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Entenda melhor a linguagem (Escrita e Fala) A criatividade no uso da palavra e os aspectos mais sutis do texto – 2ª edição, revista e ampliada – São Paulo Edição do Autor 2013 Mauro Cardin

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Entenda melhora linguagem

(Escrita e Fala)

A criatividade no uso da palavrae os aspectos mais sutis do texto

– 2ª edição, revista e ampliada –

São PauloEdição do Autor

2013

Mauro Cardin

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2013

O conteúdo desta obra é de responsabilidadedo autor, proprietário do direito autoral.

Edição do Autor

Impressão e encadernação: Portal PerSe(www.perse.com.br)

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SUMÁRIO

Apresentação ........................................................................ 7Criatividade x Lugar-comum ............................................... 9

Velho de roupa nova ............................................................. 10Grandes e pequenas surpresas .............................................. 10Estranhamento ...................................................................... 11Demônios de linguagem ........................................................ 12As ruínas do texto ................................................................ 13Humor de frase-feita ............................................................ 14Da imperfeição ..................................................................... 14A “imperfeição” no texto ...................................................... 15Pequenos delitos ................................................................... 16A técnica do absurdo ............................................................ 17Redação escolar ................................................................... 17Brincando com o estereótipo ................................................. 18Das contradições .................................................................. 19Semelhanças e diferenças ..................................................... 20Das limitações do computador ............................................... 21Discurso coletivo ................................................................... 22O susto pela troca de sentido ............................................... 23Palavras mortas .................................................................... 24Trapaças da lingua ................................................................ 24

A construção do texto ......................................................... 27Imagem sem rosto ................................................................ 28Dois em um .......................................................................... 28Vocabulário e elegância ......................................................... 29Elegância: o decoro no trato com as palavras ........................ 30Sinônimos perfeitos? .............................................................. 31

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O que você pensa de...? ....................................................... 33Apelando para o mais fácil ................................................... 34O texto caótico ................................................................... 35O vazio da autoajuda ............................................................ 35Aulas de redação .................................................................. 36A redação moralista .............................................................. 37Dados demais ....................................................................... 38Longo caminho ..................................................................... 39Idas e voltas ......................................................................... 40Palavras inexpressivas ........................................................... 41Disciplina .............................................................................. 42Um só assunto ...................................................................... 43Fugindo das sobras ........................................................... 44Estranha forma de não dizer nada ........................................ 44Simplicidade .......................................................................... 45O estilo Voltaire: simples e espirituoso ................................... 47Naturalidade .......................................................................... 48“Escrever bem” .................................................................... 50O desafio pela atenção do leitor ........................................... 50Truques mínimos ................................................................... 52

Fala e Escrita: dois mundos diferentes .............................. 53Caprichos da escrita ............................................................. 54Isto não é um cachimbo ....................................................... 54Fala x Escrita ....................................................................... 55Escrita x Realidade ............................................................... 56A presença do autor na escrita ............................................. 57Quase-adivinhação ................................................................ 59O esquecimento na leitura ..................................................... 60A razão gráfica ..................................................................... 61Conversação ......................................................................... 62Ânsia de dizer ...................................................................... 63O poder sobre a própria língua ............................................. 64A linguagem do silêncio ........................................................ 66Diálogo: a curiosa ajuda do outro........................................... 67

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Argumentação ..................................................................... 69Argumentação x Vontade ...................................................... 70Artigos de opinião ................................................................. 70O discurso do “mundo melhor” ............................................. 72Exibicionismo autoral ............................................................. 73

Particularidades & Sutilezas ................................................ 75O orador como refém das palavras ....................................... 75O julgamento silencioso ......................................................... 77Perfídia ................................................................................. 78O fascínio pela imagem ........................................................ 79O já-conhecido ...................................................................... 79Preconceito ........................................................................... 81Gramática e Solidão .............................................................. 81Mais além ............................................................................. 82O princípio de relevância ...................................................... 83O idioma das maneiras ......................................................... 84O outro sentido ..................................................................... 85Frases de efeito .................................................................... 86Um nome às coisas .............................................................. 87Depois da leitura ................................................................... 88Olhos manchados de tinta ..................................................... 89Homem sem estômago .......................................................... 90Período tenso ........................................................................ 90Equívocos ............................................................................. 91Muito além da gramática ...................................................... 92Menos versátil do que parece ............................................... 93

Considerações finais ............................................................ 95Bibliografia ........................................................................... 98O autor ................................................................................ 102

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APRESENTAÇÃO

As pessoas quase não param para pensar em algo que lhes éextremamente importante, a linguagem; embora se preocupem emnão errar ao escrever ou falar: “quiser é com s ou com z?”, “ocerto é privilégio ou previlégio?”, “fax tem plural?”... Pareceque o medo de errar ao usar o idioma nos ocupa mais do que o de-sejo de ser eficiente no seu uso, de ser hábil ao explorar as suaspotencialidades. Ou seja, viramos as costas para as possibilidadese os encantos de um admirável sistema, e quando nos lembramosdele é para tratá-lo como objeto de temor.

O propósito deste pequeno livro é caminhar no sentido oposto.Muito mais do que um conjunto de regras, a linguagem é um ins-

trumento que nos revela o mundo, nos permite organizá-lo e nosinstituirmos como ser pensante, como animal inteligente, portanto.Ela, como observa Roland Barthes, não é um predicado do indivíduomas o próprio indivíduo: não há como negar a linguagem de umapessoa sem negar a própria pessoa.

É de se imaginar quantos aspectos interessantes e quantas nuan-ces tem um sistema assim, além de regras.

O que você tem nas mãos é, pois, um estudo sobre a linguagem,não do ponto de vista da gramática, mas na perspectiva de suagrandiosidade. Nele, procuramos explicitar as possibilidades da

“A linguagem tem um poder fundador, que instaura umarealidade imaginária, anima as coisas inertes, faz ver o que

ainda não existe, traz de volta o que desapareceu.”

Émile Benveniste

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expressão verbal e as suas fontes de criatividade, as contradiçõese os aspectos mais sutis da produção textual. Procuramos, enfim,iluminar a face mais sedutora de um sistema que nos permite sairde nós mesmos e ir em busca do outro.

O estudo vem expresso em 85 textos, quase todos escritos paraser publicados primeiramente em jornal. E veicular assuntos acadê-micos em meio a notícias, reportagens, anúncios, resumos de novela,revelações de bastidor e notas sociais não deixa de ser um desafioque impõe uma série de cuidados. O principal deles talvez seja o detratar cada tema do modo mais simples e interessante possível.Tentei atingir essas características em cada texto, como tambémprocurei preservá-las no livro.

Por conta desse propósito de capturar leitores apressados talvezalgumas passagens do livro possam parecer mais ousadas (na formade apresentar o conteúdo), mas também aí, nesses esforços paracaptar e prender a atenção do leitor, pode estar um objeto de reflexãosobre nosso tema.

Salvo alguns acréscimos, uns poucos retoques e três ou quatroadaptações de contexto, o que mudou neste ambiente gráfico éque os artigos foram agrupados por temática. Cada um deles corres-ponde a um tópico de capítulo. Por exemplo, o primeiro capítulo,Criatividade x Lugar-comum, é composto de 20 artigos, cada umcontemplando um assunto completo e concluso mas que guardaestreita relação com os demais textos da série. No conjunto, elesconstituem a ideia do autor sobre a temática proposta.

Espero que este livro lhe seja útil e agradável de ler.

O autor

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– Primeiro capítulo –

CRIATIVIDADE x LUGAR-COMUM

Criatividade é transgressão; moderada e de bom gosto(?), massempre violação de um modelo. Quem busca a originalidade temde ousar e, fatalmente, correr o risco do ridículo. Escrever é entãocaminhar sobre o fio da navalha. De um lado, o lugar-comum, aconversa de sempre e o fastio; de outro, o inédito, a surpresa e a se-dução; mas também o constrangimento a se insinuar o tempo todo.

E, já que no texto escrito pode-se trocar as peças infinitas vezes,escrever e reescrever, avaliar e outra vez reescrever, está aí omeio de expressão em que a criatividade pode atingir sua plenitude.Frei Beto diz que talvez tenha sido por isso que o Criador tenhapreferido a literatura para se expressar. “Podia tê-lo feito pela pinturaou pela escultura. Podia ter esperado o cinema, a fotografia, a tele-visão ou a cibernética. Não, escolheu o texto, a Bíblia.”

Com tudo que implica de risco, é exatamente a criatividade oque instiga a escrever. Se ao leitor cabe o direito de julgar, ao autorestá reservado o prazer de ousar. Até nisso se completam essasduas entidades intimamente ligadas pelo pensamento, mas temporale espacialmente distantes.

Um texto tem, afinal, de cumprir sua obrigação de trazer novi-dades, de mostrar a realidade de um novo jeito, de instigar, porqueo banal dá sono. Um leitor sensato não hesita em trocar um escritoque o informe que a pressa é inimiga da perfeição por uma reprisequalquer na TV.

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Velho de roupa novaO primeiro a proclamar que em mulher não se bate nem com

uma flor foi um gênio; hoje, genial será o sujeito que disser a mesmacoisa de um jeito diferente. O chefe de seção que, pela primeiravez, diante de um colega que se aposentava, discursou estar vivendo“um dia alegre, porque fulano finalmente conseguiu o que tantoqueria, e, ao mesmo tempo, triste, porque se perdia um grandecompanheiro”, certamente foi tratado como Cícero, o grande oradorromano. Agora, Cícero será aquele que expuser o mesmo paradoxoem outras palavras.

Reinaldo Polito, professor de oratória, diz que Nei GonçalvesDias, quando paraninfo de uma das turmas de seu curso, deu contor-nos mais expressivos a esse chavão da alegria triste (verdadeirapraga também nas formaturas), tornando-o muito interessante.Vejamos:

“Segundo Nietzsche, a vida apresenta momentos semelhantesao da criança quando está na praia e ri e pula de alegria quando asondas trazem as conchas coloridas para a areia, e chora de tristezaquando as ondas levam as conchas de volta ao mar. Esta formaturatrouxe as conchas coloridas de cada um, dando alegria a todos pelosimbolismo da conquista da comunicação, mas deu também a tris-teza, porque, assim como o mar leva as conchas coloridas, ao finaldo último discurso, levará embora o convívio desta amizade tãobonita...”

O paraninfo talvez tenha exagerado no sentimentalismo, masfez o que tinha de ser feito: vestiu o velho assunto com uma novaroupa. Não é pouco. No texto, ser criativo não é mudar a vida, éapenas variar o modo de descrevê-la.

Grandes e pequenas surpresasO povo xingava Madalena, quando o religioso interfere: “Aquele

que nunca errou, que atire a primeira pedra!” Um português, então,pega um tijolo e atira. Enquanto o sangue escorre pela face dapecadora, o religioso pergunta indignado: “Mas você nunca errou?!”,ao que o lusitano responde: “Dessa distância, não!”

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Como se vê, a graça dessa conhecida anedota se dá pelo “susto”da troca de sentido de errou, de moral para físico. Vejamos agoraum trecho de Carlos Heitor Cony, da Folha de São Paulo:

“Reza a lenda que o primeiro homem recebeu o nome de Adãoporque foi feito de barro e, no idioma que contou a história, adãosignifica ‘feito de barro’. Daí em diante, papas, imperadores,bancários e bandidos, todos merecem ter um nome, às vezes dois,como os papas e os bandidos, como Beira-Mar, Escadinha, TiãoMedonho e outros.”

Percebe-se que, nesse caso, a expressividade está numa malicio-sa e inesperada mistura que vai de santos a criminosos. Agora, maisuma vez, o colunista quebra o esperado do texto, primeiro pela ma-lícia, depois explorando o outro sentido da palavra, e obtém um ex-celente efeito: “Tinha 27 anos e uma motocicleta. Não tinha maisnada nem precisava. Possuía o mundo e todas as pompas do universoporque sentia a moto entre as pernas. Não se preocupava com oBem e o Mal. O único mal seria a moto enguiçar ou a gasolinaacabar.”

No cômico, vimos, a surpresa exagerada provoca o riso; no textocomum, mais discreta, apenas um agradável sobressalto. É isto,para produzir textos criativos, nada como usar o mesmo recursoque faz rir: a surpresa.

EstranhamentoNum artigo na Folha de São Paulo de 27.01.02, Eugênio Bucci

fala de um tema surrado, o aumento do banditismo, em que, portan-to, corre imenso risco de entregar-se ao lugar-comum. Mas não foiisso o que aconteceu. Veja.

“Nesta semana, a realidade exagerou. A República virou um imen-so programa mundo-cão. Parece ter sido engolida por noticiárioscomo o ‘Cidade Alerta’, da Record, ou o ‘Brasil Urgente’, da Ban-deirantes. A sensação é de que os criminosos escaparam, não maisdas penitenciárias, mas dos telejornais policialescos. Escaparamdo vídeo, em massa. Inundaram as cidades, cresceram e se multipli-caram feito sandalinhas da Xuxa. Estão na portaria feito um

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entregador de pizza, estão nas poças d’água como mosquitos dadengue [...] O ato hediondo é agora tão banal quanto um resfriadona família.”

Como se vê, nesse texto, a todo instante surge uma afirmaçãoestranha que, à primeira vista, nem parece ter nexo, mas depois seencaixa. Esse recurso é o que a retórica clássica chama de estranha-mento aristotélico, estratégia que estimula o leitor a “ficar procuran-do” o significado ideal para cada expressão que vai surgindo, porqueesquisita. Tal estranhamento evita que o olhar deslize sobre o textosem tocar os sentidos: quem não se inquieta diante do estranho?

Bucci junta bandidos, sandalinhas da Xuxa, entregadores de pizzae mosquitos da dengue como se fossem uma coisa só. E faz issodireito, porque conseguimos entender bem e de um jeito agradávelque ele está se referindo à banalização da violência.

Mas, sabemos, alinhar elementos estranhos que se harmonizamé virtude de escriba talentoso, que nada tem a ver com escreverdifícil, mero vício narcisista.Demônios de linguagem

A frase feita às vezes é agressiva. Dizer algo do tipo “tudo valea pena se a alma não é pequena” em tom solene, como quem anunciauma novidade, não é elegante. Convenhamos, avaliar que um adultoouça uma frase dessas pela primeira vez é subestimá-lo.

Mas, em geral, o clichê é apenas ingênuo; quando ele surge, areflexão desaparece. Por exemplo, é enorme a ocorrência irrefletidade “nos dias atuais”, “no mundo de hoje” nas redações amadoras:Nos dias atuais, é muito difícil ganhar a vida; como se para nossosantepassados não tenha sido. No mundo de hoje, não há solidarie-dade; como se o ser humano tenha mudado de uma hora paraoutra. Nos dias atuais, a educação é fundamental; como se antesnão fosse.

Esses chavões mostram um tipo específico de imaturidade: afalta de visão histórica, evidenciada pela ingênua ideia de que oapocalipse é sempre hoje. Não seria demais avaliar que essavertente pessimista dos clichês venha do cultivo de um certo auto-compadecimento (sofrimento = salvação eterna).

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É de se notar que, para compensar tal autopiedade (e até paraalimentá-la), há um transbordante discurso baseado no otimismo:você é feliz; querer é poder; você tudo pode... Ou seja, de um la-do, cria-se o monstro; de outro, a espada para combatê-lo. Monstrode palavras, espada de palavras. E cérebro de isopor.

Se os demônios são de linguagem, eles são combatidos pela lin-guagem, diz Roland Barthes, que se pergunta: “E que mais poderiamser?”

As ruínas do textoO Manual de redação de O Globo diz que a pessoa se irrita ao

ler, por exemplo, que “os detentos planejavam uma fuga porque otúnel deles terminava fora dos limites do presídio”. Essa “informa-ção” apenas descarta a hipótese de que os presos cavaram o túnelsó para roubar goiabada da despensa, ironiza o manual.

Não existe mesmo nada mais chato do que o óbvio, o lugar-comum, aquela coisa que todo mundo já está cansado de saber,mas que teima em aparecer nas pregações, nas formaturas, napolítica e... nos artigos como este. Querer é poder, da vida nadase leva, mais vale um pássaro na mão...

Há quem diga que os chavões são frases que já foram extre-mamente eficazes e originais. Faz sentido, mas agora eles são ape-nas cansados senhores que precisam de roupa nova.

O lugar-comum só se justifica, talvez, para rir de si mesmo, comono caso da inscrição clandestina “Jovem, o futuro do Brasil estáem suas mãos!” que, há algum tempo, vi ao lado do vaso suspensode um banheiro masculino, em Pompeia [interior de São Paulo].Esse travesso manuscrito, no seu jogo com o contexto, nos ajuda aentender que não há lugar em que a espirituosidade não caiba (e arir um pouco).

Nesse sentido, o bom produtor de texto se assemelha àquele ir-reverente aluno que vem todo dia à aula de mãos vazias e umatosca brochura enrolada no bolso, que não anota a matéria nem fazas lições, mas para o qual se dirige o cobiçoso olhar das garotasmais interessantes da classe.

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Humor de frase-feitaTá tudo de esperma pro ar, dizia a Magda, do Sai de Baixo.

Lembra? Embora tivesse cabelos escuros, ela fazia o tipo bonitacabeça-oca: “Eu amo esse restaurante; essa cadeira, por exemplo,eu conheci desde que era um banquinho...”

A graça da personagem se baseava na adulteração de frase-feita: “Em briga de marido e colher não se mete na mulher; Deusescreve esperto por lindas portas”. Era sempre assim.

Magda era dada a tomar atitudes gástricas, comemorar em gran-de esquilo e ter ideias genitais. Interpretada por Marisa Orth, sempresonhou com um homem honesto e trabalhador, para poder casar eprostituir família, mas teve de se contentar com Caco, que nãotinha tais qualidades. Por isso, certa vez, afirmou que só lhe restavaprometer suicídio.

Bem fez Vavá, seu tio, que não se casou; segundo ela, porquenão encontrou uma mulher à sua largura. Para que o marido nãochupasse o pau da barraca, ela sempre o mimava, mas, se preci-sasse, não tinha dúvidas: “Caco, você não está batendo muito bemdos testículos!” Bondosa, dizia que todos os animais são seresromanos e ajudava a esfriar os ânimos em casa: “Tio, o senhoranda cheirando proteína?” Magda era romântica, afirmava que oamor é uma flor roxa que nasce no meio da coxa; só fazia o que lheordenhavam e cuidava bem da mãe: “Mami, não mexe nisso, senãofica a marca da sua depressão genital.”

Está aí, depois que se pega o jeito, escrever para humor é fácil:é repetir o truque à vontade (nesse caso, a paródia de chavões). Ocômico pede repetição de estratégia, ensina Henri Bergson.

Da imperfeiçãoAos poucos, os meios de se fazer as coisas não precisam mais

ser controlados um a um: nossos gestos do dia-a-dia se automatizam,os pensamentos se repetem, nossos atos cotidianos, bem programa-dos, perdem o sentido. O espírito se degrada para acabar emsequências de brincadeiras gastas; o amor murcha, vira indiferença,e se converte em cenas domésticas. A nostalgia e a espera passam

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a alimentar nosso imaginário e a substituir a vida: a saudade (opassado) e a esperança (o futuro) prevalecem sobre o presenteautomatizado.

A quebra de rotina é então o que rompe essa anestesia e recuperao sentido das coisas. Ela é a fratura no banal, nossa penúria essen-cial: a imperfeição que faz renascer a esperança de sentir a vida. Acontinuidade é insensível, já a irregularidade, a surpresa, o assombro,são a própria sensibilidade. De um lado, a rotina, uniforme e apática;de outro, alguns raros, efêmeros e bem-aventurados momentos forado comum. São essas pequenas escapatórias que permitem à beleza,inteira ou em migalhas, descer à humildade de cada dia e dar sentidoà pequenez cotidiana.

O que vimos é um magro resumo do livro Da imperfeição, deA. J. Greimas. Está bem, a quebra da rotina (pecadinhos, escapadas,pequenos atrapalhos: a imperfeição!) é fonte de sentido, estremeci-mento e prazer, mas o que provoca semelhante efeito na escrita ena fala?... Esse é o nosso próximo assunto. Por ora, fiquemos apenascom um prosaico exemplo sobre a relação imperfeição/sensibilidade:se você tem um cão, encha a tigelinha dele de biscoitos, mas deixecair um fora, e observe que biscoito ele come primeiro.A “imperfeição” no texto

Quando um autor quebra o esperado do texto (muda aquilo queseria normal vir a seguir), ele provoca uma espécie de irregularidade,para sobressaltar os sentidos do leitor.

Ou seja, quando Barão de Itararé dizia discordar de AugustoComte que os vivos são sempre e cada vez mais governados pelosmortos, porque, na verdade, “os vivos são sempre e cada vez maisgovernados pelos mais vivos”, Itararé estava se valendo de maisvivos num sentido imperfeito para produzir a surpresa que faziafeliz o leitor, e a ele nosso mais famoso humorista dos anos 1940 e1950. O mesmo se deu quando, depois de ter sido espancado poroficiais da marinha numa invasão ao Jornal do Povo, ele afixou naporta de entrada do jornal uma placa com os dizeres “Entre sembater.”

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O sentido figurado (que, por ser irregular, fica por último nosverbetes do dicionário), as ranhuras da madeira que dão dignidadeaos móveis finos, a textura irregular que se usa para dar elegânciaàs imagens, são imperfeições, assim como os olhos ligeiramentevesgos dessa ou daquela atriz da Globo e a combinação de temposfracos e fortes, que produz rupturas na música, são desvios que es-timulam os sentidos.

Baudelaire diz que aquilo que não é ligeiramente disforme é insen-sível e que a irregularidade é parte característica da beleza, dasensibilidade — talvez porque revele a nossa humanidade, isto é, anossa natureza imperfeita. Mas a imperfeição, assim como a lou-cura, também tem a sua lógica. Artistas de verdade e bons produto-res de texto parecem ser aqueles que conseguem compreenderessa lógica.

Pequenos delitos“Como escreve um jornalista? Numa palavra: depressa.” Se a

frase do Manual de O Globo fosse Como escreve um jornalista?Numa palavra: corretamente, ela seria “perfeita” demais, previsí-vel, igual a rotina, que faz o amor murchar, para se converter emindiferença, como escreveu Greimas.

A literatura também tem ótimos exemplos de ruptura do fluxo dopensamento, como este, do personagem-autor Brás Cubas: “Mar-cela amou-me durante quinze meses e 11 contos de réis; nada me-nos.” A frase de Machado de Assis não só surpreende o leitor, co-mo deixa claro qual era a motivação da moça. Que graça teria seMarcela tivesse amado durante quinze meses e 11 dias?...

Ao nos referirmos a esse tipo de “imperfeição” no texto, estamosfalando de expressões desviantes que quebram o esperado da frasee sobressaltam o leitor. Já em “A velhice é a noite da vida” temosum outro tipo de desvio. A rigor, ninguém aceita que a velhice, defato, seja a noite da vida. Mas nenhum de nós pode deixar de darrazão a Aristóteles e de concordar com a afirmação: a noite, comoa velhice, nos convida ao recolhimento; à noite, como na velhice,ficamos reflexivos, saudosos, melancólicos e mais frágeis. Estamos,

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então, diante de uma metáfora, isto é, de um desvio de significado;ou, se se preferir o romantismo, diante de uma doce mentira.

Escrever (bem) não é não cometer erros de português. É trans-gredir, é praticar pequenos delitos — contra a gramática, a lógica ea rotina. É por isso que vicia.

A técnica do absurdoO conto “A princesa e a ervilha”, de Andersen, em que uma er-

vilha colocada embaixo de vinte colchões e vinte acolchoados pertur-ba o sono da frágil princesa, mostra bem a relação entre a imperfei-ção e os nossos sentidos. “Ai, que noite horrível, não consegui fecharos olhos!”, queixa-se a pobre princesa, toda cheia de marcas roxas,para a fantasia de milhões de leitores nestes 150 anos do conto.

Mas nem só autores infantis usam o absurdo como recurso. Oparágrafo abaixo é um trecho (nada ingênuo) do artigo “Dupla perso-nalidade” de Ninguém consegue deter a primavera, livro do sindica-lista Nivaldo M. Nascimento.

“Lampião, mesmo antes de virar criminoso, já tinha costumescorajosos para sua época: cultivava flores da caatinga e remendavaas roupas dos irmãos; coisas que não deixou de fazer depois, nosmomentos de folga, entre um tiroteio e outro. E como desgraça (oucalúnia) pouca é bobagem, também falam que o rei do cangaçoteve um caso amoroso com seu lugar-tenente, um loiro de olhosazuis, [...], que tinha o apelido de Corisco. E que o chapéu quebradona testa, marca registrada de Lampião, ganhou esse formato detanto o cangaceiro encostar a cabeça nas rochas do sertão, parafacilitar a vida do companheiro.”

Temos aí um disparate, é verdade, mas quem lê o artigo deNascimento inteiro, sempre que vir Lampião em sua indefectívelpose, vai se lembrar do que lhe teria amassado a aba do chapéu. E,quem sabe, da personalidade ambígua dos políticos que com ele osindicalista compara.

Redação escolarNuma prova de redação, que tipo de tema pode ser considerado

fácil ou difícil? Vejamos. Se se pedir para o candidato redigir sobre

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um assunto inusitado, ele pode não ter como preencher as 25 linhas;já frente a um tema frequente, esbarra num outro risco: o de des-pencar no lugar-comum.

No primeiro caso, suponhamos que se peça para escrever sobreas virtudes do político brasileiro. O candidato vai ficar o tempotodo coçando a cabeça e esticando o pescoço para ver a prova dovizinho. No segundo, imaginemos que o tema seja a violência hoje.Aí, o “normal” é que ele não veja problema para deitar palavras nopapel, mesmo porque a redação já está “pronta” na sua cabeça: jánão se pode sair à rua; a sociedade está refém dos bandidos...

Athayde Jr. pesquisou 142 redações de concursos do Paraná econstatou que há trechos que aparecem em quase 80% delas. Aconclusão do pesquisador é de que, na redação escolar, aquele queescreve é apenas uma máquina que reproduz o discurso coletivo,um redator, e não um autor, que de fato produz um texto.

De fato, quando a frase-feita surge, o autor desaparece. Se éassim, na hora de escrever, a primeira questão a resolver é: “Euvou assumir-me como autor, produzir um texto de verdade, ou sórepetir a conversa de sempre?...” E aí está a resposta à perguntado início: para quem quer de fato produzir um texto, não existetema fácil. Escrever para acrescentar algo ao que já se disseenvolve pesquisa, reflexão e tempo. O texto que não nasce dessacombinação é apenas “redação escolar”, e se sujeita ao mesmodestino dela: não ser lido.

Brincando com o estereótipoNa internet circulam textos curiosos. Um deles é o Formulário

para autorização de namoro com minha filha. Nele, o suposto paipede declaração de bens, histórico escolar e árvore genealógica dopretendente, além de questioná-lo se tem tatuagem e piercing, eem que parte do corpo estão.

No tópico que avalia a capacidade de interpretação de textospede que o candidato descreva o que significa chegar tarde e qualo significado de bolinar minha filha. Na parte de preencher lacunas,traz: “Se uma bala o atingir, você detestaria ser atingido no _____”

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e “O lugar da mulher é _____”. Num outro item pergunta qual é aprimeira coisa que o candidato nota numa mulher, mas avisa que,se a resposta começar com P, B ou C, ele deve largar imediatamenteo formulário e sair correndo.

No final, em letras bem miúdas, o pretendente é induzido a assinarum termo em que se declara estúpido, desiste da integridade físicadurante o namoro mais nove meses e admite toda e qualquer culpaque lhe venha a ser imputada, sem direito a teste de DNA.

O criador de tal “formulário”, tal texto na verdade (na internetnunca se sabe direito quem é), supôs que o leitor saiba como geral-mente é o pai de uma mocinha bonita e o que “secretamente” de-seja o rapaz interessado por ela; ou seja, brincou com um estereótipo,um modelo de situação.

Escrever, para fazer rir, emocionar ou convencer, é sempre isso,criar um pretexto e acionar lembranças do leitor; não qualquer uma,só as que interessam ao projeto do texto.

Das contradiçõesPela lógica, ninguém poderia dizer “Você é meu bem e meu mal”,

mas sabemos que pode. O espírito ama o paradoxo, diz Raúl Dorra.Logo veremos por quê.

“O dia inteiro te odeio, te busco e te caço / Mas em meu sonhode noite, te beijo e te abraço.” Esse trecho de música sertaneja mostraa oposição atenuada, ou seja, a antítese. Se no paradoxo temos oimpossível, na antítese ocorre o improvável. Tal frase, no seu jogode diferenças, institui um sujeito diurno, que foge de si mesmo,agride e não admite amar; e um outro noturno, que se aquieta,aceita estar apaixonado e afaga. É a mudança do estado de almaentre o dia e a noite. A antítese diz mais do que parece dizer, daí ocaráter não gratuito do nosso gosto por ela.

O paradoxo não é muito diferente. Ele é, diríamos, um defeito delinguagem: quem diz “você é meu bem e meu mal” está dizendoque, 1) em certos momentos, dá-se uma coisa, e em outros, a outra,isto é, que ocorre bem quando não ocorre mal; ou que, 2) numsentido “você” faz bem, em outro não. Quer dizer, a frase não

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marca o tempo nem o ponto de vista de ser bem e de ser mal. Essejogo, do qual a “imperfeição” linguística é fundadora, instiga ossentidos.

O “impossível” (o paradoxo) e o “improvável” (a antítese) sãotão admiráveis produtores de sentido que constroem a maioria dasfrases de efeito: Falo melhor quando emudeço; Vivo de matar-me;A amizade multiplica nossa alegria e divide nossa dor... A línguanão se fundamenta em base lógica, mas filosófica. É por isso quese pode dizer “Ele não sabe nada” e “Só sei que nada sei”. Lingua-gem não é matemática; uma frase não é, pois, uma equação.

É interessante acrescer aqui o belo efeito obtido por Blaise Pascal(1623-1662) e T. S. Eliot (1888-1965), utilizando-se praticamentede uma mesma figura de contradição, que tem por base o movi-mento. O texto de Pascal é este: “Quando tudo se move igualmente,nada parece mover-se, como num navio. Quanto todos caminhampara a dissolução, ninguém parece caminhar para ela. Aquele quese detém faz notar o impulso dos outros, como um ponto fixo.” Eiso de Eliot (citado por Rubem Alves em Fomos maus alunos, escritocom G. Dimenstein): “Numa terra de fugitivos, aquele que anda nadireção contrária parece estar fugindo.”

A figura utilizada pelo escritor inglês, como se vê, guarda seme-lhança com aquela de que se valeu o filósofo francês, mas amplia-lhe a força de significação. O que é a criatividade senão o reinventarde antigas fórmulas?

Semelhanças e diferençasDe antíteses e paradoxos é feita boa parte das frases célebres,

de Sócrates aos sertanejos atuais: Só sei que nada sei; Ser ou nãoser, eis a questão; Entre tapas e beijos, é ódio, é desejo... De antí-teses e paradoxos se fizeram consagrados poemas, letras de músicasfamosas e romances imortais.

Esses recursos são uma forma de paralelismo (correspondênciaentre duas coisas), da qual a rima também faz parte. O que tem aver, por exemplo, uma planta florescer e alguém se cansar de algumacoisa? Tudo, se rimar: