escola secundária de d. duarte - right

Upload: nissan-portugal

Post on 14-Apr-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/30/2019 Escola Secundria de D. Duarte - Right

    1/8

    1

    Texto e ilustraes de Rita Joana da Cruz Roque

    Escola Secundria de D. Duarte

    Agrupamento de Escolas Coimbra Oeste

    Professora responsvel: Maria Jos Damas Pires

  • 7/30/2019 Escola Secundria de D. Duarte - Right

    2/8

    2

    I

    Era um daqueles dias abafados e

    entediantes na oficina; o sol batia forte nas

    correias e nos parafusos deixados ao acaso no

    cho; elas respondiam num brilho reluzente e

    metlico que cortava a vista e feria os olhos.

    Acocorado e de mangas arregaadas at acima

    dos cotovelos, Wilbur apertava com toda a sua

    fora uma roda com uma chave inglesa, gasta e velha, est a precisar da reforma, est a

    precisar da reforma, murmurava entre dentes quando a porca se escapava da boca do

    utenslio.

    De repente, como que interrompendo o silncio e a paz da diviso, uns ps

    ligeiros entraram no armazm e comearam a pontapear inconscientemente todas as

    peas metlicas que se atravessavam no caminho.

    - J no devias ter chegado?Wilbur nem precisou de confirmar a identidade do

    seu visitante; avaliava agora se a roda estava bem presa ao resto do veculo, tentandorod-la em sentido de a desapertar.

    - Desculpa Wil, estava s a

    - Outra vez? Wilbur ergueu-se e fitou o irmo mais novo, benevolente,

    enquanto passava o brao pela testa suada e negra de leo. Ao menos acabaste?

    Ergueu a bicicleta, deixando a roda traseira que estivera a consertar desapoiada no ar e,

    com a mo esquerda, f-la girar testando a segurana das junes.

    - Acabei respondeu entusiasticamente o irmo, pegando nas peas que

    encontrava no cho e arrumando-as nas caixas respetivas. Nunca foste muito de

    arrumaes, pois no?

    - Mas sempre fui de fazer o trabalhoOrville baixou a cabea, envergonhado.

    Wilbur arrependeu-se imediatamente da frieza das suas palavras e tentou retomar o tom

    amigvel.Ento, Ville, ao menos valeu a pena?

    - Ento no valeu? Os olhos de Orville quase saltavam da rbita s de se

    lembrarem da histria que acabara de ler. Ele um gnio, um gnio, digo-te. Meu

    deus, parece que fui eu mesmo que passeei cinco semanas num balo de hidrognio.

  • 7/30/2019 Escola Secundria de D. Duarte - Right

    3/8

    3

    - Pois, tambm a mim Ville, passa-me aquela correia, ali.

    Orville torceu ligeiramente o nariz quando fitou a correia imunda de leo

    encostada ao canto e, ao olhar para as suas mos ainda limpas, pegou na cinta de metal

    atravs de um pano e passou-a ao irmo. Logo depois retomou o seu discurso inspirado

    pela leitura:

    - Oh, Wil, nem imagino o que ser a conquista dos cus. J viste o que voar

    por entre as nuvens, mesmo lado a lado com os pssaros? Ver as casas, os rios, os mares

    por cima? Que viso! e atirou-se para um sof roto, extasiado e embriagado com a

    ideia de voar.

    - Ento, Ville, se queres voar, trabalha. Junta dinheiro e compra um balo de ar

    quente s para ti, prontodespachou Wilbur.

    Orville soltou um som desinteressado que

    surpreendeu o irmo:

    - Juro que no te percebo, Ville. Vens aqui

    todo entusiasmado com a ideia de voar e depois isto.

    Ento rapaz?

    - Sim, claro que estou entusiasmado, no o nego. Mas a ideia de um balo de

    ar quente to antiga, to primitiva. J ouviste falar da febre inventiva da Europa?

    - Acho que li qualquer coisa sobre isso h pouco tempo, no jornal. Uma corrida

    valente a ver quem inventa primeiro um veculo mais pesado que o ar que voe e que

    possa ser controladoWilbur serviu duas canecas com cerveja e passou uma a Orville,

    que logo deu uma golada.

    - Exato. J viste? S nos falta conquistar o ar; o mar e a terra j foram domados

    pelo Homem. Carros, jangadas, navios, comboios, bicicletas Tudo isso serviu para

    alargar o horizonte e fazer a terra mais pequena; podemos chegar a qualquer parte do

    mundo em metade do tempo que levvamos a p, ou at menos do que isso. Olha a

    caravela, por exemplo, permitiu-nos descobrir este continente perdido no meio do

    oceano e vir morar para aqui. Apresentou-nos o tabaco, o acar, coisas de que nunca

    tnhamos ouvido falar! E todos os dias vm navios carregados de Inglaterra, Frana e

    Alemanha com mercadorias, livros, notcias de toda a parte!Wilbur ouvia atentamente

    as palavras do irmo, sem se manifestar, no porque no partilhasse o seu entusiasmo

    quanto engenharia e fsica dos veculos, mas porque a sua personalidade era um pouco

    mais contida e fechada. E o carro, Ville, o carro! Bem sei que nos tira negcio, mastens que ficar maravilhado com aquelas engrenagens complexas que trabalham

  • 7/30/2019 Escola Secundria de D. Duarte - Right

    4/8

    4

    maravilhosamente e transportam quem quer que seja, comodamente e em terra firme.

    Mas no ar no h firmeza num impulso, Orville projetou-se para a bicicleta que

    Wilbur tinha acabado de arranjar e comeou a pedalar com toda a energia. Saiu da

    oficina e comeou a andar em crculos junto entrada para que o irmo o seguisse com

    o olhar e o ouvissej viste o que comear a transportar coisas pelo ar? No ar no h

    estradas, nem obstculos; s azul, s liberdade! Confiante da sua astcia, Orville

    largou as mos do guiador e afastou-as, mantendo-as paralelas ao cho como se voasse

    rasante ao solo. E fechando os olhos, inspirando profundamente o ar puro, deixou-se

    levar pela iluso de que estava a voar, que via casas, pontes e pessoas tal qual

    miniaturas de brincar, que voava junto aos pssaros e que sentia o sol to quente

    distncia de um palmo dos seus dedos.

    Wilbur fazia exatamente o mesmo

    exerccio com a mente; levado pelo

    entusiasmo do irmo, via-se tambm a respirar

    o ar dos deuses e dos heris; a elevar-se muito

    acima da terra, muito acima da montanha mais

    alta do planeta.

    - Ento, vejo que j est pronta, Mr. Wright uma voz familiar interrompeu a

    linha de pensamentos de Wilbur e, embaraado chamou o irmo:

    - Ville, desce da. Chegou o Senhor Black. Orville, ao ouvir o irmo, fez uma

    curva apertada e, a toda a velocidade, dirigiu-se aos dois homens que falavam.

    - Est em perfeitas condiesafirmou Orville, exibindo a bicicleta.

    - Bem vejo disse o risonho e bochechudo homem, sacando da carteira e

    retirando uma nota de cinco dlares.Quanto lhe devo?

    - Nada, Mr. Black.Wilbur abanou freneticamente a mo, recusando os dlares.

    Pelo equipamento do outro dia.

    - Pois qu? Ento o Senhor faz-me o favor de me tirar l de casa uma mala velha

    de ferramentas que nunca utilizo, conserta-me a bicicleta, faz-me a gentileza de a testar

    e no quer paga pelo servio?Resoluta, a simptica personagem espetou-lhe a nota no

    bolso da camisa E ainda por cima tenho o conhecimento de que o negcio est mau

    para os vossos lados no senhor, fique com o dinheiro e guarde-o bem.

    - No sei o que dizer, Mr. Black

    - Pois ento no diga nada, que poupa o flego, e que falta que ele fazdisse,acendendo um cigarro.Bem, ficava mais um pouco, mas tenho assuntos a tratar. Fica

  • 7/30/2019 Escola Secundria de D. Duarte - Right

    5/8

    5

    para outro dia, est bem, Wrights? Desculpou-se, montando a bicicleta. Wilbur,

    Orville, boa tarde.

    Levantou levemente a cartola quando pronunciou os nomes dos irmos e logo de

    seguida abalou, ligeiro, na sua bicicleta. Tinha a bainha da casaca a desfraldar ao vento,

    tanto por causa da velocidade que ganhara, como da gentil brisa que lhes arreganhava

    carinhosamente as faces.

    - Bela personagem, no verdade?Comentou Orville.

    Wilbur assentiu silenciosamente, olhando Mr. Black a afastar-se, imaginando

    que a sua bicicleta, algures, levantava voo e que o bom filantropo lhe acenava l de

    cima, enquanto saltava de nuvem em nuvem.

    ***

    Orville estava envolvido num novo livro, sentado na sua poltrona, enquanto

    Wilbur, sem nada que fazer, rabiscava desinteressadamente, num canto do jornal, linhas

    sem sentido; entretinha-se em acariciar a folha com o bico do lpis quase desafiado.

    No conseguia deixar de pensar nas palavras que Orville tinha pronunciado naquela

    tarde; voar, voar, VOAR, era um desejo despontado e que tinha tanta fora que no se

    descolava da sua mente. Separou uma folha do jornal e dobrou-a como um dia vira um

    cigano fazer; uma aba de cada lado e bem vincada, mais uma dobra e lanou a

    construo no ar e ela planou por uns momentos, caindo depois do outro lado da mesa

    de jantar. Levantou-se silenciosamente para a apanhar e retirou um bloco de papel da

    estante; comeou a desenhar fielmente o formato da construo a carvo. Afastou-se um

    pouco da folhatanto quanto a cadeira lhe permitiae comeou a analisar a sua forma,

    a sua aerodinmica. Aps alguns momentos debruou-se sobre o desenho e fez duas

    salincias nos cantos das asas. Depois dobrou o boneco de papel, tal como na figura.

    Voltou a lanar o brinquedo e, desta vez ele percorreu toda a sala. Wilbur seguiu-o

    maravilhado com os olhos, enquanto se refastelava na cadeira em esprito inventivo. A

    dobragem foi aterrar no meio do livro de Orville.

  • 7/30/2019 Escola Secundria de D. Duarte - Right

    6/8

    6

    O irmo olhou o estranho objeto de papel. Fechou o livro e atravessou a sala,

    indo ao encontro de Wilbur.

    - Ento, Wil, que fazes? Indagou, olhando os desenhos e apontamentos do

    irmo. O seu sorriso anunciava-se cada vez mais nos lbios e logo puxou uma cadeira

    para se sentar ao lado dele.Posso?

    - Ele h de ter duas asas, no verdade?

    -Right.

    II

    - Ento, este que o famoso pssaro? No sabia que se tinham ficado pelo

    esqueletosorria Mr. Black por detrs de um cachimbo fumegante, que lhe acinzentava

    as lentes das lunetas.Flyer 1, no verdade?

    - Exato, Mr. Blackassentiu Wilbur, rolando freneticamente as mos uma na

    outra, numa corrida cclica e nervosa.

    - Pois que faa aqui jus ao nome com que o batizaram. Boa sorte, Wrights o

    simptico homem afagou orgulhosamente os ombros dos dois irmos e afastou-se emdireo multido que se reunira para assistir ao evento do sculo, ou apenas para dar

    conta de mais uma tentativa falhada de descobrir a pepita de ouro da engenharia do

    sculo XX.

    Eram vrios os curiosos que se tinham reunido na praia de Kitty Hawk,

    corajosos, desafiando o vento e o frio de dezembro. Embrulhavam-se nos cachecis e

    nos grossos sobretudos que estalavam nas pernas com os empurres do vento. Todos

    tinham os olhos postos na estranha estrutura assente firmemente no cho; cerravam-se

    olhos e inclinavam-se cabeas, tentando levantar o objeto do solo apenas com o poder

    da imaginao. Aps longos clculos de cabea, onde se entrava com o peso

    aproximado da mquina e com a velocidade adivinhada a que o vento soprava, faziam-

    se juzos e apostas, Cinco em que no levanta uma unha, e logo um mais entusiasta e

    sonhador espetava o brao e o mao de notas resoluto e confiante de um futuro lucro.

    Wilbur mantinha-se junto da mquina, revendo e conferindo a posio de cada

    tomo que dela fazia parte. Carinhosamente retirava, gro a gro, a areia que,

    transportada pelo vento, se tinha colocado nas asas do engenho. Enquanto isto,

  • 7/30/2019 Escola Secundria de D. Duarte - Right

    7/8

    7

    lembrava-se das centenas de desenhos e das respetivas construes antecedentes;

    prottipos que falharam, mas no falhados, ideias que no deram frutos mas que se

    revelaram no totalmente infrutferas. Cada maquinaria que se recusava a levantar era

    s mais outra oportunidade para aprimorar o que j estava feito; uma espcie de seleo

    natural que esperava que algum dia resultasse em algo vivel e que sobrevivesse,

    fazendo exatamente aquilo para que fora concebido pela frtil imaginao. E se no

    voar hoje? Se no voar hoje, voar amanh, se no voar hoje outra noite em branco a

    analisar detalhadamente o que falhou, mais uma semana a modificar o desenho e

    mais um ms a construir outro; s mais uma vida para fazer isto voar. Sempre que

    pensava na mquina, o corao quase que lhe saltava do peito, querendo voar por ele

    mesmo, Este o transporte do futuro, o ar a nova estrada dos homens. Um dia,

    iremos para a Europa num destes um dia, a viagem ao mundo em 80 dias ser

    reescrita pulverizada! Voar ser mais rpido, mais eficaz que qualquer outro

    transporte; trar notcias de Inglaterra com menos de uma semana de diferena; levar

    acar e cacau sem que os ratos do poro estraguem metade da encomenda. Diabos me

    levem se os imigrantes, quando entrarem na Amrica, no passaro a ver a Grande

    Liberdade de cima! J os vejo, j vejo famlias inteiras a viajarem nesta grande

    maquineta, em busca de uma nova vida, de uma nova oportunidade. Vamos encolher o

    mundo, vamos diminuir a distncia entre os continentes; vamos diminuir a distncia

    entre os povos!

    De repente, uma rajada de vento levantou-

    se, afirmando-se ainda mais, Deus no quer que o

    homem voe, pensa que o desafiamos com uma nova

    torre de Babel, murmorou um padre que por ali

    estava; achava-se l apenas com uma curiosidade

    humana regada com um ceticismo prprio da sua

    vocao.

    - Ville, Ville, - Wilbur aproximou-se do irmo, que se preparava para o voo

    no achas que o devamos virar? Est contra o vento.

    Orville olhou para o cu, erguendo a cara de modo a sentir o vento nas

    bochechas:

    - No! Deixa-o estar assim; se h Adamastor, maior o feito depois, virou-se

    para a multido. Meus senhores, e de l de cima que verei quem tem os chapusrotos!

  • 7/30/2019 Escola Secundria de D. Duarte - Right

    8/8

    8

    O vento logo cortou os risos abafados que saram da multido e Orville, subiu

    para o seu lugar. Respirou fundo e fez sinal ao irmo.

    A mquina comeou a percorrer o trilho preso ao cho, Wilbur corria ao lado

    dela, acompanhando-a com o corao em polvorosa. Orville deixou de se sentir

    apoiado, Wilbur notou uma diferena entre a altura dos seus ps e as rodas; a multido

    ainda acompanhava com os olhos o pssaro humanizado que tentava chegar aos cus.

    Wilbur cessou de correr e deixou que o avio, com as rodas a um brao do cho, o

    ultrapassassem elegantemente.

    A multido tentava igualar o barulho das hlices com uma salva de palmas

    dedicada aos inventores. Os poucos jornalistas que tinham aparecido, lutavam por

    conseguir a melhor fotografia do momento, o apostador ctico dava, de bom humor,

    cinco notas ao afortunado sonhador; o padre j no lhe chamava babel, mas sim Santo

    Graal encontrado e o presidente do banco da cidade enrolava o bigode, calculando

    lucros.

    Trinta metros feitos, e o pssaro poisou no cho. Orville saiu l de dentro,

    eufrico, e correu a abraar o irmo que tinha lgrimas nos olhos. Numa frao de

    segundo, sentiram-se rodeados de gente e os parabns saiam de todas as bocas que os

    rodeavam com admirao.

    Mr. Black furou a multido, entusiasmado, e deu orgulhosas palmadas nas costas

    dos dois jovens, com os olhos brilhantes e um sorriso reluzente:

    - Uma dzia de segundos muito bem aproveitada, no verdade?

    FIM