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XV SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO A Cidade, o Urbano, o Humano Rio de Janeiro, 18 a 21 de setembro de 2018 ESCRITAS URBANAS E PRODUÇÃO DE MODOS DE SUBJETIVAÇÃO NA CIDADE CONTEMPORÂNEA: UMA HISTÓRIA DO PRESENTE REPRESENTAÇÕES, SUBJETIVIDADES E SABERES SOBRE A CIDADE [BÁRBARA DE BÁRBARA HYPOLITO - PROPUR/UFRGS] RESUMO Este ensaio trata da manifestação das escritas urbanas e da produção de modos de subjetivação no contexto da cidade contemporânea, entendendo-os como micropolíticas de resistência ao sistema social dominante e de criação de realidades, que vão na direção da autonomia e do descondicionamento corporal. Partindo da perspectiva de que as práticas sociais de resistência se produzem por diferentes facetas, atentamos às micropolíticas, aos processos de subjetivação em curso e àqueles que se fazem como linhas de fuga a partir da presença das escritas urbanas no cenário urbano. Ao aproximar os processos de subjetivação e a produção das escritas urbanas, constrói o objeto desde a perspectiva de que as escritas incidem na cidade e afetam a relação corpo-cidade, e nesse sentido se agenciam, se atravessam e se produzem coletivamente. Pretende, ainda, ir na direção de analisar a multiplicidade de linhas que compõem a produção social do espaço urbano, cartografando as escritas urbanas e seus corpos agentes, a processualidade e a transformação do ambiente urbano a partir dessas manifestações. Com essa intenção, de atentar às microações sociais e às subjetividades implicadas, no nível da experiência urbana, o trabalho se debruça também em discutir a cartografia enquanto método de pesquisa no campo dos estudos urbanos, a fim de contribuir na construção de uma história do presente. PALAVRAS-CHAVE: modos de subjetivação, escritas urbanas, cidade contemporânea.

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XV SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO

A Cidade, o Urbano, o Humano Rio de Janeiro, 18 a 21 de setembro de 2018

ESCRITAS URBANAS E PRODUÇÃO DE MODOS DE

SUBJETIVAÇÃO NA CIDADE CONTEMPORÂNEA: UMA

HISTÓRIA DO PRESENTE

REPRESENTAÇÕES, SUBJETIVIDADES E SABERES SOBRE A CIDADE [BÁRBARA DE BÁRBARA HYPOLITO - PROPUR/UFRGS]

RESUMO

Este ensaio trata da manifestação das escritas urbanas e da produção de modos de

subjetivação no contexto da cidade contemporânea, entendendo-os como micropolíticas de resistência

ao sistema social dominante e de criação de realidades, que vão na direção da autonomia e do

descondicionamento corporal. Partindo da perspectiva de que as práticas sociais de resistência se

produzem por diferentes facetas, atentamos às micropolíticas, aos processos de subjetivação em curso

e àqueles que se fazem como linhas de fuga a partir da presença das escritas urbanas no cenário

urbano. Ao aproximar os processos de subjetivação e a produção das escritas urbanas, constrói o

objeto desde a perspectiva de que as escritas incidem na cidade e afetam a relação corpo-cidade, e

nesse sentido se agenciam, se atravessam e se produzem coletivamente. Pretende, ainda, ir na direção

de analisar a multiplicidade de linhas que compõem a produção social do espaço urbano, cartografando

as escritas urbanas e seus corpos agentes, a processualidade e a transformação do ambiente urbano

a partir dessas manifestações. Com essa intenção, de atentar às microações sociais e às subjetividades

implicadas, no nível da experiência urbana, o trabalho se debruça também em discutir a cartografia

enquanto método de pesquisa no campo dos estudos urbanos, a fim de contribuir na construção de

uma história do presente.

PALAVRAS-CHAVE: modos de subjetivação, escritas urbanas, cidade contemporânea.

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URBAN WRITINGS AND PRODUCTION MODES OF

SUBJECTIVATION IN CONTEMPORARY CITY: A

HISTORY OF THE PRESENT

ABSTRACT

This essay deals with the manifestation of urban records and the production of modes of subjectivation in the context of the contemporary city, understanding them as a micropolitical resistance to dominant social system and the creation of realities that go in the direction of autonomy and physical deconditioning. Based on the view that the social practices of resistance is produced by different facets, we look to the micropolitical, the processes of subjectivation and those who make themselves as lines of escape from the presence of the urban writings in an urban setting. When it approximates the processes of subjectivation and the production of urban writings, it constructs the object from the perspective that the writings affect the city and affect the relation between body and city, and in that sense they are intermediaries, they cross and produce themselves collectively. It intends to go in the direction of analyze the multiplicity of lines that compose the social production of the urban space, mapping the urban writings and their agents bodies, the processuality and the transformation of the urban environment from these manifestations. With this intention in mind the social micro-actions and the subjectivities involved, at the level of urban experience, the work also focuses on discussing cartography as a research method in the field of urban studies, in order to contribute to the construction of a history of the present.

KEY-WORDS: modes of subjectification, urban writing, contemporary city.

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Microrrevoluções urbanas: forças subjetivantes

A forma de gestão governamental e as estruturas de poder vigentes, somadas às práticas

sociais de cada lugar, produzem a cidade, e ainda, comportamentos, posturas e modos de existência

no corpo social. São forças e dispositivos subjetivantes, ancorados na mídia, nos outdoors, nos projetos

arquitetônicos que incentivam a reprodução de uma cidade do espetáculo (DEBORD, 2003[1967]) e

do controle (DELEUZE; GUATTARI, 1995). Vivemos em tempos de crise do projeto urbano e onde o

pedestre, a voz social e a experiência corporal urbana tem cada vez menos espaço.

Na cidade, o espaço urbano é local de conflito, de luta, estruturado racionalmente pelos grupos

dominantes, e essa dominação se dá de diversas formas difusas, através de diferentes objetos

organizados de maneira a estabelecer o controle passivo e político dos corpos. Estratégias racionais

que desde a modernidade se estabelecem a fim de manter o domínio pelo Estado e pelo mercado

capital. Práticas de domínio que se referem a espaço e poder, ingredientes definidores do território

(SOUZA, 2000), a fim de organizar, controlar e gerenciar território e população.

O produto desse processo é uma sociedade do controle (DELEUZE; GUATTARI, 1995) onde

mesmo na ausência do objeto “torre de vigia” segue controlada por mecanismos de controle difusos. A

sociedade regulada por dispositivos de vigilância e monitoramento, pelo fluxo de imagens regadas de

conteúdos simbólicos e representativos engendradas pelos meios de comunicação e informação, que

passam a ser compreendidas pelo corpo social, como a própria expressão dos acontecimentos, da

construção da realidade, das relações sociais e da produção de subjetividade individual e coletiva.

Uma sociedade disciplinar que, conforme Foucault (2005), surge ao final do séc. XVII com a

industrialização e a explosão demográfica, e onde as estratégias do velho poder soberano não

conseguia mais dar conta. Surgem, assim, novos problemas na cidade e novos modos de regular os

corpos no espaço a fim de torná-los cada vez mais produtivos. Técnicas de otimização do trabalho, a

fim de manter o poder centrado no corpo individual, manipulado disciplinarmente de forma que se tornar

ao mesmo tempo útil e dócil. A disciplina através da vigilância e do treinamento das capacidades

corporais, o controle político dos corpos (FOUCAULT, 2005) na tentativa de recuperar o poder

soberano.

Por outro lado, na vida cotidiana, através do uso do espaço, emerge um conjunto de ações que

fogem e subvertem a ordem, o controle. O homem comum, em sua vida comum, pressiona os

consensos estabelecidos, a ordem vigente, de forma processual através das relações que constitui com

os outros e com a cidade. Certeau (1998) chama essas ações de “práticas do lugar”, através da

experiência urbana ativa e do uso dos espaços públicos os atores ativam o ambiente urbano. Uma

forma de microrresistência, de acionar pontos de fuga no sistema.

Assim, os atores sociais territorializam o espaço, produzem o território a partir da apropriação

do espaço (RAFFESTIN, 1993). Nesse sentido, a manifestação das escritas urbanas1 (figura 1) se

1 As escritas urbanas são intervenções no espaço urbano, manifestos em forma de pixação ou graffiti, mas que se utilizam da palavra como forma de expressão.

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apresenta como ação de apropriação do espaço urbano que, ao se utilizar da cidade e da arquitetura

como suportes de expressão, comunicação e protesto, funcionam como instrumentos sociais que

marcam e questionam os territórios, as regulamentações impostas ao espaço, à estrutura e à imagem

da cidade. Através da tinta e do spray emitem vozes, criam territorialidades, praticam o lugar e

deflagram os conflitos sociais e espaciais nessa contemporaneidade.

Figura 1 - Escritas urbanas. Zona do Porto, Pelotas/RS. Fonte da autora, 2017.

Intervenções urbanas, por um direito à cidade (LEFEBVRE, 2008), que, através do corpo do

escritor, deixam marcas físicas, pintadas e escritas com tinta, deflagrando as marcas sociais dessa

realidade construída e experimentada. Penetram a cidade, especialmente a noite, e, assim, desviam

dos obstáculos maquínicos numa forma criativa de resistência. Transgridem as fronteiras

estabelecidas, habitam as dobras, operando num sentido de luta, por uma reconquista e abertura do

território. A luta pelo espaço urbano trata de questões de poder, de controle sobre e com seus

atores|agentes|corpos sociais.

Contra a soberania dos dispositivos de controle, da ditadura dos discursos visuais de poder e

da ordem social de dominação, os escritores exercem um papel de agentes de denúncia, críticos

sociais, ativistas. Fazem as peles que encerram a cidade dialogar, interagir; e se apoiam num direito

de liberdade de expressão para profanar a cidade espetacularizada, deflagrar os descasos, as

contradições e os conflitos.

Agamben (2009), ao problematizar a esfera política e os processos de subjetivação do tempo

atual, se apoia nas ideias de Foucault, e entende os ‘dispositivos’ como fundamentais mecanismos

para a compreensão da política. Para Agamben, dispositivo é “qualquer coisa que tenha de algum modo

a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos,

as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (AGAMBEN, 2009, p. 40). Isto é, todas as

coisas que interagem com os indivíduos seriam dispositivos. E ainda, entende os processos de

subjetivação a partir da tensão e da relação entre indivíduos e dispositivos, ou seja, os modos de

subjetivação que os dispositivos na contemporaneidade são capazes de engendrar.

Nesse sentido, parece que romper com os processos em curso na direção de novos modos de

subjetivação, contra os consensos, pode acionar mudanças no campo social. Através da apropriação

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do ambiente urbano, da eminência de forças de resistência e de criação, as escritas urbanas parecem

se apresentar como dispositivos, capazes de ampliar o pensamento crítico, questionar a cidade e a

sociedade, as relações estabelecidas e engendrar modos de subjetivação nessa conjuntura

contemporânea.

Como micropolíticas de resistência, as escritas se fazem resistindo à segregação e ao

individualismo instaurados, relendo o cotidiano através de uma prática, ao mesmo tempo, estética e

política. São dinâmicas que fogem da ideia de reprodução e representação do sistema capitalístico e

das práticas sociais ancoradas em máquinas de poder que negam a liberdade do indivíduo. Caminham,

então, no sentido de produção de agenciamentos coletivos de enunciação, como microrrevoluções

urbanas realizadas no espaço público. Máquinas de guerra, de guerrilha, deflagrando as condições de

vida, as relações interpessoais e as práticas de poder vigentes.

As microrrevoluções urbanas estão no nível do interpessoal - capaz de inventar novas formas

de sociabilidade (GUATTARI & ROLNIK, 2011) – e se relacionam à proposta de um ‘urbanismo da

diferença’2. que reside na ideia de um processo de projeto urbano que ultrapasse os padrões

estabelecidos, atentando às singularidades, inspirado mais nos saberes culturais locais e nas práticas

de empoderamento social. Um processo de leitura e produção do espaço urbano que evidencia os

conflitos, as rupturas e as resistências sociais, e que, ao mesmo passo em que respeita a história,

pretende propiciar experiências urbanas mais corporais.

Dialogando com as ideias de Guattari (1990), acerca das “três ecologias” - a do meio ambiente,

a das relações sociais e a da subjetividade humana – atentar o pensamento urbano à relação entre as

escritas e a produção das cidades, nesse contexto de caos contemporâneo, se aproxima de um

urbanismo com caráter ético, estético e político, que propõe englobar em suas decisões, com

seriedade, aspectos ambientais, sociais e mentais. Trata-se de um processo de urbanismo

revolucionário, produzido através de microações, microrrevoluções - uma revolução molecular3 . Uma

revolução tal qual nas palavras de Guattari acerca daquela necessária para o enfrentamento da crise

ecológica planetária: “essa revolução deverá concernir, portanto, não só às relações de forças visíveis

em grande escala, mas também aos domínios moleculares de sensibilidade, de inteligência e de

desejo”. (GUATTARI, 1990, p. 9).

2 A ideia aqui proposta de um urbanismo da diferença remete ao conceito de “diferença” proposto pelo filósofo

Gilles Deleuze (1925-1995) em toda a sua obra, e se relaciona ao pensamento pós-estruturalista, década de 60, da Filosofia da diferença. Para Deleuze, a questão é a de tornar a diferença objeto do pensamento e mostra que a diferença é o próprio princípio da natureza. Dessa forma, pensar a diferença implica ultrapassar os modelos representativos, as estruturas lógicas. É na diferença e não na semelhança onde reside o poder do pensamento e as leis da natureza. Uma coisa jamais é completamente idêntica à outra. Trata-se de uma ruptura com a estrutura pré-determinada, com os paradigmas. Um modo de pensar, um exercício do pensamento, e cuja realidade se dá como construção social e subjetiva. Os filósofos da Diferença, como Foucault, Deleuze, Guattari e Derrida, bebem em Espinosa, Bergson e Nietzsche. 3 Os conceitos molar e molecular (GUATTARI, 1985) se referem a modelos de organização dos elementos constituintes nos fluxos e nos agenciamentos. A ordem molar diz respeito aos territórios constituídos (casa, família, política de Estado, instituições) – estratificações que modelam e delimitam objetos, sujeitos e seus sistemas de referência. A ordem molecular diz dos fluxos de desejo, de devir, das intensidades, inconsciente e invisível; um fluxo que está sempre variando, se movimentando e se diferenciando. Nesse sentido, a macropolítica é a política do regime molar, enquanto que a micropolítica diz respeito às políticas do desejo, dos fluxos.

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Magnavita também contribui com esse pensamento quando diz que os processos globalizantes

constituem “uma totalidade segmentária maior e os lugares formam totalidades segmentárias menores

que se integram com base nas diferenças que produzem” (MAGNAVITA, 2003, p. 64). Nesse sentido,

um urbanismo da diferença pretende ir além dos projetos universalizantes e homogeneizadores, em

respeito às diferenças, às micropolíticas. Que pensa menos na identidade unitária e na representação

e mais na reinvenção e na transformação, nos sentidos que produzirão e nas subjetividades implicadas

no processo de produção do espaço urbano.

Criando, inventando outros e diferentes lugares. Assim se fazem os escritos pela cidade,

produzindo lugares outros, ou dando outros sentidos a eles, compondo a cena cotidiana da cidade

contemporânea. Através da tinta e da palavra, corpos protestam, enunciam ideias e pensamentos, por

vezes políticos, noutras vezes poéticos. São falas de corpos para corpos, que podem produzir

encontros e diferença, ou não, pois estão no campo do subjetivo e do tipo de experiência que cada

indivíduo concerne com o seu território.

Como intervenções políticas enunciam sentidos, pensamentos, palavras de ordem contra a

publicidade barata e capital, também porque são marcas sensíveis de uma época contemporânea, que

tratam e levantam questões latentes de âmbito social e cultural, apostando em outras possibilidades

de uso, de comunicação e de leitura na/da cidade. Assim, pretendem afetar, reinventar a sensibilidade

urbana e as subjetividades implicadas nos corpos que vivem e experimentam o meio urbano.

Funcionam, portanto, como microrrevoluções urbanas desse tempo contemporâneo desejantes da

criação de outros modos de subjetivação, forças que impulsionem na direção do empoderamento

social.

Produção de subjetividades e modos de subjetivação

Guattari entende subjetividade como “o conjunto das condições que torna possível que

instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial

autoreferencial” (GUATTARI, 2012, p.19). No entanto, o crescente desenvolvimento de subjetividades

produzidas de maneira maquínica4 homogeiniza um padrão de subjetividade e reduz os processos de

singularização do sujeito (GUATTARI & ROLNIK, 2011).

As máquinas são os principais elementos em um processo de produção, e, segundo Guattari,

cada vez mais as relações de controle e de organização social estão adjacentes aos processos

maquínicos. É “através dessa produção de subjetividade capitalística que as classes que detém o poder

nas sociedades industriais tendem a assegurar um controle cada vez mais despótico sobre os sistemas

de produção e de vida social” (GUATTARI & ROLNIK, 2011, p. 39). As máquinas podem ser corpos

sociais, industriais, formações culturais, o estado, a família. Como máquinas de subjetivação, produzem

4 O conceito de máquina é desenvolvido Guattari e Deleuze especialmente na obra Mil Platôs (1995), e diz respeito,

muito rasamente, ao incorporal. Para Guattari, máquinas não se referem ao espaço purificado das técnicas, mas a uma organização de fluxos e forças plurais, heterogêneas, são “acoplamentos heterogêneos que agenciam” (GUATTARI, 2012, p. 43). Residem no intermeio entre sujeito e objeto. Trata-se de uma mecanosfera, e não a biosfera, o ambiente maquínico do mundo.

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subjetividades. A tendência das máquinas é igualar tudo em categorias unificadoras e reduzir os

indivíduos a engrenagens cujo valor responde ao mercado capitalista (GUATTARI & ROLNIK, 2011, p.

40).

A ordem capitalística produz os modos das relações humanas até em suas representações inconscientes: os modos como se trabalha, como se é ensinado, como se ama, como se trepa, como se fala, etc. Ela fabrica a relação com a produção, com a natureza, com os fatos, com o movimento, com o corpo, com a alimentação, com o presente, com o passado e com o futuro- em suma, ela fabrica a relação do homem com o mundo e consigo mesmo (GUATTARI & ROLNIK, 2011, p. 51).

Prolifera-se, a partir da grande máquina capitalística, uma cultura de massas que produz

indivíduos normalizados, articulados entre si segundo um sistema hierarquizado, de valores, de

submissão dissimulada. Ao mesmo passo, ocorre uma produção de subjetividade social, “uma

produção da subjetividade que se pode encontrar em todos os níveis da produção e do consumo. [...]

uma produção da subjetividade inconsciente” (GUATTARI, 2012, p. 16) que quer garantir uma função

sempre hegemônica.

Subjetivação se refere ao modo de produzir subjetividades. Foucault (1988), ancorado na ideia

de “cuidado de si” e da relação do sujeito com a pólis, entende, pois, que a escolha estética e política,

por meio da qual se escolhe determinado tipo de existência é um modo de subjetivação.

O processo de subjetivação se dá através dos encontros que estabelecemos e trata de uma

capacidade de apreensão frente ao contexto social em que vivemos, um jeito de se colocar no mundo.

Por vezes se individualiza, noutras se produz coletivamente. O indivíduo vive e se constitui a partir de

encontros e de atravessamentos, de todo tipo. Nesse sentido, não se é nunca um indivíduo uno, mas

um ser rodeado de acontecimento e que está o tempo todo se subjetivando (se constituindo, se

compondo).

Assim, a ciência, a arte, as instituições (escola, trabalho, governo), a política, a mídia, as

escritas urbanas, a família (núcleo único reduzido pela psicanálise) são produtores de modos de

subjetivações e estamos a todo o momento nos subjetivando. Criamos máscaras para cada uma

dessas situações, diferentes corporalidades e manifestações de si, sempre num contexto de relação

do indivíduo com o mundo social. E ainda, trata-se de um processo coletivo, através de agenciamentos

coletivos de enunciação, de todo um corpo social.

Existem dois modos de subjetivação distintos (NETO, 2004) com relação às potências que

geram. Existem aqueles que vão na direção do assujeitamento (condicionantes e alienantes) e aqueles

que impulsionam à liberdade; modos de subjetivação capitalísticos e modos singulares de subjetivação

(GUATTARI & ROLNIK, 2011). Os primeiros são como modos de captura que fazem pensar o padrão,

a aceleração, se referem ao modo capitalístico, que subjetiva para consumir, a atitude workaholic, a

ideia das cidades espetáculos - tudo é imagem - e as redes sociais. O segundo são modos de linhas

de fuga5 (DELEUZE, 1998), de ruptura, de produção de singularidades. Esses modos coexistem, mas

5 Linhas de fuga são entendidas aqui como forças que rompem com um movimento inerte, que desestabilizam as

ações corriqueiras. São ações e movimentos que se produzem por rupturas, por resistências, que fogem ao padrão, que propõem outras maneiras de agir, e assim são capazes de produzir diferenças. Deleuze e Guattari falam sobre a teoria das linhas: molar, molecular e de fuga. A linha molar é aquela que organiza os territórios, a

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vivemos num contexto de padronização, então, aqui, o que se mostra latente são as linhas de fuga, os

momentos de singularização onde se consegue escapar do jeito esperado, pré-estabelecido.

Por outro lado, os modos de subjetivação podem ser transformados, através da luta política

(FOUCAULT, 1988) e da resistência contra as formas de dominação (ética, social e religiosa), de

exploração e de submissão. E, entendendo ainda que, a experiência é o que nos acontece (LARROSA,

2002) e que todo encontro (Espinoza, 2007[1677]) é capaz de produzir modificações (afecções) no

indivíduo, a sucessão de ideias que nascem dos encontros diários entre o corpo e as manifestações

urbanas da cidade poderia provocar mudanças subjetivas nos modos de vida do indivíduo e no seu

coletivo social.

Resistir, aqui, como ação política, recusando o individualismo já naturalizado, insistindo nos

encontros potentes e nas invenções microssociais, de forma a encaminhar posturas sociais menos

universalizantes. Nesse sentido, o que enunciam as escritas urbanas, os discursos que se apresentam

tatuando a cidade, refletem os conflitos sociais, as relações de poder, os assujeitamentos e as

subjetividades produzidas tanto no nível micro quanto no macropolítico. Se fazem, assim, como

resistências, no contato entre as diferenças, por vontade de acionar outros modos de vida, uma ação

política que aproxima corpo e cidade.

Como caráter político e ético, as escritas demonstram um modo de se fazer e de se colocar

frente ao mundo, encontrando meios e ferramentas para a transformação, um jeito de lutar, de protestar

e resistir. Sejam seus atores|agentes impulsionados pela exclusão social e marginalidade ou por opção

ideológica, de resistência ética. Assim, se produzem como microrresistências que tensionam, criam

pontos de fuga, tangenciam de certa forma as macroestruturas. Estratégias de subversão ao sistema

dominante, ordenado e vigente do espaço e do território; tanto quanto às suas máquinas subjetivantes

de assujeitamento.

Investigando processos de produção de subjetividades – a cartografia enquanto método

Ao atentar à complexidade das dinâmicas das relações humanas, suas práticas sociais e os

modos de subjetivação implicados nesse contexto contemporâneo, se faz potente a construção de um

referencial teórico multidisciplinar. A fim de perceber: que modos são esses, e como construir outras

formas de relação, que auxiliem na criação de novas práticas, no campo das articulações entre corpo

e cidade. No entanto, como investigar processos de produção de subjetividades? E como fazer isso

sem correr o risco de se apoiar em falsas observações ou opiniões, escapando do senso comum e da

experiência primeira (BACHELARD, 1996), a fim de produzir um conhecimento acadêmico com rigor

científico?

molecular trata dos fluxos, das intensidades e a linha de fuga é aquela que desfaz os territórios, que faz o mundo fugir.

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Para tanto, o estudo investe no agenciamento entre teorias do urbanismo e da filosofia, entre

outros, e no uso do método da cartografia, entendendo-a como um outro modo de pesquisar. Uma

prática singular e inventiva de pesquisa que enfatiza os processos, pretendendo dar conta das

subjetividades apresentadas, e que caminha no sentido da criação de mundos, de realidades. Ao

mesmo tempo em que acompanha os processos, mapeia e desenha as transformações que vão

ocorrendo, num processo onde o cartógrafo dá “língua aos afetos que pedem passagem” (ROLNIK,

2011, p. 23). E assim, aposta na produção e na leitura de uma história do contemporâneo.

A cartografia como método foi formulada primeiramente pelos franceses da Filosofia da

Diferença, Deleuze e Guattari, a partir dos anos 60, e se configura como um instrumento para uma

história do presente, uma crítica do nosso tempo. A principal referência ao método cartográfico

encontra-se na Introdução da obra Mil Platôs, vol. I, escrita em 1980 (DELEUZE & GUATTARI, 1995).

Atualmente é bastante difundida como proposta metodológica em pesquisas qualitativas, em especial,

no Brasil (ROLNIK , 2011; ALBUQUERQUE et al., 2008; KASTRUP et al., 2010).Tal abordagem tem

se destacado, ainda, em estudos de diferentes áreas, e, mais atualmente, de forma crescente nas

pesquisas no âmbito das ciências sociais e estudos urbanos – cartografia urbana.

À cartografia tradicional entende-se como a arte, técnica ou ciência de elaborar mapas e cartas

a fim de representar objetos, fenômenos e/ou ambientes físicos e socioeconômicos. Há séculos a

técnica é utilizada como uma forma de o homem conhecer o mundo que habita, e assim, traça mapas

de territórios, relevos, distribuições populacionais. Enquanto ciência da representação gráfica da

superfície terrestre, está ligada ao campo da geografia e tem como produto o mapa; busca um

conhecimento preciso acerca do território que mapeia. Traça mapas de territórios, relevo e distribuição

populacional, coleta dados.

A cartografia social, por outro lado, visa outro modo de mapear a realidade, acompanhando

processos em transformação, de territórios existenciais, as subjetividades e os afetos implicados na

construção de territorialidades nos processos de formação social nessa contemporaneidade. Não visa

à representação, pois caminha mais no sentido de uma criação, um agenciamento de dados.

[...] uma cartografia social faz diagramas de relações, enfrentamentos e cruzamentos entre forças, agenciamentos, jogos de verdade, enunciações, jogos de objetivação e subjetivação, produções e estetizações de si mesmo, práticas de resistência e liberdade. Como método presta-se à análise e desmontagem de dispositivos, ação que consiste em desemaranhar suas enredadas linhas, além de instrumentalizar a resistência aos seus modos de objetivação e subjetivação (FILHO & TETI, 2013, p. 45).

O método segue pistas (KASTRUP et.al., 2010) sem previsão de critérios a priori, mas

amparada em princípios e procedimentos metodológicos, sem abrir mão do rigor. Por outro lado, não

se encerra em formulários, questionários ou observações distanciadas, mas traça no caminho suas

diretrizes. Habita um território, inventa mapas, acompanha os processos e cria realidades. Dessa forma,

vai construindo as bases da investigação, sempre levando “em consideração todas as ferramentas

conceituais ou técnicas que permitem dar todo o seu vigor e toda a sua força à verificação experimental”

(BOURDIEU et. al., 2007, p. 10). Difere da etnografia, em especial por não habitar um território de

outrem, mas um próprio território, que ao mesmo tempo em que o habita contribui para a sua criação.

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Trata-se de uma cartografia do sensível, um mapeamento das subjetividades, mas que vai

além, através da produção de mapas não fixos, mutáveis, que permitem captar a complexidade do

presente, os encontros realizados. Fazer cartografia é tecer um plano de experiência, acompanhando

as linhas que o compõe, os efeitos do percurso da investigação, seguindo uma diretriz transversal

(KASTRUP et al., 2010), que não homogeneíza os elementos compositivos ou separa o objeto dos

fenômenos implicados, mas atenta às suas singularidades. Um hódos-metá (KASTRUP et al., 2010)

que reconhece que toda pesquisa é intervenção, que aposta num caminhar que traça, durante o

percurso, suas metas e cujo apoio está justamente no “modo de fazer”.

Assim, o conhecimento vai se produzindo num campo de implicações cruzadas – das forças

inconscientes, dos atravessamentos que compõem a realidade (KASTRUP et al., 2010). Sem previsões

impostas, o traçado do mapa vai se fazendo por mergulhos, experiências, registros, dando atenção às

linguagens que compõem a trama argumentativa proposta, ajudando a relacionar e investigar as

transformações do processo de realidade que habita e constrói a pesquisa. E isso se dá através de um

mapeamento aberto e sempre inacabado movido pelos fluxos em desassossego do pensamento, que

prioriza os movimentos da vida, atentando às linhas flexíveis e de fuga, linhas de ruptura, onde

emergem [des]territórios. E assim, explora processos de [des]territorialização acionando as potências

criadoras de novos modos de existir, a fim de compor planos de experiência (KASTRUP et al., 2010)

intensivos6 e extensivos7 .

Nesse processo de cartografar afetos8 e subjetividades, o papel do cartógrafo é deveras

importante. E, talvez, seja aqui onde resida o maior obstáculo epistemológico (BOURDIEU et. al., 2007)

dessa pesquisa, e de outros estudos cartográficos. Visto que, quando um pesquisador habita um

território ele também é afetado por suas relações, nesse sentido, a vigilância epistemológica

(BOURDIEU et. al., 2007) se encontra tanto no arsenal teórico que agrega para a construção de seu

objeto de pesquisa quanto na postura que tomará frente, e no encontro com, o território que se propôs

investigar. Trata-se de uma questão ética do pesquisador, portanto:

Informações, saberes e expectativas precisam ser deixadas na porta de entrada, e o cartógrafo deve pautar-se sobretudo numa atenção sensível, para que possa, enfim, encontrar o que não conhecia, embora já estivesse ali, como virtualidade. (KASTRUP et. al., 2010, 48)

É importante salientar que, no âmbito da cartografia, não se trata de um ponto de vista do

cartógrafo, “a invenção se dá através do cartógrafo, mas não por ele, pois não há agente da invenção”

(KASTRUP et.al. 2010, p. 50). A sua prática é política, é micropolítica, ele está atento às estratégias de

produção de subjetividade e de formações de desejo no campo social. Assim, ele se propõe a controlar

as influências do conhecimento (BOURDIEU et. al. 2007) que vai obtendo, através de teorias e

referências.

Ele apresenta atenção, percepção e cognição aguçadas, a fim de observar, registrar e saber

discriminar as pistas que segue. E assim, vai experimentando também os erros, se desapropriando de

6 Referente às intensidades, aos afetos, às forças que geram movimentos. Propõe mapas intensivos. 7 Referente às extensões, os percursos trilhados. Propõe mapas extensivos. 8 Afeto no sentido de afecto, conceito de ESPINOZA (2007[1677]), entendido como uma variação contínua da

força de agir e existir do corpo, um estado de vibração que se dá a partir de um encontro e produz modificações.

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suas prenoções e se propondo a uma experiência de investigação inventiva. O cartógrafo começa

sempre pelo meio, vivenciando o território e no caminho vai configurando as estratégias, os

procedimentos e as ferramentas. Tem consigo sempre um bloco de notas a fim de seguir a viagem e ir

montando, junto com o caminhar, o seu roteiro. No entanto, o roteiro é aberto, pode mudar e se

transformar durante o caminho, de acordo com os encontros que se fizerem potentes, sempre seguindo

as pistas. Ele adentra o território, mas também, por vezes, se distancia, percorre as bordas, na intenção

de tecer relações com outras fontes, outras percepções. Não busca um fim, mas acompanhar a

processualidade.

A cartografia não isola o objeto ou o fenômeno, mas o analisa valorizando as forças ao qual

está conectado, as suas articulações históricas e suas conexões com o mundo (KASTRUP et.al. 2010).

A processualidade é outro elemento importante no ato de cartografar, pois a investigação de processos

de produção de subjetividades se faz num processo em curso, próprios de um cotidiano vivo; a ideia é

acessar os elementos processuais do território, tramando suas linhas de força.

No campo dos estudos urbanos o paradigma da representação do objeto, que muitas vezes o

isola do contexto de suas conexões a partir de uma perspectiva determinista, separa o objeto dos

processos que o compõe. Nesse sentido, ao pensar o corpo no espaço urbano, a manifestação das

escritas urbanas na cidade contemporânea e a fim de atentar e mapear os processos de subjetivação

implicados nesse contexto - entende-se a cartografia como uma estratégia metodológica emergente

capaz de dar conta desse tipo de investigação.

Considerações finais

O percurso dessa pesquisa cartográfica tem entendido que cidade, escritas urbanas e corpo

social se apresentam num processo de agenciamento, de relação tensa entre diferenças e

proximidades. Rompendo as amarras e os consensos produzidos e fortificados por um sistema capital

e global que homogeiniza, em padrões, toda uma realidade – urbana e corporal. Visto que, a partir de

ações micro, que se manifestam pela palavra e pela tinta, como tatuagens nas peles da cidade, alguns

indivíduos do campo social se apropriam dos muros, dos abandonos urbanos para gritar vozes e deixar

marcas. São pequenos processos de resistência, de transformação e rompimento com a conjuntura

maquínica contemporânea que produz corpos docilizados, assujeitados e cidades cada vez mais

empobrecidas da experiência corporal urbana.

É como se os conflitos e as desimportâncias passassem a ser grafadas pelas paredes da

cidade, denunciando processos de subjetivação e indo na busca da criação de outros modos. Modos

que caminham no sentido do empoderamento social, afirmando a possibilidade de outras leituras do

real. Visto que se produzem pelas bordas, pelas fissuras, como micropolíticas, ou ainda, como linhas

de fuga acionando o pensamento crítico acerca da cidade e seus corpos em ação e criação constantes.

Funcionam, portanto, como dispositivos, interceptando os discursos dominantes e

impulsionando a discursos outros. Assim também se dá o processo de cartografar tal manifestação

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social, indo além das formas de leitura e representações dominantes sobre o território urbano e seus

agentes. Portanto, se debruça sobre as práticas humanas, as relações sociais e os fenômenos do

cotidiano que resistem às máquinas de poder, aos consensos estabelecidos. Por uma vontade de

habitar um espaço, um território, pela “necessidade de trabalhar sob o espaço, no nível das relações

essenciais que sustentam tanto o espaço quanto os fenômenos” (BACHELARD, 1996, p. 7).

Nesse processo, o cartógrafo vai construindo o seu pensamento a partir das próprias

experiências no território que habita e percorre - entre escritos, corpos e cidade - somadas aos autores,

às teorias e aos conceitos que as pistas que segue vão lhe direcionando. Sem neutralidade, mas com

controle sobre sua postura científica e sobre os corpos teóricos implicados ao conhecimento. Dessa

forma, se afasta da ideia de uma ciência reflexiva, mas define as condições metodológicas afirmando

uma ciência experimental, circunscrevendo a abordagem teórica construída. Ao mesmo passo, vai

construindo seus procedimentos metodológicos, indo na direção de buscar ou criar as ferramentas

necessárias à investigação que propôs se debruçar de corpo inteiro.

Investigar, construir territórios e promover rupturas a fim de inventar outras possibilidades de

realidade urbana, são papéis aos quais se propõe um urbanismo da diferença. Entendendo que os

processos de produção de subjetividades se encontram entrelaçadas às potências das práticas sociais

emergentes nesse cenário de cidade contemporânea. E, ainda, que através do encontro com as

micropolíticas, que emergem de dentro do corpo social, surgem outras possibilidades de leitura e

produção do conhecimento acerca das relações sociais e do espaço urbano. Afirmando, assim, uma

história do presente.

Apresentar as escritas urbanas como manifestação social - expressões narrativas que se fazem

pela tinta e que se apropriam dos planos da cidade dando voz às emergências dessa sociedade

contemporânea - é um exercício cartográfico de ler a cidade através de suas micropolíticas, dos seus

atos de resistência cotidianos. Visto que, operar no nível da micropolítica é estar à escuta do desejo a

fim de poder agir no sistema macropolítico. Atentar às escritas enquanto dispositivos capazes de

acionar processos de subjetivação singulares é apostar na produção social do espaço urbano a partir

de práticas sociais de resistência. Uma revolução molecular, de minorias, que resiste e enfrenta a

realidade a fim de construir outra, entrelaçada aos fluxos de desejo e às sensibilidades. Uma revolução

que prioriza os corpos, a experiência urbana, o caminhar.

Narrativas urbanas, elementos visuais, produzidas por homens comuns, lentos, que vão de

encontro às estruturas racionais dominantes, aos mecanismos de poder. Como instrumentos sociais

de [in]disciplina que assinam o território, criam discursos urbanos e participam da produção espacial

da cidade. Produzidas por uma ação marginal, as escritas participam do cotidiano da experiência

urbana, na construção, na estética e na leitura da cidade, assim como, na constituição de sujeitos nesse

contexto de conflito urbano e social das cidades contemporâneas.

Um fenômeno cultural, portanto, e de cunho identitário, motivado pela adrenalina, pela

resistência e pela necessidade de comunicação. Um movimento social de luta pelo espaço urbano,

capaz de ressignificar abandonos e chamar à interação, relacionando escrita, arte, território, urbanismo,

práticas sociais e criação de espaços relacionais. Por um direito à cidade, ao território. Por um direito

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à liberdade, ao poder do povo e à produção de uma nova realidade, a fim de poder contar uma outra

história desse tempo contemporâneo.

Assim, emergem outras formas de produção e leitura do espaço urbano, afirmando os saberes

locais e as singularidades, produzidos por corpos transgressores da cidade formal e dos mecanismos

de controle social vigentes. São corpos que vão na busca da formação de políticas do sensível,

afirmando as diferenças e as minorias, suas potências, suas vozes. Vozes silenciosas, mas que gritam

aos riscos pelos muros denunciando o machismo, a exclusão, a pobreza, a violência, a insegurança, e

ainda, a arte como guerrilha, o poder do povo, a voz das ruas. Enunciando outras possibilidades de se

viver em sociedade e produzir a cidade. Alertam à arte, aos encontros, ao empoderamento feminino.

E, assim, de forma micro, mas potentes, vão engendrando outros modos de subjetivação na sociedade

contemporânea.

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