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  • O R G A N I Z A D O R E S

    Jorge O. Romanoe Marta Antunes

    DEZEMBRO 2002

    Empoderamentoe direitos nocombate pobreza

  • XXXX Empoderamento e direitos no combate pobreza. Rio de Janeiro : ActionAid Brasil116p. 25cm

    ISBN 85-XXXXX-XX-X

    1. Desenvolvimento, 2. Poder, 3. PobrezaI. Jorge O. Romano 1950, Marta Antunes 1977

    CDD XXX.XXX

    Empoderamento e direitosno combate pobreza

    COPYRIGHT (C) 2002 BY ACTIONAID BRASIL

    ActionAid BrasilRua Corcovado, 252 Jardim BotnicoCEP 22460-050 Rio de Janeiro RJTel.: +(21) 2540-5707 Fax: +(21) 2540-5841Email: [email protected]: www.actionaid.org.br

    COORDENAO EDITORIALActionAid Brasil

    REVISOClvis Moraes

    TRADUOGlauce Arzua

    PROJETO GR`FICO E DIAGRAMAOMais Programao Visual

    CAPAArte sobre fotos de arquivo da ActionAid Brasil

    FOTOLITOQuadratin Artes Grficas

    IMPRESSOEditora Lidador

    TIRAGEM500 exemplares

    O contedo desta publicao pode ser reproduzido, desde que citada a fonte.

  • Sumrio

    Introduo ao debate sobre empoderamentoe direitos no combate pobreza ............................................................................... 5Jorge O. Romano e Marta Antunes

    Empoderamento: recuperando a questodo poder no combate pobreza ............................................................................... 9Jorge O. Romano

    Algumas consideraes sobre estratgiasde empoderamento e de direitos ............................................................................ 21Ceclia Iorio

    Metodologias e ferramentas para implementarestratgias de empoderamento ............................................................................... 45Alberto Enrquez Villacorta e Marcos Rodrguez

    Empoderamento, teorias de desenvolvimentoe desenvolvimento local na Amrica Latina ....................................................... 67Enrique Gallichio

    O caminho do empoderamento: articulando as noesde desenvolvimento, pobreza e empoderamento .......................................... 91Marta Antunes

  • 5Introduo ao debatesobre empoderamentoe direitos no combate pobreza

    Jorge O. Romano1

    e Marta Antunes2

    As abordagens de empoderamento e de direitos esto presentes nas estra-tgias e prticas de campo das ONGs que promovem um desenvolvimento alternativo, visando superao da pobreza.

    A noo de empoderamento comea a ser utilizada na dcada dos 70, com os movimentos sociaise, posteriormente, passa a permear as prticas das ONGs. Nos ltimos anos, o conceito e aabordagem foram gradualmente apropriados pelas agncias de cooperao e organizaes finan-ceiras multilaterais (como o Banco Mundial). Nesta apropriao o conceito e a abordagem sofreramum processo de despolitizao ou pasteurizao ao ser enfatizada sua dimenso instrumentale metodolgica. Assim, junto com conceitos como capital social e capacidades, o empoderamentopassa a ser um termo em disputa no campo ideolgico de desenvolvimento.

    Por sua vez, nos ltimos anos, percebe-se que um nmero crescente de instituies da Socie-dade Civil introduz em sua estratgia a abordagem baseada em direitos, a qual tem sua origem naluta pelo reconhecimento e promoo do conjunto de direitos humanos (civis, polticos, eco-nmicos, culturais, etc.). As prprias agncias de cooperao e organizaes financeiras mul-tilaterais vm progressivamente adotando esta nova conceitualizao na formulao de suaspolticas e estratgias. Dessa forma a noo de direitos e a abordagem baseada em direitospassam tambm a ser motivo de debate e disputa no campo de desenvolvimento, tal como ocorreno caso de empoderamento.

    No Brasil os fundamentos da abordagem baseada em direitos esto muito mais presentes nosdebates sobre desenvolvimento e combate pobreza, tanto no espao governamental de polticaspblicas, como entre os movimentos sociais, ONGs e o mundo acadmico, devido importnciaque tm assumido as anlises de luta pela cidadania e de construo de direitos sociais.

    Por sua vez, as discusses que tm como enfoque o empoderamento so incipientes, estandoassociadas, principalmente, s propostas de agncias de cooperao. Entre os movimentos sociais,ONGs e a academia especializada nestes temas, alm de desconhecimento existe, em geral, umaampla margem de desconfiana, por conta do uso instrumental da abordagem feito por entidadescomo o Banco Mundial.

    1 Antoplogo, ActionAid/CPDA-UFRRJ, Brasil.

    2 Economista, CPDA-UFRRJ, Brasil.

  • EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE POBREZA

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    Dentro do mundo das ONGs, a ActionAid uma das que tm adotado uma estratgia centradano dilogo entre as abordagens de direitos e de empoderamento.3 Atuando no pas desde 1999,em seu trabalho de combate pobreza a ActionAid Brasil tem colocado a noo de empodera-mento como elemento central de sua estratgia. Esta tem sido implementada atravs de projetosde desenvolvimento local, de campanhas nacionais e do trabalho de advocacy nos nveis nacional,regional e local.

    Partindo do reconhecimento de que o Brasil um dos pases de maior desigualdade no mundo eque essa a principal causa da pobreza e da excluso social, a ActionAid Brasil considera que parasuperar a pobreza se faz necessrio promover a construo de um projeto crtico e alternativo dedesenvolvimento fundado no empoderamento dos pobres e de seus representantes e aliados.

    O empoderamento dos pobres e das comunidades viria a ocorrer pela conquista plena dos direitosde cidadania. Ou seja, da capacidade de um ator, individual ou coletivo, usar seus recursos econ-micos, sociais, polticos e culturais para atuar com responsabilidade no espao pblico na defesade seus direitos, influenciando as aes do Estado na distribuio dos servios e recursos pblicos.

    Ao mesmo tempo, a ActionAid Brasil considera que os movimentos sociais e as organizaespopulares so os principais agentes de transformao do Estado num instrumento para a erradicaoda pobreza e da desigualdade no pas. As ONGs e suas redes dariam suporte a estes atores.4

    Atualmente, os projetos de desenvolvimento local promovidos pela ActionAid Brasil, em parceriacom ONGs e movimentos sociais, so levados a cabo em diversas microrregies, que incluemdesde favelas do Rio de Janeiro e de So Paulo at as reas rurais pobres do Nordeste. Ao mesmotempo, a ActionAid Brasil impulsiona e participa de trs campanhas nacionais: CampanhaNacional pelo Direito Educao, Campanha por um Brasil Livre de Transgnicos e Campanha deComrcio e Segurana Alimentar.

    Nos ltimos anos a ActionAid tem realizado um esforo de propiciar espaos de reflexo e debateque permitam o esclarecimento da abordagem de empoderamento e de direitos, que fundam suaestratgia, visando a ressaltar as possveis sinergias entre as mesmas.

    Um dos espaos criados para essa reflexo e debate foi o seminrio internacional Os Enfoques deEmpoderamento e Direitos no Combate Pobreza, realizado no Rio de Janeiro, nos dias 4 a 6 desetembro de 2002, e que congregou mais de 30 profissionais da entidade, assim como especialistasda Amrica Latina, Europa, `sia e `frica.5

    O seminrio, privilegiando a reflexo sobre empoderamento e sua prtica na Amrica Latina,procurou estabelecer pontos de divergncia e convergncia entre as abordagens de empodera-mento e direitos; identificar nas experincias de trabalho as prticas e metodologias adotadas,ressaltando seus limites e potencialidades; e, finalmente, refletir acerca das implicaes prticas epolticas de adotar essas abordagens no combate pobreza.

    3 A organizao, fundada no Reino Unido em 1972, tem uma longa tradio de trabalho com desenvolvimento, envolvendoas populaes pobres, movimentos sociais e organizaes de base, em mais de 30 pases na `sia, na `frica e naAmrica Latina e Caribe.

    4 ActionAid Brasil. Estratgia Nacional, 2001-2003.

    5 O seminrio e esta publicaes foram possveis de realizar graas ao apoio da ActionAid UK.

  • INTRODUO AO DEBATE SOBRE EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE POBREZA

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    Assim, uma srie de questes foi levantada como desafios para o debate entre os participantes:

    O empoderamento praticado pelas ONGs visto como um meio? Para qu? umpoder sobre recursos e ideologias que nos leva a situaes de soma zero? Serque isso significa que as ONGs esto adotando uma abordagem instrumental?Ou que esto pensando o empoderamento como um objetivo (fim)? Um poderpara? Um poder com? Um poder de dentro? Resultante de capacidades indi-viduais, de ser e de se expressar? As ONGs esto adotando uma abordagem deprocesso? Em que nvel as perspectivas de empoderamento e direitos so exclu-dentes ou se reforam nas prticas das ONGs?

    Em que medida as prticas das ONGs tm seu foco no empoderamento de indi-vduos ou de grupos? As ONGs esto colocando as pessoas ou os grupos nocentro do processo? So duas formas distintas? So complementares?

    Quem empodera quem? Quais as vantagens e limites do empoderamento porONGs, por movimentos sociais, pela atuao conjunta de ONGs e governo e poragncias multilaterais?

    Em que medida estamos conscientes de que empoderamento um processorelacional e conflituoso? Na prtica, como as estratgias das ONGs esto lidandocom essas relaes conflituosas?

    Quais as potencialidades e limites apresentados pelo empoderamento quandoeste adotado como estratgia de combate pobreza nos campos da poltica,informao, cultura institucional, construo de capacidades e participao?

    No seu trabalho, como as ONGs lidam com os limites da abordagem de empode-ramento? O que significa perguntar, como se asseguram a continuidade e oaprofundamento das conquistas? Esta uma abordagem de custos elevados? possvel adot-la em programas de nvel superior, de maior escala e mais com-plexos? Que procedimentos de mensurao, monitoramento e avaliao de difi-culdades podem ser utilizados?

    A abordagem de empoderamento utilizada da mesma forma que a abordagembaseada em direitos? Quais as vantagens e limites de unificar as duas abordagens?

    Em que medida a abordagem baseada em direitos lida com a necessidade dediscutir poder e desenvolvimento no combate pobreza? Como isso est sendofeito pelas ONGs?

    Como, na prtica, as ONGs superam os limites da abordagem baseada em direi-tos? Como lidar com a inadequao permanente da legislao como mecanismode controle de poder? Como lidar com o gap existente entre a percepo dosdireitos humanos bsicos e as diferentes percepes de direitos nos vrioscontextos polticos e culturais? Como as ONGs lidam com o fato de a violaodiria de direitos ter-se tornado algo to comum?

    Sabendo que exercer direitos econmicos, sociais e culturais uma questo emconfronto e que para estabelecer esses direitos as estruturas de poder tm de seralteradas, como as ONGs esto lidando com isso em seu trabalho?

  • EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE POBREZA

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    Para subsidiar o debate no seminrio, foi elaborada uma srie de textos e comunicaes, os quaisfazem parte desta coletnea.

    No primeiro ensaio, Empoderamento: recuperando a questo de poder no combate pobreza,Jorge O. Romano procura recuperar na utilizao da noo de empoderamento a importncia dasquestes relativas anlise de poder, apagadas com a popularizao dessa abordagem entre asagncias de cooperao multilateral.

    Ceclia Iorio, em Algumas consideraes sobre estratgias de empoderamento e direitos, exploraas dinmicas das abordagens de empoderamento e direitos no combate pobreza, buscandoresgatar a conceitualizao, contextualizar o debate e apontar fortalezas e fragilidades de ambasas abordagens.

    No texto seguinte, Algumas consideraes sobre estratgias de empoderamento e de direitos,Alberto Enrquez Villacorta e Marcos Rodrguez buscam fazer um balano crtico das metodologi-as e ferramentas utilizadas na Amrica Latina, na implementao de estratgias de empodera-mento. Para isso, partem de uma reflexo sobre o conceito de empoderamento, ressaltandosuas semelhanas e diferenas com a abordagem baseada em direitos.

    Enrique Gallichio, em seu trabalho Empoderamento, teorias de desenvolvimento e desenvolvi-mento local na Amrica Latina, foca sua ateno no mapeamento dos modelos de desenvolvi-mento adotados na Amrica Latina e dos paradigmas que os sustentam. Dentre eles ressaltaas concepes alternativas, em particular as que se sustentam no aportes de Pierre Bourdieu.O trabalho finaliza com uma proposta de abordagem para o desenvolvimento local, que ressaltaa dimenso de poder.

    Finalmente, o ensaio O caminho do empoderamento: articulando as noes de desenvolvimento,pobreza e empoderamento, de Marta Antunes, procura uma articulao terica das noes dedesenvolvimento, pobreza e empoderamento, partindo das abordagens de Desenvolvimento comoliberdade, de Amartya Sen, e de Rural livelihoods, de Robert Chambers, na forma como foramaplicadas por autores como Bebbington na Amrica Latina.

    Assim, esta coletnea visa a trazer ao leitor brasileiro trabalhos que apontam para o uso daabordagem de empoderamento na Amrica Latina e que enfatizam a importncia e complexidadedas questes de poder, buscando contribuir para o fortalecimento do dilogo entre esta aborda-gem e a baseada em direitos. Consideramos que nem a abordagem baseada em direitos nem aabordagem de empoderamento so suficientes em si mesmas, mas que ambas so necessriase complementares. Principalmente quando temos como foco, no combate pobreza, os proces-sos de luta pela cidadania e de construo de sujeitos sociais.

  • 9Empoderamento:recuperando a questodo poder no combate pobreza

    Jorge O. Romano1

    O empoderamento no debate ideolgicosobre desenvolvimento

    O empoderamento uma dentre as categorias e/ou abordagens como, por exemplo, participao,descentralizao, capital social, abordagem de direitos (rights-based approach) que de formaexplcita ou implcita est inserida no debate ideolgico em torno do desenvolvimento. Este debatetem sido polarizado nos ltimos tempos entre os defensores de uma globalizao regida pelomercado (ou, dito de outra forma, pelo Imprio, pelo Consenso de Washington, pelo neoliberalismo)e os crticos que defendem que a construo de um outro mundo possvel.

    Essas categorias, originadas em sua maioria em discursos crticos ao desenvolvimento vigente,tm sido apropriadas e re-semantizadas nos discursos e nas prticas dominantes do mainstream,expressos principalmente atravs dos bancos e das agncias de desenvolvimento multilaterais ebilaterais, dos governos e de diversas organizaes da sociedade civil.

    Inevitavelmente, como em geral acontece, quando atores sociais com ideologias, enfoques eprticas muito diversas confluem num conjunto comum de conceitos, existe uma considervelfalta de clareza e at confuso com o seu significado real. Ao mesmo tempo existe uma descon-fiana justificvel pela experincia recente entre os crticos do desenvolvimento dominanteque usaram inicialmente essas idias, sobre os perigos de cooptao, diluio e distoro dasmesmas (Sen, G: 1997).

    Assim, para ONGs que tm no empoderamento um elemento central de sua estratgia decombater juntos a pobreza, fundamental enfrentar os problemas e limites que esta generali-zao do uso do conceito e da abordagem de empoderamento apresenta.2 Isto , ao final, do queestamos falando quando falamos de empoderamento?

    Um caminho para enfrentar essa confuso e desconfiana que apontava G. Sen propiciar areflexo conjunta e o debate, procurando clarificar nossa abordagem de empoderamento, delimitaro uso do conceito e identificar seus limites e potencialidades a partir da nossa experincia. As idias ereflexes contidas neste texto procuram contribuir nesse caminho.

    1 Antroplogo, ActionAid/CPDA-UFRRJ, Brasil.

    2 Cabe ressaltar que um conjunto equivalente de problemas e limites, associados a este tipo de generalizao de uso por atoresdiversos, ronda tambm a abordagem de rights based approach.

  • EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE POBREZA

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    1. O que no entendemospor empoderamento

    1.1. O empoderamento como transformismo (gattopardismo).

    Empoderamento, como comentamos inicialmente junto com participao, descentrali-zao, capital social e abordagem baseada em direitos (rights-based approach) um conceito euma abordagem que tem sido re-apropriada pelo mainstream e que virou moda nos anos 90entre os atores do desenvolvimento. O conceito no s virou moda, mas tambm o que maisdanoso foi apropriado como uma forma de legitimao de prticas muito diversas, e no neces-sariamente empoderadoras como as propostas nos termos originais.

    Assim, o empoderamento invocado pelos bancos e agncias de desenvolvimento multila-terais e bilaterais, por diversos governos e tambm por ONGs, com muita freqncia vem sendousado principalmente como um instrumento de legitimao para eles continuarem fazendo, emessncia, o que antes faziam. Agora com um novo nome: empoderamento. Ou para controlar,dentro dos marcos por eles estabelecidos, o potencial de mudanas impresso originariamentenessas categorias e propostas inovadoras. Situao tpica de transformismo (gattopardismo): apro-priar-se e desvirtuar o novo, para garantir a continuidade das prticas dominantes. Adaptando-seaos novos tempos, mudar tudo para no mudar nada.

    Num dos recentes informes do Banco Mundial sobre empoderamento e reduo depobreza (World Bank, 2002) so apresentadas, vestindo a roupagem nova do empo-deramento, centenas de atividades e iniciativas apoiadas e promovidas pelo Banco.A proliferao de exemplos deslumbrante. Assim, hoje, o Banco Mundial se apresen-taria como quem mais promove o empoderamento no mundo. Porm, um conhecimentomais cuidadoso da prtica e dos resultados reais desses mesmos exemplos podequestionar essa viso otimista da adoo e difuso da abordagem de empodera-mento pelos bancos e agncias multilaterais.

    At onde, na grande maioria dos casos como, por exemplo, em projetos de irrigao,difuso de telefonia ou de fundos de desenvolvimento social no se continua fazendoem essncia, ainda que de outro modo, o que se fazia? Isto : roupagens novas paraaes velhas... Ou at onde o potencial de mudana das aes novas tem sido limitado ou anulado pela prtica e a cultura poltica e institucional dominantes na entidadee nos governos que promovem essas aes? Isto : aes novas aprisionadas emroupagens velhas...

    Entre as prprias ONGs, at onde a prestao ou promoo de servios sociais bsicostem-se transformado, verdadeiramente, num meio de empoderamento e no um fimem si mesmo? Isto , at onde, em alguns casos, a cultura institucional, os habitus dosseus funcionrios, a correlao de foras intra-institucionais, os compromissos cristali-zados com parceiros e comunidades e o peso da forma mais segura de obteno derecursos financeiros (sponsorship) e sua dificuldade em consolidar novos produtos entre outros fatores levam a que se reproduza a prestao e a promoo de servioscomo um fim. E que o empoderamento, perigosamente, fique reduzido a um papel delegitimao dessa prtica assistencialista.

  • EMPODERAMENTO: RECUPERANDO A QUESTO DO PODER NO COMBATE POBREZA

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    1.2. Um empoderamento sem poder?

    Em vrias das propostas que proliferaram com a generalizao do uso do termo, modificou-sesubstancialmente a abordagem. Nelas tem sido colocada em segundo plano a questo essencialda noo e da abordagem de empoderamento. Isto , a questo do poder. Mais precisamente, amudana nas relaes de poder existentes tem sido deslocada de seu papel central, virando umaquesto implcita ou diluda entre os elementos que comporiam o empoderamento.

    Voltando ao relatrio j mencionado do Banco Mundial, no balano apresentado sobrea prtica de empoderamento promovida pela instituio, vemos que a questo de mu-danas nas relaes de poder fica diluda na forma como so definidos os quatro ele-mentos que comporiam a abordagem: acesso informao, incluso e participao,prestao de contas e capacidade organizacional local. Essa diluio tambm se mani-festa na forma de definir as reas onde os princpios do empoderamento se aplicam:acesso a servios bsicos, promoo da governana local, promoo da governananacional, desenvolvimento de mercados em favor dos pobres, acesso justia e ajudalegal. Tanto nos elementos como nas reas no se d destaque ao poder, s relaes depoder existentes e s que se pretende mudar. O corpo do empowerment do BancoMundial tem ficado sem o seu corao...

    1.3. Um empoderamento neutro e sem conflitos?

    Na generalizao do uso da abordagem de empoderamento, e em particular no promovidoatravs de governos e de agncias multilaterais, tem-se procurado despolitizar o processo demudana impulsionado atravs dele. Nesse sentido, a questo ttica de iniciar o processo a partirde um foco relativamente neutral inunda toda a estratgia. Essa suposta neutralidade, na prtica,funciona como um limite ao processo de empoderamento. E a continuar se mantendo, vem afuncionar como um elemento importante no controle do processo de mudana pelo status quo.

    Fazendo parte dessa viso de neutralidade apresenta-se uma averso aos conflitos. Procura-setecnicizar os conflitos, tirando deles suas dimenses ideolgicas e polticas, de forma a domestic-los.Os conflitos perturbam o resultado esperado. A mudana procurada seria o fruto do progressodas relaes sociais, do desenvolvimento das instituies e da superao das falhas do mercado.O empoderamento, nessa viso, seria um acelerador ponderado desse progresso. Uma tcnica deadministrao e neutralizao de conflitos. Busca-se reduzir os efeitos do empoderamento, nomelhor dos casos, aos de uma progresso aritmtica e no potencializar suas possibilidadesenquanto desencadeador de progresses geomtricas. Com essa pasteurizao do empodera-mento, tem-se procurado eliminar seu carter de fermento social.

    No de qualquer poder que estamos falando quando enfrentamos a pobreza. Estamosfalando de situaes caracterizadas por relaes de dominao; situaes onde existem ainda quepor vezes seja difcil delimitar claramente atores que tm algum tipo de beneficio por ocuparposies dominantes. Estamos falando de relaes de dominao que envolvem voluntria ouinvoluntariamente opressores e oprimidos. A abordagem de empoderamento no pode serneutral nem ter averso aos conflitos e a seus desdobramentos. O desdobramento dos conflitossignifica que o processo de mudana, uma vez deslanchado, permeia e se infiltra em outrasdimenses vividas pelas pessoas e grupos sociais. Empoderamento implica contgio, no assepsia. fermento social: est mais para inovao criativa que para evoluo controlada.

  • EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE POBREZA

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    Atravs do empoderamento se busca conscientemente quebrar, eliminar as relaes dedominao que sustentam a pobreza e a tirania, ambas fontes de privao das liberdades subs-tantivas. Com o empoderamento se procura combater a ordem naturalizada ou institucionalizadadessa dominao (seja ela pessoal, grupal, nacional, internacional; seja ela econmica, poltica,cultural ou social) para construir relaes e ordens mais justas e eqitativas. O empoderamentoimplica em tomar partido (ou relembrando a antiga palavra de ordem: compromisso) pelospobres e oprimidos e em estar preparado para lidar quase todo o tempo com conflitos.

    1.4. O empoderamento como ddiva

    Nas prticas de empoderamento das pessoas atravs de programas e projetos promovidaspelos governos, bancos e agncias de desenvolvimento multilaterais e bilaterais recorrente queesse conceito assuma carter de uma ddiva, de algo que pode ser outorgado. Nesses casos ofoco passa a ser a maior facilidade de acesso a recursos externos, bens ou servios, secundarizandoou deixando de lado os processos de organizao do grupo e de construo de auto-estima econfiana das pessoas. Ainda que a participao seja propalada, seu contedo fica estreito, redu-zido a algumas consultas rpidas no inicio dos programas (Sen, G: 1997).

    O empoderamento no algo que pode ser feito a algum por uma outra pessoa. Os agentesde mudana externos podem ser necessrios como catalisadores iniciais, mas o impulso doprocesso se explica pela extenso e a rapidez com que as pessoas e suas organizaes se mudama si mesmas. Nem o governo, nem as agncias (e nem as ONGs) empoderam as pessoas e asorganizaes; as pessoas e as organizaes se empoderam a si mesmas. O que as polticas e asaes governamentais podem fazer criar um ambiente favorvel ou, opostamente, colocarbarreiras ao processo de empoderamento (Sen, G: 1997).

    1.5. O empoderamento como uma tcnica que se aprende emcursos (ou a pedagogizao e a tecnicizao do empoderamento)

    A generalizao do uso do conceito e da abordagem veio acompanhada com uma reduoda prtica social e poltica do empoderamento a questes tcnicas e instrumentais. Isto , oempoderamento passou a ser considerado principalmente como uma tcnica que compreendemetodologias especficas e menos como um complexo processo social e poltico.

    Esta reduo ou tecnicizao do empoderamento veio a solucionar o problema de suadifuso. Na grande maioria dos projetos e programas propiciados pelos bancos e agncias dedesenvolvimento multilaterais e bilaterais, governos e ONGs, a componente capacitao umadas principais. Proliferaram cursos de capacitao ministrados por consultores agora enquantoespecialistas em metodologias participativas de empoderamento. O empoderamento passou aser ensinado em salas de aula, em detrimento da troca de experincias e da construo de respostasconjuntas em face de situaes de dominao especficas. Isto , se supervalorizaram os efeitospolticos da ao pedaggica em detrimento dos efeitos pedaggicos da ao poltica.

  • EMPODERAMENTO: RECUPERANDO A QUESTO DO PODER NO COMBATE POBREZA

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    1.6. A superpolitizao e a atomizao do empoderamento

    Finalmente, gostaramos de levantar dois riscos opostos que se apresentam na generali-zao e uso da abordagem do empoderamento. Os riscos da superpolitizao e da atomizao.

    Por um lado, as teorias mais antigas de empoderamento tm ignorado, e at negado, oelemento individual desse processo, acreditando que o foco na autonomia individual implicariana atomizao e na negao dos interesses e interaes de grupo (Sen, G.: 1997). Ante esseperigo, se recomendava que a nfase no trabalho fosse colocada nos grupos e suas organizaes.

    Esta viso do empoderamento como um processo que diz respeito, basicamente, s relaesde poder entre grupos sociais e organizaes veio ao encontro da orfandade paradigmtica epoltica criada no final do sculo com a crise do marxismo e o fracasso do socialismo real e dasrevolues nacionais-populares. Para um grande nmero de intelectuais, de agentes de desenvol-vimento e de organizaes populares ou de esquerda , o discurso e a prtica do empodera-mento passou a ser uma nova esperana na construo da revoluo socialista ou antiimperialista.Esta legtima expectativa de mudana, porm, introduziu no trabalho de combate pobrezaatravs do empoderamento o risco de sua superpolitizao. Este risco implica na reduo doempoderamento a um tipo de ao coletiva. Isto , quando s dizem respeito ao trabalho deempoderamento as prticas e discursos polticos contestatrios, que tenham nas organizaes oumovimentos seus atores quase exclusivos.

    Num plo oposto, as propostas de empoderamento vm sofrendo a influncia das tentativasde despolitizao, fragmentao e atomizao das situaes de dominao, propiciadas peloavano do neoliberalismo, das teorias que vaticinam o fim das ideologias e da supervalorizaoda individualidade. Para enfrentar a dominao assim caracterizada, a lgica da ao coletiva quese promove aquela cuja racionalidade fica reduzida ao principio do interesse egosta individual,excluindo outros princpios fundamentais, como os de solidariedade e de valores compartilhados.A identidade da pessoa como um produto histrico, social e cultural secundarizada emfuno do interesse atomizado do indivduo, enquanto produto do mercado.

    Em sua grande maioria, o empoderamento promovido pelos bancos e agncias de desen-volvimento multilaterais e bilaterais e pelos governos tem-se sustentado numa expectativa deao racional dos atores centrada no interesse individual. Esses interesses e preferncias sovistos como propriedades dos indivduos, no importando que sejam produto da interaogrupal, da prtica social e cultural. Invertem-se assim a expectativa e o caminho da mudana.Passa-se a se investir prioritariamente na mudana dos indivduos, ou no mximo, das instituies.A mudana nos grupos e nas organizaes seria, em ltima instncia, um subproduto da agre-gao dessas mudanas atomizadas individuais. D-se um descompasso entre a nfase colocadano empoderamento individual e institucional, em relao ao descaso no empoderamento grupale das organizaes.

    Para concluir, cabe reafirmar que o questionamento da superpolitizao no implica emnegar que o empoderamento atravs dos processos grupais pode vir a ser altamente efetivo tantona mudana de estruturas que sustentam as situaes de dominao como nas mudanas emnvel individual, em termos de maior controle sobre recursos externos ou de maior autonomia eautoridade na tomada de decises. Por sua vez, o questionamento da atomizao no implica emdesconhecer que a mudana na conscincia de dominao, ainda que catalisada em processosgrupais, profunda e intensamente pessoal e individual. Nem tambm em negar a importnciada autonomia individual atravs de lutar para fazer do pessoal algo poltico, como, por exemplo,o vem promovendo e construindo o movimento de mulheres (Sen, G. 1997).

  • EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE POBREZA

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    2. Enfrentando aquesto do poder

    A promoo de um novo modelo de desenvolvimento que permita a expanso das liberdadessubstantivas e instrumentais das pessoas (Sen, A. 2001) e que tenha no empoderamento umcaminho principal para a superao da pobreza e da tirania enquanto seus principais obst-culos necessita enfrentar a questo do poder.

    2.1. E o que o poder?

    Entre os mltiplos debates sobre a questo do poder, tendo em vista nosso interesse emdelimitar o conceito e a abordagem de empoderamento, e procurando no entrar demais nateoria, nos deteremos rapidamente em s duas grandes concepes sobre o poder.

    A primeira, inscrita na vertente do pluralismo norte-americano da cincia poltica, v o podercomo capacidade de controle sobre algo ou algum: quando uma pessoa ou grupo capaz decontrolar de alguma forma as aes ou possibilidades de outros. A idia fora poder sobre.O poder sobre se apresenta como uma substncia, finita, transfervel, tomvel: se algumganha poder, outros o perdem (isto , um jogo de soma zero). Ele pode ser delegado (por exemplo,em representantes), ou tirado (por exemplo: das bases). Havendo uma reverso na relao depoder, as pessoas que atualmente tm o poder no apenas o perdero seno que o vero sendousado contra elas (Iorio, 2002).

    A segunda concepo, que tem origem na viso de Foucault, no considera o poder comouma substncia finita e que pode ser alocada a pessoas e grupos. O poder relacional; consti-tudo numa rede de relaes sociais entre pessoas que tm algum grau de liberdade; e somenteexiste quando se usa. O poder est presente em todas as relaes. Sem poder as relaes noexistiriam. Nesta concepo a resistncia uma forma de poder: onde h poder h resistncia(Iorio, 2002).

    A partir da viso foucaultiana, se amplia a noo de poder. O poder no s poder sobrerecursos (fsicos, humanos, financeiros) e idias, crenas, valores e atitudes. possvel, e necessrio,diferenciar outros tipos de exerccio do poder. Por exemplo, o poder para fazer uma coisa (umpoder generativo que cria possibilidades e aes); o poder com (que envolve um sentido de queo todo maior que as partes, especialmente quando um grupo enfrenta os problemas de maneiraconjunta, por exemplo, homens e mulheres questionando as relaes de gnero); e o poder dedentro, isto , a fora espiritual que reside em cada um de ns, base da auto-aceitao e doauto-respeito, e que significa o respeito e a aceitao dos outros como iguais. Estes ltimos tiposde poder poder para, poder com e poder de dentro no so finitos, podem crescer com o seuexerccio (Iorio, 2002). Um grupo exercendo estes poderes no necessariamente reduz o poderdos outros, porm, de toda forma esse desenvolvimento implica mudanas nas relaes.

    Em sntese, nas diversas sociedades, em todas as relaes sociais possvel identificar oexerccio de poder, seja qual for o tipo (poder sobre, poder para, poder com, poder de dentro...).Nas situaes de pobreza confluem todos esses tipos de poder, mas de modo diferente segundoas especificidades dos contextos. Isto coloca o desafio de ter que identificar as relaes de poder e ostipos de exerccio de poder principais e secundrios que caracterizam cada situao de pobreza.

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    2.2. A necessidade da anlise das relaes de poderno combate pobreza

    O enfrentamento da pobreza atravs de uma abordagem de empoderamento requer, conse-qentemente, uma clara compreenso das relaes de poder e dos tipos de exerccio de poderprincipais e secundrios que as conformam.

    A anlise das relaes de poder e das situaes de dominao resultantes tem que estarconstantemente em foco no trabalho de empoderamento, seja qual for o nvel (pessoal ou grupal),o territrio (local, regional, nacional, global), a dimenso (social, poltica, econmica, cultural,ambiental) ou os objetivos (estratgicos ou organizacionais) que se privilegiem.

    No caso do trabalho em parceria entre ONGs e com organizaes de base, a anlise dasrelaes de poder deve estar presente no s no diagnstico inicial, mas tambm na construoconjunta da estratgia de ao; no planejamento participativo das aes; no acompanhamentocotidiano das atividades; nos exerccios de reviso e reflexo; e na avaliao final de resultados.Como tambm na prpria avaliao organizacional de nossa entidade.

    A anlise das relaes de poder e das situaes de dominao resultantes implica em discutire refletir, junto com os parceiros e as populaes pobres, sobre questes que permitam dar contade aspectos como:

    Qual o espao social considerado no qual se manifestam as relaes de poder?

    Por exemplo: da famlia, da comunidade, da regio etc. do mercado, do Estado, da sociedade civil.

    Que tipo de exerccio de poder principal e secundrio se manifesta nasdiferentes relaes?

    Por exemplo: poder sobre, poder para, poder com, poder de dentro

    Que forma de poder predominante nessas relaes?

    Por exemplo: poder econmico, poltico, social, cultural, psicolgico.

    Que est em jogo nessas relaes de poder?

    Por exemplo: o acesso a recursos (ambientais; econmicos; poltico-institucionais; culturais; humanos); a transformao desses recursos em ativos; ou dito de outra forma, a produo, circulao,

    acumulao e uso de capitais especficos (ambiental, econmico, poltico, cultural, social); questes de hierarquia e/ou prestgio.

    Que campo especfico essas relaes de poder delimitam?

    Por exemplo: campo das relaes familiares de gnero; campo da luta pela terra; campo do desenvolvimento local;

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    campo das polticas nacionais de combate pobreza; campo dos acordos nacionais de paz; campo dos acordos internacionais de comrcio agrcola.

    Quais so os atores principais envolvidos nessas relaes?

    No caso do campo do desenvolvimento local, por exemplo: governo municipal; agncias especficas do governo estadual ou federal presentes no

    mbito local; elites (fundirias, financeiras, comerciais, industriais) locais e suas entidadesde representao; moradores urbanos e suas associaes; agricultores familiares e suasassociaes; ONGs.

    Quem tem o poder? Ou em termos analticos mais precisos: quem ocupa a posiode dominao e quais so os seus aliados no campo em considerao?

    No caso do campo do desenvolvimento local, por exemplo: o governo municipal e as elites locais e suas entidades de representao; tendo como aliadas as agncias do governo estadual ou federal presentes no mbito local.

    Quem ocupa a posio de dominado e quem podem ser seus aliados?

    No caso do campo do desenvolvimento local, por exemplo: moradores urbanos e suas associaes; agricultores familiares e suas associaes; tendo como aliadas as ONGs.

    Que compreenso tm os atores principais sobre a situao analisada?

    Isto : quem fala o que e de qual posio? identificar e caracterizar os principais elementos do discurso dominante e suas variantes; identificar at onde os principais elementos do discurso dominante esto presentes nas

    verses dos atores dominados (predomnio do senso comum ideolgico); identificar e caracterizar os principais elementos das verses crticas (presena do bom

    senso ou at de discursos contra-hegemnicos).

    Como se exerce a dominao?

    Isto , atravs: da coero (poder fsico); de leis, regimentos ou contratos (poder institucional); e/ou dos costumes e da ideologia (poder simblico).

    Como se reproduz a situao de dominao?

    Por exemplo, no campo de luta pela terra, entre outros mecanismos, atravs: do no reconhecimento da posse tradicional das comunidades camponesas como um

    direito de acesso terra legtimo e legal; da corrupo (grilagem) na titulao de terras pelos latifundirios; do controle dos preos do mercado de terras;

  • EMPODERAMENTO: RECUPERANDO A QUESTO DO PODER NO COMBATE POBREZA

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    da implementao pelos latifundirios, em aliana com as elites comerciais locais, de me-canismos laborais e mercantis de apropriao de renda que limitem a possibilidade deacumulao por parte dos agricultores sem terra ou com pouca terra;

    da formao de milcias privadas e/ou da fcil disponibilidade de uso da fora pblica paraevitar ocupaes de terra;

    da matana seletiva de lideranas de sem-terra e/ou de seus aliados.

    Quais so as formas de resistncia?

    Isto : as estratgias so individuais ou existem estratgias grupais?; resistncia passiva, mobilizao e conflito aberto.

    Como est sendo e como pode vir a ser mudada a situao de dominao?

    Isto : que condies e oportunidades so necessrias para que essa mudana se efetive ou inten-

    sifique? Em particular, que alianas ou redes podem ser construdas?; quais capacidades das pessoas e das organizaes necessitam ser desenvolvidas?

    Como podemos monitorar e avaliar as permanncias e as mudanas nasrelaes de poder?

    Por exemplo, atravs de: construir exerccios de reviso e reflexo; estabelecer conjuntamente procedimentos e indicadores.

    A lista de questes que se acaba de discriminar no pretende ser exaustiva. Ao mesmotempo, cabe ressaltar que no estamos sugerindo que todas elas tenham que ser respondidas notrabalho das ONGs. As ONGs no so instituies de pesquisa. O objetivo da apresentao destalistagem o de exemplificar o tipo de aspectos e questes que podem ser formuladas sobre asrelaes de poder. A escolha das questes e a linguagem a ser utilizada em sua formulaodependero de cada caso.

    3. O que entendemospor empoderamento

    3.1. O empoderamento como abordagem e como processo

    Segundo nossa perspectiva, o empoderamento :

    uma abordagem que coloca as pessoas e o poder no centro dos processos de desenvol-vimento;

    um processo pelo qual as pessoas, as organizaes, as comunidades assumem o controle deseus prprios assuntos, de sua prpria vida e tomam conscincia da sua habilidade ecompetncia para produzir, criar e gerir.

  • EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE POBREZA

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    No combate pobreza, a abordagem de empoderamento implica no desenvolvimento dascapacidades (capabilities) das pessoas pobres e excludas e de suas organizaes para transformar asrelaes de poder que limitam o acesso e as relaes em geral com o Estado, o mercado e asociedade civil.3 Assim, atravs do empoderamento visa-se a que essas pessoas pobres e excludasvenham a superar as principais fontes de privao das liberdades, possam construir e escolhernovas opes, possam implementar suas escolhas e se beneficiar delas.

    As capacidades (capabilities) so poderes para fazer ou deixar de fazer coisas. Assim, oconceito de capacidades no significa s as habilidades (abilities) das pessoas, mas tambm asoportunidades reais4 que essas pessoas tm de fazer o que querem fazer (Sen A, 1992).

    O empoderamento, enquanto desenvolvimento das capacidades das pessoas pobres e excludase suas organizaes, um processo relacional e conflituoso.

    Relacional, no sentido de que sempre envolve vnculos com outros atores. No d paraanalisar e trabalhar no processo de empoderamento em termos atomizados individuais.Sempre temos que pensar no tecido de relaes de poder nas quais o indivduo, ou melhor,a pessoa est inserida.

    Conflituoso, no sentido de que o empoderamento diz respeito a situaes de dominao explcitas ou implcitas e busca de mudanas nas relaes de poder existentes. O empodera-mento leva a mudanas tanto da posio individual como grupal nas relaes de poder/dominao. Essas mudanas no ocorrem, em geral, sem conflitos de alguma ordem. Assim, notrabalho de empoderamento, estamos lidando com a resoluo negociada ou no deconflitos. A participao nesse processo no pode ser neutra. Ela implica assumir uma posiode aliado dos pobres e excludos e, como tal, fazer parte dos conflitos que levam modificaodas relaes de poder que mantm a situao de dominao existente.

    3.2. As caractersticas da abordagem do empoderamento

    Alm do seu carter processual, a abordagem do empoderamento apresenta um conjuntono hierrquico e inter-relacionado de caractersticas (Shetty, s/d):

    Holstico: o empoderamento implica numa abordagem geral e no num conjunto de inputs;no pode ser limitado s noes de atividades ou setores que se desenvolvem nas diferentesetapas de um projeto; o resultado da sinergia entre o conjunto de atividades e aes.

    Especificidade contextual: o empoderamento s pode ser definido em funo de contextoslocais especficos em termos sociais, culturais, econmicos, polticos e histricos.

    Focalizado: o empoderamento diz respeito aos grupos excludos e vulnerveis urbanos e rurais.

    Estratgico: o empoderamento se refere a aspectos estratgicos que procuram atacar ascausas estruturais e prticas da despossesso de poder (powerlessness).

    3 Agradeo a Nelson G. Delgado seus comentrios sobre esta definio que levaram a reforar nela a nfase na transformaodas relaes com o Estado, o mercado e a sociedade civil.

    4 As oportunidades se referem s limitaes e possibilidades apresentadas pelas condies externas, entre as quais se destacamas relaes de poder e as situaes de dominao nas quais as pessoas, os grupos e as organizaes esto inseridos.

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    Democratizao: no empoderamento o aspecto chave a democratizao e a participao(como meio e como fim).

    Construto ideolgico: o empoderamento depende da percepo que os indivduos e osgrupos tenham de si mesmos e de sua situao.

    Sustentabilidade: o empoderamento diz respeito auto-realizao e sustentabilidadedas prticas.

    3. O empoderamento como estratgia de combate pobreza

    Nos discursos do mainstream, diludo em digresses sobre o progresso em termos econ-micos, tcnicos ou informacionais, cada vez mais se oculta a discusso das relaes entre de-senvolvimento e poder. Esse ocultamento no sem conseqncias, j que dificulta identificartanto a prpria concepo de desenvolvimento como os entraves para a construo de umprojeto alternativo.

    Desde a nossa perspectiva, seguindo A. Sen, um projeto alternativo implica na promoo deum modelo de desenvolvimento que permita a expanso das liberdades substantivas e instru-mentais das pessoas.5 Ou seja, um projeto em aberto, orientado para as pessoas enquanto agentese que respeita a diversidade humana e a liberdade de escolha. Nesse projeto a pobreza e a tiraniaso os principais entraves a serem enfrentados.

    Da mesma forma que se ocultam as relaes entre poder e desenvolvimento, tambm sediluem as relaes entre poder e pobreza. A pobreza constituda perpetuada por relaes depoder. A pobreza um estado de desempoderamento.

    Ver a pobreza como um estado de desempoderamento tem como ponto de partida o pressu-posto de que os indivduos e os grupos pobres no tm poder suficiente para melhorar suascondies nem a sua posio nas relaes de poder e dominao nas quais esto inseridos. Isto particularmente destacvel no caso dos grupos mais desempoderados e vulnerveis, isto , dasmulheres, dos idosos e das crianas.

    O empoderamento um meio e um fim para a transformao das relaes de poder existentese para superar o estado de pobreza. um meio de construo de um futuro possvel, palpvel,capaz de recuperar as esperanas da populao e de mobilizar suas energias para a luta pordireitos no plano local, nacional e internacional. Mas o empoderamento tambm um fim,porque o poder est na essncia da definio e da superao da pobreza. O empoderamentonecessita constantemente ser renovado para garantir que a correlao de foras no volte areproduzir as relaes de dominao que caracterizam a pobreza.

    Assim, as estratgias de combate pobreza inscrevem-se num processo essencialmentepoltico, que precisa de atores capazes de alterar correlaes de fora em nveis macro, meso emicro articulados em torno de temas e lutas comuns. Neste marco, o empoderamento essencial.

    Atores com poder diferente so necessrios como catalisadores no processo de empodera-mento. Ao mesmo tempo, as caractersticas desses processos, suas potencialidades e limites, so

    5 As liberdades esto inter-relacionadas e podem se fortalecer umas s outras. As liberdades polticas ajudam a promover asegurana econmica. As oportunidades sociais facilitam a participao econmica. As facilidades econmicas podem ajudar agerar a abundncia individual alm de recursos pblicos para servios sociais (Sen, 2001).

  • EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE POBREZA

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    diversas em funo do tipo de mediadores por exemplo: movimentos sociais, ONGs, governos,agncias multilaterais que atuam como catalisadores.

    No combate pobreza, o empoderamento dos pobres e de suas organizaes se orientapara a conquista da cidadania, isto , a conquista da plena capacidade de um ator individual oucoletivo de usar seus recursos econmicos, sociais, polticos e culturais para atuar com respon-sabilidade no espao pblico na defesa de seus direitos, influenciando as aes dos governos nadistribuio dos servios e recursos.

    Os processos de transformao do Estado e de mudana social orientados para a superaoda pobreza assentam na construo de redes e de amplas alianas dos movimentos sociais e dasorganizaes populares no campo da sociedade civil. As ONGs vm tendo um papel fundamentalna construo e no suporte dessas redes e alianas.

    Finalmente, a adoo do empoderamento como estratgia central no combate pobrezano gratuita para uma ONG. Alm de qualificar e enriquecer a compreenso de sua misso evalores, a adoo do empoderamento tem conseqncias significativas no campo de sua polticainstitucional. Por exemplo, a importncia do papel das ONGs na construo e suporte de redes ealianas no combate pobreza, o fato de que o empoderamento no um processo neutro e oreconhecimento do intenso debate ideolgico no qual esta abordagem hoje est inseridaobrigam-nos a posicionarmos claramente nossa estratgia de combatermos juntos a pobreza.Onde ela se situa e constri alianas: em Davos ou em Porto Alegre?

    BIBLIOGRAFIA

    ACTIONAID-BRASIL. Country Strategy Paper 2001-2003. Rio de Janeiro, 2000.

    ACTIONAID-LAC. Regional Strategy 2001-2003. Guatemala, 2000.

    IORIO, Ceclia. Algumas consideraes sobre estratgias de empoderamentoe de direitos. Texto elaborado para a ActionAid, 2002.

    SEN, Gita. Empowerment as an approach to poverty. Pnud, 1997.

    SEN, Amartya. Inequality reexamined. Oxford University Press, 1992.

    . Desenvolvimento como liberdade. So Paulo,Companhia das Letras, 2001.

    SHETTY, S. (s/d): Development projects in assessing empowerment, OccasionalPaper Series N 3, New Delhi, Society for Participatory Researchin Asia, (s/d).

    World Bank. Empowerment and poverty reduction: a soucerbook.Washington, PREM, 2001.

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    Algumas consideraessobre estratgias deempoderamento e dedireitos

    Ceclia Iorio1

    As desigualdades se verificam no apenas entre pases, mas tambm dentrodos pases entre grupos tnicos, entre regies, entre gneros.

    Em um cenrio onde se ampliam e agudizam as situaes de pobreza, uma variedade deatores do campo do desenvolvimento passaram a realizar revises estratgicas de seus trabalhos.A busca de novos paradigmas e conceitos que conduzam a um melhor entendimento das comple-xas questes que envolvem a pobreza e a sua superao, a busca de maior eficcia e eficincia nocombate pobreza so alguns elementos que em graus e combinaes variadas orientam asdiscusses realizadas pelos distintos atores do campo do desenvolvimento.

    Este documento explora as dinmicas de duas abordagens de combate pobreza: a perspec-tiva de empoderamento e a perspectiva baseada nos direitos. Buscamos resgatar a conceitualizao,contextualizar o debate e apontar fortalezas e fragilidades de ambas as perspectivas. Este Estadoda Arte visa a contribuir com a ActionAid Brasil e LAC em seu processo de discusso de interna ede elaborao de positional paper.

    1. Histrico sobre o conceitode empoderamento

    Identificar a origem do conceito de empoderamento uma tarefa que resulta inconclusiva. A origemdo conceito disputada tanto pelos movimentos feministas, como pelo movimento AmericanBlacks, que nos anos 1960, movimentou o cenrio poltico norte-americano exigindo o fim dopreconceito e da discriminao que marcavam a vida dos negros nos EUA.

    Contudo, na interseo com gnero que o conceito de empoderamento se desenvolvetanto em nvel terico como instrumento de interveno na realidade. Nos anos 1970 e 1980,feministas e grupos de mulheres espalhadas pelo mundo desenvolveram um rduo trabalho deconceitualizao e de implementao de estratgias de empoderamento, com o qual buscaramromper com as diferentes dinmicas que condicionavam a existncia e impediam a participao ea cidadania plena das mulheres.

    Nos anos 1990 observa-se a expanso do uso deste conceito para outras reas do debatesobre desenvolvimento, especialmente a partir das grandes conferncias oficiais e paralelasmundiais, notadamente Cairo e Beijing.

    1 Sociloga Brasil.

  • EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE POBREZA

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    O reconhecimento da necessidade de se empoderar as pessoas e grupos que vivem na pobrezapassa a ser percebido, com maior ou menor nfase, como uma condio para o sucesso depolticas, programas, ou mesmo projetos, por um amplo leque de organizaes, representantesde diferentes perspectivas polticas, de diferentes tamanhos, capacidade de influncia e natureza.

    A ampliao do uso do conceito e de estratgias de empoderamento coloca o desafio deembasar este conceito de forma que o seu uso no seja apenas uma moda no campo do desen-volvimento, mas sim produza mudanas nas prticas e polticas destes atores.

    O empoderamento dentro do movimento feminista.2

    A abordagem instrumental empoderamento como um resultado

    As primeiras conceitualizaes sobre poder e empoderamento dentro do campo do desenvolvi-mento surgem nos anos 1970 principalmente dentro do movimento feminista, vinculado ao grupoconhecido como WID Women In Development (Mulheres no Desenvolvimento). A conceitualizaopor elas usada reconhece sua origem nas cincias sociais, mais especificamente na cincia poltica onde a idia fora a de poder sobre. Nesta conceitualizao, uma pessoa ou um grupo depessoas capaz de controlar de alguma forma as aes ou as possibilidades de outros (Dahl;Polsby). Esse controle sobre pode ser evidente atravs de, por exemplo, o uso da fora fsica,mas tambm pode ser oculto, quando internalizado atravs de processos psicolgicos. Ele podeser muito sutil, levando a situaes de opresso internalizada onde o uso de poder evidenteno mais necessrio (ex.: o bom escravo).

    A partir desta perspectiva de poder a estratgia de empoderamento que prevalecia no WIDera de que, para romperem a situao de dominao, as mulheres deveriam ser empoderadasde forma a conquistar espao nas estruturas econmicas e polticas da sociedade e, dessaforma, vir a participar do processo de desenvolvimento. As mulheres deveriam conquistar eocupar posies de poder.

    O poder sobre se apresenta como uma substncia, transfervel, tomvel e finita, ou seja, sealgum ganha poder outros perdem. O poder sobre pode tambm ser delegado de uma pessoa aoutra. A questo que se ele pode ser delegado, ele tambm pode ser tirado.

    A perspectiva de empoderamento ancorada neste conceito de poder sobre representou intrin-secamente uma ameaa para os homens (e o temor dos homens foi um obstculo para o empo-deramento das mulheres). Nesta conceitualizao de soma zero fcil entender por que a resis-tncia idia de empoderamento das mulheres. Subjaz a esta idia que, havendo uma reversoda relao de poder, as pessoas que atualmente tm poder no apenas o perdero seno quevero esse poder sendo usado contra elas, ou melhor, contra eles.

    As estratgias de empoderamento dentro desta perspectiva no propem mudanas estruturaisnas relaes de poder dentro de uma sociedade e nem questiona a forma como o poder distri-budo na sociedade. No d ateno a uma questo importante como tica e poder.3

    2 Utilizamos para a analise desta parte um texto de Rowlands.

    3 Mas importante perguntar: o empoderamento das mulheres deve necessariamente significar que os homens percam poder?Ou a perda de poder algo que os homens devem necessariamente temer? As mesmas perguntas podem ser feitas em relaoa qualquer grupo detentor de poder.

  • ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE ESTRATGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS

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    A abordagem processual ou generativa

    Em finais dos anos 1970 e incio dos 1980, novos esforos analticos apontam para novasconceitualizaes de poder. Focalizando em processos e no nos resultados, o poder pode assumiroutras formas que, de maneira geral, podem ser descritas como poder para, poder com e poderde dentro, que levam construo de outras perspectivas de empoderamento.

    Poder para no envolve necessariamente a dominao de algum sobre outro, mas o poder enfocado como um processo generativo que leva realizao de capacidades em outros(Hartsock). o tipo de liderana que decorre do desejo de ver um grupo desenvolver suas capaci-dades, e onde no h necessariamente conflito de interesses.

    Foucault utiliza uma outra perspectiva de poder. Para ele o poder no uma substncia finitaque pode ser alocada a pessoas ou grupos. Para Foucault, o poder relacional, algo que somenteexiste quando se usa, constitudo numa rede de relaes sociais entre pessoas que tm algumgrau mnimo de liberdade. Sem poder as relaes no existiriam. Esta compreenso inclui a resis-tncia como uma forma de poder (uma ao sobre outra ao), onde h poder h resistncia.Foucault focaliza na micropoltica, no exerccio do poder em pontos localizados e enraizados emredes sociais.

    Esta linha do movimento feminista constri um modelo de poder tendo como base muito domodelo de Foucault, mas incorporando a anlise das relaes de gnero, o que incluiu a opressointernalizada percebida como sendo uma barreira ao exerccio do poder por parte das mulheres elevando manuteno das desigualdades com os homens.

    importante diferenciar os vrios tipos de exerccio de poder. O poder sobre como controleque pode ser respondido com resistncia ou aceitao. O poder para como um poder generativoou produtivo que cria possibilidades e aes sem dominao. Pode-se tambm diferenciar o podercom, que envolve um sentido de que o todo maior do que a soma das partes, especialmentequando um grupo enfrenta os problemas de maneira conjunta. A unio faz a fora. Muitas pessoasagindo juntas podem produzir mudanas mais facilmente. H tambm o poder de dentro, que a fora espiritual que reside em cada um de ns e que nos faz humanos a base da auto-aceitao e do auto-respeito, que por sua vez significa o respeito e aceitao dos outros comoiguais. Este poder pode permitir que uma pessoa mantenha uma posio ainda que a grandemaioria possa estar contra.

    Empoderamento no somente o resultado de se alcanar o poder sobre, mas pode sertambm o desenvolvimento de poder para, poder com ou poder de dentro. Estes tipos de poderno so finitos (com princpio e fim), mas ele pode crescer com o seu exerccio. Um grupoexercendo estes poderes no necessariamente reduz o poder dos outros.

    Nesta perspectiva de empoderamento, a compreenso da dominao est associada s relaesde poder, que so mltiplas e esto profundamente enraizadas em sistemas de redes sociais.O empoderamento de pessoas ou grupos nesta perspectiva no implica necessariamente a perdade poder de outros, embora implique mudanas que podem levar a que isso possa ocorrer.

    Ento, temos vrias possibilidades de empoderamento, processos que levam os grupos aposies de poder sobre, mas tambm a possibilidade de exerccio de poder generativo. Como isto serelaciona com o processo histrico do empoderamento das mulheres?

    Poder com, poder de dentro ou poder para levam a uma conceitualizao de empode-ramento bastante diferente. Aqui a noo de poder privilegia a capacidade do ser humano deexpresso e ao, a capacidade de realizao do ser, sua liberdade de expresso.

  • EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE POBREZA

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    Esta forma relacional de entender e de analisar a situao das mulheres conduziu a umaviso sobre o processo de dominao das mulheres que, ao invs de focalizar nos resultados,focaliza no processo. Aqui as possibilidades de exerccio de poder focalizam as relaes humanase sociais. O movimento Gnero e Desenvolvimento (GAD) comea a abordar no apenas a naturezados papis das mulheres como no WID mas as interaes desses papis com os homens e,portanto, a dinmica e estrutura das relaes de gnero na sociedade. As mulheres no so donasde casa no vcuo, mas num contexto onde homens e outras mulheres esperam que ela secomporte como dona da casa. As relaes de gnero passam a ser vistas como centrais aosprocessos e organizaes sociais e, portanto, ao processo de desenvolvimento.

    Resumindo, a perspectiva do WID v o empoderamento como um meio que deve levar asmulheres s posies de poder, revertendo em benefcios sociais, econmicos e polticos para asmulheres. A perspectiva do GAD est mais vinculada a processos de mudana mais amplos, umavez que entende que a mudana na situao subordinada das mulheres est vinculada a contextosmais amplos e requer mudanas econmicas, polticas e culturais. importante salientar que asperspectivas de empoderamento acima descritas, embora faam parte da importante histria domovimento feminista, so hoje de interesse de um amplo leque de movimentos sociais, organizaesno-governamentais e outros atores do campo do desenvolvimento.

    2. Uma propostade empoderamento

    Sumariamente descrevemos algumas conceitualizaes e suas conseqncias prticas sobrepoder que tm relevncia no debate sobre empoderamento no apenas dentro do campo feminista.Mas a questo que permanece ainda : so na verdade conceitualizaes mutuamente excludentes?Colocando a questo em outros termos: o poder sobre recursos (fsicos, humanos, finan-ceiros) ou sobre ideologias (crenas, valores e atitudes) o que empodera, ou o poder para oude dentro, como habilidade, capacidade de ser ou de se expressar por si mesmo que conduz aoacesso e controle de meios necessrios existncia? Ou seja, o controle e poder sobre recursosexternos ou o processo de transformao interna que leva ao empoderamento das pessoasvivendo na pobreza?

    Parece-nos que as perspectivas, antes que excludentes, se reforam mutuamente e estointrinsecamente vinculadas (Gita Sen). O controle sobre recursos externos pode possibilitar aexpresso (self-expression) e a ao das pessoas vivendo na pobreza, por outro lado, maior auto-estima e autoconfiana (transformao interna) podem levar a vencer as barreiras externas noacesso aos recursos. No h garantia de que um processo leve inevitavelmente ao outro, masexistem numerosos exemplos, em diferentes partes do mundo, que apresentam resultados emambas as direes. Qualquer que seja o processo, um verdadeiro processo de empoderamentodeve envolver os dois elementos, uma vez que dificilmente um ser sustentvel sem o outro.

    Resgatando ambas as dimenses, empoderamento das pessoas vivendo na pobreza umprocesso de obter acesso e controle sobre si e sobre os meios necessrios para a sua existncia.Assim sendo, o empoderamento raramente um processo neutro. Precisamente porque asituao de pobreza e dominao vivenciada por milhes de pessoas tem base no poder depoucos sobre recursos e sobre as possibilidades de existncia social de outros. O empoderamentodeve implicar uma mudana nas relaes de poder em favor das pessoas vivendo na pobreza.

  • ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE ESTRATGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS

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    Essa discusso se vincula questo j anteriormente mencionada: o empoderamen-to um jogo de soma zero?

    No h uma resposta unvoca a esta pergunta, a resposta depender do contexto em que oprocesso de empoderamento acontea, de quem faa a pergunta (ou d a resposta) e da escala detempo referido. Analisemos, por exemplo, o empoderamento que resulta de um processo dereforma agrria. O acesso terra por grupos sem-terra pode produzir ganhadores e perdedores,dependendo de quem ganha e de quem perde terra. Mas se o detentor da terra teve um preojusto (segundo o mercado), seria possvel considerar que os dois lados ganharam. Mas tambma redistribuio da terra pode levar, por exemplo, a aumentos na produtividade e na oferta deprodutos agrcolas ou ainda ao aumento de divisas de um pas e melhoria da economia local.Neste nvel, pode-se considerar que houve um benefcio para o governo, independente do ganho(ou perda) poltico que um processo de reforma agrria possa significar.

    A sociedade como um todo tambm pode vir a ser beneficiada com o aumento na produoagrcola e pela melhora nos nveis de segurana alimentar. Como vemos, uma perspectiva pode ou no ser compartilhada pelos diferentes atores do processo. Todavia, ao longo do tempo apercepo sobre essas transformaes pode mudar. Se os beneficiados com acesso terra noconseguem se manter no processo produtivo, a percepo pode mudar e o grupo passar a seconsiderar prejudicado pelo processo num segundo momento.

    Parece-nos que a perspectiva de anlise baseada em soma zero pouco contribui para entendera complexidade que envolve o processo social de empoderamento de grupos sociais.

    Podemos fazer uma anlise similar quando o que est em jogo o empoderamento interno auto-estima e capacidades. O processo de empoderamento aqui no significa inicialmenteperda para outros, embora possa, em seu final, produzir perdas para algum. Contudo, impor-tante perceber que a perda de poder nestes casos no necessariamente prejudicial para quemperde. Existem inmeros exemplos onde a mudana nas relaes de gnero traz benefcios paraos homens tambm. Por exemplo, quando uma mulher consegue estabelecer uma relaobaseada no mtuo respeito e com responsabilidades compartilhadas, as melhoras atingem tantoa mulher quanto o homem. O marido perdeu o poder de impor sua vontade unilateralmente asua mulher, mas aquele poder o tornava menos humano e diminua suas prprias capacidadescomo resultado da sua relao violenta com sua mulher. Nesta mudana houve um ganho paraambos os lados.

    Empoderamento de pessoas ou de grupos?

    O empoderamento um processo de grupos ou de indivduos? Esta outra questo a sercontemplada nas estratgias de empoderamento.

    Durante um perodo de tempo, muita nfase foi dada ao grupo, ficando a importncia doindivduo secundarizada ou mesmo esquecida. Como ocorreu em outros processos polticos quebuscaram a superao de desigualdades sociais, o indivduo foi visto como a negao dos interessese atividades de grupos sociais. Muitos exemplos existentes sobre empoderamento de grupos, emmuitos pases, tm-se mostrado efetivos e tm sido fundamentais para romper isolamentos emudar a correlao de foras em favor dos excludos. Contudo, as anlises tambm mostram queo empoderamento deve levar a processos de mudana a nvel individual, no apenas em termosde controle de recursos, mas tambm em termos de uma maior autonomia e autoridade sobre asdecises que tm influncia sobre a prpria vida.

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    A efetividade de estratgias de empoderamento para o combate pobreza depende do grauem que estas duas dimenses se articulem na apreenso das causas que originam a pobreza dogrupo e do indivduo. Assim, processo de empoderamento deve responder a estes dois nveis, oindividual e o coletivo.

    importante, contudo, salientar que qualquer processo efetivo de combate pobreza e excluso social que tenha como estratgia o empoderamento deve ser capaz de enfrentar ascausas que do origem pobreza e excluso nos grupos sociais.

    A face da pobreza grupal, ela afeta mulheres, favelados, sem-terra, grupos tnicos etc.Cada grupo excludo ou pobre por motivos diferentes, embora esses motivos muitas vezes sejustaponham. Os membros desempoderados de cada grupo tendem a estar na parte de baixo dosmercados, ou excludos, ou inteiramente marginalizados do processo econmico e social. A pobrezade grupos sociais tem freqentemente histrias longas, onde fatores econmicos, sociais e culturaisinteragem, perpetuando a experincia de excluso e de pobreza.

    Uma estratgia de combate pobreza que privilegia o empoderamento pode ser capaz deenfrentar a natureza multidimensional da pobreza melhor que outras estratgias pelo fato decolocar as pessoas vivendo na pobreza no centro da questo. Ela unifica os elementos quecompem a situao das pessoas vivendo na pobreza ao mesmo tempo em que resgata a dimensotica do poder para um mundo sustentvel em todos os sentidos.

    O empoderamento uma perspectiva que coloca as pessoas no centro do processo dedesenvolvimento. Pode parecer simples esta afirmao, mas ela muda radicalmente a perspectiva e aestrutura na qual o desenvolvimento costuma ser pensado. Apesar de ser uma questo em disputa,hoje prevalece uma compreenso que equaciona desenvolvimento como crescimento econmico e por este caminho se construram anlises, abordagens, polticas e programas. Recolocar aspessoas e os grupos vivendo na pobreza ou excludos no centro do processo de desenvolvimentosignifica colocar as instituies econmicas (mercados) e polticas a servio destes grupos.

    Quem pode empoderar quem?

    Uma outra questo importante na elaborao de estratgias sobre empoderamento : quemempodera quem?

    A afirmao de que o empoderamento no pode ser feito em nome das pessoas que necessi-tam ser empoderadas um pressuposto de qualquer processo de empoderamento. Isto, no entanto,no significa dizer que as pessoas vivendo na pobreza devem sozinhas enfrentar este desafio.Atores ou agentes, em geral, so necessrios em processos de empoderamento, intervindo comocatalisadores destes processos. Uma tentativa de classificao pode identificar dois tipos de atores:

    Agentes externos (como ONGs, agncias de desenvolvimento, governos) podem contribuir nacriao de um meio ambiente favorvel ao empoderamento, ou bem agir como uma barreira.

    O empoderamento pode ocorrer dentro do grupo, atravs de organizaes de base, comoso os movimentos sociais, onde o agente pode ser uma liderana interna ao grupo.

    Uma vez que a natureza e o papel do agente catalizador tm conseqncias sobre o processode empoderamento, interessante pensar tambm outra tipologia segundo o ator social prota-gonista da interveno. Gita Sen prope a seguinte tipologia:

    a. Empoderamento por ONGsb. Empoderamento por movimentos sociais

  • ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE ESTRATGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS

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    c. Empoderamento por ONGs e governosd. Empoderamento por multilaterais

    Empoderamento por ONGs

    As experincias onde as ONGs tm um papel catalisador tm sido as mais inovadoras, flexveise onde o mtodo de interveno e o contedo so os mais adequados aos indivduos, grupos ecomunidades. A razo deste sucesso reside, com poucas excees, no fato de que estas expe-rincias comeam pequenas, permanecem pequenas e prximas do grupo.

    Em geral, nesta combinao ONGs/grupos, geram-se interessantes comunidades e novosexperimentos de interveno, seja em termos metodolgicos, em termos de prestao de servioou de organizao comunitria. Por outro lado, se identificam algumas dificuldades nestasexperincias com relao a sua replicabilidade em outros contextos e/ou sua expanso. Elas tm atendncia de serem fechadas em si, por diversas razes: limitao de recursos humanos e finan-ceiros (limitao de profissionais qualificados, de lideranas do grupo), falta de capacidadesespecficas para os trabalhos de advocacy e lobby, infra-estrutura deficiente, defasagem de infor-maes maiores e at princpios ou posicionamentos polticos.

    Este tipo de experincia tem apresentado algumas fraquezas no que diz respeito a sua capa-cidade de alterar duradouramente as condies de vida dos grupos/comunidades envolvidos, deampliar sua base de interveno ou de ser um modelo replicvel em outros contextos. Anlisesapontam que estas fragilidades muitas vezes resultam do fechamento em si que marcam estasexperincias, sua dificuldade de se relacionar com o governo e polticos. Em geral, dado o contex-to adverso (especialmente o contexto poltico) que circunda estas experincias, a ONG e/ou grupobuscam manter sua autonomia a todo custo. E nas interaes necessrias para melhorar a situa-o do grupo (com o governo, as agncias de desenvolvimento e polticos), a ONG e/ou gruporesistem, pois sabem que sero desafiados a negociar.

    Empoderamento por movimentos sociais

    O empoderamento que ocorre dentro do grupo, atravs de organizaes de base ou movi-mentos sociais, onde o agente interno ao grupo, no vivencia este problema de fechamento em si.Ao contrrio, a relao com agentes externos como o governo ainda que possa ser conflitiva uma de suas metas, uma vez que estes so vistos como responsveis pelo status quo e comocapazes de alterar a situao de pobreza em que vive o grupo. Quando obtm sucesso, estesgrupos ou movimentos sociais tendem a se estender e a se ampliar.

    Uma de suas fortalezas que eles tm clareza dos pontos, das questes que realmenteimportam e interessam ao grupo. Vo direto ao centro das questes que perpetuam sua situaode pobreza e de falta de poder e trabalham para mudar e transformar a situao.

    Uma das fraquezas que se verifica nestas experincias que o grupo, nesta atitude decontestao, de demanda por mudanas estruturais, aumenta sua vulnerabilidade violncia deseus oponentes, dos detentores do poder e dos recursos. Violncia da qual o grupo raramentetem condies de se proteger e que recai especialmente sobre suas lideranas ou sobre osmembros mais fracos e menos empoderados do prprio grupo. No Brasil so muitos os exemplos.Eles vo desde os freqentes assassinatos de lideranas de trabalhadores que lutam pela posse daterra e pela reforma agrria at os assalariados da zona canavieira do Nordeste (que quando

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    reclamam salrios atrasados ou a correta medio da cana cortada sofrem ameaas e at morte),passando pelas lideranas urbanas de favelas, que acabam constantemente ameaadas pelapolcia e por grupos de traficantes.

    Empoderamento por ONGs e governos

    Processos de empoderamento que combinam a ao de ONGs e governo tm mostradoresultados interessantes em muitos casos. Este tipo de empoderamento resolve o problema deescala da interveno, de impacto e tambm a questo da replicabilidade. Tambm apresentacomo fortaleza o aumento da proteo do grupo, diminuindo a incidncia de violncia por partede oligarquias e seus interesses.

    Mas na fortaleza deste tipo de experincia tambm reside sua maior fraqueza. Esta interaoentre ONGs, comunidades e Estado se d sob constante presso por uma adaptao aos mtodose agenda do governo. E o perigo de cooptao ou de sucumbir s presses polticas e burocr-ticas do governo est permanentemente presente tensionando as relaes, podendo gerar desen-tendimento ou diviso entre ONG e grupo de base.

    Empoderamento por multilaterais

    O empoderamento proposto por agncias multilaterais tem tambm pontos fortes e fracos.O reconhecimento de que o empoderamento um elemento chave para romper o ciclo da pobrezaabre possibilidades para o desenho de polticas mais adequadas de combate pobreza, comotambm espaos de participao na elaborao e implantao dessas polticas que podem favoreceros grupos vivendo na pobreza.

    As fragilidades, no entanto, ainda so muitas para que o discurso e as intenes de mudanaexistentes em documentos de organismos como o Banco Mundial possam alterar a presenterealidade de excluso e de aumento da pobreza.

    O empoderamento ganha uma perspectiva funcional que pouco contribui para a agency daspessoas/comunidades vivendo situaes de pobreza. O reconhecimento da necessidade de empo-deramento dos pobres ganha sentido em um contexto marcado pela busca de eficincia deprogramas e projetos (o que no razo para desmerecer a proposta, pois eficincia em programasde combate pobreza deveria ser a norma e no exceo). Todavia, uma perspectiva instrumentalde empoderamento dificilmente implicar o desenho de polticas e instrumentos que sejam capazesde empoderar os grupos em uma perspectiva sustentvel, que considerem os constrangimentosexistentes em nveis local, nacional e global que reforam a situao de desempoderamento dosgrupos vivendo em extrema pobreza.

    Uma perspectiva instrumental de empoderamento afasta a possibilidade de alteraes polticassubstantivas em favor dos pobres, ficando muitas vezes o empoderamento circunscrito aos programase projetos de combate pobreza ou, quando muito, a alguma interveno pontual no cenrionacional. Contudo, no mbito poltico e das polticas macro (nacionais e internacionais), as regras quegeram e perpetuam os mecanismos de excluso social continuam fora do alcance destes grupos.

    A tipologia acima descrita pode ajudar a entender o papel e a contribuio potencial deagentes externos enquanto catalisadores de processos de empoderamento. Em ltima instncia importante ter presente que o empoderamento algo que no pode ser feito em nome daquelesque devem ser empoderados. Processo de empoderamento precisa ter no centro as pessoas egrupos desempoderados, suas vises, aspiraes e prioridades.

  • ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE ESTRATGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS

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    Os agentes externos podem contribuir de maneira fundamental para dar corpo a este processo,tornando acessveis instituies e nveis de deciso poltica que na maioria dos casos esto inacessveisa estes grupos, compartindo informaes qualificadas, construindo alianas, apoiando a inter-veno destes grupos, facilitando a sua presena em fruns e redes, contribuindo para a construoda identidade e da representao poltica destes grupos e construindo uma viso compartilhadasobre o desenvolvimento. Alm destas possibilidades e oportunidades de ao, o agente externotem particular responsabilidade de construir uma relao e uma forma respeitosa de trabalharcom os grupos vivendo na pobreza. Abandonar o top-down approach, as solues pensadaspelos experts conhecedores dos problemas sociais mundiais e se acercar realidade do contextolocal conhecendo os mecanismos locais de perpetuao da pobreza e da excluso e vinculando-oscom os mecanismos em nvel macro so exigncias para um efetivo trabalho de empoderamento.Algumas ONGs esto em excelente posio para liderar este processo.

    3. Empoderamento como estratgiade combate pobreza

    Como j foi afirmado, as pessoas empoderam-se a si mesmas. Entretanto, governos, ONGs eoutros atores sociais podem desempenhar um papel vital tanto em bloquear estes processosquanto em criar um ambiente onde polticas, recursos financeiros e humanos, informao, conheci-mento, acesso a instituies e apoio para mudar a cultura institucional de atores importantes docampo do desenvolvimento possam impulsion-los.

    No campo das polticas

    Em contexto onde existe democracia, um procedimento que contribui na criao de ambientefavorvel a mudana ou aprovao de novas leis que apiem as iniciativas dos excludos epobres. Estas leis podem cobrir um amplo espectro de questes, como discriminao, mudanana legislao civil sobre herana, sobre proteo de reas comunais de acesso a recursos e sobrepopulaes indgenas, ou ainda a introduo de normas que facilitem o acesso a crdito embancos pblicos, por exemplo. Nenhum destes mecanismos por si s constitui uma garantia deempoderamento, mas a existncia deles sem dvida remove barreiras o que pode contribuirpara que o grupo e as pessoas desempoderadas tenham acesso a recursos e possam desenvolversuas capacidades.

    Mas as leis por si s, e freqentemente, no so suficientes, porque em todos os pases doSul so pobremente implementadas. Outros passos mais ativos precisam ser dados. importantea promoo e implementao de processos participativos na gesto das polticas. Os governos devemassegurar canais para que os grupos e pessoas vivendo na pobreza possam fazer parte de instnciasde definio, implantao e monitoramento de polticas mais gerais (como oramento participativo,conselhos de polticas sociais, segurana alimentar, previdncia, conselhos de sade, educao) etambm dentro de programas de combate pobreza e excluso (mas no somente nestesespaos). A participao um elemento constitutivo das estratgias de empoderamento. 4

    4 Analisaremos logo em seguida as limitaes e dificuldades da participao.

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    A descentralizao de governos centrais pode pavimentar o caminho para uma maior parti-cipao de grupos sociais no nvel local e, nesse sentido, atender melhor s necessidades dosexcludos. Mas o processo de descentralizao pode tambm ser feito sem o empoderamento dosexcludos. Isto particularmente verdade em lugares onde existem oligarquias ou famlias comforte controle do poder local. Nestes casos, o processo de descentralizao pode desempoderarainda mais os excludos.

    importante analisar cuidadosamente a relao existente entre empoderamento e descen-tralizao. Descentralizao um meio que serve a vrias finalidades. Embora possam estar rela-cionados, empoderamento e descentralizao no so sinnimos. A contribuio que um processode descentralizao pode fazer ao empoderamento de grupos e pessoas depende do contexto,das questes envolvidas (etnia, gnero, rel igio) na manuteno de processos dedesempoderamento e de excluso.

    No campo da informao

    Uma outra poltica em direo a remover barreiras e a viabilizar processos de empoderamento promover o acesso informao para as pessoas vivendo na pobreza. Informao freqente-mente um dos recursos mais guardados e controlados em programas de desenvolvimento.Como de conhecimento geral, o controle de informao ou a falta de transparncia o meca-nismo mais usado pela corrupo. Ter controle sobre informaes um elemento fundamentalpara o empoderamento. Com informaes as pessoas, os grupos, tm uma oportunidade de sairda condio de beneficirio para ser um agente ativo do processo.

    O controle sobre o conhecimento e a informao pode levar mudana nas relaes de podere, portanto, estratgias de gerao de conhecimentos e difuso de informaes sobre os nveislocais, regionais e globais so fundamentais como mecanismos de empoderamento. Entretanto,conhecimento no como uma laranja a ser colhida de uma rvore. Pelo contrrio: um elementoembebido no contexto social e ligado s diferentes posies de poder. Metodologias de participaoque tm como objetivo o empoderamento no devem assumir que os pobres e excludos possuama priori conhecimentos e capacidades analticas de interpretao e anlise da informao, inde-pendente do grau de educao ou capacitao, ou do lugar que ocupam na estrutura social local.Se bem que estas capacidades so fortalecidas pelo mtodo participativo, a promoo de capaci-dades analticas e de planejamento um elemento fundamental dentro deste processo.

    Governos, agncias multilaterais e ONGs, ao mesmo tempo em que podem disponibilizar eviabilizar o acesso livre informao de variadas naturezas (sobre programas, gerenciamento,direitos, economia etc.) que tm impacto sobre a pobreza, tem tambm como tarefa fundamentalinvestir na construo de capacidades em nvel local.

    No campo da cultura institucional

    O que tem permanecido como uma barreira para o empoderamento de grupos e pessoas aprevalncia de vises autoritrias, polticas feitas de cima para baixo, de pouca ou nenhumaprestao de contas, de posturas arrogantes, arbitrrias ou assistencialistas, por parte dos governos,de organizaes privadas e tambm de alguns atores do campo do desenvolvimento. Esta talvezseja a mudana mais difcil de se realizar mudana nas instituies e na cultura institucionaldestes atores. A cultura institucional dos grandes atores do desenvolvimento tem hoje um impactobrutal, e em geral negativo, nos processos de empoderamento dos grupos.

  • ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE ESTRATGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS

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    Apesar de haver movimentos que integram prticas participativas e burocracias governa-mentais, a maioria dos funcionrios do governo tem pouco entendimento e simpatia pelas tcnicasparticipativas e ainda tendem a no acreditar na capacidade das pessoas que vivem na pobreza depensar e propor polticas de desenvolvimento. A participao dos mais pobres freqentementeneutralizada pelos funcionrios do governo que operam em um contexto que desvaloriza as opiniese contribuies, particularmente das mulheres, em assuntos pblicos.

    Tomando como foco o governo, muito ainda h para fazer. As mudanas nesta rea devemser precedidas de anlises cuidadosas para se identificar onde esto os gargalos e ns procedendo amudanas estratgicas ao invs de medidas confrontativas com o corpo funcional como um todo.A reorientao atravs de treinamento e introduo de novos protocolos para os funcionriospodem tambm se mostrar efetivas. O apoio de agentes externos se mostra fundamental para queestas mudanas ocorram. Em nvel local este aspecto ainda mais crucial. As ONGs que trabalham emparceria com governos devem desenvolver atividades e estratgias direcionadas a mudar a culturainstitucional dos rgos governamentais, visando a mudanas nas atitudes e prticas dos servidorespblicos Um exemplo que tem tido sucesso no Brasil a implantao do Programa de Proteo aTestemunhas, que deixa atividades de treinamento para policiais, entre outras aes, a cargo deONGs de direitos humanos. Este trabalho tem sido capaz de criar uma nova cultura dentro desetores da polcia.

    No campo da construo de capacidades: participao

    O tema da participao tem ganhado destacada relevncia como mecanismo de empodera-mento. Quase todas as instituies de estudo, pesquisa e apoio voltadas para a cooperao aodesenvolvimento tm produzido muitas anlises sobre processos participativos.5 Grande partedestas anlises compe-se de pesquisas de campo que relacionam os temas participao, cidadania,poder e polticas de combate pobreza. A abundncia de material nos levou a dedicar algumaslinhas a este tema.

    A crtica performance da cooperao oficial e de seus programas motivou o surgimento demetodologias que rejeitavam as prticas de cima pra baixo. Muitos esforos foram consagrados abuscar caminhos alternativos que respeitassem o conhecimento e as experincias locais das pessoasque vivem na pobreza em sua luta pela cidadania. Estas metodologias introduziram prticasparticipativas que buscavam resgatar a centralidade dos grupos e das pessoas no processo dedefinir prioridades, encontrar solues para os problemas e serem sujeitos de programas, projetose polticas visando ao empoderamento das organizaes de base e das comunidades.

    As metodologias participativas desenvolvidas por estudiosos como Freire, no Brasil, e Chambers,na Inglaterra, tornaram-se a bblia de ativistas e profissionais engajados em processos de desenvol-vimento participativo e em desenvolverem estratgias de empoderamento em nvel local.

    Algum tempo foi preciso at que participao se tornasse uma das palavras-chave para todos osatores do campo do desenvolvimento, inclusive instituies como o Banco Mundial, agnciasoficiais de cooperao e governos.

    Hoje o processo de empoderamento visto como estreitamente relacionado ao de participao.Experincias em diversas partes do mundo tm mostrado que processos de participao possibilitam

    5 A participao aparece como um tema prioritrio de pesquisa em instituies como IDS, University of Sussex , Centre forDevelopment Studies, SWANSEA, University of Wales e Intrac.

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    processos de empoderamento e que estas metodologias favorecem o estabelecimento de polticase prticas de desenvolvimento que contemplam as necessidades das pessoas vivendo na pobreza.

    As metodologias participativas, como o PRA e suas variantes, que emergem nos anos 1980,so ainda hoje atuais. Tm o mrito, entre outros, de mudar o lcus do conhecimento, deslocando-odas instituies (do Estado, por exemplo) para as pessoas e organizaes de base do local; deencorajar o desenvolvimento das capacidades do grupo local; de analisar sua situao; e de identificarproblemas e solues.

    As metodologias participativas so desenhadas para trazer os menos privilegiados para dentrodo processo de desenvolvimento. A incluso assistida por comunicao verbal e visual o pilarque Chambers considera vital para o empoderamento das pessoas e que pode provocar umamudana fundamental em suas vidas. Chambers, e outros, esto conscientes de que no se tratade um processo simples. Contudo, crem que os impedimentos e os obstculos existentes noprocesso podem ser ultrapassados pelos participantes com a ajuda de facilitador/as.

    A nfase no local tem sido objeto de muitas anlises que apontam que ela precisa ser comple-mentada com uma anlise das estruturas de poder, dos discursos e das prticas em nvel nacional eglobal. Esta vinculao entre o micro e o macro tem-se mostrado muito necessria e um dos elemen-tos diferenciais (value added) que uma ONG internacional (ou agncia de cooperao) pode aportar aprocessos de empoderamento de grupos, movimentos sociais e comunidades desempoderados.

    Constrangimentos de ordem poltica ou econmica, como programas de ajustes estruturais,tambm impedem mudanas apesar da participao. Aqui o apoio no desenvolvimento de estra-tgias que faam o vnculo entre questes macro e micro tambm importante. O estabelecimentode alianas e redes NorteSul e a formao de redes globais so estratgias que tiram o processode empoderamento da sua condio de processo localizado. Este mais um importante espaoonde as ONGs internacionais podem desempenhar um papel de grande relevncia.

    As metodologias participativas que visam ao empoderamento de grupos no devem subestimara complexidade e a tenacidade das estruturas do poder local. preciso estar atento multidimen-sionalidade de fatores que produzem e reproduzem a excluso e a pobreza. Discursos muitas vezesdemocrticos e de participao podem esconder as estruturas de poder local, tornando difcil atarefa de estabelecer o empoderamento dos mais fragilizados dentro de grupos (mulheres, negros,ndios etc.). A interveno de ONGs tambm importante para dar maior visibilidade a estesgrupos mais vulnerveis e aumentar sua proteo contra a violncia do Estado ou de oligarquias.

    Agentes externos como as ONGs internacionais podem contribuir em trabalhos de persuasoe discusso, bem como apoiar as aes de mobilizao social dos grupos locais em nvel local,nacional e internacional. A formao de alianas tanto interna (com instncias nacionais do governo,por exemplo) quanto externa (com outros grupos sociais locais ou internacionais com maiorcapacidade de influenciar o poder local) um aspecto fundamental.

    J mencionamos tambm a necessidade de investir na construo de capacidades que soimportantes para possibilitar uma participao completa em todas as fases de desenvolvimentodas polticas, programas e projetos. O apoio construo de representao poltica de gruposvivendo na pobreza tambm fundamental para que a participao se d dentro de um marcocivil e poltico e no se reduza administrao de problemas da pobreza.

    importante evitar que os processos participativos sejam superficiais, feitos para satisfazerexigncias de doadores e se reduzindo, na prtica, a processos meramente consultivos. Muitos tmsido os casos (Uganda, Nigria e Casaquisto, por exemplo) onde a elaborao dos PRCR temresultado em consultas e no em participao.

  • ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE ESTRATGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS

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    Este elenco de questes aqui apresentado tem sido debatido por muitos pesquisadores epractitioners que buscam tanto entender melhor estes processos quanto aperfeioar as metodo-logias participativas. Aprofundar a anlise sobre poder parece ser um caminho. Para algunsestudiosos, no marco atual das metodologias participativas, fcil entender por que hoje elas,as abordagens participativas, so to amplamente aceitveis para to variadas, diferentes econflitantes organizaes