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ESCOLA DA MAGISTRATURA DO ESTADO DE RONDÔNIA EMERON REVISTA DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO ESTADO DE RONDÔNIA (Criada em agosto de 1996) Ano 1998 - N° 05 Porto Velho - Rondônia

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ESCOLA DA MAGISTRATURADO ESTADO DE RONDÔNIA

EMERON

REVISTA DA ESCOLA DA MAGISTRATURADO ESTADO DE RONDÔNIA(Criada em agosto de 1996)

Ano 1998 - N° 05Porto Velho - Rondônia

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REVISTA DA ESCOLA DA MAGISTRATURADO ESTADO DE RONDONIA

Conselho EditorialDes. Dimas Ribeiro da FonsecaJuiz Alexandre MiguelJuiz Marcos Alaor Diniz Grangeia

DivulgaçãoCoordenadoria de Comunicação Socialdo Tribunal de Justiça do Estadode Rondônia

Diagramação,Composição e Capa

José Miguel de Uma

Fotolito, Impressão,Acabamento e Comercialização

Departamento Gráfico do Tribunal deJustiça do Estado de Rondônia

RevisãoDoracy Leite TavaresAngela Maria Pereira Uma XavierMaria Luzia Godoi Navarrete

EMERONEscola da Magistratura do Estado de RondôniaAvRogério Weber, 1872 - Fone (069) 224-3940CEP 78916-050 - Porto Velho - Rondônia

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ADMINISTRAÇÃO DO TRIBUNAL DE JUSTiÇADO ESTADO DE RONDÔNIA - BIÊNIO (1998-2000)

PresidenteDes. ELlSEU FERNANDES DE SOUZA

Vice-PresidenteDes. SEBASTIÃO TEIXEIRA CHAVES

Corregedor-Geralda Justiça

Des. SÉRGIO ALBERTO NOGUEIRA DE LIMA

COMPOSiÇÃO PLENÁRIA DO TRIBUNAL

Des. ELlSEU FERNANDES DE SOUZADes. SEBASTIÃO TEIXEIRA CHAVESDes. SÉRGIO ALBERTO NOGUEIRA DE LIMA

Decano: Des. DIMAS RIBEIRO DA FONSECADes. EURICO MONTENEGRO JÚNIORDes. ADILSON FLORÊNCIO DE ALENCARDes. ANTÔNIO CÂNDIDO DE OLIVEIRADes. RENATO MARTINS MIMESSIDes. GABRIEL MARQUES DE CARVALHODes. VALTER DE OLIVEIRADes." ZELlTE ANDRADE CARNEIRO

ESCOLA DA MAGISTRATURA DO ESTADO DE RONDÔNIA

DiretorDes. Dimas Ribeiro da Fonseca

Vice-DiretorJuiz Marcos Alaor Diniz Grangeia

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APRESENTAÇÃO

o Conselho Editorial da Revista selecionou com esmero a ma-téria para compor este número.

Magistrados, professores e advogados foram os artífices destaedição, com abordagem de temas atuais no campo do Direito Processual,Civil, Penal, Constitucional e Tributário, em seus aspectos polêmicosque mais aguçam o interesse pela pesquisa científica.

Anima a todos a colaboração que recebemos, com freqüência,para as próximas edições, sinal evidente de que a divulgação do saberjuridico constitui uma das formas de aperfeiçoamento do magistrado.

Queremos externar agradecimento público á contribuição inte-lectual dos que ajudam a edificar o novo Judiciário do próximo milênio.

Porto Velho, dezembro de 1998.

Des DIMAS RIBEIRO DA FONSECADiretor da Escola da Magistratura de Rondônia

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ARES DE LISBOA

Cai a noite brumosa sobre o TejoEnvolvendo Lisboa no seu mantoToda a história parece que revejoNesta terra d'amores e d'encantos,

Vultos olímpicos da heráldica gentePovoam no metal famoso a cidadeVê-se o passado glorioso no presenteNesse milagre de perpetuidade,

Em toda alfama aquele povo entoaO belo canto triste do seu fadoEm versos sonoroso e sublimados.

O estro de Camões sempre ressoaCom a força do orgulho redobradoDa mui leal cidade de Lisboa.

Lisboa. 2 I-}(]-l 997.\

Dimas Ribeiro da FonsecaDiretor da Escola daMagistratura de RondôniaPorto Velho-RO

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,INDICE

m Considerações Pessoais Sobre a Seleção e aFormação de Magistrados em Portugal e França

Ricardo Arnaldo Malheiros Fiuza

m A Função Politica da Magistratura

José Renato Nalini

m O Futuro do Direito Processual Civil

Cândido Rangel Dinamarco

fi) Código Civil - "Reforma à Vista"

Cesar Rubens de Sousa Lima

m O Direito Constitucional do Réu ao Silêncio e SuasConseqüências

Louri Geraldo Barbiero

~ A Reforma do Poder Judiciário

Geraldo Brindeiro

iIE Código de Trânsito BrasileiroMulta ReparatóriaInconstitucionalidade. Natureza jurídica.Inaplicabilidade. Lei 9.268/96

Tânia Mara Guirro

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;:Em A Progressão do Regime e os Crimes Hediondos

Agamenon Bento do Amaral

D Prejudicial da Lide Penal Tributãria

Antonio Corrêa

imJ Reflexões Sobre a Suspensãodo Processo de Execução

Glauco Antônio AlvesSilvio Viana

í6l Guarda Conjunta

Caetano Lagrasta Neto

íIãEl Instituições FinanceirasSistema de ResponsabilizaçãoReflexões

Miguel Roumié

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CONSIDERAÇÕES PESSOAIS SOBRE ASELEÇÃO E A FORMAÇÃO DE

MAGISTRADOS EM PORTUGAL E FRANÇA

Ricardo Arnaldo Malheiros FiuzaDiretor Adjunto da Escola Nacional da Magistratura e Professor deDireito Constitucional da Faculdade "Milton Campos" de Belo

Horizonte -MG.

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CONSIDERAÇÕES PESSOAIS SOBREA SELEÇÃO E A FORMAÇÃO DE MAGISTRADOS

EM PORTUGAL E FRANÇA

Ricardo Arnaldo Malheiros Fiuza

SUMÁRIO: I. Introdução. 2. Preocupação. 3. Ação. 4. Portugal. 4.1. Aseleção dos futuros magistrados. 4.2. A Formação Inicial.4.2.1. Fase teórico-prática. 4.2.2. Estágios de iniciação. 4.2.3.Estágios de pré-afetação. 4.3. Formação complementar. 4.4.Formação permanente. 4.5. Investigação cientifica. 4.6. In-tervenção no sistema. 4.7. A filosofia do CEJ. 5. França.5.1. A seleção dos "Auditeurs de Justice". 5.2. FormaçãoInicial. 5.2.1. Aclimatação. 5.2.2. Estágios exteriores. 5.2.3.Fase teórico-prática. 5.2.4. Estágios jurisdicionais de ob-servação. 5.2.5. Estágios de especialização jurisdicional.5.2.6. Exames finais. 5.3. A formação permanente. 5.4. Afilosofia da ENM. 6. Conclusão.

1. IntroduçãoQuando exerci, com muita honra, o cargo de Diretor Geral da

Secretaria do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, de 1973 a 1977, assistivárias vezes á seguinte cerimônia, ou melhor, à seguinte falta de cerimô-nia: o Juiz novato, que acabara de tomar posse, em ato simples e rápido,perante o Presidente do Tribunal, no segundo andar do Palácio da Justiça,descia comigo para meu gabinete. Ainda atônito, tomava um cafezinho eme perguntava: "E agora, Ricardo?" Ou então: '-O que você tem ai dematerial para me ajudar quando eu entrar em exerCÍcio amanhã na minhaComarca?"

Como Diretor do Tribunal e como Professor de Direito Consti-tucional, sempre estranhei que aquele bacharel, prestes a exercer a fun-ção mais indelegável do Estado - qual seja a de distribuir a Justiça a fim

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de solucionar conflitos na busca de uma almejada paz social - não tivessea menor assistência no início dramático de sua nova e enorme missão.

2. PreocupaçãoPenalizado com a pessoa do homem-juiz e preocupado com a

situação do juiz-autoridade, passei a fazer alguns cadernos contendo aquiloque pudesse ser útil para o iniciante na Magistratura. Evidentemente queisso era muito pouco.

Falei dessa minha preocupação ao então Juiz de Direito da Co-marca de Betim, Doutor Sálvio de Figueiredo Teixeira, e vi que ele pen-sava também assim.

Conversamos com o notável Desembargador Edésio Fernan-des, então Presidente do Tribunal, e fizemos, com sua autorização e seugrande apoio, alguns cursos experimentais, com Juízes novos e Juizes dointerior, que tiveram boa aceitação e simpática repercussão.

3. AçãoNo dia 13 de agosto de 1977, o Desembargador Edésio Fernan-

dcs, no último dia de seu mandato presidencial, baixou a Portaria nO231,pela qual este expositor foi designado "para proceder aos estudos preli-minares, visando à implantação e organização em Minas Gerais da Esco-la Judicial", destinada à seleção, à formação e ao aperfeiçoamento dosmagistrados mineiros.

Logo que designado, comecei a pesquisar tudo o que havia nomundo sobre formação de Juízes. Descobri, entre outras instituições, naEspanha, a Escuela Judicial, existente desde 1944, e, na França, a ÉcoleNationale de la Magisfrafure, funcionando desde 1958. Soube que, emPortugal, já então vivendo a democracia decorrente da Revolução de 25de Abril de 1974. começavam os estudos para criação de uma escola demagistratura.

Desde então, tcnho dedicado grande parte de minha vida a esteassunto apaixonante.

Conseguindo bolsas de estudo e ajuda de custo como Professorde Direito Constitucional ou na qualidade de Diretor Adjunto da EscolaNacional da Magistratura, tenho tido a oportunidade de visitar diversas

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Escolas de Magistratura na.Europa, na América do Norte e na Ásia, todaselas com suas respectivas peculiaridades.

Em decorrência dessas visitas, cheguei á conclusão de que duasinstituições deveriam ser as mais estudadas, a fim de que, no futuro, vies-sem a ser modelos para as Escolas de Magistratura brasileiras, guardadasas devidas particularidades e necessidades.

Tais instituições seriam e são o Centro de Estudos Judiciários,de Portugal, e a École Nationale de la Magistrature, da França.

4. PortugalA escola da magistratura portuguesa é o CEJ - Centro de Estu-

dos Judiciários, órgão do Ministério da Justiça, dotado de ampla autono-mia administrativa e financeira.

Criado em 1979, em decorrência de estudos feitos logo após a"Revolução dos Cravos vermelhos, de 25 de abril de 1974, o CEJ estáinstalado em Lisboa, no Largo do Limoeiro, ao pé do Castelo de SãoJorge, em antigo edificio que já fora palácio real e penitenciária.

Seu primeiro Diretor foi o Df. Álvaro José Brilhante LaborinhoLúcio, Procurador Geral Adjunto da República, que deixou a direção daCasa para ser Ministro da Justiça. O atual Diretor é o Df. Armando Acá-cio Gomes Leandro, Conselheiro (equivalente ao nosso Ministro) do Su-premo Tribunal de Justiça, ex-Desembargador do Tribunal da Relação deLisboa e ex-Juiz de Menores da capital portuguesa. Ambos são ilustrespersonalidades, profundamente conhecedores do assunto "formação demagistrados" .

O CEJ dedica-se á seleção, á formação inicial, á formação com-plementar e á formação permanente dos magistrados portugueses, sejameles magistrados judiciais (Juízes de Direito) ou magistrados do Ministé-rio Público (Promotores de Justiça).

O CEJ cuida, também, da formação especial de magistradosafricanos, dos países de língua portuguesa.

Registre-se que a Escola Nacional de Magistratura brasileira,dirigida, com toda proficiência, pelo Ministro Sálvio de Figueiredo Tei-xeira, mantém agora convênio com o CEJ para a freqüência de magistra-dos brasileiros á fase teórico-prática de seus cursos.

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4.1. A seleção dos futuros magistradosA seleção inicial é feita pelo próprio CEJ, com todo o ri-

gor, em trabalho demorado, sem qualquer tipo de perigosa correria,no qual não se pretende apenas eliminar, e sim escolher os mais ca-pazes, aptos e vocacionados. A idade mínima para a inscrição aosexames de seleção é de 23 anos, não sendo exigido do candidatoqualquer intersticio profissional como advogado, representante doMinistério Público ou em qualquer outra profissão jurídica exercidaapós a colação de grau.

Percebe-se que os responsáveis pela seleção dos futuros magis-trados portugueses não estão muito preocupados com qualquer experiên-cia profissional prévia. Isso porque querem escolher os mais brilhantesegressos das Faculdades, logo após a formatura, e porque o curso que osselecionados terão que fazer será de longa duração, como veremos adian-te. Uma verdadeira preparação profissional.

O concurso é muito rígido e bem pensado, constando de provasescritas e orais sobre disciplinas juridicas e sobre temas de cultura geral,incluindo uma redação sobre assunto de relevo no momento.

A Comisão Examinadora, presidida pelo Diretor do CEJ, é com-posta de muitos membros, a fim de que se dê conta da correção de tantostrabalhos escritos.

Os que forem aprovados dentro do número de vagas existentesserão nomeados "Auditores de Justiça, com o vencimento de 80% doinicial da carreira da magistratura, serão filiados à Presidência Nacionale iniciarão a Formação Inicial, que durará dois anos e quatro meses'

4.2. A Formação InicialDirigindo minha exposição para a formação de magistrados

judiciais, isto é, dos Juízes de Direito portugueses, passarei a descre-ver, resumidamente, as três fases dessa Formação Inicial ministradapelo CEJ.

4.2.1. Fase teórico-práticaDivididos em pequenos grupos de quinze componentes, os Au-

ditores passam a freqüentar, por dez meses, sessões de trabalho, em voltade uma aconchegante mesa, presidida sempre por um magistrado-forma-

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dor. Ali, diariamente, de segunda a quinta-feira, são feitas detalhadasanálises de processos das jurisdições civel, criminal, de família e meno-res e laboral (trabalhista).

Os magistrados convidados para ministrarem as instruções sãorequisitados de seus Juizes ou Tribunais, em tempo integral ou em meio-horário, conforme a carga de trabalho que vão ter no CEJ, não sofrendoqualquer prejuizo em suas carreiras. Pelo contrário, além de não perde-rem sua antiguidade, ganham no merecimento.

Segundo o Dr. João Dias Borges, Diretor de Estágios do CEJ,os "formadores" de magistrados devem ter as seguintes qualidades: co-nhecimento técnico, bom relacionamento, comunicação fácil, disponibi-lidade profissional e "capacidade de dar-se".

Além dessas reuniões em pequenos grupos, há também ativida-des em conjunto. Uma vez por semana, no auditório do estabelecimento,reúnem-se todos os grupos para as aulas magnificas intituladas "O Direi-to c a Realidade Social", nas quais os Auditores discutem com magistra-dos experientes a aplicação da lei ao caso concreto.

Outro detalhe ao qual se dá grande importância na escola portu-guesa são as simulações de audiências e de julgamentos, feitos em videose "ao vivo".

No tocante aos julgamentos criminais, há um sistema curioso,de que participei quando lá estive em estágio de um ano: os Auditoresrecebem a incumbência de ler um determinado livro, um romance, nãoum livro jurídico. No meu tempo, foi a obra "Baal", de Bertolt Brecht,em cujo enredo figura um homicidio e outros crimes envolvendo fatosmuito complexos. Em várias sessões com o Diretor do CEJ, Dr. Labori-nho Lúcio, discutíamos o texto literário do livro. Até que um dia, foimarcado um grande julgamento simulado no Tribunal da Boa Hora (va-ras criminais de Lisboa). Nesse julgamento, cada Auditor, colhido desurpresa, recebeu, por sorteio, um papel a desempenhar: os Juízes, oPromotor, o Assistente de Acusação, o Defensor, o Escrivão, o Oficialde Justiça, os réus, as testemunhas e até o Jornalista (papel que, feliz-mente, coube a mim).

Ainda nessa fase teórico-prática da formação inicial, o CEJrealiza e valoriza seminários e conferências esparsas sobre, entre outros

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assuntos, Medicina Legal, Psiquiatria Forense, Direito Comunitário (estecada vez mais importante por causa da União Européia), Direitos Huma-nos, Controle de Constitucionalidade.

Aulas de francês e de inglês também são ministradas aos inte-ressados nesse período inicial.

O CEJ dispõe, ainda, de um Departamento Cultural que cuídada fonnação geral dos magistrados, incluindo literatura, história, cinema,teatro, pintura e música.

4.2.2. Estágios de iniciaçãoPassada a fase de formação inicial, ainda dentro do período

de dois anos e quatro meses, entra-se para a fase de estágios de inicia-ção. Durante dez meses, os Auditores, futuros Juizes, vão se limitar aobservar o trabalho de magistrados escolhidos com muito rigor peloConselho Diretor do CEJ, num critério que o Des. Cláudio Viana, ex-Diretor da EMERJ, chamaria de "despotismo esclarecido". Esses ma-gistrados assim escolhidos são designados "Orientadores de Estágio",recebendo remuneração por esse serviço "extra" que terão de realizaracumulando com o movimento forense de seus Juizos ou Tribunais.Tais estágios são feitos em Lisboa e em várias outras Comarcas dopais continental ou das ilhas atlânticas (Arquipélagos da Madeira edos Açores).

4.2.3. Estágios de pré-afetaçãoSegue-se periodo importantissimo, no qual o futuro Juiz será

submetido a um estágio chamado de "pré-afctação" pelo período de oitomeses. Nessa fase. os Auditores passam a despachar. relatar e decidir,sob a vigilância direta do Juiz Orientador. Esse estágio de pré-afetaçãotambém é realizado na capital portuguesa e nas demais comarcas impor-tantes do pais.

Estarão ai completados os dois anos e quatro meses, aos quaisme referi no inicio desta exposição.

Durante todo o período da fonnação inicial, o Auditor é avalia-do através de trabalhos. provas e entrevistas e, ao término, ele se sub-mete a exames finais eliminatórios. Aprovado em tudo, é nomeado Juiz

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de Direito e designado pelo Conselho da Magistratura para um deter-minado Juizo. lO)

4.3. Formação complementarDentro dos primeiros cinco anos de seu efetivo exerC1ClO

na magistratura, o novo Juiz é convocado ao CEJ, por um periodo detrês meses consecutivos ou não. Ele será, então, "reciclado" nas ma-térias das quatro jurisdições referidas no item 4.2.1. desta exposiçãoe também, com muito destaque, para tomar conhecimento de modi-ficações legislativas eventualmente ocorridas no periodo. A Dire-ção do CEJ considera também muito válida essa "reconvocacão" aoestabecimento para indagar aos Juizes, ainda iniciantes, sobre suaopinião a respeito da validade do curso de formação inicial e sobresuas sugestões para possiveis mudanças e adaptações que porventu-ra devam ser feitas.

4.4. Formação permanenteA formação permanente dos magistrados portugueses é feita,

como nos Estados brasileiros, através de conferências isoladas, ciclos deconferências, seminários, colóquios e encontros de estudos realizados peloCEJ em sua sede lisboeta, nas quatro grandes regiões judiciárias de Por-tugal continental (Lisboa, Porto, Coimbra e Évora) ou nos arquipélagosdo Atlântico. Os Juizes portugueses nunca são convocados para essasatividades de formação permanente, e sim convidados. Tais atividadessendo facultativas, ás vezes trazem algum problema para os seus organi-zadores: a presença eventualmente muito pequena dos Juizes participan-tes, conforme ouvi de um dos responsáveis por esse tipo de formação noCEI. Se forem obrigatórios tais eventos, com os magistrados convocadosmediante o pagamento de diárias de locomoção, terão a vantagem de secontar com uma "platéia" garantida, recompensando o esforço feito para

("') Nos tennos da Lei nO 16/98, de 08.04. 98, a tàsc de atividades teórico-práticas passoupara seis meses c meio na sede do CEJ, doze meses nos tribunais e quatro meses emeio novamente na sede do CEJ, num total, agora, de vinte e dois meses destinadosà fonnução iniciaL

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sua realização e, o que é principal, retribuindo a presença do professor ouexpositor convidado.

4.5. Investigação científicaO CEJ tem dado muita importância e dedicação á investigação

cientifica de todos os aspectos relacionados com a prestação jurisdicio-nal. Dispondo de um Gabinete de Estudos próprio, o CEJ faz sérias pes-quisas não só no campo do Direito, mas muito, também, na realidadesocial em que vive o Juiz e atua o judiciário. As publicações editadas poresse gabinete, como os "Cadernos do CEJ", são enviados a todos os ma-gistrados portugueses.

4.6. Intervenção no sistemaSegundo me disse o Conselheiro Armando Leandro, Diretor

da Casa, o CEJ, através de comissõ~s especiais, vem se dedicando, maisrecentemente, e com muito empenho, á intervenção no sistema políti-co-legislativo de Portugal, por meio da elaboração de anteprojetos delei, de esboços de decretos e de sugestões de resoluções, enviadas, res-pectivamente, ao Legislativo, ao Executivo e ao Judiciário nacionais,tudo destinado a melhorar as condições da prestação jurisdicional emterras portuguesas ..

4.7. A filosofia do CEJPode-se sintetizar a filosofia do CEJ - Centro de Estudos Judi-

ciários de Portugal com as palavras do próprio Df. Laborinho Lúcio,ex-Diretor da instituição: "O CEJ está dedicado á procura de meios deseleção e de formação que realizem os objetivos de uma verdadeiraformação judicial, familiarizando os candidatos com os Juízos e os Tri-bunais, mostrando-lhes que a técnica não resolve tudo numa funçãoque não atua em abstrato, mas sempre atua num vasto quadro de inter-venção de outros homens".

5. FrançaA ENM - École Nationale de la Magistrature, onde tive a honra

de fazer três estágios intensivos, é a instituição encarregada de realizar,

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na França, a seleção, a formação inicial e a formação continua dos magis-trados judiciais ("magistrats du siege") e dos magistrados do MinistérioPúblico ("magistrats debouts ou du parquet").

Funcionando desde 1958, a ENM tem sua sede principal emBordcaux - bela e culta cidade francesa, a quarta em importância no pais,a três horas e vinte minutos de Paris, no rumo sudoeste pelo TGV - e umafilial importantissima em Paris, em plena ile de la Cité, coração históricoda Capital francesa.

Também vinculada, como o CEJ de Portugal, ao Ministério daJustiça, a ENM tem, do mesmo modo, inteira autonomia administrativa efinanceira.

Através de sua unidade parisiense, a ENM trata, ainda, e commuito destaque, do aperfeiçoamento de magistrados estrangeiros, espe-cialmente os da África francófona.

Assim como já referido na parte relativa ao CEJ de Portugal, aEscola Nacional da Magistratura brasileira firmou convênio com a ENMfrancesa, a fim de que magistrados brasileiros possam ali freqüentar cur-sos especiais destinados a juizes estrangeiros.

A magnifica sede da ENM, em Bordeaux, situa-se em modernoe funcional prédio, que contrasta harmoniosamente com as torres medie-vais do antigo castelo-prisão que permanecem na parte de trás do pátiointerno (mais uma semelhança, esta, fisica, com o CEJ português, tam-bém localizado em antigo palácio-penitenciária).

5.1. A seleção dos" Auditeurs de Justice"A seleção para ingresso na École é super-rigida, sem qualquer

pressa, como nos relatou, em 1955, Guy Canivet, então Presidente daComissão Examinadora, envolvendo provas de conhecimentos gerais, exa-mes juridicos escritos e orais e até provas de aptidão física!

Os requisitos de admissão são curiosos: a idade máxima parainscrição á seleção é de 27 anos (com exceção para candidatos já funcio-nários públicos nacionais e municipais) não se cogitando de idade mini-ma. Não é necessário que o candidato seja bacharel em Direito (a imensamaioria o é), podendo ser diplomado em outro curso superior, como me-dicina, economia, administração de empresa, administração pública e ou-

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tros. É bom lembrar que o curso de formação inicial, a ser realizado pelaÉcole, de longa duração, como veremos a seguir, vale mais que muitoscursos de direito convencionais.

5.2. Formação inicialA formação inicial realizada pela École Nationale de la Magis-

trature tem a duração de dois anos e sete meses, dos quais dois anos e ummês são dedicados a uma etapa que os franceses chamam de "generalis-te", composta das seguintes fases:

5.2.1. AclimataçãoLogo após aprovados nos exames de admissão e nomeados, os

"Auditeurs" passam uma semana de "aclimatação" na sede da École emBordeaux. Nesse curto período, conhecem-se uns aos outros, são apre-sentados aos "maitres de conférences" (desígnação dada aos juízes-for-madores do curso l, tomam conhecimento dos regulamentos rígidos dainstituição, do programa de atividades e do seu próprío estatuto de Audi-tores de Justiça.

5.2.2. Estágios exterioresOs dois meses e três semanas seguintes são dedicados aos "es-

tágios exteriores", quando os futuros juizes irão estagiar junto a órgãosda administração pública, a grandes empresas privadas e a importantesveiculas de comunicação como jornais, emissoras de rádio e redes detelevisão. Tudo isso a fim de que os futuros julgadores, passando pelastrês áreas, entrem em contato direto com a realidade da vida no serviçopúblico e na atividade particular e da influência da midia.

5.2.3. Fase teórico-práticaNos oito meses seguintes, os Auditores voltam à École em Bor-

deaux, onde terão aulas práticas ministradas pelos "maitres de conféren~ce" nas quatro jurisdições da justiça comum francesa: civil, família emenores, penal e laboral.

Os "maitres", como em Portugal, são juizes requisitados emtempo integral para o serviço da Escola. Os magistrados de Bordeaux e

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redondezas podem ser requisitados em meio-expediente. E o sistemaadotado é o mesmo de Portugal que, aliás, se baseou no sistema fran-cês: as aulas são dadas "em cima" de processos verdadeiros. Nesse pe-riodo, os Auditores são submetidos a provas parciais avaliadoras de seuaproveitamento.

5.2.4. Estágios jurisdicionais de observaçãoTerminados os oito meses da fase teórico-prática, os Auditores,

como observadores, vão fazer os chamados "estágios jurisdicionais",durante quatorze meses, mediante rodizio, em varas judiciais ("tribunauxde premier degré"), em gabinetes do Ministério Público e em grandesescritórios de advocacia, devidamente credenciados pela Escola.

5.2.5. Estágios de especialização jurisdicionalTerminada a fase "generalista" que tomou 25 meses do curso,

todos os Auditores retomam a Bordeaux por um mês, durante o qualreceberão aulas bem especializadas nas quatro jurisdições (civil, fami-lia e menores, penal e trabalhista) e dali partirão para comarcas especi-almente selecionadas por seu movimento forense, por sua organizaçãoe por seu Juiz titular, que passará a ser um "correspondant" da École, naorientação dos seus futuros colegas. Em 1995, tivemos a oportunidadede visitar com Mme. Isabelle Jégouzo, Diretora Internacional da École,a Comarca de Pontoise, a 40 km de Paris, e vimos ali o funcionamentodo referido estágio na jurisdição civil, com Auditores das turmas de1993 e 1994. Nesse tipo de estágio, o futuro Juiz fica por cinco meses,variando de jurisdição e já agora decidindo sob a orientação do "corres-pondant". É a fase pela qual mais anseiam os "Auditores", pois alijá sesentem julgadores.

5.2.6. Exames finaisTenninados todos esses meses de trabalhos intensos em Bordeaux

e de viagens freqüentes por todo o território francês, os Auditores de Justi-ça são submetidos a exames finais eliminatórios e, então, nomeados "Ma-gistrats du Siége" para os Juízos de primeiro grau. E aí há uma curiosida-de: a legislação francesa exige do novo Juiz um compromisso de prestação

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de serviço de pelo menos dez anos como contraprestação ao investimentoque nele foi feito pelo governo francês através da École. Segundo fomosinformados, até hoje não houve um caso sequer de quem quisesse sair antesdos dez anos. Já houve, sim, quem fosse afastado antes dos dez anos ...

5.3. A formação permanenteEm excelente artigo intitulado "Problemas e Soluções na Pres-

tação da Justiça", integrante de seu livro "Temas de Direito Público"(Del Rey, 1994), o ilustre Ministro Carlos Mário da Silva Velloso chamaa atenção para o fato de que a École Nationale de la Magistrature france-sa continua a cuidar diretamente dos Juizes franceses pelo espaço mini-mo de oito anos após a sua nomeação, ministrando cursos de informática,problemas econômicos, relações de trabalho, medicina legal, direito pe-nitenciário, direitos do homem, estatuto dos estrangeiros, biologia, bio-tecnologia, direito comunitário, etc.

5.4. A filosofia da ENMComo já o fizemos com o Centro de Estudos Judiciários de

Portugal, vamos trazer aqui, a titulo de sintese, a filosofia da Escola Fran-cesa, na palavra abalizada de seu ex-Diretor Christian Deveneaux: "Des-de suas origens, a Formação de Magistrados se debate entre dois impera-tivos contraditórios: a formação de alto nivel nas técnicas jurídicas e oconhecimento aprofundado da sociedade que ccrca o Juiz e dos proble-mas que o afligem".

6. ConclusãoDas visitas demoradas que fizemos ás duas instituições - o CEJ

- Centro de Estudos judiciáríos. de Portugal, e a ENM - École Nationalede la Magistrature, da França - e de tudo que temos lido sobre as duas,verifica-se que ambas são instituições de grande eficiência e de alta res-peitabilidade em seus respectivos países, consideradas mesmo como jáimprescindíveis. Basta ver que nos dois Estados, a politica de seus Go-vernos semipresidencialistas têm inclinado ora para a direita, ora para aesquerda e. no entanto, as duas escolas de magist,atura continuam firmesna sua missão, gozando mais que tudo de autonomia moral.

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Ambas servem perfeitamente de modelo para as escolas dcmagistratura do Brasil, com as devidas adaptações.

Claro que temos pleno conbecimento de que Portugal e Françasão estados unitários, permitindo, pois, a existência, em cada um deles,de somente uma escola nacional de magistrados que, por si, são todostambém nacionais.

Sendo o Brasil um Estado federal, o modelo francês ou o portu-guês serviriam para cada Estado da federação, com suas justiças estaduais,ou para cada região da justiça federal, ficando a Escola Nacional da Ma-gistratura brasileira reservada para a discussão de altos temas juridicos,para a propositura e discussão de nova legislação, e para coordenar otrabalho das escolas estaduais e regionais e não para subordiná-las. Asescolas estaduais e regionais cuidariam da seleção, formação inicial e for-mação permanente e a Escola Nacional somente da formação permanente.

Seguindo tais modelos ou outros, achamos que às escolas bra-sileiras cabe incutir no Juiz a seguinte filosofia: "Dar consciência aosfuturos magistrados do poder da ação judiciária: o poder é enorme, mas,ao mesmo tempo, precisam eles verificar que esta função, que tem tantopoder, se destina a uma finalidade social que limita esse próprio poder".

Estamos certos de quc se trata de meta dificil de se atingir, qualseja a mais perfeita forma de seleção e de formação dos magistrados,porém, no dizer do grande Norberto Bobbio, "se não nos propusermosuma meta, não estaremos nem ao menos a caminbo dela".

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A FUNÇÃO POLÍTICA DA MAGISTRATURA

José Renato NaliniJUIZ do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo e Diretor Adjunto

da Escola Nacional da Magistratura

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A FUNÇÃO POLÍTICA DA MAGISTRATURA

José Renato Nalini

ÍNDICE: I. Introdução2. A situação brasileira3. A morte do positivismo4. O mito da apoliticidade do juiz5. Qual a função política do juiz brasileiro?

lo IntroduçãoA teoria da separação dos poderes surgiu como alternativa à

exploração do homem pelo detentor do mando. A tendência ao abuso éintuida por todos os pensadores e jà Aristóteles advertira sobre a necessi-dade de separar as funções como forma de disciplinar o poder. Tarefaretomada por Montesquieu, na sua clàssica proposta até hoje sufragadapor muitas Constituições vigentes.

Segundo essa concepção, a lei seria a realidade mais significa-tiva. Em tomo a ela gravitariam as funções do Estado. A mais relevanteseria a cometida ao confeccionador da lei. O Palarmento seria a funçãoprevalente. As demais estariam jungidas à sua atuação: o Executivo seriao encarregado de aplicar a lei sem controvérsia, o Judiciàrio o responsà-vel por sua aplicação diante de situações conflituosas.

A visão de um Judiciàrio como servo da lei se tomou tradicio-nal. O receio de que os parâmetros objetivos da norma fossem substitui-dos pelo subjetivismo da vontade judicial contribuiu para que ao juizfosse reservada uma parcela minima de autonomia na aplicação concretada vontade legislativa. Se o legislador não fora suficientemente argutopara prever toda a concreção em seu design nonnativo, isso não seriaproblema do julgador. Dura lex. sed lex.

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Toda a culturajuridica ocidental foi elaborada à luz desse dog-matismo. Com agravantes para um Estado colonizado como o Brasil,sempre abeberando-se em fontes alienigenas. A própria França, ondesurgiu o modelo clássico da separação de funções, teve uma Revoluçãoem 1789 na qual um dos objetivos - e não o menos importante - erareduzir o poder do juiz. E é por isso que a Constituição Francesa vigen-te consagra a regra de que o Presidente da República é o garantidor daautoridade das decisões judiciais" Não é necessário grande perspicáciapara concluir que uma autoridade que precisa da chefia de outro poderpara garantir as próprias decisões, longe está de ser considerada autên-tico poder.

Não se discute, portanto, em França e em outros Estados daEuropa continental, o problema da função politica da Magistratura, nosexatos termos como se pode discuti-la no Brasil.

2. A situação brasileiraO BrasiL ao menos desde sua primeira Constituição Republica-

na, assumiu com ortodoxia o dogma da separação de poderes. A Consti-tuição de 5. 10.1988 consagra a existência de três poderes harmônicos emdependentes entre si c, mais ainda, transforma esse postulado em C/á,,-.\"lIla pétre", insuseetivel de modificação constitucional'.

Bastaria essa leitura singela e literal do texto fundante para aconclusão de que o juiz brasileiro exerce fimção política. Também ele édestinatário de todos os comandos que o constituinte endereçou ao Esta-do. Não está ele desobrigado da tarefa de construir um Estado justo, soli-dário e fraterno. imune a preconceitos e com a pobreza redutivel a estági-os eompativeis com a dignidade da pessoa humana'-

Todavia. existe outra vertente a ser examinada. O século XX,que está em seus estertor~s. sepulta consigo algumas verdades que nele

1- Artigo 64 da atual Constituição Francesa, adaptada em 1958: Le préside11t de laRéplIbliqlfe e.'lrgaram de I 'independance de f 'alltoritú judiciaire.

2- Constituição da Repúhlica hxh.:rativ<l do Brasil de 5 de outubro de 1988, artigo 2" eartigo 60, ~ --l". inciso 1lI.

3- Constituiç<1o da República Fl.xh:rativ<l do Bmsil de 5 de outubro de 1988, artigo 3'"incisos de I a IV.

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medraram e não sobreviverão ao terceiro milênio. Uma delas é a da infa-libilidade e onipotência legislativa.

3. A morte do positivismoO positivismo está morto. De há muito já se não pode afirmar

que a lei seja expressão da vontade geral ou relação necessária extraídada natureza das coisas. Na sociedade massificada, de representatividadeviciada, a lei passa a ser o compromisso posstvel entre forças que se di-g1adiam num Parlamento submisso á onipotência do Governo.

As leis são respostas casuÍSticas a necessidades contingentes econjunturais. Perderam o seu signo de generalidade e não mais se pres-tam a servir de parãmetro a situações análogas no porvir. A obediênciacega do juiz à lei já poderia ser questionada quando a normatividade osten-tava os atributos de preceito geral de conduia. Certamente, ela será re-chaçada quando confrontada com esta nova espécie de lei.

O juiz não pode e não deve ser escravo desse tipo de soluçãonormativa. Ao contrário, reclama-se-Ihe extirpar do ordenamento qual-quer dicção fundada em interesses subalternos e transitórios. E o juizbrasileiro dispõe de inequívocos poderes, alicerçados em letra expressada Lei Maior, para deixar de aplicar todo texto normativo incompatívelcom a Constituição.

Nem os mais acerbos criticos da Justiça Brasileira recusam aojuiz o poder de afastar a incidência das normas írritas ao conteúdo explí-cito ou implíciio da Carta Federal. Isso não é aliernatividade ou sacrilé-gio jurídico. É conduta reservada ao juiz pelo mais ortodoxo dogmatis-mo. O juiz é, primeiramente, o juiz da constitucionalidade das leis. Antesde fazê-las incidir sobre o caso concreto, deve perquirir de sua compati-bilidade com aquela que é seu fundamento de validade: a Constituição daRepública. Ao fazê-lo, estará atuando para assegurar a integridade e aharmonia do sistema jurídico. E estará cumprindo com sua missão cons-titucional, atendendo à vocação que lhe reservou o constituinte. Cuja von-tade estará dessa maneira preservada, mesmo que à custa da vontade dotransitório detentor do poder.

Sim. Ao afastar a voniade provisória da vontade permanente,expressa na Constituição, o juiz estará atendendo à voz da nacionalida-

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de, perene enquanto se não desfizer o pacto. Vozda nacionalidade que éinsuscetível de ser ignorada quando contrariada pelos fugazes represen-tantes de parcelas, ainda que significativas, desse povo. Povo que se fezouvir e ganhou expressão no texto fundante, este sim conformador davontade judicial e sobreposto a qualquer outra normatividade, a ele ínsi-tamente inferior.

Um outro aspecto da falência normativa é de ser salientado. Opapel propriamente legislativo do parlamento é paralisado pela tecnici-dade crescente dos textos que dele exigem competência que não tem. Emmuitos países, a lei há muito tempo já não é feita pelo Parlamento, maspor tecnocratas politicamente irresponsáveis'. O jugo de um Executivoforte garante o acordo de lideranças e a aprovação do texto sem discus-são. Isso não apenas debilita a função de contra-poder do Legislativo,distanciando governante e governado. Mas, principalmente, a eficáciados textos parlamentares é perturbada pelo jogo das alianças e das coali-zões que transforma a lei muito menos -em expressão de uma vontade doque o produto restante a múltiplas recusas.

Ora, "o compromisso ama os termosfluidos e as disposiçõesambíguas, que não revelam o desacordo. A lei se torna um produtosemi-finalizado que deve ser terminado pelo juiz"'. Como sustentar-se, diante desse quadro, não deva o juiz investir-se de sua condição deintérprete da vontade coletiva, titular da missão de conferir à lei o sen-tido possível?

4. O mito da apoliticidade do juiz'É verdade que vozes respeitáveis ainda se fazem ouvir - e com

reconhecido acatamento - em sentido antípoda. Para estas, a atividade dojuiz, como atuação de órgão autônomo e independente, encarregado dafiel aplicação da lei, é atividade técnica e, por definição, apolitica.

4- A constatação é de ANTOINE GARAPON, um dos mais lúcidos pensadores sobre aMagistratura francesa, no livro "O guardião das promessas-Justiça eDemocracia ",Éditions Odile Jacob, Paris, 1996, p_ 37_

5- ANTOINE GARAPON, op. Cit., idem, ibidem.6- Sobre o tema, consnltar "O juiz e sua ideologia política", de JOSÉ RENATO NALlNI,

in "Cadernos Liberais", volume 50, do Instituto Tancredo Neves.

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Essa apoliticidade, lembra RUIZ PÉREZ, "é assumida comosinônimo e condição de imparcialidade e independência do juiz e, por-tanto, como principio fimdamental de sua deontologia profissional"'.Exacerbação dessa postura se exterioriza na tendência a se converter ojuiz num recluso, distanciado da realidade vivenciada por seus justiciá-veis, sob argumentos de que a comunidade é a arena das disputas indivi-duais, das quais o julgador deve estar ausente. Ou a visão estreita aindacontida nos estatutos da Magistratura, proibindo ao magistrado qualqueratuação suscetível de ser considerada como de coloração politica'. O ris-co do ativismo politico é considerado potencialmente nocivo á própriasubsistência da Magistratura como poder do Estado.

Essa é uma posição eminentemente politica. Uma politica desubserviência ao governo, aos grandes interesses, ao capital sem pátria,tipico à globalização que também pode ser traduzida como competiçãoda barbárie. Não há melhor refugio do que esse para o juiz insensíveldiante da desvalia de seus semelhantes, desinteressado de atuar comofator de resgate de seus irmãos para condições menos indignas de sobre-vivência, empenhado apenas em ver asseguradas as mediocres mesqui-nharias de um cargo ainda considerado de privilégio.

Ao recusar-se qualquer função politica, o juiz estará confortadopela crença de estrito cumprimento do dever e conservará sua consciên-cia em prazeroso estado de letargia.

Ao contrário, segundo uma orientação mais comprometida eprogressista, a atividade judicial ostenta uma dimensão politica inequi-voca'. Primeiro, porque julgar implica em fazer opções valorativas me-

7- JOAQUÍN S. RUIZ PÉREZ, "Juez y Sociedad", Editorial Temis, S/A, Bogotá,Colômbia, 1987,p. 166.

8- E não é só o impedimento à vivência político-partidária, inscrito na LOMAN, comotambém a vedação à participação em qualquer sociedade e mesmo, por exemplo, emcargos científicos ou didático-pedagógicos em Faculdades de Direito.

9- Consultar LillGI FERRAJOLl, "Magistratura democrática y el ejercicio alternativode la función judicial", Departamento de Filosofia dei Derecho, Universidad deGranada, febrero, 1977, folios 1 y 2 e LÓPEZ CALERA, "sobre el alcance teôricodei uso alternativo deI derecho", no volume "Sobre el uso alternativo dei derecho",Fernando Torres, Editor, Valencia, 1978, p. 18.

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vitáveis. A lei não tem sido expressão de limpido critério de justiça, maso predominio da vontade dominante. É forma evidente de politica. Apli-car rigidamente a lei não deixa se ser opção politica. A opção do conser-vadorismo mais retrógrada e hipócrita.

Depois, porque foi a própria comunidade, pela voz autorizadade seus representantes legitimos, reunidos em Assembléia Nacional Cons-tituinte, que fez do Judiciário um poder. E não existe poder apolíticodentro do Estado.

A função judicial é, portanto, verdadeira atuação politica. Porprovir de um poder político e por consistir em fazer escolhas políticasdentro de uma normatividade que não deixa de ser, também ela, fruto deumjazer político.

Acrescente-se outra reflexão suscitável pelo tema. O Judiciáriose converteu, nestas últimas décadas, à instância política por excelência.O Estado cedeu lugar ao seu modelo tradicional, vencido pela formaçãodos grandes blocos nacionais e pela força do capital sem pátria. O concei-to de soberania se relativizou. O processo passou a ser forma legitima dediálogo entre o cidadão e o que restou do Estado.

Não se reserva ao homem comum a possibilidade de diálogopermanente entre o Executivo - distante e imperial - ou o Legislativo -quase sempre representando um estamento muito direcionado e especifi-co nas casas parlamentares. O juiz é a autoridade mais próxima, aquela aque se recorre sem outros formalismos que não a intermediação do titularda capacidade postulatória. O processo legitima, perante a cidadania, oque restou do Estado. É, para muitos, o único elo entre o individuo e aforma institucionalizada de poder.

Isso explica, de certa forma, o recrudescimento da litigiosida-de, a multiplicação das lides, a redescoberta do Judiciário por uma po-pulação faminta de dignidade. E isso também reforça a dimensão poli-tica do juiz brasileiro, que precisa estar capacitado a servir como fatorde resgate para os excluidos. Quando se fala em excluidos, pense-senão apenas na legião dos miseráveis. Mas nos excluídos de participa-ção, nos excluidos de representatividade, nos excluidos em sua vonta-de de ditar os rumos para a nação que completará, em breve, seu pri-meiro meio milênio.

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5.Qual a função política do juiz brasileiro?É urgente a busca de um novo módulo de independência para o

juiz. Assim como é falso dizer-se que o juiz não tem legitimidade porquenão é eleito'., assim também falacioso afirmar-se que a liberdade do juizprovém de sua apoliticidade. A apoliticidade do juiz não é senão um pos-tulado ideológico.

É mister preservar o juiz do próprio Estado, ou do que restadele, e do aparato do poder, pois o conúbio incestuosos entre Governo eMagistratura faz ruir o dogma da separação, surgido da necessidade degarantir a liberdade individual. Mas é mister defendê-lo, também, do cantode sereia da mídia. Nem sempre a midia reflete a opinião do povo. E,segundo COUTURE, o povo é o juiz dos juízes.

Muito já se tem avançado no Brasil. Um dos reflexos mais eviden-tes é a perda do sentido da imunidade. Ao Estado Brasileiro, com poucaexperiência em República e mais afeiçoado à gestão imperial da coisa públi-ca, sempre abominou subordinar-se à sua própria Justiça. Dai os privilégiosde foro, os prazos em quádruplo, a aparente sensação de estar acima do cida-dão comum quando chamado a responder em juizo por suas inadequações.

A partir de um decênio' e também por força da Constituição-cidadã, aquela que mais acreditou na solução jurisdicional das controvér-sias - está sendo vivenciado que um juiz de primeiro grau pode paralisaruma licitação, pode julgar alguém inabilitado a conservar um cargo polí-tico, pode indiciar criminalmente o poderoso. Isso significa não existirpessoa imune ao Judiciário.

O fenômeno é ainda incipiente. Mas já produz resultadosll Éclaro que isso tem um preço: a tentativa de introdução da súmula vincu-10- Essa a justificativa francesa para explicar seu juiz na condição de mera autoridade,

que depende do Presidente de um outro poder para ver garantidas as suas decisões.Óbvio que eleição não é o único critério legitimador de wna autoridade. O juizbrasileiro se legitima por seu recrutamento democrático mediante concurso público epela fundamentação explícita de suas decisões, haurindo legitimidade ainda porqueprevisto como poder judicial pelo constituinte, por vontade soberana do povo.

11~LUÍS NASSIF, jornalista crítico da Justiça Brasileira, anotava como ponto positivoda possibilidade até então inusitada de se trazer o detentor de poder político aosTribunais, a resignação, de parte dos poderosos, perante esse fato revelador de umaconsciência nova do cidadão brasileiro diante da atuação de seus juízes. Ver Folha deS. Paulo de 2.1.1998, artigo "Um novo padrão de Justiça".

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lante e a ressurreição da avocatória, sob argumento de correção da moro-sidade do Judiciário, constituem explicável reação ao poder inédito dojuiz brasileiro. Outros sinais repercutem nas discussões parlamentares enos mass media, quanto aos privilégios dos magistrados.

O juiz ganhou espaço na midia. E isso mostra que ele está pro-tagonizando a cena juridica, da qual não pode continuar a ser inermeespectador ou inexpressivo figurante.

Dele se está exigindo uma postura mais firme na defesa dosinteresses das minorias, embora convicto de que a democracia é o gover-no da maioria. Dele se reclama singular exercício da tolerância, valorinsubstituivel numa sociedade que se proclama e se quer pluralista. Delese espera consciência na assunção de novas funções, não menos dignasdo que aquela de ser a boca da lei: o juiz administrador das situaçõesconflituosas, do juiz gestor dos interesses, do conciliador, do pacificador,do vidente do futuro, do verdadeiro guardião das promessas não cumpri-das por um Estado-providência cuja agonia todos presenciam.

Para desincumbir-se adequadamente dessas novas tarefas, o juizhá de se preparar constante, séria e devotadamente. Mediante a formaçãoespecífica propiciada pelas Escolas da Magistratura, seja por uma pós-graduação convencional e por estudos a serem propiciados por aquelesque estão atentos às necessidades do magistrado brasileiro". Mas tam-bém e principalmente, haverá de semear, fazer germinar, acalentar e pro-ver de sustento, algo sem o que não se exerce dignamente a Magistraturaem qualquer lugar do universo: a éticau

12- o Ministro sÁL VIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, do Superior Tribunal de Justiçae Diretor da Escola Nacional da Magistratura, está em tratativas para implementaruma Pós-Graduação Virtual aos Juízes Brasileiros, mediante acesso por rede deinfovias, tipo Internet, com reconhecimento das autoridades do Ministério daEducação. É a constatação da inviabilidade prática, ou, ao menos, da enonnedificuldade de todo magistrado se subordinar à pós-graduação convencional, sobretudoaquele radicado no interior, distante dos grandes centros universitários.

13. Sobre a importância da ética na formação do Magistrado e no desempenho daMagistratura, consultar Ética Geral e Profissional, de JOSÉ RENATO NALINI,RT, SP, 1997.

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o FUTURO DO DIREITOPROCESSUAL CIVIL

Cândido Rangel DinamarcoDesembargador aposentado

do Tribunal de Justiça de São Paulo

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o FUTURO DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Cândido Rangel Dinamarco

SUMÁRIO: I. Do passado ao futuro: três fases metodológicas na históriado processo civil - 2. O constitucionalismo na ciência pro-cessual e a abertura para a perspectiva metajuridica doprocesso civil - 3. Influências do processo da common law -4. Albores de uma integração latino-americana (prognósti-cos e limitações) 5. Duas macrotendências latino-america-nas - 6. Os modelos latino-americanos, seus problemas co-muns e exigências comuns de modernização -7. A modernização processual: três aspectos centrais. 8.Tendências políticas do processo civil moderno - 9. Uni-versalização e coletivização da tutela jurisdicional - 10. In-formação e participação - 11. O juiZ-cidadão e as reformasprocessuais. 12. Aspectos sistemáticos - 13. Pela efetivi-dade da tutela jurisdicional- 14. Fatores técnicos (as técni-cas processuais e a técnica a serviço do processo) - 15. Sim-plificação e aceleração - 16. Sintese e conclusões

1. Do passado ao futuro: três fases metodológicas na históriado processo civil

"A categoria do passado só existe enquanto há possibilidadede futuro, o qual dá sentido ao presente que em passado se converte"(Miguel Reale).' Essa reflexão legitima e encoraja a busca das tendênciasdo processo civil moderno e razoável previsão de suas evoluções em fu.turo relativamente próximo, a partir da percepção das forças que vêmatuando sobre os modelos processuais dos nossos países e sem o temorde arriscar-se em temerários exercicios de futurologia ou adivinhação.

1- Cfr.Teoria tridimensional do direito, S. Paulo, Saraiva, 1.968, capo V, ~ ]', esp. p.97.

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Tal seria mais dificil se o processo civil atual vivesse um periodo deestagnação e conformismo, sem a evidência de forças atuando sobre sualei e sua doutrina, mas tal não é o que acontece neste continente. Assignificativas inovações legislativas ocorridas nas últimas décadas, coma precedência e acompanhamento de uma atividade doutrinária muitointensa, põem o observador atento no epicentro de acontecimentos ra-zoavelmente definidos e analisados, com a possibilidade de deteminar osrumos de uma evolução possivel e já insinuada.

O processo civil moderno é o resultado de uma evolução que nacultura de origem romano-germânica desenvolveu-se de um longo perío-do no qual o sistema processual era encarado como mero capitulo dodireito privado, sem autonomia, e passou por uma riquissima fase de des-coberta de conceitos e construção de estruturas bem ordenadas, mas sema consciência de um comprometimento com a necessidade de direcionaro processo a resultados substancialmente justos. Só em tempos muitorecentes, a partir de meados do século XX, começou a prevalecer a pers-pectiva teleológica do processo, superado o tecnicismo reinante por umséculo. Falamos então num período de sincretismo, num período autono-mista ou conceitual e, finalmente, no período teleológico ou instrumen-talista. Só passou a existir um conhecimento organizado dos fenômenosprocessuais e, portanto, uma verdadeira ciência do processo civil, na se-gunda dessas fases; no sincretismo inicial os conhecimentos eram pura-mente empíricos, sem qualquer consciência de princípios e sem concei-tos próprios. O processo mesmo, como realidade da experiência peranteos juízos e tribunais, era visto apenas em sua realidade fisica exterior eperceptível aos sentidos, ou seja, ele era confundido com o mero proce-dimento quando o definiam como uma sucessão de atos e nada se diziasobre a relação jurídica entre seus sujeitos.

Uma das maís importantes características desse sincretismo ini-cial responsável pela colocação do sistema processual nos quadrantes dodireito privado, era a visão do processo como mero modo de exercíciodos direitos. Para ilustrar esse pensamento disse um conceituado roma-nista ítaliano (Vittorio Scialoja): "io sono proprietário di una cosa: pos-so venderia, donarla, posso costituirvi servim, ipoteche; posso compiereinsomma una longa serie di atti giuridici, e nel compierli io esercito la

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mia proprietà, perche la proprietà e il pressuposto della possibilità dicompiere questi atti giuridici. ... Tra questi atti giuridici e compresaI'azione con cui si garantisce il rapporto giuridico: chi intenta I'azioneesercita il proprio diritto, appunto perche la di/esa dei diritto e un ele-mento costitutivo dei diritto stesso ".'

A segunda dessas fases (autonomista, conceitual) teve origemna famosa obra com que em 1.868 Oskar von Bülow proclamou em ter-mos sistemáticos a existência de uma relação jurídica toda especial entreos sujeitos principais do processo - juiz, autor e réu - e que difere darelação jurídico-material litigiosa por seus sujeitos (a inclusão do juiz),por seu objeto (os provimentos jurisdicionais) e por seus pressupostos(os pressupostos processais). A sistematização de idéias em tomo da re-lação jurídica processual conduziu às primeiras colocações do direitoprocessual como ciência, afirmando o seu método próprio (distinto dométodo concernente ao direito privado) e o seu próprio objeto. Essas idéiasfundamentais abriram caminho para um fecundíssimo florescer de refle-xões e obras cientificas, especialmente da parte de alemães, austríacos eitalianos, e inicialmente voltadas a um dos conceitos fundamentais daciência processual, a ação. Construiram-se ricas e variadas teorias, todasconvergindo à afirmação de sua autonomia em face do direito subjetivosubstancial. Tomou-se consciência dos elementos identificadores da ação(partes, causa de pedir, pedido), elaborou-se a teoria das condições daação e dos pressupostos processuais, formularam-se princípios. Os ale-mães dedicaram-se com particular interesse ao árduo tema do objeto doprocesso, seja em obras gerais ou monografias, chegando a soluções maisou menos estabilizadas.

A obra de Von Bülow' foi precedida de três estudos sobre aactio romana vista da perspectiva do direito moderno, nos quais já selançaram as bases para a percepção da autonomia da ação em confrontocom aquele conceito rornanístico. Trata-se dos escritos que envolveram

2- C/r. "Esercizio e difesa dei diritti - procedura civile romana ", ~ ]0, pp. ]5-16.3- Die Lehre von der Prozesseinreden und dte Processvoraussetzungen (Teoria dos

pressupostos processuais e das exceções ditatoriais), Giesen, ed. Roth, 1.868 (trad.Miguel Ángel Rosas Lichtschein, B.Aires, Ejea, 1.964.

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em famosíssima polêmica os romanistas alemães Bernhard Windscheide Theodor Muther'

Foi nessa segunda fase que os processualistas se aperceberamde que o processo não é um modo de exercício dos direitos, colocado nomesmo plano que os demais modos indicados pelo direito privado, mascaminho para obter uma especial proteção por obra do juiz - a tutela ju-risdicional. O objeto das normas de direito processual não são os bens davida (cuja pertinência, uso, disponibilidade etc. O direito privado rege)mas os próprios fenômenos que na vida do processo têm ocorrência, asaber: ajurisdição, a ação, a defesa e o processo mesmo.

Essas novas idéias, a partir de então cultivadas, puseram fim aoperiodo sincrético do direito processual. É desse periodo a clássica con-ceituação privatística da ação como algo inerente ao próprio direito sub-jetivo material (daí, teoria imanentista), ou o próprio direito subjetivoque, quando violado, adquire forças para buscar sua restauração em viajudiciária. Actio autem nihil aliud non est, quam jus persequendi judicioquod sibi debetur. Daí a indicação da ação como um direito adjetivo,dado que os adjetivos não têm vida própria e só se explicam pela aderên-cia a algum substantivo. A alusão ao próprio direito processual comodireito adjetivo era sinal da negação da autonomia deste.

Suplantado o periodo sincrético pelo autonomista, foi precisoquase um século para que os estudiosos se apercebessem de que o siste-ma processual não é algo destituído de conotações éticas e objetivos aserem cumpridos no plano social, no econômico e no político. Preponde-rou por todo esse tempo a crença de que ele fosse mero instrumento dodireito material apenas, sem consciência de seus escopos metajuridicos.Esse modo de encarar o processo por um prisma puramente jurídico foisuperado a partir de quando alguns estudiosos, notadamente italianos (des-taque a Mauro Cappelletti e Vittorio Denti), lançaram as bases de ummétodo que privilegia a importância dos resultados da experiência pro-cessual na vida dos consumidores do serviço jurisdicional, o que abriucaminho para o realce hoje dado aos escopos sociais e políticos da ordem

4- C/r. Giovanni Pugliese, "Introduzione" a Polemica infamo ali' "actio ", Florença,Sansoni,1.954.

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processual, ao valor do acesso àjustiça e, numa palavra, à instrumentali-dade do processo.

Tal é o momento atual da ciência do processo civil, dita instru-mentalista ou teleológica, em que se tem por essencial definir os objeti-vos com os quais o Estado exerce a jurisdição, como premissa necessáriaao estabelecimento de técnicas adequadas e convenientes.

Tais são os trilhos pelos quais caminham hoje as tendências doprocesso civil em busca de sua própria legitimação pelos resultados queproduz, com aumento da acessibilidade aos meios de tutela, deformaliza-ção racional dos procedimentos, aceleração dos meios de defesa e -numa palavra - efetividade da tutela jurisdicional. A previsão do que virà- ou poderà vir - em futuro próximo tem por fundamento racional essalinha histórica e a força das tendências assim reveladas, vindas do passa-do, atuando no presente e pressionando as escolhas de caminhos para ofuturo previsível.

2. O constitucionalismo na ciência processual e a aberturapara a perspectíva metajurídica do processo civil

Um significativo fator de abertura para as preocupações éticascom o processo foi o crescimento do interesse de parte da doutrina pelostemas constitucionais do processo civil e verdadeira imersão de algunsno direito processual constitucional. Enquanto os processualistas per-manecessem no estudo puramente técnico-juridico dos institutos e meca-nismos processuais, confinando suas investigações ao âmbito iotemo dosistema, era natural que prosseguissem vendo nele mero instrumento téc-nico e houvessem por correta a afirmação de sua iodiferença ética. Quan-do passa ao confronto das normas e institutos do processo com as gran-des matrizes político-constitucionais a que estão filiados, é todavia natu-ral que o estudioso sinta a necessidade da critica ao sistema, inicialmentefeita à luz dos principios e garantias que a Constituição oferece e impõe -e com isso està aberto o caminho para as curiosidades metajurídicas de-correntes da conscientização dos valores que estão à base dessas exi-gências constitucionais.

Assim, p.ex., o estudo puramente técnico do procedimentonão vai além da descrição dos atos processuais, exigências formais

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que os condicionam, das interligações entre eles e conseqüências dosdesvios eventualmente praticados. O direito processual constitucio-nal põe o estudo do procedimento sob o enfoque da garantia do devi-do processo legal e com isso o estudioso conscientiza-se de que asexigências do Código constituem projeção de uma norma de maioramplitude e mais alta posição hierárquica, sendo indispensável umainterpretação sistemática. Dai para entender que o procedimento é ummeio técnico para a efetividade do postulado democrático da partici-pação, o passo é pequeno e já se vai chegando á percepção das gran-des do que se chama justo processo.

3. Influências do processo da common lawQuando o processo civil de origem romano-germânica co-

meçou a modernizar-se, duas das mais significativas linhas de suamodernização vieram por inspiração colhida na experiência da norte-americana da common law. Uma delas foi o extremo informalismo notrato de causas de pequeno valor econômico, que no Brasil conduziu áprimeira lei sobre o processo das pequenas causas e seus juizados (lein. 7.244, de 7.11.84); outra, o menor apego dos norte-americanos aregras individualistas de legitimidade ativa e limites subjetivos da coisajulgada, que propiciou a primeira lei brasileira disciplinadora da tute-Ia coletiva (Lei da Ação Civil Pública: lei n. 7.347, de 24.7.85). Essasduas verdadeiras retificações de rota são igualmente significativas nadeterminação dos rumos do processo civil brasileiro, mas doutrinaria-mente a segunda delas é mais rica que a primeira, porque importa norepensamento de velhos dogmas e mesmo uma releitura do princípiodo contraditório.

A Lei das Pequenas Causas e agora sua sucessora, a Lei dosJuizados Especiais (lei n. 9.099, de 26.9.95), mitigaram consideravel-mcnte as exigências formais do procedimento, seja para abrir caminhoàs manifestações mais espontâneas das partes, seja transigindo na tradi-cional preocupação por uma rigorosa documentação dos atos do pro-cesso. Permite-se, por exemplo, a propositura oral da demanda na se-cretaria dos Juizados, sem o formalismo de uma petição inicial, precisadescrição da causa de pedir etc., sendo admitido que o próprio litigante

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o faça diretamente, sem a intermediação de advogado. A documenta-ção dos atos é feita mediante emprego dos meios conquistados pelamodema tecnologia, sem exigência de transcrição integral e literal dosdepoimentos testemunhais e lavratura de termos, assinatura de todos(Lei n. 9.099, art. 36). Nesse procedimento extremamente oral e con-centrado, a rapidez com que as coisas se passam dispensa as solenesdocumentações inerentes a procedimentos destinados a durar anos eanos, com possiveis substituições do juiz e sempre com o grande riscode perda da memória dos fatos acontecidos em audiência. Acima detudo, do processo que se faz perante as small c/aim 's courts, o sistemadas pequenas causas brasileiras captou o espirito de confiança no juiz eno que ele afirma e atesta - e daí a dispensa do relatório, que nas sen-tenças tradicionais é absolutamente indispensável (Lei n. 9.099, art. 38;v. CPC, art. 458, inc. I).

As duas leis portadoras de disciplinajurídica para o processodas pequenas causas (a primeira e a vigente) dispuseram-se a afrontar odogma da absoluta indispensabilidade da defesa técnica, ao permitiremque, emcausas de valor não superior a vinte salários minimos, emprinci-pio possam os litigantes defender-se por si mesmos, sem a necessáriaparticipação de advogado.

As leis brasileiras que disciplinam a tutela coletiva, especi-almente voltadas aos valores do ambiente e do consumidor, trazemdas c/ass actions norte-americanas essa postura diferente em face doprincípio do contraditório, que ali não é visto como fonte de umaestrita exigência de participação de todos os titulares de um possíveldireito, como requisito de validade da sentença e sua imposição a to-dos. A iniciativa e participação de todos e cada um é substituída pelaoutorga de uma legitimidade adequada a instituições e entidades or-ganizadas, de ~odo que, promovido o processo pela pessoa assim le-gitimada (no Brasil, o Ministério Público, associações etc.: v. LACP,art. 5°; COC, art. 81), considera-se que os titulares do direito estive-ram ideologicamente no processo e isso basta para que a garantia docontraditório esteja satisfeita. A legitimacy ojrepresentation pelo autorideológico (ideological plaintif]) é um instrumento substitutivo dalegitimidade individual consagrada nos diplomas tradicionalmente

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individualistas de origem romano-germânica: ela atua em prol da agi-lidade da tutela a grupos ou coletividades, o que permite inclusiveque a sentença venha a adquirir autoridade de coisa julgada erga om-nes ou ultra partes conforme o caso (CDC, art. 103). No Brasil oCódigo de Defesa do Consumidor somente exclui a coisa julgada, nassentenças coletivas que julgam improcedente o pedido de condenaçãoreferente a direitos individais homogêneos - com o que as ações indi-viduais continuam admissiveis apesar do insucesso da coletiva pro-movida pela entidade legitimada (art. I 03, ~ 2°).

Nas class action americanas os plaintiffs agem como represen-tantes de um grupo de pessoas significativamente numerosas, mediantedemandas típicas do grupo destinadas a remover os efeitos de danos so-fridos pelo grupo todo e em situações nas quais as iniciativas individuaisseriam impraticáveis (Hazard-Taruffo)'

O que há de rico e promissor nessas técnicas é a proposta desua própria generalização, para que o sistema processual como um todopossa desvencilhar-se dos rigores de vetustas regras herdadas dos ro-manos, em si mesmas responsáveis pela segurança do processo mas queem certa medida impedem a agilidade que se pretende na preparação eoutorga da tutela jurisdicional. O legislador moderno, comprometidocom o método que se qualifica como processo civil de resultados, optapor ousar prudentemente, renunciando a exigências que retardam a tu-teia e permitindo soluções e condutas que, sem criarem grandes riscosde males prováveis, concorrem para a maior aderência do processo àrealidade econômica dos conflitos e dos litigantes, com maior aptidão aabreviar a penosa duração dos juízos. A tradicional divisão dos siste-mas jurídicos emfamílias, cada qual com suas caracteristicas própriase essencialmente diferente das demais (René David), é suplantada pclaglobalização da cultura e das relações humanas, sendo lícito que umafamília jurídica absorva as conquistas de outra e valha-se de experiên-cias desenvolvidas em outro contexto sistemático. Não se trata de subs-tituir um sistema por outro, e muito menos de renunciar a princípios,

5- C/r. Geotfreyc. Hazard,jr. e Michele Tamffo, American civil procedure, NewHavene Londres, Yale Univ. Press. capo VIII, esp. pp. 160.161.

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mas de adequar o modo como incidem e com isso caminhar para umprocesso mais justo e mais efetivo.

4. Albores de uma integração latino-americana (prognósticose limitações)

A individualidade de cada modelo processual nacional no con-texto mundial e especiahnente no latino-americano começa a ser questio-nada, neste fim de século, pelas forças de uma incipiente coesão conti-nental que ainda não se sabe a quais resultados conduzirá. Paralelamenteaos esforços desenvolvidos por uma união de interesses, notadamente noplano econômico (Mercosul), progridem os estudos promovidos pelo Ins-tituto Ibero-Americano de Direito Processual, destinados a enriquecer aordem juridica de cada um dos países envolvidos. Das teses, propostas ediscussões travadas nas Jornadas que se realizam bienalmente resultou aredação do Código de Processo Civil Modelo para a América Latina,que, sem ser lei e portanto não tendo força imperativa, procura ser umafonte inspiradora de reformas. Mais objetivamente que num compêndio,as propostas equacionam-se ali segundo as estruturas de um verdadeirocódigo e em linguagem legislativa. É propósito de seus autores oferecerum modelo capaz de ser assimilado no sistema jurídico e na cultura detodos os países integrantes da comunidade jurídica integrante do Institu-to Ibero-Americano.

É uma questão muito delicada essa, do modo como melhor con-vém aproximar duas ordens juridico-processuais. Como se tem afirmadoem congressos e escritos, unificar todos os países sob uma só legislaçãoé praticamente impossível porque isso dependeria da unificação do po-der, com renúncia á soberania de cada um (sequer a Comunidade Euro-péia se propõe a oferecer soluções assim tão radicais). É também muitodificil uniformizar os sistemas processuais, plasmando-os todos rigoro-samente segundo um modelo comum, dadas as tradições juridicas de cadaum, sua estrutura judiciária e modos como em cada pais se equacionamas relações entre os Poderes do Estado. A solução é compatibilizar ossistemas, uniformizando disposições somente na medida do que for poli-tica c culturalmente suportável. Esse tema foi recentemente desenvolvi-do no Congresso Internacional de Direito Processual, realizado em se-

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tembro de 1.995 na cidade italiana de Taormina, sob o patrocinio da As-sociaçãooInternacional de Direito Processual, com análoga conclusão (es-pecialmente no relatório de ltalo Andolina)6

A necessidade de compatibilizar sistemas processuais é tantomaior quanto mais forte a integração dos paises numa união com obje-tivos predeterminados, ainda que preponderantemente econômicos. Aproliferação dos grandes e pequenos contratos internacionais e a incre-mentada transmigração de empresas e capitais de um pais para outrogeram a necessidade de intensificar a cooperação processual interna-cional, dados os conflitos internacionais que essas relações propiciam.A necessidade de fazer citações e intimações, de promover execuções eproduzir provas em território estrangeiro, só pode ser satisfatoriamenteatendida, com a agilidade que a vida dos negócios exige, se cada umdos países estiver adequadamente aparelhado para expedir e cumprircartas rogatórias e para conferir força imperativa ás sentenças estran-geiras, tudo sem grandes formalidades que prejudiquem a própria or-dem econômica. Técnicas de cooperação internacional existem, inclu-sive mediante a homologação de sentenças estrangeiras, mas é indis-pensável que as exigências de um país sejam de igual teor e grau que asdos demais, até mesmo por uma questão politica de reciprocidade etambém para preservação do principio da isonomia entre os litigantesnas relações internacionais.

Além disso, para o cumprimento dessas medidas de coopera-ção internacional é indispensável que as diversas ordens juridicas se com-patibilizem, p.ex., no tocante à admissibilidade de meios de prova e desua obtenção (o Brasil não cumpriria carta rogatória destinada a obterprova por algum meio que considere ilícito: Const., art. 5", inc. LVI),requisitos para a citação ficta (não se reconhece e não se homologa umasentença estrangeira dada à revelia, tendo o réu sido eitado por edital semas eautelas que no país destinatário se reputam indispensáveis), modo decolher a própria prova (não teria validade uma prova feita alhures emeumprimento de carta rogatória, sem oferta de suficiente participaçãocontraditória de ambas as partes).

6- Cfr. Andolina, "La cooperazione intemazionale nel processo civile" inédito.

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É também muito conveniente que a homogeneização dos siste-mas processuais, conquanto sempre parcial (menos que uniformização) eatenta ás realidades e tradições culturais e políticas de cada pais, estenda-se o máximo possivel segundo essas limitações, para que o juiz encarre-gado de atos de cooperação internacional possa ter razoável conhecimen-to do sistema do pais que os solicita. A grande dispersão de disposiçõesdesnecessariamente diferentes, prejudicando o bom entendimento do con-texto de onde vem a solicitação, é fator de menor qualidade e eficiênciados atos solicitados.

Tal é a fórmula, por enquanto necessariamente vaga, do modocomo convém ser processada a troca de influências entre as ordens jurí-dicas de países integrados em uma comunidade, como o Mercosul, quedepende de uma eficiente cooperação processual internacional para atin-gir seus objctivos econômicos. Para esse fim o Código-Modelo é um le-gítimo e útil repositório de sugestões sobre os modos como cada país etodos em conjunto podem afeiçoar seus sistemas processuais com vista ácrescente coopcração cntre os integrantes do bloco latino-americano. Ain-da é muito tênue a coesão entre esses países (compare-se com a que exis-te entre os integrantes da Comunidade Européia) e, portanto, seriam pre-maturos e precipitados quaisquer prognósticos ou proposições muito con-cretas que no presente momento histórico se quisessem adiantar.

De todo modo, desempenham papel relevante nessa onda deaproximação entre os países latino-americanos os tratados e convençõesinternacionais celebrados em tema de processo civil e de uma integraçãopara a cooperação, ou seja (como vem sendo dito), de umacooperação-integração. A própria existência e vida de entidades como aOrganização dos Estados Americanos (OEA) e o Mercosul, que incenti-vam e procuram disciplinar a cooperação internacional, gera a necessida-de de normas de direito processual civil internacional, localizadas no pIa-no da formação e da circulação de provimentos jurisdicionais. NoV Congresso Internacional de Direito Processual, realizado em Taormi-na no ano de 1.995, fez o pro£. !talo Andolina percuciente análise do temae um levantamento minucioso das disposições contidas em tratados econvenções latino-americanas em torno desse binômio(formação-circulação), levantando questões situadas em cada um de seus

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pólos.' Conforme está no questionário que então propôs, trata-se de ho-mogeneizar as ordens juridico-positivas dos diversos países com vista aproblemas assim distribuidos:

1- quanto à formação de provimentos jurisdicionais: a) comu-nicação de atos processuais em paises estrangeiros, (b) conseqüências dalitispendência perante um pais estrangeiro, (c) cooperação internacionalna colheita da prova, (d) eventual utilização, num pais, de atos ou provi-mentos produzidos fora, independentemente de exequatur, e (e) qualqueroutro mecanismo de recepção de atividades processuais já realizadas oua realizar pelas formas procedimentais de um ordenamento estrangeiro;

I1- quanto à circulação e execução de provimentos jurisdicio-nais: a) execução de provimentos provisórios e (b) execução dos julga-dos. O Congresso examinou ainda a árdua questão da executoriedadealiunde dos laudos arbitrais (relatório de Juan Carlos Hitters)'

Dados de uma disciplina desses pontos residem no Tratado deMontevidéu (1.940), no próprio Código Bustamante, naConvenção !nteramericana no Panamá (1.975) e, já sob os auspicios doMercosul, no Protocolo de Cooperação e Assistência Jurisdicional (LasLeíias, 1.992). Em sua assumida e declarada missão de integrar e homo-geneizar a legislação dos paises da região, o Código de Processo CivilModelo para a América Latina deu recepção aos pontos já desenvolvi-dos e, em capitulos específicos, contém um longo Título, com vinte arti-gos portadores de normas processuais internacionais (arts. 372-391): entreos princípios gerais estabelece firmemente a territorialidade das normasdisciplinadoras dos processos, incidentes e recursos, ao lado da regra deadmissibilidade e valoração da prova segundo a lei a que está sujeita arelação juridiea controvertida, excluída a aplicação do direito estrangeiro

7- Cfr. Andolina, "La cooperazione internazionale nel processo civile" cit.. Na realidadepropôs o autor um tn"nâmio, mas o terceiro item cuida de "verdadeiras hipóteses deintegração recíproca entre os ordenamentos processuais de vários Estados", prevendo«instrumentos normativos de fonte internacional, de autoridades internacionais edisciplinas procedimentais comuns". Refogern ao âmbito e às hipóteses do presenterelatório as hipóteses de uma integração apoiada na unidade do pooer e relativizaçãodas soberanias nacionais, ainda muito distantes para que possam ser incluídas emuma prospecção de probabilidades factíveis.

8- C/r. Hitters, ''EfJeetos de las sentencias yde los laudos arbitrales estranjeros ", inédito.

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quando conflitar com a ordem pública internacional. Em três capítulosautônomos, disciplina a cooperação judiciária internacional, a coopera-ção judiciária internacional em matéria cautelar e o reconhecimento eexecução de sentenças estrangeiras.

Existem ainda o Protocolo de Cooperação Jurisdicional doMercosul e a Convenção internacional sobre Cartas Rogatórias - embo-ra ainda não integrados no direito positivo brasileiro. São tentativas deagilizar a realização extraterritorial de atos probatórios e de simples trâ-mite, sem cabimento com fins coercitivos (excluida, portanto, a efetiva-ção de medidas cautelares por esse meio). No Brasil, a implantação des-sas novidades, inclusive com o estabelecimento das autoridades centrais,enfrenta ainda o óbice da disposição constitucional que condiciona o cum-primento de cartas rogatórias ao exequatur a ser concedido pelo Presi-dente do Supremo Tribunal Federal (Const., art. 102, inc. I, letra h)9As soluções propostas nesses atos internacionais apontam para um graude internacionalização do poder, aos quais os paises latino-americanosainda se mostram arredios.

Vê-se, portanto, que com os tratados e convenções internacio-nais vigentes já se dispõe de algumas normas mais ou menos uniformesinseridas na ordem jurídico-positiva de cada um dos países que os ratifi-caram. E tem-se, no Código-Modelo, a proposta de uma disciplina uni-forme, capaz de integrar os paises latino-americanos numa cooperaçãoeficiente.

Mas isso não é tudo, nem é suficiente. Além dos dados parauma cooperação, a homogeneização do processo civil na área precisariaincluir também as diferenças mais significativas quanto à disciplina doprocesso mesmo, dos procedimentos, provas, recursos elc.. que dificul-tam o trato de relações internacionais na medida em que exigem de cadaum o conhecimento e previsão de comportamentos dos juízes dos paísesestrangeiros. Os movimentos de aproximação comercial deveriam con-

9. Cfr.Nadia deAraújo, Carlos Alberto de Salles e Ricardo R. de Almeida, "Cooperaçãointeljllrisdicional no Alercosul ", in Jvlercoslll- seus efeitos jurídicos. econômicos epolíticos 110S Estados-membros, csp. n. 7.1.2.1, p. 343; n. 7.1.2.2, p. 344; n. 7.1.2.3,esp. p. 346.

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duzir á facilitação das relações processuais, que depende do razoável co-nhecimento que possam os advogados de um pais ter em relação ao siste-ma processual de seus vizinhos. Apesar dos esforços de integração, reve-lados nos tratados e convenções e sobretudo no Código-Modelo, as dife-renças politicas e histórico-culturais dos diversos paises são um pontomuito forte de resistência a essa caminhada para a uniformização integral(v. supra, n. 4).

É indispensável compreender esses acontecimentos no qua-dro das coincidências e divergências reinantes entre os sistemas juridi-co-processuais da América Latina. Discorrendo sobre o que existe nospaíses hispano-americanos, traça Enrique Véscovi as linhas desse sub-grupo da civi I law, com destaque para quatro de seus pontos fundamen-tais: a) processo escrito, com apego á documentação dos seus atos nosautos do processo, (b) essencialmente burocrático, a cargo dos funcio-nários da Justiça, (c) dotado de uma multiplicidade de recursos e (d)muito lento.'o Não obstante esses traços comuns, "Ia possibilíté deI'unification ou d'harmonization est un rêve - pour les uns - ou pour lesautres, utopie. L 'impossibilíté de I'unification résulte de dijférencesdans la maniére de penser des circonstances historiques, culturelles,du rôle et de la nature du pouvoir judiciare, du contexte polítique. éco-nomique et social".

Essas dificuldades transparecem inclusive nas próprias Consti-tuições nacionais, que são portadoras de princípios e pressupostos "sub-jacentes ligados às circunstâncias peculiares de cada país "1'. Sabe-sehoje que essas realidades constituem pontos de poderosa resistência áaceitação pura e simples da divisão dos sistemas juridicos, em escalamundial, e sua confinação nas chamadas famílias do direito da notória

10- C/r. "Confrontación entre el Código Procesal Civil Modelo Iberoamericano y elProyecto de Código Europeo, hacia un proceso civil universal. Las tendencias deICódigo Modelo van plasmando en la realidad" - relatório ao congresso internacionalUnijicazione dei dirltto e n"medi altema!ivi per la risoluzione deUe controversiecivili nel sistema giw-idico latinoamericano (Roma, 25-27 set. 1.995).

11- Palavras do professor egípcio Azmy A Ateia no relatório "1.£ regroupment desfamiliesJuridiques en droitjudiciaire", apresentado ao V Congresso Internacional de DireitoProcessual (Taormina, 1.995).

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elaboração de René David. Pode-se até entender que "em cada família osobjetivos da lei são os mesmos e suafimção é mais ou menos a mesma" -mas "o método de sua aplicação e implementação varia muito e temdiferentes efeitos colaterais". Por isso, embora o estudo de sistemas juri-dicos estrangeiros facilite afertilização das idéias jurídicas, o exame depaises que aceitaram em bloco o transplante de sistemas juridicos estran-geiros mostra que comumente ocorre uma resistência cultural que só nãocomprometerá a efetividade do sistema acolhido se houver um pacientetrabalho de aculturação (Takeshi Kojima).12

Essa é uma advertência contra excessos otimistas em relaçãoao futuro de um processo civil latino-americano unificado ou mesmo pro-fundamente homogeneizado. O Código-Modelo procura ser uma sintesecultural da região, mas mesmo assim há resistências dificeis de superar.

5. Duas macrotendências latino-americanasAinda sem descer ao prognóstico de possíveis soluções a serem

inseridas nas leis processuais, num plano de observação macroscópica emetodológica do mais elevado grau possível de generalidade, identifi-cam-se duas tendências de largo espectro, responsáveis por verdadeirosrumos novos a serem tomados no processo civil dos países latino-ameri-canos. As linhas de uma história recente que nos exibe certas tomadas deposição em certa medida revolucionárias, associadas às forças do presen-te em nossos sistemas processuais, apontam para caminhos que hoje pa-recem definitivamente traçados e que, se e quando se concretizarem, ha-verão de afetá-los profundamente.

A primeira dessas tendências é a absorção de maiores conheci-mentos e mais institutos inerentes ao sistema da common law. Plasmadosna cultura européía-continental segundo os institutos e dogrnas hauridosprimeiramente pelas lições dos processualistas ibéricos mais antigos e,depois, dos italianos e alemães, os processualistas latino-americanos vãose conscientizando da necessidade de buscar novas luzes e novas solu-ções em sistemas processuais que desconhecem ou minimizam esses dog-mas e se pautam pelo pragmatismo de outros conceitos e outras estrutu-

12- C/r. "Legalfamiliesinprocedurallaw rel'isited"(Taormina, 1.995), li, C, 2,esp. p. 24.

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raso o interesse pela cultura processualística dos paises da common lawfoi inclusive estimulado por estudiosos italianos que, como Mauro Ca-ppelletti e Michele Taruffo, desenvolvem intensa cooperação com Uni-versidades norte-americanas. Os congressos internacionais patrocinadospela Associação Internacional de Direito Processual contam com a parti-cipação de processualistas de toda origem e isso vem quebrando as bar-reiras existentes entre duas ou mais famílias juridicas, antes havidas comointransponíveis. Ainda há o que aprender da experiência norte-americanadas elass aclions, das aplicações da cláusula due process oflaw, do con-tempt of court e de muitas das soluções de common law ainda pratica-mente desconhecidas aos nossos estudiosos - mas é previsível que osestudos agora endereçados ás obras juridicas da América do Norte con-duzam à absorção de outros institutos.

Não há, todavia, o menor sinal de que os paiseslatino-americanos caminhem para a absorção de regras inerentes ao ad-versary system, tal qual praticado nos Estados Unidos e no qual the Judgeacts as an independent magistrate rather than prosecutor(BLACK'S)13 Aqui, a tendência é exatamente no sentido oposto, com O

crescente fortalecimento da figura do juiz e outorga de poderes-deveresem relação ao impulso processual, á iniciativa probatória e, de modo ge-ral, à direção do processo. Tal é o ativismo Judicial, inerente ao processocivil inquisitório, que tem sido aconselhado pela doutrina moderna e noscongressos recentemente realizados." Por outro lado, a oralidade que épraticada em maior escala no sistema norte-americano jamais se impôsefetivamente nos paises latino-americanos, como de resto no próprio con-tinente europeu também não, apesar das notórias campanhas desenvolvi-das em sua defesa.

13- C/r. HENRY CAMPBELL BLACK, Black 's law dictionary, 68 ed., ST. Paul, Minncsota,Wcst Publishing, 1.990, verbete adllersarysystem, p. 53.

14- O ativisrnojudicial foi tema do IX Congresso Internacional de Direito Processual,promovido em Coimbra e Lisboa pela Associação Internacional de DireitoProcessual no mês de agosto de 1.991. Ativismojlldicial é a expressão da posturaparticipativa do juiz - seja mediante a iniciativa probatória, seja pelo efetivocomando do processo e constante integração na problemática ali residente, sejamediante o efetivo diálogo com os litigantes. Ljr. ainda Bcdaquc, Poderesinstrutórios do juiz, S.Paulo, Ed. RT, 1.991.

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Outra tendência é a já referida crescente integração latino-ame-ricana - meios de uma melhor cooperação internacional entre paises vi-zinhos, de culturas semelhantes e agora mais 'do que nunca necessitadosde uma eficicntc cooperação processual internacional. O Código-Modeloé um excelente principio. Adotou-o praticamente por inteiro o Uruguaiem seu Código General del Proceso, mas ainda há um extenso caminho apercorrer e as dificuldades, como visto, não são pequenas. De todo modo,estas Jornadas que o Instituto Ibero Americano promove a cada dois anos,mais a aproximação que elas propiciam, permitem, sem otimismos irra-cionais, acreditar num estreitamento dos diversos modelos c mitigaçãodas notas cspccificas que os diferenciam. Como dito, o ideal da integra-ção não é uma utópica unificação nem a uniformidade absoluta, mas acompatibilização capaz de oferecer maior eficiência à cooperação inter-nacional entre os paises da América Latina.

6. Os modelos processuais latino-americanos, seus proble-mas comuns e exigências comuns de modernização

Cada ordem processual, em cada país, constitui um sistema, em-pregado esse vocábulo para designar um conjunto fichado de elementosinterligados e interagentes, todos coordenados emface de certos objetivosa realizar. No estado atual dos sistemas processuais latino-americanos,cada um delas constitui um modelo processual que se caracteriza por mar-cantes notas específicas, não obstante a tendência à parcial homogeneiza-ção (compatibilização). Notas especificas sempre haverá. mas a superveni-ência do Código-Modelo é um fator positivo no sentido dc mitigar racio-nalmente as diferenças, seja para favorccer a cooperação internacional, s«jatambém porque ele é o rcsultado de estudos profundos e meditados e, por-tanto, portador de soluções que interessam a cada pais em particular. Poroutro lado, tcm sido incentivada a prática da comparaçãojurídica, especi-almente por meio destas Jomadas e congressos que se realizam com fre-qüência - o que permite a cada um mirar-se no espelho dos sucessos e dosfracassos de seus vizinhos e, com isso, encontrar soluções mais convenien-tes, com maior segurança. Essa comnnicação entre juristas de paises dife-rentes, com modelos processuais diferenciados em maior ou maior intensi-dade, insere-se no plano geral da globalização da cultura processual. pela

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qual é também responsável a doutrina internacional, como verdadeira mul-tinacional do processo:" como pequenas abelhas, a doutrina poliniza acultura e leva de um canto a outro a seiva que vivifica e renova.

A utilidade e atualidade desses movimentos repousa na exis-tência de inúmeros problemas comuns, que por sua vez são conseqüênciada grande coincidência dos problemas que prejudicam a perfeição denossos sistemas. Na América Latina temos paises que adotam o conten-cioso administrativo, mas uma maioria de modelos nos quais prevalece achamada jurisdição una. Praticamente em todos prevalece a linha divisó-ria muito nítida entre processo de conhecimento e processo de execução,com atividades que não se comunicam entre um e outro (ou se comuni-cam muito pouco) - sendo que em muitos deles ainda vige a separaçãoentre a execução fundada em titulo judicial ou extrajudicial, esta regidapor premissas e soluções de origem medieval (o processus summariusexecutivus, superado nos sistemas europeus). Somos todos vitimas dedogmas de fundo pandectista, como o daindividualidade da tutela jurisdicional, que restringe a legitimidade paraagir em juizo e o ãmbito de eficácia dos julgamentos c com isso empo-brece a tutela jurisdicional, numa leitura antiquada do principio do con-traditório; como o da intangibilidade da vontade humana, que restringea efetividade das decisões judiciárias; como o das formas exageradas que,em nome de uma segurança mal compreendida, retarda e dificulta a tute-la jurisdicional; começamos todos a despertar para a necessidade de me-didas urgentes, mas ainda sofremos de males e temores que desfavore-cem a aceleração da tutela e dificultam a sua sistematização; etc.

Nesse panorama de problemas comuns, é natural que do encon-tro de nossas culturas regionalizadas e troca de experiências - reanima-dos agora com a coragem, que vamos assumindo, de romper racional-mente com velhos dogmas e aceitar os frutos da experiência da commonlaw - possamos retirar elementos para o aperfeiçoamento e moderniza-ção de cada um dos nossos sistemas em particular. Dai a afirmação decertas tendências comuns, que são comuns na medida em que cada um

15- Expressão de Enrico Tullio Liebman no prcC...•cio da tradução brasileira de seuAfal1ualde direito processual civil (28 ed., Rio, Forense, 1.985).

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dos paises se disponha a renunciar a individualidades irracionais e aceitaras propostas bem sucedidas na expcriência de seus vizinhos.

Alinham-se cm scguida algumas dessas tendências, algumas de-las já manifcstadas na legislação e todas à disposição de buscar um proces-so civil de resultados, no qual a presença dos princípios segue sendo sem-pre um fator de segurança e legitimidade, mas cada um destes aparecerevestido de contornos modernos e coerente com o objetivo supremo depropiciar o efetivo e generalizado acesso à ordem juridica .Justa.

7. A modernização processual: três aspectos centraisNesse quadro cultural-integrativo atual, as tendências moder-

nizadoras do processo civil situam-se em três áreas razoavelmente defi-nidas, a saber: a) a dos seus pressupostos políticos, (b) a dos aspectossistemáticos e (c) a das técnicas de atuação. São tendências mais ou me-nos universais que se revelam por divcrsos modos e graus de intensidade,que é preciso conscientizar para que se possa eficientemente postular eorganizar a vida futura do processo civil desejado.

Já nas V Jornadas Latino-Americanas de Direito Processual, rea-lizadas na Colômbia no ano de 1.970 (Bogotá-Cartagena), manifestou-se aconsciência de certos pontos fimdamentais carentes de revisão, variandodo politico ao técnico, com ênfase para a preservação dos direitos funda-mentais do homem pela via do processo c para a responsabilidade dos ope-radores do sistema. Em sede doutrinária, logo a seguir se disse que a "atua-lização do processo civil só se pode obter através de uma re[orma pro[un-da que transforme o sistema tradicional de umajustiça puramenteformal,com predominio quase absoluto do princípio dispositivo, em um processocivil impregnado de justiça social, no qual as partes, situadas num planode autêntica igualdade, possam maniféstar pública e livremente suas pre-tensões com a oportirnidade razoável de demonstrá-Ias perante um juizindependente, imparcial e dotado defaculdades suficientes para conduziro processo a uma solução justa e equilibrada da controvérsia" (HéctorFix-Zamudio)16 As bases gerais comuns sugeridas por aquelas Jornadas

16- Cfr. Constituciófl.v proceso civil en Latinoamerica, México, Unam, 1.974, capo IX,letra /t, p. 106.

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para a renovação dos Códigos latino-americanos são um antecedente im-portantíssimo do Código-Modelo e um repositório vivo das necessidadescom que ainda nos defrontamos.

8. Tendências políticas do processo civil modernoPelo aspecto da integração do processo civil entre as institui-

ções do Estado moderno e em face dos escopos a realizar, sente-se emprimeiro lugar a força de uma caminhada rumo á universalização da tu-tela jurisdicional, á qual se somam os movimentos pela maior participa-ção dos membros da população na vida do processo. O fator informaçãopassa a ganhar destaque nas preocupações do jurista moderno e do legis-lador, sendo tendência dos tempos a exposição dos fatos da vida do pro-cesso ao conhecimento popular. Nesse contexto inclui-se a consciênciada necessidade de estabelecer uma efetiva e justa responsabilidade dosjuízes pelos atos, omissões e retardamentos na preparação e oferta datutela jurisdicional. Há também sinais de uma maior integração dos ju-ristas - e particularmente dos juizes - nas iniciativas reformistas do pro-cesso, o que gira em torno de uma nova figura sócio-política, que é o juiz-cidadão, ou o jurista-cidadão.

Tal é o quadro do movimento bi-vetorial que um constituciona-lista brasileiro moderno identificou e denominou politização da justiça ejusticialização da política. 17 É o espelho da integração política do pro-cesso mesmo como sistema, entre as instituições do Estado c da socieda-de, na sua feição e tendência moderna de repúdio ao tecnicismo tradicio-nal e ao isolamento em relação á vida social.'8

9. Universalização e coletivização da tutela jurisdicionalÉ nitida tendência em todo o mundo ocidental a remoção de

óbices que limitam a área de atuação da jurisdição mediante a exclusão

17- Manoel Gonçalves Ferreira Filho.18- O levantamento dos dados dessa tendência contou com a colaboração de meus alunos

da Faculdade de Direito de São Paulo, em trabalhos individuais denominadosprecisamente "Ofuturo do processo civil" (curso de pós-graduação, 2° semestre de1.995). Reporto-me também ao meu ensaio "Universalizar a tutela jurisdicional ",ainda inédito.

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de certas pessoas e de certos conflitos. Seja na própria lei, seja na realida-de social dos diversos países, existem fatores perversos que são respon-sáveis por essa inconveniente seleção e hoje tendem a ser removidos.

Remover elementos que limitam o acesso à tutela jurisdicionalsignifica abrir caminho para a tendência expansiva dos tempos moder-nos, qualificada como universalização da jurisdição. Sabe-se de ante-mão, todavia, que sequer no plano utópico se almeja à plena universali-dade desta, tal que não deíxasse o menor residuo de conflitos não-jurisdi-cionalizáveis. Isso, porque ao lado dos óbices legitimos existem os ilegí-timos, como as condições da ação, a incensurabilidade dos atos da Admi-nistração pública pelas suas razões de fundo, o custo financeiro do pro-cesso (salvo as pessoas amparadas pela justiça gratuita), etc.

Os óbices ilegítimos localizados na infra-estrutura econômica ecultural da nação representam as dificuldades de maior dimensão e pro-fundidade, especialmente para o processualista como tal e mesmo para olegislador do processo, porque muito pouco podem as técnicas processu-ais contra eles. A assistência judiciária aos necessitados (agora qualifi-cada na Constituição brasileira como assistênciajurídica integral) aindaé algo insuficiente e pouco ou nada propicia além da isenção às taxasjudiciárias e oferta de um patrono gratuito - nem sempre empenhado nosresultados desejados pelo patrocinado. No Brasil os juizados especiaiscíveis e o seu processo destinado à conciliação, instrução e julgamentodas pequenas causas (hoje denominadas "causas de menor complexida-de "), constituem uma significativa abertura para o superamento das difi-culdades cconômicas e culturais, com resultados satisfatórios para o mo-mento, ainda que insuficientes em face dos objetivos a atingir.

Tem-se ali inteira gratuidade em primeiro grau de jurisdição ecorajosamente rompeu-se com o dogma da radical exigência de patroci-nio técnico, ao permitir-se o ajuizamento de demandas escritas ou oraispelo próprio interessado. O informalismo desse processo aproxima aspartes ao juiz e aos conciliadores, na tentativa de superar as inibições econstrangimentos próprios à gente de menor preparo cultural e vivênciade seus próprios problemas jurídicos. O funcionamento noturno juizadosé outro elemento positivo de facilitação do acesso à justiça (lei n. 9.099,de 26.9.95).

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No próprio plano puramente legal, que o legislador pode alteraro processualista influenciar mais diretamente, reside, p.ex., a legitimida-de ativa ad causam individual (ninguém pode estar em juizo, em nomepróprio, para a defesa de interesses alheios), que, associada á estreitalimitação dos efeitos da sentença ás partes do processo em que foi profe-rida, empobrece indesejavelmente a jurisdição em sua capacidade de re-solver conflitos e pacificar pessoas. A esse verdadeiro dogma, que a vi-são das c1ass actions do direito anglo-norte-americano vai conseguindoabalar nas últimas décadas, debitam-se as dificuldades tradicionalmenteopostas á tutela de grupos e formações sociais no tocante aos seus direi-tos e interesses coletivos, dada a premissa de que eles não têm titularindividualizado e a da falta de uma pessoa (fisica ou juridica) que consti-tua seu centro de imputação, passaram-se séculos e séculos de indiferen-ça jurisdicional a tais aspectos importantissimos da vida social. Essa tra-dicional visão individualista do processo e do próprio direito como umtodo impede, por outro lado, que o Poder Judiciário possa dar soluçõesabrangentes de tutela individual a números significativos de pessoas, alémde favorecer a fonnação de litisconsórcios extremamente numerosos, adano da boa qualidade do serviço jurisdicional. Nessas e em outras pos-turas residem dificuldades comuns que, a muito custo, vão sendo mitiga-das pouco a pouco, mas que só poderão ser removidas de modo satisfató-rio a partir de quando forem identificadas na sua essência e na sua raiz.

No direito brasileiro conseguiu-se já um significativo progres-so quanto a esses aspectos do tradicional processo individualista, medi-ante, o que vem sendo disposto no plano constitucional e infraconstitucio-nal em favor da tutela jurisdicional coletiva. Premido pela doutrina, esseiter de coletivização teve início no ano de 1.985, com a Lei da Ação CivilPública (lei n. 7.347, de 24.7.85), que legitimou o Ministério Público eoutros entes oficiais, além de associações portadoras de uma legitimida-de adequada, ao patrocínio judicial de causas para a defesa de valoresambientais, históricos, culturais, paisagísticos etc." A ação civil públi-

19- A legitimacy o/ representation, no direito brasileiro vigente, depende de dois fatores:a) objetivo de defesa desses valores, incluído no estatuto da associação e (b)preconstituição desta, que deve tcr ao menos tun ano de existência com esse ohjetosocial (lei cit., art. 50).

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ca, hoje praticada com grande intensidade perante os juízos e tribunaisdo pais (especialmente pelo Ministério Público), foi depois estendida àtutela dos menores (Estatuto da Criança e do Adolescente - lei n. 8.069,de 13.7.90) e dos consumidores (Código de Defesa do Consumidor - lein. 8.078, de I I .9.90). Desse mesmo periodo é o mandado de segurançacoletivo, instituído pela Constituição Federal no ano de 1.988 (art. 5°, inc.LXX), instrumento de tutela constitucional das liberdades pelo qual seadmite a iniciativa de entidades representativas de categoria em defesados direitos e interesses coletívos dos integrantes desta; bem como a legi-timação de entidades associativas em geral para a defesa judicial ou ex-trajudicial de interesses individuais de seus assocíados (Const., art. 5°,inc. XXI).

Desenvolveram-se com isso os conceitos de direitos e interes-ses difúsos, coletivos e individuais homogêneos, que a lei conceitua einsere no campo das ações coletivas - instituídas estas mediante a legiti-mação daquelas entidades representativas (Cód. Def. Cons., art. 81).

Mesmo em países onde já se obteve algum progresso como esse,perduram ainda os males do individualismo. No Brasil foi recebidacom enorme rejeição a proposta do Ministro Presidente doSupremo Tribunal Federal, de instituir súmulas vinculantes, que seriammáximas da jurisprudência dos tribunais superiores, a serem obtidas me-diante um processo de fixação da opinio de cada tribunal em torno detemas que se repetem muito. Tais súmulas teriam uma verdadeira eficá-cia para-legal, consistente em vincular os juízes e tribunais locais aospreceitos de que são portadoras, o que evitaria a constante e irracionalrepetição da mesma tese, com as mesmas discussões. Curiosamente, areação negativa veio dos advogados, temerosos do que chamam ditadurado Poder Judiciário, e também dos próprios juizes, que vêem nelas umainsuportável violação à sua independência funcional. De todo modo, aproposta tem sua razão de ser no grande acúmulo de serviços e atrasos natutela jurisdicional, causada pelos milhares de processos em que a mes-ma tese se repete.

Existem atualmente cerca de 2.500.000 processos à espera dejulgamento nas diversas instâncias da Justiça brasileira. Uma pesquisarecente mostrou que, no ano de 1.995, cerca de 89% dos julgamentos

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feitos pelo Supremo Tribunal Federal giraram em torno de teses repeti-tivas, com enorme perda de tempo e imposição de esperas insuportá-veis a todos. O maior beneficiado é o próprio Estado, que no Brasil vemsendo o grande alimentador da litigiosidade mediante verdadeiro jUrortributário, que só no Poder Judiciário pode encontrar um repúdio justoe eficiente.

Com esses elementos, pode-se identificar em primeiro planouma tendência á coletivização da tutela jurisdicional, especialmentemediante a adoção e prática das ações coletivas. O poder polinizadorda doutrina, dos congressos e do direito comparado apresenta-se comofator que permite antever a generalização desse movimento de transmi-gração do individual para o coletivo - seja com a adoção de medidascoletivizadoras pelos países ainda não empolgados por essa idéia am-pliadora da tutela jurisdicional, seja mediante a assunção de posturascorajosas que permitam superar os males ainda existentes mesmo ondeo movimento já principiou.

Por outro lado, essa coletivização constitui somente um dosaspectos de um movimento de maior dimensão, que é auniversalização da tutela jurisdicional, de que é manifestação também ainstituição de processos mais simplificados, perante juizados menos for-mais de acesso mais fácil e barato ás pessoas de menor condição econô-mica. Mesmo no campo dos chamados óbices legitimos, a tendência arevê-los e dimensioná-los melhor é também um aspecto dessa universali-zação. O respeito ao princípio constitucional-democrático da separaçãoentre os Poderes do Estado impede a censura do ato administrativo peloseu mérito mas a também democrática consciência dos limites éticos ejuridicos a que está adstrita a atividade de todos os Poderes no Estado-de-direito (o substantive due process of law, do direito norte-americano)impõe que se reveja a definição do que é esse mérito, de modo a deslocara linha divisória entre o censurável e o incensurável - dai a valorizaçãodos conceitos de abuso de poder e desvio de finalidade, que hoje tendema permitir, p.ex., que o Poder Judiciário reveja a prova produzida nosprocessos realizados pela Administração pública, impondo o livre con-vencimento dos juizes sobre a valoração feita pelo Administrador. Talpostura é mero exemplo da tendência expansiva que deve conduzir juizes

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a tribunais a reduzir os casos em que se nega a tutela jurisdicional porrazões como a aprioristica impossibilidade juridica do pedido, a ausênciade legitimidade ad causam e outras que, de algum modo, a visão tradicio-nalista e preconceituosa valoriza como impeditivas do julgamento domeritum causa!.

A Constituição brasileira abre caminho para uma autênticadiscricionariedade judicial, em dispositivos nos quais empregaconceitos juridicamente indeterminados como o de lesividade e o demoralidade administrativa, cuja dimensão e conteúdo devem ser concre-tamente avaliados pelo juiz no julgamento das ações populares (Const.,art. 5°, inc. LXXIII).

Em perspectiva de prognósticos racionais, sente-se que existeclima geral favorável à adoção de medidas como essas, as quais recebemlegitimidade social e política da necessidade de eliminar conflitos e paci-ficar pessoas em escalas capazes de realmente estabelecer um clima depaz, e do zelo pelo valor do acesso à justiça, constitucionalmente assegu-rado nos países em geral.

10. Informação e participaçãoVariam muito significativamente, entre as populações dos paí-

ses latino-americanos, os graus de integração dos indivíduos na vida po-lítica e consciência dos valores culturais da nação. Fatores atávicos ehistóricos, associados às injustiças de uma distorcida distribuição de ri-quezas, são responsàveis por um estado de alienação e indiferença, maiorou menor nos diversos países, mas que, em diversas medidas, põem osmembros da população à margem da vida do processo e ignorantes dasofertas de tutela jurisdicional, inerentes ao sistema. No Brasil, recenteestudo de um conhecido jurista e pesquisador dos fatos da Justiça (JoséEduardo Faria) revela "um misto de frustração, descrença e ceticismocom relação à eficácia desse poder, aos critérios de 'justiça' por eleadotados em suas sentenças e à sua capacidade de impor a vontade dalei sobre os interesses dos mais ricos, infiuentes e poderosos". ,.

20- C/r. José Eduardo Faria, O Poder Judicián"ono Brasil: paradoxos, desafios e alternativas,Brasília, ed. Centro de Estudos Judiciários da Justiça Federal, 1.996, p. 7.

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Esse estudioso transcreve dados de um levantamento realizadopor prestigioso instituto de pesquisa de opinião pública, no qual se apon-tam os males de uma Justiça lenta (87% dos pesquisados), impunidadedos poderosos (86%), tendência a punir somente os pobres (80%), des-crença em juizes, advogados e autoridades policiais (37%, 59% e 64%).Os que não buscaram a Justiça para resolução de seus conflitos chegam a67,9%, registrando-se que 28,7% não o fizeram porque a indiferença custamenos. Mesmo assim, 53% declararam confiar no Poder Judiciário"

Tal é o universo dos mudos e perdidos, ou dos indiferentes,resignados ou inibidos, a que alude Barrios de Ángelis" e cujo ceticismoe generalizada desinformação os mantêm afastados da vida judiciária edo efetivo exercício dos direitos violados. Sabido que não se pode obterum grau satisfatório de participação sem o respaldo de uma informaçãosuficiente, uma legítima tendência moderna é a de informar.

No direito brasileiro, a implantação dos juizados especiais depequenas causas a partir de 1.984 (hoje, juizados especiais cíveis) vemsendo um fator de construtivo diálogo entre a população e o Poder Judi-ciário. O caráter popular dessa justiça dos pobres constitui educativofator de desinibição que põe a população humilde em contato diretocom os juízes e seus auxiliares, os conciliadores. A presença destes,que também revela urna participação da comunidade nos negócios daJustiça, vem operando como um elo entre o indivíduo e o juiz - elosocialmente significativo em virtude da desmitificação do processo: ocidadão sente-se mais à vontade diante de outro cidadão comum, mem-bro da sociedade como ele e sem os males do temor reverencial cultiva-do em fuce do juiz.

Num quadro geral e de tendências, o interesse supranacional dadoutrina por essas novidades constitui fator de abertura para esse diálogoinformativo capaz de pôr os cidadãos a par dos caminhos oferecidos paraa defesa de direitos, o que pode otimizar a desejada participação.

2t-Op. cit.,pp. 8-10.22- C/r. Dante Barrios de Ángelis, Inlroducción ai estudiodel proceso, B.Aires, Depalma,

1.983, n. 5.6.5, esp. p. 58. V. também minha monografia A instromentalidade doprocesso, 3a ed., S,Paulo, Malheiros, 1.990, n. 22, pp. 162 55. - sobre o tema educação,corno escopo do processo civil moderno.

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11. O juiz-cidadão e as reformas processuaisOs tempos exigem uma figura de juiz que vivencie os dramas

sociais sobre os quais é chamado a atuar no processo. A pesquisa que vemsendo referida nestes estudos revela que 73,7% dos entrevistados queremum juiz que não seja mero aplicador das leis, ou seja, entendem que eletem de ser sensível aos problemas sociais.13 A esse propósito, no Estado doRio Grande do Sul desenvolveu-se um grupo de juizes, ditos alternativos,cuja proposta substancial é a superação dos parâmetros de justiça contidosna lei posta e adoção de critérios ditados pela consciência ética. A essepropósito, venho dizendo que "o momento de decisão de cada caso con-creto é sempre um momento valorativo" e que "para o adequado cumpri-mento da fUnção jurisdicional é indispensável boa dose de sensibilidadedo juiz aos valores sociais e às mutações axiológicas de sua sociedade "."

Pois essa vivência, que exige do juiz um comportamento capazde oferecer às partes um processo justo na sua realização e ao fim umatutela jurisdicional justa, vem também conduzindo os juizes mais com-prometidos com o valor da justiça a participar dos movimentos de refor-ma do sistema processual - seja opinando isoladamente ou através dosórgãos da categoria, seja endereçando propostas ao Poder Legislativo.São frutos de iniciativas dessa ordem a Lei das Pequenas Causas (1.984),a Lei da Ação Civil Pública (1.987), em parte o Código de Defesa doConsumidor (1.990) e, ultimamente, a grande Reforma do Código de Pro-cesso Civil. Esta foi conduzida por dois juizes do Superior Tribunal deJustiça, com a participação da Escola Nacional da Magistratura e à frentede uma comissão da qual fizeram parte consagrados Mestres processua-listas e outros conhecidos magistrados. Tal é a imagem do juiz-cidadão,que não só leva para o processo os valores captados na vivência social,como ainda conduz a própria lei do processo segundo as lições hauridasda experiência concreta dos conflitos que é chamado a dirimir.

Em escala continental, o próprio Código de Processo CivilModelo é fruto do trabalho de especialistas comprometidos com o ideal

23- Cfr. Faria, op. cit., p. 61.24- CF. A inSI1iiementalidadedo processo, especiahnente ao cuidar da justiça das decisões

(esp. n. 36.4, pp. 293 ss.).

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do processo justo, sendo previsível, nesse quadro, que os processualis-tas latino-americanos prossigam nesse trabalho de aperfeiçoamento dastécnicas que eles conhecem melhor que ninguém. A legitimidade dasdisposições ditadas pelo legislador leigo, que vem do poder apoiado novoto popular, só se completa e se aperfeiçoa quando elas correspondemaos anseios e propostas daqueles que vivenciam o dia-a-dia dos proble-mas a resol ver.

12. Aspectos sistemáticosNo que diz respeito aos aspectos estruturais do sistema de paci-

ficação pelo processo, a tendência mais expressiva é a de coletivizaçãoda tutela jurisdicional, que também é portadora de enorme relevânciapolítica, razão pela qual foi estudada em conjunto com a expansão uni-versalizadora (supra, n. lO). Avulta, de igual modo, a crescente preocu-pação por medidas destinadas a assegurar a ~retividade da tutela jurisdi-cional, de que se cuida logo a seguir.

13. Pela efetividade da tutela jurisdicionalUm dos grandes males da Justiça reside no conformismo do

próprio juiz diante de certos preconceitos que tradicionalmente limitam aefetividade da tutela e os levam atitudes passivas diante da inocuidade decertas decisões. Associado à indesejável estagnação das legislações, essecomportamento é responsável pela fraqueza da Justiça e pela generaliza-da insatisfação em face dela.

A tutela jurisdicional que as pessoas vêm buscar no processonem sempre se consuma com a edição da sentença que julga as preten-sões contrapostas das partes. Tutela é proteção e consiste na melhora queo litigante vencedor recebe na sua situação jurídica deduzida em juízo, demodo que, terminado o processo, ele se encontre, na sua vida comum emrelação ao outro litigante e aos bens controvertidos, em situação melhordo que aquela em que se encontrava antes do processo. Há sentençasaptas a conceder por si próprias a tutela a quem tem razão, como a cons-titutiva e as declaratórias em geral (entre estas, as que julgam improce-dente a demanda, tutelando o demandado), mas também existem as quedeixam a situação ainda indefinida, sem eliminar de pronto a crise jurídi-

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ca que envolve os litigantes. Tais são as sentenças condenatórias e, demodo mais agudo entre elas, as que condenam por obrigações de fazer oude nãocfazer. Tal é a área em que melhores e mais eficientes meios tem oobrigado para prosseguir em sua resistência á pretensão do credor e aocomando contido na sentença judiciária.

Os sistemas processuais em geral - e os da América Latina nãoconstituem exceção - têm a grande tendência ao conformismo, optandocom extrema facilidade pela conversão do objeto da obrigação em pecú-nia e renunciando á execução especifica. Essa é uma opção de fundopandectistico, alimentada no mundo latino por certas disposições do di-reito francês e reiterada linha jurisprudencial, que se chocam com o desi-deratum de plenitude da tutela jurisdicional. Na literatura menos recente,contra tal orientação bateram-se Giuseppe Chiovenda ePiero Calanlandrei, a partir do pressuposto de que, na medida do que forpraticamente possivel. o processo deve proporcionar a quem tem razãotudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter. A vitó-ria dessa colocação em sede doutrinária ainda não se traduziu, contudo,em disposições legislativas e em orientações jurisprudenciais que de modoobjetivo e enérgico autorizem medidas capazes de remover as resistênciase omissões ilegitimas e, por esse meio proporcionar a efetiva execuçãoespecifica dos julgados nessa matéria.

Mesmo na experiência brasileira do mandado de segurança, queaspira a ser um meio eficiente de equilibrar os valores politicos da auto-ridade e da liberdade, neutralizando os excessos e abusos de poder, aindanão se chegou, na experiência dos tribunais, a resultados que se possamdizer plenamente satisfatórios. A lei municia os juizes com imenso poderde pressionar a autoridade estatal a cumprir os preceitos contidos nomandado de segurança, mas ainda faltanl atitudes verdadeiramente cora-josas no sentido de exercer tal poder e fazer realizar integralmente essatutela jurisdicional diferenciada. Rcccntcmcntc, na Rcfoffila do Códigodc Processo Civil sobreveio uma disposição dcstinada á efctividadc dascondenações por obrigações de fazer e de não-fazer cm geral, com a ex-plicita e especificada indicação de meios de que o juiz se valerá paraconduzir o sujeito a cumprir o que na sentcnça se contém. Objetiva-se áobtenção dos resultados práticos ditados nesta, ou a resultados equiva-

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lentes, cabendo ao juiz usar de todos os meios adequados a isso, comoimposição de astreintes, busca-e-apreensão, remoção de pessoas e coisase até uso da força pública, chegando-se mesmo á prisão do renitente (CPC,art. 461).

14. Fatores técnicos (as técnicas processuais e a técnica aserviço do processo)

O processo é em si uma técnica - sistema integrado de meiospreordenados á pacificação de pessoas mediante a eliminação de confli-tos. Como toda técnica, só se legitima pela consciência e absorção dosobjetivos a realizar. Modernamente, a superação do mito de um irreal e oilegítimo confinamento do processo no campo dos fenômenos puramen-te jurídicos e com a missão única de dar atuação ao direito material vêmpermitindo que se tome essa consciência e, conseqüentemente, vai con-duzindo o legislador e o processualista á preocupação por resultados. Talé o método representado pelo processo civil de resultados (v. supra, n.3), que consiste precisamente em uma adequação de seus instrumentos esuas técnicas aos objetivos a realizar, de modo que os efeitos substanciaisexternos da experiência processual sejam justos e efetivos (sem uma téc-nica adequada, a efetividade é impossível).

Desse modo é que, nos diversos países, as reformas processuaisvêm procurando o equilíbrio de um processo justo, em que as partes se-jam tratadas com igualdade e tenham reais oportunidades de participa-ção, participando também o juiz de modo efetivo na captação de materialinstrutório e construção de um provimento final justo e útil. Não se tratasomente de técnicas puramente processuais a serem atuadas pelo juiz emprol dos objetivos do sistema, mas ainda de absorção dos recursos técni-cos modernos, especialmente para a eficiência da prova e para a boamovimentação do processo e documentação dos seus atos. A utilizaçãodas benesses da informática é hoje indispensável, embora a pobreza daJustiça constitua um geral e endêmico entrave á modernização.

AJalta de recursos materiais foi apontada por 85,6% dos en-trevistados na pesquisa aqui referida, como um grande obstáculo á efici-ência do Poder Judiciário. Apontaram-se também o número insuficientede juízes (81, I%) e de órgãos jurisdicionais (76,3%). No Brasil, a relação

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juiz-cidadão é de um por vinte-e-einco mil (no Estado de São Paulo, umpor mais de vinte-e-seis mil), enquanto que na Alemanha não há quatromil cidadãos para cada juiz e no Uruguai existe cerca de cinco mil. Issorevela o dcscaso dos demais Poderes do Estado para com as necessidadesda Justiça, cujas dotações orçamentárias são insuficientes e não permi-tem a modernização técnica desejável.

No campo das técnicas processuais, alguns progressos vêmsendo sentidos e a tendência é a generalização supranacional. São meiosdestinados ao tríplice desiderato de: (a) facilitar o acesso à justiça me-diante a deformalização, (b) acelerar a preparação da tutela jurisdicio-nal e (c) propiciar um eficiente controle de qualidade do produto daatividade dos juizes, com apoio na oralidade que ali se deve praticar. OCódigo-Modelo, com imediatos e diretos efeitos no Código General deIProcesso uruguaio, bem como a recente Reforma do Código de Proces-so Civil brasileiro, são instrumcntos representativos dessa moderniza-ção técnico-processual.

Das inovações trazidas pelo Código-Modelo, talvez a mais rícade propósitos no contexto do processo justo é a audiência preliminardisposta nos seus arts. 300 ss. O estimulo à conciliação entre as partes,mais o saneamento e a organização da instrução probatória são elemen-tos fecundos na busca de soluções legítimas e rápidas, bem como de pre-paração de julgamentos conscientes em caso de o litígio chegar a serdirímido por sentença. Adotou-a o novo Código General dei Proceso uru-guaío (art. 341-343), além do Código de Processo Civil brasileiro em suaversão trazida pela recente Reforma (art. 331). O engajamento dessa no-vidade latíno-americana aos valores da conciliação, da oralidade e dosaneamento processual qualificam-na como fator altamente positivo noprocesso civil de nossos países, com tendência à expansões supranacio-nais e adoção generalizada.

15. Simplificação e aceleraçãoA necessidade de simplificar os atos e o procedimento como

um todo esbarra em óbices que são legitimos em si mesmos, representa-dos pelos valores inerentes ao due process of law, mas perdem legitimi-dade na medida das distorções a que pode dar lugar sua leitura tradicio-

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nalista e despreocupada da efetividade do acesso à justiça. Nenhum prin-cípio ou garantia é absoluto, nem insuscetivel de releituras e interpreta-ções coerentes com as mutantes exigências dos tempos.

A consciência dessa postura, metodologicamente correta vai le-vando o legislador a assumir certas posturas de risco, valendo-se da ex-periência segundo quod plerumque accidit e assím permitindo a renúnciaaos exageros de cuidados quanto aos atos e ao procedimento em simesmo." A tendência augurada nesse campo é a de deformalizar paraagilizar e para facilitar o acesso à justiça. Exemplo disso é a recente dis-posição que, no Brasil, dispensou o reconhecimento notarial da firma daparte na procuração outorgada ao advogado (CPC, art. 38).

Incluem-se nesse caso também as medidas aceleradoras repre-sentadas pelo eftito da revelia, do processo civil brasileiro, que mandapresumir verdadeiras as alegações de fato feitas pelo autor, quando o réupermanecer revel, deixando de oferecer contestação (art. 319). Mais rigo-rosa ainda é a disciplina do processo monitório, adotado em alguns paises,no qual a ausência de oposição feita pelo réu na forma de seus embargos aomandado, procede-se desde logo à execução com base num título formadojudicialmente, mas inaudita altera parte e sem a menor participação dodemandado. Nesse contexto de acelerações, a antecipação da tutela juris-dicional, com base na razoável probabilidade do direito e na necessidadede tutela urgente pelo demandante, corresponde também a um risco cons-cientemente assumido em prol da tempestividade da tutela.

16. Síntese e conclusõesO advento do Código de Processo Civil Modelo para a Améri-

ca Latina constitui poderoso fator de integração latino-americana que,com os descontos das tradições regionais e necessidade de harmonia dalei processual no contexto do modelo juridico de cada pais, abre caminhopara a adoção de soluções comuns na medida do possível e para a homo-geneização dos sistemas. Essa integração é uma tendência tanto mais

25- Sobre a necessidade de wn equilíbrio racional do trinômio certeza, probabilidade en"sco, v. ainda minha monografia A inst11lmentalidade do processo, esp. u. 33, pp.23655.

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forte quanto mais se integrem os países em organizações supranacionaisde inspiração econômica, mas de crescentes reflexos políticos (Merco-sul). Essa caminhada lado a lado tende a receber influxos do direito dacommon iaw, especialmente pela via dos institutos voltados à coletiviza-ção da tutela jurisdiciOlial, estranha ao pensamento romano-germânicomas inerente ao direito de uma sociedade de massa. Onde avultam asrelações supraindividuais, é indispensàvel buscar soluções em escala su-praindividual para os conflitos inerentes às relações humanas.

Essa evolução toda, guiada pela visão supranacional da doutri-na e por adequados estudos de direito comparado, aponta de modo maisou menos uniforme para a adoção de medidas e posturas de caràter polí-tico, sistemàtico e técnico-processual, com a crescente consciência danecessidade de uma tutela jurisdicional mais ràpida e com melhores con-dições para ser justa e efetiva. Não hà prognósticos precisos a fazer, masuma visão de conjunto mostra as linhas fundamentais de um processocivil desejàvel e factível em futuro relativamente próximo.

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CÓDIGO CIVIL - "REFORMA À VISTA"

Cesar Rubens de Sousa LimaJuiz de Direito/RO

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CÓDIGO CIVIL - "REFORMA À VISTA"

Cesar Rubens de Sousa Lima

I - Considerações iniciaisO nosso fôlego aqui é curto, dimensionado ao do espaço reser-

vado para estas breves anotações. Não se trata, portanto, de um comentá-rio minucioso e ordenado acerca dos quase 2.1 00 artigos que compõem O

Projeto de Código Civil.Antes de destacarmos sucintamente os pontos que se nos apre-

sentam como relevantes, na anunciada reforma, oportuno que se trans-creva adiante, para uma reflexão prévia, um trecho do pronunciamentodo Senador JOSAPHAT MARINHO, Relator-Geral do Projeto, a saber:"Não há exemplo de um Código Civil ser aceito na integridade de seusistema. O Código Clóvis Beviláqua foi duramente criticado, a exemplodo que fez, a começar pelo amplo exame que lhe fez da linguagem àsubstância, o Senador Rui Barbosa." (g. n.).

Entendemos como relevante essa colocação, porque, por certo,haverá divergência de opiniões em tomo do conteúdo Projeto de Lei daCâmara n. 118, de 1984, que "Institui o Código Civil".

Todavia, devemos nos imbuir desse espirito ao nos defrontar-mos com O Direito novo.

11 - SistematizaçãolCodificaçãoA sistematização do direito civil é uma necessidade; facilita

sua interpretação; permite-nos uma compreensão macro da matéria regu-lada.

A idéia de sistema liga-se diretamente à de codificação, agru-pamento de normas juridicas da mesma natureza em um corpo unitáriohomogêneo' .

1- AMARAL, Francisco. "Direito Civil Brasileiro. Introdução". Rio de Janeiro: Forense,1991, p. 117.

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Por "código", em geral, entende-se o documento (que é umalei) contendo um conjunto de proposições prescritivas (das quais se ex-traem normas) consideradas unitariamente, segundo uma idéia de coe-rência e de sistema, destinadas a constituirem uma disciplina tendencial-mente completa de um setor'.

Sentindo a necessidade da sistematização/codificação das leiscivis em nosso pais, que eram esparsas, o legislador sancionou o CódigoCivil de 1916, dispondo em seu art. 1.807 que ficavam revogadas as Or-denações, Alvarás, Leis, Decretos, Usos e Costumes concernentes àsmatérias de direito civil por ele reguladas.

O Código Civil de 1916, com vigência estabelecida parajanei-ro de 1917, passou a regular, segundo a dicção de seu art. 1°,os direitos eobrigações de ordem privada concernentes às pessoas, aos bens e às suasrelações.

A importância do Código Civil é capital, porque as leis civispor ele abrigadas se constituem no direito comum básico da sociedade,cujos principios, normas e técnicas, se aplicam subsidiariamente a outrosramos, p. e., ao direito comercial e ao direito econômico.

Basta ver que o Código Civil é precedido por uma Lei de Intro-dução - Decreto-lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942, - composta deregras que dispõem acerca da publicação, vigência, aplicação, interpreta-ção e integração das leis, não só as pertinentes àquele, mas de toda equalquer lei, quer de Direito Público, quer de Direito Privado.

III - Estabilidade do Direito CivilSegundo FRANCISCO AMARAL, o direito civil "É um direi-

to estável em comparação com os sistemas de direito público, variáveisno tempo e no espaço ao sabor das modificações politicas e ideológicas,que justificam as mudanças nas estruturas do poder, mantendo ao longodos séculos uma linha de continuidade histórica nos seus aspectos for-mais e materiais"3 .

2- PERLINGIERI, Pietro. "Perfis do Código Civil, Introdução ao Direito CivilConstitucional". Rio de Janeiro: Renovar, 1977, págs. 3/4.

3- Ob. cit., p. 103.

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Compreensivel tal observação porque, segundo o mencionadoautor, as instituições básicas do direito civil disciplinam a vida dos cida-dãos em sociedade, como a personalidade, a familia, a propriedade, ocontrato, a herança e a responsabilidade civil, instituições estas idênticasás que, guardadas as inevitáveis modificações resultantes do progressosocial, já existiam em Roma e na Idade Média.

Apesar dessa caracteristica, o Código CLÓVIS BEVILÁQUA,como quase tudo na vida, não pode ficar imune ás mudanças sociais. Nãohá vacina que iniba o germe das transformações sociais.

Como o legislador pátrio não é misoneista, anuncia ele, há maisde duas décadas, que estamos diante de uma "Reforma à vista", consubs-tanCÍada no atual Projeto de Lei da Cãmara n. 118, de 1984, RedaçãoFinal (1997).

IV - Breve histórico do Projeto de Código CivilApós o advento do Código de 1916, em razão das transforma-

ções sociais a partir dai ocorridas, o legislador editou várias leis esparsas,visando regular as relações civis, as quais, pouco a pouco, foram modifi-cando o conteúdo do Código Civil.

Com o passar do tempo, sentiu-se a normal desatualização doCódigo Civil, em alguns de seus institutos, mormente o direito de familia.

Surgiu, em decorrência disso, o Projeto de Lei n. 634/75, deiniciativa do Poder Executivo, baseado num anteprojeto elaborado peloProf MIGUEL REALE, contando com a participação dos jurisconsultosJOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, AGOSTINHO DE ARRUDA AL-VIM, SYLVIO MARCONDES, EBERT CHAMOUN, CLÓVIS DOCOUTO E SILVA e TORQUATO CASTRO, que elaboraram, pela or-dem, as matérias pertinentes á Parte Geral, Direito das Obrigações, Ati-vidades Negociais (modificada, posteriormente, para Direito de Empre-sa), Direito das Coisas, Direito de Familia e Direito das Sucessões

Enviado o anteprojeto á Cãmara dos Deputados, o texto primi-tivo recebeu várias emendas; depois, foi encaminhado ao Senado Fede-ral, onde foi intitulado de Projeto de Lei n. 118.

Submetido á apreciação do Plenário dessa última Casa, o Pro-jeto recebeu 360 emendas, em 1984. Em 1985, reaberto o prazo para

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emendas, acrescentaram-se-lhe mais 6 emendas, de autoria do SenadorLúcio Alcântara, e, ao final, mais 127, oferecidas pelo Relator.

v - Princípios norteadores e inovações do ProjetoNa atualidade, o estudo e a aplicação do Direito Civil estão

voltados para o lado social.Trata-se de uma renovação dos estudos privatisticos através da

influência da Constituição sobre o Direito Civil que leva a um modo novode abordar os problemas e de raciocinar a sua solução' .

Vê-se esse reflexo socializante, dentre outros institutos, na Se-ção I (Disposições Preliminares), do Capitulo I (Da Propriedade em Ge-ral), do Titulo m (Da Propriedade), do Livro III (Do Direito das Coisas),mais precisamente nos ª ª 10e 20 do art. 1.227 do Projeto, onde está dito,respectivamente, que o direito de propriedade deve ser exercido em con-sonância com suas finalidades econômicas e sociais, além do que defe-sos os atos que não tragam ao proprietário qualquer utilidade.° Código Civil em vigor é bem mais privatístico quando tratada propriedade em geral, pois que ele, ao contrário do Projeto, não recep-cionou o dogma da função social da propriedade.°Projeto, conforme salientado pelo Senador JOSAPHA MA-RINHO, em seu Pronunciamento, reduziu os prazos do usucapião [o ex-traordinário para 15 anos, e os especiais urbano ou rural, com a finalida-de de moradia e/ou trabalho, após 5 anos de posse), para proporcionar,portanto, o uso mais útil e produtivo da terra, valorando, assim, o uso dafunção social da propriedade'.

Ainda no Livro m, a inovação de relevo é aquela prevista noTitulo IV, que trata do direito de superficie. Permite-se ao proprietárioconceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, portempo determinado, mediante escritura pública a ser inscrita no Registrode Imóveis.

A concessão da superfície poderá ser gratuita ou onerosa, permi-tida, ainda, sua transferência a terceiros, além do que, fulecendo o superfi-

4- Cfr. CICCO, Maria Cristina de. In Prefácio PERLINGIERE, Pietro. "Perfis do CódigoCivil. Introdução ao Direito Constitucional", Rio de Janeiro: Renovar, 1977.

5- Cfr. "Código Civil- Projeto de Lei da Câmara n. 118, de 1984, Redação Final".

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ciário, o direito deste se transfere aos seus herdeiros. E, em caso de vendado imóvel ou de alienação do direito de superficie, o proprietário ou osuperficiário terão o direito de preferência, em igualdade de condições.

Pode sentir-se, portanto, que esse instituto abriga cunho econô-mico-social; e, se bem aplicado, será também um redutor da crise habita-cional e instrumento de incentivo á produção agrícola, sobretudo consi-derada a dimensão continental do nosso pais.

Seguindo o pensamento constitucionaL no campo do Direito deFamília, o Projeto facilita a conversão da união estável em casamento,mediante simples pedido dos companheiros ao juiz e assento no RegistroCiviL Ou seja, reconhece, como entidade familiar, a união estável entre ohomem e a mulher que vivam como se casados fossem por mais de cincoanos, eliminando, dessa forma, o conceito discriminatório de "famílialegitima", constituida, antigamente, só pelo casamento. A "familia", do-ravante, pode ser constituida de várias formas, dentre elas, pela uniãoestável, impondo a reforma aos companheiros os mesmos deveres éticosatribuidos aos cônjuges casados, quais sejam, os de lealdade, respeito,assistência, guarda, sustento e educação dos filhos.

Difercncia a união estável do concubinato. conceituando estecomo as "relações não eventuais entre o homem e a mulher impedidos decasar". Com isso, acaba a antiga divergência distintiva sobre tais figurasjurídicas.

Criou a figura do "poderfamibar", em substituição ao antigoinstituto do pátrio poder. Em conseqüência, os filhos, enquanto menores,estarão sujeitos ao poder familiar, exercido, em igualdade de condições,pelo casaL

Com essa inovação se encerra, de vez, a polêmica pretérita dequem era o "chefe de família" e, não raro, a atitude machista: '"Quemmanda nesta casa e nos filhos sou eul". E já era tempo, pois a atual Cons-tituição igualou os direitos da mulher aos do homem.

Por outro lado, independentemente de sua origem, os filhos (in-clusive os adotados) gozam de tratamento igualitário.

A Lei do Divórcio (ar!. 54) revogou expressamente os arts. 315a 324 do Código Civil, que dispunham sobre a dissolução da sociedadeconjugaL Agora, o Projeto passa a disciplinar novamente o assunto, elen-

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cando no Capitulo X do Livro IV, a diversidade de causas que levam atcrmo a sociedade conjugal, modificação esta, a nosso ver, correta, querpela importãncia do tema, quer pela mclhor localização topográfica damatéria, evitando sua dispersão.

Inovação técnica importante foi a substituição do termo "atojuridico" por "negócio jurídico", expressão referente aos contratos, so-bretudo porque negócio juridico, segundo CÉZAR FIUZA, "é todo atode emissão de vontade combinado com O ordenamento juridico, voltadoa criar, modificar ou extinguir relações ou situações juridicas, cujos efei-tos vêm mais da vontade do que da lei"'. (i.n.)

Por outro lado, previu, sem paralelo, a figura dos "atos juridi-cos lícitos", que não sejam negócios juridicos, aplicando-se àqueles, noque couber, as mesmas disposições pertinentes a este último.

Ao tratar dos atos ilícitos, o Projeto, ao contrário do atual art.159 do Código Civil, prevê a reparação de dano exclusivamente moral,suprindo a omissão legislativa a respeito.

E ainda atento ao principio socializante, dispõe que comcte atoilícito aqucle titular de direito que, ao exercê-lo, excede manifestamenteos limites impostos pelo seu fim econômico ou social.

Inovou ao instituir a figura da "Icsão". Esta ocorre quando umapessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a pres-tação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta. Porconseqüência, inócuas serão as "clàusulas leoninas" eventualmente in-sertas nos contratos, porquanto ineficaz o negócio juridico.

O Projeto adotou a teoria da "desconsideração da pessoa jurídi-ca", o que é louvável. Tal inovação decorre do fato de que, autônomo opatrimônio da pessoa jurídica, verificada a dilapidação dcle em caso defraudc, os bens dos sócios costumavam ficar livres de constrição judicial,não respondendo pelas obrigações sociais. Agora, "em caso de abuso dcpersonalidade juridica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pelaconfusão patrimonial, o juiz pode decidir, a requerimento da parte ou doMinistério Público, quando lhe couber intervir no processa, que os efei-

6- ,...Ipl/d, FfiJZA, Cézar. "Direito Civil, Curso Completo". Belo Horizonte: Del Rey,1998, p.87.

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tos de certas e detenninadas relações obrigacionais sejam estendidos aosbens particulares dos administradores ou sócios da pessoa juridica"7

Essa teoria poderá ser um instrumento inibidor de realizaçãode fraudes, porquanto quando da apuração de responsabilidades, máxi-me no setor financeiro, os bens particulares dos sócios ou dos adminis-tradores responderão pelas obrigações assumidas pela pessoa juridicada qual façam parte.

Em matéria obrigacional, atento para a prevalência do inte-resse público sobre o privado, o Projeto limita a liberdade de contratar,dispondo que esta será exercida em razão e nos limites da função socialdo contrato. Impõe, também, o dever ético nas contratações, ao estabe-lecer que os contraentes serão obrigados a respeitar, tanto na conclusãoquanto na fase de execução dos contratos, os princípios de probidade eboa-fé.

Desprestigia o adágio paeta sunt servanda, de predomínio anti-go; acolhe o princípio da rebus s/c stantibus, de sentido mais justo, pre-vendo a resolução por onerosidade excessiva, nos casos de contratos deexecução continuada ou diferida, evitando, dessa fonna, o enriquecimen-to ilícito de um dos contraentes em prejuízo do outro.

Num novo Livro à frente ao do Direito das Obrigações, o Proje-to regula o Direito de Empresa, substitutivo da parte geral do CódigoComercial. Altera o conceito de "comerciante" para o de "empresário",definindo-o como todo aquele que exerce profissionalmente atividadeeconômica organizada para a produção ou a circulação de bens e servi-ços, além de regulamentar os vários tipos de sociedades comerciais, ex-ceção feita à sociedade anônima, que segue regida por lei especial, apli-cando-se-lhe, nos casos omissos, as disposições do novo Código.

O Projeto incorporou (pensamos) a "teoria da empresa", dei-xando ao largo a "teoria dos atos de comércio", aumentando os limites deincidência do direito comercial, nele inserindo a prestação de serviços,em razão de sua economicidade.

Ademais, revoga toda a legislação mercantil por ele abrangida,ou incompativel com os seus princípios, com as ressalvas nele previstas.

7- C.f. Projeto de Lei da Câmara n. 118/84.

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No que se refere ao Direito das Sucessões, vemos alterações naordem da vocação hereditária.

No sistema vigente, o cõnjuge ocupa a terceira posição na ordemde vocação hereditária, só herdando na ausência de descendentes ou ascen-dentes. Por força das inovações, a sucessão legítima defere-se aos descen-dentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, "salvo se casado estecom o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obri-gatória de bens; ou, ainda, se, no regime da comunhão parcial, o autor daherança não houver deixado bens particulares". Em outras palavras: con-corre igualitariamente com os descendentes, ressalvada a hipótese de já terdireito á meação, em razão do regime adotado no casamento.

Ao cuidar da sucessão por disposição de última vontade (testa-mentária), o Projeto simplifica a elaboração do testamento, sem, contu-do, eliminar a solenidade do ato.

Nas formas pública e cerrada, reduz para dois o número de tes-temunhas que deverão presenciar o ato.

Para a forma particular, exige apenas três testemunhas, além doque estabelecendo que o testamento pode ser escrito de próprio punho,ou mediante processo mecânico, permissão esta atuahnente defesa. E mais:em circunstâncias excepcionais declaradas na cédula, o Projeto aceita otestamento particular de próprio punho e assinado pelo testador, sem tes-temunhas, cuja confirmação ficará a critério do juiz.

Quanto á forma especial, o Projeto introduz o testamento "ae-ronáutico", inédito até então.

Pelo Projeto, segundo o Prof. MIGUEL REALE, "( ...) em ma-téria sucessória, não é mais lícito ao testador vincular bens da legítima aseu bel prazer. Ele deve explicitar o motivo que o leva a estabelecer acláusula limitadora do exercício de direitos pelo herdeiro, podendo o juiz,em certas circunstâncias, apreciar a matéria para verificar se procede ajusta causa invocada."8 .

Na Parte Geral, ao dispor sobre as pessoas fisicas, apresenta umnovo ente capaz de direitos e obrigações na ordem civil- o "ser humano",em substituição á antiga expressão "homem".

8- REALE, Miguel. "Visão Geral do Projeto de Código Civil".

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A intenção do legislador, por certo, foi a de observar o princí-pio constitucional de igualdade de direitos entre o homem e a mulher, afim de evitar a discriminação entre os sexos.

Preocupação despicienda, já que a expressão "homem" signifi-ca também ser da espécíe humana.

A propósito, já dizia o grande CLÓVIS BEVILÁQUA: "Todohomem, diz o Código. Essa expressão compreende todos os seres da es-pécie humana."9 .

Outra inovação: agora, aos 18 e não mais aos 21 anos de idade,cessa a menoridade, ficando a pessoa fisica habilitada à prática de todosos atos da vida civil.

Não obstante a polêmica em tomo do tema, justificável a mu-dança, sobretudo porque nos encontramos em outro tipo de sociedade,mais dinâmica e competitiva.

O jovem de hoje é bem informado, vive entre computadores;seu discernimento é aguçado. Ademais, se ele é responsável penalmenteaos 18 anos c pode votar aos 16 anos, nada justifica seja consideradocomo relativamente incapaz.

Por outro lado, se muitos deles vivem na dependência dos pais,outros, em número menor, é verdade, têm familia constituida, desenvol-vem seus pequenos negócios, estão empregados, envolvidos em ativida-des artisticas; enfim, ganham "a vida".

O Código Civil em vigor disciplina a questão da prescrição e dadecadência com atecnia. A respeito, afirmava o Prof. AGNELO AMO-RIM FILHO que "( ...) o nosso Código Civil engloba indiscriminadamen-te, sob uma mesma denominação e subordinados a um mesmo capitulo,os prazos de prescrição e os prazos de decadência, dando-lhes, conse-qüentemente, tratamento igual"" .

Ao contrário, o Projeto separa as duas figuras em capitulos pró-prios, além do que, mais técnico, estatui que "Violado o direito, nasce

9- BEVILÁQUA Clóvis. "Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, Comentado porClóvis Beviláqua". Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1959, p. 138.

10- Cfr. AMORlM Filho, Agnelo. "CRn'ÉRJO CIENTiFICO PARA DlSTINGUJR APRESCRIÇÃO DA DECADÊNCIA E PARA IDENTIFICAR AS AÇÕESIMPRESCRJTIVEIS", in R Fac. Dir. Fortaleza, 1960, v. 14, p. 303.

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para o titular a pretensão, a qual se extingue pela prescrição, nos prazos aque aludem os arts. 205 e 206." (i. n.).

O Código Civil dispõe que as ações prescrevem, o que é umerro. Na verdade, a ação de direito processual não prescreve; tampouco odireito subjetivo. Por outras palavras, o que a prescrição alcança é a pre-tensão (=a exigibilidade), pois consoante a lição de SEMY GLANZ,"Prescrição é o impedimento à pretensão não exercida no prazo legal,ante a exceção substancial argüida pelo réu e aceita judicialmente. " 11 .

Por isso, mais técnico, o Projeto diz prescrever, exemplificati-vamente: "Em dois anos, a pretensão para haver prestações alimentares,a partir da data em que se vencerem." (art. 206, ~ 2°) (i. n.).

Quanto à decadência, que SEMY GLANZ a define corretamen-te como "a extinção de direito potestativo não exercido no prazo da res-pectiva ação constitutiva"", será "(. ..) prevista em cada caso ocorrente,em conexão com o artigo que lhe diz respeito. Desse modo, fica superadade vez a interminável dúvida sobre se uma disposição é de caráter pres-critivo, ou, então, de caducidade."l3 .

VI - Estrutura do ProjetoO Código Civil de 1916 é composto de quatros Livros: Parte

Geral (Livro I); Parte Especial (Livro I - Do Direito de Familia); (Livro 11- Do Direito das Coisas); (Livro III - Do Direito das Obrigações); (LivroIV - Do Direito das Sucessões).

O Projeto apresenta uma estrutura mais ampla. Veja-se: ParteGeral (Livro I - Das Pessoas); (Livro 11 - Dos Bens); (Livro III - DosFatos Jurídicos); e mais uma Parte Especial, assim estruturada: (Livro I -Do Direito das Obrígações); (Livro II - Do Direito de Empresa); (LivroIII - Do Direito das Coisas); (Livro IV - Do Direito de Familia); (Livro V- Do Direito das Sucessões).

tt- Apud, GLANZ, Semy. "Código Civil Brasileiro Interpretado, J.M. de Carvalho Santos,Suplemento X por Semy Ganz". Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos S.A, 1982,v. XXXIV, p. 28.

t2- GLANZ, Semy. Ob. cit., p. 30.13- REALE, Miguel. Ob. cit.

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Metodologicamente, costuma-se dividir o Direito Civil em duaspartes: uma geral e outra especial.

Na parte geral, dispõe-se sobre as pessoas, os bens e os fatosjuridicos.

Na parte especial, trata-se de departamentos que tenham liga-ções intimas com a pessoa humana - obrigações, família etc.

Não obstante a divergência doutrinária acerca da localizaçãodas matérias relativas á parte especial no Código Civil, entendemos queo Projeto se apresenta metodologicamente mais correto quanto á estrutu-ra, sobretudo ao dispor o Direito das Obrigações logo após a parte geral.

A principal razão dessa prioridade é de ordem lógica. O estudode vários institutos dos outros departamentos do Direito Civil dependedo conhecimento de conceitos c construções teóricos do Direito dasObrigações, tanto mais quanto ele encerra, em sua parte geral, preceitosque transcendem sua órbita e se aplicam ao Direito Privado. Natural,pois, que sejam apreendidos primeiro que quaisquer outros. Mais fácil setorna, assim, a exposição metódica."

E, como novidade, instituiu o Livro 11, onde trata do Direito deEmpresa, criando a figura do empresário, em abandono á do comercian-te, mantendo, no mais, a estrutura do Código Civil em vigor.

VII - ConclusãoO Projeto é ideologicamente diverso do Código Civil em vigor.

Abandona os principios liberais (privatisticos) de 1916, adotados pelaburguesia mercantil e agrária da época.

É socializante; valora o uso da função social da propriedade.Acolhe principios éticos, sobretudo nos contratos em que são

exigidas a probidade e a boa-fé dos contraentes.Elastece o conceito de "familia".Dá nova roupagem á atividade empresarial.É inovador e bem estruturado quanto às disciplinas que regula.Revela técnica ao dispor sobre o negócio jurídico, a prescrição

e a decadência.

14- GOMES, Orlando. "Obrigações". Rio de Janeiro:Forense, 1986, p. 5.

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À semelhança de seus criadores, o Projeto apresenta falhas evirtudes. Estas devem ser enaltecidas, aquelas corrigidas com o tempo.

Aliás, sobre suas virtudes, temos a palavra de um de seus idea-lizadores, Prof. MIGUEL REALE, afirmando que o Projeto "( ...) confereao juiz não só o poder para suprir lacunas, mas também para resolveronde e quando for previsto o recurso a vàlores éticos, ou se a regra juridi-ca for deficiente ou injustificável à especificidade do caso concreto."15 .

Cremos nessa afirmação.O que nos preocupa é a morosidade de seu acontecer, sobretudo

porque o Projeto (uma vez sob o signo de Lei) só entrará em vigor umano após a sua publicação.

Até lá, muitas mudanças haverão. E mais: estaremos sob oscaprichos do novo milênio ...

15- Ob. cil.

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oDIREITO CONSTITUCIONAL DO RÉUAO SILÊNCIO E SUAS CONSEQÜÊNCIAS

Louri Geraldo Barhiero./uiz de Direito Titular da 8" Varo Criminal Centrol de São Paulo

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o DIREITO CONSTITUCIONAL DO RÉuAO SILÊNCIO E SUAS CONSEQÜÊNCIAS

Louri Geraldo Barbiero

SUMÁRIO: 1. Origem e conceito do instituto; 2. Os pactos internacio-nais e o direito norte-americano; 3. O direito ao silêncio nalegislação pátria; 3.1. Sua extensão e amplitude: 3.2. Suadelimitação; 3.3. O dever de informação e o seu registro: 4.A legislação processual penal e a nova ordem constitucio-nal: 4.1. Não se confunde o direito ao silêncio com a reali-zação do ato judicial ou procedimental em si; 4.1.1. Comoproceder ao interrogatório sem violar os ditames legais; 4.2.O interrogatório e sua natureza juridica; 4.3. O silêncio comoelemento de prova; 4.4. O principio da presunção de ino-cência; 4.5. A cautelar salutar do art. 191 do CPP; 5. O cri-tério para valorizar o silêncio; 6. Conclusões.

1. Origem e conceito do instituto"Embora, para alguns autores, as suas raízes já possam ser iden-

tificadas no Velho Testamento e, posteriormente, no direito canônico, oprivilégio contra a auto-incriminação passou a adquirir a sua forma mo-derna na Inglaterra. Após a edição da Magna Carta (1215) e durante olongo processo de reformas que a sucede visando á instauração de umsistema processual acusatório, a liberdade de declaração vai sendo gra-dualmente reconhecida até constituir-se, em meados do século XVII, emprincipio de direito comum." (O DIREITO AO SILÊNCIO TRATA-MENTO NOS DIREITOS ALEMÃO E NORTE-AMERICANO - InRevista Brasileira de Ciências Criminais nO19, pág. 186, Apud THEO-DOMIRO DIAS NETO).

A liberdade de declaração ou direito ao silêncio é expressãofundamental do privilégio contra a auto-incriminação, ou seja, o direito

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de toda pessoa em não ser convertida em meio ativo de prova contra siprópria. Está assentada no principio segundo o qual ninguém poderá serobrigado, em qualquer causa penal, a depor contra si mesmo. Significaque o indiciado ou acusado não tem obrigação nem dever de fornecerelementos de prova que o prejudiquem; tem a liberdade dc defender-secorno entender melhor, falando ou calando-se, quando este caminho lheparecer mais conveniente para a sua defesa. Em outras palavras, que nin-guém é obrigado a produzir provas contra si mesmo ou praticar atos lesivosà sua defesa ou a auto-incriminar-se (nemo tenetur prodere seipsum. quianemo tenetur detegere turpiludiem suam; ou nemo tenetur se detegere).

2. Os pactos internacionais e o direito norte-americanoO Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Politicos, aprova-

do pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 16.12.66, assegura a"cada indivíduo acusado de um crime", entre as garantias processuaisminimas para o exerci cio do direito de defesa, aquela de "não ser cons-trangido a depor contra si mesmo ou a confessar-se culpado" (art. 14,incisos 11 e 111, g).

Da mesma forma, a Convenção Americana sobre Direitos Hu-manos (Pacto de São José da Costa Rica), adotada no âmbito da Organi-zação dos Estados Americanos, em 22.11.69, e em vigor para o Brasildesde 25.09.92 (Decreto n" 678/92), assegura "a toda pessoa acusada dedelito", entre outras garantias mínimas, o direito de não ser obrigada adepor contra si mesma, nem a declarar-se culpada (art. 8", inciso 11,g).

"O privilégio contra a auto-incriminação está expressamentepositivado pelo 5" amendment da Constituição norte-americana, segundoo qual nenhuma pessoa pode ser compelida a ser testemunha contra simesma em um procedimento criminal -'No person ... shall be compelledin any criminal case to be a witness against himself. ..' (Apud THEODO-MIRO DIAS NETO - op. cit. pág. 194)

3. O direito ao silêncio na legislação pátriaO direito do indiciado ou acusado permanecer calado já era

garantido pelos artigos 6", inciso V, e 186 do Código de Processo PenalBrasileiro, sendo que este último assim dispõe:

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Antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao réuque. embora não esteja obrigado a responder às perguntasque lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser inter-pretado em prejuizo da própria defesa. (destaques nossos).

Com a Constituição de 1988, a garantia processual foi elevada anível constitucional, pelo seu artigo 5°, inciso LXIII, nos seguintes termos:

o preso será informado de seus direitos, entre os quais o depermanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência dafamilia e de advogado. (grifos nossos).

3.1. Sua extensão e amplitudeCabe observar que embora o constituinte tenha se referido, com

prioridade, ao preso, a garantia se estende também ao indiciado ou acusadosolto. "O legislador teve apenas sua preocupação inicial com a pessoa captu-rada: a esta, mesmo fora e antes do interrogatório, são asseguradas as men-cionadas garantias. Mas isto não pode, nem quer dizer, que ao indiciado ouao acusado que não esteja preso não seja estendida a mesma proteção, nomomento maior da autodefesa que é o interrogatório" (Grinover, Ada Pelle-grini et alii, As Nulidades no Processo Penal, São Paulo, 1992, pág. 67).

Por outro lado, a proteção ao silêncio se aplica tanto ao interro-gatório policial como ao judicial (RT 709/313), mas não só. Abrangetodas as oportunidades em que o sujeito passivo é posto em condições deser inquirido.

3.2. Sua delimitaçãoO direito ao silênCio se aplica apenas à última parte do interro-

gatório. O interrogado tem o dever de responder corretamente as pergun-tas relativas à sua qualificação, sob pena de responsabilidade criminal,porque estas não dizem respeito aos fatos que lhe são imputados e, emconseqüência, as respostas não trazem em si qualquer atividade defensi-va. Além disso, a autoridade que preside o ato precisa ter a certeza de quese trata mesmo do indiciado ou acusado daquele inquérito ou processo. Apropósito deste tema há excelente artigo sob o titulo "Falsa Identidade -

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Crime, contravenção ou autodefesa?", in Revista In verbis - nOO, pág. 14.Neste sentido a jurisprudência:

Falsa identidade. Mentira da ré quanto á idade para benefi-ciar-se da inimputabilidade penal"Afirmar a ré ser de menoridade para excluir-se da respon-sabilidade penal, configura-se o delito previsto no artigo307 do CP pois, se tem o direito de calar-se, não tem, contu-do, o direito de mentir sobre a própria idade, procurandoburlar a Justiça e a fé pública"

(TJ/RJ, Ap. Crim. N" 295/97, Nilópolis, 48 Ccrim., reI. des.Antônio Izaias da Costa Abreu, j. 24.06.97, m.v.). (BoI. IBCCrim nO62,pág.233).

"A faculdade reconhecida ao réu de calar a verdade, porocasião do interrogatório, não se confunde com a obriga-ção, a ele imposta pela lei, de fornecer elementos verdadei-ros sobre a sua própria identidade, uma vez que a qualifica-ção antecede ao interrogatório e só neste é que se reconheceo exerCÍcio da autodefesa"

(TACRIM/RJ, Ap. Crim. - 28 Ccrim., reI. Juiz Afrânio Sayãode Paula Antunes) (Revista In Verbis - nOO ), pág. 14).

3.3. O dever de informação e o seu registroComo resulta claro dos dispositivos constitucional e proces-

sual, o interrogado deve ser informado, de maneira clara, sobre seu direi-to e, quanto ao preso, a informação deve ser feita desde o momento desua captura, assegurando a este o direito ao silêncio mesmo fora e antesdo interrogatório (oitiva informál - entrevista pela imprensa). O dever deinformação expressa o intuito do legislador em evitar uma auto-incrimi-nação involuntária em virtude de desconhecimento da lei.

E apesar de não haver previsão lega! expressa, é recomendável quea informação e a advertência, taoto a constitucional como a do artigo 186 do

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CPP, constem do auto ou do termo de interrogatório, visando a evitar possi-veis nulidades, posto que o desrespeito ao direito ao silêncio (fàlta de infor-mação sobre o direito ou a omissão no auto ou termo) poderá gerar a nulida-de do ato, dependendo do prejuizo causado ao direito de defesa.

4. A legislação processual penal e a nova ordem constitucionalQuestão que se discute na doutrina e na jurisprudência desde a

Constituição de 1988 é a da recepção ou não pela nova ordem constitu-cional dos artigos 186, parte final, 191 e 198, parte final, do Código deProcesso Penal.

Parte da doutrina e da jurisprudência sustenta que, a contarda Constituição da República de 1988, tais dispositivos não mais pre-valecem, em face do principio constitucional acima citado. Nesse sen-tido: Revista Brasileira de Ciências Criminais nO6 - págs. 133/147;Revista da Escola Paulista da Magistratura, nO2, pág. 111; Grinover,Ada Pellegrini et alii, op. cil. - pág. 68; TJSP - Acrim 149.145; RT709/313, 725/604 e 682/285; RJDTACRIM 28/215; BoI. IBCCrim-Jurisprudência nO05 - pág. 05, nO47 - pág. 166, nO53 - pág. 189 e nO58 - pág. 204.

Os que defendem esta tese sustentam que esses dispositivossão uma forma de coagir o réu a falar, visando á confissão. Represen-tariam uma limitação a direito público subjetivo constitucional; leiinferior não poderia limitar o que lei superior não quis que fosse limi-tado. O direito ao silêncio teria passado a integrar o princípio consti-tucional da ampla defesa, sendo causa de nulidade absoluta tal adver-tência feita em interrogatório, por violação da garantia constitucio-nal. O exercício desse direito não poderia ser interpretado em seu des-favor. Afirmam que interpretar o silêncio em prejuizo do réu significanegar o princípio da presunção de inocência. O silêncio não poderiaser objeto de valoração jurisdicional, porque não constitui prova, nosentido juridico do termo.

A tese de revogação desses dispositivos, embora embasada emopiniões das mais respeitáveis, á evidência, não pode vingar. Os argu-mentos não convencem e entendemos não ser esta a melhor posição quedeva prevalecer, senão vejamos.

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4.1. Não se confunde o direito ao silêncio com a realizaçãodo ato judicial ou procedimental em si

Não se confunde o direito constitucional de ficar calado com arealização do ato em si. O interrogatório é ato obrigatório, podendo aautoridade, judicial ou policial, determinar, inclusive, a condução coerci-tiva do acusado a fim de que seja interrogado (artigo 260 do CPP). Para-lelo ao direito subjetivo de todo cidadão, há o interesse público, manifes-tado no anseio de contenção e repressão das condutas delituosas. Quemmilita na Justiça Criminal não desconhece a reconhecida faculdade de aautoridade judicial ou policial mandar buscar coercitivamente o réu ouindiciado, para interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que,sem ele, não possa ser realizado; nada empecendo que, presente, cale-se.Uma coisa não implica na outra. A obrigatoriedade da presença fisica doacusado não lhe retira o direito ao silêncio (RT 684/314). Trata-se de umdos mais importantes atos processuais, pois a falta do interrogatório, quan-do possível, constitui nulidade (art. 564, m, do CPP), diante das garan-tias estabelecidas na Constituição Federal de 1988, especialmente a dodevido processo legal.

O mesmo ocorre com o julgamento pelo Tribunal do Júri. Umacoisa é a presença obrigatória para a realização do julgamento, á vista dodisposto no artigo 451 do CPP; outra é o direito do réu de, estando pre-sente, calar-se. Assim, equivocada se mostra a jurisprudência que enten-de que, após a Constituição de 1988, dado ser direito do réu silenciar, nãofaz sentido continuar exigir a sua presença na sessão do Tribunal do Júri,como o seguinte aresto:

JÚRI - Sessão de Plenário - Não comparecimento do réu,devidamente intimado - Admissibilidade - Direito ao si-lêncio assegurado pela CF/88.

Ementa Oficial: A Constituição da República de 1988 con-sagra ser direito do réu silenciar. Em decorrência, não odesejando, embora devidamente intimado, não precisa com-parecer á scssão do Tribunal do Júri. Este, por isso, podefuncionar normalmente. Conclusão que se amolda aos prin-

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cípios da verdade real e não compactua com a malícia doacusado de evitar o julgamento. (STJ; RHC 2.967-6 - GO -68 T. - J. 2.8.94 - ReI. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro -DJU 10.10.94) - (RT 710/344).

Aliás, "no direito alemão, a presença do acusado no interroga-tório e nas audiências não é somente um direito, mas uma obrigação quese aplica ás diversas fases do procedimento. Como regra geral, não have-rá audiência oral sem a presença do réu. Nestes casos se ordenará a suacondução coativa, ou se decretará ordem de prisão". (Apud THEODO-MIRO DIAS NETO - op. Cit. pág. 184).

4.1.1. Como proceder ao interrogatório sem violar os ditameslegais

Mas se, por um lado, o ato é obrigatório, por outro, não pode-mos nos esquecer que ele "deve ser efetivado com observância aos prin-cípios constitucionais que garantem a integridade fisica, a intimidade, aliberdade e a consciência dos acusados. Quando se condena a violênciano interrogatório, não se abomina apenas a vis corporalis, a tortura fisica,mas também a pressão psicológica, a malicia, a fraude. Neste passo, ca-bivel a recomendação de Bandeira Stampa: 'Interrogue-se com austeri-dade. com habilidade. com inteligência. Não se cometa o crime de per-guntar com brutalidade, com fraude. com chantagem, com malícia. As-sim. estarão resguardados o direito de calar do indivíduo. e o direito deperguntar da sociedade "'. (Prefácio do livro "O Direito de Calar", deSerrano Neves, Freitas Bastos, 1960, pág. 9 - RT 694/303).

4.2. O interrogatório e sua natureza jurídicaO interrogatório do acusado está disciplinado nos artigos 185 a

196 do Código de Processo Penal Brasileiro, inserido no Titulo VII, dedi-cado à prova. Em que pese o entendimento da doutrina dominante, deque esse ato processual possui um caráter duplo, meio de prova e meio dedefesa, o Código de Processo Penal vigente o considera como meio deprova. Oportuno registrar que o que confere o atributo de meio de provaao interrogatório não é a advertência do art. 186 do CPP. Assim, o inter-

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rogatório do acusado, além de meio de defesa, constitui meio de prova,por sua própria natureza, independentemente do tratamento que a lei lheconferir. Sendo meio de prova, cabe ao juiz apreciá-lo em conjunto comas demais provas colhidas. Mesmo porque "ojuizjormará sua convicçãopela livre apreciação da prova" (art. 157 do CPP), isto é, em face doconjunto probatório.

A esse respeito, assim decidiu o egrégio Tribunal de Justiça deSão Paulo:

Quanto à nulidade do interrogatório, o artigo 5°, inciso LXIII,da Constituição do Brasil não revogou o artigo 186 do Có-digo de Processo Penal.

Quando o Juiz diz ao réu que ele não está obrigado a res-ponder às perguntas que lhe forem formuladas está assegu-rando seu direito ao silêncio e de maneira expressa, semsubterfúgios decorrentes da omissão. Com efeito, ele asse-gura o silêncio de maneira categórica ao réu, e quando dizque o silêncio pode (facultativo) ser interpretado em desfa-vor de sua defesa, está apenas assinalando o que jà se sabe,ou seja, a interpretação, decorrente do artigo 157 do Códi-go de Proceso Penal, ou seja, o Juizo no seu livre convenci-mento, pode interpretar o silêncio da maneira como o con-junto de provas demonstrar. Aliás, o preso será informadode que pode permanecer calado (artigo 5", inciso LXIII, daConstituição da República), o que não significa dizer queficando calado serà absolvido ou obrigará o Juiz, no uso deseu arbitrium regula/um, a interpretar o silêncio em seu fa-vor... (JTJ 1921307)

4.3) O silêncio como elemento de provaÉ certo que o silêncio do acusado não importarà confissão. Mas

poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz(art. 198 do CPP), ou seja, por si só não significa responsabilidade penal.Entretanto, servirá de elemento para a formação da convicção do juiz, em

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confronto com os demais dados colhidos no processo, podendo prejudi-cá-lo ou beneficiá-lo, conforme o caso.

Assim, se o réu exercer o seu direito constitucional ao silêncio,não resta dúvida que o juiz deve examinar a sua postura, como meio deprova que é, em conjunto com os demais elementos existentes nos autos.

Como já decidiu o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado deSão Paulo, "a parte final do art. 186 do CPP, que determina que o réu seráadvertido das conseqüências de permanecer silente no interrogatório, nãofoi revogada pela Constituição de 1988, em que pesem as respeitáveisopiniões em contrário. Isto porque o interrogatório do réu se constitui emmeio de prova e, como tal, deve ser devidamente sopesado pelo Juiz.Assim como as respostas do réu, seu silêncio será igualmente objeto des-sa avaliação. Em certas circunstãncias, o silêncio do réu poderá gerar apresunção de que as respostas oferecidas não sejam satisfatórias, ou mes-mo a prcsunção da existência de culpa. Em todas as hipóteses, entretanto,seja por sua manifestação, seja por seu silêncio, a interpretação será feitasempre em consonância com os demais elementos de prova reunidos noprocesso, nunca isoladamente. Resulta dai a conclusão de que nem sem-pre o silêncio resultará em prejuizo para o réu. Aliás, da leitura do art.186 do CPP depreende-se que o silêncio poderá ser interpretado em pre-juizo do réu, e não que o será, obrigatoriamente" (RT 724/608).

"E é a própria natureza das respostas dadas ou omitidas pclointerrogando, como atos dc natureza humana provocadospor uma comunicação verbal em forma de interrogatório,em tomo das circunstâncias de um fato criminoso de que seacha acusado. que determina que o seu silêncio pode serinterpretado em prcjuizo de sua defesa.Essa intcrpretação. por outro lado, também é ato imanenteao scr humano juiz que interpretará esse silêncio. por forçada sua inteligência e mercê de um trabalho intelectual atéinvoluntário. porque processado no seu subconsciente ecomunicado ao seu consciente, semelhantemente ao pro-cessamento dc dados por um computador, que depois dasoperações invisívcis mostra o resultado na tela já pronto eacabado. manifestando-se até inconscientemente na sua

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convicção em tomo dos fatos, objeto do interrogatório, noato de julgar ou decidir a causa.Nesse contexto, a advertência do final do art. 186 do CPP visapura e simplesmente conscientizar o interrogado dessa verda-de da natureza, nada mais. E como se trata de uma verdade danatureza, seus efeitos e conseqüências são inafastáveis, inevi-táveis e até incontroláveis, demodo que a advertência tem muitomais utilidade para a defesa do que para a acusação.(...) Ela é desnecessária em relação ás suas conseqüências,cujos efeitos operam independentemente da vontade dequem quer que seja porque parte integrante da natureza dohomem. Não o será porém, em relação ao seu objetivo di-dático, que é conscientizar o interrogado de uma verdadeque, possivelmente, nunca foi objeto de suas preocupaçõos.Em conseqüência, se de fato estiver revogado o final do dis-positivo, a acusação nada ganhará, mas o prejuizo para a de-fesa será imenso. Teremos réus sendo interrogados sem aconsciência e sem a conscientização visada didaticamentepela advertência de que seu silêncio pode ser interpretado emprejuizo de sua defesa, mas mesmo assim, essa operação deinterpretação está ocorrendo na prática porque inevitável.Assim, fica evidente que a Constituição Federal de 1988 ne-nhuma interferência teve na vigência do art. 186 do CPP, atéem homenagem e em respeito ao direito á ampla defesa queela também consagra". (Trecho do parecer da ProcuradoriaGeral de Justiça, no julgamento da apelação nO150.947-3/2,da Comarca de Taubaté, pela 4' Câmara Criminal do Tribu-nal de Justiça do Estado de São Paulo - RT 724/610).

Como assinala THEODOM1RO DIAS NETO, "muito emborao direito processual penal moderno lenha abdicado do contribulo doacusado na elucidação da verdade, é inegável que este continua a exer-cer um papel essencial como meio de prova, porquanto aquilo que elediz e a forma como ele se comporta possuem um grande peso na for-mação da convicção do juiz" (op. cit.- pág. 185 - grifas nossos).

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4.4. O princípio da presunção de inocênciaO artigo 5°, inciso LVII, da Constituição Federal, apenas decla-

ra que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado desentença penal condenatória, ou seja, que o acusado é inocente durante odesenvolvimento do processo, só se modificando este estado por senten-ça com trânsito em julgado, que o reconheça culpado. Mas a referidanorma não revogou os dispositivos legais que permitem a livre aprecia-ção da prova pelo juiz, mesmo porque, é importante frisar, a valoração dapostura do réu pelo juiz é feita apenas, ao final, em conjunto com todosos elementos constantes dos autos, em razão do que não há que se falarem afronta ao principio da presunção de inocência.

4.5. A cautela salutar do art. 191 do CPPQuando o acusado exerce o direito ao silêncio, para que não se

tenha a impressão de que o juiz não perguntou ao réu dados e circunstân-cias importantes do fato, o artigo 191 do CPP impõe, e é conveniente, quese transcreva no termo as perguntas feitas e a ausência de resposta. As-sim, fica comprovado que o juiz formulou as indagações, assegurando aautodefesa do acusado (RT 694/304). Cuida-se de cautela salutar que emnada conflita com o direito ao silêncio: ao contrário, a sua omissão é quepoderia causar prejuizo á defesa.

5. O critério para valorar o silêncioComo critério para valoração do silêncio, aplicável, por for-

ça do artigo 3° do CPP, a regra do artigo 335 do CPC: "Em falta denormas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experi-ência comum subministradas pela observação do que ordinaria-mente acontece ... "

A experiência diária tem demonstrado que a reação normaldo inocente é bradar contra a acusação injusta e não se reservar paraoferecer explicações apenas perante o juizo. Essa posição é própria dequem necessita de uma estratégia para oferecer resistência ao pleitoministerial. Aquele que é inocente negará com absoluto êxito a impu-tação que lhe tiver sido formulada, porquc nenhum crime houverapraticado.

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Como reconhecido no julgamento das apelações criminais nOs943.093/3,978.159/6,1.030.173/2,1.030.509/9, 1.031.417/9 e 1.070.15115 do Egrégio Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo:

"Embora a opção pelo silêncio derive de previsão cons-titucional, ela não inviabiliza o convencimento judicialno sentido desfavorável ao réu, pois a reação normal do

,.i~ocente é proclamar, com insistência e ênfase, a suainocência, não reservar-se para prestar esclarecimen-tos apenas em Juízo." (RJTACrim 35/92 e 30/217; RT739/626).

o mesmo entendimento foi esposado no julgamento das apela-ções criminais nOs981.431/1, 310.674/3 e 1.035.429/3, de cuja ementa seextrai o seguinte tre~ho:

"O silêncio do indiciado pode ser interpretado contra si eisso não macula o direito constitucional previsto no incisoLXIII d,oart. 5° da Carta Magna. Ora, comumente o incre-pado inocente, de pronto proclama, de forma enfática e rei-terada, esse estado, dai porque o fato de reservar-se a pres-tar esclarecimentos somente em Pretória, data venia, émuito\sintomático." (RJTACrim 33/218).

No mesmo diapasãoJoi a decisão prolatada pelo Tribunal deAlçada Criminal, nos autos da Apelação nO772.707, de São Paulo, quetem sua ementa assim redigida:

"Inquérito policial. Silêncio do réu. Indício de veracidadedas acusações. Entendimento: o siíêncio do réu na fase doinquérito policial, negando-se a responder às perguntasformuladas pela autoridade policial, é um sério indício deque as acusações são verdadeiras, visto que, uma pessoainocente, quando acusada injustamente da prática de umdelito, procura, de todas as formas possíveis, demonstrar a

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inveracidade das acusações que lheforam lançadas". (TA-CRIM - 6" Câm. reI. Juiz Almeida Braga, j. 20.1.93, v.u).

Orientação semelhante foi apresentada pela Colenda li" Câ-mara do Egrégio Tribunal de Alçada Criminal, nos autos da apelação n°934.371, de Pindamonbangaba:

"Silêncio do indiciado - Consideração em seu desfavor -Possibilidade - Violação ao principio constitucional do art.5°, LXlll - Inocorrência:

o réu interrogado na fase policial, na qualidade de indi-ciado, pode utilizar-se do direito de ficar calado, tal comolhe permite a Constituição Federal, no art. 5~LXIII, re-servando-se para, tão-só, em Pretório, esclarecer os fa-tos, entretanto, essa opção do acusado pelo silêncio podeser considerada pelo Juiz em seu desfavor, ao analisar oconjunto probatório, sem que se vulnere o citado disposi-tivo constitucional, pois, em se cuidando de inocente, aatitude normal deste é, na primeira oportunidade, procla-mar, com ênfase, a ausência de sua culpabilidade"(RJDTACRIM 27/143).

6. ConclusõesDo exposto, podemos extrair as seguintes conclusões:a) o direito constitucional ao silêncio se estende também ao

indiciado ou acusado solto e se aplica tanto ao interrogatório policialcomo ao judicial e a qualquer ato em que o sujeito passivo é posto emcondições de ser inquirido;

b) o direito ao silêncio se aplica apenas à última parte do interro-gatório; o interrogado tem o dever de responder corretamente as perguntasrelativas à sua qualificação, sob pena de responsabilidade criminal;

c) o interrogado deve ser informado sobre seu direito ao silên-cio e é recomendàvel que a informação e a advertência, tanto a constitu-cional como a do artigo 186 do CPP, constem do termo de interrogatório,

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visando a evitar possíveis nulidades, posto que o desrespeito ao direito aosilêncio poderá gerar a nulidade do ato;

d) não se confunde o direito constitucional de ficar calado coma realização do ato processual ou procedimental em si. Uma coisa nãoimplica na outra. A obrigatoriedade da presença fisica do acusado nãolbe retira o direito ao silêncio;

e) uma coisa é a presença obrigatória do acusado para a realiza-ção do julgamento pelo Tribunal do Júri, à vista do disposto no artigo 45 Ido CPP, que continua em vigor; outra é o direito do réu de, estando pre-sente, calar-se;

f) o interrogatório tem natureza mista; é meio de prova e meiode defesa. Como meio de prova, o juiz, em conjunto e em confronto comas demais provas colhidas, deverá valorá-Io, seja qual for a opção feitapelo réu: confissão, negação dos fatos ou o silêncio;

g) o silêncio do acusado não importa confissão, mas pode cons-tituir elemento para a formação do convencimento do juiz (art. 198 doCPP), ou seja, por si só não significa responsabilidade penal. Entretanto,servirá de elemento para a formação da convicção do juiz, em confrontocom os demais dados colhidos no processo, podendo prejudicá-lo ou be-neficiá-lo, conforme o caso;

h) não há afronta ao princípio da presunção de inocência, postoque a valoração da postura do réu é feita apenas, ao final, em conjuntocom todos os elementos constantes dos autos;

i) o artigo 191 do CPP impõe, e é conviniente, que se transcrevano termo as perguntas feitas e a ausência de resposta;

j) como critério para a valoração do silêncio, aplicável, por forçado artigo 3° do CPP, a regra do artigo 335 do CPC: "Em falta de normasjurídicas particulares, O juiz aplicará as regras de experiência comumsubministradas pela observação do que ordinariamente acontece ...";

l) a experiência diária tem demonstrado que a reação normal doinocente é bradar contra a acusação injusta e não se reservar para ofere-cer explicações apenas perante o juízo. Essa posição é própria de quemnecessita de uma estratégia para oferecer resistência ao pleito ministeri-al. Aquele que é inocente negará com absoluto êxito a imputação que lbetiver sido formulada, porque nenhum crime houvera praticado;

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m) permanecem em vigor, porque recepcionados pela nova or-dem constitucional, os artigos 186, parte final, 191 e 198, segunda parte,do Código de Processo Penal; entendimento contrário levaria à conclu-são de que o princípio da livre apreciação das provas pelo juiz (arts.157 do CPP e 131 do CPC) teria sofrido uma limitação ou restrição, como que não se pode concordar.

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A REFORMA DO PODER JUDICIÁRIO

Geraldo BrindeiroDoutor em Direito pela Universidade de Yale (EUA)

Professor da Universidade de BrasiliaProcurador-Geral da República

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A REFORMA DO PODER JUDICIÁRIO

Geraldo Brindeiro

A primeira pergunta que se impõe quando se pensa no tema épor que realizar uma reforma do Poder Judiciário. A segunda questão - setal reforma deve realmente ser realizada - é para que. E, finalmente, umaúltima pergunta é como deve ser realizada.

Penso que efetivamente deve ser realizada uma reforma consti-tucional do Poder Judiciário. E, não apenas no campo constitucional -quanto à "estrutura do sistema"- mas também relativamente aos "instru-mentos" de que dispõe o Judiciário para realizar a prestação jurisdicio-nal: vale dizer as normas substantivas e processuais, estas especialmenteem matéria de recursos. Além disso, é preciso ainda aprimorar e fornecernovos meios materiais e humanos ao Judiciário, modernizando-o por meiodo crescente uso da tecnologia, da informática, da continua profissionali-zação das assessorias e dos técnicos, bem como mediante a realização deconcursos públicos ampliando-se o quadro de magistrados no Pais.

Mas podemos insistir na pergunta por que realizar a reforma doPoder Judiciário. Vivemos uma época neste Pais onde há uma grandepreocupação dos responsáveis pelo funcionamento do sistema juridico,com sua maior credibilidade, maior eficiência, tendo em vista o acúmulode processos no Judiciário, o excessivo formalismo das regras processu-ais e a quantidade às vezes abusiva de recursos e procedimentos protela-tórios ou impeditivos da prestação jurisdicional. As dificuldades no aces-so à Justiça e a lentidão nos julgamentos definitivos têm sido objeto decriticas e preocupações não só dos principais protagonistas dos processos- os juizes, os advogados e os membros do Ministério Público - mastambém e sobretudo dos seus destinatários: as partes e os cidadãos e ci-dadãs brasileiros. O Estado Democrático de Direito não se realiza plena-mente sem um Judiciário independente mas também e sobretudo eficaz,que promova efetivamente o cumprimento da Constituição e das leis doPais, assegurando a credibilidade do sistema juridico. Há, sim, a necessi-

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dade premente de modernizar o Poder Judiciário, aparelhando-o com osmeios materiais e os recursos humanos necessários e eliminando-se ana-cronismos legislativos e administrativos que geram a lentidão na presta-ção jurisdicional e o acúmulo de processos. Por outro lado, os princípiosconstitucionais da legalidade e da isonomia - essenciais ao Estado Demo-crático de Direito - não fariam qualquer sentido sem um poder capaz defazer cumprir e pôr em prática, para todos, com a necessária presteza, aConstituição e as leis do pais. Dentre as causas que justificam a realiza-ção de uma reforma do Judiciário, estão ainda a necessidade de controledos abusos de natureza administrativa - revelados, em alguns setores,pela prática de nepotismo, contratações irregulares, desídia, etc. estas são,em sintese, a meu ver, as razões pelas quais deve ser realizada uma refor-ma do Poder Judiciário.

Podemos refletir, em seguida, sobre a questão para que realizauma reforma do Poder Judiciário. E a finalidade óbvia é: para aprimorare melhorar o funcionamento do Judiciário e garantir maior credibilidadedo sistema jurídico no Pais. Pelas causas, pelo porquê da necessidade derealização das reformas chega-se às soluções. É evidente que os maisgraves problemas existentes no funcionamento do Judiciário não têmqualquer ligação com o princípio da independência do Poder Judiciário,que é uma das garantias fundamentais da cidadania e do Estado Demo-crático de Direito. Nesse sentido, pois, não há lugar para "controle exter-no" que implique violação deste princípio constitucional. Creio que assoluções para os problemas da morosidade e de abusos administrativosno Judiciário dependem de reformulaçães legislativas e constitucionais ede limites para a autonomia dos Tribunais, segundo o modelo do Supre-mo Tribunal Federal. Note-se que já existe o controle externo quanto àfiscalização financeira e orçamentária exercido pelo Congresso Nacionalcom o auxílio do Tribunal de Contas da União. E, coerentemente com oprincípio da separação dos poderes, dentro do sistema de checks and ba-lances (freios e contrapesos) estabelecido pela Constituição, há a realiza-ção dos concursos públicos, o controle das nomeações, em muitos casos,pelo Senado Federal e ainda a possibilidade de processos por crimes co-muns e de responsabilidade. Penso que para contribuir para as soluçõesdestes problemas deve ser proposta a criação, por emenda constitucional,

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de um Conselho Nacional da Magistratura, composto de representantesdos órgãos de cúpula do Judiciário, dos Advogados e do Ministério PÚ-blico, que são os protagonistas da Justiça, os dois últimos definidos naprópria Constituição como órgãos a ela essenciais.

A proposição de pseudo-soluções que nada têm a ver com ascausas dos problemas - como por exemplo, a politização ou a eleição dejuizes, a mudança na forma de escolha dos Ministros do STF e dos Tribu-nais Superiores, etc, sob a denominação genérica de "controle externo"-além de não ajudarem a resolver efetivamente os problemas do Judiciá-rio, ainda, contribuem, a meu ver, para o seu agravamento, desvirtuandosua filosofia na ordem juridica democrática.

O papel do Judiciário como guardião da Constituição e das leise das liberdades civis e políticas é uma tradição de mais de duzentosanos. Antes mesmo da Convenção de Filadélfia que aprovou a Constitui-ção dos Estados Unidos da América de 1787, Alexander Hamilton, numdos famosos Federalist Papers ( o de n° 78), já afirmava que o Judiciário,pela natureza de suas funções, é o menos perigoso dos ramos do Poder -The Least Dangero1ls Branch - porque não detém a bolsa como o legisla-tivo, nem a espada como o executivo, i.e., não controla nem as finançaspúblicas nem a administração do Estado. E, para assegurar a independên-cia e a imparcialidade do Poder Judiciário, já preconizavam os Federalis-tas que aos seus membros fossem conferidas certas garantias para o exer-cicio de suas funções. Assim é que surgiram as garantias da vitalicieda-de, da inamovibilidade e da irredutibilidade de vencimentos com o obje-tivo de preservar a independência dos juizes. Estes passaram a poder jul-gar as causas com independência, sem receio de perda do cargo, remoçãopara comarcas distantes ou diminuição de vencimentos por pressões doLegislativo c do Executivo. Surgiram ainda, já naquela época, para pre-servar a imparcialidade dos juizes, as vedações para exercer qualqueroutra função, salvo a de magistério, receber custas ou participação emprocesso e dedicar-se à atividade político-partidária. Tais garantias c ve-dações, instituidas para assegurar a independência e a imparcialidade dosjuizes, foram adotadas nos Estados Unidos da América desde o início,com a Constituição de 1787, e no Brasil, desde a República, com a Cons-tituição de 1891.

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Na verdade, as garantias constitucionais da magistratura enquan-to asseguradoras da independência dos juizes visam a tomar efetivo o prin-cipio constitucional da separação e independência dos Poderes, igualmenteum baluarte do Estado Democrático de Direito. O chamado "controle ex-terno" do Poder Judiciário, se instituído em qualquer de suas versões des-virtuadoras, envolvendo como órgão controlador outro Poder da Repúbli-ca, ou setores da sociedade civil, revelar-se-á de uma forma ou de outra,como "controle politico" incompativel com a independência e a imparcia-lidade dos juizes no exercicio da prestação jurisdicional. O Direito Compa-rado demonstra que foi isso o que ocorreu em outros países, nenhum delessob o regime presidencialista de governo. Na verdade, nesscs paises a con-fiança da população no Judiciário, como guardião dos direitos e liberdadesdos cidadãos, decresceu na medida em que o judiciário deixou de ser efeti-vamente um Poder para submeter-se ás influências do Parlamento c deoutros órgãos de natureza nitidamente político-partidária.

Como, então, deve ser realizada a reforma do Poder Judiciário?Os caminhos foram indicados, em linhas gerais, no início desta palestra,relativamente a reformas constitucionais na "estrutura do sistema", parapermitir o seu melhor funcionamento, maior eficácia c, sobretudo, o cum-primento efetivo dos principias constitucionais do acesso ao Judiciário,da legalidade c da isonomia. Foram indicadas também como necessáriasreformas legislativas quanto aos "instrumentos" de que dispõe o Judiciá-rio, nos campos substantivo e processual, especialmente quanto a recur-sos, e a modernização e a ampliação dos meios materiais e humanos.

A garantia da prestação jurisdicional" com a devida presteza esem procrastinações, é corolário do devido processo legal. No direitoConstitucional americano, onde se inspira este princípio introduzido noBrasil na Constituição de 1988, as cláusulas do due process of'law e daequal proleclíon of lhe laws (igual proteção das leis) complementam-sereciprocamente. Na ordem constitucional brasileira os principias da le-galidade e da isonomia - baluartes do regime democrático - também, porrazões óbvias, implicam-se reciprocamente e são complementares entresi. Há anos tenho defendido a tese da adoção do efeito vinculante dassúmulas dos Tribunais Superiores, especialmente do Supremo TribunalFederal, não apenas para evitar o acúmulo absurdo de processos repeti-

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dos onde as questões jurídicas já foram anteriormente decidídas inúme-ras vezes, prejudicando o acesso ao Judiciário e a qualidade da prestaçãojurisdicional, mas também e sobretudo em respeito ao princípio constitu-cional da isonomia. Parece-me inaceitavel conferir tratamento diferen-ciado, com fundamento na mesma norma legal, a pessoas em situaçõesjurídicas absolutamente idênticas.

Há anos vem se agravando a situação de acúmulo inaceitávelde processos nos Tribunais Superiores, especialmente no Superior Tribu-nal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal. Quem conhece bem estesTribunais sabe que a maioria das questões submetidas a julgamento jáforam decididas anteriormente em casos análogos, mas valendo apenaspara "as partes". Ares Judicata beneficia apenas a parte vencedora dacausa. Assim, mais da metade dos processos em andamento nos Tribu-nais diz respeito a questões já decididas que não podem ser "estendidas"aos interessados em situação absolutamente idêntica em todo o país. E, oque é mais gravc, a maioria envolve o próprio Estado como sucumbente,do qual o Judiciário faz parte como um dos Poderes, sendo que aqui osinteressados devem ainda aguardar anos, nas filas dos precatórios judici-ais, para cumprimento das decisões. Se isso aos olhos do jurista pareceinaceitável, para o leigo é uma estupidez, um absurdo.

Tal situação, além de produzir grande acúmulo de processos(não apcnas nos Tribunais Superiores mas no Judiciário em todo o pais),gera obviamente a instabilidade jurídica, com alguns sendo beneficiadospor decisões judiciais e outros não, mesmo após decidida em última ins-tância a questão. E o problema toma-se mais grave diante das peculiari-dades históricas da fcdcração brasileira. Todas as matérias revelantcs sãorcguladas por lei federal. E a Constituição Federal, cxccssivamente ana-litica, inelui muitas normas apcnas formalmente constitucionais. As ques-tõcs juridicas, pois, na sua maioria, passam a ser federais, quando nãoconstitucionais, e tendem a chegar ao Superior Tribunal de Justiça e aoSupremo Tribunal Federal. Assim, ao lado da necessidade de "desconsti-tucionalização" de matérias quc devem realmente scr reguladas por leiordinária c da desccntralização legislativa, pelo menos parcial, para osEstados, dcve-sc confcrir o "efeito vinculante" às decisões dos TribunaisSuperiores, espccialmente do STJ e do STF. Não é possivel que as deci-

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sões dos Tribunais mais importantes do país tenham eficácia tão limita-da, após amplamente discutidas as questões na Justiça Federal ou Esta-dual de I' instãncia e nos Tribunais Regionais Federais ou nos Tribunaisde Justiça dos Estados.

Por outro lado, o acesso ao Judiciário e o due process of lawgarantidos pela Constituição, asseguram o "duplo grau de jurisdição",mas não o direito a quatro instãncias judiciais. As instãncias extraordiná-rias ou especiais existem para as questões nacionais no campo da inter-pretação das leis federais e da Constituição. Na prática, todavia, os recur-sos extraordinários no STF têm se tornado os mais comuns e de "extraor-dinários" só têm mesmo o nome. O mesmo ocorre em relação aos recur-sos especiais no STl

Ao conferir "efeito vinculante" ás decisões dos Tribunais Su-periores, ou pelo menos do STF, proferidas por três quintos dos seusmembros, que aprovem "súmulas" de sua orientação jurisprudencial -vinculando á tal orientação todo o Judiciário e a administração pública,nas áreas federal, estadual e municipal - a proposta de reforma constitu-cional, se aprovada pelo Congresso Nacional, pennitirá, sem novos pro-cessos, a realização da Justiça para os interessados em situação idêntica ereduzirá significamente a quantidade de processos em tramitação no Ju-diciário, o que contribuirá para a melhor qualidade da prestação jurisdici-onaL Além disso, como as súmulas podem ser revistas ou canceladas,permitindo-se a flexibilidade necessária para adaptar a jurisprudência anovas situações surgidas no contexto social, não haverá risco de danospela cristalização. A reforma, pois, será extremamente salutar para a efi-cácia da Justiça e a credibilidade do sistema jurídico.

As medidas propostas, na verdade, encontram fundamento naexperiência bem sucedida no Direito Comparado. Não é preciso citar aprática mais recente do Direito Continental Europeu, por intermédio dasCortes Constitucionais. Nos Estados Unidos da América, de acordo coma doutrina do s/are decisis, que estabelece o primado do precedente judi-cial, o problema nem mesmo chega a existir. Decisões da Suprema Corte(US Supreme Court) vinculam o Judiciário e valem para todo o Pais epara todos, podendo ser reformuladas para adaptar a aplicação dos prin-cipios a novos tempos. O mesmo ocorre relativamente à Corte Federal de

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Apelação (Federal Court os Appeals). No Brasil, inexistente tal doutrina- a despeito da inspiração da primeira república no direito constitucionalamericano - criou-se, a partir da Constituição de 1934, o papel do Senadode suspender a execução de leis declaradas inconstitucionais, dando ca-ráter erga omnes às decisões judiciais, posteriormente em relação apenasàs decisões do Supremo Tribunal Federal. Este caráter, no entanto, não seconfunde com o "efeito vinculante", nem a missão pôde ter pleno êxitopela conotação subalterna que assumiu no controle difuso e a desnecessi-dade no controle concentrado.

A experiência americana, cujo Judiciário sempre esteve maispróximo da população, de acordo com a tradição do common law, de-monstra, finalmente, o espirito democrático no qual se inspiram tais pro-postas de reforma constitucional do Judiciário brasileiro.

A reforma constitucional do Judiciário, pois, é necessáriapara evitar a lentidão na prestação jurisdicional, o acúmulo de proces-sos repetitivos e o abuso de recursos protelatórios. Vale repetir a afir-mativa de que a garantia da prestação jurisdicional, com a devida pres-teza e sem procrastinações, é corolário do devido processo legal. Oacesso ao Juduciário e o due process of law, garantidos pela Consti-tuição (CF, art. 5°, incisos XXXV, LIVe LV), asseguram o duplograu de ju,:' .;iç?ío mas não recursos intermináveis. Os recursos extra-ordinários ou especiais nos Tribunais Superiores - que não tratam dequestões de fato mas apenas de questões hermenêuticas de direito nocampo constitucional e infraconstitucional - têm, no entanto, se tor-nado os mais comuns - como observado anteriormente - e de "extraor-dinários" ou ';'especiais" só têm mesmo o nome. Penso, assim, que aadoção de Súmulas vinculantes do Supremo Tribunal Federal e outrasmedidas poderão trazer importantes beneficios para a maior credibili-dadc do sistema jurídico. Sugiro ainda, como alternativas na reformaconstitucional, a fixação do duplo grau de jurisdição como regra ine-rente ao devido processo legal, e o não cabimento de recursos extra-ordinários ou especiais se a decisão recorrida for baseada em Súmulade Tribunal Superior. E proponho, finalmente, a adoção de normaexpressa na Constituição da República sobre a admissibilidade de taisRecursos somente se acolhida argüição de relevância da questão fe-

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deral no STF e STJ, segundo o modelo do writ o/ certiorari da Supre-ma Corte dos EUA, que decide sobre o que julgar.

A missão constitucional do Judiciário não se realiza sem aten-der às peculiaridades históricas, politicas e culturais de cada Pais e consi-derando as raízes dos seus sistemas jurídicos. Nesse sentido, é importan-te ter em mente as lúcidas observações do Professor RENÉ DAVID nasua obra "Les Grands Systemes de Droit Comtemporains", especialmen-te quanto aos sistemas do "common law", originário da Inglaterra, de quefazem parte os Estados Unidos da América e os Paises da Commonwealth,e do "civillaw" ou de tradição romanística, de que fazem parte os Paísesda Europa Continental e da América Latina, entre os quais o Brasil. ODireito Comparado como método de comparação de sistemas jurídicos,todavia, tem utilidade, enquanto método, na medida em que permite acada País usufruir das experiências bem sucedidas de outros Países nassoluções de seus problemas jurídicos análogos, com as adaptações neces-sárias à sua cultura e às suas tradições, preservando a identidade do siste-ma jurídico nacional.

As peculiaridades da Federação brasileira, fruto das contingên-cias históricas de sua formação, partindo da descentralização de um Esta-do unitário, revelam a existência - ao contrário do que ocorre nos EstadosUnidos da América - de uma Constituição Federal analitica e de leis fe-derais que regulam todas as matérias relevantes, como observado anteri-ormente. Os sistemas jurídicos, no.entanto, interagem e hà cada vez maisinfluências recíprocas. E, assim como cada vez mais se enfatizam os có-digos e as leis escritas como fontes do Direito nos Países de "commonlaw ", nos Países de tradição romanística adotam-se cada vez com maiorênfase os precedentes judíciais e a jurisprudência como fontes do Direi-to, destacando-se a importãncia das Súmulas. No Brasil, a experiênciabem sucedida das Súmulas, iniciada há quase quarenta anos no SupremoTribunal Federal, introduzida pelo saudoso Ministro VICTOR NUNESLEAL e inspirada na Doutrina do stare decisis e nos restatements o/laws do Direito Norte-Americano, demonstra, a meu ver, a necessidadede lhes dar caráter vinculante a fim de assegurar maior credibilidade aosistema jurídico pátrio, em consonância com os principios constitucio-nais da legalidade e da isonomia.

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Finalmente, como sugerido anteriormente, devem ser realiza-das ainda reformas legislativas quanto aos "instrumentos" de que dispõeo Judiciário visando a alcançar os seus fins constitucionais da prestaçãojurisdicional: reformas das normas processuais e substantivas, para a agi-lização dos processos e o combate á impunidade.

Os interessados em número crescente, descrentes da presteza eda eficácia da máquina judiciária, no campo civil e comercial, buscamsoluções alternativas, como a arbitragem e os acordo extrajudiciais. Nocampo trabalhista, tentam-se soluções negociadas entre trabalhadores eempregadores sem interveniência da Justiça do Trabalho. No campo pe-nal, há reclamações generalizadas sobre a insegurança e a impunidade,tendo sido introduzidos os juizados especiais visando á agilização dosjulgamentos dos processos relativos a crimes menores.

As modernas teorias do processo demonstram seu caráter ins-trumentaL aproximando os mecanismos processuais dos anseios práticosda sociedade. Não se podem aceitar hodiernamente velhos procedimen-tos formais, por mero apego a oneroso e complicado tecnicismo, em de-trimento do exame da substãncia do direito. É preciso que, ao lado dasgarantias da forma, disponha o processo judicial de eficiência e funcio-nalidade. Ncssc scntido, os processualistas brasileiros têm dado signifi-cativas contrihuições á moderna Doutrina.

Devo enfatizar, portanto, a necessidade de reformas a fim detornar o processo moderno e funcionaL atendendo aos anseios da socie-dade. É preciso também modernizar a legislação para maior eficiência nocombate á corrupção c à criminalidade, especialinente em relação á amea-ça do tráfico internacional de drogas, ao crime organizado e aos crimesdo colarinho branco (denominação usada pelos criminalistas americanosjá na década de 50, a partir da publicação do livro ""The White Co!larCrime", em 1949, por Ed"in H. Sutherland). Não se devem, porém. es-quecer jamais as lições do passado para não cometer os mesmos errosdos julgamentos sumários c tribunais de exceção nos regimes autoritários.A história constitucional brasileira c de sua democracia demonstram anecessidade de superar as dificuldades tradicionais da cultura política,realizando mudanças para a consolidação do regime democrático no Pais.E o Estado Democrático de Direito não pode prescindir do respeito á

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Constituição, aos princípios constitucionais da legalidade, da isonomia edo devido processo legal.

Todavia, no combate ao crime organizado - especialmente otráfico de drogas, os crimes contra o patrimônio público e os crimes docolarinho branco, meras cruzadas moralizadoras periódicas são insufici-entes. É preciso realizar reformas. É necessário modernizar a legislaçãopenal e processual penal para rnaior eficiência na persecução criminal. Épreciso modernizar a Justiça, fornecendo-lhe os instrumentos legais e osmeios materiais necessários.

O crime organizado é realmente organizado, como os crimesdo colarinho branco, praticados no curso da ocupação dos próprios crimi-nosos na administração pública, nos bancos, no mercado financeiro e naindústria, dentre outros, em prejuízo da população em geral. O Judiciá-rio, o Ministério Público e a polícia não dispõem de organização e instru-mentos suficientes, sejam meios materiais ou legais, para combater commaior eficiência a prática de tais crimes, cujo planejamento inclui muitasvezes moderna tecnologia, informática e outros meios ágeis e científicos,com conexões internacionais. Os fatos falam por si mesmos.

A definição legal de tais crimes, muito recentemente adotadano Brasil, nem sempre é adequada e as sanções quase sempre são exces-sivamente leves. Muitos fatos graves, como a conhecida "lavagem dedinheiro" (money laundry, na expressão do Direito Penal Comparado hádécadas), não são definidos como crimes no Brasil. Há projeto de lei emtramitação no Congresso Nacional. "Nullum crimen nulla pena. sinepraevia lege". Não há crime, nem pena, sem lei anterior que os defina,conforme a Constituição (CF, art. SO, inciso XXXIX).

Mudanças se impõem também, a meu ver, nos conceitos de si-gilo fiscal e bancário, segundo modelos de paises da maior tradição cons-titucionalista e de respeito á privacidade, como os EUA, sem que issoimplique prejuizo ás investigações criminais e ao combate aos parasitas eimpostores. E é preciso ainda introduzir no processo penal brasileiro oinstituto do plea bargaining. do Direito Anglo-Americano - como o fize-ram inúmeros países da Europa Continental - para permitir maior efici-ência no combate ao crime organizado. O acordo e o programa de prote-ção de testemunhas permitem obter a cooperação dos criminosos meno-

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res em troca de informações que poderão levar à condenação dos grandescriminosos, evitando-se a impunidade.

Concluindo, observo finalmente que o novo Judiciàrio - O Judi-ciário do 3° Milênio - deve estar devidamente estruturado e preparadopara exercer sua missão constitucional - não apenas em relação aos pro-blemas e questões já mencionados - mas também relativamente a ques-tões novas e importantes - num mundo globalizado e onde há a formaçãodc blocos como a CEE, o NAFTA e o Mercosul- concernentes à proteçãoambiental, à defesa do consumidor, do patrimônio público, cultural e so-cial e outros interesses difusos e coletivos. Por tudo o que foi dito, épreciso realizar reformas. Cruzadas são insuficientes.

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CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIROMULTA REPARATÓRIA

Inconstitucionalidade. Natureza jurídica.Inaplicabilidade. Lei 9.268/96

Tânia Mara GuirroJuíza de Direito no Estado de Rondônia

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CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIROMULTA REPARATÓRIA

Inconstitucionalidade. Natureza juridica.Inaplicabilidade. Lei 9.268/96.

TâniaMara Guirro

Alguns questionamentos nos ocorrem ao analisarmos o arti-go 297 do Código de Trânsito Brasileiro:

Qual seria a natureza juridica da multa reparatória, Civil ouPenal? As referências aos artigos 49 e 50 a 52 do Código Penal indi-cam ser instituto de natureza penal? Entretanto, o ~ 3° do art. 297 doCódigo de Trânsito Brasileiro não indica que sua natureza seria civil?O fato da multa ser recolhida, mediante depósito judicial, em favor davítima e seus sucessores, indicaria natureza civil?

É ela constitucional?Em nosso entendimento, o instituto da multa reparatória, na

forma disposta no Código de Trânsito Brasileiro, não terá aplicabili-dade, diante de inúmeras dificuldades sobre as quais passaremos adiscorrer.

Iniciamos apontando a falha legislativa, na elaboração doartigo 297 do Código de Trânsito Brasileiro.

A leitura do texto do artigo não permite concluir claramentea qual crime seria aplicado o insiituto da multa reparatória. Ao ho-micídio culposo, à lesão corporal culposa? Ora, mas neste último areparação do dano impede a Ação Penal.

A que viiima se refere, pois se na maioria dos crimes de trân-sito a vitima é a coletividade?A que iipo de dano seria devida a multa?

A falta de precisão do legislador pode levar a diferentes in-terpretações, o que resulta na dificuldade de aplicação do instituto,porque não se sabe a quais crimes aplicá-la, bem como porque não foidefinido, do mesmo modo, quem seria a "vítima" mencionada no jácitado artigo 297 do Código de Trânsito Brasileiro. Em matéria penal,

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deve existir precisão tal, que garanta a segurança na aplicação do di-reito, o que não vemos no dispositivo em análise.

Mesmo se entendendo que a multa seria aplicada apenas aoscrimes de Homicidio e Lesão Corporal Culposos, restam ainda outrasdificuldades, relativas á sua constitucionalidade. Vejamos.

A multa reparatória, na forma prevista no Código de Trânsi-to, é inconstitucional, quer entenda-se ser de natureza penal ou civil.

Entendendo-se ser instituto de natureza penal, sua inconsti-tucionalidade demonstra-se diante do Principio da Legalidade, da Re-serva da Lei, disposto nos arts. 5°, XXXIX, da Constituição Federal, e1° do Código Penal.

Conforme ensinamento de Damásio Evangelista de Jesus, emnosso Ordenamento Jurídico a cominação da pena pode ser especial(quando abstratamente imposta no preceito secundário da norma in-criminadora. Ex.: Matar alguém. Pena: reclusão de 6 a 20 anos), ougeral (quando prevista na Parte Geral do Código Penal ou da Lei Es-pecial - ex.: penas restritivas). De qualquer modo, são imprescindi-veis: a cominaç{lo genérica da pena, ou seja, imposição com "nomenjuris", em que consiste casos de cabimento etc; e o complemento ex-plicativo, vale dizer, como se faz a substituição, conversão etc. ("DoisTemas da Parte Penal do CTB". Boletim do IBCCrim nO061, de de-zembro de 1997).

Na multa reparatória prevista no Código de Trânsito, o le-gislador não se refere á cominação genérica ou específica. Tem-sesomente o complemento explicativo no art. 297 da referida Lei. Aexpressão "sempre que houver prejuízo material resultante do crime"não é o bastante, não tem a clareza exigida pelo preceíto constitucio-nal, diante do princípio da legalidade.

Entendendo-se ser instituto de natureza civil, repousa a in-constitucionalidade no fato de que o processo penal não é o instru-mento adequado para quantificar a reparação de dano, ou parcela dela,pois em nenhum dos procedimentos penais há momento para discus-são sobre o dano, para sua apuração, não havendo atendimento aosprincípios do contraditório e ampla defesa, quanto ao prejuízo alega-do pela vítima ou sucessores.

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Seriamesmouma fixaçãosumáriade indenizaçãofeita peloJuiz,através da multa reparatória, ao prolatar uma senteuçacondeuatória.

Natureza JurídicaMesmo diante dos argumentos daqueles que entendem ser a

multa reparatória constitucional, insistimos ser ela inaplicáveL Pas-saremos a analisar sua natureza jurídica, para então demonstrarmos oque ora afirmamos.

Posições:No "Curso Sobre Delitos de Trânsito (Lei nO9.503/97)", ocor-

rido em 27.03.98, no Complexo Jurídico Damásio de Jesus, diantedos dispositivos legais citados (arts. 49, 50 a 52), RENÉ ARIEL DOT-TI, SÉRGIO SALOMÃO SHECAIRA e DAMÁSIO DE JESUS espo-saram o entendimento de que o instituto tem natureza penal, aindaque sirva para abater indenização civiL Esta também é a posição doDr. MARRONE, Procurador de Justiça do Estado de São Paulo, ex-posta no "3° Encontro de Juizes de Direito e Promotores de Justiça doEstado de Rondônia", explanando ser clara a Lei neste sentido (a res-peito das posições ver ainda in "Crimes de Trânsito: anotações á partecriminal do Código de Trânsito (Leí n° 9.503, de 23 de setembro de1997)". Damásio de Jesus. São Paulo. Saraiva. 1998. pp. 60, 62).

Para LUIZ OTÁVIO DE OLIVEIRA ROCHA (Boletim doIBCCrírn, n. 061, dez/97) e LUIZ FLÁVIO GOMES (Curso já cita-do), diante do disposto no ~ 3° do art. 297, o legislador deixou paten-teada a natureza exclusivamente civil da multa reparatória, pois elequis antecipar a reparação do dano.

Após análise das posições destes renomados estudiosos doDireito, chegamos á conclusão que esta divergência de entendimentodeixa claro que o instituto da multa reparatória é outra demonstração,dentre outras tantas do novo Código de Trânsito, de falta de técnicalegislativa, que redundará em sua inaplicabilidade.

O artigo 297 do Código de Trânsito determina a aplicação, àmulta reparatória, do disposto nos artigos 50 a 52 do Código PenaL ALei 9.268/96 alterou o artigo 51 do Código Peual, e, segundo a nova

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redação, transitada em julgado a sentença condenatória, a multa seráconsiderada divida de valor, aplicando-se-lhe as normas da legislaçãorelativa á divida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerneás causas interruptivas e suspensivas da prescrição. A partir de então,dois entendimentos surgiram. O primeiro é bem explicitado por DA-NIEL RIBEIRO LAGOS, Juiz da Vara das Execuções Penais da Co-marca de Porto Velho/RO, em palestra proferida no 2° Encontro deJuizes de Direito e Promotores de Justiça do Estado de Rondônia.Segundo o Magistrado, a Lei 9.268/96, equiparando a multa penal ádivida de valor, e estabelecendo expressamente para o rito processualde sua execução a Lei de Execuções Fiscais, trouxe, dentre outrasconseqüências, a retirada da feição de pena, da multa penal, dando-lhe caracteres de divida não tributária, sendo dívida de valor da Fa-zenda Pública. A inscrição em divida ativa caracteriza o débito comofiscal, permitindo a inclusão do crédito no orçamento do ente estatal.Portanto, estabelecendo a lei federal que o destino da multa recolhidaserá o Fundo Penitenciário Nacional, o credor será necessariamentea Fazenda Pública Nacional. Salienta que o Ministério Público per-deu a legitimidade ativa para executar a multa, sendo agora parte legi-tima a Procuradoria da Fazenda Nacional, e, ainda, que o Juizo dasExecuções Penais não é mais o competente para conhecer da execu-ção da pena de multa, sendo o Juizo Federal Cível.

Segundo outra linha de interpretação, a execução da pena demulta compete ao Ministério Público, não obstante a alteração já re-ferida. A modificação limita-se á impossibilidade de transformaçãoda pena de multa em privação da liberdade. A consideração da multacomo divida de valor não faz perder sua natureza de pena, permane-cendo a satisfação do débito um exaurimento da pretensão punitiva,da qual é titular o Ministério Público. Das novas disposições do artigo51 do Código Penal não surgiu qualquer alteração de competência,seja quanto á legitimidade ativa, seja quanto ao processamento e jul-gamento. Abraça este entendimento MAURÍLIO MOREIRA LEITE,Procurador de Justiça do Estado de Santa Catarina ("Multa Reparató-ria". Jornal da Associação Cearense do Ministério Público, nO04,1998). Acrescenta o autor que, "cuidando de execução penal, a maté-

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ria é inerente à atividade funcional do Ministério Público, pois com-pete-lhe promover c fiscalizar a execução da lei, nos termos do arti-go 257 do Código de Processo Penal, sendo vedado o exercicio desuas atribuições por outros órgãos, consoante disposto no artigo 129,~ 2°, da Constituição Federal" (op. cit.).

Em Rondônia, na Primeira Instância, tem-se adotado o pri-meiro entendimento ora indicado, encaminhando-se a documentaçãonecessária à Procuradoria da Fazenda. Todavia o Tribunal de Justiçaainda não se manifestara a respeito.

Trazendo este tema como premissa, inteneionamos analisara seguinte hipótese.

O Juiz, ao prolatar sentença condenatória, aplica uma mul-ta reparatória emfavor da vítima, determinando seu recolhimento.

O sentenciado não paga a multa. não faz o depósito emfa-vor da vítima.

Conjugando-se o entendimento de que a pena de multa trata-se de divida de valor, portanto crédito da Fazenda Nacional, e a de-terminação literal do artigo 297, ~ 2°, do Código de Trânsito, ehegar-se-ia ao absurdo, com a seguinte situação: se não for paga a multareparatória assim considerada, será executada pela Procuradoria daFazenda Pública Federal. Satisfeito o débito, por conseqüência, O va-lor será recolhido ao Tesouro Nacional, ou seja, aos Cofres Públicos,contrariando então a própria lógica do instituto da multa reparatória,posto que a sentença condenatória determina que a multa seja deposi-tada em favor da vitima ou seus sucessores, sendo estes, a toda evi-dência, os credores de tal valor.

A problemática se avoluma diante da disposição do pará-grafo 3° do artigo 297 do Código de Trânsito, ou seja, que na indeni-zação civil do dano, o valor da multa reparatória sera descontado.

Na hipótese acima aplicada à multa reparatória, a vítima nãoa recebeu, mas o autor dofato efetuou seu pagamento. Na eventuali-dade de uma Ação de Reparação de Danos, o valor da multa poderáser descontado do valor de indenização civil???

Aventamos então a hipótese de que poderia ser interpretadoo instituto da multa reparatória, excluindo-se o ~ 2° do artigo 297 do

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Código de Trânsito Brasileiro, exatamente em razão das dificuldadesacima apontadas, possibilitando-se a execução da multa pela própriavitima ou seus sucessores, ou, ainda, pelo Ministério Público, até mes-mo por analogia ao artigo 68 do Código de Processo Penal, o queacabaria por vir de encontro àquele entendimento já declinado, de quea execução da pena de multa, a despeito da nova redação do artigo 5 Ido Código Penal, permanece com o Parquet.

Mesmo diante dessa pretensa solução, entretanto, os demaisobstàculos já apontados subsistiriam, resultando ainda na inaplicabi-lidade do instituto.

Com estas considerações desejamos fazer com que as aten-ções se voltem ao instituto da multa reparatória, e também à interpre-tação da nova redação do artigo 51 do Código Penal,

A correta aplicação do Direito dá-se com a necessária inter-pretação das Normas. Em nosso Ordenamento, o texto legal é a es-sência, da qual extrai-se, por raciocínio lógico, o que é bom e justo.Vale lembrar o ensinamento de CARLOS MAXIMILIANO, paraquem "cumpre evitar. não só o demasiado apego à letra dos dispo-sitivos. como também o excesso contràrio, o de forçar a exegese edeste modo encaixar na regra escrita. graças à fantasia do herme-neuta. as teses pelas quais este se apaixonou, de sorte que vislumbrano texto idéias apenas existentes no próprio cérebro, ou no sentirindividual ... A interpretação deve ser objetiva, desapaixonada, equi-librada, às vezes audaciosa, porém não revolucionária, aguda, massempre atenta respeitadora da lei" (Carlos Maximiliano. Hermenêu-tica e Aplicação do Direito. Ed. Forense. 14" edição. Rio de Janeiro.1994).

A intenção do legislador foi realmente louvável, posto quepretendeu antecipar a indenização à vitima, sabidamente morosa, aten-dendo, de certa forma, o já defendido por ENRICO FERRI, que suge-ria a existência de "um completo sistema de normas praticamente efi-caz para assegurar rapidamente àparte lesada a reparação do dano,atribuindo o seu pedido ao Ministério Público e obrigando O Juiz afazer essa liquidação com os dados processuais, que também o novoCódigo de Processo Penal (1913), em seguida à propaganda da Es-

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cola Positiva, confia às indagações do juiz instrutor (art. 190) paraverificar 'qual o dano que o crime tenha produzido '... " (Princípios deDireito Criminal. Tradução Paolo Capitanio. Bookseller. 1996. p. 526)Todavia, a gritante falta de técnica, e a ausência de coerência e viabi-lidade da forma disposta, não permite a aplicação do instituto.

As disposições do artigo 297 e parágrafos do Código de Trân-sito Brasileiro são entre si contraditórias e afrontam a suprema normaconstitucional. Diante dos obstáculos constitucionais e das dificulda-des práticas apontados, concluimos que a multa reparatória previstano Código de Trânsito não terá aplicabilidade.

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A PROGRESSÃO DO REGIMEE OS CRIMES HEDIONDOS

Agamenon Bento do AmaralProcurador de Justiça em Florianópolis-Se

Professor Adjunto de Processo Penal da UFSe - Mestre em Direito

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A PROGRESSÃO DO REGIMEE OS CRIMES HEDIONDOS

Agamenon Bento do Amaral

1. Algumas considerações sobre a Lei n08.072, de 25/07/90Já não há quem não saiba sobre algumas das razões que leva-

ram o legislador pátrio à edição da lei ora em comento: ou seja, dar umaresposta juridico-politica (o que, na verdade, não se constituiu numa res-posta eficaz) à onda de seqüestros promovidos por grupos armados e ten-do - preferencialmente -, como vitimas, personalidades do mundo em-presarial e sócio-econômico nacional (Sr. Roberto Medina, Sr. AbilioDiniz, entre outros).

Setores influentes da sociedade (empresarial, politico, etc.),clamavam, junto ao governo e perante alguns escalões da segurança na-cional, a tomada de alguma posição legal, de caráter enérgico, e que pu-sesse - o quanto antes - um paradeiro à seqüência de seqüestro de pessoasque ocupavam uma posição de destaque na sociedade, bem como, igual-mente, por outro lado, pudesse inibir ou atenuar a crescente criminal i-dade nos grandes centros populacionais que, a essa altura, em face desuas proporções inusitadas, expunha a constante perigo a vida das pes-soas de bem.

É nesse cenário de aparente intranqüilidade social que o legis-lador editou a Lei dos Crimes Hediondos, classificando, através de seuart. 1°, determinados delitos como o de homicídio qualificado (art. 121, ~2°, I, 11,m, IV e V) , o latrocínio, a extorsão mediante seqüestro e suaforma qualificada, o estupro em combinação com o art. 223, caput e pa-rágrafo único, o atentado violento ao pudor, igualmente com a aplica-ção do art. 223, caput e parágrafo único, a epidemia com o resultadomorte, além do genocídio previsto nos arts. l°, 2° e 3° da Lei nO2.889, de1° de outubro de 1956, tentado ou consumado.

Por outro lado, também, através de seu art. 2°, deixou consig-nado o legislador ordinário que os delitos hediondos, a prática de tortu-

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ra. o trático ilícito de entorpecentes e drogas e o terrorismo seriam in-suscetiveis de anistia. graça. índulto. fiança e liberdade provisória, edeveriam os agentes infratores de tais delitos (os previstos no art. 2° porúltimo mencionado) cumprir a pena que lhes fosse aplicada - íntegral-mente - em regime fechado.

Com tal procedimento, entendo, pensou o legislador pátrio -erroneamente - estar contribuindo para a diminuição da crescente crimi-nalidade ou, pelo menos, quem sabe, pensou estar criando um clima demedo junto á marginalidade criminosa, o que, na verdade, nem uma enem outra coisa aconteceu.

É entendimento já consolidado nos meios juridicos que a crimi-nalidade crescente em nosso pais não será resolvida e combatida comeficácia, tão-somente, criando-se diplomas legais mais rígidos com a su-pressão de direitos e beneficios legais previstos para os que delinqüirem,mas, sim, com a adoção de politicas sociais (saúde, educação, emprego,etc.) de caráter permanente e abrangente.

O que se viu, por conseguinte, foi o reverso justamente, ou seja,os indices de criminalidade dos grandes centros populacionais não só nãodiminuíram, como também, realmente, aumentaram, pondo em destaque ofracasso da politica de rigorismo legal para o combate á criminalidade.

2. A Lei de Execução Penal: Lei nO7.210, de l1l07l84Através deste diploma legal, o legislador ordinário estabeleceu

uma politica penitenciária para o cumprimento das penas impostas aoscondenados, tendo por base - fundamentalmente - o sistema progressivona execução da sanção imposta.

Isto implica em dizer que o condenado que tenha cumprido combom comportamento um sexto (1/6) da pena no regime anterior (ou seja,o regime fechado) poderá progredir para o seguinte - semi-<lberto - atéalcançar a liberdade de forma restrita (regime albergue ou prisão alber-gue) antes de consegui-la através do instituto do livramento condicionalou, até, eventualmente, mediante indulto presidencial.

O sistema progressivo, em face da nossa tradição histórica noque diz respeito á administração da sanção penal e não obstante a falên-cia do sistema penitenciário como um todo, ainda representa uma forma

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menos gravosa, tendo em vista o objetivo final que é a recuperação doindividuo para a sociedade, ou seja, em outras palavras: a tão sonhadaressocialização do apenado para a sua reinserção no todo social.

É verdade que, nos tempos atuais, falar-se em ressocializa-ção do condenado, ante as péssimas condições carcerárias de nossospresidios de um modo geral e o descaso absoluto das autoridades go-vernamentais, chega a ser até risivel e alvo de chacotas. O problemacarcerário e penitenciário, como um todo, não tem tido - pelos gover-nantes em qualquer dos niveis politicos de atuação - o respeito e a aten-ção que se fazia mister, dai advindo, por certo, o verdadeiro caos que seinstalou nesse campo da administração da pena ou, propriamente, naexecução da sanção penal.

Com base nesses pressupostos, então alinhados, é que, agora,tecerei algumas considerações de caráter doutrinário e jurisprudencial,sobre a pretensão do condenado por crime hediondo ou a ele equiparado(caso do delito de tráfico de drogas) em ser beneficiado com a progres-são de regime, segundo a Lei de Execução Penal.

3. A progressão do regime em crimes hediondosTomando como exemplo teórico o crime de tráfico de dro-

gas, previsto no art. 12 da Lei nO6.368/76, entendo que, não obstanterespeitáveis opiniões em contrário, deva ele ter idêntico tratamento naexecução da pena (sistema progressivo) como qualquer outro condena-do por outro delito.

Ora, a toda evidência, o critério pela natureza do delito - o detráfico de drogas -, utilizado pelo legislador ordinário, por exemplo,para excluir o direito à progressividade da pena no sistema penitenciárioé absolutamente inconstitucional, não só porque atenta contra o princípioda individualização de pena, como também contra o princípio da huma-nidade da pena, ambos previstos na Carta Politica Nacional.

É pelo primeiro que o juiz, em aplicando a pena, irá individuar,separar, particularizar a sanção imposta à realidade pessoal de cada infratore, com isso, quando da execução, terá condições concretas de aferir, exami-nar, obter dados sobre a maneira sob a qual está sendo absorvida àquela peloagente condenado, e quais serão as suas perspectivas de ressocialização.

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Se ao condenado por crime hediondo ou a ele equiparado nocaso de tóxicos nada lhe é oferecido pelo sistema punitivo e carcerário(Estado como detentor do jus puniendi), ilusória - por óbvio - é a preco-nizada ressocialização do condenado e vingativa se apresenta a sançãoimposta com inequivoco retomo ao procedimento medieval já de há mui-to execrado do cenário juridico civilizado.

A expiação da culpa centrada na única finalidade repressiva ede caráter retributivo atenta contra os princípios que fundamentam osdireitos humanos e, por outro lado, desserve aos fins do Estado Modernode Direito que, basicamente, tem, na proteção judiciária ao individuo,seu fator exponencial.

Dissertando sobre a matéria e, em especial, sobre a situação dorecluso sem acesso à progressão, o preclaro MANOEL PEDRO PI-MENTEL, in "Reforma Penal", Saraiva, págs. 55/56, assim se pronun-ciou, verbis:

...persistirão os males da prisonização, aos quais se soma-rão outros, como a etiquetagem e a estigmatização. Afixa-do o rótulo de criminoso no sentenciado, este se toma estig-matizado e, uma vez que é visto definitivamente como cri-minoso, o desviante aprende a se ver como tal. Separado dogrupo que o rotulou, busca identificar-se com o outro gru-po, etiquetado como ele. Produz-se, assim, o que se chamade desvio secundário, uma vez que os etiquetados passam acomportar-se do modo que deles é esperado, tomando-sepraticamente impossível sua reabilitação.

No mesmo sentido é o entendimento de ANTONIO LOPESMONTEIRO sobre a prescrição constante do ~ IOdo art. 2°, in "CrimesHediondos - Textos, comentários e aspectos polêmicos", Saraiva, pág.115, verbis:

Este dispositivo, embora seja lógico e decorra da filosofia. deste diploma legal, merece severas criticas, pois não levaem conta toda uma política penitenciária, esquece a psico-

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logia forense e as peculiaridades de cada sentenciado, so-bretudo a adaptação a uma nova realidade social através dotrabalho e da convivência, proporcionados na progressãodos regimes. Olvida-se o legislador de que o condenado nestasituação nada tem a perder, e o passo seguinte é o fomentodas rebeliões, a fuga com reféns e a criação de verdadeirasquadrilhas, planejando e comandando empreitadas crimi-nosas de dentro dos muros das casas de detenção e peniten-ciárias. Enfim, o que deveria ser uma etapa de regeneraçãotransforma-se numa escola de aprimoramento da delinqüên-cia organizada.

Desse entendimento não diverge o douto JOÃO JOSÉ LEAL,in "Crimes Hediondos - Aspectos Politico-Juridicos da Lei nO8.072/90",São Paulo: Atlas, 1996, p. 113, verbis:

Ignorou o legislador que a execução de longas penas privati-vas de liberdade em regime unicamente fechado representaum castigo insuportável e que, por isso, desmotiva o presopara quem desaparece qualquer perspectiva, qualquer espe-rança de retorno á liberdade. Rigorosamente submetido aocumprimento de urna longa pena neste regime, o preso setransformará num rebelde, num amotinado e num violentodestemperado, ou então num despersonali rodo e desesperan-çado, sem vontade própria, sem dignidade e sem razão deviver, ou seja, no protótipo de um autêntico hipo-hurnano.

No mesmo diapasão é o entendimento de JúLIO FABBRlNIMlRABETE, in "Crimes Hediondos, a Constituição Federal e a Lei",São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 66, verbis:

Trata-se de regra em perfeita harmonia com os estudos depenalogia que indicam a necessidade dessa progressão paraos condenados que apresentem sinais de recuperação e quea transferência para regime semi -aberto e, posteriormente,

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aberto, facilita ou pelo menos possibilita a reintegração pro-gressiva do condenado ao meio social.

E, ainda, em confortando o entendimento já expendido, mere-ce, por oportuno, a citação do posicionamento do preclaro Ministro Mar-co Aurélio do Supremo Tribunal Federal que, a respeito, disse:

Tenho como relevante a argüição de conflito do ~ IOdo art.2° da Lei n° 8.072/90 com a Constituição Federal, considera-do quer o principio isonômico em sua latitude maior, quer oda individualização da pena previsto no nOXLVI do art. 5°da Carta Politica, quer, até mesmo, o principio implicito se-gundo o qual o legislador ordinário deve atuar tendo comoescopo maior O bem comum, sendo indissociável da noçãodeste último a observância da dignidade da pessoa humana,que é solapada pelo afastamento, por completo, de contextorevelador da esperança, ainda que minima, de passar-se aocumprimento da pena em regime menos rigoroso.Preceitua o parágrafo em exame que nos crimes hediondosdefinidos no art. 1° da citada lei, ou seja, nos de latrocinio,extorsão qualificada pela morte, extorsão mediante seqües-tro e na forma qualificada, estupro, atentado violento aopudor, epidemia com resultado morte, envenenamento deágua potável ou de substância alimentícia ou medicinal,qualificado pela morte, genocidio, tortura, tráfico ilicito deentorpecentes e drogas afins e, ainda, terrorismo, a penaserá cumprida integralmente em regime fechado.No particular, contrariando-se consagrada sistemática abu-siva à execução da pena, assentou-se a impertinência dasregras gerais do Código Penal e da Lei de Execuções Pe-nais, distinguindo-se entre cidadãos não a partir das condi-ções sócio-psicológicas que lhes são próprias, mas do epi-sódio criminoso no qual, por isto ou aquilo, acabaram porse envolver. Em atividade legislativa cuja normalização nãoexigiu mais do que uma linha, teve-se o réu condenado a

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um dos citados crimes como senhor de periculosidade im-par, a merecer, ele, o afastamento da humanização da penaque o regime de progressão viabiliza, e a sociedade, o retor-no abrupto daquele que segregara, já então com as cicatri-zes inerentes ao abandono de suas caracteristicas pessoais eá vida continuada em ambiente criado para atender a situa-ção das mais anormais e que, por isso mesmo, não oferecequadro harmônico com a almejada ressocialização.Tenho o regime de cumprimento da pena como algo que,no campo da execução, racionaliza-a, evitando a famigera-da idéia do "mal pelo mal causado" e que sabidamente écontrário aos objetivos do próprio contrato social. A pro-gressividade do regime está umbilicalmente ligada à pró-pria pena, no que acenando ao condenado com dias melho-res, incentiva-o à correção de rumo e, portanto, a empreen-der um comportamento penitenciário voltado à ordem, aomérito e a uma futura inserção no meio social. O que sepode esperar de alguém que, antecipadamente, sabe de irre-levância dos próprios atos e reações durante o período noqual ficará longe do meio social e familiar e da vida normalque tem direito um ser humano; que ingressa em uma peni-tenciária com a tarja de despersonilização?Sob este enfoque, digo que a principal razão de ser da pro-gressividade no cumprimento da pena não é em si a mininú-zação desta, ou o beneficio indevido, porque contrário ao queinicialmente sentenciado, daquele que acabou perdendo o bemmaior que é a liberdade. Está, isto sim, no interesse da pre-servação do ambiente social, da sociedade, que,dia-menos-dia, receberá de volta aquele que inobservou anorma penal e, com isto, deu margem à movimentação doaparelho punitivo do Estado. A ela não interessa o retomo deum cidadão, que enclausurou, embrutecido, muito embora otenha mandado para detrás das grades com o fito, dentre ou-tros, de recuperá-lo, objetivando uma vida comum em seupróprio meio, o que o tempo vem demonstrando, a mais não

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poder, ser uma quase utopia. Por sinal, a Lei nO8.072/90 ga-nha, no particular, contornos contraditórios. A um só tempodispõe sobre o cumprimento da pena no regime fechado, afas-tando a progressividade, c viabiliza o livramento condicio-nal, ou seja, o retomo do condenado á vida gregária antesmesmo do integral cumprimento da pena e sem que tenhaprogredido no regime. É que, pelo art. 5° da Lei n° 8.072/90,foi introduzido, no art. 83 do CP, preceito assegurando aoscondenados por crimes hediondos pela prática de tortura outerrorismo e pelo tráfico ilicito de entorpecentes a possibili-dade de alcançarem a liberdade condicional desde que nãosejam reincidentes em crimes de tal natureza - inciso V -.Pois bem, a Lei em comento impede a evolução no cumpri-mento da pena e prevê, em flagrante descompasso, beneficiomaior, que é o livramento condicional.Descabe a passagem do regime fechado para o semi-aberto,continuando o incurso nas sanções legais a cumprir a penano mesmo regime. No entanto, assiste-lhe o direito de verexaminada a possibilidade de voltar á socíedadc, tão logotranscorrido quantitativo superior a dois terços da pena.Conforme salientado na melhor doutrina, a Lei nO8.072/90contém preceitos que fazem pressupor não a observãnciade uma coerente politica criminal, mas que foi editada sobo clima da emoção, como se no aumento da pena e no rigordo regime estivessem os únicos meios de afastar-se o ele-vado indice de criminalidade.Por ela, os enquadráveis nos tipos aludidos são merecedoresde tratamento diferenciado daquele disciplinado no CódigoPenal e na Lei de Execuções Penais, ficando sujeitos não aregras relativas aos cidadãos em geral, mas a especiais, des-pontando a que, fulininando o regime de progressão da pena,amesquinha a garantia constitucional da individualização.Diz-se que a pena é individualizada porque o Estado-Juiz,ao fixá-Ia, está compelido, por norma cogente, a observaras circunstãncias judiciais, ou seja, os fatos objetivos e sub-

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jetivos que se fizerem presentes á época do procedimentocriminalmcntc condenável. Ela o é não em relação ao crimeconsiderado abstratamcnte, ou seja, ao tipo definido em lei,mas por força das circunstãncias reinantes á época da práti-ca. Dai cogitar o art. 59 do CP que o juiz, atendendo á cul-pabilidade, aos antecedentes, á conduta social, á pcrsonali-dade do agente, aos motivos, ás circunstâncias e conseqüên-cias do crime, bcm como ao comportamento da vitima, cs-tabelecerá, conforme seja necessário c suficiente para re-provação e prevcnção do crime, não só as penas aplicá-veis dentre as cominadas (inciso I), como também o quanti-tativo (inciso 11),o regime inicial de cumprimento da penaprivativa de liberdade - e, portanto, provisório, já que pas-sivel de modificação até mesmo para adotar-se regime maisrigoroso (inciso III), e a substituição da pena privativa daliberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.Dizer-se que o regime de progressão no cumprimento da penanão está compreendido no grande todo que é a individualiza-ção preconizada e garantida constitucionalmente é olvidar oinstituto, relegando a plano secundário a justificativa social-mente aceitável que o recomendou ao legislador de 1984.Destarte, tenbo como inconstitucional o preceito do ~ IOdoart. 2° da Lei nO8. 072/90, no que dispõe que a pena impos-ta pela prática de qualquer dos crimes nela mencionadosserá cumprida, integralmente, no regime fechado.Com isto, concedo parcialmente a ordem, não para ensejarao paciente qualquer dos regimes mais favoráveis, mas parareconbecer-lhe, porque cidadão e acima de tudo pessoa hu-mana, os beneficios do instituto geral que é o da progressãodo regime de cumprimento da pena, providenciando o Es-tado os exames cabiveis.

Comunga do mesmo entendimento o preclaro Ministro do Su-perior Tribunal de Justiça, LUlZ VICENTE CERNICCHIARO que,ao julgar o Recurso Especial nO41.160-2-SP, deixou consignado:

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Como muito bem registra o acórdão, cujo trecho foi lido nodouto voto do Sr. Ministro relator, a individualização dapena compreende três fases: cominação, aplicação e execu-ção. Não pode, portanto, lei ordinária, como é a Lei nO8.072,de 1990, estabelecer, de forma rigida e inflexível, que, paraos crimes ali definidos e especificados, haverá de ser cum-prido inteiramente em regime fechado.Data vênia, não obstante o patrimônio juridico, que é a ju-risprudência do Supremo Tribunal Federal, há equívoco deconstitucionalidade. Por isso, tenho insistido em meu pontode vista. Aliás, o Supremo Tribunal Federal, atualmente,amenizou a sua conclusão. De inicio fizera compreenderque, no dispositivo da chamada Lei dos Crimes Hediondos,os crimes capitulados nos arts. 12, 13, 14 e 16. Em decisãorecente, de mais ou menos trinta dias, restringiu a sua juris-prudência ao art. 12, referindo-se apenas ao tráfico. Vê-se,portanto, é jurisprudência que está, ainda, em fase de cris-talização. (RSTJ 681/381).

Já o entendimento jurisprudencial, embora dominante no sen-tido de negar a progressão, comporta parcela considerável no sentido deacolher o pedido de deferir a progressão como se pode observar pelaobservação de alguns acórdãos ora colacionados, verbis:

Crimes hediondos. Tráfico ilícito de entorpecentes. Regi-me fechado.A Constituição da República consagra o princípio da indi-vidualização da pena. Compreende três fases: cominação,aplicação e execução. Individualizar é ajustar a pena comi-nada, considerando os dados objetivos e subjetivos da in-fração penal, no momento da aplicação e da execução. Im-possivel, por isso, legislação ordinária impor (desconside-rando os dados objetivos e subjetivos) regime único e infle-xível (STJ- RE - 19.420-0- ReI. Min. Vicente Cemicchiaro- DJU, 7.6.93, p. 11276).

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Regime de cumprimento de pena. Inteligência do ~ IOdoart. 2° da Lei nO8.072/90. Inconstitucionalidade frente aoprincipio da individualização da pena exigida no art. 5",XLVI, da Carta Magna. (TJDF - AC 11.745 - ReI. Hcrme-negildo Gonçalves).

Regime prisional semi-aberto. Crime hediondo. O regimeprisional será o semi-aberto, consideradas a primariedadedo acusado e a inconstitucionalidade da Lei nO8.072/90,quando estabelece o regime fechado integral. O ilustre Pro-curador de Justiça de São Paulo, Df. Jacques de CamargoPenteado, em artigo publicado na RT 674/286 ("Pena He-dionda") concluiu que é inconstitucional o art. 2°, ~ ]0, daLei n° 8.072/90 porque impede a individualização da penaconstitucionalmente garantida (TJSP - AC - ReI. Celso Li-mongi - RJTJSP 138/444).

Por sua vez, o Egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina,por decisão da 2a. Câmara Criminal, em acórdão da lavra do eminenteDes. Álvaro Wandelli, proferido no Recurso de Agravo n° 369, da capi-tal, deixou manifesta a sua inclinação pela admissibilidade da progressãoem tais casos e, em face de sua clareza, permito-me transcrever os tópi-cos mais importantes do aludido julgado, verbis:

Recurso de agravo - Narcotraficância - Crime hediondo -Possibilidade de progressão do regime fechado para osemi-aberto. Inconstitucionalidade do ~ l° do art. 2° da LeinO8.072/90 frente ao principio da individualização da pena- Art. 5°, XLVI, da Carta Magna - Recurso provido.A Constituição da República consagra o principio da indi-vidualização da pena. Compreende três fases: cominação,aplicação e execução. Individualizar é ajustar a pena comi-nada, considerando os dados objetivos e subjetivos da in-fração penal, no momento da aplicação e da execução. Im-possível, por isso, legislação ordinária impor (desconside-

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rando os dados objetivos e subjetivos) regime único e infle-xível (STJ - RE nO19.420-0 - ReI. Vicente Cemicchiaro -DJU, de 7.6.93, pág. 112.76). (Ementa)

E, no corpo do acórdão, lê-se:

A Lei nO8.072/90, em seu art. 2°, 9 1°, determina o cumpri-mento íntegral da pena privativa de liberdade em regime fe-chado, nos crimes hediondos, na prática de tortura, no tráficoilicito de entorpecentes e drogas afins e no terrorismo. Dis-cutível. contudo, a constitucionalidade desse dispositivo, emface do principio da individualização da pena, previsto entreos Direitos e Garantias Fundamentais (art. 5°, XLVI, da CF).

É inegável que parte dominante da jurisprudência, inclusive donosso Tribunal. entende ser incabivel a progressão do regime fechadopara o semi-aberto, em se tratando de crime hediondo, sendo que o Su-premo Tribunal Federal já decidiu pela constitucionalidade do 9 IOdoart. 2° da Lei nO8.072/90, com a seguinte ementa:

À lei ordinária compete fixar os parâmetros dentro dos quaiso julgador poderá efetivar ou a concreção ou a individuali-zação da pena. Se o legislador ordinário dispôs, no uso daprerrogativa que lhe foi deferida pela norma constitucional,que nos crimes hediondos o cumprimento da pena será noregime fechado, significa que não quis ele deixar, em rela-ção aos crimes dessa natureza, qualquer discricionariedadeao juiz na fixação do regime prisionaJ (HC nO69.603- Ple-nário,j. em 18.12.92, DJU, 23.4.93, pág. 6.922).

Em sentido contrário, partidário da tese da inconstitucionalida-de do referido artigo, doutrina Jacques Camargo Penteado:

Há muito nos afastamos da pena tarifada. Uma coisa é fixarlimites amplos para determinação do regime iniciaJ de curo-

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primento da pena. Outra, bem diversa, é impedir progres-são ao regime menos rigoroso depois de descontado certoperiodo e apurado mérito do reeducando. "A individualiza-ção repele qualquer tentativa de catalogação dos réus. Istojá seria uma medida de cunbo generalizante contrária á in-tenção individualizadora do Texto Constitucional" (Ives eBastos, ob. cit., pág. 237). Pena individualizada é a fixadapelo Poder Judiciário com determinação da forma inicial eacompanbamento do progresso para, saindo do regime ori-ginal' aproximar o reeducando da liberdade gradativamen-te" (Pena hedionda, in RT 674/286). Esse posicionamentoencontra ressonãncia no art. 112 da Lei de Execução Penal,verbis: "A pena privativa de liberdade será executada emforma progressiva, com a transferência para o regime me-nos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o presotiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime ante-rior e seu mérito indicar a progressão .

...0 cumprimento da pena em regime fechado, sem possibili-dade de progressão, sem dúvida, conduz á antiga concepçãoda sanção como fmalidade unicamente repressiva, com umcaráter exclusivamente expiatório e retributivo, contrária ámoderna concepção de função socializadora da pena, queconsiste em oferecer ao delinqüente o máximo de condiçõesfavoráveis ao prosseguimento de uma vida sem praticar cri-mes, ao seu ingresso numa vida fiel ou conformada com odever-ser juridico-penal, visando a prevenção da reincidên-cia através da colaboração voluntária e ativa daquele. O sis-tema progressivo, além de compativel com o consagrado prin-cípio da individualização da pena, tem caráter reeducativo epossibilita ao condenado, de acordo com o mérito demons-trado durante a execução, promoção a regime menos rigoro-so, antes de atingir a liberdade. Por isso, a progressão consti-tui importante estimulo à ressocialização, o que não ocorrese a pena tiver de ser cumprida em regime integral fechado.

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Nesse último easo, como diz Jacques Camargo Penteado, "seo virtuoso aguarda recompensa pelo sacrificio, não é licitoesperar regeneração do infrator que não terá apreciado seumérito eventual". ("Pena Hedionda", ob. cit.). Consoante le-ciona Alberto Silva Franco, "A individualização da pena,mercé do regime prisional progressivo, insere-se no troncocomum do processo individualizador que se inicia com a atu-ação do legislador, passa pela ação do juiz e finda-se, ao atin-gir o nivel máximo de concreção, na execução penal. Destar-te, excluir, legalmente, o sistema progressivo, é impedir quese faça valer, na sua fase [mal, o princípio constitucional daindividualização. Lei ordinária que estabeleça, portanto, re-gime prisional único, sem possibilidade de nenhum tipo deprogressão, atenta contra tal princípio e revcla expressa ofensaao preceito constitucional. Mas não é só. A exclusão legal dosistema progressivo conflita também com o princípio consti-tucional da humanidade da pena que, na expressão de Jes-check ('Tratado de Derecho Penal", pág. 23, 3a. ed., 1993),"converteu-se no pensamento reitor da execução penal". Penaexecutada, com um único e uniforme regime prisional, signi-fica pena desumana porque inviabiliza um tratamento peni-tencíário racional e progressivo; deixa o recluso sem espe-rança alguma de obter a liberdade antes do termo final dotempo de sua condenação e, portanto, não exerce nenhumainfluência psicológica positiva no sentido de seu reinserimentosocial; e, por fim, desampara a própria sociedade na medidaem que o devolve à vida societária após submetê-lo a umprocesso de reinserção às avessas, ou seja, a uma dessociali-zação ("Leis Penais Especiais e sua Interpretação Jurispru-dencial", São Paulo, Ed. RT, 1995, pág. 426).

Acentua, ainda, o v. acórdão:

...Cumpre ressaltar, finalmente, que, pela legislação vigen-te, somente o condenado em regime semi -aberto pode fre-

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qüentar cursos supletivos profissionalizantcs, de instruçãodc scgundo grau ou superior (art. 35, g 2°, do CP). Tal pos-sibilidade, vedada aos que cumprem pena em regime fe-chado, constitui fator primordial na prevenção dos crimes erecuperação dos delinqüentes. Isto porque a formação pro-fissional proporciona melhores oportunidadcs no mercadode trabalho c, como conseqüência lógica, diminui os efei-tos do fenômeno da estigmatização do egresso, contribuin-do para sua ressocialização. Certamente, preocupada comesses aspectos, a Lei de Execução Penal, em seu art. 17,dispôs que a assistência educacional compreende a instru-ção escolar e a formação profissional do preso ou interna-do. Como sc conclui pela Exposição de Motivos da referidalci, tal assistência, entre outras previstas, constitui dever doEstado "visando a prevenir o delito e a reincidência e aorientar o retorno ao convívio social". Sem a possibilidadede progredir ao regime semi-aberto, perde o condenado odireito à freqüência a cursos profissionalizantes, importan-te fator no processo reeducacional. O que se deve ter emmente, e é exatamente este o alcance que se deve empregarà garantia constitucional da individualização da pena, com-pativel com o atual estágio do Direito Penal, é que a segre-gação pura e simples do homem do convívio social tem as-pecto de mero castigo, quando, hodiemamente, tem-se queo objetivo principal da sanção criminal é a recuperação dodelinqüente, e isso só pode ser conseguido através de em-prego inteligente de processos de reeducação, e não apenasisolando-o completamente da sociedade, sem esperançanenhuma até o termo final do tempo de sua condenação.

4. A interpretação da lei (penal e processual penal)Segundo a melhor doutrina, interpretar uma lei é perscrutar-lhe

o seu sentido, o seu fim, aquilo que a norma - na sua finalidade - quis oupretendeu dizer.

JÚLIO FABBRINI MIRABETE, in "Processo Penal", 2a. ed.,

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São Paulo: Atlas, 1992, p, 70, prclcciona, verbis:

A interpretação é o processo lógico que procura estabelecera vontade da lei, que não é, necessariamente, a vontade dolegislador. A lei deve ser considerada co-entidade objetivae independcntc e a intenção do legislador só deve ser apro-veita como auxílio ao intérprete para desvendar o verdadei-ro sentido da norma juridica, (Grifei),

E, ainda, do mcsmo autor:

"Na interpretação da lei, deve-se atcnder aos fins sociais aque ela se dirige a às exigências do bem comum"(art 5° daLICC). Deve-sc, porém, ter em vista na interpretação da leiprocessual penal que a tutela da liberdade individual estacompreendida nos imperativos do bem comum e que afimda pena é promover a integração social do condenado (art.lOdo LEP)". (Destaquei).

Nesta conformidade e tendo em mira esses princípios, o juiz,quando se deparar com uma norma que lhe pareça inconstitucional ouque atente contra os principias por ela mesma traçados, deverá como talconsiderá-Ia na primeira hipótese ou, na segunda, deverá deixar de aplicá-lae, desse modo, aplicará a disposição que lhe pareça mais justa ante o casoconcreto que lhe é submetido.

O julgador, portanto, é antes de tudo verdadeiro intérpreteda vontade do legislador expressa na norma, mas, evidentemente, nãoficará adstrito a tal vontade quando essa afrontar a consciência socialou os direitos fundamentais da pessoa humana assegurados no textomagno.

A desobediência a uma norma pré-fixada (considerada injustaou inconstitucional) não implica, necessariamente, no rompimento ouesfacelamento do ordenamento juridico porque, na essência, o própriofim preconizado pela norma agendi é a realização do Direito, esse o fimúltimo da ciência juridica.

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o legislador ordinário, entendo, ao fixar o cumprimento inte-graI da pena em regime fechado, atentou - sem sombra de dúvidas - con-tra o princípio maior - porque previsto na Constituição Federal - da indi-vidualização da pena, além de ferir os princípios que regem a própriaaplicação e execução da norma legal, devendo, por isso, a disposiçãoproibitiva ser declarada de forma Incidental - inconstitucional - com asua não aplicação ao caso vertente, decorrendo, em conseqüência, o defe-rimento da progressão almejada, caso o recorrente atenda os demais re-quisitos legais para a obtenção daquela.

Por outro lado, é oportuno ainda registrar a incoerência e aço-damento do legislador ordinário na elaboração apressada da disposiçãorestritiva, pois, dispondo logo depois sobre a possibilidade do agentecriminoso em tais circunstâncias, obter livramento constitucional desdeque cumpridos dois terços (2/3) da pena, não sendo reincidente, permitiuo mais quando proibiu o menos. Nesse sentido, constata-se que o legisla-dor nacional, apercebendo-se do seu lamentável equívoco na edição daaludida norma draconiana, quis abrandar o seu rigorismo fazendo inserirno texto legal a nova disposição atcnuadora e permissiva.

As leis, como um dos instrumentos de controle social, têm cará-ter abrangente (ou seja, destinam-se á sociedade como um todo) e são legíti-mas e juridicamente aceitáveis, quando não resultantes de clima passional dedeterminada época, e só serão juridicamente válidas e aceitáveis, enquantopersistir a existência dos mesmos fatos sociais que lhe derem origem.

Com base nessa visão é que entendo que a disposição insertano ~ l° do art 2° da Lei nO8.072/90, por ser disposição absolutamenteinconstitucional, não revogou a previsão constante do art. 112 da Lei nO7.210, de 11107/84, que trata da progressão do regime da pena imposta.

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PREJUDICIAL DA LIDE PENALTRIBUTÁRIA

Antonio CorrêaJuiz Federal

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PREJUDICIAL DA LIDE PENAL TRIBUTÁRIA

Antonio Corrêa

SUMÁRIO: Introdução; Finalidade da pena; Independência das jurisdi-ções; Evolução jurisprudencial; Conclusões.

IntroduçãoCircula nos meios jurídicos que estava em andamento uma refor-

ma penal, para a qual foraln destacados eminentes especialistas na área,com idéias já alinhavadas e que viriam modernizar os institutos nacionais.

Com a saída do Ministro da Justiça Nélson Jobim, que passou aocupar assento no Supremo Tríbunal Federal, a reforma foi paralisada,porque à Comissão, nomeada que fora por ele, resolveu colocar os cargos ádisposição. A nomeação de outra para a mesma tarefa está na ordem do dia.

O certo é que essa Comissão adotou como ponto de partidauma inovação. O nosso Código Penal de 1940 que adotou como estruturaagrupar os crimes de acordo com a proteção do bem jurídico, com tiposque cuidam à exaustão dos crimes contra a pessoa, contra a honra, contrao patrimônio, contra a fé pública e assim por diante, seria alterado e aban-donados os principios para adoção de outro, moderno, que viria atenderaos reclamos e ao momento atual da sociedade.

Cogita-se de dividir os crimes em três categorias apenas, ouseja, abandonando-se o sistema do bem jurídico protegido para adotar-seo da gravidade dos meios utilizados.

Assim, os crimes a serem capitulados agregarão tipos que en-volvem os denominados "crimes violentos", "crimes de astúcia" e ou-tros, sem denominação própria, que abrangeriam as demais modalidades.

Os "crimes vio/entos", dada a gravidade com que são praticados,seriam apenados com segregação ou com retirada do agente do meio socialmediante prisão celular. Aos de "astúcia", seriam aplicadas penas maísleves, geralmente de multa ou então de prestação de serviços para a socie-

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dade. Os demais, dada a ausência de periculosidade, seriam punidos com aliberdade vigiada, como nos casos de suspensão do processo adotados paraos crimes de menor potencial ofensivo, previstos na Lei n. 9.099/95.

São idéias colocadas em debate, mas ainda não absorvidas pelacomunidade juridica, que deverá no futuro verificar a validade das teses,já que a criminalidade violenta aumenta assustadoramente nos centrosurbanos maiores, considerados metrópoles, e tenderá a subir nas estatísti-cas á medida em que os problemas sociais aumentarem e que serão fataisdiante do sistema econômico mundial.

Ocorre que o dinamismo dos fatos superou a afirmativa acima,porque as idéias da antiga comissão, que colocou os cargos á disposiçãodo Ministro, acabaram sendo desprezadas.

A comissão não foi confirmada, tendo sido entregue a tarefa àliderança do Ministro Luiz Vicente Cemicchiaro, do Eg. Superior Tribunalde Justiça que cuidou apenas de alterar a parte geral, revisando os artigos apartir do nO121 e introduziu novos tipos, excluiu alguns e deu nova reda-ção a outros para melhorar o entendimento, considerando a jurisprudênciaconsolidada ao longo destes quase cinqüenta anos de vigência.

Finalidade da penaEsta pequena referência à guisa de introdução exige tambétil

algumas considerações em tomo da pena.Sabemos todos que a pena criminal, imposta pelo Estado como

meio de controle do cidadão, ou conhecida como a "ultima rotio juris",no inicio tinha efeito retributivo. Com a evolução, a partir da revoluçãode idéias propugnadas por Beccaria e Romagnosi, passou a ser adotadacom fins intimidatórios.

Visa, portanto, no estágio atual, a inibir a prática de fatos típi-cos, já que a lei penal nada proíbe, mas apenas descreve tipos aos quaisagrega sanções dentre as diversas modalidades criadas pela lei.

Agora, entretanto, tem sido endereçada para finalidade de res-socialização do indivíduo, ou seja, considerado o delito como condutaanti-social, a pena visa a sua emenda e o seu retomo, após evoluir nopensamento e nas idéias, ao meio social de onde fora retirado por causada mesma conduta.

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Os crimes tributários permanecem num limbo, porque há con-testação em tomo da criminalização de condutas, as quais estariam emcontraste com a Constituição Federal, que instituiu como garantia indivi-dual do cidadão a vedação de prisão por divida. Sendo o tributo imposi-ção estatal de natureza pecuniária contra o cidadão contribuinte, a finali-dade última seria a exigência de valor monetário que não satisfeito leva-ria o devedor à prisão.

Esta inteligência, contudo, mostra-se exagerada, porque no sis-tema atual se protege um bem jurídico e este é o erárío público, quando odevedor contribuinte se coloca não como devedor, mas na maioria doscasos como responsável ou sucessor tributário, manuseando valores emnome e por conta do seu titular que seria o Estado.

Também exagerada a inteligência, porque os crimes tributári-os, em grande parte, pelo menos aqueles tipos do artigo 2° da Lei n.8.137/90, denominados "por equiparação", não constituem condutasem que há apropriação de valores, mas sim ações que visam auxiliar oupermitir a terceiros que, agindo da forma descrita, venham a obter algu-ma vantagem econômica com a supressão ou diminuição do valor a serpago ao erário.

Mesmo assim, parece-nos que a imposição de pena na espécienão decorre da finalidade moderna de ressocialização do indivíduo, massim de inibição à prática do fato típico, diante da possibilidade de vir aser apenado e sofrer segregação da sociedade por período longo e quevem acompanhada da aflição e da coerção que desencadeará perante osseus pares na sociedade, considerando-se que um simples envolvimentoem inquérito policial ou ação penal é poderoso agente inibidor da açãodelitiva, segundo a prática tem demonstrado.

Devo registrar que pessoalmente não concordo com a tese de quese trata de crime por divida, vedado por uma das garantias constitucionaisdo cídadão" conforme alguns preconizam.

1- Em conferência proferida em rellllião da Academia Brasileira de Direito Tributário,em São Paulo, no dia 5/5/98, o Prof. Edvaldo Brito fez apaixonada defesa dainexistência de crimes tributários. Alega como elemento de certeza o fato de que aCF/88 veda a prisão por dívida, sendo o tributo relação obrigacional civil e no casoo Estado estaria impondo condenação ilegal.

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o meu entendimento possui duas vertentes. A primeira, de quea Lei nO8.137/90 não consagra mero tipo de sonegação, mas existemcondutas que se dirigem a crimes materias, que dependem de resultado, eoutros, de mera conduta, que independem de ter sido alcançada a supres-são ou redução de tributo.

Em segundo porque a maioria dos tipos não visa exigir otributo. Ao contrário, discordando da inteligência do pronuncia-mento dos defensores da inexistência de delitos tributários, vejopor outro ângulo a questão. É que para mim não se cuida de rela-ção juridica obrigacional, como sustentam aqueles, mas sim umarelação juridica estatal, decorrente de lei, em que não há lugar parao inadimplemento.

A doutrina é unânime ao repelir a pretensão de incluir no direi-to obrigacional as relações tributárias, sendo exemplo a lição que afirma"em razão da soberania ou poder de império que o Estado tem sobre aspessoas e coisas de seu território, tem ele também a possibilidade, dedireito e de/ato, de exigir tributos"'.

Da mesma forma, "já vimos que o poder fiscal é uma/acuidadedo Estado que tem fúlcro na sua soberania. O Estado usa de seu poderfiscal adaptando uma posição de soberania, considerando os particula-res como súditos submetidos ao seu poder. A unidade política, assim, seapresenta numa situação de superioridade em relação aos administra-dos, exercitando verdadeiro "poder"'.

Não se sustentando a tese dos civilistas, ou que enquadram ostributos como relacionados ás de natureza obrigacional, tem-se que deveser repelida a idéia de que crime tributário não existe e que por isso esta-ria em contraste com a Carta Magna.

Independência das JurisdiçõesTema que suscita debates acalorados, primeiro ao se constitu-

írem em fontes indiretas ou mediatas do direito objetivo, como são clas-

2- Curso de Direito Tributário, Ruy Barbosa Nogueira, pág. 115, Saraiva, 1980.3- Sistema Tributário da Constituição de 1969, pág. 192, voU, Rev. Tribs, 1973.

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sificadas a doutrina e jurisprudência" é quanto á independência das ju-risdições.

O termo é impreciso quanto a afirmar existir jurisdição admi-nistrativa, porque o nosso direito não consagra o contencioso com efeitosde coisa julgada, mas vem sendo adotado pelo costume e assim deve seridentificado.

O tributo surge de um fato econômico, mas a sua exigênciadepende de ações humanas.

A lei determina (art. 142 do CTN) a presença de autorida-de competente, para promover o lançamento. Esta atividade é clas-sificada como procedimento administrativo. Através dele a autori-dade verifica a ocorrência do fato econômico (gerador), determina amatéria tributável e calcula o montante devido, identificando o su-jeito passivo e, se for o caso, sugerindo a aplicação da penalidadecabivel.

Esta atividade de lançamento, homologada, ou superada em suasfases pela ausência de recursos, completa um círculo que pode ser identi-ficado como jurisdição administrativa.

Uma vez lançado, pode o suposto sujeito passivo adimplir aobrigação e extingui-la, ou então dela discordando, submetê-la ao PoderJudiciário, onde manifesta pretensão de direito material, geralmente vol-tada para a anulação do lançamento (art. 38 da Lei n. 6.830/80) ou adeclaração de sua inexigibilidade. Neste caso surgirá a jurisdição verda-deira, porque estará atuando o Poder Judiciário diante da garantia consti-tucional da inafastabilidade do controle judicial das vulnerações ou ame-aças a direito.

4- STJ, HC nO2.357-9/RS, ReI. Min. FlaquerScartezzini, DJ de7.3.94: "Em se tratandode delito de sonegação fiscal, a instauração da ação penal independe do procedimentoadministrativo de apuração de débitos tributários, até porque são diversos osfundamentos deste e daquele"; SIJ, RHC n° 2.399-9/RS, ReI. Min. Pedro Acioli, Dlde 2.8.93: "Consoante reiterada orientação pretoriana, não constitui condições deprocedibilidade, da ação penal por infração de sonegação fiscal, a apuração do débitotributário na instância administrativa";

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A idéia é a de que ambas são independentes e uma pode valida-mente atuar sem que a outra seja provocada'.

Penso que está superado tal entendimento. Volta-se evidentementepara idéia sedimentada de que o servidor que tivesse praticado ilícito pode-ria sofrer processo criminal se tipica a sua ação e ao mesmo tempo respon-der a processo administrativo e sofrer punição desta natureza independentede ser absolvido na Justiça Criminal, por falta de provas ou outro motivoque não fosse a negativa da existência do fato ou da autoria.

Em matéria tributária, ao contrário dos principios adotados aci-ma, penso que há estreita vinculação entre a jurisdição administrativa,adotada a terminologia usual, em face da limitação ao poder de tributar ese constituir em atividade administrativa vinculada e a jurisdição penal.

Evolução jurisprudencialPesquisando na jurisprudência constatamos que tanto o Eg.

Superior Tribunal de Justiça como o Colendo Supremo Tribunal Federalmostram-se rígidos em sustentar que as duas jurisdições, administrativase penal, são independentes •.

A razão destas notas é a evolução que está ocorrendo na instãn-cia judicial revisora de delitos de sonegação fiscal, por ocasião de julga-mentos de recursos provocados por diversos condenados.

5- No voto condutor do Acórdão o Min Pedro Acioli foi inciso ao registrara entendimentoda Corte: "A possibilidade de extinção da ação penal pelo recolhimento do impostodevido, antes de iniciada, na esfera administrativa, a ação fiscal própria, como dispõeoar!. 2°da Lein. 4.729/65, não é repetida pela Lei nO8. 137/90, por cuja tnmsgressãoforam os pacientes denunciados. A disposição deste último Diploma, relativo àextinção da punibilidade, é diferente, ocorrendo se o recolhimento se fIzer antes dorecebimento da denúncia (art. 14). Prescindível aqui qualquer ação fiscal no âmbitoadministrativo. Não pode, outrossim, o agente exigir uma chance ou um prazo parafugir à ação penal, ainda mais quando se trata, na hipótese, de lançamento fiscaldecorrente diretamente da informação do próprio responsável pelo recolhimento".

6- STJ, RHC nO4.302-4/RS, ReI. Min. Edson Vidigal, DJ 27.2.95: "O oferecimento dadenúncia por crime de sonegação fiscal não depende de conclusão de procedimentoadministrativo"; RHC n° 1.895-RS, ReI. Min. José Dantas, DJ 11.5.92: "Condiçãode procedibilidade. Reiterada orientação pretoriana, sobre negar a exigência daapuração do débito tributário, na instância administrativa, o caráter condicional deprocedibilidade da ação penal por sonegação fiscal",

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Os fatos que vêm provocando a evolução do entendimento de-correm do chamado "caso Maglione". Foi um cirurgião-dentista, comconsultório instalado numa das cidades-satélites da Capital da Repúbli-ca, que acabou auxiliando pessoas, fornecendo-lhes recibos de tratamen-tos dentários para abatimento de imposto de renda apontados como fal-sos. Cruzadas as informações pela Receita Federal. foi feita diligência eapreendidos documentos e livro-eaixa do profissional liberal, desencade-ando ações paralelas, sendo uma delas a de notificar cada um dos contri-buintes que se valeram de recibos supostamente falsos aos quais foramrecusadas as homologações do autolançamento do imposto de renda, parao pagamento com multa do valor da despesa com tratamento dentárioque fora glosado.

Mas, como o fato causou estrépito, diante da comunicação feitapela Receita, o Ministério Público passou a denunciar indiscriminada-mente aqueles que se utilizaram dos recibos.

Condenados alguns, vieram ao Eg. Tribunal Regional Federalda Ia Região, defendendo tese da ausência de justa causa. É que, tão logonotificados pela Receita da glosa, pagaram os valores do tributo e multa.Àquela altura, porém, já havia denúncia recebida.

Todos conhecemos a legislação e sabemos por isto que a Lei nO8.13 7/90 previa como causa de extinção da punibilidade o pagamento dotributo antes do inicio da ação penal. A Lei n° 8.383, de 30.12.91, revo-gou o dispositivo da lei de sonegação fiscal.

Esta situação perdurou até que promulgada a Lei n. 9.249/95,no artigo 34, fez retornar ao ordenamento a extinção da punibilidade pelopagamento do tributo, desde que efetuado antes do recebimento da de-núnCIa.

Interpretando o ressurgimento de extinção da punibilidade, emjulgados pioneiros relatados pelos eminentes Juizes Eliana Calmon eNélson Gomes da Silva, surgiu nova inteligência.

Entendeu-seque "o tipo penal descrito no art. l"da Lei nO8.137/90, para que se possa configurar exige, obrigatoriamente, o término daapuração do agir do contribuinte e a sua conseqüência na esfera tributá-ria. Denúncia oferecida antes do término do processo fiscal que apre-senta ausência de interesse de agir do Ministério Público Federal- Ca-

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rência de Ação. Examinando-se a questão do beneficio outorgado pelaLei nO8.137/90 - Extinção da punibilidade pelo pagamento dos tributos-vigente na hipótese, porque ocorrido o fato antes da vigência da Lei nO8.383/91, verifica-se que a denúncia, "ante tempus ", por via obliqua,impediu que pudesse o paciente utilizar-se do favor fiscal"'.

No voto condutor, dentre outros, ressaltam fundamentos queindicam "o pagamento do tributo ocorreu antes de ter se completado oprazo de exigibilidade, o qual atendeu à expectativa do Estado-Adminis-tração, sendo de concluir-se que, efetivamente, foi açodada a represen-tação endereçada ao MPF, antes da conclusão do procedimento fiscal,como igualmente precipitado foi o desencadeamento da ação penal. Comestas considerações, concedo a ordem de habeas corpus, par entenderque, faltando à denúncia uma das condiçlJes da ação - o interesse juridi-camente protegido -, há de considerar-se como causa extintiva da puni-bilidade o pagamento efetivado dentro da expectativa traçada pelo Esta-do-Administração ".

Em outro precedente" foi decidido que "denúncia oferecida an-tes da efetivação do lançamento definitivo fiscal, sem definição do quan-tum debeatur, obsta o réu de exercitar o seu direito de pagar o tributoapurado para beneficiar-se com a exclusão da punibilidade prevista noart. 14 da Lei nO8.137/90. Se o contribuinte, na fase da açiJo fiscal,aceita a notificação e vai à RepartiçiJo efttuar opagamento do quantumapurado, não se pode ver em sua conduta o dolo de sonegar o tributodevido ".

Existem outros precedentes que alargam a interpretação do ins-tituto da extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo, vendo arecriação alcançar inclusive fatos pretéritos, seguindo o princípio consti-tucional da benignidade da lei posterior.

ConclusõesA doutrina' registra que a maioria dos juristas nacionais tem

sedimentado entendimento de que a ação penal também é direito potesta-

7- Habeas CO/pusn° 95.01.03147-Q/DF, ReL Juíza Eliana Calmon, TRF I' Reg.8- Apelação Criminal nO94.01.37813-4/DF, ReL Juiz NélsonGomes da Silva, TRF I'Reg.9- Jorge Alberto Romeiro, Da Ação Penal, p. 15, Forense, 1978.

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tivo do Estado, de manifestar em Juízo pretensão de imposição de penacriminal ao sujeito ativo do delito. E que esta tem como caracteristica opressuposto de ser necessária e irrevogável e tem sobre ela o manto doprincípio da legalidade, vedando que possa ocorrer renúncia, desistênciaou transigência'"

O Prof. Frederico Marques, contudo, sustenta em seus legadosque" "o ius scriptum, que regula o processo penal brasileiro, consagra,com atenuações, o princípio da legalidade. É que ante circunstânciasparticulares que possam ocorrer quando da prática de crime, facultadoestá, excepcionalmente, ao Ministério Público deixar de propor a açãopenal".

Essa faculdade excepcional, impensável na época, hoje já fazparte do ordenamento jurídico nacional com a promulgação da Lei nO9.099/95.

Como grande parte dos delitos de sonegação fiscal" enquadram-se nela, temos que a suspensão de ações surgirão em relação a eles. Tam-bém está sendo consagrado o princípio da "bagatela", que é reconhecidosob fundamento de que a lei penal deve preocupar-se tão-somente dequestões de maior envergadura.

Quanto ao tema central, ainda o mesmo jurista preocupava-secom a "imputação razoável" e a "justa causa e interesse processual"para a deflagração de uma ação penal. Ensinou que "imputação razoável,no processo penal, corresponde, mais ou menos, à pretensão razoável doprocesso civil, a qual só existe quando presentes as três condições daação" e que "no processo penal, justa causa e interesse processual seconfundem: tendo em vista os reflexos do processo penal sobre a liber-dade e o status dignitatis do réu, não será admissível o exercício da açãopenal, sem que haja justa causa. Afalta desta, inexiste interesse proces-sual no tocante àpropositura da ação penal, uma vez que faltará pedidoidôneo para provocar a tutela jurisdicional do Estado-juiz. Ajusta causa

lO- Autor e obra citados, p. 158.11- José Frederico Marques, Tratado de Direito Processual Penal. 2° vol., p. 94, Saraiva,

1980.12- Art. 2° da Lei n° 8.137/90: "Constitui crime da mesma natureza .." Pena - detenção,

de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

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consiste no conjunto de elementos e circunstâncias que tornem viável apretensão punitiva, da qual depende constituir-se o processo justo, casocontrário surgirá coação resultante da persecutio criminis, ou do proces-so. que será ilegal, ex vi do art. 648, I, do Código de Processo Penaf'J.

Assim, sem que se conclua o procedimento de lançamento, opor-tunizando ao contribuinte o adimplemento do débito fiscal, extintivo dapunibilidade, não poderá, s. m. j., ser deflagrada ação penal, pois faltaráuma das suas condições e se transformará em processo injusto.

Merece reflexão, também, a preocupação dos agentes fazendá-rios que temem, pela demora do pronunciamento administrativo ao per-mitir inúmeros recursos, sejam os fatos típicos criminais alcançados pelaprescrição. Penso que não procede, considerando que o artigo 116, I, doCódigo Penal dispõe que "a prescrição não corre enquanto não resolvi-da, em outro processo, questão de que dependa o reconhecimento daexistência do crime". Ausente distinção em torno de "processo", que nãoé necessariamente judicial, o fato, se for típico, permanecerá incólumeenquanto estiverem em desenvolvimento as atividades de lançamento.

13- Autor e obra citados, pp. 72-3.

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REFLEXÕES SOBRE A SUSPENSÃODO PROCESSO DE EXECUÇÃO

Glauco Antônio AlvesSilvio Viana

Juizes de Direito no Estado de Rondónia

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REFLEXÕES SOBRE A SUSPENSÃODO PROCESSO DE EXECUÇÃO

Glauco Antônio AlvesSilvio Viana

A finalidade do presente trabalho é analisar o entendimento pre-dominante nos Tribunais Pátrios, no sentido da suspensão indefinida doprocesso de execução, ante a inexistência de bens passiveis de penhora.

O artigo 791 do Código de Processo Civil não limitou tempo-ralmente o prazo em que o processo de execução possa permanecer sus-penso pela ocorrência desta circunstãncia.

O Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia enfrentou a ques-tão, conforme se extrai do julgado proferido em 6 de junho de 1995, nosautos do Agravo de Instrumento n. 95.005244-2, tendo como relator oExcelentissímo Senhor Desembargador Sebastião Teixeira Chaves, nosseguintes termos:

Execução - Suspensão sine die com base no art. 791, III,do CPC - Extinção indevida do processo - Apelação pro-vida unãnime. Expressa e especifica prevê o art. 791, III,do CPC a suspensão do processo de execução, quando oexecutado não possuir bens penhoráveis. Não dispondo alei de límite temporal e considerando-se o fato determi-nante die, sendo inaplicáveis as regras destinadas ao pro-cesso de conhecimento.

No mesmo sentido foram os julgamentos dos agravos de ins-trumento sob números 96.001926-0, 97.001361-0; 97-001362-0, desteTribunal.

Este posicionamento não diverge do entendímento do SegundoTribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, conforme julgamentopublicado na Revista dos Tribunais nO698/117; do Primeiro Tribunal de

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Alçada Civil do Estado de São Paulo, conforme julgamento publicadona mesma revista sob nO592/134, e do Tribunal de Alçada do Paraná,consoante publicação na revista citada, nO592/134.

Não tendo o legislador fixado termo certo para a suspensão daexecução, ao contrário do que ocorre no processo de conhecimento, cabeentão ao intérprete, socorrendo-se dos métodos de interpretação e aplica-ção do Direito, verificar se se trata de lacuna ou se tal norma compatibi-liza-se com nosso sistema processual.

Isto se afirma uma vez que um dos postulados do processo é aefetiva prestação jurisdicional. O processo existe e justifica-se apenas sepensarmos que ele é necessário para instrumentalizar uma ação e reaçãoe atingir um objetivo: substituir as pretensões resistidas pela vontade doEstado e imprimir soberania através de um ato jurídico decisório.

O processo executivo não escapa deste raciocínio. Demonstra-da a certeza, liquidez e exigibilidade do negócio jurídico primário, atra-vés de documento hábil e reconhecido por lei como tal e descumprida aobrigação que a relação jurídica fez emergir, o interesse do pretendente àjurisdição também germina e vigora a partir do momento em que a rela-ção juridica processual é estabelecida com a citação do devedor e suarecusa em honrar o compromisso assumido no prazo fixado pelo artigo652 do Código de Processo Civil.

A prestação jurisdicional no processo de execução de quan-tia certa contra devedor solvente é a satisfação pecuniária equivalenteque o documento denominado título executivo representa. Esta satis-fação é operada, sob forma instrumental e preponderantemente, como ato de penhora. Assim, a penhora não é o escopo do processo deexecução, mas sim uma das formas com que fará desaguar a finalida-de do processo desta natureza: a satisfação do direito do credor e aextinção da relação jurídica primária. Deflui disto o resultado do pro-cesso: sua extinção.

Sim, pois que, desde quando se inicia, o processo não tem outrorumo a seguir do que sua extinção, que deve se operar no espaço de tem-po que a lei figurou como adequado, pois que a todos os prazos fixadosno Código de Processo Civil, implícitos neles está o princípio da brevida-de, ou seja, "o interesse público é o de que as demandas terminem o

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mais rapidamente possível. Por isso mesmo a lei regula o tempo destina-do á realização dos atos processuais. "I

Em razão do exposto, portanto, há que responder-se afirmati-vamente a indagação de que, dentro dos princípios norteadores da ciênciaprocessual, há imprecisão na redação do artigo 791, inciso m, do Códigode Processo Civil, quando não fixou prazo de suspensão do processo deexecução, pela não localização de bens passíveis de penhora.

Para os que vêem lacuna normativa, é imperioso que esta sejapreenchida. Dentre as fontes utilizadas para este fim, a primeira que seapresenta-se é a prevista no artigo 4° da Lei de Introdução ao CódigoCivil, que aconselha o método analógico como primeira forma de inte-gração da norma.

Um dos dispositivos que se amoldam dentro do processo analó-gico é o artigo 40 da Lei 6.830/81 (Lei das Execuções Fiscais).

Todavia, a lei referenciada cuida da pretensão executiva de cré-ditos tributàrios constituídos, cujo credor é ente de Direito Público.

Socorre-nos o entendimento erudito de Maximiliano para estahipótese, quando dita que "em matéria de privilégios, bem como em setratando de dispositivos que limitam a liberdade ou restringem quaisqueroutros direitos, não se admite o uso da analogia'''' .

Com este raciocínio, conclui-se que a norma prevista na legis-lação especial não se aplica às execuções discíplinadas pelo Código deProcesso Civil.

Determinando o texto legal que a execução, após suspensa peloprazo de um ano sem a localização de bens, deve ser arquivada, quis olegislador instituir um privilégio para a pessoa jurídica de direito públi-co, porquanto os créditos fiscais e parafiscais constituem a razão de serdessas pessoas.

Na exigibilidade do crédito tríbutàrio, este fator é muito maisperceptível, haja vista que, tratando-se de crédito que reverterá em be-neficio da coletividade, ainda que indiretamente, a manutenção do pro-cesso, com todas as suas conseqüências negativas contra o executado,

1- Moacyr Amaral Santos, Primeiras Linhas, Saraiva, 1992, Vai. I, p. 298.2- Carlos Maximiliano - HelJllenêutica e Aplicação do Direito, Forense, 1997, p. 213.

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faz-se relevante, pois o interesse público, neste aspecto, domina sobreo privado.

Discordamos, neste aspecto, de Araken de Assis, quando argu-menta que o arquivamento do executivo fiscal se trata de "limbo admi-nistrativo em que escorregam certos processos"3.

Não se trata, no caso, de prática desaconselhável a permanên-cia do processo arquivado, ainda que sem extinção, pois a arrecadaçãotributária é matéria inserida no Sistema Tributário Nacional, cuja rele-vância se confunde com o próprio papel do Estado.

Tratando-se assim de privilégio da Fazenda Pública, o arquiva-mento dos autos sem a extinção, pelo principio da supremacia do interes-se público sobre o privado, não cabe a aplicação do artigo 40 da Lei deExecuções Fiscais nos processos de execução regulados pelo EstatutoProcessual.

No que pertine a aplicação da Lei 9.099/95 (Lei dos JuizadosEspeciais), a norma do artigo 53, ~ 4°, determina ao juiz a extinção daexecução quando não forem localizados bens penhoráveis. Bem mais sen-sível ao principio da finalidade no processo de execução foi esta Lei. Nãose perde tempo com situações que não terão resultados. Filtrando-se osprocessos, tramitarão apenas aqueles que efetivamente satisfizerem oscredores.

O procedimento do Juizado Especial é mais ágil em razão dacomplexidade do litígio no aspecto fático. Não é, contudo, menos justo queo procedimento executivo previsto no Código de Processo Civil. O peque-no credor possui as mesmas garantias processuais do grande credor.

Por isso, a adoção da extinção da execução frustrada constituimera opção legislativa, concretizando o principio da celeridade, expres-samente previsto no artigo 3°.

Consagrada a tese de que a competência do Juizado é opcional,o exeqüente teria tratamento diversificado, conforme o órgão perante oqual estivesse demandando. Perante uma vara cível, o processo ficariasuspenso, enquanto que no Juizado Especial seria extinto, não se aplican-do, desta forma, o preceito especial ao processo de execução comum.

3- Manual do Processo de Execução, 2" 00., p. 917.

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Da mesma forma, não tem aplicação a hipótese de suspensãodo processo, prevista no artigo 265, inciso IV, do Código de ProcessoCivil, pois as causas de suspensão ali previstas são incompatíveis com oprocesso de execução. Em conseqüência, o prazo máximo de um anoestipulado pelo ~ 5° não tem aplicação.

A solução mais adequada ao caso vem regulada pelo artigo 177do Código de Processo Civil, in verbis:

"Os atos processuais realizar-se-ão nos prazos prescritosem lei. Quando esta for omissa, o juiz determinará os pra-zos, tendo em conta a complexidade da causa."

Não localizados bens do executado, passiveis de penhora, o juiz,diante de cada caso concreto, fixará, a seu prudente arbítrio, prazo razoá-vel para que o exeqüente diligencie na localização.

Mais urna vez mencionamos Araken de Assis, que procura so-lucionar a questão: "Por conseguinte, inexistindo bens utilmente penho-ráveis, o processo executivo remanescerá suspenso por seis meses, apóso que se extinguirá.'"

Apenas fazendo ressalva quanto ao prazo de seis meses, pois,como dito, não havendo disposição legal que assim determine, caberá aojuiz a fixação, que extinção ocorreria, como pondera o processualistagaúcho?

O objeto do processo de execução por quantia certa contra de-vedor solvente, como já alinhavado, é a satisfação do credor pela excus-são de bens do devedor. Logo, estes bens são o elo de ligação ao objetodo processo de execução, posto que, sem eles, o credor nunca verá satis-feita sua pretensão.

Sendo assim, a realização da plenitude das condições da açãoque alavanca o processo executivo apenas se solidifica com o ato de pe-nhora dos bens do devedor.

Inexistentes estes, a hipótese é de carência superveniente daação, por ausência de interesse de agir, já que este elemento integrante

4- Ob. ci!. p. 917.

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das condições da ação também deve ser entendido como "o interesse deconseguir o bem garantido pela lei por obra dos órgãos jurisdicionais"s.(grifamos).

Outro fator que impõe o acolhimento deste raciocínio é o ati-nente ao aspecto da prescrição.

Pensar que o processo de execução possa ficar suspenso indefi-nidamente é negar vigência a este instituto.

Contrário a isto, todavia, foi o entendimento da Quarta Turmado Colendo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Es-pecial nO38.399-4-PR, tendo como Relator o Sr. Ministro Barros Mon-teiro, nestes termos:

Prescrição intercorrente. Processo suspenso. Não tem cur-so a prescrição quando a execução se acha suspensa, a re-querimento do credor, ante a inexistência de bens penhorá-veis do devedor".

Veja-se que nem mesmo as pessoas jurídicas de direito públicopodem se beneficiar indefinidamente com a suspensão do processo.

Embora o processo de execução fiscal deva ser arquivado de-corrido o prazo de um ano sem a localização de bens passíveis de pe-nhora, tal não significa que o prazo prescricíonal também permaneçasuspenso.

Este foi o entendimento do Colendo Supremo Tribunal Fede-ral, que no julgamento do Recurso Extraordinário nO206.207-7-SP, ten-do como relator o Excelentíssimo Senhor Ministro Otávio Gallotti, deci-diu que a prescrição intercorrente pode ser declarada em processo de exe-cução fiscal, caso a paralisação do processo ocorra por tempo superior aoprazo legal, pois o processo não pode ficar suspenso por tempo indefini-do, exaltando o princípio de que não pode haver obrigações patrimoniaisimprescritíveis.7

5- Giuseppe Chiovenda - Instituições de Direito Processual Civil, BookSeller, 1998, p.226.6- Código de Processo Civil Anotado por Theotônio Negrão, Saraiva, 27' ed., p. 542.7- Revista dos Tribunais n° 612/222.

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Ora, se nem mesmo as pessoas jurídicas de direito público po-dem se beneficiar da suspensão indefinida do processo para fins prescri-"cionais, exsurge como corolário 11\gicoque aos particulares não é dadoeste privilégio"

Mas pelo entendimento hoje predominante, a constatação éexatamente outra, pois, a partir do momento em que se proíbe a extinçãoda execução pela verificação de ausência de bens penhoráveis e determi-na-se a suspensão indefinida da execução, cria-se uma anomalia jurídi-ca, contrária aos principios gerais de direito, porquanto não se permiteque o curso natural da prescrição se opere"

Diante destas ponderações, a conclusão lógica e consentãneacom os princípios informadores do processo civil, como a finalidade, abrevidade e o interesse de agir, além do princípio geral informador daestabilidade e consolidação dos direitos, é a de que o processo dc execu-ção regulado no Capitulo IV do Titulo 11do Código de Processo Civilnão pode ficar suspenso indefinidamente por ausência de bens penhorá-veis, bem como que, uma vez fixado prazo razoável para que sejam en-contrados bens passíveis de penhora e não sendo estes localizados, o pro-cesso de execução deve ser extinto por carência superveniente, ante averificação de falta de interesse de agir por parte do exeqüente"

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GUARDA CONJUNTA

Caetano Lagrasta NetoJuiz do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo

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GUARDA CONJUNTA

Caetano Lagrasta Neto

I -IntroduçãoA Constituição Federal ampliou notavelmente a igualdade en-

tre homem e mulher, com inegáveis reflexos na Família e, de certa for-ma, declarando a obsolescência do Código Civil e das leis que manti-nham a mulher em estado de subserviência e incapacidade relativa, en-quanto os filhos eram tratados através de gradações injustas e submetidosa um pátrio poder, cujas origens remontavam á barbárie e ao DireitoRomano.

A base desta evolução encontra-se no ~ 5° do art. 226 da Cons-tituição, quando afirma a igualdade do exercício de direitos e deveresreferentes á sociedade conjugal, nesta incluidas a união estável, comoentidade familiar, aqui compreendida, também, aquela formada por qual-quer dos pais e seus descendentes (~~ 3° e 4°).

Enfatizado o dever da Família, da Sociedade e do Estado, degarantir á criança e ao adolescente os direitos á vida, à saúde, à ali-mentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dig-nidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitá-ria (art. 227), referiu-se o constituinte ao direito à convivência familiar,ao igualar homem e mulher, perante a prole - seja ela de que espéciefor. Nela incluiu a dos filhos adotados, inclusive, por entidade familiarformada por homossexuais, além da inseminação in vitro, da "barrigade aluguel" ou da clonagem de seres humanos. Ademais, não se podeomitir as conseqüências de progenitores infectados pelas novas epi-demias (AIDS), em seus relacionamentos com os filhos ou as que cer-tamente irão surgir, como fruto da ausência de regulamentação mÍni-ma do aborto.

São estes os desafios do próximo milênio, onde se inclui O daatribuição bilateral do poder parental.

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II-A GuardaExerce-se o direito de guarda numa seqüência quc. nas rclaçõcs

reguladas pelo Código Civil. tem inicio pelo matrimónio. nascimcnto cdescnvolvimento da criança. Sujeitos ao antigo conceito de páfrio po-der, hoje, poder parenta!, com a nova Constituição e o Estatuto da Crian-ça e do Adolescente (art. 21), perderam eficácia o art. 3XOe seu parágra-fo, do Código Civil, que o atribuiam com exclusividade ao varão. Aguarda "representa uma pequena parcela desse poder e fica com 11mdeles, assegurando-se ao outro o direito de visita e de fiscalização ". daatividade desenvolvida pelo guardião (Gonçalves. 199X). Igualmente,nas relações maritais, sejam elas devidas a um eventual concubinato puro,ou impuro, ou simplesmente a um relacionamento sexual temporário.Com a separação ou o divórcio, entende o mesmo Autor que: "0 exerci-cio por ambos fica prejudicado, havendo na prática uma espécie de repar-tição entre eles, com um enfraquecimento dos poderes por parte do pro-genitor privado da guarda, porque o outro os exercerá em geral individu-almente". Esse é o conceito clássico que, nada obstante a moderna con-ceituação constitucional, mantém-se estratificado, impedindo a experi-ência da guarda conjunta e o exerci cio da completa igualdade entre ho-mem e mulher.

Há três espécies de poder parental, no exercicio da guarda: aunipessoa!, quando o poder se concentra em apenas um genitor; a con-junta, quando os atos relativos á vida e aos bens dos filhos são decididospor ambos os genitores, e, por fim, o exerci cio indistinto. que permite aqualquer dos pais a realização de atos válidos (Bossert e Zannoni, 1996).

Quando a Constituição protege a criança e o adolescente, nãoestá preocupada com sua origem, mas com um tratamento igualitário ecivilizado, que ultrapasse ao mero interesse ou desidia dos pais - consci-entes ou acidentais - preservando, igualmente, os direitos destes, que osgeraram, adotaram ou abrigaram, mesmo durante o periodo de gestação"de aluguel" ou da concepção assistida (insentinação artificial).

Ultrapassando o mero inter-relacionamento de direitos e deve-res de ordem subjetiva, alcançam o interesse individual. Assim como ospais têm o dever de garantir-lhes educação e formação, têm os filhos o derespeito e aprendizado, sempre submetidos, todos, ao dever do sustento

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neccssário e da efetiva disponibilidade, com vistas ao único e primordialobjetivo de atender ao interesse do menor.

Apresenta-se o instituto da guarda com dois requisitos: titula-ridade e exercicio. O primeiro, salvo perda ou suspensão, dirigido a am-bos os genitores, enquanto que o segundo, a um ou a ambos. As leisbrasileiras, especialmente o Código Civil, previam o exercicio unipessoal- pai como chefe e cabeça do casal. Atualizado pela Constituição de 88e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, verifica-se que jamais hou-ve impedimento legal para a adoção da guarda conjunta, quase sempreconfundida com a guarda alternada.

Além do resguardo ao interesse superior do menor, pretende-secom a guarda atingir-se um clima harmônico, capaz de manter a união dafamília, nada obstante a separação ou o divórcio, conforme constatadopor Giusti (1987): "Tornar-se ex-marido ou ex-mulher é possível, masnão é possível tornar-se ex-pai ou ex-mãe". O fato de assumir a condiçãode ex-cônjuge ou ex-companheiro, tendo consciência de que será semprepai ou mãe, além de transmitir segurança e tranqüilidade á prole, impedeas atitudes de revanchismo ou de amor-próprio ferido, quase sempre de-vidas á desilusão do amor que termina.

Não existem fórmulas para enfrentar a ameaça de separaçãoentre pais e filhos. Existem conselhos ou estatisticas que, em hipótesealguma, conseguem superar a própria e constante vigilância e autocríticano enfrentamento dos problemas do dia-a-dia e daqueles maís trágicos,geralmente alimentados pela ganância ou pelo desequilíbrio financeiro.A questão dos alimentos traz ainda o inevitável ranço do machismo, umavez que, sem perceber o progresso da condição feminina, invariavelmen-te é atribuída ao varão, inclusive para obrigar o pensionamento, até mes-mo para o cônjuge culpado - pensão côngrua (Cigagna Junior, 1998). Osfilhos, envolvidos num turbilhão, salvam-se, ás vezes, enquanto os paisou fingem que a tempestade está longe ou que a salvação depende dealgum deus.

A interferência conjunta e civilizada nos costumes e hábitosfamiliares, a convivência amena e a troca de idéias, dentre outros, sãocomportamentos que quase sempre conseguem superar traumas, sem cairno arbitrio, no exotismo ou na pieguice de fórmulas do bem viver. En-

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quanto houver distinção e contornos nítidos e bem definidos em relaçãoao bem-estar da prole e observãncia ás obrigações de partilha e pensiona-mento, dificilmente haverá tumulto; este será inevitável quando houvcrconfusão entre sentimento, inveja e cobiça.

lU - A Guarda ConjuntaA guarda conjunta, fruto de atribuição bilateral do poder paren-

tal, revela-se no casamento civil, na separação ou no divórcio, bem comona situação daqueles que formam entidades familiares, como a espéciemais desejável, conciliatória e civilizada.

Nestas, distinguem-se três hipóteses: a do concubinato puro,em que não há impedimento ao casamento, entre os companheiros (desexos diferentes ou, em alguns países, iguais), participando ambos daformação da entidade familiar, quer através da filiação, obtida pelagestação "de aluguel", na concepção in vitro ou assistida, na clona-gem ou na adoção, quer pela constituição de patrimônio comum, cha-mada de união estável. A segunda, do concubinato impuro, sendoum dos pais casados, havendo impedimento, resguarda, de forma idên-tica, os direitos e deveres entre pais e filhos, com as ressalvas do re-conhecimento tardio da filiação ou da ausência de contribuição para aformação de patrimônio, chamada de união adulterino. E, por fim,união que perdure por mais de cinco anos, de que resulte prole e semque haja impedimento matrimonial, nominada de "companheirismo".Aqui estarão incluidas, por ora, as relações homossexuais, seguidasou não de adoção, e que têm sido resolvidas pelo Direito das Obriga-ções (Rosado Aguiar, 1998).

"O substantivo filho não mais pode ser adjetivado. Agora é gê-nero sem qualquer espécie" (Gontijo, 1995).

Um primeiro ensaio de atualização do conceito de guarda re-sultou da redação do art. 13 da Lei do Divórcio, quando estabeleceu que,havendo motivos graves, poderia o juiz regular, de maneira diversa donela previsto, a situação dos filhos com os pais. Aqui se encontra o pre-núncio de que o interesse do menor sempre prevalecerá ao relacionamen-

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to posterior, entre os divorciados. podendo ser estendido a situações emque a manutenção do casamento não passe de aparência ou hipocrisia.

Como fenômeno familiar. a guarda conjunta deve ser exami-nada sob os aspectos da saúde mental e fisica, econômicos, culturais esociológicos. A imposição de uma reforma vem sempre da evoluçãodos costumes: a mulher independente deixou de ser a "dama do lar",tendo que assumir tarefas profissionais, fora dele. A crise da economia,antes de paises subdesenvolvidos, hoje de paises globalizados, conduz,inexoravelmente, ao desemprego, obrigando a colaboração de outrosmembros da família, para garantir a subsistência. Assim, a mulher pas-sou a ter três ou mais atribuições: dona de casa, profissional, além demãe. Esta última representa a de vestir e alimentar, antes de sair para otrabalho ou quando de seu retorno, enquanto que o pai era o responsá-vel pelo sustento do lar, esquecidos de que a renda familiar passa acontar com indispensáveis contribuintes. Desta forma, a guarda quedeveria ser compartida, desde o momento que a mulher teve que ingres-sar no mercado de trabalho, acabon por se constituir na manutenção doaprisionamento.

Outra não é a situação dos casais separados. Enquanto o ho-mem se eximia do exercício do poder parental, pagando pensão alimentí-cia, via-se a mulher obrigada a suplementar a economia doméstica com oseu trabalho no lar e fora dele, prejudicada em seu lazer ou na busca daFelicidade. As visitas esporádicas, em fins-de-semana alternados, aindaque cegamente obedecidos, não permitiam à mulher a procura de novosrelacionamentos ou a do aperfeiçoamento profissional e culturaL Todossabem que os sábados e domingos estão reservados para uma fuga aostress, mas que, no caso, resultava no cumprimento irrecusável das tare-fas de lavar, passar e remendar roupas, preparando c congelando (quan-do possível) as refeições da semana.

Assim, igualdade somente no papeLA primeira vez que ouvi falar de "guarda co'1iunta" foi durante

uma audiência, em que a frustração do pai o encaminhou a pretender queo filho, de tenra idade, permanecesse, por semanas alternadas, consigo ecom a ex-esposa, e imagínei: o resto do tempo, passaria o menor nomanicômIo... Anos mais tarde, comecei a perceber que a idéia era outra

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e que as soluções refletiam melhor o que poderia ser a liberdade e a igual-dade do homem e da mulher.

Tendo tido sempre como norte a conciliação e como bússola ocritério de que as questões de Familia devem ser, o quanto possível, re-solvidas pelas partes envolvidas, preservado o interesse do menor, mos-traram-me estas circunstâncias que os pais - nada obstante o desencantoda separação - estavam imbuidos de sinceridade e preocupados, essenci-almente, com a busca da própria Felicidade e a dos filhos.

Não é possível impor a uma criança que viva. alternadamente,ainda que por breves períodos, com um dos genitores, exercendo este aguarda, com todos os pesados encargos que lhe são próprios. Relaçõesequilibradas entre todos evita a concorrência de poder. diminuindo astensões, as costumeiras buscas e apreensões, o não pagamento, a titulo deretaliação, da pensão alimentícia, etc (Oliveira Leite, 1997). Porém, asdesvantagens são superiormente graves: desequilibrio psiquico da crian-ça, que necessita de segurança e estabilidade, após o trauma da separa-ção; além, é natural, das conseqüências de ordem jurídica: qual dos geni-tores administra os bens do menor? Quem o autoriza para viagens aoexterior e para os atos da vida civil, enquanto menor? Qual dos genitoresé responsável pelos danos causados pelo menor?

Contudo, não há negar ser este o reflexo da mudança de costu-mes que a tendência dos juizes e Tribunais, de atribuir invariavelmente aguarda á mãe, vem sofrendo a oposição de pais extremosos, enquantoaquelas vêm desistindo de assumir mais este encargo, ante as dificulda-des de sobrevivência, buscando-se a redefinição dos papéis na Família.Sensíveis a estas mudanças, elaboraram os paises europeus novas leis,sendo que a lei francesa, de 1987, alterou o art. 287 do Cód. Civil, atravésda seguinte redação:

Conforme o interesse dos menores, a autoridade parental éexercida quer em comum, pelos dois genitores. após mani-festarem suas opiniões perante o juiz, quer por um deles.Na hipótese de exercício em comum da autoridade paren-tal, o juiz indica o genitor na casa de quem o menor fixarásua residência habitual.

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Feliz a conclusão de Oliveira Leite (op. cit. p. 268), ao consta-tar que a guarda conjunta atribui aos pais a guarda jurídíca. Mantém-se,. assim, o "casal parental", desaparecendo o "casal conjugal" (Défossez,1988).

Bossert e Zannoni (op. cit. p. 519) indicam uma dificuldadeprática na guarda conjunta: a dificuldade de ter que solicitar o consenti-mento de ambos os genitores para a prática de quaisquer atos que digamrespeito á vida do menor. Contudo, esse não deve se constituir em obstá-culo, visto que qualquer providência ou decisão, a respeito da vida e de-senvolvimento do filho, deve ser fruto da ponderação dos genitores, emqualquer circunstância, quer na escolha e direcionamento de sua forma-ção, quer na proteção de seus bens. O poder unipessoal peca pelo exercí-cio isolado, com decisões unilaterais, sem consulta ao outro genitor, en-quanto o poder parental indistinto protege o mais rápido, fomentando adiscórdia e a desunião.

IV - Características e DificuldadesO direito de residência única e imediatamente d~finida - es-

sencial ao desenvolvimento psiquico do menor - tem sua contrapartidano regular direito-dever de visita. A residência, desde logo definida,impede que a criança, em geral instável e desprotegida, sinta-se desco-nectada de qualquer eixo referencial para desenvolver atividades escola-res, de aperfeiçoamento e de lazer: ela deve apresentar-se aos professorese amigos, além dos parentes, obviamente, com endereço certo; saber quemsão seus vizinhos; estabelecer padrões de convivência, de honestidade ehonradez, a partir das atitudes que, ao longo do tempo, formarão seujuizo crítico, fortalecendo a própria personalidade. Por outro lado, devesaber qual templo ou culto religioso freqüentar - aqui também estabele-cendo raizes que lhe permitirão aproximar-se do confessor ou do sacer-dote: vivenciando a experiência com seu deus. A escola que freqüenta -muitas vezes ao longo de uma dezena de anos - permitirá a compreensãodo sentido de obediência, bem como a construção de laços de amizadecom os vizinhos e colegas que o acompanharão por toda a vida. Estes,por sua vez, aguardam a recíproca da convivência, conhecendo-lhe o ge-nitor (ou genitores), o lar em que vive, quais são seus brinquedos e, por

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que não?, saber de que fonua se alimenta, muitas vezes convidando-separa o almoço ..

Questão intrincada e que infesta os fóruns, ao menos no Brasil,diz respeito á responsabilidade pelo pagamento de pensão alimentícia,muitas vezes confundida com o esgotamento da responsabilidade peranteos fillios. A pensão serviu, serve e continuará servindo como motivo dechantagem, entre cônjuges pouco inteligentes, ou entre estes e a prole. Nãoé tema destas anotações, porém, o estado de beligerãncia, em tomo dosustento, quase nunca é verdadeiro (quando o é, decreta-se a prisão do maupagador), no geral, serve para alimentar o orgulho ferido: o amor não es-quecido; o abandono, etc. Contudo, esse mesmo estado de guerra tempennitido ao mau pai ou ao mau guardião que, sob o surrado prete:\'to fi-nanceiro, se afaste o alimentante, alegando que já cumpriu sua obrigação, eo alimentado, que é insuficiente, esquecido o primeiro que a guarda fisicanunca é suplantada pela guarda juridica e o segundo que os critérios danecessidade e disponibilidade irão nortear as decisões judiciais, indepen-dentemente do que possa ter ocorrido com a irresponsabilidade tumultuá-ria do genitor ou do guardião. A guarda conjunta pode minorar estes aspec-tos do pensionamento, que acaba perdendo o caráter de represália.

Guardar é, antes de tudo, Amar, estar presente, na medida dopossivel, comparecer a atos e festividades escolares, religiosas, manterdiálogo pemlanente e honesto com o filho sobre as questões familiares,sobre arte, religião, lazer, cultura, esporte, turismo. E, também sob esteaspecto, cabe uma reflexão. Pais separados pensam que o diálogo comos filhos é dificil e que não têm condições de atingir o âmago da questão,ou da problemática, posta em discussão. Porém, não é novidade queentre pais e filhos sempre existiu essa dificuldade: casados ou não. Asolidão e o remorso é que estarão na base de constatações desse tipo. Ogenitor que se afasta, reveste-se do limbo pegajoso e insipido do remor-so: alguns, imaginando-se pecadores irrecuperáveis, angustiam-se e nadafazem. O filho, por seu lado, sente-se excluído, abandonado, como se avida dos outros fosse melhor do que a dele. Incapaz de analisá-la, nãoconsegue explicar porque o genitor foi embora, porque não pode maisconviver com ambos, sente-se culpado, mergulha na solidão, no deses-pero e na revolta (Lagrasta Neto, 1990).

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Estes dois aspectos, merecedores de um dos circulos de Dante,em sua viagem em direção ao Infemo, nada mais é do que o resultado dainsensibilidade ou do egoísmo dos pais. São eles os únicos com condi-ções de salvaguardar a integridade fisica e mental dos filhos, ao mesmotempo que procuram resolver, de forma conciliatória e civilizada, ospróprios conflitos. Ao definirem conjuntamente uma residência única,critérios de avaliação, de formação e aperfeiçoamento, moral, educacio-nal e cultural, para a prole, estarão promovendo uma divisão de tarefas.As referentes ao dia-a-dia, que dependem exclusivamente do guardião(com quem mora o filho), como, por exemplo, roupas, alimentação, uni-forme e material escolar. Outros encargos existem que compensam aque-las e que devem ser praticados pelo outro genitor: um brinquedo, umlivro, um uniforme de atividade esportiva. Finalmente, as que somentepodem ser praticadas por ambos: a escolha do colégio, do culto, da even-tual interrupção dos estudos, o estudo extracurricular, uma viagem aoexterior, a escolha de um local para as férias.

Em todas e quaisquer dessas atividades, o genitor que não pu-der ser atendido, uma vez que o interesse superior do menor implica naimediata definição, sob pena de atrasá-lo nos estudos ou na formaçãoprofissional, deverá recorrer ao Poder Judiciário. Neste a discórdia teráum fim, inclusive, com definição liminar, suspendendo-se ou impedin-do-se atos que sejam contrários ao interesse da'prole.

Tratando-se de genitores que trabalham, tudo poderá ser dividi-do: enquanto um se encarrega da educação e transporte, outro supre ne-cessidades de alimentação e vestuário, sendo as despesas médico-odon-tológicas repartidas.

Outra questão curiosa diz respeito à atribuição de responsabili-dade por danos ocasionados pelo menor (acidente, atropelamento, mor-te), com base no art. 1.521 do C. Civil. Deve entender-se que não basta adeterminação legal; a guarda conjunta implica na responsabilidade jurí-dica de ambos os genitores. Se ambos educam, se ambos possuem econo-mia própria, evidente que ambos devem ser responsabilizados para sal-dar o prejuízo. Dizer que o pai (ou a mãe) é responsável com exclusivi-dade por ter o menor saído com veículo, mesmo não autorizado, não ésuficiente para que todo o arcabouço de um acordo - que vinha funcio-

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nando - desabe. Há que distinguir da situação em que o menor é autori-zado e, muitas vezes, incentivado, por um dos genitores, à prática de atosabusivos ou proibidos pela legislação: aqui, sim, cabe-lhe assumir inte-gralmente a reparação civil.

Os pais devem ser concitados, principalmente pelo Advogado,a pensar que o juiz poderá aplicar até mesmo o art. 13 da Lei do Divórcio;devem cogitar sobre o interesse superior do menor, em qualquer hipóte-se; não podem esquecer do caráter provisório da atribuição da guarda.Por seu lado, o advogado, o juiz, assim como o curador de Familia, de-vem estar atentos para não serem utilizados como cúmplices de atitudesmesqninhas ou de pura chantagem, empregadas por genitores inescrupu-losos, que se aproveitam da situação do ex-eênjuge para surrupiar-lhe aprole; negam condições minimas de sobrevivência ao filho, para que estese bandeie para o lado onde está a ilusão de conforto ou, o que é pior,confundam a demanda, induzindo-a a um julgamento injusto.

A cega atribuição do menor à mãe não condiz com uma realidadejusta, visto que nem sempre será ela a melhor orientadora, enquanto nãotiver superado o fim do relacionamento ou necessitar do trabalho fora dolar e de oportunidade igual de reconstruir a vida e a felicidade. A ausênciada figura do pai, quer por estar acomodado com o simples pensionamento,quer por infundados temores ou impedido de visitar a prole pela ex-mu-lher, acaba por desestabilizar o menor, fragilizado pela separação, peloscostumes, pela mídia, pela violência e como reflexo do desemprego e de-sespero dos pais. Pais acomodados são negligentes, pais convocados apartilhar a vida dos filhos acabam por destes se aproximar, deixando delado o orgulho ferido e as suscetibilidades, afora a insossa previsão de queum desentendimento, um rompimento do acordo, poderá conduzir à guar-da exclusiva com o outro genitor (Golberg e Graham, 1997).

Advertência severa, quanto à ausência da figura paterna, umavez que a da mãe é indiscutível, diz respeito a complexos mecanismosmentais e de comportamento: "Ainda que a presença conjunta de ambossob o mesmo teto não seja possivel, é fundamental que seja garantida apresença de figuras substitutas de ambos os sexos, pois é nessa convivên-cia que se encontra o gérmen de identidade sexual e do relacionamentocom o sexo oposto" (Marraccini e Motta, 1995).

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Não se crê que a guarda conjunta possa impedir a criança de terque opinar, aumentando-lhe a angústia, diante do falso dilema da esco-lha. Este aspecto somente será superado se o menor puder ser entrevista-do por equipe multidisciplinar que auxilie o magistrado. Servindo-lhe delonga manus acaba por impedir a presença, constrangedora para o me-nor, nos corredores dos fóruns.

A importãncia da vontade do menor tem efeito decisivo, con-sultá-Ia, levando em conta seus sentimentos, deve ser o fundamento dequalquer decisão que o envolva (Bonnard, 1991). Contudo, pensamosnós, as condições precárias em que se encontram nossos fóruns, a falta deuma equipe multidisciplinar e o despreparo cultural dos lidadores do Di-reito - dentre os quais se incluem, em primeiro plano, juízes, advogadose promotores de Justiça - desaconselham ouvir o menor durante umaaudiência, onde não são raros os momentos de agressividade, confusão eperplexidade.

A vontade do menor não deve ser confundida com a oitivapessoal em ambiente adverso. Nada impede o juiz de fazê-lo e o advoga-do de o requerer para que aconteça em outro lugar (como, por exemplo:na própria escola, numa lanchonete), nada obstante as inúmeras dificul-dades de o fazer, numa cidade como São Paulo (Lagrasta Neto, 1992).Utilizando-se da inspeção judicial, prevista nos arts. 440 a 443 do Cód.de Proc. Civil, será possivel entrevistá-lo no ambiente em que vive, estu-da ou trabalha, na presença de irmãos, colegas, ou do genitor que lhedetém a guarda (Fonseca, 1998).

As deficiências de adaptação profissional, do Assistente Sociale do Psicólogo, evidenciam-se na aplicação do Direito de Família. Trata-se, parafraseando Jérôme Bonnard, de definir o papel que desempenhamos primeiros no processo: não o de propor questões á criança obrigando-aa manifestar uma escolha, "mas de a observar no seu meio"; enquanto ospsicólogos devem descrever as palavras com que se expressam os meno-res, "a fim de permitir ao juiz saber se a escolha da criança corresponde árealidade de seus sentimentos" (op. cit. p. 57).

Sob este aspecto, merece reflexão e regulamentação adequadao art. 12 da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, que garan-te ao menor, capaz de discernimento, "le droit d'exprimer librement son

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opinion sur toute question I 'intéressant (..) Aceite fin, on donnera no-tamment à I 'enfant la possibilité d'être entendu dans toute procédurejudiciaire ou administrative I'interéssant, soU directement, soU par[,intermédiaire d'un représentant ou d'un organisme approprié. .. ".

v - Guarda Conjunta e Guarda Alternada - DiferençasA partir da experiência dos países europeus, especialmente da

França, a partir da lei de 1987, das legislações canadense e norte-ameri-cana, tem sido adotada, como primeira imposição ao juiz, determinar aresidência habitual da criança, sem impedir-lhe a movimentação tempo-rária, com isto, condenando-se, definitivamente, o sistema de guarda al-ternada.

O drama de país separados, que não se ajustam ao interessesoberano do filho, reflete-se, especialmente, nos conflitos sobre sua guarda.Muitas vezes chantageiam-se mutuamente, outras, é O menor que conduzo conflito, mudando-se constantemente e a seu bel-prazer da casa de umpara a do outro. A primeira mudança, e as que se seguem, permitem aomenor fugir aos deveres primários: tomar banho, manter o quarto arru-mado, acordar no horário, ir à escola, estudar, trabalhar (mesmo em tare-fas domésticas), freqüentar culto, etc. Mas, o que é pior, desinteressa-sedo respeito aos pais, descumpre a decisão judicial, não dá atenção à for-mação cultural e fisica, rebelando-se à menor contrariedade, tomando-seinsubordinado, prepotente e, talvez, um futuro delinqüente.

O que dizer, então, de uma guarda alternada, quando por perío-dos, escolhidos ao acaso e sem qualquer critério, pretender-se que a cri-ança esteja na casa de um ou de outro genitor; não em sua própria casa etalvez, por longos anos, num consultório médico? Se, de um lado, pode-rá preservar as imagens de pai e mãe, de outro, não irá fixá-las, pois serãoimagens esmaecidas, que não lhe permitirão imaginar a paz e a segurançade um lar. No aspecto psicológico, maís profundo, irá desenvolver ca-racteres descompensados de personalidade (masculina ou feminina), ca-pazes de influir no surgimento de dupla personalidade, como parte de umfenômeno neurótico ou psicótico.

A guarda alternada irá facilitar o conflito, pois ao mesmo tem-po que o menor será jogado de um lado para o outro, náufrago numa

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tempestade, a inadaptação será caracteristica também dos genitores, faci-litando-lhes a fuga á responsabilidade, buscando o próprio intcresse, in-vertendo semanas ou temporadas, sob as alegações mais pueris ou menti-rosas (viagens, obrigações profissionais, congressos, etc.). Em suma, osadultos procurarão tirar "vantagens" desta situação indefinida, propíciasao desentendimento e á destruição de uma convivência imprescindivel.

Não existe autoridade alternada; existe autoridade definida. Acriança deve saber onde é o seu lar, quem são seus pais - aqueles que oamam, respeitam e educam - e que a estes deve obediência e respeito,sem qualquer tergiversação.

Talvez, não como último, como derradeiro defeito de uma guar-da alternada, menciona-se a sobrecarga existencial e de atividades im-postas á criança. A vida sedentária dos apartamentos e do temor das ruas,a impossibilidade de uma presença constante dos pais, sobrecarregados,eles também, por atividades profissionais, e a busca incessante de atingirresultados, fazem da educação atual repositório do estresse e dos sinto-mas e doenças psicossomáticos. A lista destes sintomas é extensa e pre-ocupante, tais como: sono agitado, ansiedade, doenças respiratórias, do-res indefinidas, síndrome de pânico, náuseas, viroses, desinteresse peloestudo, choro constante, inapetência, solidão e tristeza, que, muitas ve-zes, culminam no suicídio ou na delinqüência precoce (VEJA, 1998).

Estes sintomas encaminham a criança para fora do lar, não comoantigamente para o brinquedo nas ruas pacatas, mas para o convívio commenores marginalizados: a conseqüência é o crescimento da infanto-cri-minalidade, hoje agravada pelo tráfico de entorpecentes, pelas macroor-ganizações criminosas, que se aproveitam destes pequenos seres paraformar um exército de "mulas" da droga ou, o que é pior, para aliciarquadros dirigidos á prostituição infantil.

Ainda que não se possa atribuir, com exclusividade, estes de-feitos a uma guarda alternada, o que podemos concluir é que num mundoglobalizado, onde o desemprego é o maior fantasma, a condução da proletem sido negligenciada pela insensibilidade e, principalmente, pela au-sência de sentimento ejUga à responsabilidade.

O juiz, livre para entender os argumentos da criança, deve exa-minar o grau de credibilidade e convicção com que as expõe, uma vez

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que: " ...se a credibilidade da criança não lhe traz qualquer dúvida, o juizestá livre para considerar os sentimentos que exprime. Com efeito, nãoemitindo a criança mais do que um sinal, o juiz jamais poderá estar liga-do aos seus sentimentos" (Bonnard, OI'. cit).

VI - A Jurisprudência e a Guarda ConjuntaAs decisões dos juizes e das Cortes brasileiras têm sido timi-

das, no que diz respeito a uma ampliação do conceito de guarda. Quiçátemendo a equivocada interpretação referente não à guarda conjunta, masà guarda alternada, compilam-se alguns exemplos a demonstrar que oDireito de Família pouco tem progredido, também por culpa do formalis-mo excessivo de seus juizes, alheios à revolução dos costumes.

Perde, por outro lado, o legislador a excelente oportunidade deatualizar e ampliar institutos voltados ao Direito de Familia, onde, ao con-trário de outros paises, especialmente França, EUA e Canadá, a revisãolegislativa do Código Ci,~1 atualiza situações consolidadas pela jurispru-dência. No Brasil a tibieza e desinteresse dos advogados sequer ensejam opleito, ou são erroneamente postuladas, desaparecendo ante o formalismoe a incapacidade dos juízes para assimilar mudanças. Nada obstante, odesejo dos genitores de experimentá-las acaba por sensibilizar rarissimas ehonrosas exceções, uma delas datada de mais de 10 anos.

EMENTAS:Tribunal de Justiça de São Paulo

I - Guarda de filho - Presença da avó patema no pólo passivoda ação, juntamente com o genitor do menor, para exerciciode guarda conjunta - Exclusão - Ausência de legitimidade departe, quando não se disputa o pátrio poder - Situação doartigo 13 da Lei de Divórcio que não legitima terceiros possí-veis ou eventuais guardiães - Recurso improvido.Guarda de filho - Cassada liminar concedida inicialmentepara garantír a guarda do filho em favor do genitor, restabe-lecendo a situação anterior à propositura do pedido - Des-pacho que revela necessidade de produção de provas para

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levantamento da real situação - Ausência de indicação deque o menor, na companhia materna, terá abalada sua saú-de mental ou emocional, a qual poderá sofrer prejuízos sedeferida a guarda ora para um, ora para outro - Recursoimprovido.

Comentário:Este primeiro caso indica que pai e mãe eram portadores de

deficiência auditiva e de comunicação, sendo que a última atravessavaperiodo em que a saúde se apresentava abalada e frágil, " ...Ievando asérias desavenças do casal (...) mostrando-se ela incapaz para cuidar domenor". Qual a razão de não poder a avó compartilhar a guarda, no inte-resse superior do menor? Não se extraem do v. Acórdão elementos parauma tomada de posição quanto á guarda conjunta, que, ao ser refutada,parece fazê-lo na definição de guarda alternada. (Ag. de Ins!. n. 51.501.4/O- 5" Câmara de Direito Privado do TJESP - julgado em II de setembrode 1997 - ReI. Silveira Netto).

2 - Pais separados de fato - Guarda conferida à mãe, queorganiza nova família com terceiro - Pedido de destituiçãodo pátrio poder - Inadmissibilidade - Concessão, todavia,da guarda conjunta dos menores à mãe e seu companheiro.(RT 552:70 - TJESP - 2" Câmara Civil- Proc. N. 8.428-1 -

. ReI. João Del Nero, j. em 26 de maio de 1981).

Comentário:A questão tratada neste aresto dizia respeito ao casamento entre

B e C - com três filhos menores. Estando o casal separado de fato hávários anos, C passou a viver com A, que cuidava dos menores como severdadeiro pai fosse. A solução alvitrada, que deferiu à mãe o pátrio po-der e a guarda, esta em conjunto com A, O fez com fundamento no art.24, ~ 2°, da Lei 6697/79 (antigo Código de Menores). Estas duasdeci-sões, a última datada de 1981, demonstram a possibilidade de se encon-trar a melhor solução para o menor, inclusive sob o aspecto previdenciá-rio, numa interpretação menos formal de principios que podem vir a ori-

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entar a legislação do Direito de Familia. O atual Estatuto da Criança e doAdolescente, em seu art. 33, também ampara situações irregulares, rela-tivas à guarda, enquanto seu art. 21 assegura aos genitores igualdade decondições para o exercício do poder parental.

Tribunal de Justiça do Distrito Federal

I - Guarda de filhos - Guarda conjunta - Impossibilidade -Não preservação dos interesses da criança.A chamada "custódia conjunta" mostra-se prejudicial à for-mação psicológica da criança, por importar em situação nãodefinida e ausência de um lar estàvel. Recurso conhecido eprovido em parte. Maioria de votos. (Ap. Civ. n. 38.523/96- I' T. Civel do TJDF - julgado em 06.05.1996 - ReI. Hay-devalda Sampaio - DJ - 07.08.1996 - p. 13.094).

Comentário:Desde o resultado do julgamento, verifica-se a existência de

dissidio, ficando vencido o Revisor. A nosso sentir, o prejuízo à forma-ção psicológíca do menor està na falta de fixação de uma única residên-cia, não, porém, na divísão de deveres e direitos, quer em relação aosgenitores, quer em relação ao menor, quando, aí sim, poderia verificar-se, diante da ausência de um lar estável, uma situação indefinida paraeste, com o conseqüente desvio psicológico.

Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais

I. Menor - Guarda - Pais separados - Custódia alternadasemanalmente - Inconveniência - Permanência sob a guar-da da mãe - Direito de visita do pai.Ementa Oficial: É inconveniente à boa formação da perso-nalidade do filho ficar submetido à guarda dos pais, separa-dos, durante a semana, alternadamente; e se estes não so-frem restrições de ordem moral, os filhos, principalmentedurante a inf'ancia, devem permanecer com a mãe, por ra-

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zões óbvias, garantindo ao pai, que concorrerá para as suasdespesas dentro do princípio necessidade-possibilidade, odireito de visita. (RT 733:333 - Ap. 48.974/0 - 58 Câmarado TJEMG, j. em 29.02.1996 • ReI. Campos Oliveira).

Comentário:Do corpo do v. acórdão extraem-se substanciosos argumentos

contrários à guarda alternada, devidos à inconstância de moradia, au-sência na formação de hábitos, orientações díspares (pai ou mãe), comrepercussão negativa na personalidade da prole. Correta, sob este as-pecto a decisão. Contudo, a ousadia estava, em primeiro lugar, em nãocurvar-se a razões óbvias, para conceder a guarda àmãe, quando pode-ria ter repartido todas as tarefas e a responsabilidade pela vida e bem-estar do menor entre os genitores; em segundo lugar, o conservadoris-mo indica que o pai deva manter a subsistência, enquanto à mãe reser-vam-se os afazeres domésticos. A independência da mulher, suas atri-buições profissionais fora do lar, constituem-se em motivo de orgulhoe exemplo para a prole, enquanto o varão, além de contribuir para osustento, vê-se compelido a outra espécie de atribuições, tomando-separticipativo e atuante.

Tribunal de Justiça do Estado do Paraná

I. Medida Cautelar - Guarda e posse provisória de menor -Modificação de acordo celebrado entre os pais, relativo à"custódia conjunta", com revezamento anual. I. A soluçãoque deve prevalecer, no que pertine à guarda de filho me-nor é aquela que melhor consulte aos interesses deste. Mes-mo porque as disposições que regem a guarda dos filhosnão são inflexíveis e, sobretudo, devem ser minimizadas asconseqüências advindas da separação dos pais que, semdúvida, sempre afetam o bem estar e a felicidade dos filhos.2. A convenção não exclui a faculdade que tem o juiz, se-gundo a regra do art. 13 da Lei do Divórcio, de "a bem dos

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filhos", regular, por maneira diferente da estabelecida, a si-tuação deles (com) os pais, faculdade que tem caráter ex-cepcional e, inegavelmente, abrange todas as hipóteses ("emqualquer caso") e, portanto, quer haja, quer não baja sen-tença transitada em julgado quanto à guarda dos filhos.(JUIS - Jurisprudência Informatizada Saraiva (12) - Ag. Inst.- Ac. n. 11.701 - 3' Câmara Civel- ReI. Silva Wolff - pub.30.09.1996 - Provimento negado, por unanimidade).

Comentário:A decisão demonstra que é possivel regulamentar a guarda, na

espécie conjunta, ao mesmo tempo em que prevalece o interesse sobera-no do menor, inclusive com aceno ao art. 13 da Lei do Divórcio, a critériodo juiz, e desde que preservado aquele interesse, designando-se outroguardião ou instituição menorista. A guarda não é, como todos sabem,passivel de trânsito em julgado, podendo ser modificada a qualquer tem-po, ora, se o juiz pode o mais que é destituir a ambos os genitores, ilega-lidade ou proibição não há em atender aos reclamos destes, quando pre-tendem partilhar de direitos e deveres perante os filhos.

Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

1. Menor - Guarda - Deferimento a casal ao invés de a umdos cônjuges - Inexistência de vedação legal, embora o art.24 da Lei 6.697179 (art. 33 do Estatuto da Criança e doAdolescente) utilize a expressão "detentor", no singular.Ementa Oficial: Recurso do Ministério Público contra de-cisão do juizado de menores. Deferimento de guarda e res-ponsabilidade de um menor a casal. Não há vedação legalpara que a guarda e responsabilidade seja deferida ao casalao invés de a um dos cônjuges embora o art. 24 da Lei 6.679/79 utilize a expressão "detentor", no singular. O Poder Ju-diciário, assim como tem atribuições para decidir sobre oexercício do pátrio poder, poderá também deliberar sobre aguarda e responsabilidade do menor em situação irregular,

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sendo justo que essa guarda seja deferida desde logo ao ca-sal que tem a possibilidade e interesse na adoção do infan-te. (RT669:l49-Proc.492/89-CSM-j.17.01.1990-Rel.Hilário Alencar).

Comentário:Mais do que na Vara de Família, na da Inf'ancia e da Juventude

perseguem os lidadores do Direito o interesse soberano do menor. Longede disputas patrimoniais e dos interesses subalternos, que invadem a vidados casais separados, naquela preserva-se - com ampla liberdade decisãoe de sentimento - a solução que melbor ampare ao menor e seus familia-res. Revela-se, ademais, em condições de resolver, com a urgência devi-da, quaisquer conflitos envolvendo a prole, mantida a necessária distân-cia de inútil formalismo processual.

VII - ConclusãoO estágio atual de desagregação da Família como conseqüên-

eia de um capitalismo financeiro volátil; o surgimento institucionalizadode macroorganizações criminosas; o tráfico de entorpecentes; a prostitui-ção infantil; o desapreço governamental ás politicas de bem-estar social;o naufrágio dos políticos num mar de corrupção, além da falência doscostumes e dos padrões que norteiam uma vida equilibrada e que possabuscar a Felicidade, implicam numa reapropriação da democracia e deseus processos, buscando-se-a, como pretende até mesmo o Papa JoãoPaulo II (Negri, 1998), através de uma nova militância social.

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INSTITUIÇÃO FINANCEIRASistema de Responsabilização

Reflexões

Miguel RoumiéAdvogado

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INSTITUIÇÃO FINANCEIRASistema de Responsabilização

ReOexões

Miguel Roumié

É essencial o exame da legislação existente com o ordenamen-to jurídico instituido pela Lei das Leis ora vigente e cujo confronto é maisdo que necessário. Será que as normas constantes da Lei nO 6.024/74foram recepcionadas integral ou parcialmenle?

Referir-se à responsabilidade é, no sentir dos mais renomadosjuristas, atingir a espinha dorsal de todo o Direito. As diversas formascomo os fatos jurídicos se apresentam delineiam-se fórmulas legais nemsempre adequadas e propiciadoras de contornos nítidos, ocasionando umaverdadeira avalanche de comandos normativos às vezes não tradutoresda realidade de que advieram.

No Direito Pátrio vamos encontrar posições doutrinárias sacra-mentais a respeito de responsabilidade, propondo conceitos e contornos,sem chegar a definí-Ia. Aliàs, falar em definíção - abstraindo-se a com-plexidade - é tarefa que ninguém enfrenta ou quer enfrentar! Ora, tanto aresponsabilidade subjetiva como a objetiva derivam de lei obviamente.Este comando é quem estabelece a figura ou a forma para compelir al-guém a responder.

Todo resultado jurídico material e processual que se obtém, aten-dido o devido processo legal, gera responsabilidade às pessoas jurídicasou naturais, as quais compelidas pela coerção do ordenamento jurídico,passam a condição de obrigadas! Ora, em decorrência desta situação ori-ginada da aplicação da norma legal ao caso concreto, de modo sistêmicoe preordenado, afiançado pelas garantias estatuídas na Lei Maior (que dáo devido contorno e estabelece as condições de admissibilidade ou recep-tividade), nasce a imposição válida da norma em abstrato, causando efei-tos compativeis com o fato sob análise do órgão estatal.

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Impossível, assim, deixar de existir, no universo juridico, con-dições preestabelecidas, sob pena de validar atitudes e ações intentadasem dissabor do interesse público ou do interesse privado, mormente diantede norma que não atenda ao delineamento constitucional. Em suma, se anorma infraconstitucional não se compatibiliza com os ditames da LeiMaior, prejudica o interesse público e inviabiliza o interesse privado!

A estrutura almejada ao presente trabalho vai condensar, porevidente destinação, o exame de princípios constitucionais assegurado-res do devido processo legal (substantivo e adjetivo) e da livre disponibi-lidade patrimonial, postos em confronto com o sistema de responsabili-zação previsto em diplomas legais que disciplinam a atividade das insti-tuições financeiras e a <\tuação de todos quantos investidos estejam, ouestiveram, na administração dessas entidades.

Discutida e debatida será a regra estampada nos diversos dispo-sitivos legais que aprioristicamente estampam o sistema de responsabili-zação. É o exame da norma com os comandos e princípios constitucio-nais, a fim de se depurar, ou assim tentar fazer, diante das angulações queo tema propicia.

o devido processo legalA nossa Constituição Federal, em seu art. 5°, inciso LIV, con-

sagra este princípio ao estabelecer "que ninguém será privado da liberda-de ou de seus bens sem o devido processo legal".

Aloja a Lei Maior Brasileira, portanto, o princípio da legalida-de cuja origem remonta a época do Rei João Sem Terra e conquistadapelos barões feudais saxônicos. De inicio tornou-se um poderoso instru-mento limitador das ações reais. Mas tornou-se, com o perpassar do tem-po, como meio eficaz de proteção das garantias individuais contra as in-vestidas do Poder Público. Anota PAULO DANTAS DE SOUZA LEÃO,Promotor de Justiça e Professor da Universidade Federal do Rio Grandedo Norte, que "os revoltados de alta linhagem, sob a liderança do Arce-bispo de Canterbury, Stephen Langton, conquistaram a aposição do seloreal naquela autêntica declaração dos direitos da nobreza frente à coroa".Ainda o mesmo autor assevera que aqueles revoltados 'jamais poderiamcogitar que nesse dia 15 de junho de 1215 se estava lançando aos olhos da

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história da civilização a sementeira de principios imorredouros, como oda 'conformidade com as leis', o do 'juiz natural', o da 'legalidade tribu-tária' e o 'instituto do habeas corpus'."

O devido processo legal e a igualdade perante a lei são doisprincipios construidos para se assegurar a todos tratamento uniforme,balizando a atuação do Poder Público no exercicio de suas Funções Esta-tais através da trirrepartição de competências. Aliás, convém relembrarque a jurisdição tem como berço a própria competência'

Ora, o devido processo legal é, prima facie, a pedra de toque doexame desta matéria, porque os diversos diplomas legais normatizadoresda atividade das instituições financeiras e de seus administradores, ao esta-belecer a responsabilidade solidária (art. 40) e a responsabilidade subjetiva(art. 39), fazem-na desaguar no campo da constrição patrimonial.

O due process of !aw, principio que se incorporou na modernacivilização, há de sempre ser o ponto nevrálgico de todas as relaçõesjurídicas entre governantes e governados, garantindo a efetiva admissibi-lidade materíal e processual das normas infraconstitucionais e valorando,continuadamente, os comandos necessários para que não se volte ao tem-po da Lei de Talião, ou não permitindo a incorporação de normas es-drúxulas de compleição defeituosa.

A moderna tendência do Direito Processual, como salientaHUMBERTO lHEODORO JUNIOR, assume wn caráter nitidamente ins-trumentalista. É também no campo do Direito Substantivo que se obser-va este comportamento, originado, sem dúvida alguma, do modo de sernacional estampado no vigente Estatuto Maior. A partir desta concepçãoatual, embora os legisladores lancem as bases jurídicas reclamadas pelacommunio opinium, haver-se-á de colocar em exame as disposições cons-titucionais e infraconstitucionais.

Os vínculos econômicos e sociais existentes, e a existirem, sem-pre serão objeto de regulamentação jurídica. Assim, para que se busquesempre a necessária e correta equação para normatizar a conduta do ci-dadão ou do governante, é preciso ter sempre em mente a garantia dodevido processo legal. Aqui, convém lembrar que a equação deva serrevista quando se verificar que ela provém de momentos em que as ga-rantias e liberdades individuais nasceram de momentos de turbulência e,

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por isto mesmo, em possivel desacordo com os postulados maiores ado-tados a partir de 1988.

Daí porque Ulysses Guimarães chamou de Constituição Cida-dã o novo ordenamento do modo de ser nacional!

A culta e festejada LUCIA VALLE FIGUEIREDO, professoraemérita, brilhante Juíza do Tribunal Regional Federal da 3' Região, brin-da a todos com lúcida lição:

Somente será due process of law aquela lei - e assim poderáser aplicada pelo Magistrado - que não agredir, não entrarem conflito, não entrar em testilhas com a Constituição, comos valores fundamentais consagrados na Lei das Leis.Quando o texto constitucional prescreve no art. 50, incisoLIV, a obrigatoriedade do devido processo legal - e é oprimeiro texto constitucional que a contém expressamente- não é por acaso. Em um texto constitucional absoluta-mente moderno, é o texto constitucional da cidadania.Deveras, depois da declaração de direitos individuais e co-letivos, traz em seu bojo o devido processo legal e, paraque não quede dúvida, traz duas vezes. Os outros textosreferiam-se a ampla deftsa, mas ampla defesa no ProcessoPenal. Claro que o Judiciário já havia feito a aplicaçãopara o Processo Civil, mas é a primeira vez que a cláusulado devido processo legal aparece em texto constitucionalbrasileiro, com a acepção expressa para os processos emgeral, inclusive o administrativo.

A própria expressão - devido processo legal- é a manifestaçãoclara e insofismável de que toda ação contrária aos postulados jurídicosvigentes está sujeita a determinados fatos e fatores que conduzem neces-sariamente a um sistema ordenado, preexistente, lógico e consentâneocom a norma constitucional. Não fosse assim, a norma não acolheria opríncipio do devido processo legal, ou ela estaria desprovida de um con-teúdo nuclear que é o seu sentimento democrático. Aliás, é da mesmaautora a percuciente lição em tomo deste aspecto.

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Diz ela:

Qualquer Estado poderá ser Estado de Dircito? Ou á noçãode Estado de Direito deverá corresponder pressupostos mÍ-nimos?Se não estivera Estado curvado a ruleoflaw. tal seja. a leique o poder estatal deve se submeter. sequer poderíamoscogítar da exístência de um Estado Democrático de Direi-to. Todavia a sujeição á lei é insuficiente para caracterizaro Estado de Direito maierialmente; há necessidade da exis-tência de determinadas outras características absolutamenteessenciais. tais sejam. a separação dos poderes para a exis-tência de 'freios e contrapesos ". do ':Juiznatural ". ou. emoutras palavras. de juiz não de exceção ou post facto. e.além disto certamente. de juiz imparcial. dotado de prerro-gativas para o exercício da magistratura independente. Semtais requisitosfimdamentais não estaremos emface de ES-TADO DE DIREITO. porém ainda estaremos. na verdade.em arremedo. em aparência de legalidade. Se não fora as-sim, quaisquer regimes de exceção, como, por exemplo, oregime nazista. estariam amplamente justificados.

Invoca a autora e também este modesto autor, a preciosa liçãode que ao Estado de DÍreito não é necessário, ou não lhe é essencial, aorganização democrática. Como salienta magistralmente o mestre JOSÉAFONSO DA SILVA, cuja lição a culta Magistrada recorda, "por outrolado, se se concebe o Direito apenas como um conjunto de normas esta-belecidas pelo Legislativo. o Estado de Direito passa a ser o Estado dalegalidade. ou Estado Legislativo. o que constitui uma redução. Se o prin-cípio da legalidade é um elemento importante do conceito de Estado deDireito, nele não se realiza completamente".

Despiciendo repetir que Estado Democrático de Direito é aque-le que possui, entre outros requisitos, a sua origem no poder emanado dopovo, enquanto Estado de Direito é aquele que contempla o respeito à leimas lhe falta a organização democrática. A partir deste ponto, que é parte

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de conceitos fundamentais c preliminares, é impreseindivcl que se enten-da que o devido processo legaL tal como concebido em diversos paises, eo Brasil nele se abeberou, é a regra (a meu ver também uma cláusulapétrea) definidora de situação de governantes c govemados, diante deoutra regra, assume feição muito mais elástica, ou seja, passa a significara igualdade na lei e não só perante a lei.

Sustentando seu ponto de vista, LUCIA VALLE FIGUEIRE-DO esclarece que o principio do due ofprocess law inserto na Constitui-ção Brasileira de 1988 é o mesmo constante na Lei Maior Americana,consagrando a igualdade material e fonnal. Este entendimento é analisa-do pelo já citado Professor Paulo Roberto Dantas de Souza Leão, preco-nizando que:

a cláusula due process of lmv não indica somente a tutelaprocessual. como parece. Ela tem um sentido genénco. ca-racterizado pelo trinômio vida. liberdade. propnedade. ouseja. por ela tem-se o direito de tutela daqueles bens da vida.em seu sentido mais amplo e genérico. Assim. tudo o quedisser respeito á tutela da vida. liberdade ou propriedadeestá sob a proteção da due process clause. Deste modo. háem uma caracterização bipartida. pois há o .<ub.<lanlivedueprocess e o procedural due processo paro indicar a incidên-cia do principio seu aspecto substancial. vale dizer. atuandono que respeita ao direito material e. de outro lado. a tuteladaqueles direitos por meio de processo administrativo.

No campo do direito administrativo, como diz o lúcido mestre,o principio da legalidade nada mais é do que a manifestação da cláusulasubstantive due processo identificado sob outra roupagem e com o rótulode garantia da legalidade e dos administrados.

LUCIA VALLE DE FIGUEIREDO, dissertando sobre o de-vido processo legal e a igualdade material, apóia-se na lição do semprelembrado SANTHIAGO DANTAS e para quem "a lei quando discrimi-na, não pode escolher aleatoriamente as situações, porque deve haverrazoabilidade nas classificações e inexistindo esta não se poderá dizer

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cumprido o due process of law, ocasionando, por via de conseqüência,um undue process of law, porque não houve o respeito aos principiosexplícitos e implícitos da Constituição.

ROGERIO LAURIA TUCCI, em seu judicioso parecer, pu-blicado na Revista dos Tribunais, tratando do devido processo legal comogarantia constitucional, trazendo lições de doutrinadores pátrios e estran-geiros, enfatiza a imperiosidade, num proclamado Estado de Direito, deobservância de exigências de ordem substancial e formaL cristalizadascm processo legislativo de elaboraçâo da lei previamente dcfinido e re-gular, contendo razoabilidade e senso de justiça em seus dispositivos,necessariamente enquadrados nas preceituações constitucionais; na apli-cação de normas juridicas, sejam do ius positum, sejam de qualquer for-ma de manifestação do direito, por meio hábil de sua interpretação e rea-lização, qual seja o processo judicial (judicial process) e, por força doart. 5°, inciso LV, da Constituição Federal, o procedimento, uma vez queo substantive due process of law reclama, para sua efetivação, um instru-mento hábil á determinação exegética das preceituações disciplinadorasdos relacionamentos jurídicos entre os membros da comunidade, a fimde que haja assecuração, no processo, ou procedimento, de paridade dearmas entre as partes que o integram como seus sujeitos parciais, ou inte-ressados, visando a determinação de igualdade substancial posto que estasomente será atingida quando, ao equilibrio de situações, preconizadaabstratamente pelo legislador, corresponder á realidade processual, ouprocedimental (In RT 745/95).

O adentramento ao tópico devido processo legal é fundamentalpara se aferir o comando constitucional, eis que dele emergem os neces-sários parâmetros e dispostos no universo do sistema positivo nacional.As leis que regem as atividades das instituições financeiras, com ele de-vem se conformar, ainda mais sabendo-se que algumas delas foram edi-tadas ao sabor de ambiente politico anterior. Aliás, ainda se faz necessá-rio perquirir se houve recepção pela atual Lei Fundamental Brasileira dasnormas ordinárias anteriores, assim como O exame da compatibilizaçãodas posteriores ao reordenamento constitucional ocorrido em 1998. Énecessário, portanto, sob todos os pontos de vista, a atenção redobradaem tomo da aplicação do princípio constitucional ora sob detalhada ex-

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planação doutrinária de juristas que engrandeeem as letras juridieas pá-trias, eonstituindo-se, por isso mesmo, um prius lógico.

A Lei 6.024/74Este diploma legal dispõe sobre a intervenção e a liquidação

extrajudicial de instituições financeiras e dá outras providêneias, preven-do em seu art. I° o regime de intervenção ou a liquidação. Um dos auto-res que se preocupou em analisá-Ia foi HAROLDO MALHEIROS DU-CLERC VERÇOSA em trabalho publicado sob o titulo RESPONSABI-LIDADE CIVIL ESPECIAL, publicado pela Editora Revista dos Tribu-nais, constituindo-se em um estudo de "de iure constituto" e de "Iegeferenda". Outros autores também dedicaram-se ao estudo da matéria,citados pelo referido mestre, ora tratando do fenômeno da intervenção eda liquidação extrajudicial, ora examinando aspectos específicos, con-forme notas de rodapé e bibliografia mencionada na referida obra.

Outra obra é de autoria de LUIZ TZIRULNIK, intitulada IN-TERVENÇÃO E LIQUIDAÇÃO EXTRAJUDICIAL DAS INSTITUI-ÇÕES FINANCEIRAS, também publicada pela Editora Revista dos Tri-bunais. Vários outros autores de conhecida nomeada tiveram a mesmapreocupação!

Em ambas, vamos encontrar análise do texto legal, valendo des-tacar, desde logo, que o primeiro autor reconhece, sob o ângulo do jureconstituto, a inexistêneia "de nexo lógico entre o fúndamento de respon-sabilidade objetiva vertente. baseada no risco profissional. e o sujeitopassivo dessa mesma responsabilidade, na Lei nO6.024/74, a quem nãorefere, em essência, o aludido risco" (pág. 45), e dejure constituendo fazproposição com o sentido de "manutenção e revisão da responsabilidadeobjetiva para o exercício da atividade financeira e de mercado de capi-tais" porque "torna-se imperioso o deslocamento da responsabilidadeobjetiva para a pessoa ou pessoas detentoras da qualidade de controla-dor da instituição financeira, a fim de aplicar-se aquela ao verdadeirotitular do risco profissional correspondente" (pág. 46).

Já se vê, desde logo, tratar-se de um diploma legal defeituoso e,talvez, seja mais um de autoria de quem não é versado em Direito, apesarde fruto de elaboração legislativa. Por muito que se queira invoear a teo-

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ria do risco criado ou do risco proveito, como alicerce de responsabilida-de objetiva, o sistema de responsabilização adotado, constante do textolegal, peca pela falta de sintonia com os princípios constitucionais dodevido processo legal, da ampla defesa e do contraditório. O que ali estáexpresso reproduz tão-somente falsas salvaguardas em prol do sistema fi-nanceiro nacional, que pode solidificar-se ou enfraquecer-se de acordo coma conjuntura econômica, gerada, muitas vezes, por diretrizes oriundas deplanos econômicos que a Pátria Brasileira enfrentou nos últimos anos.

Pode-se argumentar contra essa assertiva final de que a inter-venção e a responsabilização podem resultar de problemas financeirosderivados de má gestão, gestão temerária, ou outros motivos elencadosno referido diploma. Mas não se pode olvidar que o risco criado ou riscoproveito ensejam a averiguação da causa que leva à existência do motivodeterminador da atitude drástica e radical. Pois, para tanto, reza o art.2°, inciso I, verbi gratia, a adoção da medida intervencionista dar-se-áquando ocorre prejuízo decorrente de má administração. Aqui, por con-seguinte, o pressuposto má administração acarreta a tarefa de investigara atuação dos administradores. Dai, como num passe de mágica (onde semistura culpa, que é pressuposto de responsabilidade subjetiva, com aresponsabilidade objetiva) nasce o critério da responsabilização estam-pado no art. 39 até o ~único do art. 40, apesar da rotulagem que se dá ali- responsabi lidade solidária. É neste ponto que a lei em comento cometeum dos pecados porque não contempla tratamento homogêneo. Falar-seem má administração implica, irretorquivelmente, em apurar os atos pra-ticados ou omissões dos administradores!

Quando a lei se refere à má administração, remete conseqüen-temente ao exame dos atos e omissões, para que fique caracterizada aresponsabilidade. Ora, "decretada a intervenção, a liquidação extrajudi-cial ou a falência de instituição financeira, o Banco Central do Brasilprocederá a inquérito, afim de apurar as causas que levaram a socieda-de àquela situação e a responsabilidade de seus administradores e mem-bros do Conselho Fiscal" (art. 41).

Note-se, neste ponto, que é obrigação legal de proceder a in-quérito para que seja colimado o objetivo consagrado na norma. Quan-do a lei determina que seja feito inquérito, não afasta o princípio cons-

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titucional do due process of law. Quer se tome como processo ou pro-cedimento, o inquérito deve contemplar e, sobretudo, obedecer etapasou fases imprescindiveis á verificação da responsabilidade pessoal doadministrador da instituição financeira. Como asseverou ROGERIOLAURIA TUCCI "dúvida alguma resta quanto à inafastabilidade deverificação da responsabilidade pessoal de cada diretor de adminis-tração financeira em decorrência de prejuízo efetivamente, concreta-mente. a ela causado, mediante atuação ou omissão ilícita (cf art. 39),ou pelas obrigações assumidas pela sociedade durante a sua gestão,para com terceiro ou terceiros, e indevidamente (~f art. 40), com oqual deve ser conjugado, in cusu, o disposto no art. 15 do Decreto-lein. 2.321, de 1987" (op. cito pág. 94)

Como se desenvolverá o inquérito? À feição do inquérito poli-cial ou na sua forma administrativa? Falha, aqui, a lei, porque ela apenascircunscreve a obrigação de apurar causas I Mesmo que prescreva passosa 'serem seguidos (~ 3° do art. 41), estabelecendo o direito de acompanha-mento e produção de provas (~ 4°), assegure o direito ás alegações eexplicações no prazo exíguo de cinco (5) dias, ainda assim, não assegura,formal e materialmente, os momentos em que possam exercitar a garan-tia da ampla defesa e do contraditório, revelando-se uma peça essencial-mente inquisitória, desprovido de realidades procedimentais enumeradaspelo mestre TUCCI em seu parecer (pág. 96), atentatório aos ditames dosprincípios constitucionais e posterior a adoção da indisponibilidade pa-trimonial.

Observa-se no trabalho do excelente Mestre HAROLDO VER-ÇOSA, reportando-se ás referidas regras e sistema instituído nos arts. 39e 40, entendimento contrário, opondo-se á posição de TUCCI, que é amesma de BULHÕES PEDREIRA e ARNOLD WALD, os quais enten-dem (aliás, com muita razão e propriedade) existirem duas situações dis-tintas de responsabilização de administrador. Na primeira, caso do art.39, o administrador pode responder no caso de culpa provada e, no se-gundo caso - liquidação da empresa - trabalhar-se-ia com presunção re-lativa de culpa, afastando-se a responsabilidade caso o interessado pu-desse fazer prova de ausência do elemento subjetivo porque existe umacomplementação entre os arts. 39 e 40 (ob. cit. pág. 56).

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A teor das normas constantes dos arts. 39 c 40, situo-me noentendimento contrário ao do eminente HAROLDO VERÇOSA, postoque cle mesmo assevera que "a responsabilidade especial propriamentedita. fimdada no art. 40. somente surge quando da existência de prejuízona instituição. ou seja. caracterização de passivo a descoberto" (pág.57). Aqui reside, claramente, a falta de coerência da rcgra contida no art.40. Se o inquérito é instaurado para apurar causas, tal como disciplina otexto legal, não se pode pretender que não se apure conduta do adminis-trador para se determinar o caminho a seguir porquc, conforme ele mes-mo ensina, o art. 39 tem o mesmo sentido dos arts. 158 e 165 da Lei dasSociedades Anônimas, enquanto a hipótese do art. 40 enseja o reconheci-mento puro, mas simplório, da responsabilidade especial. Se há prejuizo,estampado no passivo a descoberto, decorre de algo e esse algo deve seresmiuçado no inquérito que é conseqüência da intervenção, liquidação,falência ou regime de administração especial temporária.

As hipóteses preconizadas nos arts. 39 e 40 e seu parágrafoúnico configuram, portanto, embaraços técnico-juridicos, ora dando aentender que os administradores estejam subjungidos às suas incidênciasse o prejuizo for constatado, como quer HAROLDO VERÇOSA (ob, cil.pág. 57), ora permitindo a interpretação de que constituem situações per-feitamente estanques, ora formatando exclusão de uma por outra. A pro-pósito, é o que dá a entender o disposto no parágrafo único do art. 40 -onde se atribui responsabilidade solidária circunscrita ao montantedos prejuízos causados - com o contido no capUl do referido dispositivo- responsabilidade solidária pelas obrigações assumidas pelas insti-tuições financeiras durante o período de gestão dos administradores.

Como se constata, a mens legis não está explicitada para que setome o elemento nuclear do texto normativo. É caracteristica de toda leia generalidade, a finalidade, a motivação, a clareza e a precisão. É o queestá ausente da Lei nO6.024/74.

Por outro lado, como é da Lei em comento, a indisponibilidadepatrimonial é concomitante à decretação da intervenção, liquidação ex-trajudicial ou falência, decorrendo do ato que adotar qualquer das figuras(art. 36 e seu ~ 1°). Aqui, há a colisão com O preceito constitucional por-que ainda não se apurou a causa ou as causas. Apenas o fato motivador

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preexistcl Ora, se não apurou, material e formalmente, a responsabilida-de dos administradores, é intuir que o alcance jurídico que se pretendedar à norma em exame vai de encontro ao principio da livre disponibili-dade dos bens, e se originou, concludentemente, de legislação excepcio-nal não recepcionada pelo atual estamento constitucional brasileiro. Ofato motivador, de qualquer das medidas preconizadas e adotadas peloBanco CentraL por si mesmo, é também uma fonte de incerteza e dúbiafinalidade, uma vez que pode esconder ajaule de service que por força daLei n.o 4.595 lhe estabelece competência fiscalizatória.

Se passivo a descoberto (que rigorosamente nasce após o ba-lanço geral) é a causa da intervenção, mais uma vez temos aqui, de modopreciso, o desrespeito à livre administração dos bens, uma vez que, a teorda Lei nO6.024 e DL nO2.321, os mesmos ficam indisponiveis logo quese efetive a medida. Se má administração, ocorre a necessidade de serinicialmente apurada a atuação dos administradores. Neste passo, a in-disponibilidade agride a garantia constitucionaL

Aliás, mesmo no regime da Constituição de 1967 com as alte-rações posteriores introduzidas pela Emenda Constitucional nO I, já seassegurava a qualquer cidadão o direito da livre disponibilidade de seusbens, afastando, assim, os efeitos da famigerada Comissão Geral de In-vestigação instituida por Ato Institueionall Ainda assim, havia, no regi-me de tal período da história brasileira, o respeito ao patrimônio I Pareceque a Lei nO6.024 é uma reprodução disfarçada das atribuições confiadasa esses espúrios colegiados.

Veja-se, por oportuno, o trato da Lei nO 6.024/74. Ela tratade intervenção e liquidação extrajudiciaL São institutos amplamentediferentes, tanto em sua conceituação jurídica quanto á sua finalida-de. Na primeira, simboliza e exterioriza ação de terceiro competenteque assume o papel daqueles que forem alcançados pela medida, vi-sando dar continuidade aos objetivos sociais da empresa, evítando,assim, a liquidação judicial ou a falência. Não tem figura similar noDireito Comercial ou Falimentar. No âmbito legal, a lei outorga aoBanco Central o direito de intervir nas instituições financeiras públi-cas não federais e privadas. Os efeitos decorrentes da adoção dessamedida estão ali previstos.

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A segunda figura é a liquidação que nada mais do que um pro-cedimento administrativo com vistas á adoção de providências de todaordem, enumeradas em lei, tendo em vista o estado dc quebra em que seencontra a entidade. LUIZ TZIRULNIK atesta que a intervenção visaafastar a liquidação extrajudicial (ob. cit. pág. 23).

O sistema de responsabilização adotado por essa famosa leiapresenta-se, ademais, não revestido da necessária sintonia com os obje-tivos pretendidos. Responsabilidade solidária, é certo, advém da defini-ção legal, reconhecendo um vínculo ou relação de causalidade, entre pes-soas, e cuja origem é o mesmo fato. Mas, dentro do conceito de responsa-bilidade solidária, na forma como està expressa no texto legal, perquire-se a extensão de seu alcance, posto poder existir situação concreta emque parte dos administradores não tenham sido responsabilizados, porfatos e valores, no inquérito realizado.

Ora, a relação ou vínculo de causalidade, delimitada legalmen-te no parágrafo único e condicionada em tempo determinado (art. 40,capuf), importa, por via de conseqüência, em caracterização forçada pos-to que o fato de alguém ter sido administrador da empresa intervinda nãorevela, necessária e absolutamente. possa ser tido como responsável porprejuízos causados em outras gestões. Assim fosse, chegar-se-ia ao pon-to de admitir-se que o risco proveito ou risco criado deriva da própriacondição esdrúxula e divorciada da sua base doutrinária e científica.

Somente é responsável quem, segundo a lei. deve efetivamenteresponder. Os efeitos legais, previstos em determinado dispositivo, nãopodem atingir, em nenhum momento, quem, por exemplo. não seja respon-sabilizado por passivo a descoberto - que é causa - não decorrente de suagestão, porque, a toda evidência, tal fato não foi causado por ele, levando-se em conta o que está disposto no próprio art. 40. Admitindo-se, paraargumentar e com interpretação puramente literal, os atingidos pela indis-ponibilidade patrimonial, conforme mensagem do art. 36, perdura até aliquidação final de suas responsabilidades. Ora, ao falar em responsabili-dade, o efeito da lei pode submeter alguém para responder por fato do qualnão tem nenhuma relação expressamente dito no inquérito realizado?

A resposta deverá ser, e é, negativa. A simples condição deadministrador não pode, repita-se, servir de base para prover medida cons-

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tritiva. A perdurar entendimento contrário, eomo se constata, esposadopor alguns juristas de escoL é sacramentar, ad perpetua memoria, umaflagrante violência contra a cidadania. Convém rememorar que a épocada monarquia absoluta já se extinguiu há muito tempo, para alegria demuitos e tristeza de alguns poucos, graças ao estabelecimento de regrasque definem e protegem o modo de ser nacional e a conduta universal degovemantcs e govemados.

É constrangedora a constatação da flagrante oposição da Leiem comento com a Constituição Federal, posto haver em seu bojo condi-ções inadmitidas frente ao devido processo legal, a igualdade na lei eperante a lei. O consagrado publicista JOSÉ AFONSO SILVA enunciacom clareza e propriedade a posição da lei frente a Constituição Federalque consagra o Estado Democrático de Direito, assim escrevendo:

o princípio da legalidade é também um princípio basilardo Estado Democrático de Direito. É da essência do seuconceito subordinar-se à Constituição efundar-se na lega-lidade democrática. Sujeita-se. como todo Estado de Direi-to. ao império da lei. mas da lei que realize o princípio daigualdade e dajustiça não pela generalidade. mas pela bus-ca da igualização das condições dos socialmente desiguais.Deve-se. pois. ser destacada a relevância da lei no J<.stadoDemocrático de Direito. não apenas quanto ao seu concei-toformal de ato jurldico abstrato. geral. obrigatório e mo-dificativo da ordem jurídica existente. mas também à suafunção de regulamentação fundamental. produzida segun-do um procedimento constitucional qualificado. A lei é efe-tivamente o ato oficial de maior realce na vida política. Atode decisão política por excelência. épor meio dela. enquantoemanada da atuação da vontade popular. que o poder esta-tal propicia ao viver social modos predeterminados de con-duta. de maneira que os membros da sociedade saibam. deantemão. como guiar-se na realização de seus interesses.É precisamente no Estado Democrático de Direito que seressalta a relevância da lei, pois ele não podeficar limila-

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do a um conceito de lei. como o que imperou no Estado deDireito clássico. Pois ele tem que estar em condições derealizar. mediante lei. intervenções que impliquem direta-mente uma alteração na situação da comunidade. Significadizer: a lei não deve ficar numa esfera puramente normati-va. não pode ser apenas lei de arbitragem. pois precisa in-fluir na realidade social. E se a Constituição se abre paraas transformações politicas, econ6micas e sociais que asociedade brasileira requer. a lei se elevará de importân-cia. na medida em que. sendo fimdamental expressão dodireito positivo, caracteriza-se como desdobramento neces-sário do conteúdo da Constituição e aí exerce função trans-formadora da sociedade, impondo mudanças sociais demo-cráticas, ainda que possa continuar a desempenhar umafimção conservadora, garantindo a sobrevivência de valo-res socialmente aceitos (In Curso de Direito ConstitucionalPositivo, pág. 107).

o papel da lei, e esta se formatada segundo a Constituição, éde disciplinar as relações sociais, o que vale dizer, justa e igual. E,assim, não sendo, mostra-se desarrazoada e portanto intrinsecamenteinjusta, porque não se coaduna com a face substancial do devido pro-cesso legal. E a supra dita lei em comento, tal assim se apresenta por-que, além de não demonstrar o requisito da legitimidade materiaL in-duz ao desrespeito ao principio do due process of law. O mesmo JOSÉAFONSO DA SILVA adverte que este principio, ao lado do direito deacesso à Justiça, contraditório e ampla defesa, compõe as garantias pro-cessuais. A Constituição, relembra o renomado autor e apoiando-se emFrederico Marques, garante o processo e "quando se fala em 'processo'e não simples procedimento, alude-se, sem dúvida, a formas instrumen-tais adequadas, a fim de que a prestação jurisdicional, quando entreguepelo Estado, dê a cada um o que é seu, segundo os imperativos da or-dem pública. E isso envolve a garantia do contraditório, a plenitude dodireito de defesa, a isonomia processual e a bilateralidade dos atos pro-cedimentais" (op. cit. págs. 178/179).

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Observa-se claramente a total discrepância entre a lei cm co-mento com a proteção contida no preceito constitucional. Ao definir quea indisponiblidade é concomitante com a intervenção, lança dcsde logo,sem que a causa esteja apurada, a privação de um dos meios de exercerplenamente a propriedade patrimonial. Ora, mesmo que advinda de co-mando legal, é princípio assente de que este deve estar adequado á ordemjurídica, mesmo que tal comando possa ter sido estabelecido cm nome dointeresse público, o que mesmo assim significa trazer ao mundo, em nomedeste pressuposto, medida coercitiva írrita ao estamento constitucional.

A indisponibilidade é medida administrativa que se convolamaliciosamente em disfarçado arresto ou seqüestro, perdurando até queas obrigações se cumpram. Se não for comprovada a má gestão? Se nãofor comprovado prejuízo nos últimos doze meses? Se o resultado do in-quérito é parcialmente positivo ou parcialmente desonerador de respon-sabilidade? Até que se cumpram todas as obrigações até final decisãojudicial em processo e em procedimento em que não figuram no pólopassivo, é certo ou errado? Mesmo que a lei tenha de ser um produto finale bem acabado, para servir á finalidade e atender á generalidade, nãopode conter omissões ou estabelecer vínculos obrigacionais cntre pesso-as a quem se imputam responsabilidade com aquelas a quem não se atri-bui o dever de responder!

Permito-me trazer, a colação ao presente trabalho, a magistrallição de CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO expendida emrazões de mandado de segurança, enfocando, com propriedade e brilho, oentendimento faccioso que se pretende dar ao sistema de responsabiliza-ção adotado na lei em comento. Ao se referir a cerca da indisponibilida-de patrimonial, enfatiza que a partir da Constituição de 1988 tornou-seinaplicável sem as cautelas prévias estabelecidas no ar!. 5°, LIVe LV

Assim, para o citado mestre, a responsabilização objetiva éfalsamente compreendida; é inaceitável diante dos princípios que in-formam a existência de um Estado civilizado incorporador dos valoresmínimos que constituem o "substrato jurídico" das Constituições mo-dernas. Adianta-se o preclaro jurista em tomo da responsabilidade obje-tiva posto ser esta sempre imputável ao autor do ato danoso ou a depen-dente seu; é dizer, pressupõe inexoravelmente, a efetiva, real, vinculação

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do agente ao resultado lesivo, isto é, comportamento seu, ou então, suaindireta participação nele, por estar em causa conduta de um seu depen-dente (responsabilidade do preponente pelo preposto). É dele a preciosae lapidar sentença a seguir transcrita:

Deveras, se a responsabilização objetiva prescindisse deuma relação causal, ainda que indireta, entre o comporta-mento de um dado sujeito e o evento danoso, seria, eviden-temente, algo teratológico e iníquo; logo, intolerável emface dos princípios gerais de direito, os quais, - ressalte-se- compõem implicitamente o ordenamento de quaisquerpaíses civilizados.

o culto Procurador da República, ODIM B. FERREIRA, anali-sando a matéria exposta no mandado de segurança impetrado por BAN-DEIRA DE MELLO (e do qual extraimos seguras orientações), ponderaque "á lei ordinária é reservado certo espaço de liberdade para plasmaros direitos fundamentais, desde que não os prive dos seus caracteresbásicos. "

O sistema de responsabilização trazido ao mundo juridico pelaLei n.o 6.024/74 é pois um emaranhado de normas confusamente dispos-tas e não recepcionado pela Constituição em vigor, trazendo, alhures,disposições não conformadas com as garantias constitucionais e, sobre-tudo, tenta perifericamente subjungir atos e fatos ainda não averiguados.

Como será verificado mais adiante, a ela se agregam outrosdiplomas legais que, ora são aplicados por complementação, ora sãoaplicados com supedâneo nela. Aí vai mais longe a discrepância, por-que procuram compatibilizar objetivos sem nexo e sem lógica, uma vezque a finalidade, entre alguns diplomas legais, apresentam-se comple-tamente díspares.

o Decreto Lei nO2.321/87Subsiste no ordenamento jurídico brasileiro o referido diploma

legal que instituiu, para defesa das finanças públicas, regime de adminis-tração especial temporária nas instituições financeiras privadas e públi-

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cas não federais e dando outras providências. O seu artigo 10 faculta aoBanco Central do Brasil a adoção deste regime quando se verificar ashipóteses descritas nas suas alíneas. Verifica-se não haver solução decontínuidade nas atividades da empresa submetida a tal regime, a não sera perda da administração em tàvor do Banco Central do Brasil, porqueextingue os mandatos dos administradores e membros do Conselho Fis-cal, dirigida por um Conselho Diretor com plenos poderes de gestão ecujo periodo pode ser prorrogado por igual tempo mas não superior aoprimeiro fixado no ato que admitiu o regime. Note-se, com todas as le-tras, que o ínterventor passa a administrar patrimônio alheio, público ouprivado!

Aqui, cabe desde logo, uma observação. A dicção legal conduzà compreensão de que a duração do regime de admínistração especialtemporária é determínado pelo periodo fixado no respectivo ato e prorro-gável por outro não superior ao primeiro. Embora tenhamos aqui a hipó-tese de não distinção do que a lei não distíngue, constata-se que a menslegis do disposto no parágrafo único do art. I° não pennite sucessivasprorrogações, se atentarmos para os objetivos adotados pela prescriçãolegal, ut alíneas do art. 1° combínadas com os arts. 5°, "c", e 9°, queimpõem o controle dos atos praticados e o saneamento econômico e fi-nanceiro da empresa.

Para conhecimento da situação em que se encontra a empresasubmetida a tal regime, deve o Conselho Diretor, que é nomeado e em-possado pelo Banco Central do Brasil, proceder às providências estatu-ídas nos arts. 90 a Ii da Lei nO6.024/74 e, por conseguínte, produzirrelatório ou proposta a fim de que se decida por uma das figuras previs-tas no art. lI.

Caracteriza-se o regime de administração especial temporária,por pressuposto, revelando ínteresse da União Federa! porque, a teor do ~I° do art. 14, representada está em todos os atos pelo Banco Central do.Brasil. Daí, a partir deste ponto, os atos praticados pelo Conselho Diretorestão submetidos à jurisdição federal e todas as ações deverão ser proces-sadas, assim, na Justiça Federal. Ora, com tal direcionamento, constata-se,sem sombra de dúvida, que, nos casos de liquidação extrajudicial, judicialou ordinária e falência, com base na supra citada Lei nO6.024/74, a compe-

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tência é da Justiça Estadual, em face do expressivo comando nitidamentemanifestado na lei. A liquidação extrajudicial decretada, prévia ou posteri-ormente, sob o pálio do regime instituido pelo Decreto - Lei nO2.321/87,fica portanto submetida á jurisdição e competência da Justiça Federal.

Aliás, não só a liquidação extrajudicial mas todos os atos prati-cados com respaldo no Decreto-lei nO 2.321/87 compõem o acervo deprocessos e procedimentos a serem analisados no âmbito da Justiça Fe-deral, a teor do disposto na Constituição Federal em seu art. 109, i, emque apenas estão ressalvadas as causas de falência e por extensão juris-prudencial as de insolvência. O interesse legítimo é o que determina odireito de ação e subordina pessoas fisicas ou jurídicas á relação juridicaprocessual que se origina da aplicação do mencionado diploma legal.

Existe, assim, no confronto entre os dois comandos normati-vos, uma evidente diferença de tratamento, de modo a tornar bastanteclara a atuação e as providências adotadas por aqueles que passem a gerira empresa intervinda, porque não há dúvida alguma de que o regime ins-tituido por esse decreto-lei é uma das formas de intervenção da Uniãonas empresas autorizadas a funcionar nos termos da Lei nO4.595/64, con-figurado e formatado pelo nomem Juris ali constante.

Mas, cumpre analisar-se a extensão do sistema de responsabili-zação previsto no mencionado diploma, a fim de que possamos ter a fei-ção constitucional das medidas assecuratórias preconizadas no art. i9 e adefinição estampada no art. 15 e seus parágrafos.

Com base no prefalado art. 19, temos a extensão dispositiva daLei nO6.024/74 no que couber e, em especial, as medidas acautelatórias epromotoras da responsabilidade dos ex-administradores. Mas, as pessoasnaturais ou jurídicas que mantenham vinculo de controle estão, segundoa definição do art. 15, solidariamente responsáveis com os ex-adminis-tradores, pelas obrigações assumidas pela instituição, independentemen-te da apuração de dolo ou culpa. Aqui, está irretorquivel a responsabili-dade objetiva dos controladores da instituição com os ex-administrado-res. Aqui, portanto, a primeira revelação do sistema estampado na lei.

Para os ex-administradores, revela a lei a responsabilidade sub-jetiva porque esta deve ser apurada, tendo como base a data de declara-ção do regime. Evidentemente, não há que se falar em responsabilidade

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solidária dos ex-administradores entre si, uma vez que a lei manda reali-zar a apuração dos fatos para definir a imputação de responder pelas obri-gações assumidas. Coneluida a apuração, definida ficará a situação jurí-dica de todos quantos administraram ou controlaram a instituição inter-vinda. A possivel existência de passivo a descoberto, figura expressa-mente contida na alínea "b" do art. 10, será causa de medidas acautelató-rias e asseguradoras da responsabilidade após a devida apuração.

Mesmo que esta lei remeta a outra, conforme art. 19, as dispo-sições da lei remetida devem se conformar com o substantive due pro-cess e ao due process of law insculpido na lei remetente. Aqui, a menslegis é de dar ordens aqueles que aplicarem a lei, afirmando elaramenteque as regras da Lei na 6.024, na parte processual ou procedimental, de-vem ser seguidas tomando como alicerce as regras de direito materialconsubstanciadas no Decreto-Iei na 2.321/87.

Isto porque, segundo CARLOS MAXIMILIANO, "deve o di-reito ser interpretado inteligentemente, não de modo a que a ordem legalenvolva um absurdo prescreva inconveniências, vá ter a conclusões in-consistentes ou impossíveis" (apud Bandeira de Mello no mandado desegurança na 95.7362-5).

Não há dúvida alguma que a intenção do Decreto-Iei na 2.321/87 foi a mesma da Lei na 6.024/74, com a diferença basilar de manter empleno funcionamento a instituição, podendo chegar a liquidação extraju-dicial após o relatório do Conselho Diretor. Mas, deve ser registrado, orelatório ou proposta do Conselho Diretor pode não imputar nenhumaresponsabilidade ou pode não revelar nenhum dos motivos que determi-naram a intervenção sob a modalidade prevista no referido texto legal.

É preciso laborar-se com muito cuidado e precisão, a fim deque não possa originar obrigações á entidade interveniente e á própriaUnião Federal, posto que esta se representa pelo Banco Central. Em facedesta nuance jurídica é que não se pode dizer, com exatidão, tenha a leiora em comento estabelecido a responsabilidade solidária, ou responsa-bilidade civil agravada, dos ex-administradores entre si. A redação doart. 15 é nebulosa a ponto de misturar ou tentar meselar conceitos antagô-nicos, ao mesmo tempo em que incide no mesmo erro da Lei na 6.024/74no que respeita ao due process of law.

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°mestre CARLOS MAXIMILIANO, ao comentar sobre leisde ordem pública, assevera que "toda disposição, ainda que ampare umdireito individuo/' atende também, embora indiretamente, ao interessepúblico: hoje até se entende que se protege aquele por amor a este.' porexemplo. há convemência nacional em ser a propriedade garantida emtoda a sua plenitude" (In Hermenêutica e aplicação do Direito, pág. 216,verbete 251).

É ainda do saudoso mestre, tratando do direito excepcional, apreciosa orientação no que diz respeito á propriedade, esclarecendo quesofrem exegese estrita as disposições que impõem limites ao exercícionormal do direito sobre as coisas. quanto ao uso. como relativamente àalienação. Incluem-se, portanto, no preceito acima, as normas que auto-rizam a desapropriar bens por necessidade ou utilidade pública. As dú-vidas resolvem-se com fazer prevalecer, quanto possível, a plenitude dodomínio (págs. 231232). Referindo-se ás leis excepcionais, admite o mes-tre que elas possam trazer disposições que contrariem a regra geral (págs.229/230), mas diante da hegemonia das leis e da supremacia "as leisfimdamentais devem ser mais rigorosamente obrigatórias do que as or-dinárias. visto pertencerem, em geral, à classe das imperativas e deordem pública: ao passo que as comerciais e as civis se alinham, emregra. entre as permissivas e de ordem privada; aquela circunstânciaobriga o hermeneuta a precauções especiais e à observância de reservapeculiares à espécie jurídica ... "(pág. 305).

Em 14 de março de 1997 veio ao mundo a Lei nO9.447, oriundada Medida Provisória nO1.470 - 16, de 1997, sancionada pelo Presidentedo Congresso Nacional, ampliou o alcance do art. 15 do Decreto-lei nO2.321, mandando aplicar a responsabilidade solidária dos controladoresde instituição financeira aos regimes de intervenção e liquidação extraju-dicial de que trata a Lei nO6.024/74, assim como estendeu a indisponibi-lidade dos bens ás pessoas naturais e jurídicas que detenham o controle,direto ou indireto, das instituições financeiras submetidas aos regimes deintervenção, liquidação extrajudicial ou administração especial temporá-ria (arts. 1° e 2°). Mas é no ~ I ° do art. lOque a precitada lei liberalizapermitindo ao Banco Central do Brasil, por decisão de sua diretoría, ex-cluir da indisponibilidade os bens das pessoas jurídicas controladoras das

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instituições financeiras submetidas aos regimes especiais, preconizandoa seguir, em seu ~ 2", a não sujeição dos bens considerados impenhorá-veis e inalienáveis. Em parte, tais normais repetem o que está expressoem outros diplomas I

Mas é exatamente na permissão prevista no ~ 1° do art. 2° oponto mais interessante. Ora, ao permitir a revogação da indisponibilida-de - que é derivado de preceito de lei - por ato administrativo, reconheceo Poder Público, aqui, agora e para sempre, a ausência da relação estabe-lecida no art. 15 do Decreto-lei nO2.321/87, excluindo os bens das pesso-as juridicas controladoras da sociedade. Dai, neste particular, reconhe-cer-se o acerto da posição daqueles que defendem não serem iguais osdiretores de empresas públicas não federais com os diretores das empre-sas privadas. Se assim não fora, a presença de alguém na diretoria de umaempresa pública não federal, decorrente da vontade do acionista majori-tário, significa, sempre, a possivel mudança do quadro dirigente assimque este a desejar. Já não ocorre com as empresas privadas, pois alguémtoma-se administrador por deliberação de seus acionistas que são proprie-tários do acervo acionário. A exclusão da indisponibilidade patrimonialdos controladores, conforme estabelece aquela regra legal, fere de modoo princípio da igualdade na lei e perante a lei, pois os diretores de insti-tuição financeira pública, seja federal ou estadual, são funcionários doAcionista majoritário.

Estas digressões, aparentemente fora do tema, são lançadas parao efeito de se vislumbrar as diversas facetas que devem ser prequestiona-das e analisadas, diante da magnitude e da complexidade do tema, uma vezque no campo da responsabilidade civil, apesar do esforço de seus estudio-sos, ainda preexistem posições que defendem a teoria subjetivista, outrosque se aferram á doutrina da responsabilidade objetiva e outros que enten-dem a possivel coexistência de ambas, agrupada ou separadamente. Vale apena recordar aqui as excelentes obras neste campo de AGUIAR DIAS,CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA e tantos outros, eujas posições se-rão objeto de considerações em outra parte deste trabalho.

Ora, a responsabilidade civil agravada, como a denomina HA-ROLDO VERÇOSA, que, como ele, outros autores, entendem que alegislação brasileira adotou integralmente no particular campo do tema,

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é multifária diantc dc situaçõcs concretas rcvcladas após a conclusão doinquérito. Dctcn11lna a Lei na 6.024. em scu art. 36. ~ la. a indisponibili-dadc dos quc tenham estado no exerCÍcio das funções nos 12 (doze) me-ses anteriores ao ato que decrcta a mcdida. Ora. não basta ter sido admi-nistrador. eis que na própria lei está definida a responsabilidade solidáriapor obrigações assumidas pcla instituição financeira e circunscrita ao pre-juizo causado (art. 40 c scu parágrafo único).

Ncm sempre a lei atende a todas as situações, mormente quan-do. dcfcituosamentc elaborada. tcndc a estar em desconformidade com arealidade fatuaL cvidenciando. e até reclamando, possivel correção derumos. O direito material reclama. por sua vez, uma generalidade objeti-va. porque scm ela desaparece a própria finalidade que é de disciplinar asituação concreta e comandar ex vis iuris o ato e o fato.

EDWARD CAMPBELL BLACK, citado por BANDEIRA DEMELLO (ob. cit.). enunciou a seguinte orientação:

Uma lei dcve ser interpretada em consonância com seu es-pirito e razão: as Cortes têm poder para declarar que umcaso conformado à letra da lei não é por ela alcançado quan-do não esteja conformado ao espírito e à razão da Lei c daplena intenção legislativa.

A tentativa brasileira de regular a atividade das instituições fi-nanceiras privadas e não federais, especialmente e também a atuação deseus administradores, não encontra o devido balizamento que implique,em consonância com as regras do ordenamento jurídico vigente, tranqüilaaceitação diante da Constituição de 1998, em face dos princípios ali estatu-ídos. Por isto mesmo, à superficie, entender-se terem sido recepcionadas asdiversas normas que regulam a matéria, ainda assim, ao fulgor dessa apa-rente conformidade, não se pode aquilatar, com razoável e liberal senso nainterpretação, tenham elas se coadunado com a Lei Fundamental.

Isto porque, tanto no Decreto-Iei na 2321/87 quanto nas de-mais citadas, adota-se como elemento primordial para aferição da condu-ta que origina a intervenção, a liquidação extrajudicial, a falência e aadministração especial temporária, o inquérito. Ora, ao falar em inquéri-

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to - tomando-se aqui como processo e procedimento - caminha-sc, con-clusivamente, para a sua finalidade que não é outra senão aquela qucserve de base para adoção dc medida excepcional, apurando a responsa-bilidade dos administradores. A evidência desta conduta proccssual eproccdimental não se afasta da realidade juridica pretendida nos refcri-dos regramentos legais.

Nada mitiga a realização devida e adequada do inquérito. As-sim como a lei impõe a adoção da medida excepcional, não ficam os seusaplicadores imunes aos preceitos constitucionais, fazcndo--o de maneiraque estes permaneçam incólumes, garantindo, assim, a plena eficiência ea reclamada eficácia, porque está em jogo pessoas e passados, dignidadee honra, livre disposição patrimonial, cidadania e conceitos.

Ainda de BLACK, conformc BANDEIRA DE MELLO, aufe-re-se uma preciosa lição:

É uma regra eediça a de que algo pode estar conforme a letrade uma lei e, entretanto, não com a própria lei, porque nãoestá conforme ao seu espirito nem com O de seus fàutores.Isto tem sido freqüentemente afirmado e os repositórios es-tão repletos de casos ilustrativos de sua aplicação. Isto não éa substituição da intenção do juiz pela do legislador, pois,freqüentemente palavras de sentido geral são usadas em umalei, palavras amplas o bastante para abarcar o ato em ques-tão, e, todavia, a consideração da legislação em sua totalida-de, ou das circunstâncias que envolvem sua produção ou dosresultados absurdos que promanariam de se atribuir tal senti-do amplo ás palavras, fazem com que seja descabido adnútirque o legislador pretendeu nelas abranger o caso especifico.

Em clara, lúcida e brilhante afirmação HEL Y LOPES MEIRE-LLES nos ensina:

PROCESSO ADMINISTRATIVOA Administração Pública, para registro de seus atos, con-trole da conduta de seus agentes e solução de controvérsias

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dos administrados, utiliza-se de diversificados procedimen-tos, que recebam a denominação de processo administrati-vo. Impõe-se. por isso, distinguir e esclarecer, inicialmen-te, esses dois conceitos para, após, apreciarmos o processoadministrativo, suas espécies, seus princípios, suas fases emodalidades, com especial destaque para o processo disci-plinar e o processo tributário e fiscal.

Processo e procedimento - Processo é O conjunto de atoscoordenados para a obtenção de decisão sobre controvérsiano ãmbito judicial ou administrativo; procedimento é omodo de realização do processo, ou seja, o rito processual.O processo, portanto, pode realizar-se por diferentes proce-dimentos, consoante a natureza da questão a decidir e osobjetivos da decisão. Observamos, ainda, que não há pro-cesso sem procedimento, mas há procedimentos adminis-trativos que não constituem processo, como, por exemplo,os de licitações e concursos. O que caracteriza o processo éo ordenamento dos atos para a solução de um procedimen-to: o que tipifica o procedimento de um processo é o modoespecifico do ordenamento desses atos (In Direito Admi-nistrativo Brasileiro, IS" ed., Págs. 5S4 e seguintes).

Discorrendo sobre o tema o preclaro mestre afiança que o pro-cesso administrativo, consoante suas peculiaridades e conseqüências, sub-divide-se em processo de expediente, processo de outorga, processo decontrole e processo punitivo.

Lastreado em seu vasto conhecimento, o processo de controle é

"processo administrativo em que a Administração realizaverificações e declara situação, direito ou conduta do admi-nistrado ou de servidor, com caráter vinculante para as par-tes. Tais processos, normalmente; têm rito próprio e, quan-do neles se deparam irregularidades puníveis, exigem opor-tunidade de defesa do interessado, antes de seu encerramen-

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to, sob pena de invalidade do resultado da apuração. O pro-cesso de controle - também chamado de determinação oude declaração - não se confunde com o processo punitivo,porque, enquanto neste se apura a falta e se aplica a penali-dade cabivel, naquele apenas se verifica a situação ou a con-duta do agente e se proclama o resultado para efeitos futu-ros. São exemplos de processos administrativos de controleos de prestação de contas perante órgãos públicos, os deverificação de atividades sujeitas à fiscalização, o de lan-çamento tributário e o de consulta fiscal.

Nesses processos, a decisão final é vinculante para a Admi-nistração e para o interessado, embora nem sempre seja auto-executável, pois dependerá da instauração de outro proces-so administrativo, de caráter punitivo ou disciplinar, ou,mesmo, de ação civil ou criminal, ou, ainda, do pronuncia-mento executório de outro poder, como no caso do julga-mento de contas pelo Legislativo, após a manifestação pré-via do Tribunal de Contas competente, no respectivo pro-cesso administrativo de controle"

Sabendo-se que as instituições financeiras são controladas peloBanco Central do Brasil que monitora sistematicamente, até mesmo dia-riamente, todos os atos que envolvam a aplicação das normas previstasna Lei nO4.595/64, é de presumir que, complementando O controle comperiódicas fiscalizações técnicas e documentais, tenha conbecimento davida dessas mesmas entidades. Assim, em que pese o comando legal es-tabelecido nas diversas normas, com especificidade para aquelas que con-sagram regimes interventivos, com, ou sem, adoção de medidas radicais(liquidação extrajudicial ou falência), terá sempre de se conduzir de modoa garantir a eficácia dos princípios e garantias postas ao serviço de todospela Constituição Federal.

Em tudo até agora visto, não se pode, portanto, olvidar a vonta-de legislativa. Adotou-se a teoria do risco proveito, instituindo, em con-seqüência, a responsabilidade solidária; igualmente foi adotada a teoria

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da culpa. Procurou-se contemporizar as duas tendências após a realiza-ção do competente inquérito para apuração das causas que determinarama intervenção na entidade. Este é o sentido que todas as leis, objeto deexame no presente trabalho, encerram, sob pena de serem tidas comoinócuas.

Aliás, apesar da regra legal de colocar previamente em dispo-nibilidade os bens dos ex-administradores logo que a intervenção é de-cretada, é forçoso reconhecer que é imposição legal inválida porque ain-da não há preliminarmente processo ou procedimento regularmente de-senvolvido. Por isto, as criticas em tomo desses instrumentos colocadosa serviço da Administração Pública.

Assim, quando a lei fula em prejuízos causados, preconizando arealização de inquérito, estabelecendo que a responsabilidade se circuns-creve ao periodo de gestão, subjungindo os ex-administradores ás obriga-ções assumidas pela entidade, em tudo quer se referir a uma relação ouvinculo de causalidade, unindo administradores ao fato comum constatadoou separando-os se verificar a inocorrência de fato gerador da responsabi-lidade, adotando, inclusive, sistema misto de definição de responsabilida-de, ela vislumbra, querendo, expressamente, a apuração dos motivos deter-rninadores da medida interventiva para, daí, sob o pálio da concreçào (queé exigência para que a norma legal seja posta concretamente), estabelecer,naturalmente, a formulação concreta do seu objetivo.

No sentir pessoal deste autor, a responsabilidade solidária, talcomo preconizada na legislação nacional, além de mal formulada, pade-ce, igualmente, da incoerência e da inconsistência, ensejando, a par deoutros, conflito com o próprio objetivo pretendido pela mens legis. Comoconseqüência, está em testilha com a Constituição Federa! no que tangeao respeito ás garantias e princípios.

Responsabilidade CivilEste último passo do presente trabalho tem como escopo mos-

trar a posição doutrinária em tomo da matéria e, também, sob a égide dajurisprudência, marcar os devidos contornos, tendo sempre presente oconteúdo normativo das leis que regem as atividades das instituições fi-nancerras.

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o estudo da responsabilidade civil tem exigido um esforço enor-me de juristas e tribunais, porque é um dos mais problemáticos do pontode vista juridico. Muitos autores, entre eles o formidável JOSSERAND,afiançam que o tema é a grande vedete do direito civiL Por sua vez, MA-RIA HELENA DINIZ, CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, AGUIARDIAS, cntre tantos outros, estribados nas lições de juristas e decisões deoutros paises, mostram, à saciedade, ser a responsabilidade civil um temaque está intimamente ligado a todos os ramos do direito, em face dasimplicações juridicas decorrentes das relações oriundas das atividadesque causem preJuizo.

Obviamente, na consideração do que seja responsabilidade ci-vil, quer aquela regulada pelo Código Civil, quer aquela preconizada emleis especiais, não se pode esquecer, em momento algum e a bem daverdade, a necessidade de salientar que nem sempre pode-se imputar umaobrigação de reparar quando, quer no campo subjetivo, quer no objetivo,não se mostrar convincentemente demonstrada a necessária relação decausa e efeito, conforme assevera RODIERE, lembrado por CAIO MA-RIO DA SILVA PEREIRA (ob. cit. pág. 287).

Evidentemente, essa relação é conseqüência natural de qual-quer fato e como tal o Direito não a despreza, porque, assim ocorrendoperderia a peculiaridade de ciência normatizadora da relação humana emsociedade. Todos são unânimes em considerar que na relação de causali-dade sobrevem, imperiosamente, um vinculo entre o fato e o ato, a fim deque haja, sem dúvida alguma, um fator de responsabilização.

Analisando a matéria, CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRAformula a base do que se entende por relação de causalidade, salientandoque não se deve levar ao extremo de considerar que todo dano é indeni-zável pelo fato de alguém desenvolver uma atividade, porque, segundoele, deve existir um pressuposto lógico entre o dano e a atividade criadapelo agente a fim de que a obrigação de indenizar seja decorrência natu-ral (pág. 289). A despeito dessa posição doutrinária do eminente autor, éimprescindivel cogitar-se, de alguma forma, da figura concreta que o casose nutre, sob pena de passarmos a ter como fundamento uma perniciosageneralização. Ora, como ele preleciona, na responsabilidade objetivanão se cogita do bom ou mau comportamento do agente, porque nela se

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evidencia ofato do agente. causador do prejuízo (ob. cit. pág. 286), masdeve haver umfàtor, que é a reíação decausalidade (que ele define comosegundo e substancial requisito) e que leva á reparação se o dano foicausado pela atividade do agente porque, neste particular, não haveráapreciação da culpa.

Ainda assim, valendo-se da preciosa lição de VENIAMIM, ci-tada por CAIO MÁRIO. convém recordar que na doutrina objetiva não secogita da contraveniência a uma norma preestabelecida, porém analisa-se a atividade do agente, indagando se o fato foi causado em razão dela,para se concluir que o risco oriundo dessa atividade é o suficiente para seestabelecer o dever de reparar o prejuizo. Para o mesmo autor, a culpanão se concebe fora da pessoa do autor porque "vai de encontro aos da-dos da vida econômica. que impõe fUndar este domínio da responsabili-dade civil sobre a idéia do risco. mas ela é também moral. Presumir umindivíduo em culpa e condená-lo por este fUndamento sem lhe permitirprova contrária é impedir todo exame de consciência (págs. 286/287).

Entretanto, aceitar a responsabilidade civil objetiva levando emconta a atividade do agente e vincular esta ao dano, não é suficiente obastante para dar-lhe a característica pretendida, até porque o dano podeadvir de alguma causa excludente que venha prejudicar o exercício nor-mal da atividade desenvolvida pelo agente. Há, assim, premente necessi-dade de se ter um outro requisito que possa aferir se a atividade foi exer-cida com desvios. A explosão de uma usina nuclear por fato de terceiroou uma corrida desenfreada aos bancos em busca de recursos deposita-dos por clientes de uma instituição financeira (tal como ocorreu no ad-vento do Plano Real que determinou, entre outras coisas, o sentimentoconsumista da população), são exemplos marcantes de que nem sempre odano decorre da atividade em si mesma!

Se tomarmos a concepção adotada pela Lei nO6.024 e outrosestatutos subseqüentes, dispondo que existe responsabilidade solidáriaquando há prejuizo causado, não se pode fugir á realidade lógica. Porprejuiw causado, que é o dano verificado, argüido e reclamado, tem-secomo certo aquilo que foi constatado, examinado e pesquisado, conside-rando-se igualmente que ele decorreu não só da condição de administra-dor ou do exercício da atividade, exigindo, por sua vez, um fator que una

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tais condições ou requisitos a conduta. Não é voltar a teoria subjetivistamas de procurar, acertadamente, estabelecer relação onde caiba o exameda conduta. uma vez que, a teor dos arts. 39 e 40, estão disciplinadosprocedimentos diversos um do outro.

A responsabilidade civil agravada, conforme o art. 40, induz,desde logo, a um tratamento exacerbado e de questionável juridicidade,por se constituir, com a evidência da preposição que encerra, em subme-ter direitos patrimoniais a uma indisponibilidade, antes da instauração dorespectivo inquérito. Ora, em sendo assim, com a adoção das cautelasestatuidas na Lei nO6.024, antes e concomitante a instauração do regimede administração especial por exemplo, a constrição, prevista no art. 36,"que decorre do ato que decretar a medida" (~ IOdo art. 36), somentevigora até liquidação e apuração final de suas responsabilidades (art. 36)daqueles que atingidos pelo resultado denunciado no inquérito.

Com o inquérito, atendidas as cautelas necessárias com vistas aampla defesa e contraditório, pressupostos e requisitos do devido proces-so legal, devem cessar a indisponibilidade administrativamente decreta-da em relação áqueles que, no referido procedimento, não tiveram argüi-da e imputada nenhuma responsabilidade por fato ou ato. A solidarieda-de, tal como prevista na referida lei, não alcança os administradores emtal situação e condição. Aliás, referenda essa posição o próprio art. 40 aoestabelecer vinculo com as obrigações assumidas por administradoresem suas respectivas gestões.

A literatura juridica evidencia a moderna tendência da doutri-na em acatar a responsabilidade objetiva, que, no dizer de Rui Stocco,encontra maior supedâneo na teoria do risco (In Responsabilidade Civile sua Interpretação Jurisprudencial, Ed. Revista dos Tribunais, 36 edi-ção, pág. 65, verbete 12.02). A análise dos fundamentos das posiçõesdoutrinárias, a favor ou contra a responsabilidade subjetiva, desta-cando-se no primeiro caso os Irmãos Mazeaud, e daqueles que enten-dem a convivência de ambas (posição em que este modesto autor secoloca), nos leva a necessidade de considerar que a responsabilidade,como fato jurídico, além de ser dificil, pode trazer ambigüidades emrazão da pobreza do vocábulo, como anota Paul Duez citado por Stoc-co (op. cit. pág. 49).

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Ao mesmo tempo, como salientado por HAURIOU, há umacapacidade de se obrigar e de ser responsável, como existe uma capaci-dade de adquirir e que reside na personalidade jurídica que é o centro detodas as capacidades (in Stocco, op.cit. pág. 50). No dizer de Stocco,"responsável, responsabilidade, assim, como, enfim todos os vocábuloscognatos, exprimem idéia de equivalência de contraprestação, de corres-pondência" (op. cito pág. 50). Ora, como assinalam SILVIO RODRI-GUES, SERPA LOPES, DE PAGE, GIORGIO GIORGI, AGUIARDIAS, CAIO MARIO e muitos outros, O elemento lógico da responsa-bilidade civil é a obrigação de reparar o dano. No sentir deste autor, aidéia de reparação de dano, tanto no campo da responsabilidade subje-tiva quanto na objetiva (e nesta com as variações doutrinárias como é ocaso da teoria do risco), somente pode envolver o agente que, não dan-do resposta satisfatória de seus atos, toma-se obrigado, ou aqueles, comoacontece na conceituação da teoria do risco, por ter exercido uma ativi-dade, deva arcar com as conseqüências do fato danoso tornando-se obri-gado, desde que exista uma relação entre o exercicio de sua atividadecom O dano apontado.

Do contrário, seria o estabelecimento de uma relação causalradical e drástica, a ponto de colocar em esquecimento a própria idéia dejustiça. Ora, se a doutrina enfatiza que não há responsabilidade sem pre-juízo, não se pode aceitar a regra da solidariedade no campo da responsa-bilidade objetiva quando não se verifica lançado e apontado prejuízo, econseqüentemente dano, por algném. CRETELLA JUNIOR, citado porSTOCCO (in op. citopág. 53) preleciona que "em nenhum caso a respon-sabilidade civil das pessoas jzsicas ou jurldicas pode prescindir do even-to danoso".

STOCCO, referindo-se à responsabilidade objetiva, apontandoJOSSERAND como O experto da teoria do risco e anotando que AGUI-AR DIAS eleva G. MARTON à condição de expoente da doutrina objeti-va em nosso direito, sintetiza que a doutrina objetiva estriba-se na equa-ção binária cujos pólos são o dano e autoria do evento danoso (pág. 66).A base está assentada, portanto, no reconhecimento de tais pressupostos.

Assim, a idéia de responsabilidade solidária, estampada na re-gra exposta no art. 40 da Lei nO6.024/74, não alcança ex-administradores

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a quem não se aponta a autoria do evento danoso, mormente quando ex-pressamente declarados no inquérito promovido na empresa intervinda,mesmo que tenham exercido cargos de direção nos últimos doze mesesanteriores à data da efetivação da medida intervencionista.

ConclusãoA análise da matéria pode parecer prolixa ou repetitiva (o que

se deve muito ao estilo do autor). Entretanto, ao lançar as idéias a respei-to do tema, quero enfrentar a critica, participar do debate e esperar que,de alguma forma, possa contribuir, e trazer ao mundo juridico, uma leijusta, habilmente elaborada e perfeitamente aplicáveL Não podemos es-quecer que o interesse público não pode ser invocado para patrocinarinjusto tratamento, uma vez que as garantias constitucionais não são va-sos de flores que servem apenas para adornar ambientes.

A proteção do interesse individual é um ponto a ser salientado afim de que não tenhamos, hodiemamente, normas que promanem do Rei(o Estado Legislativo) em detrimento do cidadão e em prejuízo da cida-dania. Há que se fortalecer, sob todos os pontos de vista, o particular e ocoletivo, de maneira equilibrada, colocando, com método e lógica, a pre-tensão que faz nascer o interesse público.

Em qualquer lugar e tempo, é sempre possivel que o Estadotenha de intervir para proteger o bem comum. Mas é imperioso que oEstado, em respeito à comunidade política e juridicamente organizada,ao dispor de instrumento para concretização de medidas radicais, nãovenha, de forma arbitrária, renegar amparo ãs garantias constitucionais.O instrumento legal que habilite a intervenção deve conter e ser contido,para que todos, governantes e governados, exercitem direitos e deveres.O equilíbrio que se reclama é a necessária medida de mensuração jurídi-ca de elementos que traduzam a justiça do tratamento legal e a certeza deque o cidadão não corre risco algum, o que não atualmente acontece comas leis que regem a atividade das instituições financeiras.

Consoante o teor puro das normas que tais leis possuem, nãodevemos esquecer, em nenhum instante, a figura do homem, individual-mente considerado. Cogitar por cogitar, em nome do avanço cultural etecnológico, a adoção de um regra que esqueça a análise da conduta, é

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impor uma fórmula esquecendo a raiz da formação do Estado. Há que seter, por evidente apego, a lembrança das contribuições do passado e dopresente, em que a aferição da culpa se apresenta incontrastávc! por maisque a atividade desenvolvida pelo homem, por si ou por escolha, deva sertratada objetivamente.

Por demais velozes que sejam as mudanças no viver da comu-nidade, situações concretas sempre existirão. Daí porque, valendo-me dapreciosa lembrança de CAIO MÁRIO, a responsabilidade subjetiva sub-sistirá ao lado da objetiva, se não olvidarmos que os fatos são produtohumano!

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