entrevista matilde campilho

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  • 7/24/2019 Entrevista Matilde Campilho

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    PERNAMBUCO, MARO

    CARTA DO EDITOR

    Quantas jogadas adiante a literatu-ra consegue prever? Em ensaio sobreConcentrao e outros contos, coletnea doescritor Ricardo Lsias, lanamento doselo Alfaguarra, Priscilla Campos de-

    bate as manobras enxadristas de umautor que escreve consciente do quodesnorteantes podem ser as estratgiasliterrias. Quando um escritor conheceo estado de selvageria presente na lin-guagem inevitvel que sua literaturarena movimentos to avassaladoresquanto os dos redemoinhos martimos incompreensveis em alguma medi-da, desconcertantes por completo, elaescreve. Conto a conto, o texto procuracriar paralelos entre a obra de Lsias eteorias literrias como a da autofico,termo que se tornou recorrente na cr-tica no apenas na literatura contem-pornea brasileira, mas com especialfora na discusso sobre o trabalhodesse escritor paulista.

    Esta edio traz tambm um relatontimo, pessoal e intransfervel da poetaportuguesa Matilde Campilho sobre arelao de afeto e posterior desapego

    GOVERNO DO ESTADODE PERNAMBUCOGovernadorPaulo Henrique Saraiva Cmara

    Vice-governadorRaul Henry

    Secretrio da Casa CivilAntonio Carlos Figueira

    COMPANHIA EDITORADE PERNAMBUCO CEPEPresidenteRicardo LeitoDiretor de Produo e EdioRicardo MeloDiretor Administrativo e FinanceiroBrulio Meneses

    CONSELHO EDITORIALEverardo Nores (presidente)

    Lourival HolandaNelly Medeiros de CarvalhoPedro Amrico de FariasTarcsio Pereira

    SUPERINTENDENTE DE EDIOAdriana Dria Matos

    SUPERINTENDENTE DE CRIAOLuiz Arrais

    EDIOSchneider Carpeggiani e Carol Almeida

    REDAO

    Dudley Barbosa (reviso), Marco Polo, Mariza Pontes eRaimundo Carrero (colunistas), Fernando Athayde, LasArajo e Priscilla Campos (estagirios)

    ARTEJanio Santos e Karina Freitas (diagramao e ilustrao)Pedro Ferraz (tratamento de imagem)

    PRODUO GRFICAEliseu Souza, Joselma Firmino, Jlio Gonalvese Sstenes Fernandes

    MARKETING E PUBLICIDADEDaniela Brayner, Rafael Lins e Rosana Galvo

    COMERCIAL E CIRCULAOGilberto Silva

    PERNAMBUCO uma publicao da

    Companhia Editora de Pernambuco CEPERua Coelho Leite, 530 Santo Amaro RecifeCEP: 50100-140

    Contatos com a Redao3183.2787 | [email protected]

    COLABORADORES

    E MAIS

    Pio Figueiroa,fotgrafoe diretor de cena. Foium dos fundadores docoletivo Cia da Foto.

    Alejandra Rojas C., tradutora. Cesar Cuadra Bastidas, escritor e crtico chileno que, entre outras, atua como professor de Literatura no Departamento de EstudiosHumansticos da Facultad de Ciencias Fsicas y Matemticas da Universidad de Chile. Matilde Campilho, escritora portuguesa. Renata Beltro, jornalista. RodrigoCasarin, jornalista. William Golding, escritor ingls e ganhador do Prmio Nobel.

    Priscilla Campos,jornalista comdestaque em matriassobre literatura.

    Juliana Bratfisch, mestreem Literatura Francesapela Universidade de SoPaulo. Traduziu Deboutsur la langue| De p sobrea lngua, de AntoineWauters, publicado em2011 pela Lumme Editor.

    que ela criou com Jquei, seu primeirolivro, que foi eleito um dos principaislanamentos em Portugal de 2014; umartigo de Carol Almeida que repercuteas novas representaes ps-modernas

    da literatura a partir de uma lista dos20 romances mais importantes dessesltimos 15 anos, com particular atenopara Chimamanda Ngozi Adichie, ZadieSmith, Junot Daz e seus personagensperifricos; e uma entrevista com o es-critor Reinaldo Moraes, cedida a RodrigoCasarin, na qual ele afirma que nuncausaria de eufemismos poticos parafalar de sexo.

    Dando sequncia aos artigos que pon-tuam os 200 anos sem o Marqus deSade, publicamos tambm um texto dapesquisadora Juliana Bratfisch que rev aobra do autor a partir de uma exposiono Museu dOrsay de Paris, inspiradano debate sobre quem seria o sujeitosadiniano, interpretado seja por Lacan,

    Foucault ou Pasolini.

    Uma boa leitura a todas e todos e at o

    ms que vem.

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    PERNAMBUCO, MARO

    ARTIGO

    riana de famlia classe mdia que vai estudar nosEstados Unidos aps uma sequncia de greves nasuniversidades de seu pas. Em diferentes cidadesnorte-americanas, comea a lidar cotidianamentecom elogios travestidos de piedade ou culpa, compreconceitos mal disfarados e com os gatilhos dedio que mesmo as relaes mais ntimas podemdisparar quando no apenas sua cor, mas particu-larmente sua origem africana (e toda carga extica qual o continente se tornou sujeito desde sua co-lonizao) se tornam marcaes de poder. No blogonde relata sua experincia de imigrante nigeriananos Estados Unidos, a protagonista escreve:

    Querido negro No Americano, quando vocescolhe vir para os Estados Unidos, vira negro. Parede argumentar. Pare de dizer que jamaicano ouganense. A Amrica no liga. E da se voc no eranegro no seu pas? Est nos Estados Unidos agora.

    Ns todos temos nosso momento de iniciao naSociedade dos Ex-Crioulos. O meu foi na faculdade,quando me pediram para dar uma viso negra dealgo, s que eu no tinha ideia do que aquilo signi-ficava. Ento, simplesmente inventei. (...) Se estiverfalando com uma pessoa que no for negra sobrealguma coisa racista que aconteceu com voc, tomecuidado para no ser amargo. No reclame. Digaque perdoou. Se for possvel, conte a histria de umjeito engraado. E, principalmente, no demonstreraiva. Os negros no devem ter raiva do racismo. Setiverem, ningum vai sentir pena deles.

    Alm de Ifemelu, a maior parte dos demais per-sonagens se insere em um contexto acadmico po-litizado e eles esto em constante debate intelectualburgus sobre os tpicos raciais e tnicos, seja nosEstados Unidos ou na Europa. Esses argumentos,importante observar, no so forados a acontecer

    no livro, basta se colocar na posio de qualquerminoria poltica em um ambiente de esmagadorpoder do homem branco para entender que essasquestes se tornam o cerne de qualquer colquio emmesa de bar. O que Chimamanda faz transformaros embates que poderiam, de fato, se tornar enun-ciados catedrticos, em espessa literatura: em Ame-ricanah, sob o manto de uma histria de amor quese (des)cobre a questo racial nos Estados Unidos,bem como a demanda da populao de imigrantes,ambas questes centrais prpria constituio doestado norte-americano e, sem medo de ir muitolonge, da Europa igualmente.

    Quando recebemosa notcia de que o grande dis-curso moderno, aquele da verdade suprema, dacausa coletiva e da razo cartesiana, havia sadopara comprar cigarros e nunca mais voltar, nosavisaram tambm que o sumio dessa metanar-rativa moderna deixava a porta aberta para que oincomensurvel, o diverso e o dissenso ps-mo-dernos entrassem no recinto. No lugar do GrandeRelato, surgiam micro relatos, micro poderes(Foucault), negociaes dos vrios jogos de lin-guagem (Lyotard). Essa transio do modernopara o ps-moderno ainda bastante questionada,tanto pelas diversas instncias da produo da artequanto pelas reflexes sobre ela. Mas quando umgrupo de crticos literrios de importantes veculos,como o New York Times, Time Magazinee Newsdayanun-cia uma lista dos 20 melhores romances publicadosnesses primeiros anos do sculo 21 e elege Junot

    Daz, Chimamanda Ngozi Adichie e Zadie Smithcomo expoentes destaques da literatura contempo-rnea, preciso observar os sinais de que a prpriafragmentao das narrativas e a natureza marginaldelas se tornaram, ainda que no o nico, o grandediscurso desse sculo 21.

    Junot Daz, dominicano-americano, levou o pri-meiro lugar com A fantstica vida breve de Oscar Wao,romance centrado num adolescente que, imersonuma comunidade dominicana em Nova York,condensa todos os fracassos da experincia do seramericano. Entre gorduras saturadas e sua com-pleta inaptido para atrair meninas, ele se colo-ca ora como um personagem dos quadrinhos deDaniel Clowes tpicos perdedores ora comoum X-Man: ser nerd e menino de cor num guetocontemporneo dos Estados Unidos o mesmo queter asas de morcego ou tentculos saindo de seu

    corpo. Daz fala de uma maldio dominicana, oFuk, que supostamente toda a famlia de Oscarcarrega. Mas o infortnio do personagem, antes deuma circunstncia mstica, uma condio sine quanonpara dialogar com o to-longe-to-perto mundodo homem branco. Para que os vencedores pros-perem, Oscar precisa coexistir com eles. O fato que, para a literatura contempornea produzida porescritores fora do padro eurocntrico masculino, setorna muito mais rico falar de pessoas como OscarWao do que de personagens cuja prpria existnciano mundo j no , por si s, um grande conflito.

    Assim como Daz, Chimamanda Ngozi, nigeriana,e Zadie Smith, inglesa e filha de me jamaicana,escrevem em ingls, a lngua colonizadora, falandoda experincia de indivduos deslocados e exiladosa discutir suas respectivas estranhezas no mundodos colonizadores. As duas nicas escritoras (entre

    homens e mulheres) que figuram, cada uma, comdois ttulos nessa lista de 20 romances, elas refletema transio da famigerada Luta de Classes para asmicrobatalhas das lutas de identidades, nos ml-tiplos terrenos da etnia, cor, gnero, sexualidade ef. Dentes brancose NW, de Zadie Smith, e Meio sol ama-reloeAmericanah, de Chimamanda, e, claro, o j citadoA fantstica vida breve de Oscar Wao, esto sendo lidos nassalas de aula dos Estudos Culturais como obras quepavimentam o debate sobre o outro contemporneoe os acordos que surgem das tentativas de dilogo.

    E isso pode se dar tanto na vizinhana de umbairro latino da Nova York ps-11 de Setembro, comona Nigria recm independente de 1960. Porque,como diria um dos personagens centrais de Meio solamarelo, que se passa justo no conturbado perodops-independncia da Nigria, a grande tragdiado mundo ps-colonial no no ter dado maiorparte a chance de dizer se queria ou no esse novomundo; a grande tragdia que a maioria no rece-beu as ferramentas para negociarnesse novo mundo.Essa mxima vale para discutir qualquer geografiaperifrica no planeta, seja ela fsica ou emocional.Negociar(grifo da autora) suas identidades a aoprimria dos escritores de quem falamos aqui.

    Mais recente de todos esses romances, Americanaho trabalho que explicitamente coloca essa questoquase como um eixo da histria. A escritora usa a vozde uma personagem que toma para si o meio comque os debates se tornam relevantes hoje um blogde insightsvirais para ironicamente transformaresse espao de certezas fceis num grande picoborrifado tanto pela esperana do dilogo entre asdiferenas quanto pela descrena em um consensoentre elas. Ifemelu, sua protagonista, uma nige-

    Se for escrever

    sobre raa, precisater certeza de quevai ser to lricoe sutil que o leitornem vai saber queaquilo sobre raa

    As outrasnarrativas dops-colonialSeleo dos melhores livrosdo comeo deste sculo

    revela novos lugares de falaCarol Almeida

    Importante notar que Chimamanda no faz umaliteratura panfletria de outro modo, dificilmenteela teria dois livros entre os 20 melhores romancesdos ltimos 15 anos , mas sua natureza ativista,conectada com as pautas mais urgentes no campode identidades e representaes, a coloca num lugarde maior reverberao mesmo entre quem no lseus romances. Seu nome bastante conhecidohoje por duas conferncias que ela fez no TED (Operigo de uma nica histria e Ns deveramostodos ser feministas), bem como por ter participa-do com uma insero de sua voz no clipe Flawless, deBeyonc (parte do seu discurso sobre feminismo noTED foi usado pela cantora pop). Sua literatura noest nem acima, nem abaixo disso, mas pertence aocampo dos escritores que se colocam como sujeitoshistricos de seu tempo. E tanto Junot Daz quantoZadie Smith no abrem mo dos debates que lheso contemporneos e, mais, constitutivos de suas

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    KARINA FREITAS

    as pessoas so realmente afetadas por sua raa, vaiser muito bvio. Os escritores negros que produzemfico literria neste pas, que so ao todo trs, no osdez mil que escrevem aquelas bostas daqueles livrosde gueto com capa colorida, tm duas opes: podemescrever de forma afetada ou pretensiosa. Se vocno faz nem uma coisa nem outra, ningum sabe emque categoria te colocar. Ento, se voc for escreversobre raa, precisa ter certeza de que vai ser to lricoe sutil que o leitor que no l nas entrelinhas nem vaisaber que aquilo sobre raa. Sabe, uma meditaoproustiana diluda e desfocada que, no fim, deixa agente se sentindo diludo e desfocado.

    A diluio e a falta de nitidez, caractersticas pr-prias do que se convencionou chamar de ps-mo-derno, so ideias at certo ponto esnobadas tanto pelapersonagem quanto pela prosa da autora. Mas ambasesto cientes de que, para a literatura contemporneadiscutir os lugares de exceo, com frequncia ela seutilisar das tais sutilezas fragmentadas nas entreli-nhas. E tal como Junot Daz e Zadie Smith, Chima-manda sabe que existem grandes chances de o leitorj estar o suficiente diludo e desfocado antes mesmode comear a ler qualquer fico. A identificao como livro ser, para usar uma palavra pretensamente sutilnos dias de hoje, orgnica.

    individualidades. Novamente, assim como vriosoutros autores dessa gerao, eles espelham osreflexos difusos dos cacos ps-modernos.

    Mas uma das grandes virtudes da escritora nige-riana est em ir alm do espelho e questionar, navoz de seus personagens, a natureza desse debateem campos como a prpria literatura. Em Americanah,numa reunio com amigos letrados de seu namo-rado, sendo este um professor universitrio negroe americano, Ifemelu escuta o seguinte discursoinflamado de sua cunhada:

    Voc no pode escrever um romance honestosobre a questo racial neste pas. Se escrever como

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    O especialista

    quando o assunto retratar o sexo

    ENTREVISTAReinaldo Moraes

    Entrevista a Rodrigo Casarin

    O sexo o temaque volta a marcar a carreirade Reinaldo Moraes, com o lanamento de Ocheirinho do amor, livro que rene 35 crnicasque o autor publicou na revista Status, almde uma indita, barrada pelo editor do peri-dico, provavelmente por tratar de coprofilia.Um dos principais autores contemporne-os do Brasil, Moraes estreou em 1981 com oromance Tanto faz, sucedido por Abacaxi, de1985. Passou em branco nos anos 1990, masna dcada seguinte publicou a coletnea decontos Umidade, alm de incursionar pelaliteratura infantojuvenil com A rbita dos caracise Barata. Depois que entregar Maior que o mundo,espera ter flego para terminar A travessia de

    Por conta da repercusso de Pornopopia, a obra doescritor ficou ligada a temas erticos. Em entrevistasobre seu livro de crnicas, ele fala do peso dessa fama

    Suez, mais uma longa prosa. A conversa abai-xo aconteceu em So Paulo, num boteco deesquina, perto da Paulista e da Consolao;foi acompanhada por uma poro de amen-doim, algumas cervejas e uma cachacinhaque permaneceu o tempo todo mesa, sendotomada somente no final do papo.

    Por que lanar O cheirinho do amor, umacoletnea de crnicas? Por sinal, esse umbom momento para a crnica no Brasil?Eu gosto delas, fao com certo apuro,a ofereci para a editora um pacote: ascrnicas e o romance Maior que o mundo(prometido editora para julho). Elesme deram um advancede eu reuni asque estavam escritas e dei uma valentecopideskada, algumas ampliei um pouco,

    outras joguei fora. Foi um livro trabalhado,fiquei uns trs meses revendo os textos, oeditor tambm deu sugestes. Quanto aomomento da crnica no Brasil: as crnicasestavam meio mortas, porque o cronistaera o cara que fazia um comentrio sobreo noticirio, sobre poltica, basicamente.Eram articulistas, na verdade. Hojehouve uma reviravolta, porque voc nol o (Gregrio) Duvivier ou o (Antonio)Prata para se informar, mas porque uma pea literria. Tanto que o Pratinhadisse vrias vezes que muitas histriasso fices, mas ele faz voc supor que

    as coisas aconteceram. Ele e o Duviviercontam essas histrias como se fosse umrelato jornalstico, essa a embocadura.Isso genial, porque conseguiram umestilo que d uma forte impresso derealidade. E no importa se real ouno, o que importa que conquistaramesse espao por conta do aspecto formalda crnica literria. Extrapola de longea questo do real, vai para a forma, quetem uma longa tradio no Brasil.

    O Xico S tambm do caralho. Almde amigo, ele meu mestre. Ele no temlimite, esse realmente escreve tudo o quepassa pela cabea, sem a menor censura,apenas com a mediao da forma. Aquiloque ele fala ali, ele fala no bar. Voc vaitomar um porre com ele e aquilo l. Ele ntegro na loucura dele.

    E voc como cronista, de que autoresparte sua inspirao nesse gnero?Eu lia muito Rubem Braga, FernandoSabino e o Nelson Rodrigues, sobretudo.Foram caras muito importantes pra mim.Mas eu no me encaixo nisso, estou ali,correndo por fora na Status, at porque estoucercado por um tema: tem que ter putaria.

    Alis, putaria o que muitosesperam dos seus textos, n!?Fiquei com uma espcie de maldio dosexo por causa do Pornopopia. Como umlivro que circulou muito, nego fica achandoque sou especialista nisso. Quando recebi

    MARIA DO CARMO/DIVULGAO

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    PERNAMBUCO, MARO

    Cheguei a escreverumas 250 pginas,

    mas a histriano ia para afrente (sobre seuprojeto para a srieAmores Expressos)

    A maior partedos escritores

    contornam, n,usam eufemismo.Eu sempre acheique sexo ummomento forte

    o convite para fazer crnicaspara a Status, subentendia-seque tinha que falar de algumaforma de sexo. Pensei queno fosse conseguir fazeraquela merda. Fiz uma, fizduas... Mas a, bicho, voc vaiafinando o olhar pro noticirioe vai sacando que sempre temnotcia engraada do negciode sexo, algum que mudoude sexo, umas porra-louquicesque voc l, como umamdica nos Estados Unidos

    que comeou a ter um affaircom um colega de hospital ese apaixonou. O cara sacouque a amante estava querendoficar com ele, a tentou cairfora. S que a mulher tevesimplesmente a ideia de fazerum boqueto nele, pegou aporra, botou num recipiente, foinuma clnica de um conhecido,fez uma fertilizao artificial eteve uma filha do cara. Entoesse tipo de coisa est no ar, muito fcil pescar o assunto.

    Ento, voc tem vontadede escrever sobre outrascoisas mas acaba ficandopreso a esse tema?At agora foi assim, n, comrelao a essa revista. Masestou sempre escrevendosobre outros assuntos. Escrevih alguns meses um artigolongussimo para a Piau sobreo Cortzar. Estou escrevendoagora sobre o (Georges)Wolinski (cartunista francsassassinado no ataque ao jornalCharlie Hebdo, em Paris),que mais relacionado a sexomesmo, porque ele s pensavaem boceta vinte e quatro horaspor dia. A peguei trs chargesdele e criei uma historinha

    que, em algum momento,passa pelas situaes queesto nas charges. O Wolinskifoi um cara que eu li muito,como todo o pessoal da minhagerao. Ele saa aqui emdiversas publicaes meio deesquerda. Era uma referncia.O tipo de humor dele, apesardos temas sempre sexuais, s um caminho ou uma viade acesso ao mundo da classemdia que ele tira sarro otempo todo: do machismo,

    do casamento, do assdio smulheres, do feminismo...uma abordagem sem a menorcomplacncia, sem um pingode sentimentalismo, algototalmente irnico, sardnico,sarcstico. No tem nenhumdiscurso edificante, apenas ohumor mais custico possvel.

    As pessoas ainda terotulam como maldito?Isso j era, n, cara. Hoje osmalditos tm esttua em praapblica. Eram malditos sporque chuchavam os limitesda alma humana e da moral,falavam de coisas consideradastabu. Mas hoje o que tabu?Se voc escrever um livrosobre necrofilia, talvez aspessoas nem achem maldito,apenas de mau gosto ou, sefor bom, um bom livro, apesardo personagem necrfilo.Ningum mais considera ooutro maldito porque o livrotem drogas ou est cheiode sexo, trepada, sexo anal,mulher chupando um pau....

    Como voc acha que aliteratura e o sexo serelacionam? Escrever cena desexo algo bem delicado, no?

    A maior parte dos escritorescontornam, n, usameufemismos poticos. Eufao um negcio que direto.Sempre achei que o sexo, atrepada, um momento forte,que as pessoas no estomais segurando nenhumpapel social, porque isso dissolvido pela excitao, oque sobra so as taras. omomento de maior conexocom o inconsciente. umteatro no qual os personagens

    se despem das suas mscarassociais para atingir a parte maisprofunda do inconsciente. E um negcio que rende muitohumor. Eu gosto de escrevercenas de sexo como se fossemcenas de seriado, tem todas aspossibilidades de voc explorardiversos tipos de pessoas.

    Uma vez voc disse queprefere a bebida literatura.... isso mesmo? Gosta deescrever bebendo?Isso frase, n!? Mas euescrevo muito bbado, noite.Sempre fao assim: noite,empurro a histria para frente;escrevendo, vou tomandouma cervejinha, fumando um,porque d uma soltura, abaixao superego. Como sei que aindavou trabalhar muito em cimado negcio, no me policio.s vezes fico quatro, cincohoras nisso. No dia seguinte,acordo umas seis, cafezo, ecomeo a revisar tudo, jogometade no lixo de cara...

    Tem algum gnero que te dmais teso ao escrever?Toda hora estou escrevendouns continhos. Se voc estfazendo um romance de mais

    flego, legal fazer algumascoisas que acabam logo, duma sensao de completude.Se voc fica quatro anospendurado num negcio queno termina nunca, s vezesd um desnimo. Eu olho paraaquilo e falo isso no temcho ainda, puta que o pariu.

    Sobre seu prximo romance,oMaior que o mundo,o que d para falar?Ele comeou como um

    roteiro de cinema, que pegueipara fazer porque estavaprecisando da grana. O(cineasta) Roberto Marquezqueria algo na linha doPornopopia, com puta, drogae rua Augusta. Depois fizum acordo para ficar com osdireitos literrios da histria,para transform-la em livro.Como tudo j estava armado,as cenas, os personagens, osdilogos, achei que seria umpasseio no parque, que serias desentortar o roteiro queviraria um romance, masno verdade. O romance trabalhado em outras ideias. Oroteiro no tem valor literrio, extremamente visual. sobre um escritor bloqueadoque h vinte anos publicouum livro e desde ento esttentando escrever outro.Ele foi um puta junkie, masagora s bebe e fica querendocomer umas meninas. umnarrador em primeira pessoaque alterna com outro emterceira pessoa, onisciente.Se passa em So Paulo.

    E o seu livro da coleoAmores Expressos, daCompanhia das Letras?

    Essa foi uma cagada. Fiqueitrinta dias na Cidade do Mxico,rabisquei uma ideia, fiz umasinopse, tambm achandoque ia ser um passeio noparque. Cheguei a escreverumas 250 pginas, mas ahistria no ia pra frente. Sestava fazendo aquilo porquefui pro Mxico e assinei umcontrato, no tinha nenhumteso em escrever aquelamerda. A cheguei pro editorda Companhia e falei: Bicho,

    no t saindo. Ele pediu paraeu ficar calmo. Fui em 2007 etinha que entregar em quatromeses. Deu 2008, nada, 2009,nada. At que o ano passadoeu liguei pro cara e propusceder os direitos do Tanto faz eficarmos quites. Ele adorou.

    Voc disse que Pornopopiavendeu at hoje 14 milexemplares. Apesar deser um bom nmero paraliteratura brasileira, baixopara a repercusso que olivro teve e ainda tem, no?Para a literatura brasileira, oseditores adoram. Mas essarepercusso toda que ele tevese d no clubinho dos 500.A minha antiga editora, quetrabalhava na Objetiva, diziaque tinha oito mil pessoasno Brasil que liam literaturabrasileira. Ela percebia pelastiragens, pelo que sai, pelonmero de livros vendidos...Claro que Machado de Assis,Guimares Rosa, vendem muitomais, mas estamos falando dequem l a Veronica Stigger,eu, o Xico S, o MarcelinoFreire, o Joca Terron, MichelLaub. O pblico virtual dessaturma de oito mil pessoas.

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    PERNAMBUCO, MARO

    No tenham dvida:a humanidade sempre umabanda de rock. Numa bela sacada criativa, de quemsabe o que quer e qual caminho tomar, o paulistaWander Shirukaya escreveu o romance Ascensoe queda, e com ele venceu o Prmio Pernambucode Literatura. Os quatro componentes da bandaoferecem as vozes narrativas para a construo dahistria se mesmo que existe uma histria ouvariaes em torno das histrias que, no ntimo,representam improvisao e criatividade -, que oautor trabalha com habilidade e arte, numa criaoromanesca cheia de equilbrio e harmonia. Talvezpor conhecer esse forte elemento musical aharmonia , o autor comps, mais do que sim-plesmente escreveu, uma obra de qualidade e, porisso mesmo, vencedora. O autor compreendeu, decara, que no podia trazer a humanidade para suanarrativa numa voz nica, voz de narrador abso-

    luto com mo de bronze, mo de ferro, artificial,bonitinha, mas ordinria.A narrativa por vozes internas e, por isso mesmo,

    cheia de contradies e de conflitos - as contra-dies e os conflitos so prprios da vida huma-na surge com Dostoivski, criador da polifonianarrativa, e, mais tarde, com Faulkner. Mas hentre eles diferenas bsicas: o russo rene asmuitas vozes num s texto, o que nem sempreconvence o crtico pouco experimentado e semerudio suficiente. So muitas as teorias segundoas quais Dostoivski no escrevia bem. Enquantoisso, o norte-americano opta pela narrativa comvozes distintas e objetivas, que se multiplicam aolongo do romance.

    Numa escrita ainda mais rigorosa, Henry Jamescriou a Tcnica da Iluminao, que consiste emfazer com que os muitos personagens esclaream

    outro personagem atravs de diversos olhares. Es-ses pontos de vista podem aparecer em monlogos,solilquios ou trechos do narrador nico e absoluto.

    Essa , na verdade, a grande vantagem dosnarradores mltiplos acabar com o reinado donarrador nico e absoluto, Deus todo poderoso eonisciente, que obedece ao autor e unicamenteao autor e nem mesmo ao narrador, ao narradorcom mo de ferro, que no s decide pela histria,mas sobretudo pelas palavras. E reina em todas ascircunstncias e situaes. So poucos, ou raros,os autores que descobrem que eles no so nar-radores, mas apenas autores.

    Mesmo Flaubert, o francs criador do estiloobjetivo, reconheceu a oportunidade das vriasvozes narrativas, criando os dilogos entrecruza-dos, que no so outra coisa seno a presena dospersonagens apresentando seus pontos de vista e

    contando as histrias. Os dilogos entrecruzadosaparecem nos comcios agrcolas de Madame Bovary,quando Rodolfo e Emma namoram em meio schamadas dos leiles. Foi, em princpio, apenasuma experincia depois desenvolvida em Educao

    RaimundoCARRERO

    A Humanidade uma grandebanda de rockOs acordes a percorrer

    o romance ganhador doPrmio PE de Literatura

    KARINA FREITAS

    sentimental, quando a narrativa apresentada na vozde dois personagens decisivos na histria.

    No final do sculo 20, o prmio Nobel Mario VargasLlosa que sempre trabalha com a multiplicidadede vozes escreveu o romance Mayta, revelando o

    personagem atravs do ponto de vista de cada umdos outros personagens, de forma a enriquec-loe diversific-lo. As vozes entrecruzadas de Llosaretiram o narrador mando e enriquecem a narrativacontempornea, sempre de modo surpreendente.

    MERCADOEDITORIAL

    MarcoPolo

    A perverso, o desvio e oerro podem ser uma tomadade atitude de determinadosescritores para alcanar oreverso dos valores estabelecidose coloc-lo como opo vlida,principalmente no que dizrespeito literatura. Esta , emlinhas gerais, a tese defendidapor Eliane Robert Moraes nolivro Perversos, amantes e outrostrgicos(Editora Iluminuras).Nele a autora aborda livros como

    DESVIOS

    Professora de Esttica e Literatura na PUC-SP lana livrosobre autores que elegeram a perverso como tema

    FOTO:REPRODUO

    Lolita, de Vladimir Nabokov(foto), A histria do olho, de GeorgeBataille, entre outros. Traz baila o fato de como GuillaumeApollinaire resgatou em 1909a obra do Marqus de Sade,atravs de uma sistemticareedio de suas obras, jogadaspara o limbo pelo pensamentoconservador que imperava naliteratura francesa. Para Elianeo trabalho desses transgressoresfoi fundamental.

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    I Os originais de livros submetidos Cepe,exceto aqueles que a Diretoria considera

    projetos da prpria Editora, so analisados pelo

    Conselho Editorial, que delibera a partir dos

    seguintes critrios:

    1. Contribui o relevante cultura.

    2. Sintonia com a linha editorial da Cepe,

    que privilegia:

    a) A edio de obras inditas, escritas ou

    traduzidas em portugus, com relevncia

    cultural nos vrios campos do

    conhecimento, suscetveis de serem

    apreciadas pelo leitor e que preenchamos seguintes requisitos: originalidade,

    correo, coerncia e criatividade;

    b) A reedio de obras de qualquer gnero

    da criao artstica ou rea do

    conhecimento cientfico, consideradas

    fundamentais para o patrimnio cultural;

    3. O Conselho no acolhe teses ou

    dissertaes sem as modificaes necessrias

    edio e que contemplem a ampliao do

    universo de leitores, visando a democratizao

    do conhecimento.

    II Atendidos tais critrios, o Conselho emitirparecer sobre o projeto analisado, que ser

    comunicado ao proponente, cabendo diretoria

    da Cepe decidir sobre a publicao.

    III Os textos devem ser entregues em duas vias,

    em papel A4, conforme a nova ortografia,

    devidamente revisados, em fonte Times New

    Roman, tamanho 12, pginas numeradas,

    espao de uma linha e meia, sem rasuras e

    contendo, quando for o caso, ndices e

    bibliografias apresentados conforme as

    normas tcnicas em vigor. A Cepe no se

    responsabiliza por eventuais trabalhos de

    copidesque.

    IV Sero rejeitados origina is que atentem contra a

    Declarao dos Direitos Humanos e fomentem

    a violncia e as diversas formas de preconceito.

    V Os originais devem ser encaminhados

    Presidncia da Cepe, para o endereo indicado a

    seguir, sob registro de correio ou protocolo,

    acompanhados de correspondncia do autor,

    na qual informar seu currcu lo resumido e

    endereo para contato.

    VI Os originais apresentados para anlise no

    sero devolvidos.

    Companhia Editora de Pernambuco

    Presidncia (originais para anlise)

    Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro

    CEP 50100-140

    Recife - Pernambuco

    CRITRIOS PARARECEBIMENTO E APRECIAODE ORIGINAIS PELOCONSELHO EDITORIAL

    A Cepe - Companhia Editora de Pernambuco informa:

    Secretariada Casa Civil

    Governo do Estadode Pernambuco

    O romance de estreia do gachobrasilizado (mudou-se cedopara a capital do pas) PedroManzke, A irmandade dos cavaleirosprobos(Escrituras) se desenvolvenum clima de aventura, magiae lendas medievais, onde oinusitado e o absurdo costuram atrama, paradoxalmente tratandoda realidade presente, comuma pegada no convencionalonde se misturam crtica eirreverncia, ironia e nonsense.

    Enquanto se discutem os baixosndices de leitura no Brasil,h aumento de investimentonas grandes redes de livrarias,grupos editoriais internacionaisdesembarcando no Brasil eempresas que negociam como e-bookesquentando o debatedo acesso aos livros. Tambmsurgem lanamentos deplataformas de autopublicao,projetos de financiamentocoletivo e o sucesso das feiras

    ESTREIA

    Gacho lana romanceirreverente e crtico

    INOVAO

    Grupo paulista cria jornada para atualizar escritores,editores e outros profissionais do livro no mercado

    de publicaes independentes.Paralelamente, escritores,editores e outros profissionaisenvolvidos na cadeia do livrosentem que precisam se atualizarem novas funes. Foi para elesque surgiu a jornada Inovao noMercado de Livro, que acontecede 30 de maro a 2 de abril, noCemec, escola de gesto culturalna Bela Vista, em So Paulo.Maiores informaes pelo sitewww.redecemec.com.

    Alis, surpresa uma palavra sempre muito pre-sente na narrativa de Ascenso e queda. Surpreendea ascenso da banda, surpreende o modo como amdia a recebe a e surpreende o suicdio de Johnny.Assim como surpreende o apuro tcnico do escritor

    iniciante. A esto as dores e as alegrias humanas, asglrias e os fracassos, a admirao e a inveja. Comose tudo acontecesse numa tragdia grega, com seusmonlogos e suas exaltaes, seus lamentos e seusgemidos, suas linguagens e suas grias . verdade

    que, s vezes, se aproxima muito de Jack Kerouac,mas no so raros os momentos em que se distanciacompletamente. Sem dvida, um autor de flego.Alis, ele poderia ter escrito um livro mais prximodos beatou at de Salinger, mas se mostrou cuidadoso

    e criou o seu estilo, mesmo que ainda reticente. neste sentido que o romance de Wander Shi-

    rukaya impressiona e torna-se dessa forma o mi-crocosmo da humanidade. Esta humanidade repre-sentada por uma banda de rock.

  • 7/24/2019 Entrevista Matilde Campilho

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    PERNAMBUCO, MARO

    Pnico narrativoPriscilla Campos

    Concentrao e outros contosmostra a desconstruoda escrita de Ricardo Lsias

    CAPA

    PIO FIGUEIROA

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    PERNAMBUCO, MARO

    (1) Breve nota sobre a escrita literatura designa-se a empreitada de concluir, sozinha, umesboo egosta qualquer. A verdade que existe um plano: fazeruso da palavra como justificativa diante da maldio. Ali esto mundo, ali est o disparo de algum. Na escrita esto ambos,projetados com a concentrao de quem empreendeu umaandana fatal. O ato de escrever destri reinos, desestabilizaraciocnios, promove festas de vero. Numa tbua destinadaaos combates da escrita, os perigos tornam-se dos maisdeslumbrantes possveis.

    (2) Breve nota sobre o xadrezA criao do enxadrismo deve-se preciosa conflunciaentre mitologia e estratgia. Talvez a origem da prtica tenhaacontecido na ndia, atravs de uma histria que envolve:rei, sacerdote, depresso, conforto espiritual e matemtica.Outras lendas direcionam o foco para elementos gregos eromanos. O jogo no compreende o conceito de sorte; a ttica

    de como conclu-lo com xito pede dedicao e algum nvelde incomunicabilidade por parte do enxadrista. No tabuleiro,a vantagem de quem consegue controlar exploses comserenidade e indiferena.

    PEOAos leitores, um comunicado: este texto optarpela escolha destemida de proporcionar certo tipode encontro entre trechos de Mason e Dixone Contrao dia. A ideia utilizar ttulos importantes da obrade Thomas Pynchoncomo suportes definio dedesnorte, caracterstica central em Concentrao e outroscontos (Objetiva, 2015). O livro, que rene amostrasimportantes da literatura feita por Ricardo Lsias,dialoga com o delineamento gradativopynchonianoda paranoia: o desvario se inicia no personagem,instala-se na narrativa e alcana certeiro o leitor.A partir do prximo pargrafo, todas as bssolas

    literrias entraro em colapso. Bem-vindos aodelrio dos que esto arruinados antes mesmo dea peleja comear.

    Em um dado momento de Mason e Dixon, Jeremiahinveste suas tintas no desenho do Mapa: Ele pre-cisava ser capaz, se um dia tal lhe fosse exigido, deapresentar uma imagem vista do alto dum Mundo,que jamais existiu, com detalhes fiis (...). Se a talfosse obrigado, passaria de todo para esse mundomas jamais nele se perderia, pois teria esse Mapa,e nele, l embaixo, ao longo, estaria tudo Mon-tanha de Vidro, Mar de Areia, Fontes milagrosas,Vulces, Cidades Sagradas, Abismo com uma milhade profundidade, Caverna das Serpentes, Plancieinfinita.... A necessidade do jovem em ajustartraados que representam uma geografia onricaconjura, ao mesmo tempo, tristeza e frenesi.

    Em Contra o dia, temos a expedio dos Amigos

    do Acaso na qual observamos o transvio dos per-sonagens. Ao levar o grupo para outro ponto dohemisfrio, Pynchon trabalha a presena do silncioperante o turbilho: De incio, ningum tinha nadaa dizer, mesmo se fosse possvel ouvir o que se diziaem meio ao estrondo do mar. Com ressalva a EvoMorales, texto mais fraco do conjunto, os contosassinados por Lsias so emaranhados de angstia,palavra que engloba ambos os trechospynchonianos.

    Na agonia narrativa promovida pelo escritorpaulista, encontram-se o desalento, a alucinaoe os rudos. Assim como na literatura de ThomasPynchon, em Concentrao e outros contos,indivduosdesnorteados arrastam o leitor para o tormen-to contnuo. Nesse aglomerado de fices, Lsiastransforma a noo de desnorteem sua nica con-gruncia. O livro abrange quase todos os seus con-tos. De acordo com o paulista, a ordem escolhidafoi apenas aquela que, em sua opinio, pareceuter alguma coerncia.

    No seu conto Dos nervos, uma das persona-gens, professora universitria, afirma: Recusei--me a estudar literatura contempornea porqueacho tudo aquilo simples demais, com exceodo Thomas Pynchon, mas no acredito em fan-tasmas. O texto, que teve sua primeira edio em2004, um dos melhores exemplos para a cria-o do transtorno como catalisador textual. Essadisfuno procura, respeitadas suas diferenas desituao, atingir todos os aspectos do conto, inclu-sive o de sua recepo. No caso de Dos nervos, apersonagem vai aos poucos perdendo todo o seunorte, que se d atravs dos estudos literrios.A citao a Pynchon no obviamente gratuita:parece-me um aviso de que as coisas podem des-

    que junto com Virginia Woolf. Penso tambm quea linguagem uma construo e, no caso da fico,precisa ser observada de maneira esttica, como umrecurso que ir causar algum efeito no leitor, afirma.

    Esse tipo de domnio que a linguagem exerce narelao escritor versusleitor analisado pela crticaliterria e professora emrita da Universidade de SoPaulo (USP), Leyla Perrone-Moiss, emLio de casa,posfcio escrito para uma nova edio de Aula (Cul-trix, 2013), famosa explanao de Roland Barthes.Leyla escreve: O trabalho na linguagem conduz oescritor a um saber profundo sobre a armao e ainstalao do poder linguageiro, torna-o atento aessa fora rectiva e reativa da linguagem, ignora-da (ingenuidade ou m f) por aqueles que creemutilizar a linguagem como um instrumento dcil etransparente, e relembra o significado de objetoem que se inscreve o poder desde toda a eternidadehumana atribudo, por Barthes, linguagem.

    Ao confrontar os contos escritos por Lsias e ainvestigao sobre os estudos de Barthes apresen-tada por Perrone-Moiss entendemos, com maisclareza, a fora perturbadora de Concentrao e outroscontos. Quando um escritor conhece o estado deselvageria presente na linguagem inevitvel quesua literatura rena movimentos to avassaladoresquanto os dos redemoinhos martimos incom-preensveis em alguma medida, desconcertantespor completo.

    Aos leitores, umcomunicado: estetexto opta porguiar a leitura doautor paulista pela

    obra de ThomasPynchon

    bancar totalmente a qualquer momento. Acho queThomas Pynchon rene no seu conjunto de livrosesse transtorno com que procuro lidar, emboraeu tente desloc-lo para as realidades geopolti-cas que cada conto apresenta. Ento, tento tirar oque h de especificamente norte-americano emPynchon e me resta exatamente o transtorno quevoc indicou, explica Ricardo.

    A crescente falta de sentindo que circunda apersonagem intercalada pela narrao de umimportante jogo de xadrez (esporte que aparece,com fervor, em diversas narrativas da antologia). Aprincpio, o leitor pode entender esta nova histria,com detalhes tcnicos minuciosos, como umaquebra no processo aflitivo que traz diversos n-veis de psicose e violncia focado na professora.Mas o que acontece apenas uma transferncia detenso: ao expor a lgica como elemento, Lsias

    desloca a ansiedade de seu receptor para um lugarfalsamente ameno. Outro mecanismo que auxiliana manuteno do pnico narrativo o desarmeda linguagem.

    Assim como em algumas passagens do romanceO livro dos mandarins, desconfortveis interrupes nofluxo do relato so feitas em Dos nervos: Desdea poca da tese ela insistia para que me. A vizinhadevia comentar que eu tinha de arranjar um, masminha me nunca foi to direta, ela que sempreevitou fazer fofocas e detesta os. No conto Fisio-logia da solido, Lsias cita Samuel Beckett e JamesJoyce, autores que realizam a desconstruo da ln-gua, de alguma maneira, em suas obras. Segundoele, a questo da linguagem um ponto decisivoem seus livros, uma de suas maiores preocupa-es. Fao diversos testes e alguns contos foramreescritos vrias vezes, mudando a linguagem at

    que conseguisse chegar perto do que eu concebiinicialmente. Os dois autores citados talvez sejamo mais importantes para a minha formao, acho

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    CAPA

    tes polticas. De fato operei no texto uma espciede confuso de referenciais para causar um curto--circuito no leitor. Grande parte dos leitores opta,no primeiro momento, por ignorar absolutamentetudo que h de fico. Talvez seja uma fixao realistada literatura brasileira, mas no digo com certeza. Oque posso dizer que o conceito, tal qual foi desen-volvido na Frana (a importao para o Brasil, comalgumas excees, veio sem crtica) descabida deinteresse esttico e tenho para mim que acompa-nha o desenvolvimento e popularizao de ideiasconservadoras: contemporneo, por exemplo, dafamlia Le Pen. Ningum parece ter percebido isso.Qualquer hora, como passatempo, vou escrever algopara mostrar como Serge Doubrovsky tem ligaocom os Le Pen, conclui.

    Fisiologia da solido configura-se como umpreciso tratado sobre isolamento e literatura. Nele,Lsias disserta acerca da obsesso pela tcnica lite-rria e utiliza as diversas variaes do mecanismopara estabelecer uma ideia de companhia: Ser so-litrio no uma condio necessariamente triste.s vezes angustia, verdade. No entanto, sei queterei ainda muitas variaes tcnicas, o que sempreme deixa esperanoso. Talvez seja quase isso queestou querendo dizer: a tcnica me reconforta,pois quando a crise de solido aperta, sei que houtras variaes. Ou seja: a angstia vai passar.Tal paralelo entre a literatura & a solido traado

    A cabeaencarcerada,o indivduo

    preso, a prisosem referentes,

    Lsias sobre o seuconto Capuz

    PIO FIGUEIROA

    dade, observa. Entretanto, o lirismo contido nanostalgia de Fisiologia da famlia um soprofugaz de leveza quando comparado a outros atri-butos da sequncia.

    A sofrida pgina final de Fisiologia da dor, escrito em 2010,deriva da ansiedade e do pnicoinstalados no personagem aps o suicdio de umamigo, estopim para o romance O cu dos suicidas(2012). No consegui chorar, mas dei um jeito,hoje me lembro que em grande estado de fria,de entrar em uma igreja catlica ali perto e pelaprimeira vez ajoelhei para rezar, no me recordomuito bem como, pedindo para o Andr ir para ocu, Senhor Deus, j que muito injusto e talvez oSenhor, Senhor Deus, pudesse compreender o queo Andr estava passando, Senhor Deus, quando elese enforcou e que eu no entendo, Senhor Deus(...). O conto vincula-se ao conceito de autofico,cunhado pelo escritor francs Serge Doubrovskyediscutido incansavelmente no meio literrio bra-sileiro hoje. Alm da temtica que faz aluso a suabiografia, Lsias adota elementos surpresas doreal para provocar certo sentimento de estranhezano leitor, como quando divulga seu e-mail no meiode um pargrafo.

    Ao falar sobre a autofico, Lsias levanta um carterpoltico associado origem do significado. Acho queo termo foi usado no Brasil com certo abuso, ou parafacilitar leituras mais ligeiras, ou para reduzir ques-

    TORREEm Tlia, terceira narrativa do livro, Ricardo dis-cute a incomunicabilidade atravs do isolamento deseu personagem. Desisti da literatura quando noconsegui mais entender o que estava escrevendo. Ostextos tinham deixado de refletir minhas inquieta-es e de revelar minha personalidade. Percebi queera um ficcionista limitado e que nunca chegariaa produzir algo incontornvel para literatura. Avontade de abandonar a comunicao por parte dealgum que possui um elo profissional com a escritanos remete abertura da trilogia Seu rosto amanhvol. 1: Febre e lana, do escritor espanhol Javier Maras.

    Numa das mais belas primeiras pginas da li-teratura, Maras grafa: Ningum nunca deveriacontar nada, nem fornecer dados nem veicularhistrias nem fazer com que as pessoas recordemseres que nunca existiram nem pisaram na terra ou

    cruzaram o mundo, ou que, sim, passaram mas jestavam em meio a salvo no retorcido e inseguroesquecimento. Contar quase sempre uma oferen-da, mesmo quando o conto leva e injeta veneno, tambm um vnculo e outorgar confiana, e rara a confiana que mais cedo ou mais tarde no trada, raro o vnculo que no se enreda ou amarra,e assim acaba num s e tem-se de sacar a faca ou ogume para cort-lo. Neste ponto, os dois escritorescolocam a literatura em uma posio inferior aono dito. Situao essa que nos leva a interessantecontradio vigente na obra de Lsias: apesar desua conscincia e ateno absoluta ao manuseiolingustico, a busca pelo silncio surge, de maneiraextrema, como abordagem temtica.

    Meia-volta, ento, para a discusso sobre lingua-gem. De acordo com Lsias, o aspecto indmito dalngua traz uma dificuldade fixa e propulsora para

    o artista. Ela pode ser manipulada, mas apenasat certo ponto. Eu gostaria de dizer que tenhoconscincia da linguagem, mas tudo o que de fatopodemos ter a noo de que ela no plenamentecontrolvel. A linguagem verbal, instrumento doescritor, apresenta, alm de tudo, todas as limi-taes da escrita, da fala e das articulaes entreambas. Uma das sadas seria o silncio. A outra trabalhar nas margens. Tambm possvel unirambos os tpicos: as margens e o silncio. Se a genteder um passo alm e trouxer a dimenso ideolgicado uso da linguagem, acho que chegaremos aomeu ponto: o silncio e as pessoas margem deseu controle (como eu estou margem do controleda linguagem) podem trazer alguma possibilidade.De fato, no gosto do centro, ressalta.

    Por meio de um vis espiritual aguado e debo-chado, A angstia est no mundo com tanta fora,

    conclui enftico, porque as pessoas se comunicamdemais umas com as outras e deixam o contato como Centro Essencial de lado o narrador em Tliademonstra certa sndrome de Bartbley, expressocunhada pelo catalo Enrique Vila-Matas emBartleby& Companhia. Porm, o preferir no fazer de RicardoLsias possui um (ainda maior) desvelado sentidoderrotista. Para o catalo, essa espcie de patologialiterria acomete, principalmente, escritores quealcanam algum tipo de pice com a escrita. EmTlia, temos a negao da literatura por algum queparece ter estado apenas na periferia do xtase.Mas, como explica Vila-Matas, tambm os grafos,paradoxalmente, constituem literatura.

    Da perspectiva psicanaltica, Lsias explora oclssico conceito de repetio. Para Freud, a palavraconcede ao indivduo a chance de afastar-se doprocesso repetitivo que est relacionado ao queo sujeito no diz e, a partir dessa enunciao,chegar ao no nomeado, ao que nos faz repro-duzir, inconscientemente, situaes do passadotidas como desconhecidas. EmConcentrao e outroscontosrepetir um recurso insupervel, os textossubvertem a particularidade analtica da escrita eprestam reverncia no superao da premissafreudiana. A literatura a arte da repetio e dapersistncia, escreve o paulista.

    A cada desfecho narrativo, a conexo entre Li-sas e a paranoia aproxima-se da que existiu entreMontaigne e a morte, essa ltima de acordo com ocrtico literrio alemo Erich Auerbach. Em Ensaiosde literatura ocidental, Auerbach relata a postura, umtanto quanto neutra, do filsofo francs diante dofim: Habitua-se tanto a ela que a morte torna-seum pedao de sua vida; com ela se familiariza,

    fazendo com que no lhe inspire mais medo; oumelhor, o medo da morte apoderou-se dele de talforma que j no o sente mais. Aps as 272 pginasda antologia de Lsias, fica no leitor um espantoincmodo de ter acesso a tamanha angustia pro-porcionada, ao longo das narrativas, com plausvelnaturalidade e indiferena.

    RAINHANo grupo textual intitulado Fisiologiasencontram-seas mais belas e poderosas construes argumenta-tivas. O ltimo da srie, Fisiologia da famlia, arrebatador. As mincias do relacionamento nar-rador-personagemversusseu av do ao relato umtom saudosista e atento memria. Trechos comoE se ele achasse que eu queria brincar de novode Monstro da Lagoa na sala do casaro? Meu avcolocava uma mscara de gs no rosto e se escondia

    debaixo de uma mesa. Depois, a av trazia um lenol,apagava a luz e a criatura aparecia. Vai, monstro,corre atrs dos seus netos. Pegue um deles pelaperna. Quando ele gritar, erga-o e o abrace. Mostre oquanto voc meigo e cuidadoso. Coloque a cabeana barriga dele, Monstro, e assopre at ele morrerde rir. Abrace todos os seus netos dentro do lenol,dentro da imensa lagoa, e os leve para dormir nessanoite que eles nunca vo esquecer so intercaladospor imagens da famlia do escritor.

    Segundo Ricardo, esse o conto mais recente dolivro. Eu o escrevi durante o ms que antecedeu aonascimento do meu filho e o encerrei na materni-dade. No entanto, existe nele muito pouco da minhafamlia: algumas passagens isoladas e as imagens.O resto, nada corresponde: meus avs no agiamdaquela forma, meus pais no tm qualquer ligaocom os do conto e meus irmos, excetuando-se os

    nomes, tambm no tm nada daquilo. O prprionarrador muito distante de mim. Ainda assim otexto passa, de fato, uma sensao de familiari-

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    PERNAMBUCO, MARO

    pelo paulista confunde-se com investigaes sobreafunoda escrita.

    Em artigo publicado na Revista Garrafa, a doutoraem literatura comparada pela Universidade Federaldo Rio de Janeiro (UFRJ), Lcia Kelmer Paranhos,aponta para a diversidade de sujeitos que a escri-tura pode produzir. Bem sabemos que atravsda literatura exercitamos o conhecimento sobre ooutro, isto , testamos radicalmente o sentimentode alteridade. A potncia dessa arte est justamenteem propiciar a reinveno de outros, os quaisa realidade empobrecida no permite. AntoineCompagnon, terico literrio e professor do Collgede France, termina sua conferncia intitulada Lite-ratura para qu?na mesma pista da literatura comoespao coletivo para indivduos em mutao: Oexerccio jamais fechado da leitura continua o lugarpor excelncia do aprendizado de si e do outro,descoberta no de uma personalidade fixa, masde uma identidade obstinadamente em devenir.

    Ao escolher a tcnica literria como argumentooposto solido, Lsias aceita, antecipadamente,esse contnuo projeto exploratrio do sujeito a par-tir da escrita. O alvio em ter o mecanismo comocompanheiro s possvel, pois existe algo a sercontado atravs dele; existe a literatura e todas assuas quebras e renovaes de vnculos. Afinal,sem alguma disposio ao extermnio, no haveriadana das espadas durante um duelo.

    CAVALOLsias arremataConcentrao e outros contos com odevastador Capuz. Ali est o escritor paulistaem sua melhor forma: temtica geopoltica latino--americana, mximo teor claustrofbico, perso-nagem desnorteado em si mesmo. Sempre estivedecisiva e intensamente apaixonado pela AmricaLatina. Interesso-me pelos autores, pela realidadepoltica e at mesmo pelo (relativo) deslocamentodo Brasil na regio. Eu ousaria dizer que a prosalatino-americana uma das mais felizes em dis-cutir ficcionalmente aspectos polticos do territrio.Livros como Os rios profundos, Paradisoe os contos deRodolfo Walsh so muito importantes para mim.Ento, a regio de fato uma das minhas principaispreocupaes: a violncia a que estamos subme-tidos grande demais, afirma.

    Mais uma vez, ocorre a opo pelo personagem--narrador. Essa uma ferramenta fundamentalpara mim. Eu penso bastante em alguns pilares:forma e ideologia, por exemplo, e sei perfeitamenteque ambas esto interligadas ou, mais ainda, co-existem de maneira independente. Ento, tentoestabelecer um tipo de trnsito para que o contotenha fora, ressalta. Na metfora do capuz quecega o homem apreendido, Lsias amarra todos osfluxos do pensamento possveis, e no exagerosublinhar a necessidade de pausas na leitura parareencontrar o compasso respiratrio ideal. Ca-

    puz foi realmente uma tentativa de trabalhar comespaos fechados, um dentro do outro: a cabeaencarcerada, o indivduo preso, a priso sem re-ferentes, o espao urbano j perdido. Tentei ver oresultado de tudo isso na personalidade de algume, ao mesmo tempo, o que a linguagem poderiapermitir diante de tantas limitaes.

    O desnorte presente em Concentrao e outros contosd origem ao plano cartogrfico confuso de umarea: a Cidade noturna que habita os sonhos deCharles, em Mason e Dixon. L, o cientista interpassadesvios em meio a monumentos de pedra, talvezduas vezes mais altos que ele, buscando refgio dealguma Revoluo absoluta e implacvel nas rela-es entre os homens. A antologia esse campoaberto cheio de monlitos erguidos por RicardoLsias. Nos seus textos, a perdio obtm um asilo,a literatura circula pela noite sem necessidade detestemunhas vivas.

    Desarme de linguagem

    Concentrao e outros contosEditoraAlfaguaraPginas 272PreoR$ 39,90

    O LIVRO

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    PERNAMBUCO, MARO

    RESENHA

    TEMPO PARA POESIANUBLADO

    (Artefactos, 1972)

    Se no esteticismo metafsico a poesia se deixadigerir sem problemas, na antipoesia o autor se vna obrigao de advertir o leitor sobre o indigestoque pode resultar a leitura:

    A POESIA COMO BOLO DE NOIVAa antipoesia

    como rolo de arame farpado

    (Obras pblicas, 2006)

    Vale a pena esclarecer que os critrios estticose seus modelos de leitura resultam necessrios eteis quando se aplicam a aquilo que se conhececomo poesia ou literatura. Entretanto, se aplicados antipoesia, revelam-se pobres, insuficientes e,principalmente, artificiosos! J que a desconstruoantipotica no age s no espao potico e literrio,mas tambm naquilo que cultural e civilizacional:

    Dou por inaugurado o sculo XXIFim afetao grecolatinizanteVenha o buNo mais mentiras piedosas preciso falar a verdade ao leitorMesmo que fique com os cabelos em p

    Chega de subterfgiosAssumamos de uma vezA nossa precariedade agropecuriaO resto literaturaM literatura modernistaA outro Parra com esse osso senhor Reitor

    Detesto a literaturaTanto ou + que a antiliteratura

    (Discurso de Guadalajara, 1991)

    Mais que uma mudana de rumo, a apario daantipoesia marca um antes e um depois ineludvel naliteratura e na cultura contempornea. Durante as pri-meiras dcadas do sculo 20, se aprecia uma total flui-dez no manejo dos materiais lingsticos promovidos

    tanto pela tradio como pela experimentao, pelaruptura e pela alquimia vanguardista. J nos anos 50,todos estes registros acusam desgaste e esgotamento.Situao que se agua com a apario de novas sen-sibilidades e principalmente com os novos contextossociais e culturais. A retrica heroica, o solipsismo, ojogo verbal e o hermetismo metafrico, to prpriosdo esteticismo modernista, perdiam plausibilidadeperante as novas audincias. Por outro lado, a ru-na dos projetos ideolgicos dominantes se encarnana inequvoca e aterradora imagem de Hiroshima,Auschwitz e as atrocidades estalinistas, cones quedesenganaram definitivamente a f na racionalidade enas cosmovises herdadas. Por sua vez, as revoluescientficas tornam complexa a imagem que tnhamosda natureza e as novas tecnologias reorganizam aordem trabalhista e social que pem em movimentomodos de vida e de comunicao desconhecidos atento. assim como, forados pelas mudanas, vm tona prticas discursivas claramente desviantes arespeito da cultura ilustrada e ortodoxia esteticista:

    Durante meio sculoA poesia foiO paraso do bobo soleneAt que enfim eu vimE me instalei com a minha montanha russa

    Subam, se lhes acomoda.Mas claro que no respondo se descemBotando sangue pela boca e pelo nariz

    (Versos de Saln, 1962)

    Testemunha e atorprivilegiado desse revolucionriosculo 20, herdamos de Nicanor Parra (Chilln, 1914)sua antipoesia, possivelmente a aposta esttica maissurpreendente, sofisticada e inovadora da literatu-ra contempornea.* Uma escrita que desfrutadapelo pblico e pela crtica, mas que pede um novoolhar sobre ela. Acontece que ela desconstri todase cada uma das premissas metafsicas que susten-tam o modelo de escrita e leitura herdado, mas soprecisamente essas premissas as que impedem deapreender a sua revoluo. Essas proposies noapenas sustentam seno que promovem os modosde escrita e leitura que articulam os discursos crticose filosficos, algo que, sem dvida, d frutos nasinterpretaes, mas que no momento de abordaresta escrita no fazem outra coisa seno anestesiare reprimir suas contribuies ecologicamente revo-lucionrias! Convenhamos que o prprio anti-poeta

    sabe que este impasse cultural resulta inevitvel, aoponto que prescreve esse fracasso quando apontaque sua antipoesia :

    Um enigma que se nega a ser decifrado pelosprofessores

    (Also Sprach Altazor, 1993)

    Por essa razo acreditamos que essa comemora-o deveria nos servir como um convite para nosabrirmos ao mistrio antipotico e tentar ir almdessas premissas que nos fazem ler a anti-poesiacomo se fosse poesia, nas circunstncias em quesua escrita joga e desconstri precisamente tudoo que se entrega atravs desse feitio potico e

    seus modos de leitura.

    TUDO POESIAMenos a poesia

    (Artefactos, 1972)

    Precisamos saber ler a contradio. Ou melhor,precisamos ler essa contradio em sua radicali-dade! Pois o que sabemos que tudo nessa escritaest em contradio e no podemos reduzir nemrenunciar jamais a esse jogo de oposies. Da apossibilidade de ler a antipoesia como escrita po-tica e simultaneamente como no-potica. E noapenas isso, mas tambm como uma ferramentaque age e reflete sobre aquilo que nos foi dito que

    poesia e o que devemos esperar dela. Para tanto,mesmo que resulte contraditrio, ela integra o queessa poesia rejeitava, ignorava ou reprimia. Suasabedoria integradora, contraditria e descons-trutiva, nos permite conhecer e transformar deum modo complexo e original a nossa maneirade experimentar e conceber a poesia e tambmaquilo que se espera dela! Sem dvida, antipoesiarepresenta um momento de autoconscinciaestticae cultural sem precedentes! No esqueamos quecomplexidade vem de complexus que em latimsignifica reunir aquilo que est separado, en-samblar. Entende-se ento a necessidade e impor-tncia de assumir a complexidade da experinciaantipotica, pois, desse modo, no claudicaremosdiante daquilo que ela prpria pe em jogo:

    DEVER DE CASAAprender a viver na contradio sem conflito

    (Obras pblicas, 2006)

    Celebrar o autor homenageado com o prestigiosoprmio Cervantes nos brinda a oportunidade de lersua obra de outramaneira. E isso no nos deveriasurpreender se considerarmos que Derrida tambmtinha marcado esta transformao civilizacionalao assinalar: j que se escreve de outra maneira,devemos ler de outra maneira. Neste sentido,anunciamos aqui a necessidade de ir alm da sim-plicidade metafsica assumindo a complexidadeemergente, inclusive, como faz a antipoesia, indoalm da complexidade:

    Nicanor Parra,pela potica doantipoticoAutor chileno, nuncaeditado no Brasil, tira o

    leitor da posio passivaCesar Cuadra Bastidas (Traduo de Alejandra Rojas C.)

  • 7/24/2019 Entrevista Matilde Campilho

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    PERNAMBUCO, MARO

    pelos principais pensadores da segunda metadedo sculo, o obriga a trabalhar na desconstruodessa maneira metafsica de habitar a linguageme comeando pelo esteticismo e o status platnicodos poetas:

    Os poetas desceram do Olimpo

    (Manifiesto, 1963)

    O impacto no pblico foi imediato. A crtica,que no podia conceituar as mudanas introduzi-das pela antipoesia, desfrutava igualmente do seujogo. Essa contradio, tecida pela distncia queh entre aquilo que se desfruta e o que se entendefoi precisamente o anncio da runa definitiva dadeteriorada conscincia metafsica.

    NOTHING SERIOUSBUT MYSTERIOUS

    (Artefactos, 1972)

    O novo jogo introduzido por Parra no deixapedra sobre pedra e ri de tudo, enquanto instalano cenrio regional aquilo que chamo de trans-

    modernidade latino-americana, articulao localinseparvel dessa matriz cultural planetria que seconhecer como ps-modernismo.

    ORA ORAEu achava que os ingleses usavam penas

    (Artefactos, 1972)

    A antipoesia se articula com os atributos da falacotidiana chilena: dessa forma, inaugura uma escri-ta para todos, mas que, paradoxalmente, ningumpoder apropriar-se! Ela cria condies para queo leitor atravs de sua leitura transcenda a simpli-cidade e a complexidade e assim descubra o jogoque est sendo jogado. De fato, a experincia dacompreenso introduzida pela antipoesia no sgera um novo registro neurolingustico: libera oleitor contemporneo da metafsica e do pragma-tismo agindo na restaurao da riqueza ldica daexperincia da linguagem. No podemos esquecerque a linguagem no apenas significa, mas tam-bm age e essa dupla condio ser um caminhopara a leitura antipotica. Enquanto a escrita ea leitura metafsica mantm o leitor submersonuma compreenso semntica da linguagem, aantipoesia o faz vivenciar, tambm, a dimensoativa (compreensopragmtica) e no s isso, pois

    A estreia oficial da antipoesia se produz comPoemas y Antipoemasno ano de 1954. Desde ento,Parra se joga na difcil e incerta tarefa de rearticulara lngua potica, j que em seu modo de ver

    O cu est caindo em pedaos

    Este diagnstico que nos anos 50 parecia umalicena potica resultou ser um vaticnio per-turbador pelo seu realismo, pois manifestava aurgncia de Parra por construir uma lngua prpria(Assim como os fencios, pretendo formar meuprprio alfabeto). Uma lngua que fosse capaz desustentar-se perante as novas audincias emergidasda nascente sociedade de consumo e sua cultura demassas e principalmente, uma potica que enfren-tasse o irrefrevel conflito social e ecolgico que seadvinha. Parra declara com plena autoconscincia: preciso revisar a histria da cultura e ver emque momento a linha que vai do paraso se desviapara o inferno. A pesquisa o conduz antipoesia.Descobre que j no h tempo nem libis paraseguir ocultando nem disfarando as pulses in-conscientes que motivam a destruio da nossaespcie e seu meio (ecocdio). Para ele, a primeiratarefa ser agir ali onde se articula esse grandedesastre ecolgico: as premissas de nossa heranacivilizacional. Este diagnstico, compartilhado

    JANIO SANTOS

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    PERNAMBUCO, MARO

    ela joga com esses recursos da linguagem paraque o leitor aceda ao reino da linguagem. Acompreenso antipotica emerge precisamente dadesconstruode ambas modalidades de leitura. Parradefine isto como uma escrita que se apaga a siprpria. Esta questo fundamental! A sofisticadaradicalidade do paradoxo anti-potico consiste emintegrar o que est separado, negando-o! Seu jogopermite ler a simplicidade (aquilo que separa, que disjuntivo) e a complexidade (aquilo que rene,que conjuntivo), assumindo-as e finalmentetranscendendo-as! A ao antipotica trabalhao que nos foi herdado e vai alm dessas grandesmatrizes culturais, liberando o leitor de toda formade apropriao e de todo determinismo:

    COMPANHEIROS

    Roga-se no confundir gue gue com ge ge

    SUPLICA-SE NO CONFUNDIRA arte na revoluo com a revoluo na arte

    (Artefactos, 1972)

    No surpreende ento que a nossa racionalidadej no possa conceber nem trabalhar nesse novocenrio textual: sua dependncia simplicidadej deve de um vcio que se torna inoperante diantede uma obra que se alimenta e simultaneamentese desfaz do que foi herdado:

    FUME LOGOSO cigarro

    Dos filsofos ocidentais

    (Artefactos, 1972)

    Enquanto a leitura metafsica (fundada nesselogos) s experimentava a dimenso semntica dalinguagem enquanto a leitura pragmtica permitiaexperimentar a dimenso ativa (seu significadoperlocutivo e performativo), a leitura direta desfru-ta e goza (por tanto compreende) espontaneamenteo jogo antipotico, integrando e transcendendoessas posies. A antipoesia cria as condiespara que surja este novo leitor. Isto explica algoinaugural em nossa cultura: Na antipoesia, o va-lor das interpretaes (sejam elas metafsicas oupragmticas) resulta secundrio, pois na prtica opblico desfruta (compreende) seu jogo de maneira

    direta e concreta.

    COMO VOCS PERCEBERAMNOS ENCONTRAMOS

    NA PR-HISTORIA DA POESIA

    (Artefactos, 1972)

    Pois ento, o trabalho interpretativo semntico necessrio e parte do jogo. Bem como transcenderesse modo de compreenso. De fato, as premissasmetafsicas nos permitem ler com ferramentasconvencionais (simples) o que expressamenteno , ler com padres filosficos e culturais pr--ecolgicos uma escrita que joga e problematizaprecisamente a herana pr-ecolgica, em todosos nveis da experincia. Na verdade, todo lei-tor (incluindo aquele que depois se transformarem crtico) ao experimentar este jogo, atualiza amudana esttico-cultural. Estamos longe, pois,daquilo que se entende e espera da poesia:

    4-. A poesia passa a antipoesia tambm5-. O poeta fala para todos sem fazerdiferena com nada6-. Nossa curiosidade nos impede muitasvezes de gozar plenamente a antipoesia portentar entender e discutir aquilo queno devemos.

    (Hojas de Parra, 1985)

    Como entender esse barulho conceitual? Todaa antipoesia um exerccio para sair das arma-dilhas metafsicas: aquelas que mantm nossacivilizao encadeada e cega aos processos des-trutivos, de dominao e apropriao que elainstala. A antipoesia trabalha para que o leitorexperimente a mudana ecolgica, aquela queconsiste em no renunciar histria nem ficarpreso a ela. Por isso, no podemos esquecer quea experincia anti-potica no destri nada: elaassume a complexidade emergente em nossacultura indo alm. A antipoesia cumpre e excedeaquilo que herdamos:

    Sem Mistral, sem Huidobro, sem NerudaNo h poesia, nem antipoesiaInclusive, retiro o que eu disse

    Leiamos essa particular experincia desconstru-tiva da esttica metafsica. Para comear, o leitorno renuncia leitura semntica (interpretao).Pois bem, o falante do texto diz, contradiz e pos-teriormente se desdiz, problematizando a leiturameramente semntica, pois o significado obti-do fica alterado pelo jogo de efeitos pragmticos(ao) que o prprio texto gera: esse no tentaafirmar e negar uma simples filiao ao esteticismoherdado, mas atravs do seu jogo age e faz surgir acompreenso complexa dessas propostas (poticae antipotica) distanciando o leitor de ambas.

    Em outras palavras, ao referir-se s vozes maisrepresentativas da poesia chilena contemporneamediante recursos complexos como a contradioe a denegao, essa escrita exige aceitar e rejeitarradicalmente sua filiao (e compreenso) comopoesia e antipoesia, pois ela se articula alm dasimplicidade de essa oposio esttico metaf-sica. E aqui tocamos o ponto central desta poticaque no se sustenta seno em seu prprio jogo: otexto nos faz compreender que no suficientedefinir a antipoesia no horizonte daquilo que e no poesia ou literatura (detesto a literatura/ Tanto ou + que a anti-literatura), seno queteremos que assumir radicalmente esse jogo decontradies, pois s assim experimentaremos acomplexidade. Porm, o significado tambm no alcanado ali, pois, como vimos, transcendeesse dualismo indo alm ludicamente com essadenegao: inclusive retiro o que eu disse. O leitorfica sabendo do que precisa saber e tambm apagaesse saber empurrando-o ao vazio...ao silncio...nada! Mas deixando os registros. Na antipoesia,tudo retratao daquilo que foi dito! Mas essenada (que outro nome da morte) age como an-tdoto contra as milenrias prticas dos saberesde dominao!

    *

    Experimentamos um novo saber (um sabercujas regras impedem assumi-lo como saber).Que paradoxo! Desse modo, a antipoesia cria ascondies para que o leitor se converta em autore aprenda a jogar o jogo:

    RESENHA

    JANIO SANTOS

  • 7/24/2019 Entrevista Matilde Campilho

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    PERNAMBUCO, MARO

    E VOC QUEM ME PERGUNTA?Antipoesia voc!

    (Obras Pblicas, 2006)

    O leitor interpelado para agir e sair da posiodigestiva e passiva na qual era mantido pelo este-ticismo! O leitor instalado numa experincia queune o simples e o complexo, levando-o a vivenciara riqueza e o mistrio deste jogo da linguagempotica (e atravs deste jogo, vivenciar a riquezado mundo e do saber sobre o mundo):

    O que dir Derrida de tudo isto?Vive la diffranceQue dvida cabe

    Mas o que a diferena para ele?O registro!

    E o que o registro?O registro derridiano no :

    No nadaE no pode ser enquadrado

    Na pergunta metafsica o que ?

    Capisco?

    (Discurso de Guadalajara, 1991)

    a organizao complexa da escrita que faz surgireste leitor ativo que deve vivenciar o jogo daquilo que e no , j que a antipoesia, ao afirmar, negare denegar, no diz nada! A anti-poesia revolucionao leitor: o faz exercer ativamente sua autonomiadiante do significado dessa pgina em branco**,outro nome dessa incomensurvel nada potica:

    O dever do poetaConsiste em superar a pgina em branco

    Duvido que isso seja possvel

    (Obra Gruesa, 1969)

    No se trata apenas de uma mudana no estatutodo saber (em seu devir antiesttico) seno umamudana no estado de nimo cultural: por isso quepara a antipoesia o saber e o riso se confundem

    um erro muito grandeLevar o mundo a srio

    A verdadeira seriedade cmica

    (Also Sprach Altazor, 1993)

    Esta distncia cosmolgica da antipoesia com oesteticismo sofredor e sua gravidade metafsica seafunda muito alm do prazer da leitura. De fato,

    a antipoesia faz do humor uma funo narrativaessencial, consagrando-a gratificao existenciale recuperao da coeso ldica da comunidade(funo esttica) tal como assinalado na conhe-cida Advertncia ao leitor:

    Eu no permito que ningum me digaQue no compreende os antipoemas

    Todos devem rir a gargalhadas

    Para isso me rompo a cabeaPara chegar na alma do leitor

    (Versos de Saln, 1962)

    Referncia a um jargo popular de baixo calo sinalizan-do uma rima com a palavra grecolatinizante (venga elburro y te lo plante)Referncia ao ditado popular de origem hispnica a outroperro con ese hueso (a outro cachorro com esse osso)*Para uma aproximao mais profunda revoluo execu-tada pela anti-poesia remito aos meus trabalhosNicanorParra em serio & em broma, Universidad de Chile, Santiagode Chile, 1997 e La antipoesia de NicanoParra, um legado

    para todos & para nadie, Museo Histrico Nacional, San-tiago de Chile, 2012.**O triunfo da pgina em branco, assim se intitula aentrevista dada por Cesar Cuadra ao Dirio Catarinenseem Florianpolis, 27 de junho de 2009.

  • 7/24/2019 Entrevista Matilde Campilho

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    O COMPUTADOR QUE QUERIASER GENTEHomero Fonseca

    Certo dia, Joozinho, um garotinhode 10 anos, e Ulisses, seu computador,decidem trocar de lugar por 24 horas.A mquina queria saber como serum humano, por pensar que teria todalibedade que quisesse.

    R$ 30,00

    ERA UMA VEZ...Gabriela Kopinitz dos Santos

    A personagem Cigana Contadora deHistrias, criada pela jornalista GabrielaKopinits, que costuma ser levado escolas para sesses de contao,transforma-se em protagonista e narravrias de suas historinhas nesse livro,que promete encantar as crianas.

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    ANTONIO CALLADOFOTOBIOGRAFIA

    Ana Arruda Callado (Org.)

    Organizado por Ana Arruda Callado,viva do biografado,AntonioCallado Fotobiografiapercorre todaa trajetria do escritor, dramaturgoe jornalista, numa sucesso detextos curtos e saborosos.

    R$ 90,00

    ARTE & ARQUITETURANO BRASIL HOLANDSJos Roberto Teixeira Leite

    Resutado de 50 anos dedicadosao estudo contnuo das artes earquitetura no perodo da dominaoholandesa no Brasil, o livro deJos Roberto Teixeira Leite,Artee Arquitetura no Brasil Holands(1624-1654), se debrua especialmentesobre a Arquitetura, o Urbanismo,a Jardinstica e a Cartografia, semesquecer da Literatura, do Teatro,da Msica e das artes decorativas.

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    A EMPAREDADA DA RUA NOVA

    Livro mtico da literatura pernambucana,A emparedada da Rua Nova, escrito

    por Carneiro Vilela, deve seu sucesso,em grande parte, ao mistrio que cercasua criao: o autor teria retratadoum crime verdadeiro e hediondo,em que uma moa indefesa foraemparedada viva, pelo prprio pai, emdefesa da honra da famlia? Ou teriaVilela, usando recursos estilsticosde grande qualidade, criado a estriaque, de to bem construda, faz comque at hoje muita gente acrediteque ele se baseou em fatos reais?

    R$ 45,00

    ALGUM VIU MINHA ME?Pedro Henrique Barros

    Uma menina e uma joaninha vivemo mesmo dilema: uma srie de malentendidos faz com que se sintamabandonadas pela me at queos problemas se resolvem e elascompreendem que so muito amadas.

    R$ 20,00

    TIMO PORTODE HENRIQUE GALVO

    Ana Maria Csar

    Minuciosa pesquisa sobre o ambienteque cercava o capito Henrique Galvo,comandante do navio portugus SantaMaria, que atracou no Recife em 2 defevereiro de 1961, com 871 pessoas a bordo.Galvo apoderou-se do navio em protestocontra a ditadura salazarista, e recebeu asilopoltico concedido pelo recm empossadopresidente brasileiro Jnio Quadros.

    R$ 45,00

    O CORPO E A EXPRESSOTEATRALGeorges Stobbaerts

    O livro nasceu das experincias doautor , que aliou a prtica de Jud,

    Kendo, Iaido e Aikido, as filosofiasZen e Yoga e a formao de atores,resultando numa articulao entre aarte e o movimento, da qual nasceu oprojeto Tenchi Tessen, que se baseia emreflexo, meditao e ao.

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    SUBVERSIVOS: ANOS APS OGOLPE MILITARJoana Rozowykwiat

    Alguns dos subversivos que atuaram emPernambuco aps o golpe militar de 31

    de maro de 1964, entre os quais LucianoSiqueira e Humberto Costa, abrem o corao,revelando como se sentem em relao aopassado e o que esperam para o futurodo Brasil. O livro nasceu da tese de ps-graduao em Jornalismo Poltico da autora.

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    POEMAS Daniel Lima

    Poemas 2 rene as obras inditasCancioneiro do Entortado eDernantonte, que aproximam umaexpresso popular nordestina e umabrincadeira ou cano antiga, numjogo de palavras que revela o apelo afirmao de algum que encontra napoesia o meio de, mergulhando emseu ntimo, entregar ao leitor o quedescobrira nas profundezas de si prprio.

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    HUMOR, AVENTURA E HISTRIA EMLIVROS PARA ADULTOS E CRIANAS

    SUBVERSES MATEMTICAS PARA JOVENS DE A ANOSDcio Valena Filho

    Jogos, quebra-cabeas e brincadeirasque utilizam o raciocnio lgico

    compem o livro de Dcio Valena,engenheiro que se intitula matemticoamador por ser um apaixonado destacincia. Inclui historietas atribudasa gnios da matemtica, e decifra osproblemas mais difceis.

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  • 7/24/2019 Entrevista Matilde Campilho

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    PERNAMBUCO, MARO

    RESENHARenata Beltro

    Do impulso modernizador ao gourmet

    UN SOIR DE GRAND PRIX AU PAVILLON DARMENONVILLE, , DE HENRI GERVEX/ REPRODUO

    Pegue uma receitaqualquer, acrescente um nomepomposo e voil est pronto um prato digno decustar trs vezes mais. Ou acresa ao bom e velhocarrinho de cachorro-quente um nome estrangeiro.Batize-o, digamos, defoodtruck, e obtenha o mesmoefeito. Ou, ainda, venda um apartamento com umachurrasqueira embutida e chame aquilo de varandagourmet. Fica melhor na propaganda, junto com atranquilidade de um muro eletrificado isolando oprdio do perigoso mundo l fora.

    Numa poca em que a mobilidade social d ascaras e borra algumas fronteiras at pouco tempomuito bem definidas no perfil econmico dos bra-sileiros, a gourmetizaovem sendo, ao que parece,uma estratgia contempornea bastante difundidapara diferenciao entre pessoas, tendo a gastro-nomia como um dos principais marcadores.

    E se a internet pode trazer algum indicador depercepo desse fenmeno, vale lembrar que estefoi um dos temas mais recorrentes de memesem2014. Como no chorar de rir com o raio gourmeti-zador, que transforma uma singela tapioca de R$ 1na tapioquinha rstica com renda de creme burle(sic) a R$ 26,50? Na ausncia de real diferencia-o do produto, so o nome prolixo e o preo quecumprem o papel de separar consumidores entrequem pode ou no pagar pela exclusividade, aindaque esta seja mais retrica do que prtica.

    O nome novo, mas as razes remotas da gourme-tizaoremontam prpria origem dos restauran-tes no Brasil, quando a vontade de modernizaoimportou o hbito parisiense de comer fora juntocom todas as instituies, utenslios e convenessociais a ele relacionados. Na Recife do final dosculo 19 e incio do sculo 20, a moda era ser fran-cs: comer em um restaurant, servido por um garon,hospedar-se em um htel e brindar comchampagne.E se o prato no tinha l uma origem muito gaulesa,mais importava que o nome o fosse: por que comerfrutas e bolo se era possvel degustarfruits divers etgateaux varis? O preo majorado, obviamente, parafazer jus ao nome estampado no menu.

    Em livro lanado em dezembro de 2014 pela CepeEditora, o historiador e gastrnomo Frederico deOliveira Toscano resgata a poca em que o impul-

    francesaEditoraCepePginas 338PreoR$ 50,00

    O LIVRO

    so modernizador toma a capital pernambucanade assalto, acarretando uma srie de mudanasnos hbitos sociais, inclusive gastronmicos. Esseprocesso de europeizao acabou tendo a curiosaconsequncia de lanar numa cruzada regionalistao ento jovem socilogo Gilberto Freyre. francesa:a Belle poque do comer e do beber no Reciferetrata ummomento definidor da cultura recifense e brasileira,partindo da gastronomia para evidenciar como ainfluncia estrangeira marcou (e ainda marca) a

    identidade local em vrios outros setores.At o advento dos restaurantes e cafs importados

    de Paris, eram inditos no s os espaos, mas aprpria necessidade de comer fora. Refeies eramquase sempre uma exclusividade domstica. E anica forma de viajantes contarem com um mnimode conforto no Recife era chegar com uma cartade recomendao para se hospedar com uma dasabastadas famlias tradicionais.

    No contexto da mudana, os restaurantes e sor-veterias surgem como primeiros espaos que mu-lheres podem frequentar publicamente sem riscode censura, embora os cafs tenham permaneci-do ambientes estritamente masculinos por vriasdcadas posteriores. Os francesismos definem,tambm, uma nova forma de ritualizar reuniespolticas em torno da mesa, sendo a abertura dochampanhe a senha para o incio dos discursoslaudatrios aos convidados, especialmente se entreeles havia membros de governo.

    Nos anos 1920, o incmodo com a exacerbaodos estrangeirismos mesa levou Gilberto Freyrea maturar seu Manifesto Regionalista, incluindo a culi-nria como um dos pilares da defesa das tradi-es pernambucanas. Freyre advoga um retornoreverente ao passado com a criao de cafs erestaurantes regionais, com os doces das gordasquituteiras negras, as receitas de bolos das sinhse as tapiocas de inspirao indgena.

    O paradoxo, ressalta Toscano, que Freyre defen-de tudo isso no ambiente de instituies estrangei-ras por princpio os prprios cafs e restaurantes,franceses at o tutano. Esta influncia foi negligen-ciada pelo mais clebre socilogo pernambucanoem prol de um idealizado tringulo equiltero em

    que as influncias negra, indgena e portuguesamonopolizariam com igual peso a definio dacultura gastronmica brasileira.

    Acima de tudo, nesta Belle poquerecifense no erao bastante ser moderno o essencial mesmo eraparecer moderno. Da a febre pela adoo indiscri-minada de nomes franceses e dos adjetivosfrancs,

    francesae francesa,e de nomenclaturas longussimasmesmo para produtos categoricamente brasilei-ros como o caso do pozinho francs, que de

    europeu mesmo s tinha a farinha de trigo. Seriamos primrdios da gourmetizaocontempornea, jque at o neologismo vem do francs?

    Em entrevista, Toscano diz que na origem sim,embora o processo recente tenha a ver com mu-danas sociais e seja mais individualizado, nomais um reflexo direto do impulso modernizadordo comeo do sculo 20, que envolvia um idealcoletivo de pas. Hoje, famlias que j so abas-tadas ou que migram para classes sociais maisaltas desejam se diferenciar do passado, do outro,da pobreza. J que at a faxineira viaja de avio,vamos ao menos comprar sorvete Ben&Jerrys,ficar uma hora na fila, pagar 10 reais cada bola enos sentirmos diferenciados, explica.

    A influncia estrangeira seguiu lanando seustemperos caarola pernambucana, tanto que osefeitos da presena americana durante a SegundaGuerra Mundial sobre os hbitos gastronmicos doRecife o tema da tese de doutorado que Toscanoj comea a desenvolver na Universidade de SoPaulo (USP). No avanar dos anos 1900, o gourmetfoi cedendo parte do seu espao ao cool. Mas, ao queparece, com novas leituras e significados, no nosdeixou, nem nos deixar to cedo.

    RITUALOs sales francesesexportaram para omundo uma ideia desofisticao para o atode comer

  • 7/24/2019 Entrevista Matilde Campilho

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    PERNAMBUCO, MARO

    IN

    DITO

    S

    WilliamHolding

    Traduo:SrgioF

    laskman Lok corria o mais depressa possvel. Com a ca-bea abaixada, carregava seu ramo de espinheiro

    em posio horizontal para manter o equilbrio, eafastava a tapas os aglomerados de brotos com amo livre. Liku vinha montada nele, rindo, uma dasmos agarrada s mechas castanhas que cresciam

    em seu pescoo e nas suas costas, a outra segu-rando a pequena Oa bem encaixada debaixo doqueixo dele. Os ps de Lok enxergavam, e sabiamo que fazer. Cuidavam de contornar as razes pro-eminentes das faias, saltavam quando uma poadgua se atravessava na trilha. Liku batia com osps na barriga dele.

    Mais depressa! Mais depressa!Os ps de Lok fincaram no cho, ele deu uma

    guinada e reduziu a velocidade. Comearam a ouviro rio que corria paralelo, mas invisvel, esquerdadeles. As faias se espaaram, o mato baixo desa-pareceu e chegaram ao trecho plano de lama ondeficava o tronco.

    Olha, Liku.A gua nix do charco se estendia frente deles,

    alargando-se para dentro do rio. A trilha ao longo dorio recomeava do outro lado, num terreno que ia se

    elevando, at se perder no meio das rvores. Lok,com um sorriso feliz, deu dois passos na direo dagua e parou. O sorriso sumiu, e sua boca se abriuat o lbio inferior ficar pendente. Liku escorregoupara os seus joelhos e pulou para o cho. Levou boca a cabea da pequena Oa, cuidando dela.

    Lok deu um riso de dvida.O tronco foi embora.Fechou os olhos com fora e franziu a testa para

    a imagem do tronco. Ficava estendido na guaentre este lado e o outro, acinzentado e apodre-cendo. Quando voc chegava ao meio sentia odeslocamento da gua debaixo dos ps, o horrorda gua, atingindo em certos pontos a profundi-dade dos ombros de um homem. No era umagua desperta, como o rio ou a cachoeira, masadormecida, espalhando-se at o rio e a acordan-do, e seguindo para a direita na direo da matafechada, um lodaal, um pntano e um atoleirointransponveis. Estava to seguro daquele troncoque as pessoas sempre tinham usado que tornoua abrir os olhos, esboando um sorriso como seacordasse de um sonho; mas o tronco tinha sumido.Fa chegou trotando pela trilha. O mais novo vinhadormindo nas suas costas. No temia que ele casseporque sentia as mozinhas agarradas aos seuscabelos na altura do pescoo e os ps presos aospelos que tinha mais abaixo nas costas, mas trotavamuito de leve para ele no acordar. Lok ouviu seuspassos antes que ela surgisse sombra das faias.

    Fa! O tronco foi embora!Ela veio direto at a beira da gua, olhou, fare-

    jou o ar e se virou para Lok com uma expressoacusatria. Nem precisou dizer nada. Lok atirou acabea para trs.

    No, no. Eu no tirei o tronco para fazer graa.

    Ele sumiu.Abriu muito os braos para indicar que a ausncia

    era completa, viu que tinha sido entendido e tornoua baix-los. Liku falou com Lok.

    Me balana.Estendia as mos para um galho de faia que pen-

    dia da rvore como um pescoo comprido, atencontrar a luz e se erguer na direo do cu, umabraada de brotos verdes e marrons. Lok deixoude lado o tronco que no estava mais l e ps Likusentada na parte mais baixa do galho, que come-ou a deslocar para o lado, puxando, recuandoum pouco a cada passo enquanto o galho rangia.

    Ho!Soltou o galho e caiu sentado. O galho deu um

    salto para a frente e Liku gritou, encantada.No! No!Mas Lok tornou a puxar o galho vrias vezes e

    aquela braada de folhas carregava Liku, que gri-tava, ria e protestava, ao longo da beira da gua. Faolhava da gua para Lok, e novamente para a gua.Franzia novamente a testa.

    Ha chegou pela picada, andando depressa mas semcorrer, mais reflexivo do que Lok, o homem certopara uma emergncia. Quando Fa o chamou, ele norespondeu de imediato, olhando para a gua vazia edepois para a esquerda, onde se via o rio para alm dacpula de faias. Em seguida, vasculhou a floresta comos ouvidos e o faro procura de intrusos, e s quandoficou convencido de que estavam seguros baixou seuramo de espinheiro e se ajoelhou junto gua.

    Olha!Seu dedo apontava para os sulcos submersos que

    o tronco tinha deixado. As bordas ainda se manti-nham definidas, e os pedaos de terra solta dentrodos sulcos ainda no tinham sido desintegradospela gua que os cobria. Acompanhou o traado dossulcos que se afastavam pela gua abaixo, afundan-do at desaparecerem na escurido. Fa olhou parao outro lado, o recomeo da trilha interrompida. Aterra estava revolvida no lugar onde a outra pontado tronco antes se apoiava. Dirigiu uma perguntaa Ha, e ele respondeu com a boca.

    Um dia. Talvez dois. Mas no trs.Liku ainda gritava e ria.

    *Trecho do romance Os herdeiros, que a Alfaguara

    lana este ms.

    KARINA FREITAS

  • 7/24/2019 Entrevista Matilde Campilho

    21/24

    PERNAMBUCO, MARO

    IN

    DITO

    S

    JulianaBratfisch

    Sade: representaro irrepresentvelNa ocasiode seu bicentenrio de morte omuseu dOrsay de Paris sediou uma grandeexposio em torno de Sade. No se trata deum exerccio biogrfico, nem de uma anliseda histria literria, tampouco de um percursoque busca catalogar influncias diretas do ima-ginrio sadiano nas artes plsticas dos sculos

    19 e 20. Enuncio desse modo: Sade. Attaquer lesoleil uma exposio arquitetada sob o signode Sade. A sua fora reside em apresentar umasensibilidade imagtica comum tanto icono-grafia ertica exposta quanto ao texto sadiano,fazendo com que o texto, tambm dispostonas paredes, no seja apenas um guia para quesejam lidos os trabalhos plsticos apresentados,mas uma produo que se faz contemporneaa esses trabalhos.

    O texto introdutrio do catlogo da exposionos indica que o projeto comeou como umasimples piada: Por que no Sade no Louvre?.Por trs da piada reside, porm, uma das ques-tes mais difceis de responder: o que haveria deto audacioso em confrontar Sade materialida-de do museu? Em que consiste a grande tensoque h na passagem do imaginrio sadiano para

    a materializao de seus motivos? Ao abordaressa questo no estamos muito distantes dogrande mal-estar causado por aquela que con-sidero a mais extrema de todas as leituras feitasde Sade ao longo do sculo 20. Me refiro leiturafeita por Pasolini em Sal ou os 120 dias de Sodoma,extremamente violenta no apenas por associarfascismo e sadismo, mas tambm pela ousadiade ter colocado o texto sadiano em imagens.Censurado na Itlia, Salteve a sua premirenaFrana, onde foi inicialmente sacralizado pelaimprensa afinal, tratava-se do ltimo filmede Pasolini, assassinado poucos meses antes, mas num segundo momento gerou leiturasnegativas que indicaram o mal-estar dos inte-lectuais de sua gerao diante do filme.

    ric Marty, em seu Pourquoi le XXe sicle a-t-ilpris Sade au srieux?, expe que a projeo do malno plano da imagem cinematogrfica, a suaperfeio esttica, a implicao de Sade com ofascismo e, por extenso, com o neofascismoque assoma na Itlia na dcada de 1970 fazcom que Pasolini coloque to acima o srio aque Sade teria sido submetido durante todo osculo 20, que torna a sua leitura de uma vio-lncia impossvel de se partilhar, mesmo poraqueles que tomaram Sade como um de seuscontemporneos. O sculo 20 traado por ricMarty exclui estrategicamente Apollinaire, ossurrealistas, Jean Paulhan, Maurice Heine, operodo em que se d a construo de mitologiasem torno de Sade e o polmico ativismo edito-rial, assim como todas as leituras acadmicasfeitas a partir da dcada de 1980 na Frana,para se concentrar num sculo 20 em que, se-

    gundo o autor, Sade lido e levado a srio. Osculo 20 traado por ric Marty se inicia comas leituras feita por Adorno e Horkheimer emA dialtica do esclarecimentoe Pierre KlossowskiemSade, meu prximo, ambas na dcada de 1940,terminando com o Salde Pasolini, filmado em1975. preciso pontuar, porm, aquilo que no

    recorte feito por ric Marty distingue esse srioa que Sade teria sido submetido: o autor em seurecorte opta por leitores ativos de Sade, leitoresque tenham subvertido o texto sadiano, feitouso de seus motivos e tomado o sujeito sadianocomo motor de seus pensamentos e escritas.Esse sculo que levou Sade a srio passa porPierre Klossowski, Maurice Blanchot, GeorgesBataille, Michel Foucault e Roland Barthes, poisSade foi a medida para todos esses leitores. Se,num primeiro momento, com as leituras deGeorges Bataille e Maurice Blanchot, haveria,grosso modo, a construo de um sujeito sadiano,o sujeito perverso como novo sujeito da histriamoderna, num segundo momento, com a ne-gao de Deleuze a favor de Sacher-Masoch oucom o uso