entrevista com o doutor elisaldo araujo carline

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8 n  fevereiro De 2010 n  PESQUISA FAPESP 168 entrevista Elisaldo Carlini O u o m d c l d m co h espcialista m psicofarmacologia diz qu stá mais do qu na hora d rconhcr as qualidads médicas da droga no Brasil O médico Elisaldo Carlini parece ter uma obsessão como espe- cialista em psicofarmacologia, área que ajudou a difundir no Brasil nos anos 1960 depois de uma passagem de quatro anos pelos Estados Unidos, três de- les na Universidade Yale. O foco de seu trabalho é procurar entender como a Cannabis sativa  – a maconha – age no organismo humano, seu alvo de pesqui- sa há 50 anos. Herdou esse interesse de José Ribeiro do Valle, seu professor de farmacologia na Escola Paulista de Medi- cina na década de 1950. Desde então tem trabalhado no sentido de desmiticar o conceito de que a maconha é uma droga maldita, sem utilidade. Nas décadas de 1970 e 1980 liderou no Brasil um grupo de pesquisa publi- cando mais de 40 trabalhos em revistas cientícas internacionais. Esses resulta- dos, juntamente com as investigações de outros grupos internacionais, possibili- taram o desenvolvimento no exterior de medicamentos à base de Cannabis sativa utilizados atualmente em vários países do mundo para tratamento da náusea e dos vômitos causados pela quimioterapia do câncer, para melhorar a caquexia (en- fraquecimento extremo) de doentes com HIV e câncer e para aliviar alguns tipos de dores. Para ele, já está mais do que na hora de reconhecer o uso medicinal da maconha no Brasil. Em maio deste ano haverá um simpó- sio internacional em São Paulo especial- Neldson Marcolin e Ricardo Zorzetto    f    o    t    o    s    e    D    u    a    r    D    o     c    e    s    a    r mente para tratar dessa questão. Carlini vê grande preconceito contra a maconha, mas aposta que se os pesquisadores insis- tirem na direção correta, com o apoio da ciência, essa aprovação será obtida algum dia. É preciso ressaltar que esse médico de 79 anos é contra o uso dessa e de outras drogas para ns recreativos. Carlini tem uma atuação social que, por vezes, ofusca o cientista. E le é o cria- dor do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) – um importante fornecedor de informa- ções para a formulação de políticas de educação – e da Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos (Sobravi- me), em 1990. Entre 1995 e 1997 esteve à frente da Secretaria Nacional de Vigi- lância Sanitária, órgão predecessor da atual Anvisa, onde enfrentou a espinhosa missão de combater a corrupção no setor. Com sucesso, diga-se. Atualmente está no sétimo mandato como membro do Expert Advisory Panel on Drug Depen- dence and Alcohol Problems, da Orga- nização Mundial da Saú de (OMS). Tem seis lhos e cinco netos. Em dezembro, entre uma reunião e outra, Carlini deu a entrevista abaixo. n Qual será a proposta do simpósio inter- nacional sobre maconha, que ocorrerá em maio em São Paulo? — Vamos propor que a maconha seja aceita para uso médico no Brasil. Meu avô se formou médico no m do século XIX e naquela época já usava um livro de 1888, que guardo até hoje, com a receita da maconha para vários males. Era uma terapêutica corrente no mundo todo, in- clusive no Brasil. O simpósio internacio- nal terá o título “U ma agência br asileira da Cannabis  medicina l?” . A Organização das Nações Unidas (ONU) reconhec e que a maconha pode ser medicamento – ape- sar da proibição da Convenção Única de Entorpecentes, de 1961 – desde que os países ocializem uma agência especial para Cannabis  e derivados nos seus mi- nistérios da Saúde. Já há uns 10 países que fazem esse uso: Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Itália, França, Alemanha, Espanha, Suíça, entre outros. n Quando e como o senhor decidiu eleger a maconha como objeto de estudo? — Quando entrei na Escola Paulista de Medicina [a EPM, hoje Universidade Fe- deral de São Paulo (Unifesp)] em 1952. E como aluno do 2º ano comecei a me in- teressar pela farmacologia e estagiei com o professor José Ribei ro do V alle. Ele foi o primeiro que fez tr abalhos verdadeira- mente cientícos sobre a Cannabis sativa  em animais de laboratório no Brasil. n Quais experimentos? — Ele procurava saber os tipos de reação [comportamental] que os animais apre- sentam quando submetidos aos efeitos da maconha e queria quanticar a potência dos diferentes tipos dessa pl anta. Naquela época, a psicologia experimental estava pouco desenvolvida no Brasil. Em 1960

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8  n  fevereiro De 2010 n  PESQUISA FAPESP 168

entrevista

Elisaldo Carlini

O uo mdcl d mcohespcialista m psicofarmacologia diz qu já stá mais do qu na hora

d rconhcr as qualidads médicas da droga no Brasil

Omédico Elisaldo Carlini pareceter uma obsessão como espe-cialista em psicofarmacologia,área que ajudou a difundir noBrasil nos anos 1960 depois deuma passagem de quatro anospelos Estados Unidos, três de-

les na Universidade Yale. O foco de seutrabalho é procurar entender como aCannabis sativa  – a maconha – age noorganismo humano, seu alvo de pesqui-sa há 50 anos. Herdou esse interesse deJosé Ribeiro do Valle, seu professor defarmacologia na Escola Paulista de Medi-cina na década de 1950. Desde então temtrabalhado no sentido de desmitificar oconceito de que a maconha é uma drogamaldita, sem utilidade.

Nas décadas de 1970 e 1980 liderouno Brasil um grupo de pesquisa publi-cando mais de 40 trabalhos em revistascientíficas internacionais. Esses resulta-dos, juntamente com as investigações deoutros grupos internacionais, possibili-

taram o desenvolvimento no exterior demedicamentos à base de Cannabis sativautilizados atualmente em vários paísesdo mundo para tratamento da náusea edos vômitos causados pela quimioterapiado câncer, para melhorar a caquexia (en-fraquecimento extremo) de doentes comHIV e câncer e para aliviar alguns tiposde dores. Para ele, já está mais do que nahora de reconhecer o uso medicinal damaconha no Brasil.

Em maio deste ano haverá um simpó-sio internacional em São Paulo especial-

Neldson Marcolin e Ricardo Zorzetto

   f   o   t   o   s

   e   D   u   a   r   D   o

   c   e   s   a   r

mente para tratar dessa questão. Carlinivê grande preconceito contra a maconha,mas aposta que se os pesquisadores insis-tirem na direção correta, com o apoio daciência, essa aprovação será obtida algumdia. É preciso ressaltar que esse médico de79 anos é contra o uso dessa e de outrasdrogas para fins recreativos.

Carlini tem uma atuação social que,por vezes, ofusca o cientista. Ele é o cria-dor do Centro Brasileiro de Informaçõessobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) –um importante fornecedor de informa-ções para a formulação de políticas deeducação – e da Sociedade Brasileira deVigilância de Medicamentos (Sobravi-me), em 1990. Entre 1995 e 1997 esteveà frente da Secretaria Nacional de Vigi-lância Sanitária, órgão predecessor daatual Anvisa, onde enfrentou a espinhosamissão de combater a corrupção no setor.Com sucesso, diga-se. Atualmente estáno sétimo mandato como membro doExpert Advisory Panel on Drug Depen-

dence and Alcohol Problems, da Orga-nização Mundial da Saúde (OMS). Temseis filhos e cinco netos. Em dezembro,entre uma reunião e outra, Carlini deua entrevista abaixo.

n Qual será a proposta do simpósio inter-nacional sobre maconha, que ocorrerá emmaio em São Paulo? — Vamos propor que a maconha sejaaceita para uso médico no Brasil. Meuavô se formou médico no fim do séculoXIX e naquela época já usava um livro de

1888, que guardo até hoje, com a receitada maconha para vários males. Era umaterapêutica corrente no mundo todo, in-clusive no Brasil. O simpósio internacio-nal terá o título “Uma agência brasileirada Cannabis  medicinal?”. A Organizaçãodas Nações Unidas (ONU) reconhece quea maconha pode ser medicamento – ape-sar da proibição da Convenção Única deEntorpecentes, de 1961 – desde que ospaíses oficializem uma agência especialpara Cannabis  e derivados nos seus mi-nistérios da Saúde. Já há uns 10 países quefazem esse uso: Estados Unidos, Canadá,Reino Unido, Itália, França, Alemanha,Espanha, Suíça, entre outros.

n Quando e como o senhor decidiu elegera maconha como objeto de estudo? — Quando entrei na Escola Paulista deMedicina [a EPM, hoje Universidade Fe-deral de São Paulo (Unifesp)] em 1952. Ecomo aluno do 2º ano comecei a me in-teressar pela farmacologia e estagiei com

o professor José Ribeiro do Valle. Ele foio primeiro que fez trabalhos verdadeira-mente científicos sobre a Cannabis sativa  em animais de laboratório no Brasil.

n Quais experimentos?— Ele procurava saber os tipos de reação[comportamental] que os animais apre-sentam quando submetidos aos efeitos damaconha e queria quantificar a potênciados diferentes tipos dessa planta. Naquelaépoca, a psicologia experimental estavapouco desenvolvida no Brasil. Em 1960

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E a maconha tem um efeito muito bompara aliviar essas dores. No entanto, aquino Brasil não se consegue utilizar esserecurso. Em outros países já há esse usobastante difundido.

n Mesmo nos Estados Unidos, que vêm deum período recente muito conservador? — Lá já existe pelo menos um medica-

mento. Eles sintetizam o delta-9-tetrai-drocanabinol (THC), que é o princípioativo da maconha, e vendem o compostopara o mundo inteiro: Marinol é o nomecomercial. Foi inicialmente propagan-deado para reduzir a náusea e o vômitoinduzidos pela quimioterapia do câncer.Foi aprovado pela FDA [Food and DrugAdministration, agência norte-americanade controle de alimentos e medicamentos]com uso controlado, como deve ser.

n E é possível importar o medicamento

no Brasil? — É proibido importar e usar. O interes-sante é que o uso terapêutico antináuseafoi descoberto acidentalmente por jovensda Califórnia que tinham leucemia, ocâncer sanguíneo. Eles recebiam o qui-mioterápico e, aos sábados, saíam para sedivertir e fumavam maconha. Os jovenspassaram a descrever para seus médicosque não sentiam nem náusea nem vômitoquando estavam sob o efeito da droga.Os especialistas começaram a investigar,fizeram trabalhos e demonstraram clara-mente que havia um efeito antinauseante.Mais tarde estudaram outra consequênciado uso da maconha, chamada popular-mente de larica, a fome exagerada que osujeito tem depois de fumar. Dessa veztambém comprovaram os efeitos e pa-tentearam o medicamento Marinol paraa caquexia, a perda exagerada de peso queocorre no câncer e na Aids.

n É possível fazer chá em vez de fumar? — Não, porque os compostos que estãonas folhas não são solúveis. O delta-9-THC é vendido em cápsulas gelatinosas,

dada a sua natureza lipídica. Há tambémum canabinoide sintético, chamado Na-bilone, utilizado no Canadá. E acaboude ser lançado também no Canadá e naInglaterra uma mistura de duas cepasde maconha. Ambas são de Cannabissativa . Uma delas produz canabidiol,que é o precursor do delta-9-THC. Eoutra possui alto teor de delta-9-THC.A firma inglesa GW Pharmaceuticals fazdois extratos dessas plantas. A estratégiaé misturar os dois, de maneira a ter umaquantidade adequada do canabidiol e do

delta-9-THC. Essa mistura foi lançadacom o nome comercial de Sativex dentrode uma bombinha, como as de asma, pa-ra usar direto na boca. Cada dose libera5 miligramas do delta-9-THC.

n Qual a indicação? — Dores neuropáticas, náusea e vômitoda quimioterapia do câncer, caquexia eesclerose múltipla. O interessante é quequem pela primeira vez mostrou quemisturando canabidiol com delta-9-THC em determinadas concentraçõesse modula melhor o efeito da maconhafoi o nosso Departamento de Psicofar-macologia da Unifesp. Daqui se originouo trabalho na Inglaterra. Isso é reconhe-cido internacionalmente. O canabidiolmodula o efeito do delta-9-THC, de talmaneira que o delta-9-THC, na presença

do canabidiol, gera menos ansiedade eage por um tempo maior.

n Quando vocês demonstraram isso? — São estudos da década de 1970 e1980 com trabalhos publicados na Bri-tish Journal of Pharmacology , Journal ofPharmacy and Pharmacology  e European

 Journal of Pharmacology , revistas de altonível. Mas nunca conseguimos tirar na-da de positivo desses trabalhos aqui noBrasil para gerar algum produto. Não éprioridade para o país.

n  Esses trabalhos só serviram para osoutros? — Só para o exterior. Foi a mesma coisacom a Maytenus ilicifolia , a espinheira--santa. Fizemos um trabalho imenso comela. Mostramos, em animais de laborató-rio e no homem, que tem um efeito pro-tetor para o estômago. Publicamos muitoaqui e no exterior e não conseguimos

fazer uma patente. O Japão é que pediue conseguiu. O que me frustra mais é queno pedido de patente japonês está escritomais ou menos assim: “... a Maytenusilicifolia , pertencente à família Celastra-ceae, é utilizada no folclore brasileiropara o tratamento de úlcera”.

n A história se repetiu.— Isso é comum. As tentativas oficiaisde fazer a medicina aceitar no Brasil amaconha como medicamento vêm antesda década de 1990. Em 1995, como secre-

tário nacional da Vigilância Sanitária, eucoordenava o registro de medicamentosno país. Falei para o ministro da Saúde,Adib Jatene, que desejava organizar den-tro da Vigilância Sanitária uma reuniãopara discutir se o delta-9-THC poderiaser licenciado como medicamento con-tra náusea e vômito na quimioterapiado câncer. Ele concordou e falei como presidente do Conselho Nacional deEntorpecentes, Luiz Mathias Flack, quetambém aceitou. Os dois abriram a reu-nião. Mas não conseguimos fazer nada.Os médicos não aceitaram.

n Qual a razão dessa resistência? Seria o fato de a maconha ser conhecida como uma porta de entrada para outras drogas? — Mas nós estávamos falando de medi-camento, não de recreação. Organizamosoutras reuniões, inclusive uma aqui naUnifesp, em 2004, com especialistas doexterior. Essa deu um primeiro resultadopositivo. O general Paulo Yog de MirandaUchôa, da Senad [Secretaria Nacional dePolíticas sobre Drogas], estava presente eaceitou que o governo brasileiro deveria

solicitar à ONU, por meio do Itamaraty,que a maconha fosse retirada da lista dasdrogas malditas, dado ter sido o própriogoverno brasileiro quem havia colocadoa maconha nessa situação. Esse pedidoestá sendo encaminhado à ONU.

n O senhor não é a favor da legalização damaconha de modo geral? — Sou contra a legalização porque achoque o ser humano não precisa usar dro-gas que apenas poluem corpo e mentecom objetivos recreativos. Sou a favor da

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maconha como medicamento, usado sob

controle. A descriminalização já existeno Brasil. Ninguém mais vai preso, nemse faz boletim de ocorrência, se é pegocom poucos gramas hoje. A não ser queo policial assim queira.

n O senhor fuma? — Maconha não. Fumei cigarro normaldurante muito tempo. Parei há mais de20 anos por um motivo curioso, quandoainda não havia provas cabais dos prejuí-zos do fumo. Eu estava no aeroporto deCumbica, em Guarulhos, recém-inaugu-rado. Tudo era muito novo, o carpete, ascadeiras, tudo. Fui pegar um café e deixeio cigarro na ponta do cinzeiro. Quandovoltei ele tinha caído e provocado umrombo no carpete novinho. Aquilo medeu uma vergonha enorme. Parei de fu-mar depois disso e não sinto falta.

n O senhor citou a morfina como um me-dicamento também muito temido pelosmédicos.— Na minha época na Secretaria Nacio-nal de Vigilância Sanitária acreditava-seque apenas 5% dos pacientes com dor

severa, que precisavam de morfina paraminorar o sofrimento – gente com câncerterminal, queimados graves, politrauma-tizados –, recebiam a droga. As razões sãomúltiplas e ocorrem no mundo inteiro.Existe um conceito chamado opiofobia.O médico não prescreve opiáceos, dosquais a morfina é um exemplo, por medode induzir à dependência. É óbvio quea dependência é horrível, mas não paraum doente terminal ou para um poli-traumatizado. É muito difícil vencer essafobia dos médicos.

n Estamos falando de drogas e ainda não

citamos o álcool.— O álcool é uma droga psicotrópica.Produz efeito no sistema nervoso centrale gera dependência. Uma droga psicoati-va é aquela que age no sistema nervoso,mas não gera dependência porque nãotem propriedades reforçadoras. Já a dro-ga psicotrópica age no cérebro, produzseu efeito – analgesia, sono, euforia, ale-gria, relaxamento – e ao mesmo temporeforça essas sensações no indivíduo. Elesente bem-estar ou prazer, que é muitoimportante para ele. Facilmente a pessoase torna dependente. Para mim, o álcoolé a droga mais terrível que existe nomundo. No Levantamento Domiciliarde 2005, feito pelo Cebrid, foi aplicadonas 108 maiores cidades do país umteste para verificar o risco de haver de-pendência do álcool. Deu que 12,3% dapopulação entrevistada corre esse risco.É gente demais, corresponde a mais de20 milhões de brasileiros. No momento,fazemos um trabalho apoiado pela FA-PESP para tentar melhorar a adesão dosalcoólatras ao tratamento.

n Como é esse projeto? — Começamos conversando com o pa-ciente, procurando entendê-lo. Depoisexpomos quatro opções terapêuticas, in-clusive com um filme ilustrativo. Deixa-mos que ele vá para casa com um folhetoexplicativo, pense no que quer fazer, dis-cuta com a família e finalmente diga paranós qual seria o melhor tratamento. Ele éque vai escolher a técnica que julgar maisconveniente. Temos uma expectativa deque o doente, sendo senhor da situaçãoque o envolve, possa aderir mais ao trata-

mento. Essa é nossa linha atual. O projetoé longo e deve demorar até ter resultadosmensuráveis. No momento recrutamospacientes alcoolistas para participaremda pesquisa. [A adesão pode ser feita pelotelefone (11) 5084-1084, com Valéria.]

n Como o senhor vê a política de reduçãode danos, como distribuição de seringas

 para viciados? — Acho muito bom. É algo combatidopor parte da sociedade porque não se re-conhece que dependência é doença. Paraalgumas pessoas, quem tem de receberseringa é o diabético, e não o “viciado”. Oque não se sabe é que o grau de depen-dência e sofrimento dele é imenso. Eletem de ser tratado como um doente.

n Podemos dizer que os trabalhos dos anos1960 sobre privação de sono e agressividadede ratos resultaram nas linhas de pesquisa

sobre sono e no próprio Instituto do Sono,liderado pelo professor Sérgio Tufik? — O Sérgio foi meu aluno na Faculdadede Medicina da Santa Casa e no dou-torado. Os primeiros trabalhos sobreprivação de sono paradoxal e maconhanós fizemos juntos. Não há dúvida deque saiu daqui. Ele é de uma inteligênciaincomum e se encaixa naquele perfil rarode cientista que vê o que todos veem epensa o que ninguém pensou.

n Como nasceu o Cebrid? — Eu queria muito conhecer a situaçãodas drogas no Brasil assim que voltei dosEstados Unidos, mas não conseguia. Játinha começado um esboço do Cebrid naSanta Casa e percebi que teria de produ-zir as informações porque havia poucosdados confiáveis. O jeito foi começar afazer a coleta dos dados para deixá-losdisponíveis em um arquivo. Começa-mos procurando trabalhos sobre abusode drogas em todas as bibliotecas aquide São Paulo. Logo no início do trabalhoviemos para a Unifesp e montamos umbanco de trabalhos de pesquisadores bra-

sileiros que escreveram sobre isso. Hojesão quase 4 mil, todos disponíveis paraquem quiser pesquisar. Boa parte dos tra-balhos era antiga e achamos que teríamosde produzir outros estudos, mais atuais.Fizemos o primeiro levantamento entreestudantes nas capitais brasileiras e en-tre meninos de rua em 1987. Repetimosem 1989, 1993, 1997, 2004 e devemosfazer mais um neste ano. Esses dadossão utilizados no Brasil como fonte deinformações para se elaborarem políticaspúblicas educacionais.

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n Existe um grande interesse sobre os pos-síveis resultados dos estudos sobre plantasmedicinais, especialmente pela enormebiodiversidade brasileira. Mas a expectati-va de achar moléculas ou princípios ativosque possam virar medicamentos parecemuito difícil de concretizar. Por quê?— De fato é difícil seguir apenas poresse caminho. Se analisarmos os medi-

camentos importados que chegam aoBrasil atualmente, há um número gran-de que é feito não mais pelo princípioativo, mas pelo extrato seco da planta.Acredito que cometemos um erro táticode procedimento. Nós sempre corremosatrás do princípio ativo da planta. Masela tem dezenas, às vezes centenas desubstâncias e temos de pesquisar cadauma delas para saber qual é a responsá-vel pelo efeito que desejamos. Quandose usa um extrato e ele produz o efeitodesejado, está ótimo, não é preciso mais

pesquisar substância por substância. Hátambém outra vantagem: esses extratosvêm quase sempre de plantas que fo-ram usadas popularmente por séculose, provavelmente, não são muito tóxicas.Talvez, de fato, não seja a melhor estraté-gia utilizar um princípio ativo isolado eúnico. A pesquisa com algumas plantasestá demonstrando que a interação entrecomponentes é a responsável pelo efeitodesejado. Nosso problema é que não háprioridade para esse tipo de pesquisa noBrasil. A começar pelos próprios órgãosdo governo, que não acreditam nisso ecriam limitações como as impostas peloCGEN [Conselho de Gestão do Patrimô-nio Genético], do Ministério do MeioAmbiente. O CGEN sem dúvida temboas intenções e, como nós, visa prote-ger nosso patrimônio genético de modoque não caia em outras mãos e também,como nós, pretende conferir direitosàqueles que são na realidade os donosdo conhecimento popular. Mas na prá-tica estabeleceu regras tão estapafúrdiasque acabou por impedir que o cientistabrasileiro trabalhasse com plantas. E há

outro problema: trabalho com plantasdá pouco índice de impacto, o que gerapouco interesse de outros pesquisadorese das agências de fomento.

n Pesquisa FAPESP nº 70, de 2001, publi-cou uma reportagem sobre o trabalho dabióloga Eliana Rodrigues, orientado pelosenhor, que havia identificado 164 espéciesvegetais usadas pelos índios Krahô com finsmedicinais. Os índios cobraram da Unifespuma indenização de R$ 25 milhões. Comose resolveu a situação? 

— Não, eles estão a nosso favor. Eles vie-ram até aqui e ficamos três dias com au-toridades públicas. Um dos líderes, quefala melhor o português, nos disse, “quefique bem claro, se a pesquisa não sai épor culpa de vocês brancos, porque nósqueremos”. Estamos nessa briga. É o go-verno contra o governo, porque, afinal, aUnifesp é federal. Nosso projeto já havia

sido aprovado pela FAPESP. Fechei ques-tão em um ponto: queria que os índiostivessem direito à patente. Como índioé tutelado pelo Estado e não pode assi-nar nada, tentei interessar a Funai, masnaquele período mudaram três ou qua-tro ministros da Justiça e os respectivospresidentes da Funai. A solução foi fazerum contrato “ético” entre a universidadee os índios de modo que eles tivessemassegurados os direitos aos royalties  pelaprópria universidade. Tudo foi assinado– e depois morreu completamente.

n Como foi sua passagem pela SecretariaNacional de Vigilância Sanitária, a atualAnvisa?— A Vigilância Sanitária tinha uma fa-ma medonha de corrupção, conhecidanacionalmente. Quando aceitei o convi-te do ministro Adib Jatene, a missão eramoralizá-la e modernizá-la. Pedi a cola-boração dos funcionários para mudar afama do lugar e acho que fui atendido.Eu recebia muitos presentes, relógios,canetas Mont Blanc, eletrodomésticos edecidi não devolvê-los para não criar no-vas inimizades. Eu agradecia e mandava asecretária colocar em uma estante especí-fica. Eram dezenas e dezenas de presen-tes. Depois levava as pessoas que davamos presentes para verem o que era a es-tante. No final do ano chamava todos osfuncionários da Anvisa e fazia um gran-de sorteio com esses presentes. Tambémafastei 15 funcionários e “fechei” de 100a 150 laboratórios fantasmas, todos comregistros normais e vários participandode concorrências públicas. Isso dá umaideia do nível de desacertos do período.

Também cancelei mais de 300 registrosde farmácias magistrais que faziam asfamigeradas fórmulas para emagrecer.Mas adiantou pouco. Saindo o Jatene eeu deixando a Vigilância Sanitária tudovoltou ao que era antes. Felizmente, lo-go depois um outro ministro da Saúdeassumiu, foi criada a Anvisa e nos diasde hoje acredito que aquela negra fase ja-mais voltará. O interessante é que, depoisde tanta luta, ganhei bastante respeitabi-lidade entre o pessoal da indústria e naprópria Vigilância Sanitária.   n

— Não se resolveu. Até hoje a situaçãoé complicada. Somos acusados de serladrões da biodiversidade brasileira. Re-centemente recebemos uma carta doMinistério Público querendo uma provade que não publicamos esse trabalho emnenhuma revista do exterior. Na mesmaépoca, centenas de trabalhos de brasileirosforam publicados por diferentes universi-dades brasileiras no exterior em associa-ção com indústrias estrangeiras e, mais doque isso, há quatro estudos com plantasexclusivas do Brasil feitos apenas por uni-versidades de fora. E nós fomos escolhidospara prestar contas, não sabemos a razão.

Para poder pesquisar uma planta brasilei-ra, nós, farmacólogos, temos de provar quenão estamos fazendo uma bioprospecção.Bioprospecção, por definição, é qualquercoisa do campo da ciência que pode gerarno futuro um interesse comercial. Ora,farmacologia é o estudo de medicamentos,algo que sempre poderá gerar um produtocomercial, mesmo que o pesquisador nãoqueira. Pode ser um remédio, um cosmé-tico, uma tinta qualquer.

n Vocês são processados pelos índios? 

Talvez não seja

a melhor

estratégia usar

um princípioativo único.

Pesquisa com

plantas está

demonstrando

que a interação

entre

componentes

é a responsável

pelo efeito

desejado