entrevista com tycho brahe

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19 Física na Escola, v. 2, n. 2, 2001

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Page 1: Entrevista com Tycho Brahe

19Física na Escola, v. 2, n. 2, 2001

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Este artigo apresenta uma bem humoradaconversa entre Tycho Brahe e um grupo deprofessores, todos sentados à beira da praia ediante de um copo. Embasado por diversosestudos acadêmicos, este texto também podeser utilizado como uma representação teatralpara se discutir aspectos históricos da astrono-mia.

Alexandre MedeirosDepartamento de Física – UniversidadeFederal Rural de Pernambuco

Otítulo deste artigo é certamente uma brincadeira, mas o assunto, não!O ano de 2001 assinala os 400 anos da morte do grande astrônomoTycho Brahe, a quem muito deve a ciência moderna. Personagem quase

desconhecido pelos nossos estudantes e professores de Física, ele é mencionadonos livros didáticos de forma esporádica, quase que exclusivamente pelo fato deKepler haver utilizado os dados de suas observações na busca das três famosasleis do movimento planetário: as leis de Kepler. Mas Tycho é um personagemfascinante, misterioso, a quem a ciência moderna deve as primeiras peças deevidência contra o cosmos aristotélico. Essas peças de evidência pavimentaramo caminho para a aceitação posterior dos trabalhos de Copérnico e de Galileu.Paradoxalmente, Tycho era um adversário ferrenho de Copérnico.

Existe pouca coisa escrita em português para nos ajudar a entender todaessa história. A melhor delas é o clássico Os Sonâmbulos, escrito pelo inglêsArthur Koestler nos anos sessenta. Koestler era um jornalista e escritor inglês,que havia estudado Física na juventude. Sua obra é de fácil leitura e asinformações ali contidas foram retiradas, principalmente, de obras de maiorporte, como por exemplo o clássico livro de Dreyer1 editado em Edimburgo em1890 (e reeditado pela Dover em 1963). Desde aquela época muitos trabalhosinteressantes têm sido escritos sobre Tycho e a sua obra; o mais notável deles,talvez, seja o livro de Victor Thoren editado em 1990 pela Cambridge Univer-sity Press2. De qualquer modo, essas obras são todas de difícil acesso aos nossosestudantes e professores de Física. Além disso, com exceção do livro do Koestler,as outras obras mencionadas são trabalhos acadêmicos de difícil leitura paraaqueles não iniciados nos meandros da história da ciência. Por esses motivosresolvemos relembrar os 400 anos da morte de Tycho Brahe contando um poucoda sua vida e da sua obra de um modo mais descontraído. Inventamos umaentrevista com Tycho, em um cenário surrealista: um bar à beira mar de Natal,por ocasião do XIV SNEF. Embora o relato que se segue seja, em sua concepção,uma fantasia pretensamente divertida, as informações históricas veiculadasestão todas apoiadas em obras de inegável valor acadêmico.

Esboço de Tycho Brahe.

Entrevista com Tycho Brahe

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A Entrevista com Tycho BraheSob um sol de rachar mamona,

corria o XIV SNEF, em Natal. Estáva-mos nós, os colegas professores Jafelice,Ciclamio, Rogério, Marcelo, Marcílio,Osmar, Cleide, o Fernando e eu, conver-sando à beira mar em Natal sobre adivertida peça de teatro sobre a prensahidráulica que havíamos encenado noXIV SNEF e até mesmo sobre estóriasde assombrações. Um comentário doRogério sobre Kepler despertou-me alembrança dos 400 anos da morte deTycho Brahe. O colega professor Jafelicecomentou quão pouco se ensina sobreTycho na escola e o professor Ciclamiomisturou nossa conversa sobre assom-brações com a possibilidade de conver-sarmos com Tycho sobre sua vida.Vários escritores famosos já utili-zaram-se desse expediente para criarinteressantes obras com fundo histó-rico. Daí para começarmos nossaprópria criação foi um pulo…

Chegara a nossa cerveja, para abriro apetite – ninguém é de ferro, e sob osquase quarenta graus de Natal, apósuma intensa apresentação teatral,fazíamos por merecer. Fernando bebe-ricou o primeiro gole e pousou o copona mesa com força, batendo-o, mes-mo. E começou a falar diferente, comuma voz rouca:

- Os livros didáticos e os professoresde Física já não se lembram mais demim…

Marcelo percebeu de imediato, eentrou no clima:

- Olhe aí, é ele, é o Tycho Braheencarnando no Fernando. Milagre!Aleluia!

- Se é assim - disse eu, ainda meiosem entender o começo da brincadeira- vamos fazer algumas perguntas.

E começamos.Alexandre: Oh, Tycho, por que você

tá reclamando? Que é que você fezmesmo pra achar que merece ser citadopor nossos colegas professores deFísica?

Tycho: Eu revolucionei a Astrono-mia e com ela toda a ciência, vocêsnunca ouviram falar nisso?

Osmar: Só sei que você andoufazendo umas observações do céu e queo Kepler depois as usou para chegar àssuas leis.

Tycho: A história é um pouco maiscomplicada, meu caro. Além disso, mi-nha obra não se resume a haver feitoalgumas observações para seremusadas após a minha morte pelo Kepler.Antes de mim as observações mais pre-cisas eram feitas até o limite de dez mi-nutos de arco. Com os meus novosinstrumentos pude fazer medidas de atéum minuto de arco. E tem mais: atéentão as posições dos planetas e da Luaeram medidas apenas em ocasiõesespeciais, quando eles estavam emalguns importantes pontos de suasórbitas, como, por exemplo, emoposição ou em quadratura. Com osinstrumentos que inventei, pude acom-panhar o movimento dos planetasnoite após noite, durante anos.

Marcílio: como, se você não tinhatelescópio? A invenção do telescópionão é da época de Galileu, depois dasua morte?

Tycho: Exato! E aí vocês podemavaliar a grandeza e a importância domeu trabalho. Mesmo sem telescópioeu consegui fazer medidas dez vezesmais precisas que as melhores até entãodisponíveis.

Rogério: que tipo de instrumentoseram esses?

Tycho: Eram muito variados.Havia principalmente quadrantesenormes, algo como um transferidorgigante, que eu e os meus auxiliaresusávamos para melhor observar osdeslocamentos angulares dos planetas.Havia também esferas armilares umaespécie de globo, com a Terra no centroe os planetas em volta. Eu a usava paramarcar as posições das observações.Eram todos enormes, isso facilitava asmedidas angulares.

Rogério: Eu tenho uma curiosidadede saber como o seu trabalho começou,onde estudou, em que se formou, coi-sas assim.

Tycho: Estudei em muitos lugares,mas me formar mesmo, não me formeiem nada. Nunca tive paciência de ter-minar nenhum curso. E, além disso,sempre fui um cara muito brigão.

Marcelo: Peraí, dá pra começar doinício? Fale onde você nasceu, quemeram seus pais, como foi criado, o queestudou, coisas assim.

Tycho: Está bem! Eu nasci em 14de dezembro de 1546, no castelo de

Knudstrup, em Skania, na Dinamarca.Hoje o local fica na Suécia. O Brasil ha-via sido descoberto há bem poucotempo e os portugueses mal haviamcomeçado a explorá-lo, mas isso é umoutro assunto. O fato é que os dina-marqueses dizem que eu sou dinamar-quês e os suecos que eu sou sueco. Meupai chamava-se Otto Brahe e pertenciaà nobreza. A família Brahe era muitoimportante naquela época na Dina-marca, proprietária de vastas extensõesde terra. Papai chegou a ser um dosmembros da Câmara Alta, uma juntade vinte nobres que auxiliavam o reina administração do país. Mamãetambém tinha sangue azul, ela chama-va-se Beate Billie e sua família era tãoimportante quanto a de papai. Váriosparentes dela também fizeram parte daCâmara Alta. Titio Jorgen, no entanto,é quem tinha mais poder na família,ele chegou a ser Almirante da Armadadinamarquesa, comandando toda anossa frota na guerra contra os suecos.Foi ele quem me criou, desde pequeno.

Marcelo: como é essa história, foio seu tio quem lhe criou? Por que?

Tycho: Titio Jorgen não tinha umfilho homem e fez papai prometer quequando mamãe tivesse um daria paraele criar. Papai prometeu, e deve ter ga-nho algo com isso, mas não sei bem.Quando eu nasci, entretanto, papai nãoquis me dar e brigou com titio. Quando

Armilar equatorial desenvolvida porTycho.

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meu irmão nasceu titio me raptou epassou a me criar desde então. Depoisde algum tempo papai e ele fizeram aspazes e eu continuei a morar com meutio.

Rogério: E então, onde você estu-dou, como veio a se interessar pelaAstronomia?

Tycho: Calma Rogério vou contartudinho. Você ainda vai falar muito so-bre mim e sobre a minha obra em salade aula, principalmente agora que oMenezes, a Maria Regina e a Yassuko,lá da USP, trabalharam nos PCN e estãorecomendando que aqui no Brasil se dêmais atenção a essas questões históri-cas. Aliás, o Thomsen e o Nielsen, doisfísicos que trabalharam recentementena reforma do ensino da Física lá naDinamarca, também introduzirambastante coisa de história da ciência nocurrículo.

Osmar: Puxa! Você é um carainformado pra quem já morreu hátanto tempo.

Marcelo: Ele tá é feliz de ver o seunome lembrado na escola.

Tycho: Eu mereço! (Risos)Jafelice: E então Tycho, como é que

você veio a se interessar pela Astro-nomia?

Tycho: Estudei numa escola paro-quial. Desde os sete anos meu tio mecolocou para estudar latim. Isso era umtanto esquisito, pois sendo um nobreeu precisaria apenas de aprender a caçare fazer a guerra, mas titio desejava quefosse treinado nas coisas da adminis-tração do Estado; queria inserir-me nojogo do poder. Assim, já aos treze anosde idade, meu tio mandou-me para aUniversidade de Copenhague.

Marcílio: Quer dizer que você fez ovestibular com treze anos?

Tycho: Não, eu não fiz vestibularnenhum. Aliás, isso nem existia. Naverdade como um nobre eu nem aomenos me matriculei, apenas fui paraa Universidade estudar Direito eFilosofia e pronto.

Osmar: Direito? Não foi Física, nemEngenharia?

Tycho: Meu caro, na minha época,como atualmente, quem queria ganhardinheiro ia estudar Direito, mesmo quefosse para fazer coisas erradas. Meu tiohavia me colocado para estudar latimjustamente com essa intenção. Lá passei

três anos. Durante esse tempo pudepresenciar um fenômeno que me mar-cou muito e que o livro do Dreyer ameu respeito conta direitinho: umeclipse parcial do Sol. Ele havia sido pre-visto com exatidão pelos astrônomos.Eu achei aquilo incrível, que o homempudesse saber o que aconteceria noreino dos céus. Pareceu-me algo divinoque o homem pudesse conhecer omovimento dos astros e predizer suasposições futuras. Eu que sempre fui umcara místico, passei a interessar-me pelaastrologia.

Osmar: Você quer dizer Astro-nomia, não?

Tycho: Não, você ouviu bem:astrologia mesmo. Eu estava interes-sado na astrologia, a arte de desvendaros segredos do destino dos homens queestava estampado nos céus. Em prevero futuro, em fazer horóscopos. AAstronomia era uma mera coadjuvanteda grande arte da astrologia. A Astro-nomia apenas cuidava de estudar osesquemas matemáticos que descreves-sem os movimentos planetários e deobservar a posição e o movimento dosastros.

Cleide: Quer dizer que você estavainteressado, inicialmente, apenas naastrologia? Mas como veio a se tornarum astrônomo famoso?

Tycho: Boa pergunta! A questão éque, ao comprar uma edição em latim

do Almagesto, o livro que Ptolomeuhavia escrito sobre o movimento dosastros, eu logo percebi que as suasprevisões estavam baseadas em dadosobservacionais muito falhos. Mesmoas correções feitas pelos astrônomosárabes não haviam contribuído muitopara melhorar a qualidade das obser-vações. E sem boas observações não meseria possível exercer bem a nobre tarefade predizer o futuro dos homens.Então, de início, foi mesmo por isso quecomecei a me dedicar ao aperfeiçoa-mento das observações. Depois, noentanto, o fervor pela observação metomou de tal modo que, mesmo semabandonar jamais minha pretensão defazer bons horóscopos, eles foramrelegados a um segundo plano.

Alexandre: Então você nuncaabandonou suas práticas astrológicas,apenas tornou-as secundárias?

Tycho: Em verdade, nenhumhistoriador jamais estabeleceu com cla-reza se eu abandonei a astrologia. Aliás,graças a ela ganhei cargos e mais pres-tígio social, como contarei daqui apouco. A questão é que como vim adar grandes contribuições à Astrono-mia, e dessas contribuições nasceu umaciência que renega as crenças astro-lógicas, reescreveram o meu passado,ou melhor, omitiram parte dos meusafazeres. Agora veja lá, mesmo haven-do feito contribuições para a agrimen-sura, e novas tabelas para as posiçõese para o movimento dos astros, vocêacha que algum rei daquela época mepagaria só para fazer isso?

Alexandre: Claro que não. Eu sem-pre disse isso, mas...

Tycho: Deixe-me continuar. Oproblema é que passaram a contar sóaquilo que interessava de minha vida,para que a minha história ficasse ali-nhada com as contribuições posterioresde tantos outros em direção ao ideal deuma ciência essencialmente racional.Depois que historiadores, no século XX,começaram a revelar esses detalhes domeu passado, não sei se por isso, meunome foi sumindo dos livros didáticos.Hoje é um escândalo, ninguém falamais em mim. Vocês têm que fazeralguma coisa.

Jafelice: Então seja prático homem,continue a sua história.

Tycho: Onde eu estava?Sextante idealizado por Tycho.

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Ciclamio: Você estava estudandona Universidade de Copenhague.

Tycho: Pois é, passei lá três bonsanos, estudei um bocado e bebi muito.

Marcelo: Como é, você o que?Tycho: Bebi muito, companheiro,

desde jovem e por falar nisso bota maisum pouquinho de cerveja aqui no meucopo. Bebi a vinda inteira, sempre mui-to. E morri depois de uma bebedeira,mas depois eu conto isso.

Marcelo: Sabe, eu já topava com asua cara e agora é que estou gostandomesmo.

Tycho: Obrigado. Pois então, eu saíde Copenhague e fui para a Universi-dade de Leipzig, na atual Alemanha, elá continuei a estudar Direito, ou afreqüentar as aulas, como queiram. Eutinha dezesseis anos quando sai deCopenhague. Meu tio arranjou-me umtutor, um cara também jovem cha-mado Anders Vedel, que depois viria ase tornar o primeiro historiadorfamoso da Dinamarca. O Vedel deveriatentar me manter na linha que o meutio havia traçado para mim: estudarDireito. Mas eu, naquela época já estavaobcecado pelos mistérios dos céus.Comprei vários livros de Astronomia einstrumentos para fazer observações.Passei várias noites observando os céus.Naquela época eu já tinha completadoos dezessete anos. Foi então que obser-vei Júpiter e Saturno passarem muitoperto um do outro. Aquilo, para mim,foi um acontecimento memorável. Issose deu, precisamente, em 17 de agostode 1563. Lendo as melhores tabelasastronômicas disponíveis naquelaépoca, entretanto, constatei umaenorme disparidade entre o instante doacontecimento e o instante previsto. Astabelas Afonsinas, devidas aosastrônomos árabes, haviam errado adata do fenômeno observado por algoem torno de um mês, e mesmo astabelas elaboradas pelo Copérnico tam-bém erravam sua previsão por váriosdias. Aquilo tudo me pareceu inacei-tável. Creio que foi naquela ocasião,para ser mais preciso, que decidiconstruir novas tabelas das posiçõesdos astros e ficou claro para mim queisso implicaria na determinação da-quelas posições com uma precisão atéentão nunca alcançada.

Marcílio: Você foi da mesma época

do Copérnico?Jafelice: Epa! Você havia dito antes

que a sua preocupação com a correçãodas tabelas astronômicas havia come-çado quando ainda estava em Cope-nhague, agora falou que foi só quandochegou em Leipzig. Qual é a verdade?

Tycho: Calma ai Jafelice, deixa euresponder primeiro ao Marcílio. Eu nãofui contemporâneo do Copérnico não.Lembre-se que ele nasceu em 1473 emorreu em 1543. Eu nasci, portanto,três anos após a sua morte. Mas vocêprecisa lembrar, também, que a grandeobra do Copérnico, o De Revolutionibus,foi publicada logo após a sua morte.Portanto, naquela época, as idéias doCopérnico eram ainda bem recentes ecausavam muita polêmica. Eu mesmoentrei nessa briga.

Alexandre: Você entrou não apenasnessa briga; você entrou em váriasbrigas.

Tycho: É verdade, mas deixe euvoltar para o que o Jafelice perguntou.Olha, fica difícil, após tantos anos daminha morte eu me lembrar, assim,com exatidão. Certamente meu inter-esse pelas coisas do céu, pela astrologia,deve ter nascido em Copenhague.Acredito, entretanto, que a minhadecisão de elaborar novas tabelasastronômicas baseadas em observaçõesmais precisas só tenha nascido emLeipzig, por ocasião da aproximação deSaturno e Júpiter.

Jafelice: Ah, ok. É que a gente quersaber como a coisa se deu para nãoinventar a seu respeito na sala de aula.

Tycho: Obrigado, já inventarammuita coisa ao meu respeito mesmo.

Jafelice: Prossiga!Tycho: Então! Como eu havia

decidido construir novas tabelas, ficouclaro para mim que eu precisaria fazerobservações cuidadosas por um longoperíodo de tempo. Por essa época o Vedeldesistiu de ser o meu tutor; ele já perce-bera que as coisas dos céus haviam meconquistado definitivamente e que eujamais seria um bom estudante de Di-reito. Mesmo assim, continuamosamigos pelo resto da vida. Passei a assis-tir regularmente as aulas de Astrono-mia dadas por Scutetus. Nessa épocatitio morreu de pneumonia e havia medeixado como seu herdeiro. Mas eu nãoherdei apenas a fortuna do meu tio,

mas, sobretudo a gratidão que o ReiFrederico II tinha para com ele.

Rogério: Não estou entendendo.Tycho: É que titio Jorgen, que era

o almirante da armada, estava voltan-do de uma batalha na qual nós os dina-marqueses ensinamos aos suecos comose briga uma boa guerra.

Marcílio: Você estava lá?Tycho: Eu não! Eu estava numa

boa observando o céu e bebendo emLeipzig. O titio é que estava na batalha.

Marcílio: Entendi, mas é que vocêfalou “nós ganhamos”.

Tycho: Modo de falar, força de ex-pressão. Pois bem, respondendo aoRogério: na comemoração da vitória oRei Frederico II caiu ao mar e a águaestava congelada. Titio, vendo aquilo,pulou na água e conseguiu salvar o Rei,mas contraiu uma pneumonia querapidamente levou-o à morte.

Jafelice: Oh Tycho, essa história éverdade mesmo? Dá pra contar em salade aula ou é apenas enrolação?

Tycho: Enrolação coisa nenhuma.Isso está no livro do Vedel sobre ahistória da Dinamarca. Você nunca leu?

Jafelice: Não sabia nem que essecara existia.

Tycho: Pois é, está lá, vários histo-riadores da ciência já registraram isso.

Jafelice: Eu acredito, pode conti-nuar.

Tycho: Pois é, ai o Rei Frederico II,de certo modo, transferiu aquela suagratidão para com o titio Jorgen paramim.

Marcelo: Cara de sorte esse Tycho.Tycho: Nessa ocasião voltei para a

Dinamarca, mas a minha família nãovia com bons olhos a minha idéia deme dedicar ao estudo dos céus. Volteientão para a Alemanha, indo paraAugsbug. Lá, convenci alguns astrôno-mos amadores muito ricos que eranecessário construir grandes e caros in-strumentos de observação para que aAstronomia pudesse ser aperfeiçoada.Refiro-me aos grandes quadrantes. Foiali que começou minha dedicação to-tal à tarefa de realizar observações cadavez mais precisas. Sem elas a Astrono-mia nunca teria saído do estado em quese encontrava. De Augsburg fui estudarna Universidade de Wittenberg, em1566. Apesar de não haver me ma-triculado oficialmente, passei a assistir

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regularmente às aulas de Astronomiade Caspar Peucer. A peste negra assolouWittenberg e ainda naquele mesmo anofui para a Universidade de Rostock.

Marcelo: E você tem alguma lem-brança dessa época da peste, Tycho?

Tycho: Da peste não, mas foi poraqueles tempos que briguei e perdi meunariz.

Marcelo: Já que tocou nesse assun-to Tycho, que negócio é esse que vocêusa ai no lugar do nariz. Isso é um pe-daço de lata, uma peça de metal, o queé que é isso?

Tycho: Mais respeito, seu atrevido,veja lá como fala! Foi justamente emRostock que a coisa começou. Brigueicom um colega que dizia ser melhormatemático do que eu. Que audácia!Desafiei o atrevido para um duelo e omaldito cortou-me o nariz. Passei o res-to da vida usando essa prótese horro-rosa de metal. E ainda precisei andar oresto da vida com uma caixinha de umóleo xexelento para passar na malditapeça, a fim de mantê-la sempre no lu-gar.

Cleide: Que nojento!Tycho: É sim, aliás vamos mudar

de assunto, por favor.Alexandre: Ok, Tycho e depois de

Rostock?Tycho: Ainda tentei no ano seguin-

te voltar a Rostock, mas a justiça apli-cou-me uma multa devido ao tal duelo.Imagine se eu houvesse arrancado onariz daquele canalha. Em 1568 fui pa-ra a Universidade da Basiléia, na Suíça.A cidade é linda e bastante civilizada,bem junto ao rio Reno. Fiquei poucotempo por lá, mas guardei ótimaslembranças do local. Voltei para lá tem-pos depois. Aos vinte e seis anos, em1570, voltei para a Dinamarca e fuimorar com meu tio por parte de mãe,Steen Bille. Ele era um cara dinâmico,havia fundado a primeira fábrica depapel da Dinamarca. Ele era também oúnico na família, na época, que meapoiava no meu amor pelos astros.

Alexandre: Foi quando apareceuaquela supernova?

Tycho: É, eu estava morando nacasa do tio Steen. Ele tinha um labora-tório de Alquimia no porão. Mas nãofoi exatamente na época que voltei, foidois anos depois, em 1572.

Ciclamio: Oh, Tycho, então conta

direito como foi…Tycho: Pois é, eu havia passado a

noite em claro no laboratório de Alqui-mia do titio e olhando para o céu medeparei com uma estrela muito bri-lhante na constelação de Cassiopéia; elaera mais brilhante do que Vênus. Ima-ginem só, ela brilhava até durante odia! Não fui, claro, o primeiro a obser-vá-la, mas fiquei tão impressionadocom aquele fenômeno que chameioutras pessoas para testemunharemque eu não estava tendo uma aluci-nação.

Ciclamio: E daí, você ficou deslum-brado com o fenômeno, mas por que acoisa veio a tornar-se tão polêmica?

Tycho: Porquê segundo o grandeAristóteles o Cosmos era ordenadonum mundo sublunar, onde todos nósvivemos e onde existe corrupção.

Marcelo: E como existe!Tycho: É, mas eu estou falando de

corrupção em um sentido mais amplo,de mudança. Segundo Aristóteles, nessenosso mundo sublunar as coisas esta-riam sujeitas a mudanças, a transfor-mações. Já no mundo supralunar, nasesferas dos planetas e das estrelas, tudoseria perfeito e imutável. O mundo doscéus, sendo perfeito, não poderia mu-dar.

Rogério: E uma simples Nova cau-sou tanto reboliço?

Tycho: Sim; o aparecimento de umnovo objeto nos céus provocou umintenso debate: ele estaria localizadoabaixo ou acima da Lua? Se estivesseabaixo, tudo bem, mas se estivesse aci-ma o caldo entornava. Teríamos umamudança no céu antes tido comoimutável.

Cleide: E como você entrou nessadisputa?

Tycho: Os astrônomos todos corre-ram para determinar o local da talestrela Nova. Todos nós usávamos aidéia de tentar determinar a paralaxe,o deslocamento aparente daquele objetoem relação às demais estrelas. A idéiaera medir o ângulo de visada entre aestrela Nova e uma outra estrela, mu-dar de local e medir novamente. Se atal estrela Nova estivesse próxima daTerra ela deveria apresentar um deslo-camento angular aparente, uma para-laxe. O Maestlin de Tubingen, que foiprofessor do Kepler, vocês sabem, me-

diu e não encontrou paralaxe nenhu-ma; o Thomas Diggs, na Inglaterratambém. Mas as medidas deles erammuito imprecisas, de forma que quan-do eu resolvi medir a tal paralaxe comos meus novos instrumentos, toda aEuropa voltou sua atenção para o meutrabalho. Aquilo me colocou na vitrine.

Rogério: E qual o seu resultado?Tycho: Também não encontrei

qualquer paralaxe. A questão é quedentro da precisão em que minhasmedidas haviam sido feitas a tal estrelaNova deveria, no mínimo estar paraalém da oitava esfera das estrelas. Issofoi um golpe tremendo no dogma daimutabilidade do Cosmos aristotélicoque havia se tornado a visão da IgrejaCatólica.

Marcílio: Você era católico?Tycho: Não, eu era luterano! Não

muito convicto, é claro, pois semprefui um místico e, além disso, dado àsminhas carraspanas, mas ainda assimum luterano.

Rogério: E então?Tycho: Então eu pensei em publicar

aquilo, mas hesitei porque não ficavabem para um nobre publicar livros.

Jafelice: Não sabia que havia essepreconceito.

Tycho: É, havia, mas eu decidi rom-per com o preconceito e no ano seguintepubliquei um livro sobre a tal estrelaNova, o título era: Sobre a Nova EstrelaNunca Vista Antes. Parece que recente-mente traduziram esse meu livro parao português. Algum de vocês viu o li-vro?

Marcelo: É, parece que saiu umaedição uns tempos atrás pela editoraNova Stella, mas é coisa rara de se en-contrar.

Tycho: O interessante é que logoapós esse evento, em 1574, alguns no-bres mais jovens da corte em Copenha-gue me pediram que lhes desse umasaulas de Astronomia e que falasse sobreminha descoberta a respeito daquela es-trela Nova. Mais uma vez, hesitei. Daraulas não era coisa para nobres. Ensinaré coisa de pobre.

Osmar: Puxa, você acha isso, é?Aqui todos nós somos professores, sa-bia?

Tycho: Claro que sabia. Algum devocês aqui é rico? Ou pensam que sóporque já morri há tanto tempo podem

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me enrolar?Rogério: E eu que já estava pensan-

do em convidá-lo para dar uma pales-tra lá no Colégio sobre a história daciência e as novas diretrizes dos PCN...

Tycho: Bom, de qualquer modo eudei as tais aulas na Universidade de Co-penhague. No íntimo eu me sentia felizde falar sobre coisas que nenhum outropoderia falar, pois ninguém tinha apossibilidade de fazer medidas tãoprecisas quanto as minhas. Lembrandoque o próprio Rei pediu-me para daras tais aulas, vemos que eu não tinhacomo escapar. No ano seguinte, em1576, eu já era famoso por toda a Euro-pa. Decidi, então, desfrutar da minhafama e fazer uma longa viagem encon-trando-me com astrônomos por todoo continente. Aproveitei para rever aBasiléia e pensei mesmo em me estabe-lecer por lá. Meu Rei, Frederico II, ficoumuito preocupado com a possibilidadede perder os meus serviços de astrólogoreal e ofereceu-me vários castelos paraque eu voltasse à Dinamarca. Recuseitodos eles, mas quando ele me ofereceu,em 1576, a posse da ilha de Hven emuitos recursos materiais paraconstruir um castelo e um observa-tório, do modo que eu desejasse, resolviaceitar. Hven, que atualmente é cha-mada apenas de Ven, significava a ilhado céu. Ela fica no meio da baia que seestende entre a Dinamarca e a Suécia.Na época pertencia à Dinamarca, hojepertence à Suécia.

Marcelo: Não é da minha conta,mas quanta grana você ganhou paraconstruir esse tal castelo e o tal observa-tório?

Tycho: Foi muito dinheiro mesmo.Para você ter uma idéia, a quantiaequivalia a aproximadamente 10% doorçamento da Dinamarca. Nem oprojeto Apolo dos americanos para che-gar à Lua, mobilizou, proporcional-mente, tantos recursos de uma nação.

Osmar: Puxa, era dinheiro muito!E o que você construiu por lá?

Tycho: Construí Uraniborg, o“Castelo dos Céus”, um imenso paláciode três andares especialmente projetado,sob minha supervisão, por um arqui-teto alemão, para ser o maior observa-tório astronômico do mundo. Ele tinhauma ótima biblioteca e uma grandequantidade de instrumentos de madei-

ra e bronze, como quadrantes, astrolá-bios, réguas de paralaxe, esferas armi-lares e relógios dos mais precisos. E tudogigantesco e em dobro. Uraniborg erasuntuoso, tinha instalações luxuosaspara mim e acomodações para váriosestudantes de Astronomia e para todauma equipe de ajudantes. Tinha jardins,laboratório de alquimia no porão, tinhauma gráfica, uma fábrica de papel etinha até enormes salões de festa. Porfalar nisso, eu dava festas incríveis, àsquais compareciam nobres, príncipese até reis. Eu tinha até um anão parafazer graças nas minhas festas e tinhatambém o meu alce de estimação.

Marcelo: Você criava um alce den-tro do seu castelo? Foi isso que euentendi?

Tycho: Isso! Ma s o bicho morreude uma queda na escada. Fiquei muitotriste.

Cleide: E de onde vinha todo essedinheiro em um Estado tão pequenocomo a Dinamarca?

Tycho: Vinha, principalmente, dasriquezas que haviam sido expropriadasda Igreja com a Reforma Protestante.Sem ela, não teria havido Uraniborg.

Marcelo: Agora você contou o pulodo gato, companheiro.

Tycho: Pois é, Uraniborg era paramim uma festa em todos os sentidos,dos prazeres intelectuais aos prazeresda vida. Lá tive muitos filhos, dei festas,e, sobretudo, observei atentamente océu, com a ajuda dos meus instrumen-tos e dos meus auxiliares. Dos instru-mentos já falei. Dos estudantes vale apena falar um pouco.Tive vários e muito ta-lentosos. Uraniborgera mais que umobservatório era umaverdadeira escola deAstronomia. Forammeus discípulos emUraniborg, dentre ou-tros, Peder JacobsenFlemlose, John Ham-mond, Elias OlsenMorsing, GelliusSascerides, Paul Wit-tich, Willem JanszoonBlaeu e, acima de to-dos, Christian Soren-sen, conhecido comoLongomontanus ,

meu principal auxiliar.Marcílio: E o Kepler? Ele não foi seu

aluno nessa época?Tycho: Não! Na verdade este senhor

nunca foi propriamente meu aluno,mas apenas meu ajudante e só o conhe-ci perto de morrer, quando já estavamorando em Praga. Ele havia estudadocom o Maestlin, em Tubingen. Chega-remos lá.

Marcelo: Parece que você não tinhamuita simpatia pelo Kepler.

Tycho: Realmente, ele era teimosocomo eu; e dois bicudos não se beijam.Isso é um assunto para falar depois,mas já que perguntaram, aqui vai aresposta. Na verdade só aceitei o Keplercomo meu ajudante em Praga, porqueconfiava nos seus dotes matemáticose, estando no fim da vida, acreditavaprecisar da sua ajuda para estabelecera veracidade do meu modelo do Cos-mos. Longomontanus havia falhadonaqueles cálculos para ajustar a órbitade Marte. E Kepler, por seu lado, queriamesmo era botar a mão nos meusdados para tentar provar as idéias dele,que eram bem diferentes das minhas,sobre o Cosmos. Ele era um interesseiroe um chato.

Rogério: Agora eu me atrapalheitodo. Kepler não era seu discípulo? Oslivros didáticos dizem que você deixouos seus dados para ele e insinuam queele continuou a sua obra. Não foi isso?

Tycho: Uma ova! O Kepler, comojá disse, pensava bem diferentementede mim. Ele só queria os meus dados.E é mentira essa história de que deixei

Esboço de Uraniborg, o observatório de Tycho, que começoua ser construído em 1576.

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26 Física na Escola, v. 2, n. 2, 2001Entrevista com Tycho Brahe

os meus dados para ele. Eu nunca fariaisso. Os dados ficaram com a minhafamília. Ele se apossou de boa parte dosdados após a minha morte.

Rogério: O negócio está ficandoconfuso.

Jafelice: É Tycho, o Rogério tem ra-zão, eu já vi coisas assim nos livrosdidáticos; que você e o Kepler eram cha-pinha um do outro.

Tycho: Já estou perdendo a paciên-cia, esses tais livros didáticos de vocêscontam absurdos. Leiam, por exemplo,o livro que o Thoren escreveu a meurespeito.

Marcelo: Calma Tycho, senão o seunariz cai no chão.

Tycho: Olha, deixa eu voltar ahistória para quando morava ainda emUraniborg e aí vocês vão entender. Em1577 surgiu aquele famoso cometa eeu me lancei à tarefa de medir a suaposição, determinar se ele estava nomundo sublunar e se era, portanto, umfenômeno atmosférico, como muitospensavam, ou se estava no mundosupralunar. Meus estudos foram deta-lhados; àquela época eu já levava emconta até a correção da posição dosastros devido à refração da luz e comos meus muitos e gigantescos instru-mentos pude medir tudo com bastanteprecisão. Como já disse, Uraniborg ti-nha dois conjuntos separados de ins-trumentos, de modo que as medidaseram sempre feitas, simultaneamente,em dobro. Pois bem, as minhasobservações levaram-me a concluir queo tal cometa não apenas era um fenô-meno supralunar, assim como anteshavia constatado para aquela estrelaNova de 1572. Descobri também queele cruzava as várias esferas celestes.Isso abalou muito as crenças cosmoló-gicas da época. A Igreja não respondeuàs minhas observações, mas as taisesferas de cristal que sustentavam osplanetas foram caindo em desuso. Ago-ra só se falava em órbita dos planetas,não mais em esferas.

Rogério: Foi por essa época que vocêrompeu com o dogma aristotélico?

Tycho: Na verdade eu nunca rompicom o dogma aristotélico, eu semprefui, no fundo, um aristotélico. Eu acre-ditava que os corpos que caem, caemporque precisam realizar seu intentode buscarem o centro do Universo, o

centro da Terra. Se por um lado eu jánão aceitava o modelo de Ptolomeu,que conduzia a enormes falhas nos cál-culos das posições dos astros, por outrolado, eu ainda era, no fundo, um geo-centrista. Eu não aceitava de modoalgum o modelo copernicano.

Jafelice: Mas você não havia con-tribuído para desafiar o velho cosmosaristotélico?

Tycho: Havia, e daí?Rogério: Ora, se desafiou a crença

aristotélica da imutabilidade dos céus,de certo modo pode-se dizer que vocêcriou um clima propício para a acei-tação das idéias de Copérnico e poste-riormente das de Galileu, certo?

Tycho: Certo, mas isso foi contra aminha vontade. Veja lá. Eu tinha boasrazões para não ser um copernicano.Qualquer astrônomo de juízo, à minhaépoca teria. Duvido que você fosse umcopernicano se houvesse tido acesso aosdados que eu tive.

Marcelo: Como assim?Tycho: Eu estava empenhado em

determinar a paralaxe das estrelas. Seo sistema copernicano fosse verdadeiroentão a Terra se moveria ao redor doSol, certo?

Rogério: Certo!Tycho: Pois bem, se a Terra se mo-

vesse em torno do Sol, como queria oCopérnico, nós deveríamos ver as estre-las sofrerem deslocamentos aparentes,paralaxes, certo? Lembre-se que apósaproximadamente seis meses, entre operiélio e o afélio, estaríamos do outrolado da órbita da Terra em torno doSol, certo?

Ciclamio: Certo!Tycho: Pois bem, eu medi com a

maior precisão possível as posições dasestrelas com seis meses de intervalo. Equal a paralaxe que achei? Nenhuma,absolutamente nenhuma! Então o queeu poderia concluir?

Marcílio: Sim, o que você poderiaconcluir?

Tycho: Quem perguntou isso fuieu, responda você! Está vendo porqueeu não gosto de ensinar?

Osmar:: Calma Tycho, o Marcíliotem razão; não está claro o que vocêdeveria concluir.

Tycho: Pois preste atenção! Eupoderia concluir duas coisas, ou umaou a outra. A primeira, é que a falta de

paralaxe indicava que a Terra não semovia, como queria o Ptolomeu; e asegunda, é que as estrelas estivam tãodistantes que o Universo deveria serpraticamente infinito, como queria oCopérnico. O que é que você concluiria?

Marcílio: Que o Universo é infinito.Tycho: Uma ova! Você diz isso por-

que leu nos livros, criou-se numa cul-tura heliocentrista, é um copernicanode berço, não de reflexão.

Marcílio: Olhe aqui Tycho, euagora me enfezei. Eu sou nordestino edou-lhe um murro nesse seu nariz delata se você não retirar o que disse. Tápensando que só porque você já morreupode vir aqui tirar onda com a minhacara?

Cleide: Calma Marcílio, o homemjá morreu faz tempo.

Jafelice: É pessoal, vamos ter calmae ouvir o resto da argumentação doTycho.

Tycho: Fiquem sabendo os senho-res que não arredo o pé; aliás foi porcoisas desse tipo que perdi o meu nariz.Mas vejam lá: das duas respostas pos-síveis, a de admitir que o Universo fossepraticamente infinito pareceu-meabsurda, como pareceu a quase todomundo naquela época. Por outro lado,admitir que a Terra estava parada nocentro do Universo era muito convi-dativo. Eu optei por essa resposta. Ape-sar de haver abalado as estruturas doedifício aristotélico, de chegar a formu-lar duas possibilidades de resposta para

Quadrante construído por Tycho.

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27Física na Escola, v. 2, n. 2, 2001 Entrevista com Tycho Brahe

o problema, eu escolhi a mais conser-vadora das duas. A outra pareceu-meuma loucura. E aí fiquei com um enor-me problema para resolver: encontrarum outro modelo, uma terceira via,nem Ptolomeu, nem Copérnico, en-tendeu?

Rogério: Estou entendendo. E ai co-mo você criou esse seu modelo?

Tycho: Foi já por volta de 1583 queeu me inspirei no antigo modelo deHeráclides do Ponto, um antigo pita-górico meio esquecido, para criar o meupróprio modelo. O meu modelo eramuito semelhante ao dele. Sem explicaragora os detalhes técnicos, a coisa eramais um menos um compromisso en-tre o melhor dos dois sistemas, o dePtolomeu e o de Copérnico. Os planetasgiravam em torno do Sol, não mais daTerra, como queria Copérnico; no en-tanto, o Sol e os planetas com ele, gi-ravam todos juntos em redor da Terra.Aquele modelo de compromisso pare-cia-me esteticamente perfeito, eu sóprecisava encontrar as peças de evidên-cia. Foi ai que mergulhei febrilmentena coleta de dados observacionais queapoiassem o meu sistema.

Jafelice: Mas qual era a vantagemdesse seu sistema em termos explica-tivos, em relação aos outros dois?

Tycho: Olha, os livros didáticos devocês mal falam no meu nome. Muitospensam, quando ouvem falar que eutinha um outro modelo, que o doCopérnico era melhor que o meu. Issoé um tremendo engano. Mais que umengano, isso é uma enorme injustiçapara comigo. Meu modelo veio depoisdo de Copérnico. Eu, claro, havia lidoas coisas do Copérnico e minhas previ-sões eram mais precisas que as dele na-quele momento.

Osmar: Oh, Tycho. Você não estápuxando a brasa para a sua sardinha?

Tycho: Não senhor. Lembre-se queo modelo do Copérnico só ficou maispreciso que o meu depois que o malditodo Kepler sacou aquela coisa das elipses.E a aceitação das idéias do Copérnico,depois de modificadas pelo Kepler, sóveio também após a nova Física doGalileu e do Newton darem à teoria doCopérnico um respaldo que a Física doAristóteles não podia dar. Mas à minhaépoca, a minha teoria era melhor quea do Copérnico, disso eu não tenho dú-

vidas, companheiro. É que tem certascoisas que só conheci depois de morto,como a Física do Galileu e do Newton,e aí não dava mais, né?

Rogério: Estou gostando desse seupapo, mas onde é que eu posso ler algodesse tipo?

Tycho: Recentemente mesmo, em2000, o European Journal of Physics pu-blicou um artigo da Forinash e doRumsey sobre um curso de história daciência para estudantes de Física quefala nisso. Dê uma olhada.

Osmar: Você lê muito em cara?Para um morto, você tá bem atua-lizado.

Tycho: É, eu leio tudo o que apareceao meu respeito e sobre Física lá nabiblioteca do céu.

Jafelice: Oh, Tycho. Eu ainda estoucurioso de saber quais as loucuras quevocê via no modelo do Copérnico.

Marcílio: É isso aí. Para mim omodelo do Copérnico é que está certo.O seu tá errado.

Tycho: Oh espertinho, se o modelodo Copérnico está certo, por que vocêchama ele de “modelo”?

Marcílio: Espertinho é a suavovozinha, seu nariz de lata. Vamosconversar lá fora!

Jafelice: Calma, calma! Eu querosaber o que o Tycho tinha tanto con-tra o modelo do Copérnico.

Tycho: Bem, em primeiro lugar, euevitava aquilo que me parecia uma lou-cura do sistema do Copérnico. Comoos corpos devem cair para o centro doUniverso, segundo Aristóteles, se a Ter-ra não estivesse no centro do mesmo,como dizia o Copérnico, nós veríamosos corpos caírem na direção desse talcentro, o Sol, por exemplo, e não comovemos na realidade, em direção aocentro da Terra. E em segundo lugar...

Ciclamio: Espera ai Tycho, esse seuargumento não está legal. Você estárejeitando a idéia do Copérnico dizendoque está baseado em observações darealidade da queda dos corpos, mas aodescrever tais observações você já incor-pora, implicitamente, a concepçãoaristotélica de que cair significa dirigir-se ao centro da Terra.

Tycho: Muito inteligente a suaobservação, meu jovem. Se eu aindaestivesse vivo eu o contrataria para tra-balhar comigo.

Ciclamio: Obrigado; como eu moroperto do cemitério e o meu salário nãoé lá essas coisas, estou já pensando emaceitar a sua oferta de antemão.

Tycho: É, meu caro, mas percebaque se minhas observações da quedados corpos estavam, como vocês dizematualmente, carregadas de teoria, issonão é menos verdade para as suasteorias atuais. Toda observação na ciên-cia sempre esteve carregada de teoria,não apenas as minhas.

Marcílio: Como assim, Tycho? Euquando ensino Física sei, muito bem,que ela é uma ciência experimental. Queas leis que ensinamos saem todas daobservação, sem preconceitos teóricosdo tipo desse seu.

Tycho: Engano seu, caro colega.Apesar de morto, continuo lendo as coi-sas que os meus sucessores escreveram.Quando você ensina a primeira lei deNewton, por exemplo, diz que se ne-nhuma força atuar sobre um corpo elepermanecerá em estado de repouso oude movimento retilíneo uniforme.

Osmar: Mas claro, pois isso podeser demonstrado experimentalmente.

Tycho: Onde? Como? Pode coisa ne-nhuma! Por que vocês não fazem umaentrevista também com o Newton oucom o Galileu sobre esse assunto?

Jafelice: Faremos isso, mas por en-quanto continue o papo sobre a suahistória. Quais eram as outras loucurasdo modelo do Copérnico?

Tycho: Além da que acabei de falarsobre essa doidice de os corpos teremde cair em direção ao Sol, no meu modoaristotélico de ver as coisas, tinha tam-bém o fato de que se a Terra estivessegirando os corpos não cairiam aos pésdos locais em que haviam sido soltos,como sabemos que caem, mas paratrás destes pontos. Os pássaros nãoconseguiriam voar devido ao vento daTerra se deslocando no espaço. São coi-sas dessa natureza, e para completartinha o fato de que eu não havia achadoqualquer paralaxe para as estrelas, oque ao menos para mim indicava quea Terra deveria estar parada no centrodo Universo.

Alexandre: Você estava coberto derazão, vendo as coisas do seu ponto devista aristotélico. Suas observações,interpretadas com os olhos teóricos doaristotelismo, só poderiam tê-lo levado

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28 Física na Escola, v. 2, n. 2, 2001Entrevista com Tycho Brahe

às conclusões que chegou. O problemanão estava nas suas observações, masna necessidade de uma outra Física,radicalmente diferente da de Aristóteles,para dar um sentido completamente di-verso naquilo que você estava obser-vando. E isso só veio com o Galileu ecom o Newton.

Tycho: Obrigado pela compreen-são. Vocês deveriam conversar tambémcom o Ernest Mach sobre essas coisas.

Jafelice: Também já está na nossaagenda.

Tycho: Posso continuar minhahistória?

Alexandre: Claro, vá em frente,mas fale um pouco das suas maldadescom os camponeses lá na ilha de Hven.

Tycho: É, eu era um pouco exi-gente.

Alexandre: Exigente? Os historia-dores dizem que você era cruel, queexplorava os pobres camponeses a umponto que até o Rei se revoltou. Dizemque você possuía uma cadeia em Urani-borg onde trancafiava quem você que-ria. Isso é verdade?

Tycho: Bem, isso já faz muito tem-po, não me lembro direito, mas eu tinhauma cadeia sim, para colocar lá os tei-mosos, aqueles que não concordassemcom as minhas ordens.

Ciclamio: Declino do convite de serseu assistente.

Tycho: O que me lembro bem é quea coisa piorou em 1588, quando o ReiFrederico II morreu de uma bebedeira.

Marcelo: Como é, o Rei Frederico IImorreu de que?

Tycho: De uma bebedeira, de umporre exagerado. O Vedel conta issodireitinho no livro dele sobre a históriada Dinamarca.

Rogério: E o que é que mudou comisso?

Tycho: Mudou muita coisa. Frede-rico sempre havia me apoiado, eu haviaprestado bons serviços para ele.

Alexandre: De que tipo?Tycho: Vários tipos. Eu sempre fiz

previsões astrológicas para ele. Eu faziatodo ano uma espécie de prognósticoastrológico do que poderia acontecer.Em 1577, ano que aquele cometa apa-receu, eu fiz um prognóstico especial.Além disso eu, como um discípulo deParacelsus que sempre fui, preparavaremédios no meu laboratório de Alqui-

mia. Os livros didáticos de vocês nãofalam disso, mas foram aquelas coisasque garantiram o apoio do Frederico.Eu fiz também os horóscopos de todosos seus filhos ao nascerem, até o dodesgraçado do Cristiano IV.

Rogério: Quem era esse tal Cristia-no IV, por que essa raiva dele?

Tycho: Cristiano IV era o filho maisvelho do Frederico, que assumiu o tro-no em 1588 com a morte do pai. Eleera muito jovem e não gostava de mim.A coisa foi degenerando. Eu não era lánenhuma flor, mas tinha uma compe-tência reconhecida mundialmente, en-quanto o Cristiano IV era um jovemidiota, que vivia me mandando carti-nhas com reclamações. Mas a históriavingou-se dele, reduzindo-o à suainsignificância. Quem se lembra doCristiano IV?

Jafelice: Eu nunca tinha ouvido fa-lar.

Rogério: Nem eu.Alexandre: Eu sabia que ele havia

brigado com você e que por isso vocêterminou abandonando a Dinamarcae Uraniborg.

Tycho: Olha ai! Ele só entrou nahistória nas minhas costas. Ele ficavame exigindo satisfação para tudo. Che-gou ao ponto que eu não podia maistrabalhar nas minhasobservações, nas mi-nhas idéias. Foi ai, em1597, que resolvi porum fim naquilo tudo.Arrumei todas as mi-nhas coisas, desmonteie empacotei meus gi-gantescos instrumentose sai pela Europa pro-curando um lugar ondepudesse trabalhar bem eem paz. Mas antes desair dei alguns conse-lhos para as próximasgerações que ficaramfamosos.

Rogério: Quais?Tycho: Anotem ai,

isso está escrito em vá-rios lugares, podem ci-tar à vontade. Primeiro:um cientista tem que teruma mente cosmopolita,pois não pode esperar ja-mais que autoridades

ignorantes apreciem o valor do seutrabalho.

Cleide: Gostei!Alexandre: Eu também!Tycho: Pois é, e passei a procurar

um local de trabalho baseado em umaidéia central: minha pátria é onde eu mesinta bem e tenha um céu por cima paraser observado. E lá fui eu pela Europacom os meus troços embaixo do braço.

Alexandre: Mas você ainda tentouvoltar à Dinamarca, não foi? Tentoufazer as pazes com o Cristiano IV, nãoé verdade?

Tycho: É, mas não deu mais mes-mo. Eu exigi o que merecia e o Cristianomandou eu esquecer. Miserável!

Osmar: E onde você foi parar?Tycho: Bem, eu perambulei um

pouco, porque sempre fui muito exi-gente.

Marcílio: Alguma Universidadeofereceu-lhe algum cargo?

Tycho: Várias, mas não era o queeu queria. Já em 1577, no ano docometa, fui indicado para ser Reitor daUniversidade de Copenhague. Pensa-ram que aquilo seria uma honra paramim; ledo engano. O que eu queria erame concentrar nos meus afazeres inte-lectuais e mundanos. Recusei o convitee acho que muitos se espantaram com

Anotações de Tycho sobre o cometa de 1577.

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isso. Pois bem, vinte anos depois, apóssair da Dinamarca, em 1597, peram-bulei pela Europa com a minha famíliae os meus instrumentos.

Rogério: Que idade você tinha?Tycho: Tinha 51 anos, já era um

velho.Rogério: Qual é, você ainda era jo-

vem.Tycho: Eu já era meio gasto; mui-

tas noites sem dormir, a vida inteiraolhando para os céus ou para coisasainda mais bonitas, você sabe, e be-bendo, bebendo muito.

Osmar: Puxa, você não era lá umexemplo de vida para os nossos jovens.Acho que você, Rogério, não deveriafalar desse cara nas suas aulas de Física.

Tycho: Meu amigo, a ciência sem-pre foi construída por homens nor-mais, com virtudes e com defeitos,como eu. Essa coisa de ficar enfeitandosó complica, falseia a história. Se quisercontar estórias da carochinha continuedizendo que o Kepler, aquele chato, eracomo um filho para mim, e que eu dei-xei os meus escritos para ele e ele conti-nuou o meu trabalho. Agora, que issoé conversa fiada, é!

Osmar: Puxa, como você é chatocara!

Marcílio: Eu também estou achan-do. Segura ele que eu meto a mão.

Tycho: Não é questão de ser ou nãoser chato. A questão é saber se vocêsquerem ainda contar a história, mesmoque ela contenha detalhes que não lhespareçam convenientes. Porque, geral-mente, o que se conta são mitos e nãohistória.

Jafelice: Você quer dizer a históriados vencedores.

Tycho: Isso! Eu só sou convidadoa entrar na história nos livros didáticosse me encaixar em uma linha de conti-nuidade da história dos que venceram.Mas, mesmo levando em conta meuspontos de vistas vencidos, eles aindaassim são fundamentais para você en-tender porque o trabalho do Galileu,após a minha morte, foi tão necessáriopara a aceitação das idéias de Copérnico.Sem compreender o meu pensamento,fica um certo hiato nesse relato todo.As pessoas não se dão conta de que ini-cialmente as idéias de Copérnicopareciam coisas de doido. E tem mais oimpulso monumental que eu dei à

Astronomia. O Jafelice e o Ciclamio,que trabalham com isso, sabem que amoderna Astronomia é construída emum jogo entre observações quantita-tivas e teorias que possam ser testadase que tentem explicar aquelas observa-ções segundo algum raciocínio mate-mático. Pois bem, essa atitude obser-vacional rigorosa começa comigo.Agora, não dá para querer que eu racio-cinasse interpretando a realidade obser-vada com a Física do Galileu e do New-ton se eles apenas nasceram depois queeu morri. Sacou?

Osmar: É, acho que percebi ondevocê quer chegar. Vou conversar como Rogério de novo a seu respeito.

Marcílio: No fundo, acho que vocêestá certo. Peço desculpa por ter perdidoa paciência momentos atrás.

Ciclamio: Dá para concluir a suahistória?

Tycho: Pois é, eu sai pela Europa,já meio gasto, isso em 1597, com mi-nha família e os meus instrumentos.Passei por várias cidades alemãs, dentreelas Wandsbech, perto de Hamburgo.Lá tive uma idéia brilhante: dedicar omeu novo livro ao Imperador RodolfoII. Autoridades adoram esse tipo dehomenagem.

Marcelo: Até hoje, companheiro.Aqui no Brasil, nós chamamos isso debajulação.

Tycho: Pois é, no fundo as autori-dades se sabem insignificantes e comum pouquinho de jeito, fingindo queeles são pessoas admiráveis, a genteconsegue chegar lá.

Marcílio: Já não estou gostandodesse cara, de novo. Puxa saco!

Rogério: Oh, Marcílio, deixa o Ty-cho terminar a história dele.

Tycho: Pois bem, foi em Wandsbechque eu escrevi o livro sobre os meusfamosos instrumentos. Chamava-se:Instrumentos para a Astronomia Restau-rada. Aquela dedicatória surtiu efeito eano seguinte de 1599 o ImperadorRodolfo II convidou-me para estabe-lecer-me em Praga como MatemáticoImperial. Ofereceu-me um salárioanual de 3000 florins e um castelo daminha escolha. Aceitei na hora e mudei-me para Praga.

Osmar: Quer dizer então que vocêfoi ser professor de Matemática, no fimda vida, mesmo contra a sua vontade?

Tá vendo? Teve que dobrar a sua língua.Tycho: Que nada, eu não fui dar

aula nenhuma!Marcílio: E era matemático de que?

Fazia contas para que, só para arrumaro seu modelo astronômico?

Tycho: Bem, eu gastava o meutempo, essencialmente, com três coisas:fazer os horóscopos que o Imperadoresperava, tentar ajustar o meu modelocosmológico às observações coletadase beber.

Marcelo: Isso, companheiro, águafaz mal à saúde, enferruja o organismo.

Rogério: Mas qual era a sua preo-cupação com o seu modelo?

Tycho: Eu tentava a todo custo fa-zer cálculos que ajustassem as minhasobservações ao meu modelo cosmoló-gico, pois àquela altura já tinha umcalhamaço de anotações compiladas.Mas havia problemas, principalmentecom os dados da órbita de Marte. Elesnão se encaixavam direito e eu tinhacerteza de que as observações estavamcorretas. O Longomontanus, que eraum grande matemático e havia ido co-migo para Praga, vinha trabalhandohá muito naquilo, sem obter sucesso.Tentei, em desespero, retomar minhasobservações, corrigir possíveis falhas,pois já não sabia mais o que fazer, maseu já havia perdido minha energia, jánão era mais o mesmo dos tempos deUraniborg. Foi então que decidi, com oapoio do Imperador, contratar novosauxiliares. Ao Longomontanus vieramjuntar-se novos e talentosos astrôno-mos: David Fabricius, Johannes Muel-ler, Melchior Joestelius e o Kepler.

Rogério: Quer dizer que o Keplerchegou, assim, no final da festa?

Tycho: Isso! Mas ele era muito ta-lentoso, apesar de ser teimoso comouma mula e muito chato. Eu dei paraele o problema da órbita de Marte, poisele me parecia incansável, dedicando-se de corpo e alma a tentar resolver oproblema com o qual estivesse envol-vido. Ele de início tinha umas idéiasinteressantes, mas que me pareciammeio loucas; aquilo de acreditar que asórbitas dos planetas se encaixavamsegundo esferas dentro dos sólidosplatônicos. Ele era bem mais pitagóricodo eu, acreditava também naquela his-tória do fogo central do Filolau e coisasassim. Se bem que para fazer justiça,

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àquela altura ele já era um copernicano.Eu esperava que ele tomasse os meusdados e ajustasse os mesmos ao meumodelo e não àquela sua antiga malu-quice de esferas centradas em sólidosplatônicos ou ao modelo copernicano,mas não vivi o suficiente para ver osresultados. Eu tinha muito receio quecom a minha morte ele usasse os meusdados para detratar o meu modelo epara tentar provar algumas daquelassuas loucuras. Por isso, eu jamais teriadeixado meus dados para ele. Sem mimpor perto para vigiar o seu trabalho,Deus sabe o que aquele maluco genialfaria. Depois da minha morte, todossabem, ele virou tudo pelo avesso. Pe-

gou os meus dados, mas os meus dadospegaram ele.

Cleide: Como assim? Como os seusdados pegaram ele?

Tycho: Ele não cumpriu o nossoacordo. Como falei, só mostrei a ele osmeus dados com o compromisso deque trabalhasse no meu modelo cos-mológico. Mas ele, quando eu morri,tentou desenvolver o dele a partir dosmeus dados, mas quebrou a cara. Foiai que os meus dados pegaram ele. Eleàquela altura já era mesmo um coper-nicano convicto e usou os meus dadospara tentar validar o modelo de Copér-nico, mas a maldição da órbita de Martetambém o perseguiu. Passou muitosanos atormentado até chegar na talidéia da elipse. Eu não digo, como oslivros didáticos que vocês costumamusar, que ele descobriu as suas leis apartir dos meus dados, mas apenas quefazendo justiça à precisão das minhasmedidas, foi forçado a abandonar asórbitas circulares copernicanas, assimcomo já havia abandonado antes o seumodelo de sólidos platônicos e tambémo meu querido modelo.

Rogério: Mas não foi melhor as-sim? Sem os seus dados não haveria asleis de Kepler.

Tycho: É, pode ser que sim! Vendonessa sua perspectiva histórica dá atépara aceitar. Mas eu não vivi pra verisso. No fundo, não era isso que eu que-ria que ele fizesse.

Rogério: E ai, como é que você mor-reu?

Tycho: Morri em Praga no dia 24de outubro de 1601, como, não sei aocerto. Sempre pensei que soubesse.

Marcelo: Como assim?Tycho: Tenho certeza de que morri

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após uma tremenda bebedeira. Foi umporre daqueles.

Marcelo: Igualzinho ao Rei Frede-rico II, seu antigo protetor.

Tycho: Isso! Só que a coisa foi umpouco diferente. As versões oficiaiscontam que eu bebi muito e fiqueienvergonhado de sair para urinar, napresença dos nobres, e continuei be-bendo. Aquilo teria me causado umaruptura da bexiga e uma infecção uri-nária que me levou à morte.

Rogério: E por que você diz que nãosabe mais como morreu?

Tycho: Porque recentemente unspesquisadores analisando fios do meucabelo detectaram traços de chumbo econcluíram que eu poderia ter sidoenvenenado, quem sabe pelo chumbomisturado nesse grude que usava nonariz.

Alexandre: E você, pessoalmente,o que acha disso?

Tycho: Eu, é... Toss, toss, toss, toss!.Que horas são, gente? Toss, toss! Já ter-minou o jogo do Fluminense? Vou aobanheiro.

Marcelo: Sujou! O Fernando voltoua si logo agora. Vamos ficar sem sabercomo é que o Tycho morreu.

Rogério: Mas valeu a visita e opapo, aprendi muitas coisas sobre eleque acho que dão para encaixar na salade aula.

Marcílio: Sei não bicho, acho me-lhor a gente conversar é com o Kepler eescutar a versão dele.

Jafelice: Está combinado. Assimque o nosso grupo umas e outras voltara se reunir, vamos encher a cara do PaiFernando de Niterói e conversar com oKepler.

Risos!!!!

Busto de Tycho.