escola secundária de d. duarte - right
TRANSCRIPT
-
7/30/2019 Escola Secundria de D. Duarte - Right
1/8
1
Texto e ilustraes de Rita Joana da Cruz Roque
Escola Secundria de D. Duarte
Agrupamento de Escolas Coimbra Oeste
Professora responsvel: Maria Jos Damas Pires
-
7/30/2019 Escola Secundria de D. Duarte - Right
2/8
2
I
Era um daqueles dias abafados e
entediantes na oficina; o sol batia forte nas
correias e nos parafusos deixados ao acaso no
cho; elas respondiam num brilho reluzente e
metlico que cortava a vista e feria os olhos.
Acocorado e de mangas arregaadas at acima
dos cotovelos, Wilbur apertava com toda a sua
fora uma roda com uma chave inglesa, gasta e velha, est a precisar da reforma, est a
precisar da reforma, murmurava entre dentes quando a porca se escapava da boca do
utenslio.
De repente, como que interrompendo o silncio e a paz da diviso, uns ps
ligeiros entraram no armazm e comearam a pontapear inconscientemente todas as
peas metlicas que se atravessavam no caminho.
- J no devias ter chegado?Wilbur nem precisou de confirmar a identidade do
seu visitante; avaliava agora se a roda estava bem presa ao resto do veculo, tentandorod-la em sentido de a desapertar.
- Desculpa Wil, estava s a
- Outra vez? Wilbur ergueu-se e fitou o irmo mais novo, benevolente,
enquanto passava o brao pela testa suada e negra de leo. Ao menos acabaste?
Ergueu a bicicleta, deixando a roda traseira que estivera a consertar desapoiada no ar e,
com a mo esquerda, f-la girar testando a segurana das junes.
- Acabei respondeu entusiasticamente o irmo, pegando nas peas que
encontrava no cho e arrumando-as nas caixas respetivas. Nunca foste muito de
arrumaes, pois no?
- Mas sempre fui de fazer o trabalhoOrville baixou a cabea, envergonhado.
Wilbur arrependeu-se imediatamente da frieza das suas palavras e tentou retomar o tom
amigvel.Ento, Ville, ao menos valeu a pena?
- Ento no valeu? Os olhos de Orville quase saltavam da rbita s de se
lembrarem da histria que acabara de ler. Ele um gnio, um gnio, digo-te. Meu
deus, parece que fui eu mesmo que passeei cinco semanas num balo de hidrognio.
-
7/30/2019 Escola Secundria de D. Duarte - Right
3/8
3
- Pois, tambm a mim Ville, passa-me aquela correia, ali.
Orville torceu ligeiramente o nariz quando fitou a correia imunda de leo
encostada ao canto e, ao olhar para as suas mos ainda limpas, pegou na cinta de metal
atravs de um pano e passou-a ao irmo. Logo depois retomou o seu discurso inspirado
pela leitura:
- Oh, Wil, nem imagino o que ser a conquista dos cus. J viste o que voar
por entre as nuvens, mesmo lado a lado com os pssaros? Ver as casas, os rios, os mares
por cima? Que viso! e atirou-se para um sof roto, extasiado e embriagado com a
ideia de voar.
- Ento, Ville, se queres voar, trabalha. Junta dinheiro e compra um balo de ar
quente s para ti, prontodespachou Wilbur.
Orville soltou um som desinteressado que
surpreendeu o irmo:
- Juro que no te percebo, Ville. Vens aqui
todo entusiasmado com a ideia de voar e depois isto.
Ento rapaz?
- Sim, claro que estou entusiasmado, no o nego. Mas a ideia de um balo de
ar quente to antiga, to primitiva. J ouviste falar da febre inventiva da Europa?
- Acho que li qualquer coisa sobre isso h pouco tempo, no jornal. Uma corrida
valente a ver quem inventa primeiro um veculo mais pesado que o ar que voe e que
possa ser controladoWilbur serviu duas canecas com cerveja e passou uma a Orville,
que logo deu uma golada.
- Exato. J viste? S nos falta conquistar o ar; o mar e a terra j foram domados
pelo Homem. Carros, jangadas, navios, comboios, bicicletas Tudo isso serviu para
alargar o horizonte e fazer a terra mais pequena; podemos chegar a qualquer parte do
mundo em metade do tempo que levvamos a p, ou at menos do que isso. Olha a
caravela, por exemplo, permitiu-nos descobrir este continente perdido no meio do
oceano e vir morar para aqui. Apresentou-nos o tabaco, o acar, coisas de que nunca
tnhamos ouvido falar! E todos os dias vm navios carregados de Inglaterra, Frana e
Alemanha com mercadorias, livros, notcias de toda a parte!Wilbur ouvia atentamente
as palavras do irmo, sem se manifestar, no porque no partilhasse o seu entusiasmo
quanto engenharia e fsica dos veculos, mas porque a sua personalidade era um pouco
mais contida e fechada. E o carro, Ville, o carro! Bem sei que nos tira negcio, mastens que ficar maravilhado com aquelas engrenagens complexas que trabalham
-
7/30/2019 Escola Secundria de D. Duarte - Right
4/8
4
maravilhosamente e transportam quem quer que seja, comodamente e em terra firme.
Mas no ar no h firmeza num impulso, Orville projetou-se para a bicicleta que
Wilbur tinha acabado de arranjar e comeou a pedalar com toda a energia. Saiu da
oficina e comeou a andar em crculos junto entrada para que o irmo o seguisse com
o olhar e o ouvissej viste o que comear a transportar coisas pelo ar? No ar no h
estradas, nem obstculos; s azul, s liberdade! Confiante da sua astcia, Orville
largou as mos do guiador e afastou-as, mantendo-as paralelas ao cho como se voasse
rasante ao solo. E fechando os olhos, inspirando profundamente o ar puro, deixou-se
levar pela iluso de que estava a voar, que via casas, pontes e pessoas tal qual
miniaturas de brincar, que voava junto aos pssaros e que sentia o sol to quente
distncia de um palmo dos seus dedos.
Wilbur fazia exatamente o mesmo
exerccio com a mente; levado pelo
entusiasmo do irmo, via-se tambm a respirar
o ar dos deuses e dos heris; a elevar-se muito
acima da terra, muito acima da montanha mais
alta do planeta.
- Ento, vejo que j est pronta, Mr. Wright uma voz familiar interrompeu a
linha de pensamentos de Wilbur e, embaraado chamou o irmo:
- Ville, desce da. Chegou o Senhor Black. Orville, ao ouvir o irmo, fez uma
curva apertada e, a toda a velocidade, dirigiu-se aos dois homens que falavam.
- Est em perfeitas condiesafirmou Orville, exibindo a bicicleta.
- Bem vejo disse o risonho e bochechudo homem, sacando da carteira e
retirando uma nota de cinco dlares.Quanto lhe devo?
- Nada, Mr. Black.Wilbur abanou freneticamente a mo, recusando os dlares.
Pelo equipamento do outro dia.
- Pois qu? Ento o Senhor faz-me o favor de me tirar l de casa uma mala velha
de ferramentas que nunca utilizo, conserta-me a bicicleta, faz-me a gentileza de a testar
e no quer paga pelo servio?Resoluta, a simptica personagem espetou-lhe a nota no
bolso da camisa E ainda por cima tenho o conhecimento de que o negcio est mau
para os vossos lados no senhor, fique com o dinheiro e guarde-o bem.
- No sei o que dizer, Mr. Black
- Pois ento no diga nada, que poupa o flego, e que falta que ele fazdisse,acendendo um cigarro.Bem, ficava mais um pouco, mas tenho assuntos a tratar. Fica
-
7/30/2019 Escola Secundria de D. Duarte - Right
5/8
5
para outro dia, est bem, Wrights? Desculpou-se, montando a bicicleta. Wilbur,
Orville, boa tarde.
Levantou levemente a cartola quando pronunciou os nomes dos irmos e logo de
seguida abalou, ligeiro, na sua bicicleta. Tinha a bainha da casaca a desfraldar ao vento,
tanto por causa da velocidade que ganhara, como da gentil brisa que lhes arreganhava
carinhosamente as faces.
- Bela personagem, no verdade?Comentou Orville.
Wilbur assentiu silenciosamente, olhando Mr. Black a afastar-se, imaginando
que a sua bicicleta, algures, levantava voo e que o bom filantropo lhe acenava l de
cima, enquanto saltava de nuvem em nuvem.
***
Orville estava envolvido num novo livro, sentado na sua poltrona, enquanto
Wilbur, sem nada que fazer, rabiscava desinteressadamente, num canto do jornal, linhas
sem sentido; entretinha-se em acariciar a folha com o bico do lpis quase desafiado.
No conseguia deixar de pensar nas palavras que Orville tinha pronunciado naquela
tarde; voar, voar, VOAR, era um desejo despontado e que tinha tanta fora que no se
descolava da sua mente. Separou uma folha do jornal e dobrou-a como um dia vira um
cigano fazer; uma aba de cada lado e bem vincada, mais uma dobra e lanou a
construo no ar e ela planou por uns momentos, caindo depois do outro lado da mesa
de jantar. Levantou-se silenciosamente para a apanhar e retirou um bloco de papel da
estante; comeou a desenhar fielmente o formato da construo a carvo. Afastou-se um
pouco da folhatanto quanto a cadeira lhe permitiae comeou a analisar a sua forma,
a sua aerodinmica. Aps alguns momentos debruou-se sobre o desenho e fez duas
salincias nos cantos das asas. Depois dobrou o boneco de papel, tal como na figura.
Voltou a lanar o brinquedo e, desta vez ele percorreu toda a sala. Wilbur seguiu-o
maravilhado com os olhos, enquanto se refastelava na cadeira em esprito inventivo. A
dobragem foi aterrar no meio do livro de Orville.
-
7/30/2019 Escola Secundria de D. Duarte - Right
6/8
6
O irmo olhou o estranho objeto de papel. Fechou o livro e atravessou a sala,
indo ao encontro de Wilbur.
- Ento, Wil, que fazes? Indagou, olhando os desenhos e apontamentos do
irmo. O seu sorriso anunciava-se cada vez mais nos lbios e logo puxou uma cadeira
para se sentar ao lado dele.Posso?
- Ele h de ter duas asas, no verdade?
-Right.
II
- Ento, este que o famoso pssaro? No sabia que se tinham ficado pelo
esqueletosorria Mr. Black por detrs de um cachimbo fumegante, que lhe acinzentava
as lentes das lunetas.Flyer 1, no verdade?
- Exato, Mr. Blackassentiu Wilbur, rolando freneticamente as mos uma na
outra, numa corrida cclica e nervosa.
- Pois que faa aqui jus ao nome com que o batizaram. Boa sorte, Wrights o
simptico homem afagou orgulhosamente os ombros dos dois irmos e afastou-se emdireo multido que se reunira para assistir ao evento do sculo, ou apenas para dar
conta de mais uma tentativa falhada de descobrir a pepita de ouro da engenharia do
sculo XX.
Eram vrios os curiosos que se tinham reunido na praia de Kitty Hawk,
corajosos, desafiando o vento e o frio de dezembro. Embrulhavam-se nos cachecis e
nos grossos sobretudos que estalavam nas pernas com os empurres do vento. Todos
tinham os olhos postos na estranha estrutura assente firmemente no cho; cerravam-se
olhos e inclinavam-se cabeas, tentando levantar o objeto do solo apenas com o poder
da imaginao. Aps longos clculos de cabea, onde se entrava com o peso
aproximado da mquina e com a velocidade adivinhada a que o vento soprava, faziam-
se juzos e apostas, Cinco em que no levanta uma unha, e logo um mais entusiasta e
sonhador espetava o brao e o mao de notas resoluto e confiante de um futuro lucro.
Wilbur mantinha-se junto da mquina, revendo e conferindo a posio de cada
tomo que dela fazia parte. Carinhosamente retirava, gro a gro, a areia que,
transportada pelo vento, se tinha colocado nas asas do engenho. Enquanto isto,
-
7/30/2019 Escola Secundria de D. Duarte - Right
7/8
7
lembrava-se das centenas de desenhos e das respetivas construes antecedentes;
prottipos que falharam, mas no falhados, ideias que no deram frutos mas que se
revelaram no totalmente infrutferas. Cada maquinaria que se recusava a levantar era
s mais outra oportunidade para aprimorar o que j estava feito; uma espcie de seleo
natural que esperava que algum dia resultasse em algo vivel e que sobrevivesse,
fazendo exatamente aquilo para que fora concebido pela frtil imaginao. E se no
voar hoje? Se no voar hoje, voar amanh, se no voar hoje outra noite em branco a
analisar detalhadamente o que falhou, mais uma semana a modificar o desenho e
mais um ms a construir outro; s mais uma vida para fazer isto voar. Sempre que
pensava na mquina, o corao quase que lhe saltava do peito, querendo voar por ele
mesmo, Este o transporte do futuro, o ar a nova estrada dos homens. Um dia,
iremos para a Europa num destes um dia, a viagem ao mundo em 80 dias ser
reescrita pulverizada! Voar ser mais rpido, mais eficaz que qualquer outro
transporte; trar notcias de Inglaterra com menos de uma semana de diferena; levar
acar e cacau sem que os ratos do poro estraguem metade da encomenda. Diabos me
levem se os imigrantes, quando entrarem na Amrica, no passaro a ver a Grande
Liberdade de cima! J os vejo, j vejo famlias inteiras a viajarem nesta grande
maquineta, em busca de uma nova vida, de uma nova oportunidade. Vamos encolher o
mundo, vamos diminuir a distncia entre os continentes; vamos diminuir a distncia
entre os povos!
De repente, uma rajada de vento levantou-
se, afirmando-se ainda mais, Deus no quer que o
homem voe, pensa que o desafiamos com uma nova
torre de Babel, murmorou um padre que por ali
estava; achava-se l apenas com uma curiosidade
humana regada com um ceticismo prprio da sua
vocao.
- Ville, Ville, - Wilbur aproximou-se do irmo, que se preparava para o voo
no achas que o devamos virar? Est contra o vento.
Orville olhou para o cu, erguendo a cara de modo a sentir o vento nas
bochechas:
- No! Deixa-o estar assim; se h Adamastor, maior o feito depois, virou-se
para a multido. Meus senhores, e de l de cima que verei quem tem os chapusrotos!
-
7/30/2019 Escola Secundria de D. Duarte - Right
8/8
8
O vento logo cortou os risos abafados que saram da multido e Orville, subiu
para o seu lugar. Respirou fundo e fez sinal ao irmo.
A mquina comeou a percorrer o trilho preso ao cho, Wilbur corria ao lado
dela, acompanhando-a com o corao em polvorosa. Orville deixou de se sentir
apoiado, Wilbur notou uma diferena entre a altura dos seus ps e as rodas; a multido
ainda acompanhava com os olhos o pssaro humanizado que tentava chegar aos cus.
Wilbur cessou de correr e deixou que o avio, com as rodas a um brao do cho, o
ultrapassassem elegantemente.
A multido tentava igualar o barulho das hlices com uma salva de palmas
dedicada aos inventores. Os poucos jornalistas que tinham aparecido, lutavam por
conseguir a melhor fotografia do momento, o apostador ctico dava, de bom humor,
cinco notas ao afortunado sonhador; o padre j no lhe chamava babel, mas sim Santo
Graal encontrado e o presidente do banco da cidade enrolava o bigode, calculando
lucros.
Trinta metros feitos, e o pssaro poisou no cho. Orville saiu l de dentro,
eufrico, e correu a abraar o irmo que tinha lgrimas nos olhos. Numa frao de
segundo, sentiram-se rodeados de gente e os parabns saiam de todas as bocas que os
rodeavam com admirao.
Mr. Black furou a multido, entusiasmado, e deu orgulhosas palmadas nas costas
dos dois jovens, com os olhos brilhantes e um sorriso reluzente:
- Uma dzia de segundos muito bem aproveitada, no verdade?
FIM