espaço, lugar e local - ana barros - 1998
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Espao,
lugar e local
ANNA BARROS
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Nos dias de hoje h uma afluncia, cada vez maior,
dos vocbulos lugar e localnas pginas de arte. Eles pe-
dem uma nova conceituao, invejosos da importncia
dada ao vocbulo espao durante este sculo. como seo multiculturalismo conscientizado no ps-modernismo
e a globalizao crescente tornassem imprescindvel uma
redefinio desses termos.
O nomadismo, real e virtual, do ser humano atual
demanda um ponto definido por coordenadas pessoais,
que ele pode transportar ou dentro do qual ele mesmo
se transporta. Este seria o lugar que, com suas frgeis
paredes, poderia absorver por osmose o local, um espa-
oj humanizado e possuindo uma narrativa histrica
prpria, com caractersticas mais amplas do que as do
primeiro, mas que pode ainda ocasionar uma reao em
direo contrria, invadindo o espao mais geral. A isso
soma-se o contedo da memria que faz de um lugar
uma multiplicidade de locais.
Para um artista, essa noo de local se amplia para
terras em que a imaginao potica imprime organiza-
es, talvez ainda mais especificamente individuais, por
serem em geral percebidas emotivamente de forma
mais aguda e que so confrontadas constantemente
com as do local como socioculturais, o que cria umatenso aguda.
Desde o minimalismo, o espaotem estado em
foco na arte como parte do mundo real e no mais da
representao pictrica, porque a prioridade dada re-
lao entre o objeto e o contexto onde ele se encontra
passou a exigir uma nova participao fruidor-obra.
A condio de se perceber percebendo, aguada
pelas obras ambientais minimalistas em que os sentidos do
visitante so chamados a completar a obra, aprofundou-
ANNA BARROS
artista plstica eprofessora do Programade Ps-Graduao emComunicao e Semiticada PUC-SP. Foi vice-
presidente da AssociaoNacional de Pesquisadoresem Artes Plsticas, nobinio 1995-97.
art
eecontem
poraneidade
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se pelo trabalho dos artistas da costa oeste
dos Estados Unidos, grupo que ficou co-
nhecido como Light and Space Art.
Esse aprofundamento da percepo le-
vou a definies mais especficas de espa-
o e lugar. Maria Nordman, uma das artis-
tas desse grupo, d ao espao uma defini-
o mais abstrata, quando ele ainda se en-
contra vazio antes de ser humanizado, pas-
sando a ser lugarquando lhe so atribudas
qualidades bsicas de luz e de som em
mudana constante, o que pra o tempo
relgio e inicia o tempo interior (Jan
Butterfield, 1993, p. 100).
Em seu mais recente livro, The Lure of
the Place(1997), Lucy Lippard aborda essa
questo, e, definindo o que para ela serialocal, inclui as caractersticas peculiares a
cada lugar geogrfico, numa conceituao
semelhante a nativo, sem a significao
usual dada a essa palavra: habitantes pri-
mitivos de um lugar. Local, assim, seria
mais circunscrito do que pas.
Lippard descreve lugar como um locus
de desejo (1997, p. 4). Segundo essa des-
crio, na obra de arte deveria ser usada
sempre a palavra lugar ao invs de espao.Espao poderia ser visto assim como um
lugar ainda no tocado pela imaginao,
matria-prima para criao. A importncia
de localadvm da confrontao da percep-
o cada vez mais refinada da experincia
de diferenas de lugares e de culturas, ex-
perincia adquirida pela facilidade de lo-
comoo e pela acelerao da comunica-
o e divulgao de conhecimentos.
O local tem se insinuado na vida e na
arte como uma conseqncia do multitudo
do ps-moderno. Para no perder a identi-
dade nessa euforia multi, temos visto o
reaparecimento das etnias e de ideo-
logismos de purismo racial contra a
homogeneizao das raas e das culturas e,
na arte, a incluso na chamada High Art de
trabalhos outrora considerados como locais,
no sentido de carregarem caractersticas
particulares de um grupo tnico ou
sociocultural.Sem chegar a essas caractersticas e sem
o uso da palavra local, as obras em espao
pblico j foram redefinidas a partir de
caractersticas bem semelhantes por artis-
tas como James Turrell, Mary Miss, Siah
Armajani, Robert Irwin, que vem a obra
de arte no como invasora de onde colo-
cada, mas sim de onde elas se encontram,
estabelecendo um dilogo com o local.
Robert Irwin, em seu ensaioBeing and
Circunstance. Notes Toward a Conditional
Art(1985, p. 26), declara que uma obra em
lugar pblico deve partir dessas duas coor-
denadas primrias: o ser e a circunstncia.
A escultura deve existir em plena relao
com o ambiente de onde retira sua razo de
ser. Essa forma de trabalho exige uma pes-
quisa prvia do lugar a que ela se destina,
para que ele seja conhecido em profundida-
de, em vrios nveis de informao, e paraque venha a existir uma resposta escultural.
No existe mais referncia obra e estilo de
determinado artista. A identidade do artista
substituda pela do lugar, aqui j transfor-
mado em conceito de local (segundo a
conceituao de Lippard), embora na poca
em que Irwin escreveu esse ensaio ainda nele
aparea a palavra site (lugar), site
determined/conditioned(determinado/con-
dicionado pelo lugar).Mary Miss, numa entrevista para a re-
vistaDomus(1991), j declara que a arte
pblica deve fazer do lugar um momento
individualizado pelo emprego de coorde-
nadas que lhe so peculiares, de maneira
que possa ser compartilhada pelo pblico
local que transforma o conhecimento ar-
tstico em experincia, permanecendo o
pblico responsvel pela obra: o que me
torna diferente de um arquiteto ou de um
paisagista? [...] o foco principal de meu
trabalho a experincia direta do indiv-
duo que o olha, tentando dar um contedo
emocional ao local ( p. 20). A j surge a
palavra local.
OBRAS REPRESENTATIVAS
Dentro da histria da arte atual, dois
projetos, o daRoden Crater e o doIrish Sky
Garden, de James Turrell, incorporam com
a maior fora essas coordenadas de espa-
o, lugar e local, sem criar uma dicotomia
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entre elas. Devido ao contedo desses pro-
jetos e sua natureza interdisciplinar, eles
possuem caractersticas que ao mesmo tem-
po contm e transcendem a ligao do ser
humano com a Terra e com o Cosmo, com
a Histria e com o presente, com o indivi-
dual, com o grupal e com o arquetpico e
ainda se conservam dentro da noo de
espao vazio, a demandar uma eterna cria-
o atravs da vivncia de cada visitante.
esse carater arquetpico que transfor-
ma o local em um centro mltiplo que pode
pertencer a vrias culturas e civilizaes,
onde a observao da natureza e de seus
fenmenos levou a uma experincia, no
s pr-cientfica como transcendental.
Essas mesmas caracterstica esto pre-sentes em outro megaprojeto de Turrell, o
Irish Sky Garden.
RODEN CRATER
Para encontr-la, Turrell sobrevoou, num
pequeno avio, uma rea que se estende das
encostas a oeste das Rochosas at o Pacfi-
co, e do lago Louise, na fronteira com o Ca-nad, at o Chihuahua, em busca do lugar
ideal para o projeto que tinha em mente.
As qualidades fsicas, por ele buscadas,
eram: ter uma altura de pelo menos 500
ps, elevando-se a uma altitude de mais de
5.000 ps acima do mar, a fim de preencher
qualidades especiais de refrao do ar, es-
tar bem longe das luzes de uma cidade e, o
que era mais importante, ter uma cratera
com o cone o mais circular possvel, para
criar efeitos pticos especiais e espaciais.
Se este projeto for concludo, ser
indubitavelmente o mais memorvel entre
os da arqueologia da arte deixado por nos-
sos tempos para os prximos milnios. A
Mona Lisatalvez possa durar, ainda, mais
de mil anos, eRoden Crater um projeto
semelhante (em sua concepo estrutural e
semntica) aos trabalhos de outras culturas
antigas, em que os materiais so os da pr-
pria natureza e dirigidos para uma celebra-o a uni-la ao Cosmo. Tendo um vulco
por suporte, e usando todo o material natu-
ral de minrios encontrados nas redonde-
zas, no acabamento de salas, em que as
performances a serem ritualizadas tm o
cu, a lua e as estrelas como agentes, essa
obra permanecer como algo sem tempo
histrico determinado, sem campo disci-
plinar especfico, podendo, em civilizaes
futuras, ser vista como um local de rituais,
anterior aos de nossa era, e dificilmente
ser enquadrada como arte do sculo XX.
Ela um olho, algo que , em si mes-
mo, perceptivo. uma pea que no tem
fim (Turrell, 1993, p. 62). Esse olho olha
para os eventos celestes, partilhando-os
com quem visita aRoden Crater no presen-
te, mas tambm olha para o passado, para
a histria humana e geolgica que a est
gravada. As implicaes so claramentecsmicas. Assim o ato do observador, o de
se ver vendo, tambm acentuado pela vista
de uma poro do universo, criando assim
a conscincia de um espao infinito alm
do pensamento (Oliver Wick, 1990, p. 90).
Ao norte de Flagstaff, no Arizona, est
o campo vulcnico de San Francisco, com
mais de 400 crateras, inativas desde o fim
do Pleistoceno, com exceo da Sunset
Crater, que entrou em erupo pela ltimavez h uns 400 anos.
A Roden Crater um desses cones vul-
cnicos, e est situada na margem leste deste
campo. Foi ela a escolhida por James Turrell
para um projeto multidisciplinar de arte,
envolvendo percepo, luz, astronomia.
James Turrell, falando autora sobre o
projeto, assim se expressa:
Estamos tentando fazer no s uma obra,
mas tambm criar uma situao onde as
reservas naturais que tm estado aqui, por
sculos, funcionem como arte na paisagem.
Geralmente vemos arte fora do contexto,
pois pinturas, fotos, pedras so levadas para
serem exibidas em museus e galerias. Aqui,
o artefato cultural, que chamamos arte,
visto no seu cenrio natural. a luz do sol
e da lua que fazem a arte, o pr-do-sol que
acontece, a luz diferente que vem do cu...
Quando voc olha, pode ver de onde vemeste tipo de arte, mas isto exige uma via-
gem para v-la. Para isto, dirigimos voc
at aqui, pois esta arte no envolve objetos,
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mas sim experincia. Ela tem a ver com
experincia preservada (1996, p. 207).
Este trabalho coexiste com outros de
artistas contemporneos, criados ou ainda
em projeto, em que o espao celeste ser
invadido por suas artes, em fenmenos a
serem desencadeados por satlites ou fo-
guetes, a exemplo deRoue Cleste(1970),
do artista francs Jean-Marc Philippe, ou
utilizados para registrar algo que o artista
criou na Terra como o projeto dos guarda-
sis, de Christo, The Umbrellas, Joint
Project for Japan and U.S.A(1992). No
primeiro, h a utilizao do crculo
geoestacionrio da Terra com 4.200 satli-
tes, que deveriam ficar em rbita perma-
nente, formando assim uma coroa de luzrefletida do Sol, o que tornaria possvel
visualizar a velocidade da luz. No trabalho
de Christo, os satlites funcionam como
unificadores temporais, transmitindo even-
tos simultneos no Japo e na Califrnia,
nos Estados Unidos: a abertura dos seus
1.340 guarda-sis, colocados em lugares
estratgicos na natureza.
O projeto de Turrell retorna Terra como
ponto de ancoradouro e de sustentao doser humano, usando a tecnologia para des-
vendar segredos celestes sob forma de co-
nhecimento, que tem incio no sentir e
realizado atravs do prazer esttico.
NaRoden Crater, o objetivo criar um
observatrio natural de fenmenos astron-
micos, tal como Chaco Canyon, no Novo
Mxico, no muito distante, construdo pe-
los ndios anasazis. Alm disso, o Sol, a Lua
e as estrelas serviro como elementos bsi-
cos para a arte ali presente. A obra exigir
dos visitantes o uso da prpria percepo,
para usufrurem as mudanas efetuadas pela
luz, nos ambientes ali construdos. Essas
mudanas constituem-se em fenmenos
perceptivos inusitados e sutis, desafiando a
percepo como normalmente utilizada. Ao
artista cabe, auxiliado por clculos de ar-
quitetos e astrnomos, construir espaos
vazios para utilizar a luz que ali incide, con-
siderando os ngulos celestes em relao Terra e o tempo csmico em referncia ao
terrestre. Desses milhares de clculos sur-
ge a possibilidade de tornar cativa a dana
do Sol e a da Lua em suas coreografias
mensais, anuais e milenares, preenchendo
os espaos com as mais variegadas cores-
luz e com efeitos pticos que pedem uma
determinada percepo.
Quando o projeto estiver pronto, a
Roden Crater refletir nossa prpria vida,
em peregrinaes pelo mundo, durante as
quatro estaes, lugares cotidianos ou lon-
gnquos e pouco vivenciados por ns,
noite ou de dia, em cada estao do ano. A
riqueza daRoden Crater que l estaro
presentes todas as estaes e todos os
momentos do dia, potencialmente unidos,
o que faz com que uma s visita no possa
abranger todas as possibilidades
perceptivas presentes.A Roden Crater foi comprada com o
dinheiro recebido por Turrell da Dia Art
Foundation, tendo o artista se transferido
para Flagstaff, em 1979, para iniciar o pro-
jeto central de sua vida. Primeiramente,
Turrell tomou posse da terra, acampando
nela, l vivendo por um longo tempo e fa-
zendo com que se tornasse uma extenso
de seu prprio corpo, mais um sentido atra-
vs do qual pudesse perceber. Tudo, abso-lutamente tudo sobre ela lhe interessava, e
assim foi se embrenhando na histria das
culturas que o precederam nesse local, a
relao com a Terra e com os outros astros
no cu e como isso ressoava na psicologia
e no esprito dessa gente. De um profundo
contato com os ndios que ainda habitam os
arredores, ele se estendeu para os habitan-
tes do universo, para as trajetrias do Sol,
da Lua e das estrelas que encimam a regio,
numa relao com a Terra, detectada e re-
gistrada pela cincia, e de como isso podia
ser percebido desse exato ponto geogrfi-
co, ou seja, das diversas faces do vulco.
A seguir, Turrell empreendeu um le-
vantamento topogrfico da regio, sobre-
voando-a, a fim de poder conhecer exata-
mente cada detalhe geolgico, em um co-
nhecer de outro ngulo, distinto daquele
que se est acostumado a manter com os
lugares onde se vive. Como artista, essasfotos transformaram-se nos primeiros tra-
balhos do projeto.
Atualmente, a Skystone Foundation, em
Na outra
pgina,Roden
Crater, quando
estavam sendo
refeitas as
bordas da
cratera; abaixo,
cratera e corte
com o arco da
fumarola, 1985
Projeto
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Flagstaff, dirigida por Julia Brown, unica-
mente criada para levantar fundos e gerir o
projeto, est tentado enquadrar a Roden
Crater numa perspectiva cultural mais
ampla do que arte, estando em pesquisa
como o projeto possa ser catalogado.
A maior parte do projeto s existe ainda
em desenhos, em centenas de fotos, em fotos
estereoscpicas e na srie de gravuras em
metalDeep Sky, 1984, que sugere qualidades
perceptivas a serem vivenciadas na Roden
Crater e na Mapping Spaces, 1987. Um
modelo de todo o vulco e o projeto para ele,
em trs dimenses, foram exibidos em 1985,
no Musem of Contemporary Art (Moca), em
Los Angeles, junto a vrios desenhos.
A nica parte terminada a reestru-turao das bordas da cratera principal, de
maneira a nivelar a altura e ter uma forma,
ligeiramente elptica, que devem criar um
efeito: a percepo do cu como uma ab-
bada, como um domo apoiado nas bordas.
Isso exigiu um trabalho enorme de movi-
mentao de terra, de difcil execuo, de-
vido altura em que se encontra e ao cui-
dado com o terreno ao seu redor, de onde
teria que ser apagada qualquer marca, serreposta a terra de superfcie e ser replantada
a vegetao original.
A aproximao do vulco j parte dos
planos de Turrell. semelhana de outros
trabalhos seus, essa aproximao a pre-
parao para a entrada no esprito da obra.
Para isso, planejou a estrada que conduz ao
vulco, de maneira que, serpenteando pe-
los acidentes do caminho, mostre, ora uma
vista quase area, ora a da montanha, sur-
gindo da terra plana do deserto e impondo
ao visitante sua imponncia.
OS ESPAOS-LUGARES
Craig Adcock a melhor fonte de in-
formao sobre aRoden Crater, pois nela
permaneceu acampado por muito tempo,
em vrias pocas do ano, alm de ter aces-
so a todos os projetos e a conversas comTurrell, durante o tempo em que escreveu
sua tese de PhD sobre o assunto. Ele, por-
tanto, estar presente na maior parte das
descries aqui feitas. Sua viso e sua ima-
ginao vo alimentar as dos leitores, ten-
do em mente que a complexidade dos pla-
nos envolve um modelo intrincado de or-
dem e seqncia (Adcock, 1990, p. 162),
e que, entretanto, o planejamento do
vivenciar essa seqncia fica entregue ao
visitante.
Turrell (1993, p. 58) explica que o pro-
jeto isola a experincia da luz, separando-
a dos eventos para os quais no se est olhan-
do no momento, a fim de identific-la.
Existem muitos espaos, para que cada um
deles possa receber somente um pequeno
nmero de eventos por vez, enfatizando
uma determinada parte do cu.
A organizao de todo o projeto remete de lugares antigos como o santurio de
Newgrange [Irlanda], a Sala Alta do Sol, em
Karnak e o solo sagrado dentro de um tem-
plo Kogi [] sempre girando ao redor de
uma exibio dramtica da luz do Sol, como
lembra E. C. Krupp, diretor do Griffith
Observatory, em Los Angeles (1987, p. 37).
Entranhado na idia bsica, de ser um obser-
vatrio natural de fenmenos celestes, o sim-
bolismo presente, para Turrell, de nature-za genrica, sem estar necessariamente as-
sociado a qualquer religio, e gerado pelas
interconexes entre luz, espao e tempo
(Adcock, 1990, p. 159).
Essas conexes podem chegar a ser
bem intrincadas, apesar de receberem uma
forma final que parece simples. Uma sala
vazia, resultante de complicados clculos
arquitetnicos, possibilitar a ocorrncia
de fenmenos celestes pesquisados por
astrofsicos, os quais sem o rigoroso pla-
nejar da inclinao das paredes ou do lo-
cal e tamanho da abertura, nas paredes e
tetos, no se fariam perceptveis aos visi-
tantes. As paredes necessitam um arremate
rigoroso, j bem conhecido nos trabalhos
de luz de Turrell, mas que, agora, ainda
recebem um acabamento com areias e la-
va, de cada local onde a sala est situada,
o que pode variar muito, pois a riqueza de
suas cores, no deserto, imensa. Contudo,isso no aleatrio, pois cada elemento
mineral usado est a realar o fenmeno
que a sala ir receber.
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A percepo aqui construda s pela luz
natural sempre oriunda de matria-
imaterial. O intercmbio entre interno-ex-
terno encontra-se em diferentes situaes,
seja abrindo a viso aos acidentes da paisa-
gem circunvizinha, seja isolando o vedor,
para melhor usufruir o fenmeno especfi-
co que lhe dado a perceber naquele mo-
mento. Turrell enfatiza que a percepo
que modela todo o espao, medida que se
percorre o projeto em sua totalidade: Como
sempre, o mais importante no a forma
arquitetnica de cada espao, mas as foras
que eles contm (Adcock, 1985, p. 104).
Durante anos de planejamento, do per-
ceber cada lugar, em cada momento do dia
e da noite, em cada estao do ano e nas
diferenas de ano a ano, surgiu o projeto
que, ao estar terminado, no ter a assina-
tura de um artista, mas se apresentar como
um momento raro de doao sensibilida-
de perceptiva do homem, deste e dos scu-
los futuros. A tecnologia est presente nos
clculos prvios dos fenmenos, ausentan-do-se depois, para dar lugar natureza e
sua sabedoria. O nico indcio da data e da
civilizao que construiu tal monumento
estar presente nas placas de ao inoxid-
vel colocadas em lugares estratgicos, para
informar sobre astros, estrelas e demais
eventos csmicos, podendo ser avistados
do lugar.
O tempo humano, limitado a alguns
poucos anos, reveste-se, ao mesmo tem-
po, de importncia crucial, por sua pr-
pria exigidade, e de pouca importncia,
quando relacionado ao tempo csmico
presente na Roden Crater, abarcando,
desde sua formao geolgica at os fe-
nmenos celestes, que podero ser ob-
servados aps sculos da extino das
raas e culturas, que hodiernamente ha-
bitam as cercanias.
Sculos atrs, na ndia do sculo XVIII,
em Jaipur, o Maharajah Jai Singh construiu
um observatrio para estudar os eventos
celestes, de uma maneira extremamente
precisa, conseguida atravs da arquitetu-
ra monumental de seus instrumentos, diz
Krupp (1987, p. 37) e ressalta que algo
semelhante ao que Turrell est relizandono espao subterrneo e central da cratera,
ao usar a arquitetura para interagir com a
luz dos astros.
Roden Crater
vista do plano
de lava, face
nordeste
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OS ESPAOS QUE BRINCAM COM
OS ASTROS
As salas subterrneas, na base do vul-
co, criam uma entrada para o mundo
ctnico, de sombras, dotado de energia ter-
rvel, que est aliada ao fato de esta no ser
uma montanha comum, mas originalmente
ter tido conexo com o magma terrestre. O
visitante que percorrer todo o projeto ir
passar por diversos banhos de luz e ser
submetido a vrias experincias de luz, que
acentuam o sublime originado na natureza,
sutilmente orquestrado por Turrell. Expe-
rincias essas organizadas dentro da mes-ma gama de imagens de luz, presentes em
suas obras, desde Ganzfelds s projees
de luz nas paredes. Mas, mais importante
ainda, a ligao luz-sombra que d ao
projeto um desenvolvimento harmnico,
dos dois lados da psique, consciente/incons-
ciente, revisitando circunstncias: o eterno
morrer e renascer.
Salas subseqentes fazem uso do
Ganzfeld, modelando a nvoa luminosa detonalidades levemente diferentes em cada
uma delas, provenientes do reflexo da luz
solar em diversos materiais externos. Esse
efeito de Ganzfeld perturbado, em alguns
momentos e em determinados espaos, pela
competio de outro fenmeno que quer se
impor. So imagens do Sol e da Lua que se
projetam no seu interior.
Essa apario pode ser esperada du-
rante um longo prazo, como no caso da
Lua, cuja imagem, na sua fase quase cheia,
ir se projetar na parede central com
bastante clareza de detalhes passando
por uma abertura circular, na cmara
construda na fumarola. O nico inconve-
niente, porm, que esse fenmeno s
visvel a cada 18 anos e 61 dias, quando
a Lua est na sua declinao mais ao sul
(Adcock, 1990, p. 184), e a prxima vez
esperada, se o projeto j estiver completa-
do, ser em 2006. O set criado porTurrell, para este evento, compreende um
revestimento na parede, em forma circu-
lar, em areia branca circundada por preta,
o que realar a imagem branca da Lua.
Para ver essa, o visitante ter que esperar
a noite toda, at de madrugada, e assim
ter tempo suficiente para acostumar sua
vista escurido e receber o evento lunar
com maior encantamento.
O clima constante do deserto torna es-
ses acontecimentos mais plausveis de se-
rem vistos, por ser difcil a ocorrncia de
chuvas fora da estao prpria. Em outras
condies climticas poderia haver um
desapontamento para quem viajasse quil-
metros para presenci-los. Outras situaes,
tendo o Sol ou a Lua porperformer, so
mais freqentes, mas a que bate o recorde
em espera a mudana da Estrela do Norte,
que se avista todas as noites do topo daescadaria, no Espao Norte, um dos quatro
espaos dirigidos aos pontos cardeais, situa-
do ao nvel da esplanada, recortados na
rocha na base do vulco.
Essa estrela muda a cada 25.800 anos,
pela inclinao do eixo terrestre. Agora a
vez da Polaris. Quando as pirmides do
Egito foram construdas, era Draco. Daqui
a 12.000 anos ser a vez de Vega, da cons-
telao de Lira (Adcock, 1990, p. 163).Entre outros fenmenos, previstos
para serem presenciados de outros espa-
os, no projeto, est a sombra da Terra
avanando sobre ela mesma, ao
pr-do-sol, enquanto acima ainda so
avistados seus ltimos raios.
Os espaos na base do vulco, a serem
escavados na rocha de constituio vulc-
nica, so em nmero de quatro, direcionados
para os quatro pontos cardeais.
No Espao Sul haver um Skyspace, di-
rigido para mostrar o Sol em seu znite. O
espetculo das nuvens correndo pelo cu ser
grandioso, no s a, mas tambm em quase
todas as salas do projeto. Elas so importan-
tes, por darem a distncia relativa dos aci-
dentes geogrficos avistados no deserto,
desde o Painted Desert ao Grand Canyon.
Adcock (1990, p. 172) tambm liga a expe-
rincia com as nuvens s de Turrell, quando
voando, e salienta o significado que cadatipo delas tem para um piloto.
Esse Espao Sul foi ainda projetado para
abrigar um alinhamento especial do Sol, da
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Terra e da Lua, que acontece a cada dezoito
anos e onze dias, o qual ajudava os antigos
a determinarem os eclipses, e que recebeu
o nome de Saros.
Cada um dos trs espaos restantes abri-
ga eventos diversos e igualmente interes-
santes, sempre tendo a luz de um dos astros
para desencadear o fenmeno perceptivo.
O plano geral para aRoden Cratersegue a
forma de uma pirmide escalonada e
truncada, desenhada hipoteticamente den-
tro da montanha.
Depois de fazer uma verdadeira pere-
grinao por todos os corredores, escadas e
cmaras existentes, j se passou por expe-
rincias do cu (como as de uma pelcula
esticada sobre aberturas emolduradas emcanto vivo, iguais s j descritas nos
Meetings e em outros tipos de Skyspaces),
mas sempre percebendo o cu como um
recorte plano, de cor.
Quando finalmente atinge a cmara cria-
da no centro da cratera, o visitante se en-
contra em um espao de forma cncava, a
funcionar como um observatrio a olho nu.
ele que Adcock (1990, p. 183) coloca
como semelhante, em estrutura, ao obser-vatrio construdo por Jai Singh, em Jaipur,
onde foi criada uma arquitetura para se
ver, e cita Turrell, para explicar que esses
espaos, usados pelos astrnomos antigos
para observao a olho nu, so desenha-
dos de dentro para fora.
Essa cmara, com todas suas aberturas
drasticamente localizadas para se olhar para
fora, repousa sobre um tanque de gua da
chuva, que se infiltra pelas paredes porosas
do vulco e serve para refletir luz e amplifi-
car os sons vindos do deserto e do espao
sideral. Nesse tanque, as pessoas podero se
banhar e, mergulhando, ouvir esses sons. As
paredes e o fundo sero revestidos de p de
obsidiana negra, a intensificar os reflexos
de luz, acentuando sensaes corpreas de
quem a se banha, para tocar a msica das
esferas, em luz. assim que Turrell (apud
Adcock, 1990, p. 183) qualifica sua inten-
o ao criar os espaos daRoden Crater.Na cratera foi desenhado um local mui-
to especial, especfico para se perceber o
fenmeno que o objetivo do projeto.
Um pavimento plano, ao redor do perme-
tro externo da cmera, est destinado a ter
um apoio de pedra para a cabea, para aju-
dar os vedores a encontrarem a melhor
posio para deitarem e observarem o cu.
Repousando suas cabeas nesse apoio, eles
podero ver, sobre a beirada da cratera, de
um ngulo visual que essencialmente de
cabea para baixo, mudanas adicionais no
tamanho e na forma da abbada celeste
acima da cratera (Adcock, 1990, p. 183).
Seja qual for o percurso escolhido pelo
visitante, aps andar por corredores escu-
ros, vivenciar os espetculos de luz e do
cu, visto como um quadro plano quando
atinge a cratera, ter sempre algo inesque-cvel para participar. No somente o efei-
to abbada, mas tambm a possibilidade de
Fumarola com
alinhamentos,
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viver essa riqueza dos sentidos, absoluta-
mente unidos s camadas profundas da psi-
que, prpria condio de ser humano e
de ter a vida ligada deste planeta, neste
partilhar da unio do cu e da Terra, aqui-
lo que ecoa na nossa sensualidade mais
bsica. Tudo isso ainda reforado por es-
ses acontecimentos se sucederem num
local de formao geolgica das mais pri-
mitivas do planeta.
Lembre-se que era o maior sonho de
Turrell, desde muitos anos, criar esse efei-
to de abbada celeste, em um lugar onde
fosse possvel a percepo de grandes
quantidades de espao e movimentar o
mnimo possvel de material para conse-
gui-lo (apud Adcock ,1990, p. 180).As descries ficam pobres e sugerem
o que s ser possvel perceber in loco.
Como j foi realado, os trabalhos de
Turrell, que se originaram no Mendota
Stoppages, esto todos direcionados ex-
perincia mxima, que aRoden Crater.
Quando a obra estiver completa, vai ser
importante prosseguir, do nvel do deserto
atravs de tneis at se chegar na crate-
ra, o que dar uma percepo muito maisaguda de sua imensido abobadando o
cu. Haver um choque intenso entre o
dentro e o fora, maior do que o atual, quan-
do ainda se escala a montanha para adentrar
a cratera, e sempre a cu aberto.
IRISH SKY GARDEN
OIrish Sky Garden, de Turrell, outro
megaprojeto na natureza, no qual ele
retorna s idias bsicas desenvolvidas na
Roden Crater. O cu aprisionado ,
novamente, o elemento a despertar o ato
perceptivo. Aqui, o ajardinar o cu atra-
vs de um projeto paisagstico , para
Turrell, uma alegoria ao pensamento. H
uma alterao essencial no paisagismo
clssico, pois em lugar de ser um jardim
para se olhar, um jardim de onde se olha
para fora. O fora o cu tornado elementode arte, paradoxalmente constituindo-se
parte de dentro do jardim.
Mas, na viso de Jost Krippendorf
(1990, p. 141), esse dentro/fora significa
tambm construir pontes entre nossa na-
tureza interna e externa, embora acrescente
a ressalva de que a deciso de atravess-
las somente nossa.
Tanto quanto a metfora da janela, na
pintura, os Skyspaces fazem o encontro
(Meeting) entre o cu e a Terra, auxiliados
pelas molduras chanfradas em ponta viva.
Wick (1992, p.123) refere-se s bordas das
aberturas como sendo onde o observador
e o observado se encontram.
Os dois trabalhos juntam dois aspectos
antagnicos da paisagem terrestre: aRoden
Crater traz cena uma vasta extenso
desrtica do continente americano, enquan-
to noIrish Sky Garden focada uma reser-va natural de um verde luxuriante, numa
ilha da costa sul da Irlanda e um cu sempre
mutante, carregado de qualidades dramti-
cas. A diferena l [na Roden Crater]
que eu estou mais envolvido com eventos
celestes e no com o cu, com suas inme-
ras diferenas atmosfricas (apud Oliver
Wick, 1992, p. 115).
Pode-se sentir o cu e a Terra como dois
casais diferentes, unindo-se pelas qualida-des geolgicas, geogrficas e climticas que
lhes emprestam distintos perfis. As seme-
lhanas entre os dois projetos magnos de
Turrell estruturam-se em diferenas, tanto
na parte arquitetnica, como na forma de
englobar o projeto artstico ao todo
ambiental. No Irish Sky Garden, Turrell
acrescenta formas externas, construdas ou
reestruturadas, complementando as internas
para conseguir provocar diferentes percep-
es dos Skyspaces. A ateno direciona-se
de um espao a outro, no por locais subter-
rneos, mas por um caminhar entre vegeta-
es de um verde suculento, fontes, cascatas
e restos arqueolgicos. A luz do sol interfere
espontaneamente nesses elementos naturais,
e deixada como tal, sendo estruturada so-
mente no interior das quatro formas
arquitetnicas que constituem o projeto.
Entretanto, Turrell tem perfeita conscincia
disso e usa esse efeito a seu favor.Pensando de maneira semelhante a
Robert Irwin (quanto a trabalhos em luga-
res pblicos deverem ser determinados
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pelas circunstncias locais), Turrell cria
uma harmonia total entre o seu projeto es-
ttico e o parque de reserva natural, o Liss
Ard. A inteno do proprietrio do local,
Veith Turske, que tem uma galeria de arte
na Sua, de estruturar todo o parque,
restabelecendo vegetaes originais ora em
extino, assim como a fauna, e dentro
desse mesmo esprito de respeito pelo local
que o projeto de Turrell se insere.
O Irish Sky Gardendever criar uma
fuso esttica entre os acidentes naturais e
histricos a existentes. NaRoden Crater,
Turrell faz o visitante ter conscincia das
camadas culturais que se sobrepem,
enfatizando o fato de a Roden Craterser
um observatrio astronmico com inten-es semelhantes dos ndios americanos,
que viveram e vivem nas proximidades.
NoIrish Sky Garden, ele tambm ressal-
ta os restos de culturas pr-histricas pre-
sentes no lugar. Cria formas arquetpicas para
conter os Skyspaces, lugares de perceber o
cu, que respondem s vizinhas pedras e
menires, em desenhos circulares e em linha
reta, alguns monolticos, datando da Idade
do Bronze e do incio da Idade do Ferro.
Outrora, estes tinham a funo de marcar
fenmenos celestes, trazendo-os para a Ter-
ra. Ainda vagam por a as crenas no genius
loci, uma concepo antiga, que data do
remoto passado pr-histrico e de origem
celta (Wick, 1992, p. 115), a qual prov um
gnio para cada acidente na natureza.
O solo irlands est juncado de remanes-
centes histricos, como o da Inglaterra, que
um outro artista ingls, na dcada de 70,
ligou ao seu trabalho, fazendo, do seu cami-
nhar por esses stios, a sua arte: Richard Long.
Ele tambm percebeu e se apoderou de pe-
dras pr-histricas, colocadas em formaessemelhantes s encontradas no stio doIrish
Sky Garden, comoready made art, e criou
outras semelhantes. Dentre os artistas dos
earthworks, ele se coloca mais perto da sen-
sibilidade de Turrell, quando diz: Meu tra-
balho sobre meus sentidos, meu instinto,
minha prpria escala e meu prprio com-
Irish Sky
Garden
Projeto
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promisso fsico (apud Lucy Lippard, 1983,
p. 129), alm de abordar tambm a
superposio de momentos histricos.
Nesta reserva, tambm est situada a
Carrig Fada, uma montanha considerada
sagrada, que serve de ponto de referncia
para todos os Liss da regio, sendo o mais
importante o Liss Ard, um mound tendo
uma abertura na parte traseira que conduz
a uma rede de passagens subterrneas, as
quais podem ter sido usadas para defesa ou
para o armazenamento de suprimentos
(Gnter Metken, 1992, p. 95). Ningum
jamais provou sua real utilidade, e existem
abundantes lendas na Irlanda, que conce-
dem poderes mgicos a esses locais.
Turrell, com seus dois projetos, unemomentos igualmente significantes para as
antigas culturas dos dois locais. Delimita o
espao para o grande acontecimento solar
anual do solstcio de inverno, momento em
que a luz solar diminui na Terra, ao se au-
sentar para o mundo subterrneo. As mon-
tanhas compem a marca desse momento,
tanto para os hopis, no Arizona, como para
as antigas culturas, na Irlanda, que o regis-
traram sob a forma de pedras e de aberturasnas rochas.
Turrell tem um grande interesse por
vulces e por ilhas, considerados como
lugares de poder. O parque natural, onde
est situado oIrish Sky Garden, fica numa
ilha, tendo o mar refletindo o cu, e assim
trazendo-o para se unir Terra de forma
distinta da de Turrell.
OS TRS ESPAOSO projeto total do Irish Sky Garden
constitudo de trs construes principais,
que se tornaro parte da natureza, a ela se
mesclando, e, ao mesmo tempo, trazendo
uma percepo especial de pontos de vista
dos elementos naturais da paisagem. Arte
e natureza esto resolvidos em uma unida-
de que se declara no momento da percep-
o, o que diz Oliver Wick (1992, p. 38).Uma cratera criada num monte exis-
tente, umMound, e por ltimo uma pirmi-
de escalonada e truncada so as formas
externas que recebem, em seus interiores,
os espaos para se perceber o cu
(Skyspaces). Cada qual a sua maneira, eles
repetem as formas externas: um, em ligeira
elipse, outro, de forma circular e o outro, de
forma quadrada.
A diferena marcante com o todo da
Roden Crater que, noIrish Sky Garden,
o visitante estar mais relacionado com o
fora, pela proximidade da natureza, no seu
caminhar por ela, e na integrao que Turrell
consegue programar perceptivamente, en-
quanto na Roden Crater so os eventos
csmicos que predominam.
Todos esses espaos so dedicados
percepo do cu. No da cratera, encontra-
se repetida, em escala mais modesta, a visoda abbada celeste como percebida naRoden
Crater. No Mound, o cu oferecer uma
experincia prxima s vivenciadas nos
Meetings I e II do P S I, em Nova York e em
Los Angeles, mas ainda conservando uma
ligeira concavidade. Na pirmide experi-
mentar-se- a mesma pelcula colorida pre-
sa ao teto, fechando o espao, como nesses
Skyspaces acima. Na pirmide, a viso do
cu noite totalmente destituda de estre-las, contra a viso do universo vista dos dois
outros espaos. O cu noturno apresenta-se
sob a forma de um denso veludo negro. A
forma interna, cbica, repete a organizao
da existente nos doisMeetings, com exce-
o do material de construo dos bancos,
sendo aqui de pedra do local.
O Mound repete a forma dos antigos
locais funerrios da regio e tem no seu
centro um trono escavado em pedra, colo-
cado a uma altura que permite a viso da
montanha Carrig Fada, para quem a se
senta. Esta viso une os dois pontos e as
duas pocas, na histria da humanidade.
DoMound, caminha-se at uma espcie de
ptio, com um muro frente bloqueando a
vista. No seu centro, um correr de degraus
leva ao topo, de onde se avista, no s o
cu, como at ento, mas pela primeira vez,
toda a paisagem para a Carrig Fada. Esse
ptio o espao central anterior Pirmi-de, quando do percurso do circuito.
O terceiro espao, ou pirmide, tem
dois lances de escadas simetricamente co-
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locados, na entrada e na sada. O da sada
leva para perto das margens do lago
Lough Abisdealy onde termina o proje-
to de Turrell, em um pequeno grotto, co-
berto de vegetao local prpria dos luga-
res midos. Da, um caminho serpenteia
at o topo do Liss Ard.
OIrish Sky Garden, ocupando fisica-
mente 10 dos 185 acres totais do parque
Liss Ard, altera toda a sua percepo, pela
interao das construes que emolduram
ou realam pontos importantes na paisa-
gem, seja por seu contedo histrico, seja
por suas razes estticas.
LOCAL, LUGAR, ESPAOOs projetos daRoden Cratere doIrish
Sky Gardenquando terminados, passando
categoria de obra realizada, sero um
exemplo vivo de transculturao, no senti-
do dado a essa palavra por Octavio Ianni
(em palestra realizada no IX Encontro
Anual da ANPAP, 1997): um processo
no qual ambas as partes da equao resul-
tam modificadas. Um processo do qual
resulta uma nova realidade, composta e
complexa [] Quando entram em inter-
cmbio e composio, naturalmente desen-
volvem outras pluralidades e hetero-
geneidades.
Nessas obras o local (representado
pelas culturas pr-americanas e pr-irlan-
desas) se integra ao lugar (as coordenadas
heursticas de Turrell) e ao espao (o vul-
co e o parque antes de serem a Roden
Cratere oIrish Sky Garden), transforman-
do-os num locusde desejo, agora no s
do artista mas tambm de todos seus visi-tantes, numa cadeia sgnica a enriquecer a
percepo e a vivncia.
Assim, tantoRoden Crater comoIrish
Sky Garden preenchem os requisitos de se
coadunarem ao local sem impedir uma vi-
so mais ampla, incluindo a csmica.