eric voegelin - estudos de idéias políticas.pdf

88
Textos on-line de Eric Voegelin ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS ERIC VOEGELIN ** A Idade Média - Dos Nibelungos a Jerónimo Bosch - A . O Crescimento do império 1 Estrutura Geral da Idade Média 2 Os Povos Germânicos Migrantes 3 O Novo Império 4 A Primeira Reforma B. A ESTRUTURA DO SÉCULO 5 Introdução 6 João de Salisbúria 7 Joaquim de Fiora 8 S. Francisco de Assis ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%20índice%20da%20idade%20média.htm (1 of 2) [27/03/2002 07:18:19]

Upload: clayton-mendonca

Post on 10-Aug-2015

531 views

Category:

Documents


11 download

TRANSCRIPT

Page 1: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

 

Textos on-line de EricVoegelin

ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS

ERIC VOEGELIN

**

A Idade Média

- Dos Nibelungos a Jerónimo Bosch -

A . O Crescimento do império●

1 Estrutura Geral da Idade Média●

2 Os Povos Germânicos Migrantes●

3 O Novo Império●

4 A Primeira Reforma●

B. A ESTRUTURA DO SÉCULO●

5 Introdução●

6 João de Salisbúria●

7 Joaquim de Fiora●

8 S. Francisco de Assis●

ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%20índice%20da%20idade%20média.htm (1 of 2) [27/03/2002 07:18:19]

Page 2: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

9 Frederico II●

10 O Direito●

11 Sigério de Brabante●

C. O CLÍMAX●

12 S. Tomás de Aquino●

D. A IGREJA E AS NAÇÕES●

13 Carácter do Período●

14  Ultramontanos e Egídio Romano●

15 Monarquia Francesa●

16 Dante●

17 Marsílio de Pádua●

18 Guilherme de Ockham●

19 Política Nacional Inglesa●

20 Da Cristandade Paroquialà Cristandade Imperial

21 A Área  Imperial●

22 O Movimento Conciliar●

 

ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%20índice%20da%20idade%20média.htm (2 of 2) [27/03/2002 07:18:19]

Page 3: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

  

ERIC VOEGELIN

ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS

**

A época medieval

Capítulo 7. Joaquim de Fiora

1. O progresso na história

Era geral na época o sentimento de que o crescimentodas ordens significava um progresso da espiritualidade,inaugurando uma nova fase da vida cristã. A experiênciarevelatória de Joaquim accionou estas potencialidades ecriou uma nova configuração da história. O passodecisivo foi a concepção do Terceiro Reino não como umsabbath eterno mas como a idade derradeira da históriada humanidade que se segue à eleição do filho.

O decurso de um reino abrange um período preparatório(de Adão a Abraão, 21 gerações) seguido pela initiatio,(Abraão a Uzias, 21 gerações) e a fructificatio (Uzias aZacarias, 21 gerações) a última das quais é ao mesmotempo o período preparatório para o próximo reino. Osreinos têm, pois, 42 gerações; e como a duração dasgerações para o reino de Cristo é de 30 anos, o segundoreino terminaria em 1260. A data é antecedida para 1200porquanto o próprio Segundo Reino é precedido por umcurto período preparatório das duas geraçõesprecursoras de Zacarias e João Baptista de modo queJoaquim está no final do Segundo reino e pode ser oprofeta do Terceiro. O começo de cada reino é marcadopor uma trindade de dirigentes, dois precursores e odirigente do próprio reino com os seus doze filhos(Abraão, Isaac, e Jacob com os seus doze filhos carnais;Zacarias, João Baptista e Cristo o homem, com seus doze

Capítulo 7

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Joaquim_Fiora.htm (1 of 9) [27/03/2002 07:18:34]

Page 4: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

filhos espirituais). O Terceiro Reino, a seguir a Joaquim,começará, portanto, com dois precursores a seremseguidos na terceira geração por um novo dirigente, umDux e Babylone, que será o fundador do Reino doEspírito.

 

2. O significado da história 

 O primeiro símbolo“é a concepção da história como umasequência de três eras, das quais a última é claramente oterceiro reino final”.[1] Entre as variantes de notóriarelevância política, estão a partição da história emépocas antiga, do cativeiro  e dos santos na terra quemarcou a revolução puritana; a doutrina Iluminista  dasucessão de fases teológica, metafísica e enciclopédica marca a revolução de 1789; a dialéctica marxista com ostrês estádios de liberdade inconsciente, alienação e reinoda liberdade  findou em 1989; o ciclo formado por santoimpério, império do Kaiser  e terceiro império  inspirou oReich  nacional-socialista dos mil anos que findou em1945.[2]

3. Os elementos constantes da nova especulação política.

a. A concepção de Joaquim resultou num conjunto deelementos formais para a interpretação do saeculum que,desde então, permanecerá, isolado ou em combinação,parte integrante da especulação política  ocidental.

b. A Função do Pensador Político

O terceiro símbolo é o do profeta da nova Era, que podesurgir confundido com o dirigente. O próprio Joaquim deFiora representa o primeiro modelo do intelectual quepresume ter uma visão do curso da história como umtodo acessível ao conhecimento. Sucessivas vanguardasiluminadas irão reclamar-se de idêntico conhecimento damarcha do tempo e propor as suas especulações como alógica da história.

Capítulo 7

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Joaquim_Fiora.htm (2 of 9) [27/03/2002 07:18:34]

Page 5: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

c. O dirigente do terceiro Reino

O terceiro símbolo é o de dux, o dirigente cuja erupção éconstante em todos os movimentos revolucionários. Estedirigente desdobra-se por paráclitos agnósticos e ateusconforme a sensibilidade e as categorias de análise daépoca em que se faz anunciar. O símbolo ressurge nospríncipes novos  da Renascença, nos iluminados  doséculo das Luzes, nos revolucionários  de 1789, nosgénios do Socialismo e nos dirigentes totalitários  doséculo XX.

d. A irmandade das pessoas autónomas

O quarto símbolo é o da irmandade ou fraternidade quese estabelece entre os que participam no Espírito. Anoção de uma comunidade de perfeitos que vivem semautoridade institucional e sem a mediação da Graçapresta-se, segundo Voegelin, a inúmeras variaçõeshistóricas. Ressurgiu nas Igrejas puritanas dos santos eem numerosas ideologias da modernidade em cujosautores a razão se incarnara tão perfeitamente queconsideram a própria mente como critério de verdade;alguns, como Lenine e Hitler, desceram à arena políticapara canalizar os movimentos de massa para a acçãodestrutiva.

Nos três reinos predominam sucessivamente a lei, agraça e o espírito.  No primeiro reino desenvolveu-se avida do leigo, no segunda a vida do sacerdote, no terceiroa contemplação espiritual perfeita do monge. No nível dahistória espiritual a intelligentia spiritualis irá procederdo Velho e do Novo Testamentos, tal como o Espírito procede do Pai e do Filho. O Espírito irá manifestar-sesocialmente através de uma nova ordem. A perfeição davida é dada através dos três elementos de contemplação,liberdade e espírito. O novo aparecimento do Espíritoestá fora da história dos Evangelhos que constituem osegundo reino; os quatro evangelhos serão seguidos porum quinto, o evangelium eternum anunciado em

Capítulo 7

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Joaquim_Fiora.htm (3 of 9) [27/03/2002 07:18:34]

Page 6: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

Apocalipse, 14, 6. Não será um evangelho escrito mas oEspírito na sua actualidade, transformando os membrosda Ordem em membros do Reino, (evangelium regniMateus, 4,23) sem mediação sacramental. A Igrejadeixará de existir no Terceiro reino porque os donscarismáticos necessários para a vida perfeita, alcançarãoo homem sem administração sacerdotal de sacramentos.

Estas construções simbólicas criam uma evocação deuma nova ideia do homem como uma pessoa espiritualautónoma e livre, capaz de formar uma comunidade desolidariedade fraterna, independente da organizaçãoeclesiástica e feudal da sociedade. O homem, dotado depoderes espirituais amadurecidos surge como oorganizador potencial da comunidade. Podemos ver alinha que liga o protestantismo intelectual dos YorkTracts, com o individualismo tiranicida de João deSalisbúria como a ideia joaquimita de libertação dohomem de formas sociais, eclesiásticas ou profanas, euma época que está morrer. Podemos ainda reconheceras camadas sociais portadoras do novo sentimento;cresceram para além da população urbana da Pataria ede intelectuais isolados da população rural; Joaquimtalvez fosse de origem rural.

Mas também são óbvias as limitações da ideia. O terceiroreino é constituído por uma elite religiosa. Perdeu-se ocompromisso civilizacional que confere eficácia aocristianismo. O novo reino não tem lugar para asfraquezas do homem nem para a variedade dos seusdotes naturais. A riqueza humana da ideia de corpomístico perde-se no igualitarismo aristocrático depessoas espiritualmente maduras. A evocação deJoaquim pode originar um seita mas não um povo. A suaconstrução é a fórmula mais geral para o problema daera porque emana do centro espiritual mas o conteúdosocial restrito deixa a ideia a flutuar. O homemespiritualmente maduro de Joaquim segue-se aoindivíduo político de João de Salisbúria e ao intelectual

Capítulo 7

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Joaquim_Fiora.htm (4 of 9) [27/03/2002 07:18:34]

Page 7: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

independente dos York Tracts. O leque de possibilidadesintramundanas está a crescer mas não existe umasíntese à vista.

A concordância tradicional entre os dois numa sequênciaa exigir um terceiro momento, o da plena manifestaçãodo Santo. Às três pessoas da Trindade correspondem trêsfases da humanidade.

Na era do Pai com temor e tremor,  até ao nascimento deJesus Cristo.

Na era do Filho, anunciada por Uzias, em fé e humildade,desenvolveu-se

A terceira era, a do Espírito Santo, já anunciada por S.Bento trará a

Perante esta nova escatologia tornava-se secundário que,conforme especulações numerológicas correntes, Fioracalculasse que a “terceira era” principiaria em 1260 aomanifestar-se o dux ex Babylone, dirigente apocalípticoda nova época.[6]

 34 A re-interpretação do saeculum cristão

Para Huizinga a inserção de Joaquim de Fiora comogrande precursor da Renascença assenta numa correntede ideias definida com precisão. Para Spengler, ele foi "oprimeiro pensador de estatura hegeliana a abalar aconfiguração mundial dualística de Agostinho, umformulador da Nova Cristandade com o seu intelectoessencialmente gótico". Norman Cohn descreveu Fioracomo"inventor do novo sistema profético que haveria deser o mais influente de todos os conhecidos na Europa atéao aparecimento do marxismo". Embora as ediçõescríticas destes textos estejam ainda hoje incompletas, osmateriais historiográficos são abundantes graças a umasequência de estudiosos como Denifle, Renan, Fournier,Grundmann, Benz, Buonaiuti, Tendelli e Taubes, activosdesde finais do século passado. Mas, lembrava Friedrich

Capítulo 7

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Joaquim_Fiora.htm (5 of 9) [27/03/2002 07:18:34]

Page 8: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

Heer em 1953 "ainda estamos longe no início de umainterpretação de Fiora".

Voegelin seleccionou Joaquim de Fiora como criador do"conjunto de símbolos que preside, até hoje, àauto-interpretação da sociedade moderna".[3] Compostosnos fins do séc. XII, os escritos joaquimitas forampublicados pela primeira vez em Paris em meados do séc.XIII, tendo o editor escolhido para título da colecção dasobras principais a expressão nelas frequente "um novoEvangelho Eterno". Reconhecidas como obras autênticassão a Concordia Novi ac Veteris Testamenti  (1184-89),Expositio in Apocalypsim (1184-1200) e Psalterium decemChordarum (1184-1200). Entre as obras menores depoiscoleccionadas encontram-se Tractatus super QuatuorEvangelia, De Articulis Fidei, Adversus Iudeos e o tratadoperdido De Essentia seu Unitate Trinitatis. É aindarelevante o Liber Figurarum, atribuído a um discípulo,cujos diagramas representativos - três círculos enleadose parcialmente sobrepostos e cruzados peloTetragrammaton - correspondem a cada uma das épocasda Trindade e acrescentam um dinamismo temporal àênfase habitual na revelação do Deus uno e trino.[4] Aoriginalidade resulta mais evidente se confrontada comos escritos do seu tempo e com as respostas àsinterrogações filosóficas sobre as características do serdivino.[5]

Seguindo esta via, Voegelin atribui a Fiora o símboloculminante da imanentização do eschaton: "O primeirosímbolo é a concepção da história como uma sequência detrês eras, das quais a última é claramente o terceiro reinofinal".[7] Entre as variantes notórias, contam-se apartição da história em antiga, medieval e moderna; asdoutrinas iluministas e positivistas acerca da sucessãode fases teológica, metafísica e científica; as dialécticashegeliana e marxista com três estádios de liberdadeinconsciente, alienação e reino da liberdade; e enfim, ociclo formado por Santo Império, Império do Kaiser e

Capítulo 7

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Joaquim_Fiora.htm (6 of 9) [27/03/2002 07:18:34]

Page 9: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

Dritte Reich  nacional-socialista.[8] Nesta leituravoegeliniana entrelaçam-se motivos positivos e negativosque revelam uma relação muito complexa que quasepoderíamos classificar de edipiana. Voegelin denuncia afalsificação fiorita do carácter trinitário numa gnose querebate o ser divino sobre o tempo histórico. Rejeita que aidade do espírito, identificada por símbolos comoconsummatio, renovatio, reformatio, recreatio eressurrectio  seja a de uma nova era da humanidade.Rejeita o primado do futuro sobre as idades do presente epassado, expresso na preferência concedida a símbolostais como proficere, ascendere, progressio, mutatio,processus, sucessio. Rejeita que o alvo final da históriahumana na terra seja a liberdade do mútuoreconhecimento trazida por uma nova fraternidade,baseada na comunidade de monges. Rejeita que tenhaqualquer sentido, pura e simplesmente, falar de umdesenlace terreno da existência humana. A censura éradical. Mas até que ponto esconde Voegelin asdiferenças profundas entre o pneumatismo de Joaquim eo imanentismo moderno que afirma ser suaconsequência obrigatória ? Como se comprova pelamovimentação dos franciscanos espirituais em ordem àterceira era, tal visão não conduz necessariamente àsconstrução imanentistas da modernidade.

Acresce que, ao anunciar o advento de um mundo novo,Fiora interpreta o seu tempo como época de colapso edesarticulação apocalíptica. Poder temporal e poderespiritual combatiam-se sem tréguas corrompendo aordem cristã que se deveria reger pelo equilíbrio entre osdois poderes. Está a acabar o período do Filho e omomento é propício para pregar o abandono do mundovelho. A desarticulação da ordem cristã imperial viabilizao anúncio de uma nova ordem, sem Império nem Igreja ecom uma religião desmundanizada. Donde o anúncio daterceira era a ser instaurada pelos monges, os santoscidadãos da cidade de Deus. O que levou Voegelin a estenexo entre profetismo e imanentismo ? Por que razão

Capítulo 7

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Joaquim_Fiora.htm (7 of 9) [27/03/2002 07:18:34]

Page 10: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

pensou que a Idade Média floresceria contra aauto-interpretação cristã ? Porque concebeu a tensãomedieval entre o “reino de Deus” e a sociedadedessacralizada seguida pela mais grave das quedas? Eque civilização poderia desenvolver-se contra a suaprópria ideia directiva ?

[1] NSP, p.115.

[2] Moeller van den Bruck criou o símbolo do Dritte Reich  emobra com idêntico título, editada em Hamburgo, em 1923, aotrabalhar na edição das obras de Dostoievski sobre a TerceiraRoma. A sua intenção claramente nacionalista mas românticaera incompatível com a ideologia nacional-socialista que seapropriou do termo.

[3] NSP, pp.110-113. Lembre-se o verso que Dante lhe dedica naDivina Comédia , Paraíso, XII, 139-141: "...e lucemi da dato/ IlCalabrese abate Gioacchino/Di spirito profetico dotato". Na suainterpretação, Voegelin tem presente TAUBES 1947, emparticular pp.192-4, para o qual a história espiritual do Ocidenteé a da dinâmica e dialéctica da alienação existencial; cita aindaLÖWITH 1949, GRUNDMANN 1927 e  BUONAIUTI 1931.

[4] Cf. bibliografia joaquimita in RUSSO 1954.

[5] Para MURRAY 1970, pp.102-104, a consciência historiográficano séc. XII, depende da interpretação da restauratio oureformatio, tratadas quer como retorno a um passado modelarquer como criação de um futuro inaudito.

[6] Cf. LÖWITH 1949,pp.148-9:"The first dispensation ishistorically an order of the married, dependent on the Father; thesecond an order of clerics, dependent on the Son; the third anorder of monks dependent om the Spirit of Truth. The first age isruled by labor and work, the second by learning and discipline,the third by contemplation and praise, The first stage possessesscientia, the second  sapientia ex parte, the third  plenitudointellectus".

[7] NSP, p.115.

Capítulo 7

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Joaquim_Fiora.htm (8 of 9) [27/03/2002 07:18:34]

Page 11: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

[8] Moeller van den Bruck criou o símbolo do Dritte Reich  emlivro com idêntico título, editada em Hamburgo, em 1923, aotrabalhar na edição das obras de Dostoievski sobre a TerceiraRoma. A sua intenção nacionalista não coincide com a ideologianacional-socialista que se apropriou do termo. 

Capítulo 7

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Joaquim_Fiora.htm (9 of 9) [27/03/2002 07:18:34]

Page 12: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

Estudos de Ideias Políticas - II. A Idade média - Capítulo8.

 São Francisco de Assis

Como figuras simbólicas da sua época, as personalidadesde São Francisco de Assis e de Joaquim de Fiora estãointimamente ligadas. São Francisco não teria sido vistopelos Espirituais como a figura decisiva que inauguravauma época nova na história cristã, se as profecias deJoaquim não fornecessem o padrão simbólico para a suainterpretação; e as profecias de Joaquim não poderiamter exercido a sua forte influência no séc. XII, e emDante, a menos que a aparecimento de São Franciscoconfirmasse a previsão do Dux de uma nova era.

Tal como no caso de Joaquim, na interpretação de SãoFrancisco, temos de atentar na peculiar relaçãodialéctica entre as suas ideias e as suas acções. Adoutrina de São Francisco é um evangelho de amorfraterno, de pobreza, obediência e submissão. A acção deSão Francisco é revolucionária; dimana de uma vontadeauto-afirmadora, inflexível e dominante, e cria um estilode vida para o simples leigo, o idiota, sem grau feudalnem eclesiástico, mas equiparado às duas grandesordens da autoridade temporal e espiritual. Odenominador comum da acção evocativa neste tempo é oimpulso de forças humanas para encontrar o seu lugarnum mundo cristão preocupado com os poderesestabelecidos.

A necessidade trágica da criação de uma Ordem, mesmode amor, e que exige uma dureza daimoníaca de acçãoque ofende os circunstantes, matiza a página franciscanado Louvor das Virtudes. A virtude da obediência temcomo função a completa submissão do corpo à lei doespírito; o homem está submetido aos seuscompanheiros e mesmo aos animais selvagens: Opacifismo radical de não-resistência em São Franciscoparece ser o oposto da violência tiranicida em João de

Francisco de Assis

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Francisco%20de%20Assis.htm (1 of 7) [27/03/2002 07:18:39]

Page 13: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

Salisbúria.

Afinal, as virtudes têm a função militante deconfundirem os vícios do mundo. É impossívelcompreender a atitude franciscana se as categoriaséticas de virtude e vícios forem referidas apenas aocarácter individual. No contexto dos escritos, virtudes evícios são forças que emanam dos poderes supremos dobem e do mal, de Deus e do satã e que se apoderam doshomens. A luta das virtudes contra os vícios é umaempresa colectiva. Sem alcançar a rigidez maniqueísta,existe aqui uma matiz de imanentismo maniqueísta. Asimplicidade tem que confundir a sabedoria destemundo; a pobreza luta contra os cuidados mundanos; ahumildade contra o orgulho. Possuir as virtudes exigeatacar o mundo e as instituições de família, propriedade,herança, autoridade governamental e civilizaçãointelectual. O ataque reveste-se da forma social de umapregação das virtudes.

Ao sentir-se demasiado doente para pregar, SãoFrancisco utilizou a forma da carta aberta divulgando asua mensagem aos fiéis. A mais importante destascartas, e a mais notável pela sua dignidade é a carta de1215 "A todos os Cristãos" (Opusculum commonitorium etexhortatorium (epistola quam misit omnibus fidelibus).

 

2. O estilo da pobreza

O ataque ao mundo em nome dos conselhos evangélicosparece revigorar a expectativa escatológica de um reinoque não é deste mundo. Contudo, é uma força e umafraqueza de S. Francisco a criação  da ideia de uma vidaem conformidade com Cristo como modo de existência.Tentou realizar o que Joaquim de Fiora projectara;estabelecer uma nova ordem do espírito no mundo.  Asua atitude e linguagem sofrem desta dualidade. Quandoataca o mundo (mundus ou saeculum ) utiliza o

Francisco de Assis

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Francisco%20de%20Assis.htm (2 of 7) [27/03/2002 07:18:39]

Page 14: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

vocabulário evangélico mas com um novo significadoevangélico. O homem não é chamado a arrepender-seporque o reino de Deus está próximo ( Mateus, 3, 2) masporque a vida de pobreza e obediência é aconselhadacomo a constituição permanente do mudo emconformidade com a vida do Salvador. Os escritos de SãoFrancisco apresentam assim elementos que secontradizem flagrantemente. A primeira Regra delineia a"vita evangelii" para a qual São Francisco obtevepermissão oral de Inocêncio III; aconselha a romper compai e mãe e à quebra rude com a família e as suasobrigações, a fim de tomar a cruz e seguir o Senhor. Retoma-se a dureza escatológica de Cristo não só naspalavras dessa regra como na sua atitude para com ospais. Por outro lado, aceita incondicionalmente aexistência da Igreja sacramental como única evidênciacorpórea mundana do Filho de Deus. Não só pretendebasear a vida de perfeição evangélica directamente noEvangelho como mantém um sentimento para com aIgreja a lembrar o dito de Santo Agostinho de que nãoacreditaria em Cristo se não fosse a Igreja.

 

3. A submissão à Igreja.

Estes conflitos profundos ajudam-nos a determinar demodo mais preciso a posição e a função de SãoFrancisco. O espírito de revolta contra os poderesestabelecidos espalhava-se por todo o mundo ocidental,dos intelectuais, aos burgueses e camponeses. Omovimento era cada vez mais dirigido contra aorganização feudal da sociedade, incluindo a Igrejasacramental. Quando o movimento encontrava apoio demassas, adoptava a forma de seitas fundamentalistas,desenvolvendo fricções com a Igreja, querintencionalmente quer por pressões circunstanciais; oregresso ao ideal evangélico de perfeição era o únicosimbolismo revolucionário disponível para a civilizaçãocristã desse tempo.

Francisco de Assis

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Francisco%20de%20Assis.htm (3 of 7) [27/03/2002 07:18:39]

Page 15: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

Não temos que nos preocupar demasiado com a questãode saber se a glorificação franciscana da Irmã Pobreza foiou não influenciada pelo conhecimento dos ideais dosPobres de Lião. Em qualquer caso, o ideal de pobreza,juntamente com outros conselhos evangélicos, estavadestinado a ser o símbolo da revolução.

O que separava São Francisco de dirigentes sectários, e otornou um santo em vez de um heresiarca, era a suasinceridade convincente, a sua realização exemplar dosideais que ensinava, o seu encanto, a sua humildade,uma ingenuidade que não era deste mundo.

Para a sua submissão à Igreja e para a sua crença deque a fraternidade dos pobres em Cristo poderia persistirsem institucionalização, não temos outra explicaçãosenão uma cegueira para as vias do mundo, originadapela grande pureza do seu coração. Os desapontamentosinevitáveis que experimentou podem ser fortementesentidos nas admoestações aos irmãos no Testamento:manter a simplicidade da Regra, não a acrescentar nemdiminuir, não fazer glosas nem interpretar o Testamentocomo uma nova regra e não procurar privilégios dequalquer tipo da Cúria.

 O mundo não cedeu ao seu ataque mas por seu turno,penetrou a sua irmandade. A santidade do seu carácterteve consequências de grande alcance no domínio dapolítica. Ao mesmo tempo que conduzia a cruzada contraos Albingenses, Inocêncio III confirmava a Regra de SãoFrancisco. Se considerarmos o apelo de São Francisco, arápida difusão da Ordem e em particular, o influxomaciço na Ordem Terceira, é difícil imaginar que formasa  revolução social teria adoptado, se a Igreja nãocaptasse o movimento através da pessoa de SãoFrancisco, e a integrasse na sua organização graças,sobretudo, à acção do Cardeal Ugolino de Ostia, futuropapa Gregório X.

Francisco de Assis

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Francisco%20de%20Assis.htm (4 of 7) [27/03/2002 07:18:39]

Page 16: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

 

4. A Igreja dos leigos

A vida de São Francisco permite diagnosticar a doençaque afligia o corpo místico da Igreja. O império cristãotransferira o cristianismo do ambiente urbano para asociedade rural. A dinâmica da vida cristã passou dascomunidades para as hierarquias, espirituais etemporais. O surgimento do idiota, desde o sec.XII é umaforça nova que assinala a reentrada da comunidadeurbana como força social no mundo cristão. Osignificado original de ecclesia é de comunidade-Igreja.No império romano a ecclesia local era uma ilha dopopulus christianus num mar de paganismo. No impériocarolíngio, a autoridade temporal fora integrada nosistema dos carismas cristãos de modo que as duasordens do corpo único de Cristo cooperavam na tarefadifícil (e que hoje seria considerada totalitária) de criarum povo cristão uniforme com base em hierarquiaspré-existentes.

Agora, no séc. XII, a ecclesia corre o risco de se reduzir auma organização sacerdotal enquanto os idiotae, osleigos, formam uma comunidade que tenta viver em pazcom o clero. Na linguagem de S. Francisco(Testamentum,3) o leigo vive em conformidade com Cristoe o sacerdote em conformidade com a Igreja Romana.Assim nasce uma nova necessidade de ajustamento daecclesia. A ecclesia Franciscana é apenas um começo. Osproblemas reaparecerão quando novas ecclesiaenascerem de cidades, classes e nações e tiverem quelutar por um lugar no sistema dos velhos poderes.

 

5. A conformidade com Cristo e a natureza

A pessoa e a religião de São Francisco constituíam forçasintramundanas em oposição ao imperium, dotado deprincípios gelasianos, facto obscurecido pela  linguagem

Francisco de Assis

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Francisco%20de%20Assis.htm (5 of 7) [27/03/2002 07:18:39]

Page 17: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

do ideal de vida em conformidade com Cristo. Areligiosidade franciscana poderá parecer apenas umretorno às ideias do cristianismo  primitivo. Mas não éassim.

 Os fiéis das primeiras comunidades seguiam o Messias equeriam o reino de Deus para participar na Sua glória.São Francisco imita o homem Jesus a partir de umanova compreensão do sofrimento sacrificial e dahumildade na terra. Trata-se de um novo entendimentoda dignidade do sofrimento e da criação sem voz. SãoFrancisco é espantosamente sensível à criação divinaonde ela é mais “criada” e menos auto-afirmativa:sofredores, pobres, doentes e moribundos, animais,flores e a ordem silenciosa do cosmos. É uma novaatenção que agora floresce a um reino de ser jáobservada nos York Tracts, a penetração do Espírito noreino da natureza. Francisco utiliza fórmulasescatológicas duras mas o sentimento que o move nãorenega o mundo; pelo contrário, adiciona-lhe umadimensão até então silenciada no cristianismo.

A alegria da existência das criaturas e a expansão alegreda sua alma, alcançando em amor fraterno essa partemuda do mundo que glorifica Deus apenas pelahumildade de ser criado, a alegria simples nacomunidade recém-descoberta da criação divina, tornaSão Francisco o grande Santo. Através da descoberta eaceitação do estrato mais baixo da criação como partesignificante do mundo, tornou-se uma das figurasrelevantes da história ocidental. Tomou os humildes pelamão e conduziu-os à sua dignidade, não para um reinode Deus no outro mundo, mas num reino de Deus que édeste mundo. Conferiu à natureza a sua alma cristã ecom ela a dignidade que a torna objecto de observação.

A expressão sublime deste sentimento são os Louvoresdas criaturas. O cântico abre com o louvor de Deus,depois louva os corpos celestiais, os elementos, a terraque cria frutos e flores, os humildes que perdoam e

Francisco de Assis

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Francisco%20de%20Assis.htm (6 of 7) [27/03/2002 07:18:39]

Page 18: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

vivem em paz, e a morte corpórea; encerra com o aviso deque todos sirvam a Deus “com grande humildade”.

 

§6. O Cristo intramundano

A preocupação com estas novas descobertas resultou,porém, numa limitação da experiência cristã. SãoFrancisco alargou o nosso mundo mas a sua tónica nanova dimensão negligenciou outras dimensões. Traz airrupção de novas forças intramundanas; não traz asíntese; a espiritualização da natureza é um naturalismo.A fórmula da vida em conformidade com Cristo  éconformidade com o sofrimento de Cristo, não comCristo-rei em sua glória. Na conformidade com Cristo ohomem alcança a eleição suprema através dos estigmasna noite de La Verna. Mas como se conformar com  oMessias?       

A evocação de São Francisco criou o símbolo do Cristointramundano que absorve a parcela pessoal do salvadorque se conforma com os humildes e sofredores. Mas oCristo dos pobres não é o Cristo da hierarquia sacerdotale régia, nem a cabeça do corpo místico de Cristo e dahumanidade. A evocação de São Francisco desestabilizao compromisso com o mundo, característico do períodoimperial ocidental e a diferenciação dos homens e oestabelecimento das duas ordens como funções do corpomístico. O mundo rompe-se quando Cristo deixa de ser acabeça do corpo diferenciado da cristandade  e se torna osímbolo de uma sua parte. A evocação de São Franciscoé o símbolo mais impressionante da desintegração dosacrum imperium. Enquanto o Santo atingia o seu clímaxcom os estigmas, subia a estrela do imperador que eraconsiderado  o Anticristo, e que pela primeira vez desde aAntiguidade se apresentava como a lei animada, nomosempsychos, fora da ordem carismática do corpo místico.

Francisco de Assis

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Francisco%20de%20Assis.htm (7 of 7) [27/03/2002 07:18:39]

Page 19: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

 ERIC VOEGELIN

ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS

**

A época medieval

 

 

Capítulo 9

 Frederico II

Dominus Mundi

 

1. A deslocação do império

2. A constituição de Melfi

3.  Cristandade Cesárea

 

1. A deslocação (Peripateia ) do império

 O último imperador medieval foi o fundador do primeiroestado moderno. Em ordem a compreender o seu papel eo seu desempenho consciente, tem que se observar aestrutura política em mutação do mundo Ocidental quefoi o horizonte da sua vida e perceber que a crise daépoca encontrou nele um símbolo estupendo.

O factor que determinou a transformação e adesintegração da ideia imperial foi o surto de unidadepolíticas periféricas. No séc. XI essa franja de principadosganhara importância suficiente para inspirar a GregórioVII com a visão de uma comunidade de reinos nacionais,dependentes da autoridade semi-feudal e semi-espiritualdo papado como contrapeso ao próprio império. Entre

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Frederico%20II%20Hohenstaufen.htm (1 of 9) [27/03/2002 07:18:54]

Page 20: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

esses eventos, conta-se a expansão normanda dosséculos X e XI, a fundação dos reinos ilhas da Sicília e daInglaterra e a expansão dos poderes insulares para ocontinente, A expansão normanda para Sicília, Itália doSul e Inglaterra adicionou dois poderes consideráveis; aconquista permitiu aos duques normandos organizar opoder como uma grande racionalidade até entãodesconhecida. Basta mencionar que Guilherme oConquistador e os seus sucessores desenvolveram umaadministração régia centralizada, e puderam manter àdistância os poderes e os senhores feudais e aconcentração do poder nas mãos do rei foi a base dedesenvolvimento da gentry inglesa e da classe média, econsequentemente da evolução recente das formasconstitucionais de governo. Na Sicília Frederico IIaperfeiçoará o Estado de Rogério II (1130-1154) facilitadopela tradição da administração muçulmana e bizantina.

 

Este escrutínio dos factos principais é extremamenteincompleto mas serve para mostrar a modificaçãocompleta da cena política. A importância relativa dosacrum imperium diminui porque os novos poderessurgem na periferia e fazem inflectir o centro da políticapara Ocidente e para Sul. A ascensão destes poderesdesintegra a ideia imperial e suplanta-a com novasevocações adaptadas a um mundo de poderes rivais: oprincípio Gelasiano como evocação dominante doOcidente decresce e emerge o problema do equilíbrio dopoder, no sentido moderno. A irrupção de forçasintramundanas no campo da evocação imperialexprime-se através de três formas principais: oaparecimento da arte do Estado, o aparecimento doestadista e o crescimento da consciência nacional comofactor determinante na política. O aparecimento da razãode estado nota-se nas conquistas normandas. A situaçãode conquista teve um efeito semelhante entre o séc. XI eXIII semelhante ao da revolução no período posterior ao

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Frederico%20II%20Hohenstaufen.htm (2 of 9) [27/03/2002 07:18:54]

Page 21: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

dos estados nacionais; varridos os interesses dominantesestabelecidos, tornava-se possível uma reconstruçãoracional da organização governamental. A melhoria daadministração financeira e militar aumentouenormemente o poder político. A Sicília era cobiçadaporque tinha um sistema de impostos que fazia do seumonarca o mais rico da Europa. A racionalização militarpermitiu a derrota da cavalaria feudal pela infantariaburguesa ou o triunfo da cavalaria profissional e damilícia burguesa de Filipe II de França como as forçasfeudais em Bouvines (1214). Frederico II apoiava-se emtropas mercenárias sarracenas.

Em segundo lugar, surgem os mestres do poder político.Mesmo o imperador Henrique VI e o papa Inocêncio IIIsão  representantes dos velhos poderes são homens deestilo novo. Significativo é o Testamento do ImperadorHenrique VI que abandona as suas pretensões imperiaissobre todo o Ocidente reconhecendo-se como o Impériocomo uma unidade política entre outras. (Testamentum,Monumenta Germaniae Historia, Constitutiones et ActaPublica Imperatiorum et Regum, vol. 1, nº 397). efinalmente, a consciência nacional é  a pressão colapsoao império Angevino com a formação das nacionalidadefrancesa e inglesa. A consciência nacional espanholacristaliza rapidamente sob o esforço da reconquista; em1135 Afonso VII de Castela é coroado imperador, títulosem efeito prático mas indicativo do sentido de igualdadeem grau como a cabeça do sacrum imperium.

 

2. A constituição de Melfi.

A posição de Frederico II tornou-o um Salvador para osamigos, um Anticristo para os inimigos O título dedominus mundi, atribuído pelos seus cortesãos, oscilaentre o significado de senhor imperial do orbis terrarume de príncipe satânico deste mundo. O fascínio luciferinodo imperador ainda dificulta actualmente a sua imagem.

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Frederico%20II%20Hohenstaufen.htm (3 of 9) [27/03/2002 07:18:54]

Page 22: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

A tentação é grande de o ver à luz do renascimento deum governante clássico ideal e pré-cristão; e também épossível vê-lo como o primeiro homem moderno; algunsconsideram-no um espírito forte que não acreditava naimortalidade da alma; outros descreveram-no como umbom católico; enalteceram-no como herói; historiadoresnacionalistas alemães condenaram-no pela sua falta deempenho na germanização do império; uns admiraram asua majestade imperial; outros a sua evocação de umcolégio de príncipes europeus.

Não tencionamos adoptar como definitivo qualquerdestes retratos. A grandeza do Imperador não reside nemna força de um carácter firme e claro, nem nos méritosde uma política, nem na consistência com que aempreende. Reside, antes, na força e vastidão de umaalma igual às tensões da época. Reaparece a expectativaentre a evocação antiga e a irrupção de forçasintramundanas característica das teorias de João deSalisbúria, agora com a escala e a responsabilidade daacção imperial. A experiência da plenitude dos temposque determinou a construção apocalíptica de Joaquim deFiora exprime-se no jogo de Frederico com o símbolo deAugusto, o iniciador da Idade de Ouro. É uma figura dahistória profana em paralelo com Crist; a Quarta Éclogade Virgílio parece ter sido aplicada pela primeira vez nahistória cristã, não a Jesus, mas a um governante. E aconformidade franciscana ao Cristo sofredor tem paralelona conformidade do Imperador ao Messias vitorioso, aum ponto tal que confina com a evocação do Deus feitohomem.

Quando tentamos recuar até aos papéis desempenhados,em busca da qualidade da pessoa que os reúne,encontramos uma vitalidade e sensualidade abundantes,uma capacidade sempre pronta a desempenhar o papelsugerido pelas circunstâncias da situação; uma vontadealegre de investigar, até aos limites, a estrutura darealidade tal como esta se  apresenta; seja nos problemas

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Frederico%20II%20Hohenstaufen.htm (4 of 9) [27/03/2002 07:18:54]

Page 23: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

empíricos da caça ao falcão, nos problemas intelectuaisdas Questões Sicilianas, na técnica dos procedimentosda corte, ou em contra-manifestos apocalípticos àsacusações papais. Ele, é impossível traçar uma linhaentre o homem de acção e o actor, entre a selvajaria dasua vontade e a ironia do seu jogo. Liga-se aos seus actosa qualidade da representação; na pompa barroca dalinguagem, no seu sentido do ritual, na representaçãoplástica e arquitectónica do culto da Justiça na porta deCápua e na consciência representativa da sua majestade.Também é impossível demarcar a sua curiosidadeintelectual da sua descrença dogmática. Quando naCarta a Jesi se refere-se ao seu local de nascimento emtermos de Belém e à sua mãe como uma theotokos, nãosabemos quanto seja um jogo com símbolosrepresentativos e quanto seja conformidade ao Messiascom a finalidade política, e quanto talvez apenasingenuidade. Quando o papa o designa de Bestaapocalíptica oriunda do Mar e ele dá o troco, chamando oPapa de “corcel vermelho do Apocalipse” não podemossaber até que ponto a réplica seja política, convicçãoreligiosa ou pura brincadeira. Temos de atender a estastensões na alma em ordem a compreender a impressãoque o imperador exerceu sobre os contemporâneos.Estavam assustados porque ninguém poderia prever oque um homem desta capacidade faria a seguir e a queextremos o conduziria um temperamento duro eselvagem. A visão nietzscheana de Cesare Borgia comoPapa está perfeitamente dentro das possibilidades daalma de Frederico II.

Abundam os materiais para a interpretação de FredericoII. O mais importante documento para o presentepropósito é o Proemium das Constituições de Melfi, de1231, o acto conclusivo da reorganização política daSicília. Proclamadas pelo imperador, codificam o direitoconstitucional, administrativo, penal e processual para aSicília. Estamos no início da transformação dascategorias políticas imperiais em categorias políticas

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Frederico%20II%20Hohenstaufen.htm (5 of 9) [27/03/2002 07:18:54]

Page 24: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

modernas O imperator in regno suo é uma transição entreo imperador e o príncipe soberano. Também importante éa mistura de categorias cristãs e romanas imperiais, paratransformar a lei da humanidade cristã na lei do estadosecular. Os princípios orientadores são a paz  e a justiçacristãs mas rodeadas dos símbolos de Augusto eJustiniano. As constituições fora chamadas LiberAugustalis e o próprio Proemium imita a introdução doCorpus Juris, no estilo imperial de Justiniano. Ossímbolos romanos servem a descrição do sacro império,instituindo para uma província do império categorias quedeveriam ficar reservadas para a totalidade.

O Proemium teoriza a função régia da legislação, segundouma interpretação decorrente do símbolo cristão daorigem do poder após o pecado. Com a criação, Deus fezdo homem a criatura máxima, impondo-lhe tão só aobservância da lei. A transgressão foi punida com aperda de imortalidade. Para não destruir a ordem dacriação, a perda da imortalidade foi compensada com odom da fertilidade e os governantes foram providenciadospara preservar a ordem da humanidade.

Esta descrição não é a narrativa do Génesis mas antesuma selecção de elementos nela presentes e fundidosnuma nova unidade. Desapareceu o problema moral daQueda, bem como a redenção através de Cristo. A Quedaé apenas uma ofensa legal que continua a ter que serpunida, como se não houvesse redenção. Ademais omundo tem uma enteléquia quando o resto do mundoperde a sua forma A comunidade de homens mortaissubstitui o homem imortal e este tipo de criação atinge oseu pleno com a figura do governante. A alma destedesce da necessitas rerum; as suas acções resgatam osignificado da criação. Sem dúvida que existe um apeloentre esta teorização e certas correntes da  primitivafilosofia  cristã do direito  natural. Mas enquanto estaabordava o problema da comunidade humana em ligaçãocom a história sagrada, o proemium usa o símbolo 

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Frederico%20II%20Hohenstaufen.htm (6 of 9) [27/03/2002 07:18:54]

Page 25: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

cristão ao serviço de uma doutrina naturalista do poder,derivando a função de governar das estruturas darealidade intramundana. A necessitas rerum é umaprimeira forma da futura raison d’état.

Enfim surge o elemento averroístico. O casal do paraísofoi substituído pelas gerações humanas. A imortalidadecolectiva sucedeu à imortalidade individual. Embora oProemium não elabore as implicações desta posição, certoé que a interpretação colectivista da humanidade se opoeà ideia cristã do corpo místico. A ideia colectivistaabsorve a personalidade homem no espírito de  grupo. Ohomem e individuação de um intelecto genérico e a morteé apenas a despersonalização. Tal como Averróis colocoua teoria da alma segundo Aristóteles

A antropologia averroísta pode tornar-se em síntese, abase filosófica de uma organização colectivista dasociedade .

No caso do Proemium não vai tão longe. É pouco provávelque a doutrina averroísta tenha sido conscientementeincorporada porque o averroismo só surge consciente emmeados do séc. XIII. Mas é importante perceber que asConstituições de Melfi representam um estádio avançadoda situação política  que permitiu a receptividade dasideias averroistas. A consciência da unidade espiritual dopovo surgiu em ligação com heresias populares. Aprimeira legislação civil contra heresias surgiu com aAssize de Clarendon (1166). A questão tornou-sepremente com o pontificado de Inocêncio, a  cruzadacontra os Albigenses e o estabelecimento da Inquisição.O processo inquisitorial culminava com a selecção de......... e julgamento sem queixa privada. Melfi fazdesaparecer a linha entre heresia religiosa einsubordinação política. O  artigo 1º trata da perseguiçãode heréticos e patarenos. A protecção da fé e integradana guerra contra as ideias lombardas dominadas peloPatarenos; a guerra contra os heréticos faz parte dacampanha contra os movimentos populares que desafiam

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Frederico%20II%20Hohenstaufen.htm (7 of 9) [27/03/2002 07:18:54]

Page 26: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

o Príncipe. Acusa-se os patarenos de romperem a“indivisível unidade da fé” como muito mais tarde sefalará da “indivisível soberania da nação” da revoluçãofrancesa. A queixa de que os Patarenos destróem-se a simesmos ao terem que ser queimados pelos governantesfaz lembrar Hobbes e Hitler.

O Artigo IV  estabelece que a discussão das leis, decisõese nomeações régias seria sacrilégio, pelo que devem serproibidas. Esta medida que datava já de Rogério IImostra a nova dignidade sacramental de que se pretenderevestir o governo secular.

A receptividade crescente das ideias colectivistas deve-sea factores diversos.  Primeiro, a  desintegração do corpomístico. através da emergência das novas comunidadeheréticas. Os movimentos populares heréticos acarretamuma contracção da substância da fé por parte das forçastradicionais que elaboram  posições ortodoxas, processosinquisitoriais e estrita obediência a critérios. Em segundolugar, a tensão crescente entre hierarquias espiritual etemporal que agudiza a respectiva luta pelo poder.Terceiro é o crescimento das nações como subdivisõesorganizadas do populus christianus.

Este três factores apontam para uma ecclesia políticaintramundana. Uma comunidade de seres mortaisreúne-se pela evocação da continuidade das geraçõesassegurada por um governante. A substância espiritual éfornecida pelo rei; a fé deriva a sua validade de umaautorização estatutária; os ditames régios equivalem aum credo religioso; qualquer dissensão é sacrilégio. Ahumanidade divide-se em massa e governante. Estairrupção da força intramundana do governante no reinodo cristianismo; este corpo  místico de mortais sob adirecção do governante teria de precipitar uma crise,como veio a suceder quando Frederico II passou aosactos.

3.  Cristandade Cesárea

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Frederico%20II%20Hohenstaufen.htm (8 of 9) [27/03/2002 07:18:54]

Page 27: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

Assim designou den Steinen a tendência do imperadorem assimilar a sua função imperial ao de Messias.Francisco transformou Cristo humilde em Jesus sofredorcom a consequência de que as hierarquias ficaramdecapitadas da cabeça messiânica. Frederico IIrepresenta  a tentativa de criar uma imagem de governoem conformidade com o Cristo cosmocrator, com oMessias em sua glória.

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Frederico%20II%20Hohenstaufen.htm (9 of 9) [27/03/2002 07:18:54]

Page 28: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

 

ERIC VOEGELIN - SãoTomás de AquinoCompactação e tradução de Mendo Castro Henriques

A publicar em "Estudos de Ideias Políticas"  ** A IdadeMédia"  2001

C . O clímax. São Tomás de Aquino

§1 História

a. Verdade e Ser

A obra de São Tomás de Aquino (1225-1274) absorveu-oliteralmente - morreu exausto antes de perfazer 50 anos -e absorveu-o existencialmente porque foi a expressão deuma vida ao serviço da investigação e ordenamento dosproblemas da sua época. Afirmar que foi um grandepensador sistemático é uma meia-verdade. Sabia aplicara sua mente imperial à multiplicidade de assuntos que oatraíam e distinguia-se por ter uma personalidade ricaem sensibilidade, magnanimidade, energia intelectual eespírito sublime. A exclusiva vontade de ordenamentopoderia produzir um sistema que fosse mais notável pelacoerência do que pela captação da realidade. A grandereceptividade poderia ter originado uma enciclopédia.Mas as duas faculdades combinaram-se num sistemaque assinala o impulso dinâmico de Deus para o mundoatravés da causalidade criadora, e do mundo para Deusatravés do desiderium naturale: A origem destacombinação deve-se ao sentimento que fez de Tomás umsanto: a experiência da identidade entre a verdade deDeus e a realidade do mundo. "A ordem das coisas naverdade é a ordem das coisas no ser". Esta frase daSumma Contra Gentiles significa que o intelecto divinoestá impresso na estrutura do mundo; que a descriçãoordenada do mundo resultará num sistema que descreve

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Saotomas.htm (1 of 18) [27/03/2002 07:19:04]

Page 29: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

a verdade de Deus: que cada ser tem a sua razão esentido na hierarquia da criação divina; que cumpre afinalidade da existência ordenando-se ao fim último queé Deus. A frase tambem se aplica ao homem individual.Ontologicamente, o intelecto humano veicula a marca dointelecto divino. Metodologicamente, o uso do intelectorevela a verdade de Deus manifesta no mundo.Praticamente, a tarefa do pensamento significa aorientação da mente para Deus.

b. O intelectual cristão 

O melhor dos auto-retratos do Santo surge nos capítulosde abertura da Summa Contra Gentiles. São Tomás deAquino concebe a filosofia como arte de ordenar as coisaspara um fim. Entre todas as artes, a filosofia é a superiorporque contempla a finalidade do universo, ou seja Deus,e apresenta os conteúdos do mundo a Ele ordenados.Ora Deus é Intelecto. A finalidade da filosofia é o bem dointelecto, que é a verdade. No termo veritas fundem-se ostrês sentidos da verdade: a fé revelada pela incarnação(João, 18,37); a auto-manifestação da Deus na criação; otrabalho intelectual que é a manifestação do intelectodivino. Ao invés do intelectual averroista, Tomás dignificaa autoridade intelectual porque o intelecto humano é aratio da existência humana criada por Deus. Através davida intelectual o homem aproxima-se da divindade. Ointelectual sabe mais que o homem comum mas este nãoé um vilis homo. ao qual se aplica o termo idiota ouentão rudis homo. com o duplo sentido de leigo cristão eleigo no saber. Tudo o que o filósofo sabe através daactividade do intelecto, o leigo sabe através da revelaçãode Deus em Cristo. A manifestação sobrenatural daVerdade em Cristo ao homem comum identifica-se àmanifestação natural da verdade no sabedor.

c. Fé e razão  

Fé e razão não entram em conflito porque o intelectohumano veicula a marca do intelecto divino. Deus não

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Saotomas.htm (2 of 18) [27/03/2002 07:19:04]

Page 30: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

decepciona o intelecto com resultados que contradigam afé revelada. O intelecto pode errar mas conseguealcançar verdades como a existência de Deus, deixandopara a fé revelada verdades inacessíveis à razão, taiscomo o carácter trinitário da divindade. Este dinamismoteórico separa as esferas da teologia natural esobrenatural. A esfera sobrenatural está removida dodebate intelectual e pertence à revelação e às decisõesdogmáticas da Igreja. A parte natural fica livre para serintegrada num sistema de conhecimento humano sob aautoridade da razão. Esta magnífica harmonização de fée razão influenciou decisivamente o destino da ciência nomundo ocidental, resultado tanto mais admirávelquanto, na época, a evolução da ciência estava nas mãosde clérigos e as célebres Condenações de 1277 aindaconsideravam heréticas algumas teses tomistas. Oavanço da compreensão empírica e intelectual do mundorequer uma permanente redifinição da separação entreverdade sobrenatural e natural, problema difícil para aIgreja e para os intelectuais, mas a que Tomás deu amelhor formulação e solução possível no seu tempo. Oretrato do Santo que emerge da sua metafísica é o dodescobridor de uma síntese das forças intramundadasque poderiam destruir o cristianismo, se ficassementregues a si mesmas. O intelecto não é uma autoridadeindependente. A orientação transcendental do intelectotorna-se uma expressão legítima do homem natural enão uma rival intramundana da fé. O seu sentimento devalor intelectual não é inferior ao de um Sigério deBrabante como se depreende da descrição da filosofiacomo arte ordenadora e da justaposição do filósofo emque se manifesta a verdade natural com o Cristo que é averdade incarnada espiritualmente; mas é umsentimento de valor temperado pela espiritualidade queaceita a revelação.

d. Propaganda intelectual 

A mesma vontade de harmonia é patente na síntese

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Saotomas.htm (3 of 18) [27/03/2002 07:19:04]

Page 31: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

tomista dos problemas suscitados por Fiora, S.Franciscoe pelos Espirituais franciscanos. S.Tomás pertence auma Ordem mendicante que louva o esforço missionárioe pregador. Mas o seu Cristo não é apenas para ospobres em espírito e em bens; é um Cristo que expande oSeu reino através da propaganda intelectual. A SummaContra Gentiles foi escrita para que as missõesdominicanas em Espanha enfrentassem a influênciaintelectual muçulmana. Tomás afirma no Proemium queé possível argumentar com os Judeus com base noAntigo Testamento, e com heréticos com base no novoTestamento; com os maometanos, contudo, é precisoapelar à autoridade do intelecto, tal como os pagãos nosestádios da lei segundo S. Paulo. E o intelecto queproduz resultados cristãos torna-se o instrumento dapropaganda inter-civilizacional, fundando a pretensãoque a civilização ocidental é racionalmente obrigatóriapara a humanidade. Tal pretensão sobreviveu à perda deconexão com a espiritualidade cristã e tornou-seagressiva na Idade da razão secular. As raízes dadinâmica internacional da civilização ocidental residemno tomismo cuja força duradoura resulta da harmoniadas operações intelectuais com a espiritualidade Cristã.Quando se esquecem estas raízes, perde validade apretensão de validade da razão autónoma e a razão ficaenigmática. E sempre que declina o ímpeto Cristão dointelecto, a revolta contra a razão clama insensatamentepor uma nova espiritualidade qualquer.

e. As hierarquias 

A abordagem tomista da relação entre os dois poderes émais ampla que a franciscana. O retrato do príncipe emDe Regimine Principum - desenvolvido com o aparato daPolítica de Aristóteles - mostra a impressão causada porFrederico II e a importância de que se reveste o fundadore governante de uma comunidade. Já quanto ao poderespiritual, a posição é muito semelhante à franciscana. AIgreja é uma instituição que ministra sacramentos; na

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Saotomas.htm (4 of 18) [27/03/2002 07:19:04]

Page 32: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

hierarquia de poderes, tem o primado sobre o temporal.Contudo, Tomás não escreveu um tratado sobre a Igreja.A Summa Theologica tem uma parte volumosa sobregoverno temporal (ST I,ii,qq.90-114) mas não explicitauma doutrina da Igreja e menos ainda do DireitoCanónico. Sendo possível apresentar uma doutrinatomista da Igreja - como fez Grabmann - é significativoque a falta de ênfase tomista se deva à época deinterregno em que vive: o Sacrum Imperium está adesaparecer, crescem múltiplos poderes políticos comestrutura natural imanente e o poder espiritual está atornar-se a super-estrutura espiritual da multidão decivitates.

f. Evangelium Aeternum - Imperialismo Ocidental 

A adaptabilidade de Tomás às exigências da realidadehistórica é patente no modo como distribui as tónicasespirituais e políticas do seu tempo. Condena comoinsensata a ideia de um terceiro reino do Espírito-stultissimum est dicere quod Evangelium Christi non sitEvangelium regni (ST, I, ii, quaestio 106, art.4). A vidasob a lei nova é a mais perfeita que se pode conceber. OEvangelium foi todo anunciado ao universo de uma sóvez, sendo necessária a pregação até que a Igreja seestabeleça em todas as nações.(ST I-II 106 4 ad.4 ). A erade Cristo diversifica-se conforme o espaço, o tempo e aspessoas, e conforme a presença da graça do Espírito.Tomás vive entre duas épocas: morreu a unidademedieval do Império mas ainda não nasceu o mundo dosestados nacionais. Talvez tenham razão os que o acusamde não possuir uma filosofia da história, caso estiverem aconsiderar a história política. Mas o seu sentido históricopermitiu-lhe exprimir a vontade imperial da civilizaçãocristã. Em vez de simbolizar o cumprimento da históriacristã por uma nova descida do Espírito numairmandade elitista, abraça todo os conteúdos naturais domundo e do intelecto humano e da sociedade, organizadanuma pluralidade de comunidades. A sua filosofia da

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Saotomas.htm (5 of 18) [27/03/2002 07:19:04]

Page 33: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

história contempla a expansão da Cristandade em todo oorbe através das actividades de missionação. Nestesentido, Tomás representa a vontade de domínio imperialdo homem maduro, intelectual e espiritualmente. Estaevocação permaneceu uma componente do imperialismono período do estado nacional. Reaparece no sec. XVI emEspanha com Francisco de Vitória; reaparece naInglaterra Elizabetina; reaparece no sec. XVII emcombinação com o imperialismo comercial de Grócio; ereaparece nas lutas subsequentes por impérios coloniaisque impliquem uma ideia providencial do domínio doOcidente sobre o resto do mundo.

g. O espírito histórico 

Se por teoria entendermos a ordenação sistemática deuma problemática não-histórica, Tomás não era umteórico. Para ele, a relação entre fé e razão é umaharmonização de forças históricas. A verdade de Deusmanifesta-se num mundo cheio de dinamismo das forçashistóricas. O trabalho da filosofia não se esgota emespeculaçãos aprioristas; deve recrear num sistema aunidade do mundo historicamente concreto. A forma dasQuestões da Summa Theologica é ideal para executaresta tarefa porque permite organizar o material numenquadramento estável e oferece oportunidades dedescer ao detalhe histórico em notas polémicas queprecedem e prosseguem o corpo da quaestio. A Summanão é um tratado sistemático: contém transiçõesfrequentemente obscuras ou omissas e, por vezes,digressões excessivas. Este sistema muito pouco rígido éo símbolo perfeito de uma mente que não é aprioristanem empirista e que exprime um indivíduo queexperimenta a sua harmonia com a manifestação deDeus no mundo histórico.

§2. Política

Na apresentação da política tomista topamos, pelaprimeira vez desde a recepção de Aristóteles, com a

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Saotomas.htm (6 of 18) [27/03/2002 07:19:04]

Page 34: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

maldição da teoria política ocidental - a maldição de nãosabermos exactamente o que os nossos símbolossignificam. As categorias aristótelicas reportam-seevidentemente à polis helénica dos secs. VI a IV a.C. Asendo que a sua adopção posterior é um exercíciohumanista com escassa relevância para os novosproblemas políticos. Por exemplo, Tomás traduz polis porcivitas, mas também por gens, regnum, provincia. Gens eregnum são organizações políticas muito diversas.Provincia provém do vocabulário imperial romano. Todoeste suspense em relação ao tipo de organização políticacontemplada mostra que a teoria tomista do governo nãoé suficientemente geral para captar os elementos detodas as formas políticas nem suficientemente específicapara se aplicar a uma unidade política concreta. E aindahoje não ultrapassámos a vagueza humanística queatribui validade geral às categorias intermédiasresultantes da recepção de Aristóteles.

b. A dedicatória ao rei de Chipre 

Muita da força da teoria política helénica resultou dofacto de que as poleis mais antigas se empenhavam emfundar novas cidades e colónias. A possibilidade deselecção do espaço, do planeamento da cidade e doesboço da constituição são o pano de fundo para aconstrução de Estados ideais, em Platão e Aristóteles, talcomo a partir do sec.XVI , a descoberta da América e oestabelecimento de colónias abriu horizontessemelhantes. No sec.XIII uma situação algo comparávelresultou das migrações normandas e do movimento dasCruzadas. Em particular, a fundação de novosprincipados nos domínios bizantinos e arábes invadidospelos Cruzados foi uma tentativa de expansão dacivilização ocidental entre as gentes, tentativa cujofracasso não era ainda previsível na época de Tomás.Este escreveu em 1265-66 o De Regimine Principum,dedicando-o precisamente a Guy de Lusignan, reicruzado de Chipre, e não a um poderoso monarca ou

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Saotomas.htm (7 of 18) [27/03/2002 07:19:04]

Page 35: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

imperador do Ocidente.

c. O Príncipe como análogo divino. 

No teoria política de Tomás, a ideia de fundação substituio lugar da evolução da família para a aldeia e para apolis em Aristóteles, regressando assim à ideia platónicada cidade fundada pelo espírito. A série de analogiasentre Deus como criador e governante do universo, aalma governante do corpo, e o príncipe como fundador egovernante da civitas (RG, I,13) subvertem a visãoaristótelica de que a cidade tem uma evoluçãoestritamente natural. Perde sentido a sequênciaobrigatória de comunidades - família, aldeia, polis. Asequência é traduzida por familia, civitas, provincia,interessando sobretudo o chefe de família e o rei quepode ser de civitas ou provincia. A função régia é deordem natural e não espiritual. O dom da regia virtusrecebido por um indivíduo (RP,I,9) não é a autoridadeespiritual de Platão nem a arete de Aristóteles; é apenasuma virtù mas sem o elemento demoníaco de tipomaquiavélico. Mantém-se a evidência natural dasociedade porque o homem isolado não poderiadesenvolver as suas capacidades ("Naturale autem esthomini ut sit animal sociale et politicum, magis etiamquam omnia alia animalis; quod quidem naturalisnecessitas declarata /(I,1); mas permaneceindeterminada como seria uma comunidade perfeita quesatisfizesse as carências naturais e a vida intelectual.

d. A comunidade de cristãos livres 

A grande novidade em relação a Platão e Aristóteles é deque o rei funciona como governante da comunidade doslivres (liberorum multitudo R.P. I,1). Liberdade e servidãotornam-se critérios do bom e mau governo, Se osmembros da comunidade cooperam livremente nastarefas da existência comum, o governo é bom, tenhaforma de monarquia, aristocracia ou politeia. Se um oualguns homens exploram os restantes em proveito

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Saotomas.htm (8 of 18) [27/03/2002 07:19:04]

Page 36: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

próprio, o governo é mau. Aliás, mesmo o bom regime deAristóteles seria mau porque continha escravos. Aantropologia tomista opera com a ideia do homem cristãolivre e maduro, ideia magnânima semelhante à doigualitarismo aristocrático de S. Francisco. Tomásexperimenta a liberdade do cristão mas não coloca ohomem numa comunidade natural com obrigaçõespróprias. Os livres são apenas uma multitudo resultanteda livre cooperação criadora. Não apresenta uma teoriado contrato social que institui obrigações nem uma teoriada organização política do povo. Interessa-lhe apenas opopulus christianus. Na Summa Contra Gentiles quandoainda não adoptou as categorias de Aristóteles,apresenta o homem como naturaliter animal sociale, evive inclinado para o amor mútuo e a solidariedade (SCG,III 117,). Mas a finalidade social não reside a esferanatural; o que constitui a comunidade humana é afinalidade comum de amor a Deus e a ordenação da vidapara a felicidade eterna. Os laços de afeição que que têmque existir entre os que se estimam (III,117) exigemregras de comunidade dadas por Deus (III,111-146). NaSumma Theologica (ST I ii 90,2) em que desenvolve amesma posição, Tomás deixa cair do céu a citação de quea polis é a comunidade perfeita porque conduz àfelicidade. Contudo, para Aristóteles, a polis histórica éum absoluto em que se insere a acção contemplativa; naSumma a felicidade é o absoluto que atrai a si uma vidade comunidade sem qualificação política. Também arecepção do termo de Aristóteles animale politicum nãosignifica adopção do sentido. O homem de Aristótelesrealiza-se na polis e nada mais é do que politikonenquanto o homo christianus está orientado para afinalidade transcendental espiritual, sendo tambempolítico. A figura central da política tomista é o homochristianus (RG,I,14) e não o zoon politikon. A sequênciade analogias - Deus no universo, príncipe na civitas, aalma no corpo - não é a palavra final na politica tomistaporquanto a multidão de cristãos tem que viver sob

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Saotomas.htm (9 of 18) [27/03/2002 07:19:04]

Page 37: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

Cristo, rei espiritual. O ministério deste reino espiritual éconfiado aos sacerdotes - separados dos assuntosmundanos - e em particular ao pontífice romano, ao qualtodos os reis e povos estão subordinados (RP I,14).Assim, a velha dicotomia de poderes - espiritual etemporal - é substituída pela dicotomia moderna dereligião e política. A esfera política no sentido modernoainda está completamente orientada para o espiritual;mas começa a evolução para a privatização de religião (àmaneira de Locke), o monopólio da esfera pública pelapolítica e a possibilidade de uma integração totalitária daespiritualidade intramundana na esfera pública dapolítica.

e. Teoria do governo constitucional Tão forte é o carácterhumanístico da teoria de São Tomás de Aquino que malrefere a existência de um sistema da instituição dogoverno, sendo que os princípios desenvolvidos comreferência às instituições israelitas e helénicas são poucoadaptados ao sec.XIII. Cada comunidade perfeita temque ser estruturada nos três reinos de optimates,populus honorabilis, populus vilis, (ST I 108, 2), modeloinspirado na nobilitá, popolo grasso, popolo minuto dascidades italianas. A partir da liberdade cristã, é possíveldesenvolver instituições governamentais para o homochristianus enquanto homem político. Não sabemos oque Tomás pensaria sobre a evolução nas cidadesitalianas onde as revoltas dos Ciompim em Florença, edos Patarenos, em Milão, exigiam a integração do terceiroestado no governo; nem sabemos como aplicaria o seuprincípio na Iglaterra que atingia então oParlamentarismo, e menos ainda na França, feudal ecomunal. No Regimine Principum, que permaneceuincompleto, a teoria do governo constitucional surge emligação com o problema da tirania (II,6). O tiranicídio écondenado, sendo da responsabilidade da auctoritaspublica a deposição do governante injusto. O melhorseria a prevenção da tirania através da delimitação dopoder régio. Na ST I ii q.95,4 o regimen conmixtum é

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Saotomas.htm (10 of 18) [27/03/2002 07:19:04]

Page 38: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

apresentado como a melhor forma de governo. Apropósito das instituições do povo Hebreu (I ii 105,1)afirma Tomás que a monarquia (análoga da divinidade) éa melhor forma de governo mas está mais sujeita àtirania. Esta nonchalance na definição da melhor formade governo parece provir da democracia primordial deIsrael, em que o Senhor recebeu com desagrado o desejopopular de ter um rei como as demais nações(loc. cit.ad.2). Tomás adopta o princípio orientador de que cadaum deve ter a sua parte no governo. A politeia deveria terpor magistrados o rei, a nobreza e os representantes dospovos, contribuindo assim para a prevenção da tirania,provocada pela compra de votos, pela eleição depersonalidades indignas, (I,ii, 97,1) e pela expoliação dosproprietários. As fontes principais do pensamentopolitico tomista são a teoria aristotélica da política, aconstituição romana, a democracia original e monarquiade Israel, a democracia das cidades italianas e osentimento da liberdade cristã. Estes elementos nãoestão integrados; co-existem no estilo harmonizador dopensamento tomista. A síntese possível é a ideia degoverno constitucional baseada em dois princípios: aestabilidade de governo que depende da participação dopovo e o princípio espiritual cristão da liberdade dohomem maduro. A evocação é humanistica porque asoperações intelectuais com a terminologia de Aristótelesainda não penetrara suficientemente nos problemasconcretos da política. Esta síntese de natureza eespiritualismo cristão dominou a evolução da políticaocidental, até hoje.

§ 3. Os quatro tipos de Direito

a. A teoria do Direito

Uma compreensão adequada da teoria do direito, temque atender ao lugar em que ela é tratada na ST. Aprimeira parte da Summa trata de Deus e da Suacriação, a segunda do Homem e a terceira de Cristo. APrima Secundae (I,IIae) trata das acções humanas.

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Saotomas.htm (11 of 18) [27/03/2002 07:19:05]

Page 39: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

Primeiro aborda a beatitude como a finalidade da vidahumana (qq.1-5) e depois os meios para a atingir; osmeios consistem em acções humanas que se subdividemem acções voluntárias especificamente humanas(qq.6-21) e as paixões que são tipos de acção comum aosanimais (qq.22-48). Os princípios internos da acçãohumana são subdivididos em poderes e hábitos(qq.48-89). O princípio externo que move o homem parao bem é Deus, operando através do Direito (qq.90-108)ou com a assistência da Graça (qq.109-114). A teoria dalei é a instrução dada por Deus ao homem para motivaros seus actos para a beatitude. Este esboço da teoria dadireito aplica princípios ontológicos. O mundo é umacriação de Deus e, como tal, portador da marca do divinointelecto; o significado da existência criada é omovimento de retorno a Deus. A regra que motiva aacção humana de retorno a Deus é a ratio da criação nointelecto do próprio Deus. A criação imprime no homemesta ratio divina que é a Lex aeterna, pelo que o direitonatural é o ditame da razão que vive no homem. Como ohomem é imperfeito, a adaptação da lei natural àscontingências humanas é chamada de direito humano.Como o homem não é apenas um ser natural masorienta-se para o espírito transcendente é necessáriauma revelação especial que constitui a direito divino,apresentado no Antigo e Novo Testamento.

b. Definição de Direito 

O direito é definido como ordenamento da razão para obem comum, feito pelo governante e promulgado (90.4).A definição soa como uma definição do direito positivomas pretende ser uma definição dos quatro tipos dedireito. A tónica recai sobre a comunidade politica e osórgãos de legislação mas a problemática da autoridadelegislativa não está ainda separada da autoridade daordem por virtude da justeza dos seus conteúdos. Oselementos da razão e bem comum são especulativos ecomuns aos quatro tipos de lei. O elemento de

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Saotomas.htm (12 of 18) [27/03/2002 07:19:05]

Page 40: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

promulgação pode adaptar-se à manifestação da leidivina na lei natural (90,4,ad 1) a lei divina épromulgação da lei eterna, e lei humana é promulgaçãopelos governantes. As dificuldades surgem com a feiturada lei pelo representante da comunidade. O elementorefere-se a Deus, e ao príncipe (91,1) Mas a analogiaquebra porque a lei eterna não pode ser feita mas existedesde a eternidade na mente divina. Por outro lado, (90art. 3) Tomás refere apenas a feitura da lei emcomunidade nacional perfeita. Tomás está a tentar criaruma teoria do direito positivo que leva a conflito com ateoria dos conteúdos da ordem jurídica dada naclassificação das quatro variedades. Toda a lei é criadapor Deus com excepção da lei eterna incriada. Oshomens participam nessa criação através da feitura dalei humana. Mas esta feitura humana consiste emencontrar os elementos rectos da lei de acordo com leidivina e natural. A lei feita faz parte do retorno dohomem a Deus. A feitura da lei tem a estrutura dialécticade fazer lei por Deus através do instrumento da acçãohumana, ou orientação do homem para Deus através deregras de acção conforme a vontade legislativa divina. Adialéctica da lei positiva resultante da posição ontológicanunca é tratada adequadamente. Em vez dissoencontramos identificação da lei posta com a essência dalei (90, 4) e com lei humana em 95, 1 e 2) A confusãoneste ponto corresponde a falha no sistema: acomunidade perfeita a constituição e acção legisladorasão recebidas factualmente no sistema mas Tomás nãocriou um enquadramento teórico satisfatório para elas.

c. A teoria do direito natural 

A força da filosofia jurídica tomista reside na teoria dosconteúdos da lei natural. A lei eterna induz nas pessoasuma inclinação para as acções justas. É estaparticipação da criatura racional na lei eterna que sechama de lei natural. A luz da razão natural quedistingue o bem do mal é reflectido na refracção da luz

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Saotomas.htm (13 of 18) [27/03/2002 07:19:05]

Page 41: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

divina em nós. (91,2). Toda a lei é derivada da lei eterna(93,3) Os princípios gerais são auto-preservação.Preservação da espécie através de procriação e educação,preservação da natureza racional através do desejo deconhecimento de Deus, e inclinação para a ideal da vidaem comunidade (94,2). A construção assemelha-se ateoria estóica de lei natural, koinos nomos e participanela atrrvés de apospasme, a centelha do nomos nohomem individual. Mas a antropologia é cristã. Aconcepção estóica poderia conduzir a teoria dailuminação como em Santo Agostinho ou a teoriacolectivista da anima intellectiva como em Averroes. Aparticipação tomista é objectiva na medida em que nãodepende da iluminação individual (Agostinho) e conferepeso à singularidade da pessoa porquanto concebe acomunidade como o esforço cooperativo de hominesChristiani livres. A fundamentação tomista é talvez aúnica sustentável posição para uma filosofia do direito.Caso não existir uma fundação ontológica temos aseguinte alternativa: ou não ter fundação ontológica eaceitar como válida qualquer ordem jurídica positiva quepossa compelir à submissão ou erigir como absolutoselementos intramundanos tais como instintos, desejos,carências, razão secular, vontade de poder, ousobrevivência dos mais aptos. A primeira opção é niilistaa segunda positivista e não permite integrar aexperiência transcendental religiosa na filosofia daDireito. A clássica solução tomista fornece uma fundaçãoreligiosa e uma ordem jurídica que respeita a estruturaôntica da existência humana; harmoniza a personalidadeespiritual cristã com a comunidade natural perfeita quepode corresponder a povos ou federações, desde quedotados de identidade espiritual. A solução tomista surgequando instituições tradicionais estão a desaparecer,sendo depois absorvida pela teoria da interpretaçãonatural do período dos estados nacionais.

d. Lei humana - lei positiva 

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Saotomas.htm (14 of 18) [27/03/2002 07:19:05]

Page 42: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

Tanto a lei humana como a lei divina possuem conteúdoscontingentes. O debate na q.95 identifica a lei humanacom a lei positiva. A confusão resulta de Tomás nãodistinguir suficientemente entre o conteúdo da ordemjurídica e a autoridade legislativa e o poder de sanção.Enquanto lex ab hominibus adinventa (91, 3) a leihumana cria detalhes e regras que aplicam a lei naturala situações concretas. Tomás segue o conselho de Isidoro(Etimologias, 5, 21) de que os princípios de direitonatural não devem exigir o que é humanamenteimpossível nem contradizer as tradições locais; devemservir o bem comum e ser claros e adaptados ao tempo eao espaço. Enquanto lex humanitus posita (q.95) a leihumana é corpo de regras feitas pelos órgãos legislativose garantida pela sanção governamental. Trata-se dageneralidade e da obrigatoriedade da lei. É preferívelprovidenciar regras gerais redigidas de mododesinteressado e competente e genérico. Aobrigatoriedade é necessária porque a natureza humanaé fraca; força e temor ajudam a virtude a agircorrectamente.

e. A Lei Antiga - 

A sociedade de proprietários A lei divina surge porque afinalidade sobrenatural do homem exige uma orientaçãoque o juiz incerto humano não encontra sozinha. A leihumana não abrange intenções, já que a proibição domal também destruiria o bem da vida comunitária eporque a lei divina lei que regula e sanciona o mal escapaà regulamentação humana (91, 4). A lei divina, no Antigoe Novo Testamento, é uma só, correspondente a doisestádios espirituais da humanidade, infância ematuridade. O Antigo Testamento ordena o homem abens terrenos, regulando actos externos e compelindo àobediência por temor do castigo. O Novo Testamentodirige o homem para bens celestes, ora regulando actosintrínsecos induzindo obediência através de amor divinoque a Graça instila nas criações humanas. Esta relação

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Saotomas.htm (15 of 18) [27/03/2002 07:19:05]

Page 43: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

entre conteúdo de uma ordem jurídica e estádiocivilizacional de um povo é uma filosofia da cultura. Adiscussão do Antigo Testamento permite tratar Israelnuma monografia abrangendo a análise da ordemcerimonial política e civil (qq. 98-205) o que, segundoDempf, é o primeiro tratado sobre uma civilização antigaconcebida no espírito humanístico. Na teoria dapropriedade privada, Tomás distingue dois tipos derelações: a relação entre príncipe e súbditos, e asrelações privadas e civis entre os próprios súbditos. Aautoridade governamental sobre súbditos manifesta-seem compelir à ordem jurídica. (105,2 ) As relaçõesprivadas entre súbditos resultam da autoridade docidadão sobre os seus bens privados, res possessae. Ateoria pode, hoje, parecer trivial mas, na época, erarevolucionária; punha de parte a estrutura feudal dosdireitos de propriedade, e promovia a sociedade deproprietários e suas relações comerciais. Tal teoria temum toque intemporal de humanismo e teve portentosasconsequências na evolução futura do pensamentopolítico.

f. A Nova Lei - 

Justificação pela fé O tratamento da Nova Lei ésurpreendentemente curto (qq. 106-108), ocupandocerca de um quinto da Antiga. A lei Nova é inscrita pelaGraça do Espirito nos corações dos fiéis; apenassecundariamente é lei escrita. Sem mencionar a Igreja, aessência da Cristandade é colocada na "lei da fé" nosentido paulino. Para excluir qualquer outro princípio dejustificação, Tomás cita Romanos 3, 27 (I, IIae, 106, 1)passagem que precede "porque cremos que o homem éjustificado pela fé, e pelas obras segundo a lei". Dentrodo quadro da teologia católica esta é talvez a expressãomais forte do princípio da livre espiritualidade Cristã.Tomás está a salientar o espiritual elemento de fé aexpensas da mediação institucional da Igreja mas nãopretende fazer inovações doutrinárias. Temos que

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Saotomas.htm (16 of 18) [27/03/2002 07:19:05]

Page 44: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

atender ao espiritualismo independente de Tomás paracompreender a força dos sentimentos que se exprimemna concepção do comunidade dos cristãos livres eamadurecidos, da sua participação no governo através dosufrágio geral e na constituição de uma sociedade livrede proprietários. Na história do pensamento político,Tomás de Aquino divide duas eras: os seus poderes deharmonização foram capazes de criar um sistemaespiritual que absorveu os conteúdos do mundo emtransição: o povo revolucionário, o príncipe natural e ointelectual independente. O seu sistema é medievalenquanto manifestação do espiritualismo cristão: émoderno porque expressa as forças que vão determinar ahistória política do Ocidente até aos nossos dias - o povoorganizado com constituição, a sociedade comercialburguesa, espiritualismo da Reforma e o intelectualismoda ciência. Alcançou esta espantosa concentração dopassado e do futuro mediante o milagre da suapersonalidade. Absorveu e manteve em equilíbriosentimentos muito distintos. Tinha algo da receptividadede Frederico às forças da época, mas ultrapassa-o emespiritualidade. Realça o individualismo de carácter deJoão de Salisbury pelo personalismo espiritual cristão; oseu humanismo digere Aristóteles e cria o estudo dasinstituições israelitas; o individualismo espiritual de S.Francisco aparece ainda mais radical no espiritualismode Tomás; o populismo franciscano é continuado pelaevocação da comunidade do homens politicamente livresenquanto a limitação de Cristo aos pobres é ultrapassadopelo reconhecimento das funções do príncipe; aconsciência secular de Fiora é traduzida nas ideias daexpansão da Igreja no mundo. O horizonte estreito dairmandade monástica é alargado à visão imperial de ummundo de comunidades perfeitas cristãs; ointelectualismo de Sigério é equilibrado por umaorientação mas com uma espiritualidade igualmenteforte. Através destes equilíbrios´. São Tomás de Aquinotornou-se figura única que pôde dar voz à Cristandade

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Saotomas.htm (17 of 18) [27/03/2002 07:19:05]

Page 45: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

medieval imperial na linguagem do Ocidente moderno.Ninguém como ele poderia ter representado no estilograndioso o homem ocidental espiritual eintelectualmente amadurecido.

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20Saotomas.htm (18 of 18) [27/03/2002 07:19:05]

Page 46: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

 ERIC VOEGELIN

ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS

**

A época medieval

 

Capítulo 16 Dante

§1. Isolamento do pensador político

 .....................................

§2. A separação entre espírito e política

Desde a época de Dante que o realista espiritual seenfrenta com o problema de que a realidade políticacircundante do mundo ocidental já não absorveadequadamente o espírito nas instituições públicas.Podemos discernir três fases principais no processo deseparação entre espírito e política. O início da primeirafase é marcado por Dante e pela sua descoberta da novasolidão espiritual. A segunda fase é marcada pelosurgimento de reformadores religiosos e de realistasespirituais seculares. A terceira fase traz um novo nível.Aos primeiros reformadores corresponde o activistapolítico-religioso, representado por Marx, que tentou uniro espírito e as instituições sociais através de destruiçãorevolucionária da sociedade existente, para dar lugar aonovo homem, o proletário. Aos realistas espirituais dossécs. XVI e XVII corresponde o espírito livre isolado deNietzsche cuja análise do niilismo europeu é o últimojuízo do mundo ocidental pós-medieval, tal como aDivina Comédia era o primeiro.

 

§3. Realismo espiritual - o paraíso terreno

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20dante.htm (1 of 7) [27/03/2002 07:19:10]

Page 47: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

Esta perspectiva mais ampla permite uma melhorcompreensão dos problemas de Dante. As suasabordagens ao problema de uma humanidade ocidentalque está perdendo a unidade espiritual,  por um lado, e atentativa de encontrar a  relação adequada do indivíduoespiritual à estrutura política da sua época, por outrolado, ainda estão indiferenciadas. Ele acalentaesperanças numa nova Igreja espiritual de tradiçãojoaquimita, tal como expressa na Divina Comédia, omesmo tipo de esperança de Lutero e dos revolucionáriosdo séc. XIX. Mas a experiência de Dante da realidadeprofunda do espírito determina a sua atitude pessoalnegativa face ao campo da política que vê dominadopelas paixão do poder material. Este negativismoressurge em Maquiavel, Espinoza e Nietzsche.

§4. Forma literárias e símbolos de autoridade

Para as afirmação pública de um indivíduo, Dante teveque desenvolver as formas literárias e os símbolos deautoridade adequados à nova função. Na primeira faseadoptou as Cartas, tal como desenvolvidas por FredericoII e usadas por São Francisco. A Carta Aberta, ouManifesto Político, torna-se o instrumento de expressãopara o indivíduo que não tem público institucional masque apela à opinião pública. A questão é da autoridadecom que escreve estas cartas. o papel que assume. NaCarta V, endereçada aos príncipes e povos de Itália,designa-se a si mesmo como humilis Italus. Na Carta VI endereçada aos Florentinos exprime-se como oFlorentius. Na Carta VII, ao imperador Henrique VII, é oFlorentinus, acompanhado pelos toscanos que desejam apaz. Nas três cartas considera-se imerecidamente noexílio. Na Monarchia, regressa à forma convencional dotratado político. E finalmente na Divina Commediaconsegue a grande inovação de um poema político emlingua volgare, dirigido ao povo italiano em geral.

Os símbolos de autoridade são simultâneos em trêsfontes.

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20dante.htm (2 of 7) [27/03/2002 07:19:10]

Page 48: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

A primeira fonte é designada pelas auto-designações nasCartas e pelo uso da língua vulgar na Divina Commedia.Dante fala como italiano e florentino; apesar da retiradade grupos políticos mantém um estatuto político; comomembro da comunidade política, tem a funçãorepresentativa de um porta-voz.

A segunda fonte de autoridade é o espiritualismojoaquimita. Como espiritualista cristão assume emrelação ao reino de paz futura uma função semelhante aJoaquim.

E enfim, Dante fala em nome do seu génio poético, queconstitui uma fonte de autoridade mais problemáticamais pessoal. Mas problemática porque a ordem cristão opoeta não tem autoridade divina específica para falarcomo vidente. Consciente do problema, Dante evocaVirgílio e quatro outros poetas pagãos no limbo que  orecebem por companheiro, (Inferno, IV, 64-105)

 

§5. As Cartas

 .......................

 

§6. O De Monarchia

A construção de Dante já não é aceitável porque aantropologia moderna enriqueceu-se com a visão daestrutura histórica da mente humana. Já não é possívelidentificar a essência do homem com um  intelecto semhistória, embora exista quem pratique istofrequentemente. A unidade da humanidade não éintelectualmente estática; é um campo aberto em que aspossibilidades da mente humana se desdobramhistoricamente e se manifestam na sequência decivilizações e nações. É cientificamente insustentávelparar a história num ponto do tempo e declará-lo

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20dante.htm (3 of 7) [27/03/2002 07:19:10]

Page 49: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

absoluto como a natureza humana, precisamente o quesucede com a ideia de uma organização estática queseria a resposta política à ideia de homem. O drama dahistória   humana não pode ser retido numa organizaçãode poder governamental, imperial e não pode sersubmetido às regras de um tribunal.

O defeito da teoria de Dante é o intelectualismo, quereserva ao monarca mundial as funções de árbitro. Osplanos de organização mundial de Pierre Dubois e Sullyoriginados na vontade de poder de uma nação particular,sendo hegemónicos, estão mais de acordo com as forçasda história. Mas o intelectualismo continua na moda. Osnossos planos modernos de organização mundial são,por regra, hegemónicos. São historicamente realistas namedida em que se baseiam no princípio de que asconcepções políticas de uma ordem particular deveriamser preponderantes, em geral, no mundo ocidental e noglobo. Mas são intelectualistas na medida em que umaideia particular de ordem é universalizável de modo a quetodos os homens devem submeter-se-lhe. O conflitopolítico entre a hegemonia organizada e o sonho dauniversitas hominum - politicamente personificada noséc. XIII por Dante - está longe de estar resolvido.

c. O mito da Italianidade

O Livro Segundo da Monarquia, trata de saber se o povoromano tem o direito de assumir a monarquia mundial.Os detalhes da investigação não são aqui relevantes,embora sejam um modelo de análise religiosa e filosóficados sintomas pelos quais a vontade de Deus pode ser conhecida. O importante é que Dante não visa defender oimperador contra o poder espiritual mas sim o populusromanus, ou seja, o povo italiano contra os adversários ecompetidores. O povo italiano é o povo por excelência emvirtude da obra de civilização e de paz que realizou e pelavirtude de Cristo se ter deixado julgar por um tribunalromano. Não se trata de nacionalismo. A imaginação deDante ainda não visiona o estado nacional italiano.

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20dante.htm (4 of 7) [27/03/2002 07:19:10]

Page 50: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

Enquanto aguarda o fim da intervenção estrangeira, aregeneração deve preparar os italianos para assumir asfunções de povo imperial. Dante aguarda por umimperador da Casa de Luxemburgo. Este mito daItalianidade permanecerá na moderna história  italiana.Com Maquiavel é o estado nacional, e para Vico a Itália éa única nação ocidental que tem um ciclo antes dasmigrações dos povos bárbaros. O fascismo irá explorareste  ressentimento contra a barbárie anglo-saxónica,considerando-a atrasada em relação à  Itália.

O livro III retoma a relação da autoridade imperial com aeclesiástica. O argumento imperialista da derivaçãodirecta da autoridade de deus contra a construçãohieràrquica

 

§7. A visão em Purgatório 29-33

Numa economia da história das ideias políticas, podemosconcentrar-nos na visão apocalíptica decisiva dePurgatório 29 e 32-33. A visão está expressa em símbolosespirituais e consenso é difícil. As linhas principais foramclarificadas pelo trabalho de séculos de comentadores. Aevocação de Dante utiliza as raízes joaquimitas atravésda distinção entre a Igreja feudal corrupta e a Igrejaespiritual pobre e a expectativa joaquimita de que operíodo de iniquidade será seguido por uma Igrejapurificada e a ser inaugurado por uma personalidadesalvadora.

A visão não é simples repetição do sonho joaquimita doTerceiro Reino do Espírito. O elitismo espiritualista deJoaquim era uma fuga à unidade temporal espiritual doImpério; a redução da história ao processo espiritualaniquila a vida secular da humanidade, na acepção deirmandade dos perfeitos ser incompatível com a ideia depovo cristão. Dante vive no horizonte mais amplo dopoder imperial. Vê a decadência da Igreja em paralelo

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20dante.htm (5 of 7) [27/03/2002 07:19:10]

Page 51: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

com a decadência do império como poder secular:miséria do papado em Avignon e predominância daFrança no Ocidente. A reconstrução do imperium tem dese estender ao poder temporal e espiritual. Mas como ovelho Império morreu, o problema sai do tempo presentee vai para as eras simbólicas de história

Os símbolos básicos são joaquimitas. O império seráinaugurado por um Dux, que, contudo. é uma figuraimperial e temporal. Apenas em segundo plano apareceuma figura espiritual dirigente designada como Veltro.(Inferno, verso 100 e ss.) Mas esta dupla liderança doimpério do futuro não será levada a cabo peloincumbente do trono pontíficio e imperial; não serárealizada por acção política no sentido mundano, porqueo Império é dado por Deus no devido tempo. Reaparece oelemento de fatalismo típico de uma filosofia da históriaque procure evocar uma drã fixo no deuros dos ventosfuturos. O  fatalismo de Dante ainda é mais forte que ode Joaquim porque Dante não assume o papel desimples profeta existencial; é fatalismo de tipo intelectuale aproxima-se mais da submissão à história sob uma leieterna, típico de Sigério de Brabante e dos Averroístas.

Noutro sentido, a evocação de Dante pode ser comparadacom a de Santo Agostinho. Dempf afirmou bem que avisão de Dante é a contrapartida da Civitas Dei, namedida em que completa a evocação do reino cristãoesboçada em Santo Agostinho. A comparação pode serlevada da esfera dos conteúdos para a esfera dossentimentos. A Civitas Dei assinala o fim do períodoromano-cristão porque aceita a derrota da ideia de umimpério cristão. O saeculum é senescens; não existeesperança na história do mundo e temos que aguardarpela segunda vinda de Cristo que porá fim ao cursoinsensato dos acontecimentos humanos. A situação deDante é semelhante. De novo o Império falhou e nãoexiste esperança de restauração no futuro imediato;existe um tempo de espera comparável  ao saeculum

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20dante.htm (6 of 7) [27/03/2002 07:19:10]

Page 52: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

senescens.  O indivíduo mais não pode fazer do queretirar-se para atitude contemplativa. Pode julgar asiniquidades do seu tempo mas o tempo passará sobreele. O saeculum chegará ao fim por intervenção divina.

A diferença importante é de que este fim não será oadvento de um reino celestial mas uma nova épocaimperial na história da humanidade cristã. Pela primeiravez surge o sentimento do esperança desesperada de queo deus ex machina abolirá as tendências destrutivas dasforças intramundanas e estabelecerá um reino perfeitocristão. As categorias de Dante são medievais, a suaimagem do império perfeito medieval: mas o seusentimento é moderno na medida em que absorveu aconstrução do saeculum que esteve a actuar nos séc. XIIe XII. A  esperança é desesperada porque as forçasintramundanas habitam legitimamente o mundo cristãomas têm que ser dobradas às finalidade da ordemespiritual cristã. Mas o sonho da sua abolição deste finsé a força do mundo moderno .

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20dante.htm (7 of 7) [27/03/2002 07:19:10]

Page 53: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

  

ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS

ERIC VOEGELIN

**

A Idade Média

- Dos Nibelungos a Jerónimo Bosch -

Capítulo 17

Marsílio de Pádua

§1.Os primórdios do desenvolvimento constitucionalgermânico

A interferência papal após a eleição de Luís IV comoimperador (1313-1347) constituiu a ocasião para ajustaras relações entre o papado e o império. A recusapontifícia em reconhecer Luís IV despertou o sentimentonacional dos príncipes alemães que se movimentarampara obter a independência constitucional do imperadorperante do papa. Em 1338 a Kurverein de Rense declarouválida a eleição do imperador sem confirmação papal; aDieta de Frankfurt declarou os eleitores competentespara escolher o imperador; e a Bula de Ouro de 1357regulamentou as eleições imperiais segundo fórmulasque permaneceram até 1806. Esta actuação substituiu avelha ordem política gelasiana de equilíbrio entre os doispoderes, e a evolução constitucional alemã tomou aforma de uma federação de príncipes que durou atéfundação do II Reich em 1870, descrita por Lanbandcomo uma república aristocrática de príncipes sob apresidência do imperador.

§2. O Defensor Pacis

No meio da torrente de literatura partidária que o conflitoentão produziu, de há muito que se reconheceu que o

Capítulo 17 Marsílio de Pádu

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20marsílio_de_pádua.htm (1 of 12) [27/03/2002 07:19:17]

Page 54: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

Defensor Pacis emerge como o primeiro tratado que evocaa ideia da organização secular do Estado, do mesmomodo radical que o De Eclesiastica Potestate de EgÌdioRomano evoca o supremo poder papal.

É habitual levantar a questão do autor. Editado oDefensor Pacis em 1324, Marsílio de Pádua fugiu de Parisem 1326 com o seu colega João de Jandun, acusados deserem os co-autores da obra perseguida pela censurapapal. Algumas diferenças estilísticas entre a primeira esegunda partes da obra, sugerem a possibilidade de queos originais não pertencessem ao mesmo autor. Mascomo na obra definitiva predomina o entrosamento deestilos, o conhecimento indiscutível do autor nãoaumentaria a nossa compreensão da obra.

Das incompreensões que até recentemente obstavam àcompreensão da obra  permaneceram três ou quatroobstáculos sérios. Primeiro, a mais importante passagemde todo o livro - a secção I,12,3 - surgia incompleta nasedições primitivas fazendo crer que Marsílo se inclinavapara a teoria da soberania popular. Tal incompreensãodesaparece perante o texto restaurado da edição críticade 1928, por C.W. Previté-Orton, Cambridge, 1928. Asegunda causa de incompreensão é a tendência para lerideias modernas num tratado medieval;  o intérpreteprogressista realça a grandeza do antecipador porquetem ideias posteriores que considera mais avançadas. Aprevalência da atitude hermenêutica que pede parasituar as  ideias de autor no contexto do tempo, vemdestruir estas veleidades. A terceira fonte de confusão é adificuldade de situar as ideias de Marsílio. O DefensorPacis utiliza a Política de Aristóteles. Recepção, contudo,não significa adopção mas, neste caso, uma selecção deteorias isoladas de Aristóteles enquadradas num sistemacom princípios totalmente distintos. Uma comparaçãodas citações marsilianas de Aristóteles mostra que arelação é muito menos intensa do que é sugerido pelamassa de citações. Outro obstáculo era o conhecimento

Capítulo 17 Marsílio de Pádu

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20marsílio_de_pádua.htm (2 of 12) [27/03/2002 07:19:17]

Page 55: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

insuficiente do averroismo latino seguido por Marsílio eJoão de Jandun. Para quem conhece Sigério de Brabantee Boécio, o modernismo do  Defensor Pacis o já nãosurpreende; é antes o culminar de um desenvolvimentointelectual com mais de setenta anos e que nesta obraatinge o impasse.

§3. A relação com Aristóteles

O tratado está organizado em três partes designadasDictiones. A segunda é  a maior e contém a polémicacontra o poder sacerdotal em geral, e pontifício emparticular. Reduz os poderes coercitivos do sacerdócio auma subdivisão da política secular. A Dictio Prima expõeos princípios donde são derivadas as regras da DictioSecunda. A Dictio Tertia é uma curta enumeração dequarenta e duas regras que resumem o argumento daspartes precedentes.

Ao longo da obra sucedem-se referências ao “divinoAristóteles”. Mas em vez da polis como a communitasperfecta, Marsílio utiliza civitas ou regnum, acomunidade territorial nacional. Aristóteles abordava apolis centenária como forma política inquestionada, ecentrava-se nos problemas da eudaimonia comoportadores do significado da vida humana e da aretecomo a atitude adequada do cidadão. Ora a comunidadepolítica secular de Marsílio corresponde ao novo tipo deorganização política que se está a separar do império.Enquanto a Política de Aristóteles é a derradeira palavrade uma polis moribunda, o Defensor Pacis é a primeirapalavra do Estado secular: não aborda a concepção daeudaimonia e da arete, nem na ética nem naantropologia. O tópico central é a existência do Estadosecular através dos esforços do monarca com a ajuda deperitos legistas e financeiros, regulando os grupos sociaisdo reino em devida proporção, e reduzindo  o clero a umaposição subalterna no corpo político. O título adverte queo estabelecimento da paz e da tranquilidade será obtidopela subordinação do sacerdote ao poder secular

Capítulo 17 Marsílio de Pádu

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20marsílio_de_pádua.htm (3 of 12) [27/03/2002 07:19:17]

Page 56: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

monopolista. (III,3, De titulo huius libri) 

§4. Analogia orgânica

O Defensor Pacis começa por comparar a communitasperfecta a um animal saudável, remetendo paraAristóteles, Política, 1254b e 1302b. A civitas tem umanatureza animal (I,2,3) e cada parte deve estar ordenada.Mas em Política 1302b, a analogia aparece no contextodas revoluções causadas pela desproporção de ricos oude pobres. Em Política 1254b após comparar a estruturada polis à relação entre alma e corpo de um ser vivo emque a alma é parte dominante, Aristóteles  conclui que,também na cidade, a parte melhor deve dominar a pior;ou seja, a teoria marsiliana da cidade como organismo está artificialmente associada à Política  de Aristóteles.Os antecedentes da teoria estão, sim, no Policraticus queconstrói o poder governamental intramundano comorepresentativo de uma comunidade particular. A analogiaorgânica era usada por Salisbury para evidenciar aestrutura interna da comunidade. Marsílio retoma estaimagem da entidade política para passar à solução doproblema de como um indivíduo ou grupo dominantes,  apars principans, exercem a sua autoridaderepresentativa.

§5. O problema de  autoridade intramundanarepresentativa. O legislador

A analogia orgânica ajuda a evocar a comunidade comoum todo mas não ajuda a resolver o problema daautoridade representativa. Se a autoridade do governantenão provém de Deus, mas antes se localiza nacomunidade intramundana, o governante deriva a suaautoridade dos membros que deve regular. A fonte temque estar no todo que antecede os partes. Marsílio é oprimeiro pensador político do Ocidente a enfrentar oproblema de que por detrás da constituição, está o poderconstituinte do povo que se reúne em assembleia.

Capítulo 17 Marsílio de Pádu

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20marsílio_de_pádua.htm (4 of 12) [27/03/2002 07:19:17]

Page 57: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

A solução encontrada é perfeita para o tempo. A fonte deque o governante deriva autoridade é o legislator. Estelegislador (o nomothetes de Aristóteles) é o agenteintramundano que autoriza a ordem constitucional sob aqual o governante exerce as suas funções, incluindo alegislativa. Diz a mais famosa passagem do DefensorPacis, I,12, 3: “Definimos  conforme a verdade e a opiniãode Aristóteles em  Política  II,6 (II,11 na contagem actual)que o populus ou civium universitas  ou a sua partesocialmente relevante (pars valentior) é o legislator ouprimeira e propriamente causa efectiva da lei através dasua escolha ou vontade expressa (per sermonem) numaassembleia geral dos cidadãos, comandando oudeterminando que algo seja ou não feito acerca dasacções civis dos homens mediante castigo temporal oupunição. Quando digo ‘valentior pars’ significo relevantepela quantidade bem como pela qualidade das pessoasna comunidade para a qual a lei é dada; assim será, quera supramencionada universitas civium ou a sua partesocialmente relevante se tornem a lei, quer confiem afeitura da lei a uma ou mais pessoas que não podemevidentemente ser o próprio legislator mas que actuampara um fim definido num tempo definido e de acordocom a autoridade que lhes foi conferida pelo legislator”(I,12,3).

Tudo depende do significado dos termos pars valentior euniversitas civium. É inaceitável que universitassignifique o eleitorado no sentido moderno e parsvalentior a maioria. A primeira versão do texto definevalentior como consideratae quantitate, e a ediçãoemendada acrescenta et qualitate. Como parteprevalecente ou dominante não é esclarecedor, usei atradução de Max Weber, como abrangendo todos osmembros da comunidade que causam perturbações casofossem negligenciados. É esta a intenção de Aristótelesna Política e de Marsílio no cap.13 do Defensor Pacis. Osmembros pobres da comunidade são relevantes devido aonúmero, os que possuem mais carácter, educação e

Capítulo 17 Marsílio de Pádu

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20marsílio_de_pádua.htm (5 of 12) [27/03/2002 07:19:17]

Page 58: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

propriedade são-no devido à qualidade. Por isso Marsíliodistingue os indocti (I,13,9) camponeses, artesãos emercadores, da classe superior de sacerdotes, capitães elegistas.

Este equilíbrio entre a iniciativa dos poucos que sãoeducados e o apoio da massa dos indocti reflecte aestrutura das comunas italianas da época e valegenericamente para a sociedade medieval tardia.  Olegislator é afinal a sociedade   medieval estratificada,aspecto tanto mais de salientar quanto Marsílio nãoprecisava conceber nestes termos o todo da comunidade.Poderia defender uma teoria do governo democráticopopular. As forças sociais que favoreciam estedesenvolvimento existiam na Itália e em cidades do norteda Europa. Mas nem Marsílio se interessava pela forçaespiritual destes movimentos nem nele existe traço dohomem cristão livre e espiritualmente amadurecidodefinido por São Tomás de Aquino. O elemento populistano Defensor apenas resulta da descrição da estruturainstitucional das comunas.

Em suma, a teoria do legislator é a primeira construçãoconsistente da unidade política intramundana, criando aautoridade de um todo da comunidade anterior àspartes. A finalidade só é idêntica à teoria do governopopular, na medida em que também visa instaurar umaunidade política intramundana; é genuinamentemedieval porquanto mantém os equilíbrios  da sociedade estratificada.

§6. Governo limitado - Italianismo

Na época de Marsílio, no que refere às relações entre osdois poderes tradicionais os problemas comuns eramcada vez mais escassos e os problemas nacionaisparticulares cresciam em importância. Na época daQuerela das Investiduras, alinhava-se a favor do papa oudo imperador; nos meados do séc. XIV, a linha de choquedeslocara-se para o frente entre o papa e a pluralidade de

Capítulo 17 Marsílio de Pádu

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20marsílio_de_pádua.htm (6 of 12) [27/03/2002 07:19:17]

Page 59: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

poderes nacionais, neste particular, o poder italiano.

O governante é instituído pelo legislator esubmete-se-lhe, até ao extremo de suspensão edeposição do cargo, em caso de abuso de autoridade(I,18). João de Salisbúria estabelecera a correcção dopoder pelo tiranicídio é agora substituída pela acção legalpor parte da comunidade, e em nome do governolimitado. Para construir a unidade políticaintramundana, é precisa uma função limitadora. Asolução constitucional moderna associa a universitas  àlimitadora. Mas Marsílio substância imaterial dacomunidade de modo que governante se torna seurepresentante directo sem povo, como na Rússia eAlemanha totalitárias.

Não é por acidente que foi um cidadão plebeu de Páduaque desenvolveu a ideia de governo limitado poruniversitas e Marsílio poderia ter sido o primeiro aestabelecer um paralelo entre a polis descrita porAristóteles e a cidade-estado medieval. A sua teoria desubstituir a polis pelo regnum ou civitas ganhava sentidono contexto das comunas italianas  e dos reinosnacionais transalpinos. O tratado não prometiaantecipações sobre governo limitado econstitucionalismo, até porque a corrente ia, pelocontrário, no sentido do reforço do poder domonarca absoluto.

§7 Naturalismo averroista

As tendências averroistas do Defensor surgem em partesdecisivas do livro mas não formam um sistema explícito,deixando ao leitor a tarefa de completar uma teoriaesotericamente sugerida.

Ao ler I,4,1 tem-se a impressão de que o autor adopta ateoria aristótelica da vida boa: os homens associam-seem comunidades para melhor fruir das ocupaçõesprática e contemplativa da alma. Mas em Marsílio não

Capítulo 17 Marsílio de Pádu

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20marsílio_de_pádua.htm (7 of 12) [27/03/2002 07:19:17]

Page 60: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

existe teoria do homem justo nem do cidadão virtuoso.Conforme a sua filosofia naturalista da sociedade, anatureza dotou os diferentes homens de diferentesinclinações e hábitos, em ordem a fornecer matéria parauma sociedades perfeita.(I,7) Desaparecida a unidade dohomem, a filosofia colectivista do homem natural que seevidencia se a compararmos com passo paralelo deAristóteles na Política, 1328a-1329a. Aristótelescontempla a diversidade de inclinações naturais mastambém atende ao ideal da personalidade perfeita. Ocidadão perfeito tem que exercer em sucessão as funçõesde guerreiro, governante e sacerdote porque a polis estáorganizada em torno do ideal personalista, pelo menos osmelhores da classe já que escravos, periecos, e artesãosnão se qualificam para a cidadania e através de suaqualidade formam a substância da comunidade.

§8 A pars principans

Uma civitas nasce, mas não cresce, a partir dadiversidade humana. Para Marsílio, os hábitos sãocausas materiales do Estado mas não são causasformales nem eficientes. A causa formal da ordem socialsão as leis emanadas do legislator. A causa eficiente é opróprio legislator. O Estado é uma organização cujaspartes constituem officia que obedecem a umaautoridade (I,7,1). Assim cabe ao governante ser a parsprincipans coordenadora das outras partes da cidade. Asua função é judicialis et consiliativa (I,5,1) e executiva(I,15,4) e tem ainda o poder de legislar, praecipere(I,15,6). Cabe-lhe regular o número e qualificações dosgrupos sociais de modo a manter as proporções entreeles. (I,15,10) O governante é pars prima porque institui,determina e conserva todas as outras partes (I,15,14).

A civitas apenas fica estável quando o governanteadquire o monopólio do  poder. Uma multidão apenas setorna civitas se tiver um governante com autoridadesecular suprema (I,17,11). Esta ênfase no poder supremodo governante mostra bem que a universitas não pode

Capítulo 17 Marsílio de Pádu

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20marsílio_de_pádua.htm (8 of 12) [27/03/2002 07:19:17]

Page 61: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

ser considerada soberana. O  ênfase está na organizaçãogovernamental que tem à sua frente o trabalho deunificação nacional. 

§9 A pluralidade de Estados em guerra

Marsílio condena a organização política  da humanidadesob um só governante por motivos complexos (I,17,10).Louva a existência de uma pluralidade de Estadoscorrespondendo a diferenças regionais, linguísticas eculturais; mas adianta que parece intenção da naturezamoderar por guerras e epidemias a propagação dohomem, de modo a que o espaço limitado seja suficientepara processo de eterna geração. Uma paz munida. Umavez mais se nota um argumento averroista, neste caso ageração eterna como princípio definitivo de organizaçãopolítica, mesmo que a expensas da paz entre os estados.

§10 O Direito

Marsílio apenas aceita o sentido do termo lei relevantepara o  Estado secular. O direito é uma doutrina sobre ojusto e útil e seus opostas em assuntos civis e donde sederivam regras coercivas sancionadas por penas erecompensas. (I,10,3 e 4). Reconhece a possibilidade deuma ciência  do justo e do injusto mas não aceita umdireito natural. A verdadeira cognitio do justo não originauma lei, (I,10,5) mas uma falsa cognitio pode ser lei desdeque dotada de sanção (I,10,5). A potestas coactivadomina todas esta teorização de que está ausente odireito natural.

§11 Cristandade e Igreja

Embora seja o objectivo principal do livro, o argumentocontra o poder do sacerdócio na segunda parte é umanti-clímax, após a exposição da primeira parte. Marsílioé averroísta: reconhece a verdade da fé mas trata osconteúdos com indiferença. Não procura reconciliarrazão e fé: o significado da vida boa é assunto defilósofos, sendo Aristóteles guia nesta matéria. As

Capítulo 17 Marsílio de Pádu

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20marsílio_de_pádua.htm (9 of 12) [27/03/2002 07:19:17]

Page 62: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

questões sobre a vida eterna não permitem consenso esituam-se para além de razão (I,4,3). O cristianismo é,simultaneamente, uma “seita” entre outras e averdadeira religião. E Marsílio chega ao ponto de resumiros artigos da fé cristã, como se  o leitor da época não osconhecesse sobejamente; age como alguém para quem ocristianismo fosse numa curiosidade intelectual. Estasuposição parece confirmar-se quando diz que a religiãoincute um sagrado terror das penas infernais parafortalecer a conduta moral dos homens vulgares (I,6,11). Mas o cristianismo  é uma religião de um outro mundoque não se deve institucionalizar numa Igreja compotestas coactiva sobre seus membros; a existência docastigo eterno não permite atribuir poder aos sacerdotes.Cristo é um “médico” que informa e prognostica sobre asvias mundanas que conduzem à salvação ou à danação;não é juiz nem rei em que os sacerdotes se possamapoiar. Marsílio utiliza mesmo a expressão averroísta deque Cristo perdoa “usque ad extremum cuiusqueperiodum”, aceitando a teoria de que existem ciclossucessivos da humanidade.

A partir destes princípios, é fácil adivinhar as relaçõesentre Igreja e poder secular. A Igreja está submetida àautoridade do supremo legislador que ordena a vida dohomem para a felicidade mundana (II,4 e 5). O clero deveresponder em tribunais seculares; a actuação da Igrejadeve ter a permissão de leis seculares; a organizaçãohierárquica da Igreja deve ser abolida; a preeminência dopapa tem razões apenas históricas e não espirituais; só aescritura deve ser acreditada, sendo  a sua interpretaçãofunção de Concílio Geral da Igreja. Os delegados doConcílio  devem ser escolhidos na comunidade dos fiéis,leigos e sacerdotes pelos governantes seculares.

§12 O credo esotérico

As doutrinas do Defensor Pacis não são redutíveis a umasó fórmula devido à multiplicidade de problemas práticose teóricos que surgem misturados com afirmações de

Capítulo 17 Marsílio de Pádu

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20marsílio_de_pádua.htm (10 of 12) [27/03/2002 07:19:17]

Page 63: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

princípios devidamente encobertas para eludir a censurapapal. Mas apesar do carácter esotérico da obra, épossível encontrar no âmago uma teoria políticaaverroísta. Sigério de Brabante apresentara ahumanidade como colectividade dotada de uma animaintellectiva, em que cada indivíduo participa através doprocesso de geração eterna. A anima intellectiva presta-seà evocação de um império mundial, a universalidade deorganização política que corresponde à universalidade damente como em Dante. Se o processo natural édeterminante, pode evocar-se a ideia de um fluxo decomunidade política com pluralidade de estados emguerra entre si.

A opinião prevalecente sobre o sistema político deMarsílio aponta para a incompatibilidade entre a dictioprima e a política eclesial da dictio secunda. Se já ofideísmo diminui a capacidade do cristianismo comoforça anímica da sociedade, para Marsílio que consideraa religião como ópio do povo, e Cristo como figura cíclicada história, o cristianismo é ilusão que não se integra napolítica secular. Por outro lado, se os filósofos árabesalcançaram uma atitude de tolerância para com o Islão,a política eclesial do Defensor também pode ser tolerantee condescender que os vulgares tenham convicçõesilusórias e mesmo uma forma de expressão institucionalatravés de concílio geral, sem contudo conceder umpoder sacerdotal.

Entre a leitura da incompatibilidade e a da tolerâncianão e fácil decidir porquanto falta parte do doutrinasobre a questão da substância da comunidade.  É comose uma mancha escura escondesse o que lá está escrito.As escassas referências à vida boa, ao justo e ao útil e aevocação da almas não chegam a formar um código deética nem um ideal de vida. Uma vez que o autor nãoaceita o cristianismo como substância da comunidade,podemos suspeitar que era um intelectual naturalista,que queria fruir do seu conhecimento superior e deixar a

Capítulo 17 Marsílio de Pádu

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20marsílio_de_pádua.htm (11 of 12) [27/03/2002 07:19:17]

Page 64: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

massa entregue a um credo utilitário.

§13 Tecnicismo político

No ponto de vista político, como a atitude central deMarsílio é niilista, a sua abordagem dos problemaspolíticos torna-se técnica no sentido de que procuracompreender os problemas do poder sem participaçãopessoal nas lealdades da comunidade.  O tópico quemais interessa a Marsílio é o tratamento e a prevençãodas revoluções, pese embora o seu tratado não teralcançado a grandeza e a notoriedade do Príncipe. Mas osproblemas essenciais da política secular pós-medieval eos traços de averroísmo estão já no Defensor pelo queboa parte da fama de Maquiavel deveria ser restituída aMarsílio.  Em todo o caso, a fama permaneceria na teoriapolítica de Itália, onde o confronto directo com a Igrejacriou um clima favorável a uma abordagem tecnicista eautónoma da política, desde o longínquo sec.XIV deMarsílio até ao séc. XX, com Mosca e Pareto.

Capítulo 17 Marsílio de Pádu

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%20marsílio_de_pádua.htm (12 of 12) [27/03/2002 07:19:17]

Page 65: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

ERIC VOEGELIN

ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS

**

A época medieval

 

Capítulo 21 - A área  imperial

 

Introdução

Na área  europeia entre a França e zona eslava, nãohouve um reino nacional como em Inglaterra. nemmonarquia carismática como em França. A unidadepolítica e o continuum de ideias política desde o séc. X énessa área preenchida pelos cargos do Sacrum Imperiumassente no Papa e Imperador. O Sacrum Imperium não éum reino alemão mas apenas um domínio de forte basemilitar e eclesiástica na zona intermédiagermano-italiana.

Esta estrutura é habitualmente mal compreendida pordiversos motivos. 1) A Querela das Investiduras e o surtodos Hohenstaufen obscurecem processos regionais.Assim, o interregno de 1254-1273 não foi tão importantecomo convencionalmente se pensa. 2) As unidadespolíticas regionais não evoluíram para a forma deestado-nação. Os símbolos evocativos da zona imperialnão atingem expressão literária em pensamento políticosistemático. Ora onde não existem doutrinas, é precisoanalisar as instituições. 3) A historiografia alemãoitocentista e nacionalista falou de obsessão italiana, deerros de Hohenstaufen e Habsburgos, deformando operíodo medieval como época das oportunidadesperdidas para a criação do estado nacional alemão.

 

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%2021-area%20imperial.htm (1 of 24) [27/03/2002 07:19:37]

Page 66: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

§ 1 Política sub-imperial

 

§ a Política imperial e sub-imperial.

A Alemanha não tem datas decisivas na sua históriaequivalwntes a 800, 1066, 1143, sendo significativo quea fórmula termo “império alemão” foi usada pela primeiravez em 1871.

 

§ b Reino Franco Oriental e Itália

Em 911 o Duque da Francónia sucede ao ultimocarolíngio como rei das tribos do reino Franco oriental.Coexistiam na Alemanha uma pluralidade deStammesherzogtume, o que determinou o particularismoalemão. Os ducados alemães constituíam um Hinterlanddo Império. Era vital manterem abertas as vias paraMediterrâneo e Império Bizantino para não caírem forado comércio mundial. Donde, Império alemãoempreender uma política Italiana. Otão o Grande renovaem 962 o Império de Carlosmagno sendo os monarcasalemães reis francos orientais. Mediante a expedição aItália, de 952, conquista as passagens alpinas e partesde Lombardia: na expedição de 962 conquista o resto,sendo coroado rei de Itália em Pavia, e assinando tratadocomercial com Veneza uma vez que os impostos italianoseram essenciais. Apenas a região lombarda estava sob ocontrole do Papado

 

§ c Concentração do poder real

Os Imperadores Otões concentraram na família os feudosvagos e controlaram a Itália a partir do reduto alemão aNorte dos Alpes. Só a Saxónia resistia A partir de 1046surgem quatro papas germânicos que iniciam a reformacluniacense do Papado. Após o imperador Henrique III

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%2021-area%20imperial.htm (2 of 24) [27/03/2002 07:19:37]

Page 67: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

morrer prematuramente, o Interregno da regência foifatal. Henrique IV, ao encontrar as terras redistribuídas,tenta criar base territorial na Saxónia e procura controlaras terras da Igreja através da prática de simonia. Mas oprestígio do Papa crescera com as reformas de Cluny. AQuerela das Investiduras foi o conflito iniciado entreHenrique IV e Gregório VII. Após um segundo interregnoque causou danos irreparáveis, reinaram Henrique V -1106-1125 - e Frederico I - 1152-1190. Outras casasprincipescas na Alemanha - tais como Guelfos eBabenbergs - eram igualmente importantes.

A política dos Hohenstaufen foi muito diferente;procuraram controlar a Alemanha a partir do redutoitaliano. 1) A consolidação da Lombardia com governosde podestà nas cidades. Apesar de derrotados emLegagno, em 1172, fizeram cair o pretendente saxão, em1180. A aquisição de Toscânia e o casamento siciliano deHenrique VI coroaram a construção do reduto italiano.Mas Henrique VI morre aos 32 anos, em 1197. O filho, ofuturo Frederico II, tem apenas 3 anos. Começa o terceirointerregno.

Na história alemã o Grande Interregno é o de 1254-1273,entre o último Hohenstaufen e a eleição de Rudolfo deHabsburgo. A tradição medieval imperial morrera ecresciam os principados da renascença e os estadosnacionais. Mas os factores de crise acumulavam-se.Entre 1197-1273 existe interregno no nível sub-imperial(não nacional). Foi então que emergiu Frederico II. Nãoera propriamente um príncipe alemão e desistiu decontrolar a Alemanha. O Papa controla a Igreja alemãpela Bula de Ouro de Egger, de 1213. Mediante oestatuto de 1220, os príncipes eclesiásticos sãoindependentes. Os príncipes leigos dominam os seusrespectivos territórios, segundo o estatuto de 1231. Apolítica de Hausmacht dos Habsburgos reconhece osparticularismos alemães. Os velhos ducados já nãoserviam como base de apoio político, nem sequer na

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%2021-area%20imperial.htm (3 of 24) [27/03/2002 07:19:37]

Page 68: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

Itália após a perda da Sicília para Aragão. 

 

§ d. A colonização do Leste

A nova solução  - dos imperadores Habsburgos - foi acriação de um núcleo de poder a leste do territórioalemão, aproveitando a expansão germânica contra oseslavos. Enquanto os reinos da Europa fixavamfronteiras nacionais, os alemães estavam em movimentoa partir do Elba e do Saale nos sécs. XII ao XIV, nummovimento comparável à expansão atlântica doseuropeus. Este movimento deixou ficar uma diferençaentre civilização metropolitana ocidental e civilizaçãocolonial oriental que, só no séc. XVIII, se aproximam como movimento Sturm und Drang como assinalou JosefNadler[1].

A integração institucional da Alemanha ficou ainda maisdificultada com os novos particularismos dos municípiosdo Leste.. E até hoje [1941] os padrões de co

 

1 Política sub-imperial       

A dificuldade de integração institucional agravou-sedevido aos particularismos alemães. As comunas, osmunicípios, a pequena nobreza e o terceiro estado daAlemanha não produziram dirigentes, porque não existiaum enquadramento nacional que permitisse acumular aexperiência política. Até hoje, os padrões decomportamento políticos não resultam de um pretensocarácter nacional alemão mas da ausência deinstituições estabilizadoras nacionais. Ademais, aexpansão para Leste, atingiu território totalmente eslavoe criou problemas de minorias. A fronteira política alemãficou sempre em suspenso, até ao Volga.          

A iniciativa da expansão não foi uma iniciativa imperial.Em 1140, Adolfo de Schaumburg funda Lubeck, primeiro

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%2021-area%20imperial.htm (4 of 24) [27/03/2002 07:19:37]

Page 69: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

posto no Báltico. Em 1144, Alberto o Urso fundaBrandenburgo. A Cruzada de Wendos ocorre em 1147com Henrique o Leão, a leste do Elba. No séc. XIII , éconquistada Riga em 1230, e a Livónia em 1225. AOrdem Teutónica na Prússia atinge a Estónia em 1346.Do Holstein ao Lago Peipus; só a conquista da Silésia sedeve a imperador Frederico I, em 1163. A consolidaçãode Polónia e Lituânia unidas em 1386 sela o destino doBáltico alemão. Tannenberg é perdida em 1410. A perdade Samogitia corta ligação com Prússia e Livónia. NaPrússia Ocidental, Danzig fica polaca em 1466. Sóreentra em Império alemão em 1815 e no Bund alemãoem 1866.

A família dos Premyslid domina a Boémia em séc. XI eXII. Venceslau I acolhe a imigração alemã e funda umprincipado semi-alemão. Caríntia, Estíria e Áustriaseparam-se do Ducado de Baviera. Todo o peso políticoalemão deslocou-se para Leste. Após 1300, os grandessenhores vêm de Áustria, Boémia Brandenburgo ePrússia. As comunas determinaram a formação deInglaterra e a monarquia formou a França. A colonizaçãoe a articulação territorial do leste determinou a estruturapolítica alemã cuja escassa articulação nacionalcontrasta com a sistematicidade das ideias políticasalemãs.

§ e Sumário da política das três dinastias imperiaisalemães:

1ª Saxão-sálico: coexistência entre velhos ducados econcentração de poder real.

2ª Hohenstaufen: concentração de poder real na Sicília eItália

3ª Habsburgos: concentração na Hausmacht  e nosterritórios de Leste.

 

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%2021-area%20imperial.htm (5 of 24) [27/03/2002 07:19:37]

Page 70: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

§ 2 A Bula de Ouro

 

§ a Carlos IV

Em 1356, Carlos IV toma a iniciativa de reconhecer eformalizar a estrutura política alemã através da Bula deOuro. Seja quem for o respectivo autor, a Bula surgiu nasua Chancelaria após negociações com os Eleitores.Carlos IV não era um carismático, mas antes um cristãodevoto, sem ilusões sobre papado, e um bom europeu.Do nome original de Venceslau, rei da Boémia, passoupara Carlos, rei dos Francos, Rei de Borgonha eImperador romano. Administrador cuidadoso, tinha aintuição de que quase todos os homens têm um preço. Acomplexidade da figura torna-o pouco conhecido mascriou uma solução que durou mais de quatro séculos.

 

§ b Forma da Bula de Ouro

A Bula de Ouro foi promulgada na Dieta de Nuremberga,1355, e na Dieta de Metz, 1357. É um estatuto soleneque regula a eleição do Rei, o estatuto dos príncipeseleitores, do Rei da Boémia e outros assuntos. Oprocesso eleitoral segue a Constituição de Melfi.

 

§ c. As variantes na terminologia da designação imperial- christianum imperium, sacrum imperium, sacrumimperium romanum, sacro-sanctum imperium Romanum -revelam a complexidade da questão. O sacrum edificiumtem sete candelabros. A cabeça é rex romanorumimperatorem promovendus  e outros termos que reflectema estrutura histórica de constituição do império. Adignidade do reino alemão sobre domínios alemães,regnum teutonicum, implica funções de administraçãoimperial em Borgonha e Itália, regiões de imperium. O rexelectus era um imperador. Existe um imperium estatal e

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%2021-area%20imperial.htm (6 of 24) [27/03/2002 07:19:37]

Page 71: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

administrativo e um império mundial. Os Hohenstaufententaram que o império estatal fosse coextenso com oimpério mundial. Frederico I chamou reguli aos reinosindependentes dos governantes. Henrique VItransformou em feudos imperiais os reinos cristãos deInglaterra, Arménia e Chipre. E Frederico II atribui-se adesignação de dominus mundi. Ademais com a chefiatemporal do sacrum imperium, o imperador acumulavafunções de protecção do mundo cristão, promoção decruzada e missionação, reforma da Igreja e influência naeleição papal, atribuições de poder espiritual.

O rei-imperador acumula funções de: 1) Reinado noregnum teutonicum; 2) Funções imperiais face a impérioestatal que inclui Itália e Borgonha 3) Pretendente aimpério mundial futurus imperator;4) Poder temporalsobre o populus christianus e protectorado sobre a Igreja.Na prática, tais jurisdições coincidiam na mesma pessoa.O cargo tem um dinamismo complexo que inclui eleiçãosecular, aprovação papal e coroação, o que se tornaráfonte de conflitos entre príncipes e papas e exigenegociações preliminares com eleitores seculares eeclesiásticos.

Segundo a lei romana e canónica, a dignidade imperialvem directamente de Deus e não carece de aprovaçãopapal, tal como estatuído por Luís o Bávaro, em 1338. Odocumento Licet Juris considera que os príncipeseleitores criam o verus imperator.  A Bula de Ouro nãomenciona o aprovação do papado, deixando o caso emaberto para a técnica legal e a diplomacia.  Carlos edita-alogo após a sua coroação. A transformação do reinonuma federação oligárquica de príncipes com cabeçaeleita exprimia o surto do sentimento nacional alemão.Contudo, tratava-se de uma solução politicamentepacífica de um problema delicado. O silêncio no pontocrítico não prejudicava o papado e tornava desnecessárioque o Papa recorresse a protestos oficiais.

 

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%2021-area%20imperial.htm (7 of 24) [27/03/2002 07:19:37]

Page 72: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

§ d O Colégio Eleitoral

A eleição é feita em Francoforte por sete eleitores, o quecriou os problemas de representação e de maioria. "Taliselectio perinde haberi et reputari debebit, ac si foret anipsis omnibus nemine discrepante concorditer celebrata."(Bula, II, 4). A maioria de quatro eleitores (entre sete) temo carácter de quorum porquanto são precisos quatrovotos eleitorais para eleger o rei. Transforma-se em regrade maioria pela coincidência de que colégio de eleitorestem sete membros.

Assim, a fórmula da Bula transforma em eleição o queantes fora escolha. Os procedimentos de elevação aotrono formam um processo extraordinariamentecomplicado que, nalguns casos, durava anos. A escolhade um candidato era o primeiro passo; depois vinham asnegociações  com o candidato; depois a eleição, ou seja, aconcordância dos príncipes eleitores: depois a nomeaçãoseguida de louvor, o agrément de pessoas menores e aaclamação do povo; depois a entronização e a coroaçãoainda interrompida por actos de louvor e aclamação; aaquisição do consentimento das tribos; o tomar posse dasinsígnias; a imposição de funções face a dissidentes.

Este processo complicado em que se atinge o plenoconsenso de reino e rei é reduzido no séc. XIII quando asRegras do Sachenspiegel seleccionam a eleição comomomento central. O voto é acto formal que sanciona umaconcordância substancial antes de começar a votação.Existe, pois, um voto de prestígio e um voto eleitoral. Em1273, o desinteresse por eleição leva o Papa a insistir emeleição por quorum. Na bula de Ouro a representação porconsenso é reduzida à ficção da concórdia. O prestigiodos votos eleitorais formaliza-se na instituição do colégioeleitoral.

 

e. Oligarquia dos Príncipes

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%2021-area%20imperial.htm (8 of 24) [27/03/2002 07:19:37]

Page 73: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

As provisões para a eleição do rei-imperador determinama influência dos Príncipes do Palatinado, Boémia,Saxónia e Brandenburgo e dos Bispos de MogúnciaColónia e Trier. Constitui-se o Gabinete imperial com osPríncipes. São admitidas as Ligas de PazLandfriedensbünde entre príncipes e cidades. Outrasassociações são estigmatizadas como conspirações comopor exemplos ligas inter- e intra-urbanas.

 

f. Lupold de Babenberg

Como mostrou Dempf, a literatura sobre o zelo ferventepela pátria germânica é vasta, destacando-se emparticular o De juribus regni et imperii Romani, escrito porum canonista, provavelmente o Bispo de Bamberg. Paraeste, o reino dos francos livres é anterior ao império.Descendentes de Troianos fugitivos, os Francos são tãoantigos quanto os romanos. Após translatio imperii deGregos para Francos, por vontade do povo romano eacção do papa, a questão gira em torno da relação doregnum germânico com o imperium.

A doutrina tem cinco artigos principais:

Por jus gentium, o povo sem rei tem direito a eleger um.

Mesmo que a eleição seja in discordia, por maioria osdireitos do rei são iguais. O voto de maioria produzconcórdia no caso de uma universitas como é o Colégioeleitoral. Os eleitores formam um collegium, não são setesujeitos soltos. Os príncipes são representantes do povoe a eleição é um acto do povo alemão através de seusrepresentantes

Como noutros reinos ocidentais, também o rei-imperadoré imperator in regno suo; direitos como o de legitimaçãode filhos e reabilitação de pessoas não lhe advêm do factode ser imperador.

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%2021-area%20imperial.htm (9 of 24) [27/03/2002 07:19:37]

Page 74: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

A eleição dispensa a aprovação papal.

O juramento de lealdade ao Papa não constitui feudomas lealdade à defesa de Igreja e Papa. Lupold separaclaramente o império estatal do império mundial. Para ogoverno do regnum, bastam os princípios de jus gentium.A aprovação papal só é requerida para o impériomundial. Apesar de não atingir a posição do licet jurisque declara irrelevante a aprovação e a coroação pelopapa, a doutrina de Lupold pode ter influenciado nesteponto a Bula de Ouro embora a tonalidade seja maispopulista do que oligárquica.

 

§ 3 AS CIDADES-ESTADO

 

§a Área das cidades-Estado.

O que Arnold Toynbee designou por cosmos dascidades-Estado [2]estende-se da Toscânia e ItáliaSuperior através da Suíça, Alemanha do Sul e Vale doReno, Holanda e Flandres; da área de Colónia ramifica-separa Vestefália e Báltico e até à Estónia. Cobre asgrandes vias comerciais da Idade Média. Permite apassagem do Próximo Oriente, através de Itália, para asregiões a Norte dos Alpes e de Novgorod para a EuropaOcidental. Na intersecção das duas estradasencontramos o rico núcleo de cidades na Holanda eFlandres. A posição nas vias comerciais era a condiçãoeconómica para comércio e indústria.

Politicamente, era uma terra de ninguém entre poderesterritoriais fortes. As cidades italianas desenvolvem-se novácuo de poder entre papados Bizâncio, Impériotransalpino e mundo muçulmano entre a Borgonha e osprincipados alemães e franceses. A Liga Hanseática noângulo entre principados germânicos do Norte e reinosescandinavos e eslavos. A localização nestas áreas de

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%2021-area%20imperial.htm (10 of 24) [27/03/2002 07:19:37]

Page 75: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

transição é condição para evolução de cidades Estadocom poderes menores. E, finalmente, esta área entrepoderes maiores é idêntica a área de Lotaríngiaestabelecia em 843 por Tratado de Verdun. E apenas noséc. XIX partes dela foram incorporadas nos estadosnacionais de Itália e Alemanha, enquanto Suíça, Bélgicae Holanda mantém-se como poderes menores e aAlsácia-Lorena oscila ente França e Alemanha. A costabáltica foi terra colonial gradualmente integrada naórbita dos poderes vizinhos, e apenas o regimenacional-socialista integrou as cidades livres deHamburgo, Lubeck e Bremen.

 

§b. Cidades e mundo feudal.

 

A partir de agora encontramos um sistema de relaçõesdirectas entre os cidadãos e as autoridades municipais.As comunas representam a substância do novo tipo. Acidade é a representante de uma nova fase da civilizaçãoocidental e o estilo civilizacional das cidades que entraem competição com o estilo dos estados primitivos e queacabará por dominar a nossa civilização.

 

§c. Vias comerciais e alimentos

As cidades ultrapassaram os limites e tornaram-secentros para os território circunvizinhos. A guerra deChioggia (1378-1381) revelou a vulnerabilidade deVeneza devido a falta de controle de abastecimentosalimentares. durante a primeira metade do séc. XV,Veneza prossegue uma vigorosa política de extensão parao Hinterland, adquirindo Padua, Bassano, Vicenza,Verona, Brescia, Bergamo, e Cremona.

 

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%2021-area%20imperial.htm (11 of 24) [27/03/2002 07:19:37]

Page 76: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

§d. A Quarta Cruzada.

 

§e. A organização da conquista Veneziana

Se a expansão das cidades Estado revelou a respectivaforça, a ordem constitucional das suas conquistasrevelou as suas limitações.

 

§f. Borgonha

Veneza é uma cidade-estado que integra territóriosrurais. Em Borgonha, a integração da rede urbana dosPaíses Baixos no reino da Borgonha. Um senhor feudalintegra feudos sobrepondo uma administração central.Começa com Filipe II, Duque de Borgonha em 1363,casado com herdeira de Flandres e Artois. Através decompras e cessões, Filipe o Bom adquire Holanda,Zelândia, Brabante, Limburgo Luxemburgo, Hainault,Namur, Antuérpia e Nechlin. O seu sucessor, Carlos oTemerário (1467-1477), acrescentou Guelders eFlandres.

Criou-se um Grande Conselho sob a presidência doChanceler de Borgonha e com representantes de todas asprovíncias. Existia uma Câmara de Justiça desde 1473que depois se separou como Parlamento de Malines etornou-se um Tribunal de Recurso Supremo. Aadministração financeira do reino era organizada por trêsCâmaras de Contas, situadas em Lille, Bruxelas, e Haia.Criou-se um exército permanente organizado emCompagnies d’Ordonnance. Em 1463 são convocadospara os Estados Gerais do Reino os representantes dosestados locais que se ocuparam da racionalização dosistema financeiro. A criação da Ordem do Tosão de Ouroem 1430, mostra a intenção de formar uma nobreza doreino, distinta da nobreza local. Uma área feudal foitransformada em monarquia com administração central

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%2021-area%20imperial.htm (12 of 24) [27/03/2002 07:19:37]

Page 77: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

racionalizada mas moderada por instituições locais econgresso federal, e em que o senhor está equidistantede todos.

 

§g. A Liga Hanseática

No espaço báltico formou-se uma organização de cidadespara a protecção do comércio, protecção mútua eaquisição e exploração de privilégios em regime demonopólio sem a pretensão de conquistar e organizarterritórios. O impressionante florescimento hanseáticonão teve consequências para a organização da naçãoalemã. Quando desapareceu as cidades decaíram eintegraram-se nos principados alemães. Dentro doparticularismo germânico do séc.  XIV, a Liga foi umaforma adequada de protecção política; no períodopós-colonial de desenvolvimento  nacional.

Este ponto é decisivo para compreender a interpretaçãodo problema alemão no séc. XIX e mesmo depois, talcomo a interpretação do carácter nacional inglês quegeram e complicam o crescimento institucional de longaduração. Nos séc. XII e XIV a integração alemã foiprejudicada por: 1) Destruição do papel régio deintegração devido aos longos interregnos; 2) Obstáculos àarticulação nacional devido à existência de principadosterritoriais; 3) Dispêndio de forças na colonização doLeste em vez de as aplicar na ordem interna; 4) Desviodas energias políticas das cidades para políticas de Ligasefémeras.

 A Liga foi favorecida pelos objectivos limitados das cercade 160 cidades que se associaram em número variável aolongo dos tempos, dispondo como arma eficaz do boicotecomercial. Entre 1350 e 1450 a pertença aumentaramuito, atingindo o maior número após esta data quandojá começava a declinar o poderio da Liga.

É possível distinguir duas fases neste processo. A Liga

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%2021-area%20imperial.htm (13 of 24) [27/03/2002 07:19:37]

Page 78: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

principia por ser uma associação de mercadores alemãesno estrangeiro. Após meados do séc. XII os mercadorestêm auto-administração em Gothland ou Londres. Antesde 1220 estavam em Novgorod, com delegações emPskov, Plotsk, Vitebsk e Smolensk, e em meados do séc.XII em Wisby, Londres, Bruges, Bergen.

Geralmente aponta-se o ano de 1241 como o inícioformal da Liga Hanseática mediante a aliança deHamburgo e Lubeck; mas tratava-se de uma aliançaentre os mercadores de ambas as cidades e não entreduas civitates, que apenas surgirá formalmente nasegunda metade do séc. XIV por ocasião da guerra daLiga contra a Flandres. Os Estatutos de 1347 revelamuma organização ternária: o primeiro terço é o dosWendos e Saxões sob a liderança de Lubeck; o segundogrupo é da Vestefália e Prússia, sob liderança de Colónia;o terceiro é de Gothland e Livland, lideradas por Wisby.Existiam sessões da Dieta da Liga desde meados do séc.XI. As agendas comerciais eram previamente discutidaspor dietas regionais, sendo Lubeck o centro executivo.

O apogeu da Liga Hanseática é marcado pelo Tratado deStralsund, de 1370, após guerra com a Dinamarca e quepermitiu adquirir o controle de pescarias e alfândegas doestreito da Dinamarca, fortalezas na Scania, e privilégiode confirmação do rei da Dinamarca. O declínio veio coma consolidação dos poderes bálticos. Lituânia e Polóniaunem-se em 1386, os países escandinavos com a Uniãode Kalmar em 1397. O declínio da posição internacionalfoi seguido pela desintegração, porque a Liga nãoassegurou hinterland agrícola. Na segunda metade doséc. XV as cidades prussianas e saxónicas retiram-se daLiga Hanseática. O desvio do comércio dominante para oAtlântico foi a machadada final. A decadência da Ligaapenas poderia ser evitada se organizasse o hinterlandrural alemão e incorporasse os Países Baixos, ganhandoacesso ao Atlântico, o que, aliás, não teria sidoimpossível como mostrou a guerra com a Dinamarca.

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%2021-area%20imperial.htm (14 of 24) [27/03/2002 07:19:37]

Page 79: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

 

§ h As Ligas do Sudeste alemão

Na Alemanha do Sul e Ocidental, as Ligas são produto dolongo interregno de 1247, surgido para protecção docomércio e defesa contra príncipes. Após a Bula de Ouroque proíbe a jurisdição a não residentes e ilegaliza ligasurbanas, ocorre em 1381 a aliança das Ligas Renana eSuábia que se aliam em 1386 a cidades suíças. OsPríncipes atacam primeiro mas os suíços resistemvitoriosos na vitória de Sempach. Em contrapartida, asLigas suábias e renana foram derrotadas,sucessivamente, em 1386 e 1388.

 

§ i. Confederação Suíça

A Suíça foi a única sobrevivente das Ligas do Sudoeste,com um processo original de formação nacional. Venezafoi a cidade que organizou um território; em Borgonha, osenhorio feudal organizou as áreas urbanas em reino; naSuíça, as comunas rurais tiveram a iniciativa. Uri eSchwyz e Unterwalden faziam parte do Ducado daSuábia, sendo autonomizadas por Frederico II. Arnulfode Habsburgo tentou recuperar os cantões. Este núcleoassociou-se às cidades de Lucerna, 1322 e Zurique,1351. O tratado com Zurique permaneceu modelar até1848, quando a nova constituição incorporou liçõesamericanas. A aliança de 1351 concede mútuaprotecção, autonomia local e jurisdição limitada,tribunais e dieta. Com a adição de Glarus, Zug e Bernaem 1353 reúnem-se os oito cantões mais antigos. O êxitoexcepcional dos suíços relaciona-se com a aquisição deum hinterland para as cidades. Na solução federal doproblema das cidades, o ardor e proezas da infantariacamponesa combinou-se com a astúcia diplomática dosmercadores urbanos.

 

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%2021-area%20imperial.htm (15 of 24) [27/03/2002 07:19:37]

Page 80: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

§ j Estrutura interna das cidades

Apesar da diversidade de escala, é importante referir queos problemas das cidades-estado italianas antecipam osproblemas dos estados territoriais futuros. As cidadesitalianas tinham uma estratificação social complexa comuma escala completa de alta nobreza, alta burguesia,baixa classe média e proletariado. O popolo grasso eracomposto por  mercadores, banqueiros e empresários,industriais, o popolo minuto por artesãos. Para alémdestes núcleos, também presentes na área germânica.existiam os grandi e os popolani, proletariado industrial.

A divisão da classe superior em nobreza e burguesia é acausa principal da luta fratricida nas cidades italianas.Os grupos aristocrático e capitalista estão sempre emfricção e ambos buscam ascendente através da ajuda dasclasses inferiores. As Ordenanças de Justiça, de 1293,em Florença, assinalam a redução política dos grandiatravés dos popolani. Apenas os membros da Guildapoderiam participar no governo da cidade e só osprofissionais poderiam ser membros.

Uma segunda consequência era o enfraquecimento daespírito comunal. Cada indivíduo pertencia a umaassociação especial - as Arti dos popolani, as Consorteriedos grandi. A rivalidade entre associações na captura dopoder fazia perder valor representativo às magistraturascomunais e tornavam-nas instrumentos dos poderososdo momento. As cidades não tinham instituiçõesintegradoras como o rei como representante do reino. Ocrescimento da signoria acima da luta partidária eradestruidor da autonomia. Florença em meados do séc.XV, por exemplo, teve que se submeter a senhoresfeudais para sustentar as campanhas militares.

A terceira consequência era a incapacidade doproletariado em controlar ou  ter influência permanenteno poder. As comunidades dependiam economicamentedas delegações internacionais e dos conhecimentos

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%2021-area%20imperial.htm (16 of 24) [27/03/2002 07:19:38]

Page 81: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

bancários de minorias; a simples resistência passivadestes membros manobrava os operários até à derrota.Os ganhos democráticos dos Ciompi na revolta de 1378,em Florença, foram liquidados logo em 1382.

Estas três características mostram a incomensurávelimportância da monarquia representativa nos reinosnacionais para a evolução do governo constitucional. Acomuna - ou cidade-estado sem rei - não tem força decoesão para se tornar unidade política. O crescimentodas signorie apenas mostra que o governo absolutoaniquila a iniciativa cívica e tem um efeito paralisante dodesenvolvimento económico

 

§ k Constituição de Veneza

No conjunto dos estados italianos, Veneza tem um papelcomparável ao de Inglaterra entre os estados nacionaiseuropeus. A situação periférica permite estabilidade; nãotem os problemas de sobre-extensão dos grandesestados: o comércio é tão forte que as artes e ofícios nãodestabilizam a cidade governada pela oligarquiacomercial. Por tudo isto, criou uma constituiçãooligárquica que entusiasma a Europa. Após o desastre de1172, os Venezianos transformaram a assembleiapopular originária num Conselho de 480 cidadãos,eleitos por um ano pelos sestieri para tratar dos negóciospúblicos. O poder do Doge é limitado por seisconselheiros. Em 1297 o Grande Conselho tem 1500membros hereditários; a legislação é feita pelo Senado de120 membros; o conselho dos 40 é o tribunal. O Colégioé o executivo com o Doge e mais 26 membros. OConselho dos Dez é adoptado em 1310 para órgãosupremo desta oligarquia.

 

§4. Cola di Rienzo

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%2021-area%20imperial.htm (17 of 24) [27/03/2002 07:19:38]

Page 82: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

a. Estado da questão

A comuna de Roma representa um problema complicadoda política no nível sub-imperial. A revolta e ascensão aopoder de Rienzi no dia de Pentecostes de 1347 foi,aparentemente, uma revolta mais de popolani contra osbarões. Mas quando Rienzo assume as funções deSignore vêm à superfície novos aspectos específicos, taiscomo o renacimento das antigas formas constitucionaisromanas e o reformismo espiritual visando a Igreja.Convocadas por Rienzo, as cidades italianas enviaramemissários e os soberanos europeus ficaramsurpreendidos “vedendo comme Roma era rinata” naexpressão de Maquiavel nas Histórias Florentinas I, 31em que pela primeira vez associa o termo ‘renascimento’a um evento político, reconhecendo Rienzo como oprecursor da ideia de Príncipe que sacode o jugo detiranos estrangeiros.

O mundo simbólico de Rienzo é medieval mas os seussentimentos impelem-no para o futuro. Os progressosrealizados na compreensão de Rienzo - em particularcom a obra de Konrad Burdach, Rienzo und die gestigeWandlung seiner Zeit, Berlin, 1913-1938 - já dissiparama imagem do tribuno sonhador, romântico, econservador. Um passo em frente para compreender asua actuação exige que se afaste o simbolismorenascentista com que a sua figura é interpretada e sereverta às Cartas em que expôs a sua política como baseda sua auto-apresentação e auto-interpretaçãoretrospectivas.

 

b. As cartas às cidades italianas

Após a conquista de poder, Rienzo enviou cartascirculares às cidades italianas, convidando-as a equiparsoldados para o auxílio na libertação da Itália, a enviarembaixadores para o futuro parlamento romano, e  a

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%2021-area%20imperial.htm (18 of 24) [27/03/2002 07:19:38]

Page 83: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

nomear um advogado para o futuro Consistorium dejuízes.

A primeira destas cartas enviada à comuna de Viterboem 24 de Maio de 1347, ( cf. Epistolario di Cola di Rienzo,a cura di Annibale Gabrielli in Fonti per la Storia d’Italia,Roma, 1890, nº2)  contém as fórmulas iniciais daconcepção política. Rienzo apresenta-se como emissáriodo dom do Espírito Santo que Jesus decidiu estender atodo o povo de Roma, a cabeça do corpus mysticumconstituído pelas outras cidades de Itália. Este novocorpo místico não se confunde nem com a Roma pagãnem com a Roma papal. Rienzo intitula-se Nicolauseverus et clemens, sugerindo a visão césaro-papista daconcentração dos dois poderes de severidade temporal eda clemência espiritual. E sugere a tradição de lex regia,na medida em que a vinda do Espírito criou unidade econcórdia no povo romano, na cidade e na provínciaromana.

As missivas seguintes elaboram e ampliam a formulaçãoda primeira carta. Na segunda missiva enviada aFlorença surge a expressão “sacra Italia”, que depois setornará central. A carta de 8 de Julho ao papa ClementeVI fala da república libertada que nasceu do EspíritoSanto e que apenas se submete a Deus, à Igreja e aoPapa. A carta de 9 de Julho a Mântua alarga as funçõesde Roma a cabeça de todas as cidades do “orbisterrarum” e anuncia a promoção do tribuno a cavaleirodo Espírito Santo.

 

c. O tribunus augustus

A coroação de Rienzo é acompanhada de numerososactos simbólicos. Mencionemos aqui apenas a imersão deRienzo na pia baptismal de pórfiro no Baptistério de SanGiovanni, a mesma em que fora baptizado o imperadorConstantino, evocando a purificação e a reforma

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%2021-area%20imperial.htm (19 of 24) [27/03/2002 07:19:38]

Page 84: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

espiritual do imperador como a renovação e reforma daCristandade imperial. A festa de 1 de Agosto em queRienzo aceita o título de tribunus augustus enfatiza arenovação do império sobre toda a humanidade. O graude cavaleiro do Espírito Santo é recebido em louvor daSantíssima Mãe de Cristo, da Igreja romana, e doPontífice e para a prosperidade de Roma, a sacra Italia, etoda a comunidade de fiéis.

 Nas convocatórias que nessa data envia aosimperadores, príncipes e eleitores do Santo Império,Rienzo sustenta que o povo romano retomara o seuantigo pleno poder, autoridade e jurisdição sobre o orbisterrarum. A cidade de Roma tornara-se a cabeça do orbee todas as cidades italianas são declaradas livres erecebem a cidadania romana; a eleição do imperadorromano  e a jurisdição e monarquia do sacrum imperiumpertencem a Roma e ao seu povo. Os imperadores Luís oBávaro e Carlos IV, os eleitores e outros príncipes sãoconvocados a vir a Roma no próximo Pentecostes a fimde receber a decisão sobre a nova ordem imperial. Acarta a Florença de 19 de Setembro revela a intenção deque será eleito imperador aliquem Italicum, um“determinado italiano”.

 

d. Sentimentos nacionais e imperiais

No centro da actuação de Rienzo está decerto areformatio e renovatio do  estado de Roma, ou seja alibertação e unificação da Sacra Italia. Mas os símbolosutilizados não são uniformes nem compatíveis e talveztenham sido usados com fins tácticos. Em memorandode 1350 ao Arcebispo de Praga, Rienzo escreverá quejamais acreditara que os príncipes alemães viessem  aRoma, mas que contava com a vinda dos tiranos deItália, o que lhe permitiria “enforcá-lo a todos igualmentecomo lobos num só dia e à luz do sol”. Rienzi confessa queagiu ora como louco ora como digno, ousado e hesitante,

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%2021-area%20imperial.htm (20 of 24) [27/03/2002 07:19:38]

Page 85: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

ingénuo e astuto, conforme a situação exigia, tendosempre em vista “abolir o erro da divisão e reduzir ospovos à unidade”. O jogo com símbolos políticos,presente nos manifestos de Dante, transferiu-se agorapara o contexto da acção política.

As confissões de Rienzo revelam-no como um técnicopolítico para quem os símbolos são instrumentos depoder, sendo possível que também sejam instrumentospara convencer o Arcebispo e o Imperador das novasintenções políticas de 1350, “mais movido pelo amor darepública do que pelo amor do império”. É precisoreconhecer que, na área imperial, não é fácil transferir aideia do corpus mysticum para os corpos nacionais. NaItália e na Alemanha, a ideia de corpo místico nacionalestá sobrecarregada com a tradição imperial romana egermânica. As experiências de renovação espiritualnestes países tende a transferir-se para toda a Europa. Écerto que a ideia imperial cristã também está presentenoutras nações, ressurgindo na ideia francesa davalidade universal dos valores civilizacionais franceses ena convicção anglo-saxónica da validade universal dasformas políticas da Inglaterra e dos EUA. Mas, noOcidente, o sentimento imperial e a consciênciamissionária sobrepõem-se ao sentimento nacionalseparatista que é contrário à construção imperialtradicional, enquanto na Itália e na Alemanha osentimento imperial vive em continuidade com a ideiamedieval imperial. Cola de Rienzo é um político da áreaimperial que se sente obrigado a utilizar símbolosimperiais para exprimir sentimentos nacionais.

 

e. O emissário dos Fraticelli

Após o fim da signoria em Roma, Rienzo retira-se em1348 para um convento dos Fraticelli nos Abruzzi. Reaparecerá depois em 1350 na corte do imperadorCarlos IV em Praga, inaugurando a sua segunda e

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%2021-area%20imperial.htm (21 of 24) [27/03/2002 07:19:38]

Page 86: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

derradeira fase política. Se procurarmos sistematizar avariedade de fórmulas conflituosas que ocorrem nas seusdocumentos deste período, vemos que Rienzo seapresenta como um místico na tradição de Fiora mas quetem o novo programa político pós-medieval de unificaçãoe devolução da Itália ao Império.

Em memorando então apresentado, compara-se a Cristopois ascendera ao tribunato aos 33 anos. Devido a erroscometidos afastou-se voluntariamente do poder e apenitenciar-se durante 33 meses em reparação dablasfémia dos 33 anos. Em 15 de Setembro de 1350,Rienzo regressava à vida política para cumprir, com a ajuda de Cristo, o programa imperial. Tivera entretantouma revelação que o compelira a abandonar um projectoautónomo, a entregar-se ao imperador de modo aempreender a libertação de Itália como operarius etmercenarius Cesaris. Quando terminasse a sua novatarefa de unificação de toda a península incluindoVeneza, Sicília, Sardenha e Córsega, entregaria toda aItália pacificada ao Imperador, totam Italiamobsequentem Cesari et pacificam.

A unificação seria feita pelo espírito através doinstrumento humano. (Epistolario, carta º32 de Agosto de1350). Rienzo defende-se de não ser um enviado directodo Espírito, uma incarnação. Referindo a oração VeniCreator Spiritus, assinala que precisamos da evocação doEspírito “sempre que endurecemos e envelhecemos nopecado”. O saeculum senescens de Agostinho tem que serultrapassado por uma renovação do Espírito, na sendada  filosofia  joaquimita.

A intervenção pessoal  de Rienzo teria sido revelada porum Fra Angelo, eremita dos Abruzzi, (Epistolario, nº30).Segundo esta profecia Deus planear a reforma universalda Igreja. A instâncias de S. Domingos e S. Francisco, ofim da Igreja foi adiado. Os males agravados daresidência dos pontífices em Avignon, trariam grandesconvulsões. As revoluções viriam com a restauração da

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%2021-area%20imperial.htm (22 of 24) [27/03/2002 07:19:38]

Page 87: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

santidade da Igreja e a inclusão dos Sarracenos nacomunidade dos fiéis. Um homem santo seria oinstrumento destas revoluções e operaria conjuntamentecom o imperador. A substância da profecia de Fra Angelonão difere da visão de Dante de uma nova era sob umdux e um dirigente espiritual.

4. Na segunda carta a Carlos IV (Epistolario, nº31) Rienzodeixa na sombra a profecia como fonte de seu estatuto eprojecto e assume de novo  o tribunato como a fonte deautoridade para precursor da nova era. O império careciade um milagre para ser renovado e parece um milagreque um homem pobre e obscuro, virum pauperem etnovum, venha salvar o império, tal como S. Franciscosalvou a Igreja romana. A reforma do império é acima detudo obra espiritual, opus spiritualis.

A comunidade institucional do orbe cristão quebrou-secom o interregno e deslocação dos papas para Avinhão.Que novo corpo místico tomaria o lugar da cristandadeimperial em desintegração? Na zona imperial, a sombrada forte tradição imperial não permite criar estadosnacionais como no Ocidente. Uma solução abrangenteseria o aparecimento de uma figura paraclética, um duxjoaquimita como cabeça de um corpo místico europeu.Rienzo adopta esta ideia mas rejeita o conflito com aIgreja. O Terceiro Reino e o Evangelho Eterno de Fioranão podem ser levados a sério. Através das profecias deFra Angelo, Rienzo ainda joga com a ideia da grandereforma com que o pastor angelicus completará a reformae construirá o templo do Espírito Santo. Masaproxima-se da realidade ao comparar-se a S. Francisco,crendo que a reforma da Igreja deveria sercomplementada pela reforma do império. E, finalmente, asua ideia política concentra-se na reforma nacional eunificação da Itália. De qualquer modo, todos estessentimentos e ideias não formam uma sequênciacronológica nem sistemática. Coexistem e são utilizadospor Rienzo conforme as circunstâncias.

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%2021-area%20imperial.htm (23 of 24) [27/03/2002 07:19:38]

Page 88: Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas.pdf

 

f. Nacionalismo espiritual e unificação militar

Os projectos de Rienzo não se concretizaram. Oimperador enviou-o para Avignon. Em 1352 regressou aItália com o cardeal Albornoz e estabeleceu-se de novoem Roma, sob os auspícios do papa. Em 1354 foi mortopelos opositores. O fracasso político obscureceu aimportância dos elementos que soubera reunir;joaquimismo, espiritualismo franciscano, a visão deDante, a ideia  do corpo mysticum da sacra Italia. O seuproblema político será o mesmo de Maquiavel quedesespera da renovação espiritual tal como empreendidapelo fracassado  Savonarola, “profeta sem armas” emFlorença. Mas se as armas são necessárias à libertação,mesmo um Maquiavel é capaz de ver que o Espírito éessencial, como se depreende das suas observaçõessobre o renascimento espiritual conseguido por S.Francisco (Discorsi, III, 1)  Na área imperial,  as naçõescrescerão através do espírito nacional e, quando o tempoestiver maduro, a acção militar ultrapassará osparticularismos políticos.

 

[ Binder VI ] pp.427-589

[1] Die Berliner Romantik 1800-1814, Berlin 1921

[2] (A Study of History, vol.III, pp.341 e ss)

ERIC VOEGELIN

http://www.terravista.pt/PortoSanto/1139/SHIP%202%2021-area%20imperial.htm (24 of 24) [27/03/2002 07:19:38]