde a uma pergunta com outra pergunta - S assim poderei fazer o meu trabalho. Claro, o seu trabalho. O seu tremendo esforo para ouvir casos

    sem cura alguma, a troco de algum dinheiro. Cada vez gostava menos daquele rapazinho.

    - No era minha inteno suicidar-me. No da segunda vez. E

  • O Homem que Amava demais Elizabete Cruz

    I 21

    da primeira, creio que no me pode condenar, no acha? O psiclogo calou-se, observando-a. Aquela relao estava a

    ser tudo menos fcil. Ela no se deixava trabalhar, estava de p atrs, no lhe dava qualquer oportunidade.

    - H alguma coisa de especial que ele lhe tenha dito antes de morrer? - perguntou o psiclogo, depois de ter pensado durante uns instantes - qualquer coisa.

    - Bem - Ins pensou no que ia dizer - ele pediu-me, mesmo antes de morrer, para encontrar o pai. Ele nunca o conheceu, segundo lhe contaram, ele foi trabalhar para o estrangeiro e no voltou. A me nolhedisseparaonde,etambmnuncapareceuquererqueofilhodescobrisse o paradeiro do pai. O Carlos pediu-me que o encontrasse, disse para procurar nas coisas dele, ele tinha descoberto uma pista. Mas agora nada disso faz sentido, o Carlos est morto, nunca ir conhecer o pai. Qual ento o propsito de eu o encontrar?

    - O Carlos sabia que ia morrer e ainda assim fez-lhe esse pedido. Por alguma razo o fez. Sugiro que faa o que ele pediu, que o faa por ele, e talvez assim encontre a sua paz.

    Ins meditou sobre o assunto. Podia tentar, certamente o acto no lhe traria nada de mal, mesmo que fosse em vo. Se assim pudesse expurgar os seus males, no hesitaria em remexer no passado de Carlos e cumprir o seu ltimo desejo.

    Asessopoucomais tempodurou,mas foiosuficienteparaIns ter a certeza que ia procurar entre as coisas de Carlos at descobrir o que tinha ele encontrado. Ia comear mal sasse dali. Quando saiu do consultrio viu Francisco, que estava na sala de espera, impaciente, a olhar para uma revista sem realmente a ler.

    - Vamos para casa do Carlos - informou Ins. Francisco no teve tempo de ripostar, e mal teve oportunidade

    para perguntar qual o motivo daquela sbita deciso. Forosamente, lconseguiuobterasuaresposta,efinalmentemudouasuarotaparaa casa de Carlos. Ins ia calada, absorta, em busca s ela sabia do qu. Pelo menos parecia a Francisco que a visita ao psiclogo lhe tinha feito algum bem. Pararam em frente casa de Carlos, e Ins contemplou-a, enquanto buscava coragem para o que ia fazer. Decidida, tocou campainha, e poucos minutos depois uma senhora chorosa abriu-lhe a porta.

    - Ins, minha querida - disse a me de Carlos - que fazes aqui?

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    22 I

    - Peo desculpa por no ter falado consigo no funeral - Ins sentiu-se mal por no o ter feito - mas no tive coragem para o fazer.

    - Ins,euseioquefizestecontigo,euseioquetedi.Comopoderiaeuculpar-te?Jqueomeufilhonopodeficarbem,quefiquestu. s boa rapariga, no mereces carregar semelhante fardo.

    Ins sentiu as lgrimas a voltarem aos seus olhos, e todo o seuesforono foi suficientepara evitarqueelas cassem.Limpou-as rapidamente, na esperana de que a me de Carlos no se tivesse apercebido delas. Mas ela apercebeu-se, instantaneamente abraou-a, e juntas experimentaram o calor de quem padece dos mesmos sentimentos.

    -Queviesteaquifazer?-perguntouporfimamedeCarlos. - Se no se importasse, gostava de estar um bocadinho com as

    coisas dele. Espero assim conseguir sentir-me melhor. A me de Carlos anuiu, e deixou a jovem e o seu irmo vontade

    na casa que j to bem conheciam. Sem controlar os ps, Ins guiou-se at ao quarto do seu ex-namorado. Tudo lhe pareceu estranhamente aterrador naquela diviso. Viu a persiana semi-aberta, deixando entrar apenas uma rstia de claridade. Viu as coisas que estavam dispersas pela secretria, demasiado quietas, demasiado solitrias. Viu a cama de casal de madeira, coberta pelo edredo azul-escuro, onde pela primeira vez tinha experimentado a sensao de fazer amor. Custava-lhe estar ali, eram demasiadas recordaes. S a boa razo que a levara ali a impedia que desistisse de tudo e corresse o mais depressa possvel para longe dali.

    - Onde ests a pensar procurar? - perguntou Francisco, cortando o silncio.

    - Ele disse-me para procurar no computador - respondeu Ins, enquanto se sentava em frente ao computador de Carlos e o ligava.

    Enquanto esperava que o ecr se iluminasse, Ins pensava por onde iria comear a procurar. Os documentos pareciam um bom local para comear, as pesquisas de Carlos poderiam estar por l guardadas. Mal o computador lhe permitiu, abriu ento a pasta em que estavam guardados os documentos, e foi percorrendo a enorme lista sem no entanto encontrar nenhum nome que lhe parecesse suficientementesuspeito.

    - Isto vai demorar algum tempo - disse, suspirando. Francisco sentou-se na cama, enquanto via a irm escrever no

    computador, nervosamente. Aquilo era como procurar uma agulha

  • O Homem que Amava demais Elizabete Cruz

    I 23

    num palheiro. E ele estava to cansado! No tinha dormido nada de jeito nasnoitesanteriores,slheapeteciafecharosolhosedeixar-seficar.Queriamuitoajudarairm,masaofimdealgumtempodetrabalhosem qualquer resultado comeou a encostar a cabea almofada que estava em cima da cama e a deixar-se dormir.

    Aofimdealgumtempo,Instinhaacabadodeverosdocumentosde Carlos, sem conseguir algo que a ajudasse. A sua segunda ideia foiverificarossites visitados na Internet nas trs semanas que tinham decorrido,oquelhelevouotemposuficienteparaadeixarcansadaecom os olhos a arder. Desistiu.

    - Vamos embora Francisco, no encontrei nada - disse, enquanto abanava o irmo para o fazer acordar.

    Comdificuldade,Franciscolseobrigouaacordarealevantar-se. Aquela tarde teve exactamente o desfecho que ele j previa: no iam encontrar nada.

    Enquanto iam ter com a me de Carlos, Ins foi enunciando tudo o que tinha encontrado no computador, sem qualquer interesse aparente para o que tinham ido l fazer. Falava baixo, para a me de Carlos no ouvir, e por isso ela no deu pela presena deles quando a encontraram sentada no sof, com uma foto na mo e as lgrimas nos olhos. Era a foto de um homem jovem, de cabelo castanho curto, um bigodinho engraado e uns olhos cor de avel que pareciam transmitir doura.Afotografiapareciajteralgunsanos.

    Quando a me de Carlos se apercebeu da presena deles no tentou disfarar o seu estado.

    - o pai do Carlos - disse, mostrando a foto a Ins - ele descobriu estafotoumdia,epassouhorasafiocomelanamo.Elequeriatantoconhecer o pai e eu nunca o permiti. Este homem nunca sequer soube que o Carlos existiu.

    Ins observou novamente a foto, assimilando a cara do seu objectivo. Tinha dado um pequeno passo em frente na sua demanda, mas o seu entusiasmo dizia-lhe que podia conseguir mais naquele dia. Aquela cara no lhe era de todo estranha. Recordava-se de ter visto algum parecido com aquele homem, no sabia onde. A sua mente cavalgou para os espaos mais recnditos da sua memria, em busca daquela imagem que tanto a ajudaria. Pensa, pensa! No, no conseguia lembrar-se do local onde tinha visto aquele homem. Ainda assim,memorizouacaraqueestavanafotografia, talvezmais tardelhe viesse a ser til.

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    - Lamento que tenha sido em vo - disse Francisco, quando chegaram ao carro - que pretendes fazer agora?

    - No desistir. Vou encontrar alguma coisa, em algum lado. Estou certa disso.

    Tentava convencer-se a si prpria. Tinha sido instruda para procurar no computador de Carlos, mas nele no encontrara nada de relevante. Ou pelo menos, nada que lhe parecesse relevante. Uma novatentativatalveznolhefizessemal,masentretantocontinuariaa investigar em casa. Lembrava-se de alguns locais na Internet que Carlostinhavisitado,iriarel-loseverificarserealmentenoexistianada do seu interesse.

    Naquela noite, Ins foi a primeira a sair da mesa aps o jantar. Os seus pais estavam a esforar-se para a fazer sentir-se melhor, mas algo mais importante a chamava. Contara-lhes o que pretendia fazer, eles apoiaram-na embora achassem que ela nunca conseguiria chegaraofimdasuademanda.Queriamverasuameninafeliz,nonaquele tormento, no naquela nsia que tanto a assolava. V-la tentar novamente acabar com a sua vida custara-lhes muito, e apesar de ela dizer que no era a sua inteno da segunda vez, no conseguia manter calma. E se, mesmo debaixo do nariz deles, tudo voltasse a acontecer? No sabiam como lidar com isso.

    -Comoachasqueelaficoudepoisdaconsulta?-perguntouame a Francisco, depois de Ins j no estar presente.

    - Melhor, pareceu-me. Ela quer mesmo descobrir esse homem, embora no entenda o que ela vai fazer com essa descoberta. Mas se ela melhorar, ento que esse homem aparea depressa!

    Ins estava no seu quarto, a tentar recordar-se onde tinha visto aquela cara. Estava tudo a um passo de um clique da sua memria. Pegou no computador porttil que colocou sobre as suas pernas, enquanto as esticava ao longo da cama. Consoante se ia lembrando dos artigos e documentos que tinha visitado nessa tarde, ia analisando-os novamente. Toda aquela busca tinha de dar alguns frutos!

    Estava prestes a desistir para ir dormir. Estava ali h quase trs horas, doa-lhe os olhos de olhar para o computador e comeava aficartarde.Jtodaasuafamlialhetinhabatidoportadoquarto,aconselhando-a a deitar-se. Faltava-lhe apenas um artigo que entretanto se lembrava de ter lido naquela tarde, um artigo de um jornal que lhe parecera apenas uma curiosidade. Escreveu no motor de busca o assunto da notcia, e poucos segundos depois tinha-a sua frente.

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    I 25

    Luso-descendente ganha prmio de fsica era o ttulo. Ins nem sequer sabia que Carlos se interessava por fsica. Antes de comear a lerotextoatentounafotografiaanexa,ondeojovemfsicosorria,juntodos seus pais, com a declarao que lhe conferia a licenciatura em fsica na mo. E ento percebeuaquela cara estava ali! Era o pai do jovem! Os mesmos olhos, os mesmos traos, nem os anos a mais a conseguiam enganar. Comeou ento a ler a notcia.

    Dean Mills Silva, 21 anos, filho de pai portugus e me norte-americana, estudante na California State University, o vencedor deste ano do prmio nacional da fsica, destinado a todos os estudantes de fsica nas faculdades de fsica norte-americanas. O seu estudo, relacionado com fsica quntica, valeu-lhe no s o prmio mas tambm a distino de como, provavelmente, um dos melhores cientistas da sua gerao.

    Ins observou novamente a foto, vislumbrou aquele rapaz, mais novo que ela quatro anos, e reparou como partilhava a mesma cor de olhos que o pai. Acabou de ler a notcia, e quando chegou ao fim,oseucoraoparou.Aquelanotciatinhajcincoanos.Omximoque conseguia tirar dali era que h cinco anos o pai de Carlos tinha umfilhoaestudarnaCalifrniaeumamulhernorte-americana,oquedava para deduzir que ele morava nos Estados Unidos da Amrica. Mas cinco anos tinham passado, tudo isso podia apenas no passar de um pretrito perfeito.

    Voltou ao motor de busca da Internet e colocou o nome do jovem fsico, com esperana de assim descobrir o que tinha acontecido ao seu pai. No encontrou muitos artigos relacionados com ele, nem uma dzia, e alguns deles eram iguais aos que j tinha lido. Clicou num ttulo novo: Vencedor de prmio desaparecido.

    Consagrado h apenas duas semanas com o prmio nacional da fsica, Dean Silva foi ontem dado como desaparecido pelos pais. Pouco tempo depois tambm a sua namorada, Abby Sullivan, tambm estudante na California State University, foi dada como desaparecida. A polcia pe a hiptese de terem fugido juntos.

    Mesmo abaixo desta notcia havia uma ligao para uma que dava continuidade ao assunto.

    Dean Silva suspeito na morte da namorada. Uma semana aps ambos os jovens terem sido dados como desaparecidos,

    apareceu finalmente uma pista sobre o que poder ter acontecido. Na tarde do dia de ontem, a famlia de Abby Sullivan recebeu em casa, numa caixa deixada porta, um dedo da jovem. Aps a anlise, confirmou-se que o dedo foi cortado

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    aps a morte da jovem. O paradeiro de Dean continua desconhecido, o que o coloca na lista de suspeitos do crime. Por outro lado, a polcia coloca tambm a hiptese de o jovem ter tido o mesmo fim que Abby.

    Ins lembrava-se de ter ouvido falar daquele caso na televiso, e segundo sabia nunca tinham encontrado Dean. Abriu ento o ltimo ttulo que lhe surgiu.

    Afinal ele vive. Cinco anos aps a morte de Abby Sullivan e o desaparecimento de

    Dean Silva, j ningum acreditava que o jovem pudesse estar vivo. No entanto, foi descoberto em Pirenpolis, Brasil, quando um jornalista preparava uma reportagem sobre a comunidade hippie a alojada. Dean, agora com vinte e seis anos, foi contactado pelas autoridades norte-americanas, s quais contou que h cinco anos atrs ele e a sua namorada tinham sido raptados por um grupo de homens e que aps a morte de Abby tinha sido levado para o Brasil e a deixado, sendo depois salvo pela comunidade a que actualmente pertence.

    Meu Deus, ele est mesmo vivo!, pensou Ins, que aps todas aquelas notcias comeava a mentalizar-se que aquela tinha sido uma pista em vo e que Dean estava morto. Observou a foto em que ele aparecia junto dos restantes elementos da comunidade, e constatou as enormes diferenas que existiam entre o que era Dean antes de desaparecer e aquilo em que se tornara. O rosto tinha-se tornado duro, de feies carregadas; a barba castanha ocupava-lhe o rosto por inteiro e crescia uns centmetros abaixo do queixo; o cabelo, preso num rabo-de-cavalo, ultrapassava-lhe o nvel dos ombros; o corpo tornara-se mais musculado e mais moreno.

    Entusiasmada, Ins levantou-se e correu para o quarto do irmo. Ele j estava deitado, mas ainda assim ela acendeu a luz do quarto, fazendo-o sobressaltar-se na cama.

    - Acorda Francisco, vamos para o Brasil!

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    Captulo DoisA comunidade hippie

    Ansiosa, Ins metia tudo muito pressa dentro da mala. Queria ter j partido no dia anterior, dia que seguiu a sua descoberta, mas s tinha voo marcado para aquela manh, para si e para Francisco. Os pais no a acompanhariam: a me no podia abandonar a loja da qual era patroa, e o pai, presidente da cmara da cidade, j tinha muito com que se preocupar. Para alm disso, nenhum dos dois tinha o esprito necessrio para se envolverem com uma comunidade hippie.

    Francisco achava uma loucura fazer aquela viagem em busca de um passado perdido. Para ele, desempregado e sem grandes compromissos na vida, a viagem no lhe causaria grande transtorno. Mas Ins, como jornalista que era, tinha o seu trabalho no jornal, para o qual alis j no escrevia desde o acidente. No momento estava de baixa mdica, mas aquele assunto no se resolveria assim to depressa, seria preciso muito mais tempo do que aquele que Ins tinha disponvel. Por algum motivo, aquela aventura no lhe agradava nada. Mas era a sua irm, no podia deix-la ir sozinha para o meio do nada, ter com pessoas que ela no conhecia.

    Os pais deixaram-nos no aeroporto. Ins s pensava que estava cadavezmaispertodeacabarcomaquilo tudo,efinalmentepoderestarempazconsigoprpria.Aindasonhavacomaquelafigura,aindaa sentia a assombr-la durante a noite. Queria mesmo fazer aquilo, queria que Carlos soubesse, estivesse onde estivesse, que o seu trabalho seria terminado.Afinal,aliestavaela,preparadaparaseembrenharnumaaventura,daqualnofaziaideiaqualseriaofim,tudoparaseredimir para com ele. Finalmente, viu o avio aterrar e, quase correndo, entrou nele e sentou-se no seu lugar. Tencionava dormir durante a viagem, para que as longas horas que a separavam do seu destino no fossem insuportveis.

    Durante a viagem, foram planeando como seria o percurso quando chegassem ao Brasil. Aterrariam no aeroporto de Braslia, e depois disso apanhariam o autocarro at Pirenpolis. Tencionavam arranjar um hotel por l, no muito longe do local onde a comunidade estava hospedada, para finalmente poder procur-la. Tinhamesperana de que com mapas e algumas indicaes conseguissem l

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    chegar. Depois, adormeceram. Ins acordou quando sentiu uma pequena turbulncia.

    Observou pela janela, sem ter noo de como o tempo tinha passado, e viu a natureza que estava por baixo de si, mostrando que o Oceano Atlntico j ia longe. No deviam tardar a aterrar, por isso Ins abanou Francisco, primeiro ao de leve, depois com mais fora. Ele acordou, maldisposto e com dores no pescoo.

    - Ests pronto? - perguntou Ins, com a felicidade na voz. - Nem um pouco - ironizou Francisco. Ins encolheu os ombros, ignorando mais uma vez as

    preocupaes do irmo. Mesmo que no descobrisse ali nada que a ajudasse, umas frias no Brasil algo que no se pode desperdiar. Espreguiou-se discretamente, e encostou a cabea ao banco, esperando que chegasse a hora de aterrar.

    Braslia surgiu com todo o seu esplendor, chamativa a todos os convidados. Estava muito sol, caracterstico daquela poca do ano, e por isso os dois colocaram um pouco de protector solar nos braos e na cara, bem como os culos de sol. Perguntaram a um habitante local onde poderiam apanhar o autocarro que pretendiam, que muito simpaticamente lhes indicou o caminho a seguir. De malas e sacos, l foram os dois, em busca dessa to desejada comunidade.

    Francisco sentiu-se a chegar ao paraso quando se atirou para cima da cama. Estava um calor insuportvel, as malas pesavam imenso, e chegar at Pirenpolis demorou imenso tempo. S queria tomar um banho e dormir at se sentir totalmente recuperado. Mas Ins no o deixava descansar, estava demasiado entusiasmada.

    - J pensaste que pode ser amanh que o vou encontrar? Amanh posso dar o passo mais importante nesta busca? - Ins fazia pequenas pausas - Imaginas o que ter sentido o Carlos ao descobrir este irmo? Como ter ele reagido? E porque nunca me contou ele nada?

    - E porque no me deixas dormir? - Francisco estava visivelmente aborrecido - descansa, amanh tens um dia longo pela frente.

    - Ai, j amanh! - Ins no conseguia parar de falar. Em desespero, e apesar do calor, Francisco puxou os lenis da

    cama at tapar a cabea e assim abafar o rudo da irm. O dia que se avizinhava iria ser negro: calor, bichos e uma irm em xtase. Tinha

  • O Homem que Amava demais Elizabete Cruz

    I 29

    muitasideiasdecomoseriamumasfriasnoBrasil,masaquiloficavaaqum de tudo aquilo que ele tinha imaginado.

    Ins adormeceu j de madrugada. Acabara por perceber que Francisco queria descansar, e por isso pegou no seu computador porttil e acedeu Internet para procurar mais informaes sobre o que ia fazer. Tinha algum medo da reaco daqueles hippies sua presena, mas acreditava que o seu lema de vida, Paz e Amor, a protegeria. Decerto eles no lhe fariam mal.

    O despertador tocou bem cedo, por opo de Ins, para aproveitarem ao mximo o dia. Tambm com aquele calor, era um desperdciodetempoestarenfiadonacamaattarde.Ambosvestiramas roupas mais leves que tinham, colocaram um bon e novamente o protector solar. Depois saram para tomar o pequeno-almoo, uma simples chvena de leite frio e um po com manteiga. Era um hotel simples, aquele, mas ainda assim acolhedor. Tinha uma vista bastante agradvel, com todo aquele verde que o rodeava, aquela encantadora natureza que os abraava. Ins esperava ter tempo para apreciar o que Pirenpolis tinha de mais belo.

    Saram logo a seguir, a p. Mais uma vez, encontraram o calor insuportvel. Levavam muitas garrafas de gua e alguns snacks para comer, para prevenir algum contratempo. Tencionavam andar bastante a p, pelo meio da natureza, e por isso equiparam-se com a menor quantidade de roupa possvel, uns simples cales, uma t-shirt fina,umassapatilhaseumasmeiasligeiramentealtasparaprotegerdabicharada.

    Antes de sair do hotel, o recepcionista traaras-lhe num mapa um caminho possvel para encontrarem a comunidade, bem como marcou o stio provvel onde ela estaria. Disse-lhes que havia uma cascata mesmo junto do stio onde eles moravam, onde eles aproveitavam para tomar banho e recolher gua. Ins no se imaginava a viver assim algum dia, longe do conforto a que se tinha habituado.

    Caminharam a manh inteira, sem realmente descobrirem alguma coisa. Segundo o mapa, estavam muito perto.

    - Ser que nos perdemos? - perguntava Francisco, vezes sem conta - eu sabia que devamos ter trazido um guia!

    - No nos perdemos nada, estamos nos trilhos certos, segundo o mapa.

    Para sorte deles, apesar de sempre rodeados pela natureza, havia pequenos trilhos de terra, que os fazia no se desviarem da sua

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    rota, bem como se protegerem dos animais. Ainda assim, Francisco comeava a demonstrar alguma impacincia e a reclamar cada vez mais. No aguentava aquele calor, s lhe apetecia voltar para o hotel, tomar um banho gelado e no fazer nada. Ins l lhe dava alguma fora de vontade, mostrando-lhe como aquilo era importante para ela.

    A dado instante, ouviram gua a correr. Segundo o mapa, a cascataficavaanomuitosmetrosanortedaquelerio,oquedeixouIns ainda mais entusiasmada. Estava quase l!

    Encontraram o rio, com sua gua to cristalina, to convidativa a dar um mergulho. Francisco debruou-se e lavou a cara, o que lhe deu uma enorme sensao de prazer. Ins no o deixou parar muito tempo, queria seguir, queria encontrar aquilo que tinha vindo procurar.Sentia-setopertodefinalmentefazeralgumacoisa,quejnem pensava em mais nada! Em breve, conseguiria colocar a memria de Carlos a descansar em paz, sem que ela lhe atormentasse mais a conscincia.

    Seguiram, cada vez mais depressa. Ins no parava, no podia! No pensava no que ia encontrar, s pensava que tinha de encontrar. E Francisco l a seguia, com um passo no to acelerado e com menos vontade. Em si imperava mais o medo do que propriamente a excitao.

    O barulho da gua tornou-se mais intensoestavam realmente perto. J tinham sado dos trilhos de areia, s havia erva volta deles. Pisavam com cuidado o cho, para evitar calcar coisas indesejveis. Cada vez ouvia-se maise mais! L no muito longe, conseguiram observ-la: a imponente, bela cascata, depositava toda aquela gua com valente fria. Ali, algum habitava, algum que podia trazer conforto quela pobre alma que no sabia mais para onde se virar.

    Correram. Comearam a ouvir vozes, pessoas conversavam alegremente, riam.Pareciam felizes. Seguiramasvozes, e aofimdepoucos minutos, conseguiram chegar clareira.

    O que viram foi um mundo completamente diferente daquele que estavam habituados a ver. Era uma clareira enorme, cheia de sol, rodeada por todo aquele verde. Ao lado caia aquela brilhante gua, enraivecida, mas ainda assim to apelativa. Num dos cantos da clareira, cerca de meia dzia de tendas estavam montadas, formando aquilo que seria provavelmente o local de dormida daquela populao. No canto exactamente oposto apresentava-se um considervel campo agrcola, onde a rama verde das batatas se erguia orgulhosamente e a alface se rejuvenescia com aquele sol. Dois homens, em tronco nu,

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    trabalhavam as terras, arduamente. Ins observou muito bem as pessoas: eram to diferentes deles!

    Os dois homens, morenos, de porte musculado, vestiam calas feitas por eles, largas, em tons de vermelho, com o tecido que lhes fora possvel arranjar. Ao que parecia, estavam os dois descalos. Ambos tinham barba comprida, escura, e o cabelo comprido, em canudos enrodilhados, formando as famosas rastas.

    Ao observar aqueles dois homens, no se aperceberam que uma outra pessoa do sexo masculino se aproximava deles. Quando o vislumbrou, Ins assustou-se ligeiramente, por no estar espera daquela frontalidade. A maneira de vestir deste homem assemelhava-se em muito dos outros dois, sendo as suas calas em tons de verde. Tinha a mesma barba e cabelo compridos e as mesmas rastas. Os seus olhos eram duros e pareciam no ter fundo, no sendo propriamente empticos.

    - Quem so vocs? - perguntou, com uma voz forte, o homem. - Desculpe, ns somos turistas, somos portugueses. Andamos

    procura de um rapaz. Dean Silva - respondeu Ins, calmamente. - Que querem dele? - S precisamos de falar com ele. algo importante, acredite.

    No faria uma viagem to longa se no fosse importante. O homem calou-se por breves segundos, pensativo. Ins

    comeava a temer no encontrar aquilo que vinha procurar. Talvez a comunidade no gostasse assim tanto de visitas inesperadas. Talvez tivesse subestimado a boa vontade daquela gente. E, consequentemente, talvez voltasse para casa sem nada.

    -Sejambem-vindosaPirenpolis-disse,porfim,ohomem-eu me chamo Filipe. Eu vou procurar Dean.

    Ins sentiu-se a suspirar fundo, tendo a sensao de que Francisco fazia exactamente o mesmo atrs de si. O seu irmo tinha ficado calado, esttico, durante quase toda a conversa. Era bomfinalmentesenti-loarespirardenovo.

    Seguiram Filipe pela clareira, que os levou at a uma das tendas, a segundaa contardadireita.O jovemabriu-a e enfioua cabea ldentro, dizendo algumas palavras. Mal ele tirou a cabea, uma outra assomou, e Ins teve a sensao de que via sempre o mesmo homem.

    No diferente de todos os outros rapazes, Dean era moreno, musculado, com o peito forte coberto com bastantes plos. Vestia as mesmas calas feitas mo, as dele acastanhadas, tinha a mesma barba

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    escura comprida e o mesmo cabelo comprido com rastas. O dele estava preso num rabo-de-cavalo, tal como aparecera na foto do jornal.

    - Quem so vocs? - por muito estranho que parecesse, Dean no tinha o sotaque brasileiro.

    - Eu sou a Ins - a jovem estendeu a mo, com o intuito de cumprimentar Dean, cumprimento esse que foi aceite - vim at aqui porque h algo que preciso de falar consigo. Algo importante.

    -jornalista?-Deanestavadesconfiado. - Sim, sou - disse Ins, a medo, sabendo o efeito que essa

    resposta teria - mas no estou aqui para falar sobre o que aconteceu Abby. outro assunto.

    - No sei que assunto possa ter para tratar consigo que no envolvam a Abby. Ultimamente a minha vida tem rodado volta desse assunto, e eu no me quero lembrar disso.

    - Podemos falar a ss? - pediu Ins, delicadamente. Depois de considerar o pedido, Dean pediu a Filipe que fosse

    para outro local, e Ins pediu o mesmo a Francisco, que contrariado seguiu Filipe e foi-se sentar debaixo de uma rvore, sombra. Dean levou ento Ins para junto do rio, e sentou-se, fazendo com que ela fizesseomesmo.

    - Diga-me l. - Bem, isto complicado - Ins estava nervosa, agora que tinha

    chegado o momento - eu vim de Portugal, cumprir a ltima vontade de algum importante para mim.

    - A ltima vontade de algum em Portugal? Eu no conheo ningum em Portugal.

    - O meu namorado morreu h menos de um ms. Acidente decarro-custava-lhefinalmenteaceitaraquelarealidade-euestavacom ele, vi tudo. Ele falou comigo, e pediu-me para terminar algo que ele comeara: ele queria encontrar o pai dele - parou para respirar e controlar as lgrimas, que teimosas queriam sair-lhe dos olhos. - Ele tinha encontrado uma pista: voc. Por isso estou aqui.

    Dean estava a assimilar a informao, embora aquilo para ele aindanofizessequalquersentido.

    - Como posso ser eu a pista? Gostaria muito de a ajudar mas no sei como.

    - Fale-me do seu pai, por favor.

  • O Homem que Amava demais Elizabete Cruz

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    - Do meu pai? - uma ideia comeava a formar-se na mente de Dean - Porque quer saber do meu pai?

    Claro que ele no lhe ia apenas dizer tudo sobre o seu pai, a ela, uma simples desconhecida. Mas ela no se sentia capaz de lhe contar tudo, no naquele momento. Precisava apenas de ouvir algo que lhe levantasse o ego.

    - S lhe peo para me falar dele. muito importante para mim, para aquilo que estou a fazer - fez uma pausa para limpar as lgrimas que j lhe caiam - por favor!

    - Apenas no acho correcto divulgar assim informaes sobre o meu pai a quem no conheo.

    Ins estava prestes a estourar. No podia obrig-lo, mas no lhe falta vontade de lhe arrancar as palavras pela garganta.

    - O teu pai pai dele tambm! Pronto, j disse! - Ins no queria, de todo, diz-lo com aquela severidade.

    Dean esbugalhou o olhar, no pela informao, mas pela forma como ela tinha dito. Desde que ela tinha comeado a falar que ele j tinha percebido que o seu pai seria, provavelmente o pai daquele rapaz, s no esperava que diz-lo fosse to complicado para Ins.

    - Bem, o meu pai chama-se Egdio, tem quarenta e oito anos, e tanto quanto sei ainda mora na Califrnia. Nasceu em Portugal, mas emigrou para os Estados Unidos da Amrica quando tinha vinte e poucos anos. L conheceu a minha me, eles casaram-se e nasci eu. Alguns anos depois divorciaram-se, supostamente por causa de outra mulher, nunca percebi muito bem. O que certo que a partir da perdemos um pouco o contacto, especialmente quando a minha me se casou com outro homem.

    Ins sugou as palavras, em busca daquilo que lhe seria til. Precisava de chegar quele homempara lhe contar que o seu filhoesquecido estava agora morto. Precisava de saber mais do que aquilo para poder fazer a vontade de Carlos, para lhe devolver a felicidade que lhe tiraranofimdavida.E ao lembrar-seno evitou chorar.Como tinha sido terrvel, inoportuna, para ele. Como o fez sofrer nos ltimos minutos de vida, como o fez desejar morrer sem que realmente soubesse que o seu desejo seria cumprido. Apesar de tudo, apesar deterpostoumpontofinalnaquelarelao,elaaindao tratavapornamorado, no sendo realmente digna de assim o chamar. Limpou as lgrimas, na esperana de as disfarar.

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    - No chore - disse Dean ao v-la com as lgrimas nos olhos - tambm perdi algum muito importante para mim e compreendo-te. Mas algum como eu, algum que em tempos se dedicou cincia, sabe que a morte um processo natural e inevitvel, e assim que tem de ser encarada.

    - Eu no consigo pensar assim - Ins despejou todas as lgrimas que estava a prender, e sem dar por si, deixou que o desespero invadisse a sua voz - a culpa foi minha, eu despoletei todos aqueles sentimentos que o invadiam.

    Apesar de no conhecer aquela rapariga, Dean sentiu-se livre de a tomar nos braos e, carinhosamente, encostar a cabea ao seu peito. Deixou-a chorar, sentindo as suas lgrimas frescas escorrerem pelo peito suado. Depois Francisco apareceu.

    - Vamos embora Ins, j ests suficientemente abalada -tentando no ser brusco, pegou-a por um brao e ajudou-a a levantar-se.

    Com cuidado, Dean ajudou tambm Ins a levantar-se. - Eu vou ajud-la a encontr-lo. No quero que chore mais -

    prometeu Dean. - Em breve voltarei - foi a promessa de Ins. Cabisbaixa e de brao dado com o irmo, Ins seguiu at ao

    local onde tinha deixado as suas coisas, e aps agradecer a Filipe, foramosdoisembora.Deanficouaobserv-laenquantoelasemovia.

    H muito tempo que no sentia tanto desespero, tanta tristeza, numa mulher. Havia uma enorme fragilidade naquele ser, acentuada pelo tom de pele esbranquiado e o cabelo to escuro, que lhe davam um ar de princesa de conto de fada. No lhe tinha visto bem os olhos, estavam to cheios de lgrimas, mas pareciam combinar com o cabelo. Olhar para ela e v-la assim apenas lhe deu vontade de a abraar e, sem saber porqu, proteg-la.

    - Porque a guria estava chorando? - perguntou Filipe, que entretanto se aproximou.

    -Notemaalmaempaz-respondeuDean,reflectindo.

    No caminho para o hotel, Ins ia devagar, muito devagar. Ia contendo as lgrimas, a esforo, para no mostrar mais ser uma boneca de porcelana. No queria ter exibido aquele seu lado to sentimental a algum que no conhecia, no queria sequer lembrar-se que esse seu lado existia.Nunca conseguira imaginarquefinalmentedizer a

  • O Homem que Amava demais Elizabete Cruz

    I 35

    verdade em voz alta custasse tanto, que a levasse quele pranto. Francisco j lhe largara o brao, seguia agora frente, ainda a

    abrir caminho pelas ervas. Quando chegaram aos trilhos, colocou-se ao ladodelaetentousaberoquetinha,afinal,eladescoberto.

    -Estamosnobomcaminho-disse,porfinal,Ins-oqueelemecontou encaixa-se. O pai dele portugus, emigrou para os Estados Unidos quando eramais novo, e l casou e teve umfilho.Os anosbatem mais ou menos certo, h uma grande possibilidade de estarmos perto de encontrar o pai do Carlos.

    - E como ests tu? - Mais calma, agora. Custou-me muito falar sobre tudo isto,

    mas a verdade que me senti na obrigao de o fazer. Apesar de no haver qualquer sentimento entre eles, aquele rapaz era irmo do Carlos, precisava de saber minimamente o que lhe aconteceu. No me parece que tenha sido bem sucedida, acho que s passei a imagem de uma fraca.

    Desta vez foi Francisco quem envolveu Ins nos seus braos, e carinhosamente lhe beijou a testa.

    - Tu nunca foste fraca - disse-lhe ao ouvido. Chegaram ao hotel quase a meio da tarde, suados e cheios de

    fome. vez tomaram banho, e depois saram para ir comer qualquer coisa num dos cafs mais prximos do hotel. Sentir a gua cair pelo rosto refrescou Ins, que estava notoriamente mais recomposta depois daquele ataque de choro. Agora, estava como nova.

    Sentaram-se dentro do caf, longe do calor da esplanada, bem perto do ar condicionado. Cada um pediu um sumo e uma tosta mista, e depois de darem os prazeres ao estmago, falaram sobre o que iriam fazer a seguir.

    -Devamosterlficado-comentouIns-talvezpudssemoster resolvido mais alguma coisa.

    - J no ias resolver nada, Ins, no naquele estado. Precisavas de respirar, e no era nos braos de um desconhecido.

    - Ele foi simptico comigo Ins recordava aquele toque, no propriamente agradvel

    devido ao calor e ao suor, mas ainda assim reconfortante. Muitas vezes elaprecisaradeumabraodealgumqueafizessesentir-semelhor,ecom ele tinha conseguido.

    - Sei que isto muito importante para ti - continuou Francisco - mas j viste onde isto te vai levar? O pai dele est nos Estados Unidos,

  • O Homem que Amava demais Elizabete Cruz

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    teremos de ir at l para o encontrar. - Ento at onde irei. Eu preciso de o encontrar, preciso de

    me sentir concretizada, preciso de conseguir falar sobre o Carlos sem chorar. Sabes esta noite nem tive medo de ir dormir e ter aquele sonho horrvel. a sensao de estar a fazer alguma coisa que me alivia, quero acreditar nisso. No te obrigarei a vir comigo, mas eu no vou parar, agora que estou to perto!

    Francisco suspirou baixinho, conformado com a ideia de que ainda tinham um longo caminho a percorrer. Pobres pais os seus, que estavamafinanciaraquelaaventuradedoidos,semsabermuitobemo que se estava realmente a passar. Mas no podia impedir Ins, ela estavafinalmentedecididaasuperaraqueledesgostoeavencer,nopodia ser ele a cortar-lhe as asas. Mais valia deix-la voar se casse, bem, ele l a tentaria apanhar, como alis sempre fazia.

    - Amanh voltamos comunidade - concluiu Ins.

    Com aquele calor era muito complicado dormirem. Ins levantou-se da cama, retirou a camisa de dormir, e vestiu uns cales e uma camisola de alas. Em seguida, abriu devagarinho, para no fazer muito barulho, a janela, e saiu para a varanda.

    Estava uma noite completamente diferente daquela em que Carlos tinha morrido. O ambiente de festa no conseguia de todo oprimir o frio que o ms de Janeiro traz a Portugal. Apenas aquele fogo apagava qualquer frio, o fogo conseguia faz-la esquecer-se de que aquela era uma noite de Inverno. Ao contrrio do calor abafado brasileiro, o calor que sentira naquela noite doa, marcava, no s no corpo como na mente. Era do que mais se recordava: do fogo, dos gritos, da dor, do desespero. E de Carlos, resignado, a fazer-lhe o derradeiropedido.Senofizesseaquilo,Instinhaacertezaabsolutade que nunca teria paz.

    Ficou a observar o cu limpo, as estrelas, e a conjecturar o dia seguinte. Tinha de voltar quela comunidade, com ou sem Francisco, falar novamente com Dean, convenc-lo a lev-la at a Egdio e finalmenteconcluirasuademanda.Umapertodesatisfao,misturadocom um nervoso miudinho, invadiu-lhe o peito. Era melhor deitar-se, precisavadedescansar.Afinal,amanhseguinteacabariaporchegar.

    Quase ao mesmo tempo que o Sol, Ins acordou. Doa-lhe um pouco os msculos das pernas devido caminhada do dia anterior, mas a fora de vontade no a deixava descansar mais. Antes que

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    Francisco acordasse meteu-se debaixo do chuveiro, deixando a gua fria escorrer-lhe pelo corpo e levar o suor com ela. Esteve um tempo indeterminado no chuveiro, nem ela deu por ele a passar, e quando ouviu o irmo a bater porta percebeu que era hora de abandonar o momento de prazer. Pegou numa das toalhas que estavam penduradas e limpou-se, cuidadosamente, para no se magoar nas vermelhides que tinha conseguido com o sol do dia anterior. s vezes odiava ter to pele de princesa!

    Francisco foi bastante mais rpido que Ins, apesar de a vontade no o querer tirar debaixo daquele bem precioso. Quando saiu da casa de banho, a sua irm j tinha preparado as mochilas, novamente com gua e comida e desta vez mais protector solar para evitar novos escaldes.Nofimdopequeno-almoosaramdenovoparaseguiremo caminho que agora j conheciam, em direco comunidade.

    A viagem foi muito mais rpida, e at menos cansativa. Era mais cedo do que no dia anterior, e o calor, apesar de j se sentir, no provocava to mau-estar. Quando chegaram clareira, ainda pouca gente andava a p. Uma rapariga, que estava junto do rio, dirigiu-se a eles. Usava as mesmas calas que tinham os homens, e uma camisola de alas justa ao corpo. Partilhava o mesmo tom moreno, e o cabelo apanhado num rabo-de-cavalo era castanho claro, em sintonia com os olhos cor de avel. Tinha, nas bochechas, algumas sardas engraadas.

    -Bomdia-disse,numavozfinaeagradvel-vocsnosoaquelas duas pessoas que estiveram c ontem? - o seu sotaque, tal como o de Dean, no era o brasileiro.

    - Sim, estivemos. Viemos encontrar-nos novamente com Dean, no sabe dele?

    - Ainda est na tenda dele, melhor esperarem um pouco. Se quiserem podem vir sentar-se aqui comigo - dirigiu-se novamente para junto do rio, e os dois seguiram-na - vejo que so portugueses.

    - Sim. Eu sou a Ins - estendeu a mo para a cumprimentar - e ele o Francisco.

    - Eu sou a Carla. - apresentou-se - Tambm nasci e vivi em Portugal, vivi l por muitos anos. Depois os meus pais emigraram.

    - Acho que se entende pelo sotaque que no brasileira - comentou Francisco.

    - Ora, tratem-me por tu! verdade, moro no Brasil h mais ou menos dois anos. Estive nos Estados Unidos antes de me mudar para aqui.

  • O Homem que Amava demais Elizabete Cruz

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    E, sem perceber porqu, Ins j sabia um pouco da vida de Carla,apesardeteracabadodeaterconhecido.Comopodiaelaconfiarem algum que tinha visto uma vez de relance?

    - E porque te mudaste? - Isso, so outras histrias Ouviram passos atrs de si, e os trs viraram a cabea em

    simultneo para ver quem se aproximava. Viram Dean e outro rapaz, sonolentos, a esfregarem os olhos e a espreguiarem-se enquanto andavam. Ajoelharam-se os dois em frente ao rio, e colocando as mos em concha, meteram-nas dentro em gua e tiraram um pouco desta, lavando em seguida a cara. Fizeram-no novamente, esfregando bem os olhos e lavando suavemente a barba. Depois, Dean levantou-se e foi at Carla, a quem beijou a testa e deixou toda molhada.

    - Bom dia - disse, com um sorriso nos lbios, a Carla - e bom dia! - disse a Ins e Francisco.

    - Voltei, como prometi. Estendendo a mo a Ins, Dean pediu-lhe que ela se levantasse

    para que fossem conversar para outro lado. No gostava de falar sobre a sua vida antes de ali ter chegado na frente de toda a gente. Sentaram-se junto ao tronco de uma rvore, acolhidos pela sua sombra, de costas para a clareira.

    - Se me permite, vou trat-la por tu - comeou Dean, tendo autorizao com um aceno de cabea de Ins - portanto, dizes-me que eu tenho um irmo. Um irmo que eu nunca soube que existia e que nunca vou conhecer porque morreu. Diz-me, como morreu exactamente ele?

    - Acidente de carro. O carro capotou, quando eu o tentei ajudar no consegui, ele tinha perdido a mobilidade. S pude v-lo ali a arder - Ins fazia fora para no voltar a chorar.

    - Se me dizes que ele paralisou, ento o sofrimento dele foi diminudo, acredita. Os impulsos nervosos no lhe chegavam ao crebro, ele no sentiu nada a queimar excepto aquilo que ainda mexia.

    - Isso no me conforta, ele ainda assim est morto. E a culpa foi toda minha.

    Um olhar indignado caiu sobre Ins, que sem dar por si estava a contar tudo a Dean: o que fez naquela noite, o que sentiu quando o viu morrer, os sonhos que teve a seguir, a vontade de morrer, a tentativa de suicdio e as visitas ao psiclogo. Tudo lhe saiu sem qualquer limitao de palavras ou pensamentos, como se tudo estivesse h demasiado

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    tempopresodentrodesi.Quandochegouaofim,noconseguiuevitarchorar.

    - Prometi-te que te ia ajudar, e vou faz-lo - disse Dean, com um ar compreensivo - vou contar-te tudo o que puder sobre o meu pai. J te disse que ele nasceu em Portugal, e emigrou com os seus vinte anos para os Estados Unidos. Por vezes eu perguntava-lhe como era Portugal, e ele nunca me sabia muito bem o que dizer, e eu no percebia o porqu. At ao dia em que ganhei capacidade de compreensosuficienteparaentenderoqueelemetentavaexplicar:mal chegou aos Estados Unidos, o meu pai sofreu um acidente muito grave, foi atropelado. Esteve bastante tempo no hospital, e uma das sequelas que sofreu foi a perda de memria. Consigo tinha apenas a carteira com os seus documentos e a foto de uma mulher, uma mulher que ele ainda hoje no sabe quem , mas que o acompanhou toda a vida.

    Ins pensou se essa mulher seria a me de Carlos, e se realmente tudo aquilo que ela pensava dele no passava de uma rasteira da vida.

    - Um dia, quando eu j tinha uns sete ou oito anos, voltamos a Portugal,poisomeupaiqueriadescobrirfinalmentequemrealmenteera. Descobrimos os pais dele, meus avs, que o julgavam morto, mas ele queria tambm saber quem era aquela mulher. Sei que os meus avs sabiam, conseguia ler-lhes no olhar, mas eles nunca disseram nada, e percebo agora porqu. Ele no a encontrou, mas tornou-se mais obcecado que nunca por ela. A minha me tinha cimes, muito cimes, e acabou por lhe pedir o divrcio. Os meus pais separaram-se por causa de uma mulher fantasma, que agora sei que existiu e que teveumfilhodomeupai.

    -Entooteupainofaziaideiaquetinhamaisumfilhoeumamulher espera dele?

    - No, no sabia. E no sei qual ser a reaco dele quando souber.

    Estava cada vez mais perto de fazer a vontade de Carlos. Se ele a estivesse a ver, nesse momento saberia que nunca tinha sido realmente abandonado pelo pai, que apenas fora retirado da sua memria por causas que ele no conseguia controlar. E a sua me, que interiormente sofrera por ter sido deixada para trs por aquele homem, podia agora saber que ele nunca a esquecera, apesar de no saber quem ela era. Inevitavelmente, deu por si a pensar como desejaria viver um amor

  • O Homem que Amava demais Elizabete Cruz

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    assim, arrebatador, que nem a memria danificada conseguia apagar, que nem a distncia nem o tempo conseguiram destruir.

    - Preciso que vs comigo aos Estados Unidos. Preciso que me leves ao teu pai.

    AfiguradeDeanmudouquandolhefoipropostaaquelaideia,adquirindo um semblante carregado e um olhar reprovador.

    - Eu no vou voltar aos Estados Unidos. - Porque no? Por causa do que te aconteceu? A ti e Abby? Tu

    prprio - Tu no sabes o que aconteceu Abby! - Dean no conseguiu

    evitar gritar - Dou-te a morada da minha me, vai at ela, ela poder indicar-te onde est o meu pai.

    - Mas porque -Eunovou,pontofinal! Ins no tentou argumentar mais, sabia que no conseguiria

    demov-lo de maneira nenhuma da sua posio. Era pena, a sua ajuda seria preciosa para resolver aquele assunto. Restava-lhe aproveitar toda aquela informao, que na realidade no era assim to pouca, e partir em busca daquilo que a tinha levado at ali.

    - Resta-me entopartir.Obrigadapela ajuda - disse porfimIns, rendida.

    Levantou-se, um pouco triste, e dirigiu-se ao local onde Francisco e Carla ainda permaneciam, a conversar. No conseguiu disfarar aquela ponta de desiluso que sentia, o que levantou logo uma data de perguntas por parte do seu irmo. Antes que pudesse responder, ouviu os passos que atrs de si se dirigiam para ela.

    - Acabei por no te dar a morada, com tal pressa com que te levantaste para ires embora - comentou Dean.

    - J vo embora? - Carla parecia ligeiramente desapontada - penseiquepoderiamficarconnoscomaisumpouco.

    - Decerto esta gente tem mais que fazer, Carla. -Maseugostavaqueficassemmaisumpouco.Estavaagostar

    tanto de ouvir histrias do meu Portugal. - Acho melhor irmos embora - disse Ins, cabisbaixa. Com notrio sentimento de decepo, Ins pegou nas coisas

    de Francisco e atirou-as para as mos, agarrando depois nas suas e colocando s costas. Porque lhe estava a custar tanto ir embora? Porque raio haveria de acreditar que aquele rapaz voltaria sua antiga

  • O Homem que Amava demais Elizabete Cruz

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    vida por ela? Era to ridcula que conseguiu sentir pena de si mesma. Comeou a andar, sem sequer se despedir daquelas pessoas que tinha conhecido. E, quando j se estava a afastar, com o seu irmo atrs, ouviu a voz de Carla.

    - No guardes toda essa tristeza, amiga. No chegars a lado nenhum com ela.

    No sabia porqu, mas aquelas palavras irritaram-na. E, ainda sem perceber o sentido do que fazia, voltou para trs, com um passo carregado, com a fria nos olhos.

    - Eu no sou tua amiga! - disse-lhe, encarando-a com o olhar. -Todosaquelesemquemeupossoconfiarsomeusamigos.

    Todos estes que me salvaram so meus amigos. E, se queres a minha opinio,tambmmerecessersalva.Porquenoficasumpoucomaisconnosco?Talveznofimdodiadehojeconsigas ter libertadotodosesses sentimentos, e vejas a vida de outra maneira.

    Parecia que Carla lhe estava a ler os pensamentos. Salvao era algo de que Ins realmente precisava, mas como poderia encontr-la ali, no meio daquilo que pareciam selvagens? E porque se importava Carla com isso? Tinham acabado de se conhecer, como podia ela l-la assim, e querer ajud-la?

    - Senta-te aqui comigo - disse, dirigindo-se para a beira do rio e sentando-se, apontando a erva ao lado para Ins e Francisco fazerem o mesmo. Eles acabaram por se sentar.

    Carla fez questo de contar aos seus convidados um pouco de si, j que se sentia to perto do seu Portugal com eles ali. Contou-lhes que tinha nascido numa aldeia do norte de Portugal, onde vivera at aos 18 anos. Quando chegou a altura de ingressar no ensino superior, os seus pais mudaram-se para os Estados Unidos, local onde comeou a estudar astronomia. Adorava as estrelas, adorava observ-las,contempl-las, identific-las.Todasasnoites,sentava-senaquelemesmo stio e passava horas a olhar para o cu, quase sempre sem nuvens, e enamorava todas aquelas estrelas que eram tambm a sua famlia. Contou-lhes at que estava a fazer o seu prprio mapa estelar, e que adorava um dia encontrar uma estrela sem nome que ela pudesse nomear.

    - Mas, se isso que gostas de fazer, se essa a tua vida, que fazes aqui? - Francisco no entendia.

    - Aqui tenho tudo o que quero. Tenho uma famlia, tenho as minhas estrelas, tenho ar puro e gua limpa. Acredita que isto

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    suficienteparaqualquerserhumanoserfeliz. Ins estava pouco interessada na conversa, o seu pensamento

    voava para a agressividade com que Dean lhe dissera que no voltaria sua terra. Apesar de ele querer disfarar, notava-se que dentro dele ainda existia muita mgoa pela morte de Abby. Ningum sabia realmente a verdade, eram s as palavras dele que contavam aquele sequestro. Mas havia, sem dvida, muito sofrimento inerente a toda aquela histria, e apesar de Ins no querer ser intrometida, gostava de perceber o que se tinha passado.

    - Bem, est na hora de prepararmos o almoo - Carla levantou-se, e aproximou-se de outras raparigas que por l andavam.

    - O que que vocs normalmente comem? - perguntou Francisco, curioso.

    - Legumes e fruta, normalmente. A maioria de ns vegetariano, no matamos animais para comer, contra os nossos ideais.

    - E o que vai ser hoje o almoo? - Bem, vamos ver o que temos. Os rapazes foram buscar fruta

    fresca, e possivelmente temos alguns ovos e batatas. Quando falaram do almoo, o interesse de Ins despertou.

    Talvez fosse porque estava com fome, pensou que aquele era o melhor assunto a que Carla podia referir-se. Foi atrs dela, tentando perceber o que iam fazer. Sem se aperceber, Ins comeava a achar aquele mundo fascinante. Aquelas pessoas tinham instinto de sobrevivncia, esprito de camaradagem, amor natureza. Preservavam aquilo que os rodeava, prescindiam da carne e do peixe, cultivavam a sua prpria comida, viviam com poucas condies de conforto e higiene. Mas tudo aquilo era opo deles, estavam ali porque queriam, e isso fazia deles felizes!

    Ins, que nunca mais vira Dean, perguntava-se a si prpria para onde tinha ele ido, vendo a resposta sua pergunta quando o viu, juntamente com outros rapazes, surgir com frutos nos braos. Pousaram tudo no cho, junto delas, e sentaram-se tambm, espreitando para o que estava a ser cozinhado. Na panela, colocada acima de um lume brando, ferviam algumas cenouras, previamente descascadas. Na realidade, nem tudo naquela comunidade lembrava o primitivo: eles utilizavam facas, por exemplo, ou papel higinico. Depois de perguntar,ficouasaberqueelestinhamassuasprpriasactividadespara ganhar dinheiro, fosse vender o que cultivavam ou at ir para a cidade com uma guitarra atrs e dar msica a quem passava. Sim,

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    porque eles possuam uma guitarra acstica com a qual se divertiam durante grande parte do dia.

    Enquanto as mulheres cozinhavam, alguns homens estavam sentados a um canto, empenhados num processo que Ins desconhecia. Aproximou-se, na expectativa de tentar perceber, mas no teve coragem de perguntar. Limitou-se a ver, at que entendeu o que eles estavam a fazer quando os viram a enrolar aquela coisa que eles tinham feito num pedao de papel. Cada um fez o seu, e depois, agarrando cada um num fsforo, acenderam.

    - O que isso? - perguntou, incapaz de se conter. - pio - respondeu um deles. A srio que eles fabricavam o prprio pio? Ins sentiu o

    seu queixo cair ao cho, pois tinha agora perfeita noo de que as capacidades daquela gente ia para alm daquilo que ela imaginava. Verdade seja dita, ela nem sabia de que era feito o pio!

    Almoaram, e durante o almoo cada um daqueles hippies tentou fazer com que os visitantes se sentissem em casa. Gostavam de ter ali pessoas que no tivessem como nico objecto estud-los ou entrevist-los, e com isso retirar o seu dinheiro. No era assim que eles viviam, no eram fonte de rendimento para ningum. Mas aquelas duas pessoas, unidas a eles pela lngua, inspiravam-lhes confiana.Ofereceram-lhes as suas frutas de bom agrado, alegando ter sempre maisparabuscarnaquelaenormefloresta,efizerammuitasperguntas.Nofinal,quasequesepodiamconsideraramigos.

    Durante a tarde, todas as pessoas, cerca de quinze, espalharam-se pela clareira e deitaram-se, uns sombra, outros ao sol. Tinha chegado a hora da sesta. Coberta de protector solar, Ins l retirou a camisolaedeixou-seficarembiquni,debaixodesol.

    - Com essa pele, a nica coisa que vais conseguir vai ser um belo tom vermelho - comentou Dean, que entretanto se juntara a ela.

    - Nem todos tm a sorte de andar a exibir um belo bronze - resmungou Ins, que odiava que reparassem na sua pele branca.

    - Depois de anos debaixo deste sol, no h melanina que resista. naturalquefiqueescurecido,masjfuiquasetoclarocomotu-Inslanou-lheumolhardesconfiado-v,admito,notoclaroassim!

    Os dois riram. Depois disso, Dean deitou-se junto de Ins, com a cabea ao nvel da dela. No disseram mais nada um ao outro, apenas se deixaram ficar ali, durante minutos interminveis. Ins queriatanto perguntar-lhe, queria mesmo muito! Mas a vergonha, ou talvez

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    a conscincia, no lhe permitiam questionar o rapaz, no a deixava sequerpuxaroassunto.Entodeixou-seficarali,emsilncio,esperaque o tempo passasse.

    No muito tempo depois, sentiu movimento perto de si. Dean levantara-se e, com visvel -vontade, retirou as calas e atirou-as para o lado. No tinha qualquer pea de roupa por baixo, mas isso no o parecia incomodar.

    - Que ests a fazer? - perguntou Ins, ligeiramente indignada. - Vou tomar banho - foi a resposta. E assim, completamente nu, correu para o rio e atirou-se para

    a gua fresca. A sua cabea assomou segundos depois, e a felicidade vinha estampada no rosto.

    - Anda tambm! - gritou Dean para Ins. O sol estava forte, e aquela gua oferecia um convite

    praticamente irrecusvel. Levantou-se, e mergulhou tambm para dentro do rio, apreciando aquela sensao de frescura. Depois dela, mais trs pessoas, dois rapazes e uma rapariga, fizeram o mesmo,tambm eles nus. Ali ningum parecia ser nem um pouco pudico, andarem nus era normal, afinal era assim que a natureza os tinhacriado.

    - Tira o biquni - disse-lhe Dean. Ins desviou o olhar para ele, espantada com o convite. Ela era

    s uma visitante, no um membro da comunidade, e por isso ele no podiaestarrealmenteesperaqueelafizesseaquilo.Mas,ento,olhouem sua volta, e percebeu o quanto gostava de ver a vida da mesma maneira que eles. Tudo to simples, to fcil de resolver. Ali no havia preconceitos, no havia dios nem rivalidades, ali tudo era natural, tal como o que os rodeava. Antes de decidir se tirava o biquni ou no, j estavaasentirumasriedemosaagarrarem-lheosfiosquedavamon nas partes superior e inferior do biquni, e quando deu por si estava nua.

    - Agora, s como ns - disse-lhe Carla, que entretanto apareceu junto dela - e acredita que se nota na tua cara que precisas de ser feliz como ns!

    Ai, como ela tinha razo! Talvez tivesse procurado aquela liberdade toda a sua vida, sem nunca se ter apercebido disso. Finalmente, desde que Carlos morrera, estava a divertir-se e no se sentia mal por isso. Ali ningum se importava com as aparncias, nem queriam saber se ela devia estar a fazer luto pelo seu namorado que

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    tinha morrido por ela. Pelo namorado que j nem seu namorado era. No sabia h quanto tempo estava ali. A sua pele enrugada

    mostrava que j estava h algum tempo, mas a vontade no a queria tirar dali. Estava exausta, de tanta brincadeira na gua, mas sentia-se feliz como j nem se lembrava. Se no tivesse os seus pais sua espera, tinhaacertezaqueacabariaporficarali,naquelacomunidade,ondeavida era muito mais aproveitada.

    Aos poucos, foram todos saindo da gua. Para secarem, deixavam-seficar ao sol algunsminutos, os suficientes para a guaevaporar. Depois, cada um foi sua vida, uns sentaram-se, outros embrenharam-senomato.ApenasDeaneInsficaramnagua.

    - bom ver um novo lado de ti. Tudo era muito negro tua volta - comentou ele.

    - Eu adoro isto aqui! - respondeu ela, mesmo antes de mergulhar. Debaixo de gua conseguiu vislumbrar o pnis dele, envolto

    num emaranhado de plos, adormecido e a balouar ao ritmo da corrente. Assomou mesmo junto dele, e a sua cabea percorreu todo aquele corpo escravizado pelo trabalho mas orgulhoso de si prprio. Ficou frente a frente com ele, olhos nos olhos, e pde finalmentevislumbrar aquilo que no tinha visto na foto do jornal: um jovem magoado com o seu passado, disfarado de seu prprio super-homem e, sobretudo, com medo. Sim, tudo isso estava nos seus olhos, ela reconhecia-o. Ainda assim, gostava de ser como ele, ultrapassar os percalos como ele.

    Mostrando um pouco do seu cavalheirismo, Dean foi buscar as partes do biquni de Ins, que tinham sido atirados por algum para o galho de uma rvore que se estendia sobre o rio. Colocou-o na margem, enquanto subia, e depois deu a mo jovem para a ajudar a fazer o mesmo. Ficaram ali, na conversa, enquanto secavam.

    Francisco observava-os, um pouco afastado. No gostava do que via, nada mesmo. A sua irm estava nua em frente a um rapaz que eles no conheciam e que parecia gostar muito dela. Como se isso j nofossesuficientementemau,aquelemesmorapazerasuspeitodeter assassinado a namorada. No podia mandar na sua irm, mas tinha a certeza que ela se estava a envolver demasiado com aquela gente, e especialmente com aquele rapaz. Podia-lhe agradar aquele estilo de vida, mas eles no pertenciam ali, no fazia sentido adaptarem-se aos seus hbitos.

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    - Ins, chega aqui! - gritou, do stio onde estava - Precisamos de falar.

    Sem saber bem para qu, Ins l foi. - Para comear, veste esse maldito biquni. No me agrada de

    todo ver a minha irm mais nova nua, no s na minha frente como de toda esta gente.

    Ligeiramente envergonha, Ins l acatou a ordem do irmo. Pelo seu tom de voz, percebeu imediatamente que a conversa que vinha a caminho no lhe ia agradar de todo.

    - Que pensas que ests a fazer com esta gente? Ns no somos como eles, no agimos como eles!

    - Pois no. Ns somos uns tristes, todos os dias preocupados com trabalhar ou estudar, com as tarefas dirias, com fazer tudo bem para os outros gostarem. Ns somos diferentes, sim, para pior!

    -Nsnovamosficaraqui,noadianta iludires-te comestavida. E no gosto que te ds to bem com aquele rapaz, ele parece gostar demasiado de ti.

    - E ento? - E ento?! Ns no o conhecemos! Tanto quanto sabemos

    ele pode ser o assassino da prpria namorada! Porque achas que ele esteve desaparecido por tantos anos, sem nunca ter voltado para a sua famlia?

    Ins calou-se, pensativa. No podia tirar a razo ao seu irmo. -No te preocupes - disse, por fim - depois de amanh, no

    mximo, vamos embora. Ele fica c, provavelmente nunca mais overemos. No me vai acontecer nada de mal, garanto-te.

    OSolfinalmenteps-se.InseFranciscoaindapermaneciamna comunidade, e provavelmente passariam l a noite. Carla disponibilizara um espao na sua tenda para Ins, e Filipe fez o mesmo paraFrancisco.Tinhamdecididovoltar,definitivamente,aohotelnodia seguinte, preparar as malas e partir para a etapa seguinte.

    Ins no disfarava a tristeza de ter de partir to depressa e deixar para trs aquela experincia da qual to pouco tinha aproveitado. Mas o seu irmo estava certo, no tinha ido para ali para se tornar uma hippie, aquilo no passava de uma fase, de um passo para chegar ao seuprmiofinal.

    Tinha estado na conversa com Carla at ao momento em que ela decidiu tirar os seus minutos com as estrelas. Foi-se sentar junto

  • O Homem que Amava demais Elizabete Cruz

    I 47

    ao rio, exactamente no stio onde a tinham encontrado no primeiro dia. Ins viu-a a erguer a cabea, concentrada, e a focar cada estrela, como se estivesse a falar em pensamento com elas. Logo a seguir, Dean perturbou a sua paz, quando a fez sair daquele transe silencioso e concentrar-se nele. Sentou-se sua beira, e Ins viu-os a conversar.

    - Que se passa Carla? Tens andado muito tensa - comentou. Ao longo daquele dia, Ins tinha percebido que Dean e Carla

    tinhamalgoemcomum,snoconseguiadefiniroqu.Narealidade,eisso ela no sabia, tinha sido Dean a integrar Carla naquela comunidade, e tornara-se no seu melhor amigo graas a isso. Lia-lhe os pensamentos s de a encarar, e sabia que algo no estava bem com ela.

    - Nada de especial - respondeu ela, num tom pouco convincente. Carinhosamente, Dean envolveu os ombros da rapariga com