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HEGEL ERIC VOEGELIN Order and History, Louisiana State U. Press, Vol. 5, pp.48-54 1.A REVOLUÇÃO ALEMÃ DA CONSCIÊNCIA Os pensadores [idealistas] alemães tinham uma intenção formativa. Em ordem a recuperar a base experiencial da consciência, pretendiam remover as camadas de incrustrações progressivas, acumuladas ao longo de séculos de pensamento com a atitude intencionalista sujeito-objecto. No séc. XVIII, esta atitude culminara numa nova vaga de sistematizações proposicionais, definitórias da metafísica, da ontologia e da teologia que tornaram convincentemente desconvincente o método intencionalista de lidar com as estruturas da consciência. O alvo explicitamente atacado por Hegel na sua Wissenschaft der Logik era a deformação de consciência através da "metafísica" e da "ontologia". Mas a tentativa de recuperação foi muito prejudicada pela força da tradição, resultante do hábito de pensar em termos de realidade-coisificada, tradição ademais fortalecida na época pelo êxito das ciências naturais, pelo prestígio da física newtoniana e, com especial importância para os pensadores alemães, pela legitimação da física como o modelo de "experiência" na Crítica da razão Pura de Kant. A posição ambivalente e a função da Crítica têm de ser salientadas neste contexto. Ao esclarecer o significado da existência espacio-temporal, é certo que a Crítica não deixara dúvidas que a razão importava em algo mais que

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Eric Voegelin - Hegel

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HEGEL

HEGEL ERIC VOEGELIN Order and History, Louisiana State U. Press, Vol. 5, pp.48-54

1.A REVOLUO ALEM DA CONSCINCIA

Os pensadores [idealistas] alemes tinham uma inteno formativa. Em ordem a recuperar a base experiencial da conscincia, pretendiam remover as camadas de incrustraes progressivas, acumuladas ao longo de sculos de pensamento com a atitude intencionalista sujeito-objecto. No sc. XVIII, esta atitude culminara numa nova vaga de sistematizaes proposicionais, definitrias da metafsica, da ontologia e da teologia que tornaram convincentemente desconvincente o mtodo intencionalista de lidar com as estruturas da conscincia. O alvo explicitamente atacado por Hegel na sua Wissenschaft der Logik era a deformao de conscincia atravs da "metafsica" e da "ontologia". Mas a tentativa de recuperao foi muito prejudicada pela fora da tradio, resultante do hbito de pensar em termos de realidade-coisificada, tradio ademais fortalecida na poca pelo xito das cincias naturais, pelo prestgio da fsica newtoniana e, com especial importncia para os pensadores alemes, pela legitimao da fsica como o modelo de "experincia" na Crtica da razo Pura de Kant. A posio ambivalente e a funo da Crtica tm de ser salientadas neste contexto. Ao esclarecer o significado da existncia espacio-temporal, certo que a Crtica no deixara dvidas que a razo importava em algo mais que em fsica: a rea da realidade-mesma fra, seno restabelecida, pelo menos realada de novo como a rea da "razo" que no poderia ser adequadamente expressa mediante a aplicao do "natrliche Erkenntnis," [conhecimento natural] do pensar com categorias sujeito-objecto. Mas precisamente a caracterizao do modo sujeito-objecto como "natrliche Erkenntnis" inquestionvel e dominante e o sentimento agudizado que a recuperao de uma base experiencial "no-natural" era uma revoluo de propores copernicianas, mostra a fora da tradio a ultrapassar. Nesta situao filosfica deteriorada,no surpreende que Kant tivesse dificuldades em encontrar uma linguagem altura do seu esforo revolucionrio. De facto, para denotar o "mais que a fsica" que se encontra na "razo", no pde fazer melhor do que cunhar o smbolo Ding-an-sich. Como, tanto quanto alcano, ainda hoje no se compreende suficientemente a confuso interna deste smbolo, no deslocado salientar que, "em-si", a coisa no uma "coisa" mas a estrutura da realidade-mesma na conscincia. Contudo, os problemas tcnicos gerados pelo smbolo no constituem a nossa preocupao presente; o que se deve pesquisar o carcter do smbolo como sintoma das presses que permitiram que a tentativa de recuperar a experincia remetesse a conscincia existencial posio de uma "coisa".

O predomnio da realidade-coisificada na imaginao simbolizante da poca determinou a forma dos problemas que emergiram no processo de recuperao da estrutura da conscincia. Se os "factos da conscincia", o ponto de partida da Wissenschaftslehre de Fichte em 1794, eram um objecto a investigar, teria que haver um sujeito que levasse a cabo a investigao, e se existisse tal sujeito teria que ter uma conscincia a reflectir na conscincia. Qual era ento a relao entre a conscincia do sujeito e os "factos da conscincia" que explorava ? O problema da dimenso reflexiva da conscincia fra reduzido ao da relao entre dois actos da conscincia. Contudo, a simples construo de um acto reflexivo por parte do sujeito seria uma soluo inadequada para este problema, porque, com este suposto, o acto de reflexo tornar-se-ia um facto mais da conscincia a ser reflectido por mais um acto de mais um sujeito. A construo puramente intencionalista dissolveria a integralidade da conscincia existencial numa cadeia ilimitada de actos subjectivos. Se a integralidade tivesse de ser preservada, as condicionantes intencionalistas sob as quais o problema fra formulado, exigiriam a identificao do sujeito reflectante, o Eu (Ich) do homem, com o Eu (Ich) da conscincia existencial. Este Eu (Ich) idntico a si mesmo j no era ento imaginado como mais um facto da conscincia mas antes como a forma transcendental da conscincia, imediatamente evidente num acto, no de "experincia" mas de "intuio intelectual". Porm, dado que nesta identificao dos dois Eus, a tnica da construo recara no sujeito reflectante e dado que o acto reflexivo fra concebido por Reinhold, o antecessor de Fichte em Jena, na obra Princpio da Conscincia (Satz der Bewutseins) sob o modelo sujeito-objecto, o intencionalismo no-participativo do acto reflectante poderia usurpar a autoridade da conscincia participativa.

Para designar este novo tipo de conscincia deformada, os pensadores alemes desenvolveram o smbolo "especulao". O processo histrico da conscincia com a sua autoridade interiormente cognitiva foi substitudo por uma especulao autorizada do exterior que permitia ao pensador ocupar um lugar imaginativo num acto reflectivo-especulativo, situado alm do processo. A tenso da existncia na metaxy fra eclipsada. O que Plato referira como o alm, caracterstico da realidade divina, incarnara no "alm" da imaginao do especulador. Em consequncia, a especulao poderia autoproclamar-se como a revelao derradeira da conscincia existencial e, nesta capacidade, como a fora que determinaria toda a histria futura. A histria da ordem fra transformada numa ordem da histria cuja verdade era inteligida pelo esforo do especulador e, dado que a sua verdade se tornara inteligvel, poderia ser levada at concluso na realidade, de acordo com o sistema de cincia do especulador. A realidade experimentada e simbolizada por cada existncia consciente particular deveria ser substituda pela segunda realidade da especulao: o comeo histrico do sistema especulativo seria o verdadeiro comeo que conduziria ao verdadeiro fim da histria. As questes acerca da estrutura da prpria conscincia do especulador, as questes acerca da verdade nela incorporadas em termos de recordao e esquecimento, no eram permitidas. Karl Marx ergueu ao nvel de postulado explcito esta ltima exigncia, necessria para proteger os esforos especulativos contra questes demasiado bvias.A criao da imaginao especulativa como a nova fonte de verdade na histria foi, efectivamente, um acto revolucionrio. Como sabemos atravs de numerosos afirmaes de Reinhold, Fichte, Schelling, Hegel, Friedrich Schlegel e Schiller, os protagonistas do acontecimento interpretaram-no como a variante alem da revoluo generalizada que estava a ocorrer ao nvel pragmtico na Amrica, Frana, e Holanda (Repblica Batvia de 1795). E derivaram a intensidade do seu fervor do sentimento de participarem numa revoluo histrica mundial da conscincia. Ademais, acrescentando uma tonalidade nacionalista a este fervor, os pensadores alemes estavam convencidos que a sua prpria "revoluo do esprito" era superior s revolues pragmticas paralelas, uma vez que penetrava mais profundamente no mago da conscincia e assim, a longo prazo, teria uma efeito pragmtico mais duradouro. Numa carta de 28 de Outubro 1808, Hegel escreveu ao seu amigo Niethammer que, cada dia que passava o convencia mais que o trabalho terico consegue realizar mais que o trabalho prtico - "uma vez que o reino da compreenso (Vorstellung) esteja revolucionado, a realidade no se pode sustentar". E Heinrich Heine, um dos mais astutos observadores do acontecimento, antecipou na Histria da Religio e da Filosofia na Alemanha que a "revoluo do esprito" seria seguida por "uma idntica revoluo no reino dos fenmenos". O pensamento, continua, "precede o acto tal como o relmpago precede o trovo"; o trovo tardar a chegar porque os alemes se movem lenta e penosamente; "mas um dia, quando ouvirdes o seu estrondo como jamais ribombou na histria mundial, sabereis isto: chegou o trovo alemo".

Embora o acontecimento seja historiograficamente bem conhecido at ao mais nfimo detalhe, a anlise crtica do mesmo ainda deixa muito a desejar. , alis, to insuficiente que nem sequer dispomos de um termo consensual para caracterizar a estrutura do acontecimento, e com ela o seu alcance, e continuamos a flutuar nos smbolos lingusticos criados pelo prprio acontecimento. Tradicionalmente referimo-lo como a filosofia do eu (Ichphilosophie) ou filosofia da identidade (Identittsphilosophie) ou como a lgica dialctica do ser, desenvolvida por Hegel como o "Mtodo", escrito com maisculas; e h justificao para usar estes termos enquanto tivermos conscincia que pertencem auto-interpretao dos grandes pensadores alemes. Contudo, o seu uso j parecer menos justificado se nos lembrarmos que est em jogo precisamente a validade analtica dos termos surgidos nas polmicas internas do acontecimento e que se invalidam parcialmente uns aos outros. No ficaremos em melhor situao se utilizarmos a auto-caracterizao abrangente de "idealismo transcendental" porque o uso convencional do termo 'idealismo' excluiria do acontecimento o "materialismo" de Karl Marx. Se, contudo, o sistema marxiano tiver de ser incluido - talvez como o primeiro estrondo do trovo metafrico de Heine - a linguagem dos ismos torna-se irrelevante, e com ela o grande conflito de "idealismo" e "materialismo". A relevncia analtica deslocar-se-ia ento para os jogos com o smbolo "ser". Teramos de compreender as tcticas marxianas que identificam o ser que determina a histria com as condies de produo (Produktionsverhltnisse), o que colocaria assim de ps no cho o ser especulativo idealstico de Hegel, como um jogo intelectual possibilitado pela utilizao muito discutvel que Hegel faz do smbolo ser como o princpio do seu sistema. E se, para efeitos de anlise, admitirmos a estrutura do acontecimento como um certo tipo de jogo empreendido com o smbolo "ser", de que o caso marxiano uma instncia, ento podemos notar com interesse renovado que, no sculo XX, um pensador alemo da estatura de Martin Heidegger, pde, pelo menos temporariamente, deliciar-se na fantasia de forar o "ser" a uma nova parousia na realidade, mediante a erupo nacional de um movimento populista racista. Ora se temos de compreender as Produktionsverhltnisse marxianas e o nacional-socialismo temporrio de Heidegger como jogos deformativos equivalentes, e jogados de acordo com as regras da especulao de Hegel sobre o "ser", o acontecimento toma propores at agora insuspeitadas.

As propores permanecero obscuras enquanto no clarificarmos os critrios utilizados para avaliar a escala do acontecimento. Mas por que razo sofremos ainda hoje, duzentos anos volvidos, desta falta de claridade? A questo impoe-se com urgncia porque os contemporneos do acontecimento no aceitaram a revolta espiritual nos termos em que ela se apresentava mas foram capazes de a comentar de modo sarcstico. Heine no estava szinho ao reconhecer o significado revolucionrio, um significado que dificilmente poderia ser subestimado uma vez que era abertamente proclamado pelos autores dos prprios sistemas; nem era o nico a divertir-se com as grotescas consequncias do caso. Jean Paul, por exemplo, embora tivesse uma admirao talvez irnica pela qualidade esttica da obra de Fichte, despertou muito cedo para a discrepncia cmica entre o eu especulativo de Fichte e a conscincia humana do eu na sua existncia corprea, e criou a excelente stira da Clavis Fichteana de 1804. Quatro dcadas depois, Kierkegaard empenhou-se no seu ataque radical existncia especulativa fichteana e hegeliana em nome de um existencialismo cristo, desenvolvendo nas suas "migalhas filosficas ou filosofia das migalhas" a importncia analtica de smbolos como ansiedade, instante (momento) e existncia, que se tornaram smbolos dominantes nos pensadores existencialistas do sculo XX. E a anlise arguta, apoiada num formidvel aparato crtico de um teologo competente, empreendidda por Ferdinand Christian Baur no seu livro Die Christliche Gnosis de 1835, colocava a Religionsphilosophie de Hegel no contexto dos movimentos gnsticos desde a Antiguidade. Estava criada uma base abrangente a partir da qual poderiam surgir ulteriores anlises crticas. Apesar disto tudo, por que razo o acontecimento permaneceu opaco?

As razes devem ser procuradas nas j enunciadas ambiguidades da resistncia. Quem resiste verdade notica no necessariamente seu inimigo; pelo contrrio, pode estar a resistir a simbolismos deformados que prevalecem no contexto social e a tentar recuperar a verdade obscurecida por esses simbolismos. Contudo, pode estar to fortemente afectado pela desordem predominante que a tentativa de recuperao, embora eminentemente bem sucedida noutros aspectos, surge com o mesmo estilo de deformao auto-declarativa que motivou a resistncia. A assero imaginativa na criao de novos smbolos poder ter que veicular a hipoteca de uma nova auto-afirmao, e a vontade de encontrar novos smbolos pode desencaminhar-se para a vontade de dominar a realidade simbolizada. O novo simbolismo tornar-se-, ento, uma imposio ditatorial no mesmo modo imperialstico que suscitou a revolta contra anteriores simbolismos.

este o problema do caso alemo. A tentativa de recuperar "a experincia da conscincia" da qual os smbolos emergentes derivam o seu significado foi um ataque abrangente, solidamente minucioso e historicamente bem informado, contra smbolos que tinham perdido o seu significado mas sucumbiu deformao por causa do desejo de dominar a experincia recuperada no modo da realidade- coisificada. A ambiguidade de formao-deformao num novo nvel de diferenciao experiencial a razo pela qual a investigao analtica do acontecimento permaneceu inconclusiva at hoje. Aceitar o trabalho crtico [dos idealistas] nos termos que propoem, induz o risco de cair na armadilha da deformao; rejeitar liminarmente os resultados deformados, conduz ao risco de perder as conquistas crticas. A via para sair deste impasse no passa por exposies volumosas e comentrios construo dos sistemas; a anlise tem de se concentrar na estrutura peculiar de um propsito formativo deformado que serve como princpio de construo; e o princpio ambguo no precisa ser desenterrado da sua aplicao nos sistemas porque se encontra j nas declaraes programticas dos seus autores. Os construtores do sistema da identidade, especialmente Hegel, eram mestres da sua problemtica; sabiam o que queriam e expressaram-no com uma clariadade s prejudicada pela componente deformadora das suas tarefas. Queriam criar, como Hegel indicou na Fenomenologia, uma cincia da experincia da conscincia. Para esclarecer a estrutura desta ambiguidade, recorrerei a afirmaes representativas do Prefcio (Vorrede) e da Introduo (Einleitung) a esse trabalho programtico de Hegel.

2. HEGEL I

Hegel pretendia estabelecer uma cincia da experincia da conscincia. A declarao programtica determina as questes a colocar no decurso da anlise: at que ponto o programa teve xito? O que entendia Hegel por experincia? Que experincias estavam includas na sua anlise? E quais as excludas? De que modo a vontade de poder deformativa determina as incluses e as excluses?

1. Sistema versus tenso existencial

O princpio em que assenta a construo ambgua formulado por Hegel nas pginas de abertura do Prefcio (p.12). A forma verdadeira (wahre Gestalt) da verdade encontra-se na forma de um sistema cientfico. Hegel propoe-se trazer a filosofia para mais perto da sua forma verdadeira de modo a que possa abandonar o seu nome de amor do conhecimento e tornar-se conhecimento efectivo. Destituda de termos equvocos como conhecimento e cincia, a proposta de Hegel para ultrapassar a deformao da filosofia, tornada dolorosamente bvia pela crtica Iluminista, significa a abolio da filosofia. O amor da sabedoria que parece nunca alcanar o seu objecto, esse processo indefinido que nunca atinge o fim, ter que ser levado ao Fim atravs da sabedoria estabelecida na forma do conhecimento absoluto e para alm do amor inconclusivo. Estamos no cerne da ambiguidade. O programa de uma filosofia que traz o Fim da filosofia o sintoma mais evidente da confuso intelectual que ento predominava. Impoe-se uma afirmao crtica: o programa exclui da experincia da conscincia a experincia da conscincia existencial, a existncia na tenso da metaxy.

2. A ambiguidade da dialctica

Se a tenso da existncia no uma constante experiencial na estrutura da conscincia, ento o que realmente experimentado? A resposta surge nas pginas conclusivas da Introduo Fenomenologia (pp.69-75). A conscincia deve ser concebida no modo sujeito-objecto; conscincia de algo (etwas). Numa primeira abordagem, o algo experimentado a realidade em si (an sich). Numa segunda abordagem, contudo, quando no processo de conhecimento o algo se revela como diferente do que se acreditava ser, o Ansich da realidade torna-se num Ansich para o sujeto experienciante (fr es); por detrs do Ansich para a conscincia, aparece uma segunda realidade que an sich para si mesma. Agora a conscincia tem dois objectos (Gegenstnde), o primeiro Ansich e o segundo, das Fr-es-sein dieses Ansich (p.73). Ao descobrir o segundo objecto, a conscincia descobre que a sua prpria subjectividade mudou de um primeiro sujeito, que experimentou o objecto como o primeiro Ansich, para um segundo sujeito que se experimenta a si prprio como que em movimento. Este movimento dialctico que a conscincia executa sobre si prpria, no que se refere ao seu conhecimento e ao seu objecto, na medida em que emerge do seu novo, e verdadeiro objecto, propriamente (eigentlich) o que se chama experincia (p.73). Este movimento, avisa Hegel, no deve ser confundido com o movimento do conhecimento que progride ao nvel da convencionalmente chamada experincia, na qual a verdade baseada na observao de uma coisa pode ser externamente falsificada pela observao conflituosa de outra coisa. O novo objecto no emerge como um novo objecto externo mas atravs de uma converso da conscincia (Umkehrung der Bewutseins) (p.74). A Umkehrung a nossa adio (unsere Zutat): atravs da adio, a sucesso das experincias da conscincia eleva-se ao plano da cincia; a sucesso no esse plano da cincia para a conscincia no primeiro nvel da experincia no modo sujeito-objecto que ns contemplamos (p.74).

3. A deformao da Periagoge

A ambiguidade de formao-deformao na experincia de Hegel bem como os meios para a sua expresso ficaram patentes na passagem precedente. So reconhecveis as estruturas que ele pretende clarificar pela suas reflexes sobre o Ansich e o Fr-es. So o paradoxo de intencionalidade-luminosidade e o complexo simblico conscincia- realidade-linguagem. As dificuldades que encontra so bvias no uso do smbolo Umkehrung que relembra a periagoge do prisioneiro da caverna, descrito por Plato, o voltar as costas s sombras no muro e a ascenso para a luz. Hegel est na posio do prisioneiro, abertamente em revolta contra as sombras na caverna do seu tempo, sejam elas deformaes doutrinrias da teologia, deformaes proposicionais da metafsica e da ontologia, intelectualismo astuto, criticismo ou cepticismo de segundo plano, exuberncias extticas e fantasistas, pregao edificante ou sentimental, elevao irracional. At aqui o movimento de Hegel semelhante ao de Plato. Se, contudo, procurarmos a luz que brilha do alm e que fora o prisioneiro a voltar-se (anangkoito), directamente ou atravs de um mediador, recebemos a informao que a periagoge unsere Zutat, uma adio nossa. A periagoge no uma resposta a uma interpelao mas uma aco auto-afirmativa.

Neste ponto, a interpretao tem de se tornar linguisticamente pedante porque a ambiguidade da formao-deformao manifesta-se na ambiguidade da linguagem hegeliana.

4. A inverso da formao-deformao

Se a Umkehrung uma Zutat, uma adio, deve ser acrescentada a algo que existe sem a adenda. O que esta coisa que j existe independentemente? No contexto de Hegel, a experincia mas no modo do primeiro Ansich; a experincia tratada no modo da intencionalidade como que uma cincia das coisas dadas a um sujeito a simbolizao luminosa da realidade-mesma. a natrliche Erkenntnis na sua aplicao deformativa realidade-mesma. Ao aceitar a deformao da conscincia-realidade como a primeira experincia, o caso patolgico torna-se o modelo de medio das estruturas da conscincia; as segundas realidades deformadas tornam-se a primeira realidade a que a formao se acrescenta como adenda; a ordem de precedncia entre formao e deformao foi invertida. Esta inverso peculiar deve ser considerada como uma marca distintiva da situao histrica. sintomtica do grau em que a experincia e a simbolizao da conscincia existencial se tornou inconsciente na conscincia pblica do debate intelectual da poca. A situao miservel da filosofia por volta de 1800 legitimava a revolta dos melhores espritos, mesmo se a revolta culminasse na auto-deformao.

5. Linguagem pronominal

Igualmente questionvel a linguagem pronominal utilizada para identificar o agente no processo de agir. A converso a nossa adio. Partamos do pronome possessivo para o pronome pessoal: Quem o ns que adiciona? Na alegoria da Caverna o homem na sua existncia pessoal e social que se converte, respondendo com a sua busca da verdade atraco do alm divino. Ento quem o ns de Hegel? o homem na sua busca da verdade, encontrando a verdade por si mesmo sem a atraco divina? Ou o Deus que atrai? Quem quer que seja, ser que todos se podem converter ou apenas Hegel? E se fr apenas Hegel, ser que ele se converte por si mesmo ou atrado por uma outra fora? Todas estas perguntas exercem manifestamente presso sobre as declaraes programticas de Hegel, mas nenhuma recebe resposta directa. A linguagem pronominal habilidosamente utilizada para esconder o que realmente se est a passar. Hegel no pretende ser o nico filsofo a experimentar a Umkehrung. Pelo contrrio, reconhece que a Umkehrung est presente sempre que uma voz cptica se ergue contra um simbolismo filosfico ou teolgico que reivindica o carcter de derradeiro para os respectivos smbolos enquanto conhecimento da verdade no seu Ansich. A verdade est em movimento; mais ainda, como vimos, o movimento a verdade. Cada simbolismo que reclame conhecimento derradeiro do Ansich como um objecto afunda-se (sinkt herab) para a conscincia num Fr-das Bewutseins-Sein des Ansich (p.74). Esta circunstncia (dieser Umstand) a necessidade (Notwendigkeit) que guia as formas da conscincia na sua sequncia. Apenas esta necessidade, ou a gnese do novo objecto, oferecendo-se a si a uma conscincia que no sabe o que lhe acontece, o que ocorre [ fr uns] como se fosse por detrs das suas costas. Atravs desta necessidade, penetra no movimento da conscincia um factor [Moment] do Ansich-oder Frunssein que no est presente na conscincia empenhada na prpria experincia. Enquanto a gnese [Entstehung] do novo objecto ocorre nas costas da conscincia, o produto resultante (das Entstandene) contudo, um contedo fr es, para a conscincia; mas o que ns concebemos deste contedo apenas a formalidade (das Formelle) da sua gnese pura. Fr es, para a conscincia, o produto existe apenas no modo do objecto; fr uns, ao mesmo tempo movimento e devir(p.74).

6. Pronomes de Hegel e substantivos de Plato

Nas passagens atrs referidas, Hegel desempenha o papel ambguo de um prisioneiro na caverna que assume o controle da periagoge. Se pretendermos compreender o significado deste jogo com os pronomes, temos de os relacionar com os substantivos, ou seja, com os smbolos reconhecidamente platnicos que a linguagem pronominal visa eclipsar. J assinalmos anteriormente a inteno genrica de levar at ao Fim, com maisculas, o processo inconclusivo da filosofia no sentido platnico, atravs da criao de um sistema da cincia. Tivemos, depois, de notar a deturpao da periagoge de Plato na Umkehrung, com a estranha consequncia de inverso da relao de formao e deformao: a fora formativa torna-se uma adenda enquanto a deformao proposicional dos smbolos filosficos, as sombras, tornam-se a experincia primria, natrliche. E agora temos de assinalar que a luz divina que irradia do alm e fora o prisioneiro a virar-se, deturpada numa Notwendigkeit, uma necessidade que opera por detrs das costas da conscincia dos prisioneiros e que nos fora a produzir sucessivas sombras intencionalistas proposicionalmente deformadas, at chegar Hegel e terminar com as produes inconscientes, ao elevar conscincia o respectivo significado como o de um processo milenar do esprito absoluto que intenta, enfim, revelar-se absolutamente no sistema da cincia.

7. A inverso da conscincia em inconscincia

A deformao dos smbolos platnicos revela o extraordinrio conflito entre a realidade e as declaraes programticas de Hegel. Hegel pretende criar uma cincia da experincia da conscincia e procede eliminando da conscincia a experincia do filsofo atrado para a sua busca da verdade pela realidade divina do alm. A atraco torna-se uma necessidade indeterminada por detrs das costas da conscincia; o que penetra na conscincia apenas o corpo de smbolos literrios produzidos pela necessidade. O que esta construo implica to inacreditavelmente groteco que quase no nos atrevemos a exprimi-lo em lingugem ch: a obra de uma vida inteira de Plato a investigar a experincia da busca, os respectivos movimentos e contra-movimentos humano-divinos, a ascenso altura do alm e a descida profundidade csmica da alma, as meditaes anamnticas, a anlise da existncia na tenso entre a vida e a morte, entre o nus e as paixes, entre verdade e sonhos de opinio, a viso (nas Leis) da fora divina formativa - este drama esmagadoramente conciente da busca, esta realidade da conscincia e a sua simbolizao luminosa na existncia de um filsofo excluda da experincia da conscincia e relegada para uma necessidade inconsciente por detrs das costas de Plato. Deita-se para fora da conscincia, juntamente com a conscincia da existncia notica e a sua simbolizao, a distncia reflexiva de Plato face sua obra e a sua conscincia da obra como um acontecimento que assinala um antes e um depois na histria da verdade, sem por isso findar a busca da verdade. O que resta para a conscincia um corpo de obra literria a ser compreendida de maneira fundamentalista como um conjunto de proposies no modo sujeito-objecto, esquecendo-se Hegel significativamente das enrgicas declaraes de Plato segundo as quais quem o compreendesse deste modo no compreenderia o que ele estava a fazer.

8. O Inconsciente Pblico (Jung-Kernyi

No estamos, porm, empenhados em criticar Hegel. Procuramos, sim, destrinar as ambiguidades de um programa representativo da confuso intelectual do seu tempo e determinante de confuses que se prolongam at ao nosso tempo. De imediato preocupam-nos as confuses provocadas por mudanas no sentido de conscincia e inconsciente. Se a deformao intencionalista da conscincia atravs do acto de reflexo fr aceite como o modelo de conscincia, as experincias formativas da estrutura da conscincia no se inserem no modelo; tm de ser excluidas da conscincia. Dado que a excluso, porm, no abole a respectiva realidade e dado que o programa tem a inteno formativa de recuperar as experincias perdidas nessa poca, confrontamo-nos com o estranho resultado que a experincia da conscincia efectivamente recuperada mas, quando recuperada, tem de ser classificada como um tipo de inconscincia.

So bem conhecidos os fenmenos deste tipo. Como exemplo notvel, refiro-me aos famosos estudos de Jung e de Karl Kernyi sobre a Divina Criana, o Kor e o mistrio elusino, publicados em 1942 sob o ttulo Einfhrung in das Wesen der Mythologie. Os excelentes estudos de Kernyi na rea do simbolismo da Divina Criana, at a muito pouco conhecido, revelam como seu significado a experincia de uma nova vida formativa que emerge de uma realidade-mesma perigosamente resistente, a ser cruelmente destruida, para crescer num novo recomeo, i.e., a experincia da realidade mesma que abrange a realidade mortal das coisas, ou, na formulao explcita de Jung, a experincia do princpio e fim. A Divina Criana uma simbolizao consciente do paradoxo da realidade, da histria que a realidade tem de contar sobre si mesma atravs da histria contada pelo homem. Os estudos analticos de Jung confirmam a realidade do simbolismo que reaparece, sob a forma de partes fragmentrias, nos sonhos e nas vises de pacientes que sofrem de perturbaes mentais e que viram estas experincias desaparecer da conscincia.

Mas quanto mais se concorda com as importantes descobertas empricas de ambos os estudiosos mais nos espanta que eles classifiquem como inconscientes os smbolos explorados. Ser que tal classificao significa que os antigos simbolizadores no estavam conscientes das experincias que expressavam quando criavam os seus smbolos? Ser que os participantes nos rituais de Elusis no sabiam por que razo acorriam s liturgias? Porque queriam ser iniciados? E ser que os iniciados estavam incientes do mistrio que lhes era revelado, o mistrio de que a imortalidade abrange a mortalidade? Estariam apenas, sentados ou de p, a extrair arqutipos do inconsciente colectivo? Em resumo: ser que, realmente, os membros do culto misterioso tiveram de esperar por Jung e Kernyi para descobrir aquilo de que estavam inconscientemente conscientes?

Estas questes sublinhadas no pretendem denegrir como insensatos os smbolos jungianos de conscincia e inconscincia mas sim focar a ateno na respectiva ambiguidade. O absurdo de caracterizar os antigos simbolizadores como inconscientemente conscientes revela o seu significado logo que re-invertemos a inverso e caracterizamos os simbolizadores modernos como conscientemente inconscientes. O simbolizador moderno realmente inconsciente mas est a dar-se conta disso mesmo e a tentar recuperar a conscincia atravs do estudo do mito, atitude que fornece intuies mais ricas sobre os movimentos e estruturas da conscincia do que a babugem intelectual da nossa poca. Esta re-inverso da inverso, gostaria de sublinhar, no a minha adenda categorizao de Jung, mas visa mostrar to exactamente quanto possvel a sua prpria conscincia de ser inconsciente. A Psicologia, insiste ele, transfere o discurso arcaico do mito para um mitologema moderno - obviamente ainda no reconhecido como tal - que constitui um elemento do mito cincia (p.146). Na psicologia de Jung, testemunhamos a conscincia ambgua a aperceber-se de que est inconsciente, bem como a tentativa ousada de recuperar a conscincia atravs do estudo das suas manifestaes na histria e a luta, infelizmente sem grande xito, para obter a linguagem que exprimir a nova experincia diferenciada. Dos ambguos mitologemas modernos desenvolvidos por Jung, retenho o smbolo inconsciente num dos seus significados componentes, usando-o, como j fiz, para denotar um estado socialmente dominante da conscincia deformada pelo esquecimento, e que causa perturbaes pessoais e pblicas da ordem. Neste sentido, ser usado para denotar no s o estado contemporneo do inconsciente pblico mas tambm estados comparveis de outras situaes culturais, tal como por exemplo, o estado do inconsciente pblico contra o qual Plato se revoltou.

9. O acto do esquecimento imaginativo

No caso de Jung, estamos numa fase em que um porta-voz representativo da conscincia ambgua est a ficar consciente de estar inconsciente; no caso do programa de Hegel, estamos na fase em que um pensador representativo, resistindo s deformaes dominantes do seu tempo, reconstri o inconsciente pblico da poca, num nvel diferenciado, como um novo tipo de conscincia. O programa, embora claro na sua inteno, permanece ambiguamente opaco porque no consegue digerir analiticamente os vrios estratos de experincia que nele convergem. Um destes estratos exprime-se grotescamente na inverso da conscincia notica platnica num estado de inconscincia. Tive de o sublinhar porque Hegel considera-o central no seu programa. Contudo, por que razo se empenhou ele no acto grotesco de deitar fora como cientificamente invlida (p.57) a simbolizao platnica da conscincia notica, obtida pelo mito, mantendo embora a prpria estrutura do mito nas suas transformaes de periagoge em Umkehrung, bem como do movimento existencialmente formativo na metaxy para o divino alm numa necessidade que opera nas costas do pensador? Tais transformaes no podem ser explicadas como simples mal-entendidos causados pela leitura descuidada das fontes; antes pressupoem que a estrutura notica e a sua simbolizao platnica esto profundamente presentes na conscincia de Hegel que ao mesmo tempo no deseja que esta presena esteja presente. Confrontamo-nos com um acto deliberado de esquecimento imaginativo e temos de nos interrogar sobre as razes experienciais que tornavam obnxia para Hegel a simbolizao da existncia em tenso para o alm, como o pensador que articulou de modo representativo o inconsciente da sua poca. Qual a necessidade por detrs das costas que o fora a deformar o nous ?

10. A auto-anlise da conscincia activista

Ao responder a estas interrogaes no temos de nos empenhar numa psicanlise alargada. A auto-anlise hegeliana do seu inconsciente concentra-se com admirvel claridade no modo como ope o seu smbolo Geist ao nous platnico. Comea por declarar programaticamente: Que a verdade seja real apenas como sistema, ou que a substncia seja essencialmente sujeito, est expresso na compreenso [ Vorstellung ] que pronuncia o Absoluto, como Geist - esse conceito sublime que pertence poca moderna [neure Zeit ] e sua religio (p.24). Quando nos interrogamos sobre o contexto histrico e significado deste smbolo moderno, recebemos a informao (no captulo sobre Bhme na Geschichte der Philosophie, II, 300 ): princpio protestante colocar o mundo do intelecto [Intellektual Welt ] na nossa prpria mente [Gemth] e ver, conhecer, e sentir na auto-conscincia de cada um, tudo o que antes era alm. Quando o princpio protestante reconciliou finalmente a anterior diviso entre este mundo e o alm: quando os antecedentes histricos da auto-conscincia, o nus de Anaxgoras, as Ideias de Plato, e o ltimo resduo do alm, a Ding-an-Sich kantiana, forem conceptualmente penetradas e absorvidas na imanncia da conscincia que se auto-movimenta; quando neste processo o conceito se tornou Ser, e o ser Conceito, ento o reino do Geist atingiu a verdade (p.46). O reino na sua verdade, finalmente, apresentado por Hegel na sua Logik. E afirma o seguinte sobre esta apresentao e o seu contedo: Este reino a verdade, tal como ela , sem vu em si e para si. Podemo-nos exprimir, portanto, do modo seguinte: o seu contedo a apresentao de Deus tal como ele no seu ser eterno [ewiges Wesen] antes da criao da natureza e de um Geist finito(I,31). A passagem distorce o Evangelho de S. Joo I,1. Segundo o Evangelho, o Logos existia no princpio com Deus; agora o Princpio manifesta-se como no mais do que um princpio no tempo e que atinge a revelao plena, o seu verdadeiro fim moderno, no Geist da Lgica de Hegel.

Algo de mais importante, porm, sugerido pelo inconsciente de Hegel do que a proclamao do Geist como o princpio protestante moderno; Hegel admite que o princpio moderno cobre como seus tpicos uma variedade de estratos da experincia, hermticos, apocalpticos, gnsticos e neoplatnicos. Embora invlido, o mito de Plato seja , ele tem de ser louvado pelo seu Parmnides, a maior obra de arte da dialctica antiga, justamente considerada em tempos como a verdadeira revelao e a expresso positiva da vida divina (p.57). A afirmao laudatria aproxima-se ao auto-louvor de Hegel na sua Logik. Ainda mais prxima do seu Geist programtico, contudo, a afirmao programtica de Marsilio Ficino, na introduo traduo do Corpus Hermeticum, que a Mente Divina pode brilhar na nossa mente e ns podemos contemplar a ordem de todas as coisas tal como existem em Deus, afirmao que Hegel provavelmente desconhecia. Recordamo-nos do desejo gnstico, condenado por Ireneu, de ler em Deus como num livro.

Contudo, sejam quais forem os estratos de experincia que acrescentemos, a dominante no smbolo Geist permanece uma escatologia parclita, a viso de uma descida do Esprito que completar o que as cristandades de Pedro e Paulo no alcanaram - i.e., a derradeira parousia salvfica do alm neste mundo. Admitir esta fantasia e propor no decurso da sua realizao activista a abolio da filosofia, exigia um considervel dose de inconscincia no que se refere ao tratamento deste problema pelos pensadores helnicos, helensticos e medievais. Temos agora de identificar o trauma causado por esta estranha situao do inconsciente activista na poca de Hegel.

11. O trauma do contexto ortodoxo

Tal como muitos dos seus sucessores incluindo Nietzsche, Jung e Heidegger, Hegel foi vtima de uma formao pressionada por um contexto ortodoxo. Apesar de intensa resistncia, esteve exposto deformao do complexo conscincia-linguagem-realidade, deformao da realidade mesma em realidade-coisificada, da luminosidade em intencionalidade, dos smbolos em conceitos definitrios. O alm, o smbolo criado por Plato para exprimir a experincia da realidade divina como formativamente presente no movimento participativo da metaxy, tornara-se um objecto espacialmente localizado, um Jenseits deste mundo; e a simbolizao platnica do nous divino como ser para alm das coisas finitas, foi transformada no conceito de um ser-coisa para alm das coisas que so. Na linguagem de Hegel, os smbolos experienciais alm e Ser tornaram-se entidades com um artigo definido, das Jenseits, das Sein. Finalmente a deformao lingustica possibilitou que o smbolo ser surgisse como predicado em proposies em que o Deus da ortodoxia crist se tornara o sujeito, tal como Gott ist das Sein. Os smbolos noticos e pneumticos, helnicos e judeo-cristos tinham sido transformados em conceitos intencionalistas manipulveis por pensadores proposicionalistas. uma conquista irreversvel de Hegel ter compreendido radicalmente a deformao dominante dos smbolos; seu falhano grandioso ter ensaiado uma soluo que confunde a realidade mesma e a realidade-coisificada no novo simbolismo do Sein, um sujeito que desdobra dialecticamente a sua substncia no processo histrico, at que alcana o seu eschaton, o seu Fim, na conceptualizao completamente articulada da sua auto-conscincia, com a pretenso de ultrapassar a realidade abrangente.

12. Deus: o som sem sentido

Embora seja difcil, seno mesmo impossvel, apresentar quer a conquista quer o falhano nas prprias palavras de Hegel, devido ambiguidade da sua linguagem, possvel identificar o ponto em que a deformao dominante suscita uma resistncia aguda; o ponto traumtico fica manifesto na sua preocupao com a proposio Gott ist das Sein.

Nesta proposio, Deus o sujeito, para Hegel, em dois sentidos. Primeiro, o sujeito gramatical de que o ser o predicado; e, segundo, um sujeito no sentido de uma conscincia auto-reflexiva. Como sujeito gramatical, Deus para Hegel uma entidade suprflua. Nas afirmaes que comeam por Deus - tal como Deus o Eterno, ou o Amor, ou o Ser, ou o Uno - Deus um som sem sentido, um simples nome acerca do qual apenas o predicado diz o que ele : este comeo vazio [da proposio] torna-se conhecimento real apenas no seu fim. Poder-se-ia perguntar, portanto, porque no se deveria referir apenas o sentido predicativo, sem acrescentar o som sem sentido (p.22). Em consequncia, num debate filosfico poderia ser til evitar o nome de Deus (p.54). Assim, como sujeito gramatical, Deus tem de ceder o seu lugar ao ser. Contudo, mesmo no aspecto gramatical Deus tem ainda alguma utilidade. As proposies incriminadas reflectem a necessidade de imaginar o Absoluto como um sujeito. verdade que as proposies apenas posicionam o sujeito mas no o apresentam no seu movimento auto-reflectido, um Sujeito. Mas mesmo esta concesso poderia ser demasiado generosa porque a imagem Deus mais no faz do que antecipar o Absoluto como Sujeito na medida em que o situa como um ponto em repouso e no na realidade do seu Ser como um movimento conceptual (p.23). Fornecer ao Ser o movimento do intelecto divino, sem o que o Ser mais no seria do que uma generalidade, parece ser o servio derradeiro e algo incerto que Deus pode prestar, segundo Hegel.

13. Ambiguidade e validade paradoxal

Estas passagens famosas e provocativas permanecero analiticamente ininteligveis, a menos que sejam identificadas as experincias que foram deformadas pelo acto ambguo de resistncia. O que se impoe nossa ateno, antes de mais, o jogo questionvel com o smbolo sujeito. Se a sua ambiguidade fosse descontada como um simples equvoco, invalidando a construo, perderamos de vista a questo experiencial. Temos de distinguir entre a componente experiencialmente vlida do equvoco e a sua deformao. O que designei um pouco atrs de componente experiencialmente vlida, j o encontrmos na nossa anlise da conscincia. Por um lado, o sujeito da conscincia capta intencionalmente a realidade como o seu objecto, produzindo o smbolo de uma realidade coisificada; por outro lado, os actos da conscincia corporeamente localizada revelaram-se como acontecimentos na realidade mesma e, neste aspecto experiencial, tiveram de ser proposicionalmente predicados como o sujeito da realidade mesma. O equvoco no foi um erro lgico mas antes a manifestao lingustica do paradoxo da conscincia, da intencionalidade e da luminosidade que alargam a sua estrutura para os problemas de realidade, linguagem e imaginao. A histria da procura da verdade fala uma linguagem, a linguagem da narrativa, na qual os smbolos que exprimem as experincias se tornam sujeitos em proposies com predicados como se fossem coisas com propriedades. Se a conscincia das experincias que engendraram os smbolos no fr preservada ou restaurada, a tenso na histria entre narrativa e acontecimento pode induzir equvocos literalistas. Temos de reconhecer que Hegel encontrou e compreendeu o problema; de facto, estava empenhado em pronunciar-se de modo muito importante sobre a linguagem da narrativa, como veremos na devida altura. Se as suas intuies permaneceram ambguas, contudo, devido sua resistncia ao smbolo deformado Deus sem uma anlise suficiente das razes experienciais para a sua formao ou dos modos histricos da sua deformao.

14. Deus: a experincia da Sua morte

Hegel um pensador com muito boa informao histrica e com formidvel poder de anlise. Quando declara que o Deus um som sem sentido, a indignao religiosa seria to despropositada como resposta quanto a manifestao de agrado iluminista. Quando um Hegel ambguo, a sua ambiguidade reflecte um problema fundamental na estrutura da conscincia que se tornou opaca no seu tempo. A manifestao radical de opacidade nas afirmaes de Hegel um acontecimento especificamente moderno. Mas, to longe quanto alcanam os nossos escritos, ou seja, o terceiro milnio a.C. no Egipto, a estrutura paradoxal dos smbolos revelatrios que permanecem no horizonte, bem como o potencial da sua deformao, sobrecarregou com os seus problemas a linguagem dos deuses. Ademais, os problemas deste tipo atingiram um novo nvel de acuidade desde que o smbolo Deus se diferenciou no assim chamado sentido monoteistico. A opacidade na poca de Hegel deve ser compreendida no contexto histrico da culminncia de uma luta milenar com os paradoxos da revelao divina. A nica resposta criticamente aceitvel nesta situao a anlise do sentido veiculado pelo smbolo D

eus quando emergiu da experincia da realidade na Antiguidade helnica, uma anlise que ter de incluir os problemas de formao e deformao que rodeia a sua gnese. Tal anlise ser apresentada nas seces seguintes deste captulo.

Antes de iniciar tal anlise, porm, temos de identificar uma caracterstica na ambiguidade de Hegel que o torna representativo de uma fase histrica moderna dessa luta milenar. Tal caracterstica foi frequentemente observada de modo incidental, mesmo no nvel humorstico; mas tanto quanto sei nunca foi tematizada analiticamente, de um modo que estivesse altura do escopo da conscincia histrica de Hegel. Designarei esta caracterstica representativa como o trao cmico-srio do movimento moderno de Deus-est-morto.

O movimento tem de ser levado a srio. A frmula rgida acerca do som sem sentido no idiossincrtica mas tem de ser aceite como a expresso autorizadora do movimento Deus-est-morto que caracteriza um perodo da modernidade ocidental, que j dura h cerca de trezentos anos. Os fenmenos histricos so bem conhecidos. Menciono apenas, antes de Hegel, o ateismo do Iluminismo, a sua radicalizao activista no Encore um effort,Franais...(1793) do Marqus de Sade e o contra-sonho depressivo-resistente de Jean Paul Rede des toten Christus vom Weltgebude herab, da kein Gott sei (1794); e depois de Hegel vieram a variedade de metodologias positivista, antiteistica, a psicologia projectiva de Feuerbach e Marx, a reflexo de Nietzsche sobre o assassinato de Deus e a onda existencialista, no sculo vinte, da literatura do tipo Deus-est-morto.

Mas o movimento tambm tem o seu lado cmico; o Deus que foi declarado morto est suficientemente vivo para manter os seus agentes funerrios nervosamente ocupados durante trs sculos, at agora. Quando interrogado por pensadores eminentes, no parece estar seguro se uma substncia ou um sujeito (Espinoza/Hegel), ou talvez ambos, ou se talvez no exista em absoluto, ou se pessoal ou impessoal, ou se consciente ou inconsciente, ou racional ou irracional, se esprito apenas ou se tambm matria (Espinoza) ou se tambm, apenas e talvez uma ideia reguladora ( Kant) ou se ou no idntico a si mesmo, ou se identidade da identidade e da no-identidade (Hegel) ou se um ser ontolgico ou teolgico, ou ambos, ou se algo de inteiramente diferente (Heidegger). O que absoluto neste debate ambguo acerca do Absoluto a seriedade mortfera. Parece que Deus o nico que se pode rir nesta situao.

15. Mortalidade e imortalidade dos deuses.

Ns se pode negar nem a seriedade do movimento Deus-est-morto nem o toque de cmico. Ambas as caractersticas derivam do paradoxo no conjunto de conscincia-realidade-linguagem. A linguagem dos deuses simboliza a experincia da parousia do alm. A realidade divina experimentada como presente nos movimentos divino-humanos ordenadores da alma e, ao mesmo tempo, como algo alm da sua presena concreta. Na anlise de S. Toms, por exemplo, aparece o Deus pessoal portador do nome prprio Deus mas por detrs do Deus que profere a sua Palavra e escuta a palavra da orao, subjaz o Deus tetragramtico, impessoal e sem nome. O Deus que experimentado como concretamente presente, permanece o Deus alm da sua presena. Assim, a linguagem dos deuses est carregada com o problema de simbolizar a experincia de uma realidade divina no-experiencivel. Embora os smbolos imaginativos que exprimem esta experincia jamais sejam conceitos intencionalistas que definem a natureza de um deus, possuem no modo lingustico, a aparncia de linguagem no modo da realidade coisificada. Como consequncia, se a linguagem dos deuses fr mal construida surge como linguagem conceptual que se refere a uma entidade divina alm da experincia do alm e da sua parousia. Os deuses tm de morrer quando a sua linguagem superada no processo diferenciante da busca da verdade por uma linguagem mais adequada. O cenrio histrico fica juncado de deuses mortos. Se, contudo, no se cometer este erro, se permanecer viva ou se fr recuperada a conscincia da experincia e da simbolizao, a sucesso dos deuses torna-se uma srie de acontecimentos a serem lembrados como a histria da parousia do alm divino e vivo. Quem tem histria no o alm mas sim a sua parousia na conscincia corporeamente localizada do homem questionante, a experincia da realidade divina no-experiencivel: a histria da verdade emerge da busca da verdade. Neste aspecto, o esforo srio de busca da verdade adquire o carcter de uma divina comdia.

16. A linguagem dos deuses: morte- parousia- recordao

Hegel estava perfeitamente consciente das estruturas paradoxais e reflexivamente distanciadoras na linguagem dos deuses. Enumerarei os principais tpicos em que se exprime a sua conscincia na Fenomenologia : (a) Sabia que os deuses no estavam a morrer pela primeira vez na histria quando morreram no que chama idade moderna. Tambm nas civilizaes antigas os deuses tinham morrido. Numa variante da theologia tripartita dos esticos, nos trs captulos, sobre Religio Natural, Religio Artstica e Religio Revelada, ele lembrou os deuses que tinham vivido e morrido no passado. Em particular reflectiu na morte dos deuses olmpicos atravs da dissoluo nas nuvens da comdia de Aristfanes (pp.517-20; veja-se tambm as notas sobre a komische Bewutsein, p.523). (b) Hegel sabia, ainda, que os deuses, embora morram na histria como vtimas do processo diferenciador da verdade, tm de ser lembrados como deuses vivos porque a sua pluralidade na coexistncia e sucesso a parousia do alm vivo (p.508). No seu prprio caso, embora declarasse formalmente que Deus mesmo tinha morrido (da Gott gestorben ist) na abstraco da Wesen [essncia] divina em que se compraziam os seus contemporneos doutrinrios (pp.523, 546) sabia que o Deus morto estava suficientemente vivo para lhe celebrar uma parousia no sistema da cincia; na Fenomenologia, a theologia tripartita seguida por esta parousia no captulo conclusivo acerca do saber absoluto - e trata-se mesmo de uma parousia, embora libidinosamente deformada pela especulao auto-afirmativa de Hegel. (c) ainda mais importante o facto de, conhecedor dos antecedentes histricos dos seus prprios esforos analticos, Hegel estar familiarizado com o simbolismo da memria em Hesodo (pp.507-508). A mnemosyne divino-humana, o smbolo que devemos imaginao criadora de Hesodo, diferenciava incoativamente a distncia reflexiva da conscincia face ao processo paradoxal da realidade. Nos limites da sua linguagem compacta, Hesodo simbolizara a distncia evocativa experincia da realidade como um todo e, em particular, experincia do alm divino no-experiencivel e sua parousia nos deuses que vivem e morrem. Ao diferenciar a experincia da distncia reflexiva, abriu a conscincia para o processo da realidade como uma histria inacabada. Hegel, por seu turno, compreendeu perfeitamente a memria como constituinte da conscincia histrica; mas queria acabar a histria. Para este fim tinha de deformar auto-afirmativamente a intuio notica acerca da estrutura paradoxal da realidade em manipulao do paradoxo como uma coisa; e com o mistrio transformado numa coisa a ser dominada, a memria distanciadora que abrira o horizonte histrico podia tornar-se o instrumento da sua clausura atravs da iluso de que j fra lembrado tudo o que valia a pena lembrar acerca do processo da verdade na realidade. Aceitando como evidentes estes supostos, o processo paradoxal de procura da verdade poderia ser assumido como completo e a histria inacabada poderia ser levada ao fim no sistema da cincia.

A deformao hegeliana de algumas estruturas da conscincia, porm, no deve obscurecer o facto de que ele agia em revolta contra uma deformao ainda pior das mesmas estruturas pelo inconsciente pblico que o cercava socialmente. Apenas conseguia deformar experincias fundamentais porque, primeiramente, era capaz de as redescobrir em oposio aos smbolos que tinham perdido a fonte experiencial de sentido e, como consequncia, tinham-se tornado um corpo morto de ideias e opinies. Donde que, a enumerao atrs apontada no deve ser lida como uma crtica de Hegel mas, pelo, contrrio, como uma tentativa de esclarecer e sublinhar as suas conquistas. A redescoberta da fonte experiencial da simbolizao bem como a identificao dos problemas fundamentais na estrutura da conscincia irreversvel. O que se deve evitar a sua deformao dos problemas identificados. As duas seces seguintes - Mnemosyne de Hesodo e Recordao da Realidade- analisaro, na sua forma originria no-deformada, as fases do processo da verdade que Hegel, como se comprova pela listagem acima, reconheceu como antecedentes da sua prpria compreenso da conscincia. Com este mtodo, espero que seja possvel restaurar algum sentido a sons que o perderam. http://pwp.netcabo.pt/netmendo/hegel%20OH%205.htm